Rebento - revista de artes do espetáculo 4

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Revista de Artes do Espetรกculo no 4 - maio de 2013



Revista de Artes do Espetรกculo no 4 - maio de 2013


Catalogação na fonte: Elaborado pelo Serviço de Técnico de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da UNESP

R291

Rebento: revista de artes do espetáculo / Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Instituto de Artes. - n. 4 (maio 2013) - São Paulo: Instituto de Artes, 2013. Anual ISSN: 2178-1206 1. Teatro. 2. Teatro – Estudo e ensino. 3. Representação teatral. 4. Criação (Literária, artística etc.). I. Universidades Estadual Paulista, Instituto de Artes. CDD 792.07


EXPEDIENTE Rebento – Revista de Artes do Espetáculo é uma publicação do Departamento de Artes Cênicas, Educação e Fundamentos da Comunicação do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP). Os pontos de vista expressos nos textos assinados são de inteira responsabilidade dos autores. Todo o material documental e as inserções fotográficas deste número foram publicados com a autorização de seus autores ou representantes. Coordenação editorial: Alexandre Mate (UNESP) e Mario Fernando Bolognesi (UNESP). Conselho editorial: Alberto Ikeda (UNESP), Armindo Bião (UFBA), Luís Alberto de Abreu, Maria de Lourdes Rabetti (UNIRIO), Mariangela Alves de Lima, Milton de Andrade (UDESC), Neyde Veneziano (UNICAMP) e Sílvia Fernandes (USP). Conselho consultivo: Amir Haddad (Grupo Tá na Rua – RJ), Carminda Mendes André (UNESP), Cássia Navas (UNICAMP), César Vieira (Teatro Popular União e Olho Vivo – SP), Eugenio Barba (Odin Teatret – Dinamarca), Fernando Villar (UnB), Fernando Yamamoto (Grupo de Teatro Clowns de Shakespeare – RN), Francisco Cabral Alambert Junior (USP), Gilberto Figueiredo Martins (Unesp - Assis), Hugo Possolo (Grupo Parlapatões, Patifes & Paspalhões – SP), Iná Camargo Costa (USP), Jaime Gómez Triana (Casa de las Américas – Cuba), José Manuel Lázaro de Ortecho Ramírez (UNESP), Karen Worcman (Museu da Pessoa), Kathya Maria Ayres de Godoy (UNESP), Leslie Damasceno (Duke University – Carolina do Norte), Ludmila Ryba (ex-integrante da Companhia Cricot 2, Polônia), Marcelo Bones (CEFAR-MG), Maria Silvia Betti (USP), Marianna Francisca Martins Monteiro (UNESP), Marta Colabone (SESC-SP), Marvin Carlson (City University – New York), Milton Sogabe (UNESP), Paulo Eduardo Arantes (USP), Paulo Betti (Casa da Gávea – RJ), Paulo Castanha (UNESP), Peter Burke (University of Cambridge), Roberto Schwarz (UNICAMP), Robson Corrêa de Camargo (UFG), Rosangela Patriota Ramos (UFU), Rosyane Trotta (UNIRIO), Santiago Serrano (Dramaturgo – Argentina), Sérgio de Carvalho (USP), Suely Master (UNESP), Valmir Santos (Jornalista), Wagner Cintra (UNESP) e Walter Lima Torres (UFPR).

Projeto gráfico: Alexandre Mate e Maurício F. Santana. Revisão técnica, idealização da revista e responsável por esta edição: Alexandre Mate. Estagiária de produção: Iara Coutinho. Coordenação editorial: Selma Pavanelli. Revisão: Airton Dantas. Impressão: Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Instituto de Artes. Departamento de Artes Cênicas, Educação e Fundamentos da Comunicação. Capa e contracapa: Fotos de Bob Sousa.


Índice

Revista de Artes do Espetáculo no 4 - maio de 2013

Apresentação: As Urdiduras da Performance – falas experimentais, experimentos falados: um passeio pelas terras dos [performáticos] Andrade, por Alexandre Mate

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Bloco I: PROCESSOS E EXPERIMENTOS PERFORMÁTICOS – DA HISTÓRIA AO CORPO DO INTÉRPRETE Texto de apresentação do primeiro dia de encontros: abordagens da performance em performance, por Lígia Borges

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Ação e representação nas artes performativas, por Cassiano Sydow Quilici

34

Dramaturgia na pós-modernidade: aspectos performáticos da escrita cênica contemporânea, por José Manuel Lázaro de Ortecho Ramírez

43

Performance e alteridade, por Lucio Agra

50

Tempo, espaço, presença, por Gilberto Icle

54

Apontamentos sobre a técnica dos viewpoints em experimentação prática, por Miriam Rinaldi

68

Bloco II: DISTINTOS PROCESSOS PERFORMÁTICOS NAS ENCENAÇÕES CONTEMPORÂNEAS Texto de apresentação do segundo dia de encontros: política e performance – angústias e provocações, por Alexandre Falcão de Araújo

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Relato de uma atriz e diretora de coletivo teatral (des)amarrado e em permanente processo de libertação, por Georgette Fadel

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Máquinas de intervenção urbana – uma experiência antropofágica ou O uso livre de todos os modelos e procedimentos ou Zezé de Karl Marx e Luci Engels cantam enquanto um coro de Macunaímas declama Maiakóvski em São Paulo de Piratininga, por Thiago Reis Vasconcelos

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Comunicado a uma academia e o espetáculo Primus, por Verônica Fabrini

94

Performance feminista e performatividade de gênero: relato da oficina mulheres performers, por Lúcia Romano

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Bloco III: PROCESSOS PEDAGÓGICOS EM PERFORMANCE – O(A) PROFESSOR(A) PERFORMER Texto de apresentação do terceiro dia de encontros: desenforma, por Milene Valentir Ugliara

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O mestiço professor-performer, por Naira Ciotti

117

Artes como mediadoras de afetos, por Carminda Mendes André

123

A estética relacional e a Festa do Boi no Morro do Querosene em São Paulo, por Marianna F. M. Monteiro

131

Texto final dos estudantes-artistas, mediadores do evento: antagonismos e falsos antagonismos, por Alexandre Falcão de Araújo, Lígia Borges e Milene Valentir Ugliara

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Bloco IV: MATÉRIAS DE COLABORADORES CONVIDADOS O conceito de performativo, a performance e o desempenho espetacular por Luiz Fernando Ramos

149

Ifigênia: quando o coro improvisa por Marcelo R. Lazzaratto

155

A tríade conceptiva nas performances do coletivo artístico Gob Squad: ator, vídeo e espectador, por Renata Ferraz

161

Bloco V: EXCERTOS DE OBRAS ESTÉTICAS Renato Cohen: performance, ritualização do instante, por Silvia Fernandes

171

A “aula” hoje é na rua: relato de atividades..., por Carminda Mendes André

172

Performance Dada, por Carolina Caetano, Evill Rebouças, Lígia Borges e Renato Barreto

175

Poema – obra-colagem inserida no Primeiro Manifesto Surrealista (1924)

184

Um experimento performativo com O despertar da primavera, por Lissa Santi

186

Acaso... experimentação... ou Dada e o relato da primeira comunhão, por Letícia Leonardi

189

A estética do sonho em tempos midiáticos, por Beatriz Marsiglia e Leonardo Mussi

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ilustrações

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As fotos que aparecem nesta publicação são de Bob Sousa

p.09

Acordes (2012): direção de Zé Celso Martinez Corrêa, com o Teatro Oficina Uzyna Uzona.

p.30-31

Barafonda (2012): coordenação geral do processo de montagem de Patrícia Guiford, com a Companhia São Jorge de Variedades.

p.42

Recusa (2012): direção de Maria Thais.

p.67

Ficção (2012): direção de Leonardo Moreira, com a Companhia Hiato. Em cena Fernanda Stefanski.

p.76

Ficção (2012): direção de Leonardo Moreira, com a Companhia Hiato. Em cena Luciana Paes.

p.92-93

Terror e misérias no novo mundo parte III: autópsia da República (2012): direção de Thiago Vasconcelos, com a Companhia Antropofágica.

p.103

Cidade Fim. Cidade Coro. Cidade desmanche (2011): direção de José Fernando Peixoto, com o Teatro de Narradores.

p.114

Luiz Antônio–Gabriela (2011): direção de Nelson Baskerville, com a Companhia Mungunzá de Teatro.

p.147

Barafonda: direção de Zé Celso Martinez Corrêa, com o Teatro Oficina Uzyna Uzona.

p.148

Acordes (2012): direção de Zé Celso Martinez Corrêa, com o Teatro Oficina Uzyna Uzona.

p.170

Terror e misérias no novo mundo parte III: autópsia da República (2012): direção de Thiago Vasconcelos, com a Companhia Antropofágica. Em cena Danilo Santos.

p.173

Os cegos: Carminda Mendes Andre.

p.182-183

Oficina ministrada por Marcos Bulhões no Instituto de Artes da Unesp.


Foto do espetáculo Acordes, dirigido por Zé Celso e apresentado pelo Oficina - Uzina Uzona. Nesse momento do espetáculo, dois coros (ou um coro e outro, como contracoro), personagens coletivas com função protagônica estão em cena.


Apresentação As Urdiduras da Performance – falas experimentais, experimentos falados: um passeio pelas terras dos [performáticos] Andrade por Alexandre Mate

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I. Passeio pelas terras dos [performáticos] Andrade [...] quem sabe se o melhor das obras de arte não surge do imperfeito domínio do material como uma primícia, uma aparição súbita, que se desfaz assim que se torna tecnicamente disponível. Theodor Adorno. Palavras e sinais. Atualmente, na cidade de São Paulo, vive-se em meio ao entrecruzamento de uma série de atividades promovidas por grupos, companhias e coletivos teatrais, cujas quantidade e qualidade, por um conjunto (in)articulado e dialético de questões, caracterizam-se em fenômeno raro. Nem mesmo na chamada “fase de ouro do teatro paulistano” – período que vai de 1948, com a fundação do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), até a imposição, durante a ditadura civil-militar, do Ato Institucional Número 5, de 13 de dezembro de 1968 (que mergulhou o País em estado de sítio) – se pôde assistir a tantas montagens significativas. Várias obras dessa fase de ouro, exceto aquelas produzidas no TBC (que também sentiu a necessidade de destinar as segundas-feiras para a apresentação de obras mais experimentais), tiveram o propósito de arrebentar diversos cânones do teatro confortável e, de certa forma, bem comportado, mais ao gosto da burguesia pagante (GUZIK, 1986). Dessa forma, o processo de “arrebentação” das estruturas estéticas e dos espaços mais tradicionais de representação é conquista de criadores ao longo da história do teatro. A espécie de alvenaria imaginária (a quarta parede), primeiramente solicitada por Denis Diderot, em Discurso sobre a poesia dramática (1759), no sentido de evitar tantos excessos praticados durante o período absolutista, transforma-se em espécie de blindagem apartante dos sujeitos que promovem o fenômeno teatral no teatro burguês. Entretanto, a proteção, que funcionou durante certo período, tem ruído desde sua adoção histórica e seu paroxismo, e não apenas na cidade de


São Paulo, chegou ao paroxismo nas duas primeiras décadas do século XXI. Angelo M. Ripellino (1971), ao descortinar uma determinada paisagem, ou um território de contenda entre criadores, público e autoridades, desenvolvido no período das vanguardas históricas europeias, afirma que depois de Ubu rei, de Alfred Jarry, o teatro encontrar-se-ia para além da mera reação ao naturalismo, e que a nova cena teatral se caracterizaria por um conjunto de evidências como, por exemplo:

• o sentido da provocação, do espicaçar, a vontade de destruir a tradição, de matar o luar sentimental e o academicismo burguês. Espírito de escárnio, de zombaria do futurismo e do surrealismo;

• a desintegração da linguagem. Apollinaire suprimiu a pontuação e pregou a inverossimilhança. A intriga desaparece, o texto explode, torna-se absurdo; busca-se uma escrita “inconsciente”: a linguagem automática do surrealismo, ou a construção não compreensível do zaum russo1. A tendência é no sentido de uma linguagem falada, que não parece ser premeditada. A estrutura da peça bem-feita é sacudida como um coqueiro;

• a explosão da noção de personagem, que se decompõe, torna-se imprecisa; ela pode ser um objeto;

• a fragmentação da noção de autor: o encenador reconstrói a peça e converte-se em coautor. Nada de reconstituição histórica, nada de fidelidade ao autor do argumento;

• a fragmentação do espaço: o local da cena se remodela. Tomando como mote o teatro paulistano da atualidade, o ilusionismo absoluto e as áreas restritas delimitantes de dois grupos apartados de sujeitos (artistas e público) têm se interpenetrado de diferentes modos e “irremediavelmente”: ou a luz vaza para a plateia ou para a área de público (dentre tantos outros, o espetáculo Terror e miséria no novo Ripellino (1971) afirma que o zaum (zaumniy yazyk – linguagem abstrusa) surgiu em 1912, e que essa espécie de recurso se caracterizava pela invenção de um código em que a linguagem poética deveria libertar-se das formas rígidas da lógica e buscar um caráter transracional. O francês Ribemont-Dessaignes, por sua vez, lembra que o zaum, reinventado por Zdanevitch (1918) corresponderia a uma língua de aparência russa cujas palavras e onomatopeias permitiriam dar certo suporte de várias palavras de sonoridades próximas. Sobre zaum, ver também: G. M. Hyde. “O futurismo russo“, in: Malcolm Bradbury e James McFarlane. Modernismo – guia geral. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. 1

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mundo – parte III, apresentado pela Companhia Antropofágica); alguma personagem desloca-se do espaço de representação ou “passeia” pelos mais diferenciados interesses e necessidades pela área do público (dentre tantos outros, o espetáculo A doença da morte, dirigido por Marcio Aurelio); muitas “paisagens” encontram-se na área do público (dentre tantos outros, um incêndio, como na montagem de Os espectros, dirigido por Francisco Medeiros, ou um jardim/mata, com árvores e arbustos reais, como em Pais e filhos, apresentado pela Mundana Companhia de Teatro, com direção do russo Adolf Shapiro); adereços importantes ou de grande simbolismo permanecem na área do público (por exemplo, óculos dentro de aquário em aparador no surpreendente Escuro, da Companhia Hiato); ou a explosão total dos espaços (por exemplo, Como se tornar uma supermãe em 10 lições, pela mãe judia criada por Ana Lúcia Torre, ou Tentativa, com surpreendente trabalho de Tatiana Schunck nos quais as personagens aparecem e ajudam a criar a cena desde a sala de espera; todos os lugares, sem exceção, são espaços de representação (como o exemplar Acordes, apresentado no Oficina Uzyna Uzona)... Enfim, múltiplos expedientes têm sido buscados e construídos para a instauração de novos processos de sentido, exigindo, como decorrência, outras qualidades de presença. Mesmo com as tentativas históricas de enquadramento e de esquadrinhamento impostas à obra teatral, aos artistas e ao público (sem considerar o teatro popular, que nunca se ateve às predeterminações de tal natureza), o que se tem é a quebra de limites, limitações e paradigmas. No teatro erudito ou aquele especialmente montado para as elites econômicas, a total perda dos processos de disciplinarização da cena, compreendendo a “desmontagem” dos conteúdos e das estruturas dramatúrgicas tradicionais, atinge o paroxismo com o movimento simbolista francês. A partir do Simbolismo – que não deixa de lado muitas invenções, sobretudo do último Romantismo e, não tão paradoxalmente assim, do Naturalismo alemão (como aquele do Freie Volksbühne de Erwin Piscator) –, ocorre a explosão das vanguardas históricas europeias, cujo objetivo determinante reúne a quebra das estruturas paradigmáticas; o choque e a estupidificação do espectador; a utilização de expedientes característicos das apresentações populares (como o trânsito com as partituras abertas e o sem-limite relacional daí decorrente); os processos de deambulação e de intervenção, tanto interna quanto externamente (espaços privados e públicos). Salvaguardadas diversas questões, dentre os pioneiros no Brasil que começam a trabalhar com expedientes na dramaturgia textual e da


cena, que depois de certo momento passam a ser nomeados por distintos conceitos (happening, teatro ritual, experimental... ), vale mencionar, nas décadas de 1920 e 1930, os nomes de Flávio de Carvalho e suas provocativas Experiências, cujas provocações pretendiam levar o corpo expressivo a fugir dos sistemas de representação, tanto do ponto de vista estético quanto social (SIMÕES: 2010; OSORIO: 2000), e o de Renato Viana (SIMÕES: 2010; MILARÉ: 2009). Durante a década de 1960, grupos históricos lançam mão de expedientes hoje chamados performativos, dentre os quais – além das experiências dos Centros Populares de Cultura da União Nacional dos Estudantes (CPC-UNE) –, é preciso destacar o happening ou performance pública realizada pelos integrantes do grupo Oficina em protesto à censura, em 30 de outubro de 1960, de A engrenagem (atores e atrizes amarram-se ao Monumento à Independência, no bairro Ipiranga): tratava-se, naquele momento, de apresentar coletivamente um grito de rebelião contra uma sociedade controladora; as direções de Zé Celso – decorrentes da criação da chamada estética do desbunde –, para O rei da vela, de Oswald de Andrade (1967) e Roda viva, de Chico Buarque de Hollanda (1968) e as experiências do te-ato, já na década de 1970, apresentaram o corpo exposto, em comunhão, tensionado ao paroxismo (SILVA: 1981). Depois do processo de deambulação (tea-to) pode-se, seguramente, classificar todas as encenações do Uzyna Uzona como obras tecidas por densa performatividade. É certo que a vinda de Víctor García ao Brasil para a montagem de Cemitério de automóveis (1968) e de O balcão (1969) agitou os palcos paulistanos; particularmente da segunda ficou um rastilho de choque e de abuso; de despudoramento; de obra performativa, cujos corpos em procissão comunal presentificavam-se com/no outro, em pleno exercício de alteridade. O inusitado das montagens, sobretudo nos aspectos de visualidade e a exigência das propostas de encenação aos atores, acabam por influenciar diversos criadores teatrais. Direta ou indiretamente das montagens de Víctor García, dos experimentos do Oficina, das propostas de intervenção dos CPCs, muito migrou para espaços de representação. Desse modo, especialmente de acordo com as impressões da crítica e da crônica teatrais, mereceriam destaque, ainda entre os anos 1960 e 1970, José Agripino de Paula e Maria Esther Stokler, pela montagem do espetáculo cujo resultado formal, segundo a crítica da época, é surpreendente. A encenação deixa o público e a crítica embasbacados tanto pelo seu caráter de obra “acontecimental” (happening) quanto pelo uso de certos expedientes visuais. Trata-se de Rito do amor selvagem.

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Pela mesma senda de radicalização, O terceiro demônio, com direção de Mário Piacentini – remontado duas outras vezes como Comala (1969); a terceira vez, repetindo o nome da primeira montagem (1970) – organiza-se a partir de ampla rede de construção simbólica. O espetáculo é apresentado em sala, espaço em que atuantes e público se confundem, envolvidos por uma grande teia ou “aranha” cujos tentáculos se movimentavam. Pelo caráter surpreendente do texto e pelo virtuosismo da atriz (Marília Pêra), no início dos anos 1970, sob direção de Aderbal Freire, aporta nos palcos paulistanos Apareceu a Margarida, de Roberto Athayde. Pêra, como uma professora que metaforiza o próprio País, apresenta uma composição em que diálogo, mímica corporal e utilização de outros elementos (como lousa, que a personagem chega a usar; uma “caveira”, representada por um ator nu...) compõem a cena e exigem da atriz significativa performatividade. O Pod Minoga Studio, grupo originalmente ligado às artes plásticas (formado na Fundação Armando Álvares Penteado – FAAP, no início da década de 1970, ainda como grupo amador), tem orientação inicial de Naum Alves de Souza, e é composto por Ângela Grassi, Carlos Moreno, Dionísio Jacob, Flávio de Sousa, Mira Haar e Regina Wilke. O grupo marca muitos tentos no teatro, e seus espetáculos, apresentados nos anos 1980, são As margens plácidas (1980), com texto, direção, cenografia, figurinos e seleção musical do Pod Minoga Studio; Capa de revista (1981), com texto de Mira Haar, Flávio de Souza, Marco Botassi e Stela Matoso; Salada paulista (1980), criação coletiva com texto, cenários, figurinos, seleção e letras de músicas, direção e produção do Pod Minoga Studio. Colaboradores: Naum Alves de Souza e Pedro Alberto de Souza. No fim da década de 1970, Paulo Yutaka e Celso Saiki fundam o Grupo de Arte Ponkã, hibridizando expedientes regionais do interior de São Paulo e nipônicos por meio de linguagem performática, orientados pelo importante veterano Luiz Roberto Galizia. O grupo apresenta os seguintes espetáculos: Bom dia, cara (1981), com criação visual de Alex Vallauri; Apocalipse (1984); Brasil-performance (1986), com integrantes do Recife, do Rio de Janeiro, de Porto Alegre e de São Paulo; Cabaré Satã (1985). Merece destaque o Ciclo Nacional de Performance (1984), apresentado na Sala Guiomar Novaes, organizado pela Funarte (São Paulo) e pelo Instituto de Artes Plásticas, com a participação dos seguintes espetáculos: Além da realidade, de Guto Lacaz, Cristina Mutarelli, Sérgio Mamberti e Recife Farah; Top secret, de Ivald Granato; Vidigal – alguns fatos marcantes, de Alessandro e Massimo Corsini; Construção, de Paulo Yutaka; Mistério, de Tomoshigue Kusuno; Entre a baleia e o tigre, de Rogério Nazzari e Carlos Wladinmirsy; Ludir, o


mágico, de José Eduardo Garcia do Amaral; Leilão de arte não intencional, de Artur Matuck; A arte como jogo, de Paulo Bruscky; Acabou?, de Eduardo Barreto; O pior espetáculo da terra, de Edgard Ribeiro. O próximo capítulo – Performances Ponkã –, proposta apresentada em 17 capítulos diferentes de Urbano, personagem vivido por Paulo Yutaka que, a cada dia, recebia um convidado. Roteiro: Paulo Yutaka. Direção: Seme Lufti. Capítulo 01: Moreno claro. Elenco: J. Violla e Banda Bandrix (20/10/1984). Capítulo 02: Acordes do acordo. Elenco: José Celso Martinez Corrêa. José Celso Martinez Corrêa não pôde ir e o pessoal tratou performaticamente de bolar um capítulo extra da novela: Kodomo no Koto. Roteiro e direção: Milton Tanaka e Cláudio Creti. Elenco: Milton Tanaka, Afonso Roberto, Sandra Negretti e Eliana Floriano. Performance musical: Hector Gonzáles (21/10/1984). Capítulo 03: A mulher-fantasma. Elenco: Celina Fujiri e Felícia Ogawa. Performance curta, com Graciela de Leonnardis. Poeta romântico. Roteiro: Carlos Barreto. Direção: Celso Saiki. Elenco: Graciela de Leonnardis, Paulo Garcia e Medianeira Amodeo (24/10/1984). Capítulo 04: Neo nazi. Elenco: Seme Lufti e alunos da Escola Macunaíma: Fred, Célia, Gisele, Cris, Ernesta e Zeca. Kodomo no Soto (25/10/1984). Capítulo 05: Jane das selvas. Elenco: Cláudia Alencar e Graciela de Leonnardis. Relações afetivas. Roteiro e direção: Ana Lúcia Cavalieri e Carlos Barreto (26/10/1984). Capítulo 06: Os defeitos do homem. Elenco: Vicentini Gomes. Kodomo no Soto. No domingo Deus descansou. Elenco: Carlos Barreto, Graciela de Leonnardis e Paulo Garcia (20/10/1984). Capítulo 07: Gólen. Elenco: Milton Tanaka. Rock I. Roteiro e direção: Hector Gonzáles. Elenco: Hector Gonzáles, Graciela de Leonnardis, Carlos Barreto, Paulo Yutaka, Cidão e Júnior (20/10/1984). Capítulo 08: O lavador de pratos. Elenco: Tato Fisher e Rosi Campos. Era uma vez (Os três porquinhos). Autor e direção: Celso Saiki. Elenco: Ana Lúcia Cavalieri, Carlos Barreto, Celso Saiki e Graciela de Leonnardis (31/10/1984). Capítulo 09: Café forte. Elenco: Seme Lufti, Célia Watanabe, Ana Lúcia Cavalieri, Paulo Garcia e Banda Bandrix. Concerto performático. Elenco: Marcos Antonio Cancelo, Gunther H. W. Pusch, Graciela de Leonnardis, Hector Gonzáles e Madalena Bernardes (1o/11/1984). Capítulo 10: Repartição. Elenco: Fábio Namatame, Gisela Arantes, Edu Marques e Eli Daruj. Era uma vez (Os 2 irmãos João e Maria, e Assalto ao açougue). Elenco: Celso Saiki, Carlos Barreto, Ana Lúcia Cavalieri, Paulo Garcia e Grupo Pessoal do Poente: F. Gonçalves, Gisa Rey e Marcos Marcel (2/11/1984). Capítulo 11: Tela de vidro. Elenco: Carlos Takeshi, Celina Fujii e Ivald Granato. Re-lações afetivas. Elenco: Ana Lúcia Cavalieri, Carlos Barreto. Poeta

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romântico. Elenco: Carlos Barreto (3/11/1984). Capítulo 12: Ao piano, com Cida Moreyra e Caio Fernando Abreu. Era uma vez (Strip-tease às avessas). Autor e direção: Celso Saiki. Elenco: Ana Lúcia Cavalieri e Celso Saiki. Kodomo no Koto (4/11/1984). Capítulo 13: Tony Walter. Elenco: Pituco e Paulo Afonso. No domingo Deus descansou e Rock II (7/11/1984). Capítulo 14: A cigarra. Elenco: Celso Saiki. Performance curta. Elenco: Carlo Barreto e Celso Saiki (8/11/1984). Capítulo 15: 7 Quedas. Elenco: Lucila Meireles, George Schlesinger, Isabel Silveira e Luiz Roberto Galizia. Era uma vez (Assalto ao açougue, A dança das bundas). Poeta romântico (9/11/1984). Capítulo 16: Lírica Marta. Elenco: Mira Haar e Fernando Duarte. Era uma vez (Sodoma). Criação: Celso Saiki e Carlos Barreto. Elenco: Ana Lúcia Cavalieri, Carlos Barreto, Celso Saiki e Grupo Pessoal do Poente: Fernando Gonçales, Gisa Rey e Marcos Marcel. Kodomo no Koto (10/11/1984). Reprise do capítulo 09. Re-lações afetivas. Era uma vez (Os três porquinhos) (11/11/1984). Reprise do capítulo 11. Strip-tease. Kodomo no Koto (14/11/1984). Reprise do capítulo 03. Re-lações afetivas. Era uma vez (A dança das bundas, Os três porquinhos, Os 2 irmãos João e Maria) (15/11/1984). Reprise do capítulo 13. Era uma vez (Sodoma). Poeta romântico (16/11/1984). Capítulo 17: Vizinhos, com Carlos Moreno. Era uma vez (A dança das bundas, Assalto ao açougue e Os 2 irmãos João e Maria). Kodomo no Koto (17/11/1984). Reprise do capítulo 07. Re-lações afetivas. Poeta romântico (18/11/1984). Capítulo final. Elenco: Maria Alice Vergueiro, Robson Borba e Banda Bandrix. Retrospectiva das performances. Teatro Experimental Eugênio Kusnet. Tempestade em copo d’água (1987). Roteiro: Paulo Yutaka. A partir da direção de Luiz Roberto Galízia. Direção musical: Hector González. Músicos participantes do espetáculo como atores: Alcides Trindade, Graciela de Leonardis e Hector González. Dançarino: Milton Tanaka. Elenco: Ana Lúcia Cavalieri, Carlos Barreto, Celso Saiki, Graciela de Leonnardis, Hector Gonzáles, Paulo Yutaka e Sérgio Silva. Teatros Maria Della Costa, Brasileiro de Comédia (Sala Assobradado), Experimental Eugênio Kusnet e alguns espaços de representação. O carioca Asdrúbal Trouxe o Trombone, bastante saudado em São Paulo, é outro grupo significativo que transita com expedientes de pura performatividade. A trupe irreverente, com obras sempre criadas de modo coletivo, apresenta vários espetáculos na cidade: Aquela coisa toda (1980). Teatros Ruth Escobar e Alfredo Mesquita; O espírito da coisa, produzido por integrantes remanescentes do grupo (1986). Teatro do Bixiga e Café Piu-Piu; A farra da terra (1982, 1983). Teatro FAAP e Sesc Pompeia.


Na década de 1980, de modo mais sistemático, motivo pelo qual o evento Urdidura da Performance homenageia Renato Cohen, o nome performance aparece para nomear espetáculos teatrais – de modo a distingui-los de happenings –, e o diretor talvez tenha sido o primeiro a produzir obras e a usar o conceito em suas encenações. Renato Cohen, que nomeia o intérprete como performer, apresenta os seguintes espetáculos na década de 1980:  Tarô-rota-ator (1984) – texto, pesquisa e criação, com coordenação de Renato Cohen, apresentado pelo Grupo Estação da Luz (criado por Cohen). Criação musical: Armando Chuh. Iluminação: Paulo Almeida. Figurinos: Beatriz Bianco. Cenotécnica: Alberi Lima. Sonoplastia: Javier Rodrigues. Marionete: Esther Fingerman. Máscara Nô: Donato Velleca. Elenco: Sérgio Esteves, Ângela Barros, Alberi Lima, Beatriz Bianco, Meire Nestor, Nello Landi e Renato Cohen. Espaço Madame Satã.  Espelho vivo (1986-87) – performance criada pela Orlando Furioso Companhia de Teatro. Texto e direção: Renato Cohen (a partir das obras de René Magritte). Coreografia: Lali Krotoszinski e Renato Cohen. Vídeo e slow-scan: Arthur Matuck e Renato Cohen. Holografia: Moysés Baumstein. Instalações: Ana Britto. Ator em video slides: Sérgio Farias. Elenco: Lali Krotoszinski, Beto Martins, Maurício Femazza e Meire Nestor, apresentada no Espaço Flávio Império e Centro Cultural São Paulo (Sala Jardel Filho), Centro Cultural São Paulo (Sala Expressão Nova), Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo e Pavilhão da Bienal.  Aktion performance (1989) – performance com coordenação de Artur Matuck e Renato Cohen. É um espetáculo de conclusão final de curso, apresentado em 28/3/1987, na Oficina Cultural Oswald de Andrade. Arte performance: processo de consciência – concepção e direção de Renato Cohen, com apresentação na Biblioteca Mário de Andrade. Com a divulgação do nome e dos expedientes que caracterizam a nova manifestação, vários espetáculos mesclam interpretação, dança, com acentuado apelo às artes visuais, à música, à linguagem circense. O percevejo (1983), de Vladimir Maiakóvski, com direção surpreendente de Luís Antônio Martinez Corrêa, cumpre temporada no Sesc Pompeia. Fruto de um processo de oficina, cuja proposta atinha-se às influências do teatro de Bob Wilson (para quem o texto tem de entrar em conflito com a cena), Emílio Di Biasi escreve e dirige o espetáculo O tempo e a vida de Carlos e Carlos (1987), tomando por base The life and times of Joseph

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Stalin, rebatizado pela censura, para as apresentações em São Paulo (1974), como A vida e a obra de Dave Clark. O espetáculo é apresentado em temporadas nos Teatros Sérgio Cardoso e João Caetano. No processo de produção e de divulgação da performance, o Espaço Madame Satã, particularmente no evento Mostra de Novíssimos Diretores do Teatro Contemporâneo do Espaço Madame Satã, tem papel significativo tanto na apresentação das obras quanto na discussão sobre elas. Vários são os espetáculos ou eventos especificamente com o nome de performance. Dentre as obras com alguma informação coletada em diversas fontes de pesquisa podem ser destacadas: Acordes (1986), a partir de texto de Bertolt Brecht, apresentada no Teatro Oficina. No espetáculo, o diretor Zé Celso perguntava ao público se deveria ou não aceitar os 500 milhões de Paulo Salim Maluf para a reconstrução do Teatro Oficina. A híbrida Acto/ Ação (1987), com texto e direção de Emilie Chamie, apresentada no Bodega Bay, com os atores e bailarinos Maurício Ferrasa e Dagmar Dornelles. Os alces (1986) – texto, direção e interpretação de Arthur Kohl e Renato Hellmestierno. Espaço Off. Ananases no champagne (1986) – performance de Annie Perec. Música de Ricardo Savero. Teatro do Bixiga. Antes tarde do que nunca (1987) – textos a partir de poemas de Oswald de Andrade e leitura de obra de Consuelo de Castro, com direção de Myriam Muniz. Elenco: Maricene Costa, Ná Ozzetti, Suzana Salles, Regina Braga e estudantes de cursos ministrados por Myriam Muniz. Centro Cultural São Paulo. Ator à toa (1985) – colagem de textos e interpretação de Mauro Ferraz. Estação Paulista. Boca aberta (1985) – apresentada pelo Grupo Grito, com direção de Carlo Jacomelli. Elenco: Welington Duarte, Pierre Peres, Elisa Sumi Andrade, Wagner Menegari, Eliana Santana, Sérgio Tavares e Valéria Cano Bravi. Estação Paulista. Boia-fria (1986). Elenco: Elias Andreato e Jussara Moraes. Sesc Pompeia. Cabaré do gato (1985) – texto, direção e interpretação de Maria José de Carvalho, na própria casa da artista (localizada no bairro Ipiranga). Cabaré Satã (1985) – organização de Hector Gonzáles. Elenco (Grupo Lili W. e Grupo de Arte Ponkã): Paulo Yutaka, Robert, Graciela de Leonnardis, Wilson José, Cláudio Willer, Theo Werneck, Paulo Garcia, Júlio Sárkány e Alice Kaijomi. Espaço Madame Satã. Cena de Hitler (1985), compreendendo Hicso, Sodoma, A dança das bundas e Macacos, obras apresentadas pelos grupos O Pessoal do Poente e XPTO. Espaço Madame Satã. Cinzas de verão (1985) – criação coletiva do Grupo Mertup. Direção: Laerte Mello. Elenco: Rogério Favoretto, Roberto Marchetti e Malu Botalho. Sesc Pompeia. A construção (1983) – criação de Paulo Yutaka, Hector Gonzáles


e Graciella de Leonnardis. Espaço de Arena da Pinacoteca do Estado. A construção: Pierrô em três atos (1985) – roteiro e direção de Paulo Yutaka. Elenco: Paulo Yutaka e Celina Fujii. Teatro da Cultura Inglesa. Cria gera ação (1986) – adaptação livre da peça Quarto de empregada, de Roberto Freire. Participantes: Cleide Paes, Luiz Pazzini e Walter Lima. Teatro do Bixiga. Obs.: A performance era apresentada entre as duas sessões da peça Giovanni, aos finais de semana. Defeitos cônicos (1984) – elenco, texto e direção de Go, Arnaldo Antunes e Ariana Freire, com apresentações na Pinacoteca do Estado. Diretas já já (1989) – de Glória Horta. Direção e figurinos: Adélia Sampaio. Participação especial de Almir Lopes. Grupo Espaço Raisa. Dupla especializada (1986) – de Ricardo Basbaum e Alexandre Dacosta. Teatro Funarte (Sala Guiomar Novaes). Eletroperformance (1985) – performance inserida na programação da 18a Bienal Internacional de São Paulo. Com Guto Lacaz, Cristina Mutarelli, Javier Borracha e Nenê Lacaz. Auditório do Museu de Arte Contemporânea – Pavilhão da Bienal. Eu era Branca de Neve, só que derreti (1987) – Lala Deheinzelin. Música: Grupo Marzipan. Espaço Viver. Excursão (1987) – de Marcelo Mansfield, Lala Deheinzelin e Grupo Harpias e Ogros. Elenco: Luis Roberto Lopreto, Marcelo Mansfield, Lala Deheinzelin e outros. Ponto Chic – Fundação Bienal (22/2/1987). Harpias e Ogros (1986) – produção, direção e elenco: Grupo Harpias e Ogros, com Giovanna Gold, Grace Giannoukas e Ângela Dip. Espaço Madame Satã (31/3/1986). Homenagem a Samuel Beckett (1986) – Happy days. Elenco: Grace Giannoukas, Erick Passos e Paulo Yutaka. O vídeo Peças em jogo, com o Grupo Metairon. Espaço Madame Satã. Gôndolas do Tietê (1986) – 12 quadros com performances, música e dança, com textos de Ângela Dip. Direção: Grupo Harpias e Ogros e Toninho Neto. Elenco: Ângela Dip, Giovanna Gold e Grace Giannoukas. Participações especiais: Marcelo Mansfield e Haroldo Arruda. Espaço Off – Sala Jardel Filho. Nas gôndolas da Tietê I (1987) – criação do Grupo Harpias e Ogros. Elenco: Ângela Dip, Grace Giannoukas e Marcelo Mansfield. Espaço Off. Nas gôndolas da Tietê II (1988) – criação de texto e direção coletiva: Ângela Dip, Marcelo Mansfield e Toninho Neto. Elenco: Grace Giannoukas, Ângela Dip e Marcelo Mansfield. Espaço Off. Nem Mozart, nem Bowie (1985) – criação de Hector Gonzáles. Elenco: Grupo de Arte Ponkã, com Paulo Garcia, Jean Pierre Kalestrianos e Luiz Brito. Espaço Madame Satã. Nervus Rushimianus (1989) – criação de Fran Bogdzevicius e Mica Borges. Rose Bom Bom. Os olhos verdes da neurose, Senhor X e O eixo das funções (1987) – criadores e intérpretes: Simone Grande em Os olhos verdes da neurose; Jorge Schutze em Senhor X;

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Jaqueline Obrigon e Davis Bruno em O eixo das funções. Espaço Alquimia. Out of África (1986). Direção: Paulo Alves. Elenco: Ana Lúcia Barroso e Anna Paula Zétola. Bar Boite Malícia. Performance (Sem título) (1987) – criação do Grupo Harpias e Ogros. Intérpretes: Ângela Dip, Grace Giannoukas e Marcelo Mansfield. Singapore Sling (Bar). Performance (1987) – texto, direção e interpretação: Ricardo Barreto e Sérgio Martins. Grupo Agentes da CIA (Central de Ideias Criativas). Centro Cultural São Paulo. Performance (1984) – texto, direção e atuação: Guto Lacaz. Teatro Procópio Ferreira. Performance (1987) – texto e interpretação: Ricardo Barreto e Sérgio Martins. Centro Cultural São Paulo. A pororoca (1984) – criação coletiva orientada e dirigida por Luiz Roberto Galizia. Elenco: Maria Alice Vergueiro e Magaly Biff. Teatro Aliança Francesa e Espaço Madame Satã. O porteiro (1986) – monólogo de Macbeth, com Décio Pinto. Direção: Nezito Reis. Música: Tato Fischer. Teatro do Bixiga. Psicodrama das eleições 86 (1986) – criação, coordenação e atuação de Regina Monteiro, Vânia Greller, Anita Malufe, Manoel Mascarenhas e Stella Sá Moreira. Câmara Municipal. Quatro e sim (1987) – mímica performática com interpretação de Arthur Kohl e Júlio Sárkány. Música: Grupo Marzipan. Espaço Viver. Quexerxe truve (1985). Direção: Myriam Muniz. Sesc Pompeia. Rimbaud (1987) - criação e atuação de Luís Roberto Lopreto e Lala Daheinzelin. Pavilhão da Bienal. Rio de Janeiro em surto ou Os cariocas (1987) - criação dos integrantes dos grupos. Direção geral do evento: Isabela Socchin. Grupos: Dissritmia (direção: Luise Cardoso); Intrépida Trupe; Crika Ohana. Apresentações-solo: Debby Crowald, Catarina Abdala e João Brandão. Espaço Mambembe. Ronda da luxúria (1986) – performance com personagens de Nelson Rodrigues e Arthur Schnitzler. Roteiro: Alberto Guzik. Direção: Myriam Muniz. Elenco: Emílio Alves e Helena Bastos. Espaço Off e Centro Cultural São Paulo (Sala Jardel Filho). Saúde (1984) – criação e apresentação com integrantes do grupo de teatro-dança Tesouro da Juventude, a partir de textos de Antonin Artaud. Teatro São Pedro. Seis personagens à procura de Godot (1986) – evento em homenagem a Samuel Beckett, apresentando performances com jogos e brincadeiras com o público. Restaurante Pirandello. Como prêmios, os que conseguissem se destacar ganhavam ingressos para o espetáculo Katastrophé. Semana de Arte Performance (1984). Catarsográfica – criação coletiva, com Artur Matuck. Concerto tradicional, composição musical, de Emanuel Pimenta e Dante Pignatari. Pugnar radical. Elenco: Hudinilson Jr. e Cláudia Alencar. La estrutura del rito, com Andrés Guilbert. Yugen (Aura), de Fernando Zarif e Emanuel de Melo


Pimenta. Pane, com Osmar Dalio. Isabelle e Estranha descoberta acidental, de e com Guto Lacaz e Rafic Farah. Centro Cultural São Paulo. Obs.: Debate com todos os artistas performáticos em 12/11/1984. Sem rótulo – texto: Bornes. Elenco: Seme Lufti e Berenice Raulino. Música: Renato Lemos (violoncelo). Espaço Madame Satã. Serata futurista (1985). Direção: Luiz Fernando Ramos. Coordenação: Hector Gonzáles. Apresentação: Wilson José. Elenco: Ana Maria Braga, Aderval Borges, Cassiano Sydow Quilici e outros. Espaço Madame Satã. SP em surto (1986) – proposta a partir de ideia de Grace Giannoukas (Grupo Harpias e Ogros). Roteiro – Palco: Cláudia Wonder, Corcunda e Coga. Saguão: Emile (Luis Lopreto), Galã (Marcelo Mansfield), Carlito Continu, Rapunzel (Giovanna Gold), Sax (Gilles Eduard), Madeleine (Grace Giannoukas). Palco: Julinho e Arthur (Júlio Sárkány e Arthur Khol), Lala e Luni, Defunto, Pesadelo, Marylin e Maggy (Paulo Gandolfi e Lucienne Adami). Klaus Nomi. Parabéns (Marcelo Mansfield), Luni e Marisa Orth, Dublagem (Kaique Antunes), Emile e Galã (Marcelo Mansfield e Luiz Lopreto), Jack (Lucienne Adami e Paulo Gandolfi. Praia (todos). Participaram do evento: Grupo Luni, Grupo Harpias e Ogros, XPTO e outros integrantes das áreas de teatro, mímica, música e artes plásticas. Espaço Mambembe. Talvez um beijo na boca (1986). Criação: Fábio Cimino. Participação especial: Gustavo Suarez. Espaço Madame Satã. Tetro do Ornitorrinco canta Brecht e Weill. Texto: Bertolt Brecht, Kurt Weill, Cacá Rosset e Luiz Roberto Galizia. Direção: Cacá Rosset. Elenco: Cacá Rosset, Cida Moreyra e Luiz Roberto Galizia, 1982. Museu de Arte de São Paulo, Centro Cultural São Paulo e Sesc Pompeia. A primeira versão, de 1977, apresentou-se no porão do Teatro Oficina. A terceira versão foi apresentada no Sesc Pompeia (1983), no evento 14 Noites de Performances. O teatro que vi na Europa (1983). Texto: Miguel de Almeida. Elenco: Ivald Granato, Laís Machado e Cláudia de Alencar. Carbono 14 (Sala Parangolé). Utopicamente S.O.S. (1986). Concepção e atuação: Fábio Cimino e Gustavo Soares. Espaço Madame Satã. Vagos, viagens e encontros ou Helena e os marinheiros ou Cinzas de verão (1986) – inspirado na obra poética de Markos State. Criação: Tom Will, com quadros de criação espontânea a partir das experiências do grupo com sonhos e poemas surrealistas. Direção: Robson Camargo. Assistência de direção: Laerte Mello. Coreografia: Lu Botelho. Cenografia e figurinos: Andre Cantú. Elenco: Grupo de Teatro Universitário Martup (Faculdade Marcelo Tupinambá), com Dione Leal, Lu Botelho, Sonia Francine, Paulo Federal, Pacheco Pacheco, Laerte Mello, Malu Botalo, Roberto Marchetti e Tom Will. Auditório da Faculdade Marcelo Tupinambá, Teatro Paulo Eiró, Teatro João Caetano. Viagem (1984) –

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criação em 7 atos com idealização de Serkis Kaloustian. Direção corporal: Ciça Teivelis. Elenco: Niltão Oliveira, Helena Teivelis e Vânia Maria de Carvalho Alves. Centro Cultural São Paulo2. Dos períodos mencionados, passando pelos destaques apontados até a década de 2010, várias performances têm acontecido. Mesmo que se desconfie de tudo o que existe nessa espécie de moda, cujo paroxismo de diversos expedientes pode ser encontrado no chamado teatro pós-dramático, é preciso lembrar que, na cidade de São Paulo, são quase dois espetáculos estreados por dia (em espaços mais tradicionalmente auferíveis). Como as performances se transformaram praticamente em uma “febre”, de altíssima temperatura, motivo pelo qual muitas delas são quase epifânicas, difícil encontrar registros sobre a produção. De qualquer modo, sabe-se que o teatro hoje, seja ou não performático, com ou sem performatividade, tem sido praticado em todo canto: em espaços tradicionais ou não de representação; em mostras de uma companhia ou em mostras coletivas, realizado nos mais diversos e afastados bairros da cidade. A produção teatral, ou pelo menos parte dela, tem sido documentada em papel, áudio e vídeo: por meio de documentários, de registros de cenas, pela gravação do espetáculo ou do evento estético. Seminários, encontros e fóruns dos mais diversos aspectos e amplitudes têm sido desenvolvidos por entidades e pelos próprios grupos, contribuição valiosa para a discussão e o entendimento referente à pluralidade de ações em curso, inclusive as práticas performáticas. Dizem, e é uma afirmação parcialmente arbitrária, que São Paulo é a cidade do teatro, que é a cidade da performance, que é a cidade do grafite. São Paulo é uma megalópole. Por essa razão, nela tudo se potencializa. Concernente à produção teatral, há diversas motivações e conquistas objetivas que ajudaram a promover o estado geral de “explosão da atividade teatral”. Dentre elas, podem ser mencionadas a articulação entre diversos tipos de patrocínio e a militância incansável de parte de seus artistas. Dos patrocínios, particularmente aquele que atende ao sujeito histórico “teatro de grupo”, é preciso destacar a Lei Municipal no 13.279/2002, que instituiu o Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo. A Lei, que decorre dos processos de luta e de organização do “movimento” Arte Contra a Barbárie, garante anualmente a, no máximo, 30 coletivos da cidade a possibilidade da pesquisa radical e continuada e o direito de “viver do teatro”. Pelo fato de a Lei estimular a 2

Mais detalhes acerca das montagens apresentadas, confrontar MATE, 2011.


radicalidade dos experimentos, inúmeras criações não mais têm cabido no teatro de caixa. Com os processos de aprofundamento, há uma revisitação permanente à dramaturgia textual e àquela da cena: a performatividade e a hibridização dos espaços de representação têm levado os artistas a ter contato e potencializar sua relação com o público. Os experimentos performativos, portanto, e não se trata de paradoxo, têm retirado o teatro de certo ensimesmamento histórico (concernente à caixa) e reestabelecido seu potente e deslimitado caráter aurático. De modo adverso ao que muitos pensam, a Lei de Fomento não é um privilégio, mas sim fruto de um acirrado processo de luta e de disputa pela militância dos artistas. Vladimir Maiakóvsky, em seu poema E então, que quereis?, afirma que “[...] o mar da história é agitado”. A luta de Davi contra Golias (aqui representada pelos criadores e o mercado) também pode representar uma alegoria e uma vitória tática dos sujeitos, que lançam mão de todo tipo de proposição performativa contra os Estados ditos democráticos. Próximo à finalização, principalmente pelo fato de a performance representar tendencialmente um território de trabalho de vários sujeitos isolados, tantas vezes ególatras e com dificuldade de relacionamento em grupo, é fundamental prestar atenção à fala e conduta de mestres. Anatol Rosenfeld, em seu texto Individualismo e coletivismo, aponta: Um dos problemas que hoje parece preocupar a consciência de amplos círculos de forma aguda é o do sufocamento do indivíduo pela civilização moderna. É evidente que semelhante problema só poderia manifestar-se com intensidade numa civilização que atribui valor extraordinário à individualidade, à autonomia e aos direitos do indivíduo. [...] O próprio surto “laboratórios de criatividade“, enquanto demonstra o anseio de auto-expressão individual, parece confirmar ironicamente a padronização, não só pela multiplicação em série e pelos modismos desses instintos, mas também pelo termo “laboratório“, que sugere manipulação, tecnicismo e fórmulas. [...] Só uma pessoa extremamente obtusa poderia sentir-se satisfeita com o estado atual da nossa civilização. [...] Por um engano muito difundido chamam de racionalista um desenvolvimento que põe os resultados e produtos de uma inteligência meramente tecnológica e manipulatória a serviço de fins irracionais, que nada têm a ver com a razão. Confundem um intelecto analítico, altamente especializado, limitado por tapa-olhos, com o poder sintético da razão unificadora, tal como entendida por uma

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longa tradição filosófica. [...] Malgrado os receios dos movimentos anarcomísticos contemporâneos, não há o mínimo perigo de que a razão venha a predominar nos próximos séculos. [...] Massas enormes, entre elas intelectuais, se mostram suscetíveis a uma credulidade que renega de bom grado tanto o intelecto como a razão e qualquer traço direto de espírito crítico. Abandonam-se com volúpia a um pensamento puramente analógico como, por exemplo, a mística eletrônica do mcluhanismo ou as crendices primitivas, geralmente ligadas a interesses econômicos, como a astrologia, quiromancia, ao baixo espiritismo, à feitiçaria ou ao apelo irracional de seitas, ritos, comportamentos e vícios quase sempre de triunfal boçalidade (1993: 213-16).

Para finalizar, é importante dizer que não é a partir da perspectiva ególatra que se dá a verificação de tantas experiências significativas desenvolvidas na produção teatral, especialmente aquela apresentada na cidade de São Paulo pelos teatros de grupo. Buscando novas formas relacionais e outras qualidades de presença, múltiplos coletivos se inserem na história da encenação, arrebentando limites, espaços físicos, cânones consagrados e diversas proposições interventivas. A performatização das formas teatrais na cidade de São Paulo (embora não exclusivamente nela) é realidade e fenômeno que transcendem os espaços fechados consagrados à representação. As cidades têm perdido a silhueta de um grande organismo vivo, repleto de rugas de passagem, para acolher, de modo comovido e partilhado, infindas experiências de transformação do indistinto ao praticado. Assim, mesmo inexistentes, múltiplas placas na cidade, em substituição às tradicionais “Homens trabalhando”, sinalizam: Estamos em performance!


Bibliografia consultada e indicada BRETON, André. Manifestos do surrealismo. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2001. COSTA, Iná Camargo; CARVALHO, Dorberto. A luta dos grupos teatrais de São Paulo por políticas públicas para a cultura: os cinco primeiros anos da lei de fomento. São Paulo: Cooperativa Paulista de Teatro, 2008. DESGRANGES, Flávio; LEPIQUE, Maysa (Orgs.). Teatro e vida pública: o fomento e os coletivos teatrais de São Paulo. São Paulo: Hucitec; Cooperativa Paulista de Cooperativa, 2012. DIDEROT, Denis. Discurso sobre a poesia dramática. São Paulo: Brasiliense, 1986. GUZIK, Alberto. TBC: crônica de um sonho. São Paulo: Perspectiva, 1986. HYDE, G. M. O futurismo russo. In: BRADBURY, Malcolm; McFARLANE, James. Modernismo: guia geral. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Asdrúbal trouxe o trombone: memórias de uma trupe solitária de comediantes que abalou os anos 70. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2004. MATE, Alexandre. O teatro adulto na cidade de São Paulo na década de 1980. São Paulo: Editora Unesp, 2011. MILARÉ, Sebastião. Batalha da quimera. Rio de Janeiro: Funarte, 2009. MORAES, Marcelo Leite. Madame Satã: templo do underground dos anos 80. São Paulo: Lira Editora, 2002. OSORIO, Luiz Camillo. Flávio de Carvalho. São Paulo: Cosac&Naify, 2000. POD MINOGA STUDIO. A arte de brincar nos palcos sem pedir licença. Coordenação editorial de Sílvia Fernandes. São Paulo: Edições SESC São Paulo, 2008. RIPELLINO, Angelo M. Maiakóvski e o teatro de vanguarda. São Paulo: Perspectiva, 1971. ROSENFELD, Anatol. Individualismo e coletivismo. In: Prismas do teatro. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Perspectiva; Campinas: Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1993. SILVA, Armando Sérgio da. Oficina: do teatro ao te-ato. São Paulo: Perspectiva, 1981. SIMÕES, Giuliana. Veto ao modernismo no teatro brasileiro. São Paulo: Fapesp; Hucitec, 2010.

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II. Apontamentos sobre o evento Estudos Teatrais e as Urdiduras da Performance O evento Estudos Teatrais é criado em 2008 por Mario Fernando Bolognesi, tendo como tema geral Persona & Personagem. Alexandre Mate e José Manuel Lázaro de Ortecho Ramírez coordenaram o evento em julho de 2010, com o tema geral Dramaturgia: as tessituras da cena. Mate, em julho de 2011, coordenou a terceira edição, tendo como tema geral As Formas Fora da Forma (passando pelo circo-teatro, teatro de revista, teatro de feira e teatro de rua)3. Em 2012, Alexandre Mate, Carminda Mendes André e José Manuel Lázaro de Ortecho Ramírez iniciaram as discussões sobre o novo tema – performance –, sugerido pelo primeiro deles. Para a composição dessa equipe, levou-se em conta o fato de, em ano anterior, a professora Carminda e o professor José Manuel terem coordenado o curso de performance e, também, por se dedicarem, dos pontos de vista teórico e educacional, ao assunto. Além disso, os três profissionais têm clareza quanto à amplidão de proposições e de possibilidades que o conceito abriga (de performance à performatividade), como também sobre a utilização, por número expressivo de grupos (não apenas de teatro) e de criadores, de expedientes direta ou indiretamente ligados às práticas e experimentações teatralistas. Some-se a isso, ainda, o fato de os estudantes do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (IA-Unesp), no curso de Licenciatura em Arte – Teatro, optarem, em seus experimentos práticos, pela teatralidade; pela partitura aberta; pelo trabalho com montagem, entendendo aqui sobreposição e justaposição de várias linguagens artísticas; por buscarem, não raras vezes, um caráter processional ou de deambulação, dentro ou fora do prédio onde se localiza o Instituto. Assim como para parte significativa da produção teatral paulistana, os estudantes do Instituto de Artes da Unesp também, sem grandes exageros, buscam a potência do trabalho teatral, performatizando seus experimentos e deixando a confortabilidade da caixa. Dessa forma, a coordenação do evento, tendo em vista o formato adotado em anos anteriores, organizou os trabalhos em três manhãs e três tardes – as manhãs, para discussão a partir de exposição de palestrantes; as tardes, para demonstração de processos e para processo de experimentação. Relacionam-se, a seguir, as ações propostas ao longo 3 Detalhes de cada um dos eventos podem ser encontrados na Rebento – Revista de Artes do Espetáculo, cujos números 1, 2 e 3 referem-se, respectivamente, a cada edição. Disponível em: <www.teatrosemcortinas.ia.unesp.br>.


do evento, porque nem todos os seus participantes elaboram textos para figurar na Rebento – Revista de Artes do Espetáculo.  2 de julho, 8h30 às 12h, tema: Processos e experimentos performáticos: da história ao corpo do intérprete. Participaram da mesa os professores e criadores Cassiano Sydow Quilici (PUC-SP) – A performance em um corpo sem órgãos; Gilberto Icle (UFRS) – Performance, performatividade e presença; Lucio Agra (PUC-SP) – Os processos de dinamização da performance na cidade de São Paulo; José Manoel Lázaro de Ortecho Ramírez (IA-Unesp) – Dramaturgias pós-narrativas. Mediação de Lígia Borges, graduação e pós-graduação pelo IA-Unesp. No mesmo dia, de 14h às 16h, Miriam Rinaldi (PUC-SP) demonstrou e desenvolveu treinamento em viewpoints. Na sequência, de 16h às 18h, a performer Graziela Kunsch apresentou Os processos de intervenção e experimentos, a articuladora e facilitadora de troca de experiências.  3 de julho, 8h30 às 12h30, tema: Procedimentos performáticos nas encenações contemporâneas. Participaram da mesa a atriz e encenadora Gorgette Fadel (Companhia São Jorge de Variedades) – Companhia São Jorge de Variedades: processo colaborativo e intervenções em espaços públicos; encenador e professor José Fernando Azevedo Peixoto (Escola de Arte Dramática-SP, Teatro de Narradores) – Quando o corpo ainda quer narrar: notas de trabalho para uma crítica da razão performativa; autor e encenador Leonardo Moreira (Companhia Hiato) – Procedimentos performáticos na construção dos espetáculos da Companhia Hiato; ator e diretor Nelson Baskerville – Procedimentos performáticos e colaborativos na construção de Luís Antônio-Gabriela. Mediação: Alexandre Falcão (mestrando do Programa de Pós-Graduação em Artes do Instituto de Artes da Unesp). No mesmo dia, de 14h às 16h, Veronica Fabrini (Unicamp) apresentou relato sobre a montagem, pela Boa Companhia, do premiado espetáculo Primus. Na sequência, de 16h às 18h, Lúcia Romano (IA-Unesp) desenvolveu atividade prática enfocando experimentos de mulheres performers.  4 de julho, 8h30 às 12h30, tema: Processos pedagógicos em performance: o professor-performer. Participaram da mesa as professoras e performers Naira Ciotti (UFRN) – O mestiço professorPerformer; Carminda Mendes André (IA-Unesp) – Artes como mediadoras de afetos; Marianna F. M. Monteiro (IA-Unesp) – Estética relacional e a festa do Boi no Morro do Querosene, em São Paulo; e o professor-performer Marcos Bulhões (ECA-USP) – Apontamentos

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sobre a performance no Brasil e a necessidade de aplicação e retomada dos conceitos antropofágicos. À tarde, de 14h às 18h, Marcos Bulhões desenvolveu experimento performático com estudantes do Instituto de Artes da Unesp. Vale ressaltar que diversos palestrantes, tanto na explicitação conceitual quanto no relato de experiências, fizeram referência à questão do afeto, da paixão, da entrega demandada ao performer e ao ato performativo: exposição sem cordas ou cordões de segurança, atos de arrebatamento. Miriam Rinaldi, em seu texto, revela a dificuldade em definir determinados conceitos, tendo em vista as práticas serem reinventadas permanentemente. Lúcia Romano apresenta informações históricas sobre algumas questões e experiências ligadas ao estudo de gênero e explicita critérios de uma prática performativa, desenvolvida especialmente para o evento. Cassiano Sydow Quilici desenvolve reflexão acerca de como o conceito mais tradicional de ação se redimensiona nas artes performativas. Desse modo, como a performance não se constitui na condição de representação tradicional, mas sim como forma de intervenção na realidade, outra qualidade de presença se faz necessária. Lucio Agra discorre profundamente sobre a necessidade de a performance existir para (com)mover. Veronica Fabrini apresenta um relato de experiência emocionante sobre a criação do espetáculo Primus. Marianna Monteiro traça uma aproximação entre teorias e as festas populares, destacando a Festa do Boi, no Morro do Querosene, em São Paulo (SP). Naira Ciotti trata da questão do educador-performer e de seus diversos significados. Carminda-performer-André, defensora da tese segundo a qual cada aula é um ato performativo, no dia de sua fala, apresentou-se de pijama e destinou as folhas lidas do texto ao lixo. Gilberto Icle apresenta conceitos e revisita três espetáculos por ele dirigidos. José Manuel Lázaro de Ortecho Ramírez apresenta conceitos, partindo do pressuposto de que o fenômeno teatral é, em si mesmo, performático, e que as práticas ditas pós-dramáticas levaram ao paroxismo tal pressuposto. Georgette Fadel conclui seu texto movida por intensa inquietação e paixão, afirmando-se em estado performativo. Thiago Vasconcelos apresenta texto fundamentado em relato extremamente significativo das experiências desenvolvidas pela Companhia Antropofágica. Nos procedimentos experimentados pelo coletivo paulistano, imbricando experiências estéticas e políticas, pode-se dizer que algo novo está a surgir das revistas de intervenção, realizadas com máquinas (carroças, bicicletas, triciclos em longas caminhadas). Luiz Fernando Ramos e Marcelo Lazzaratto atenderam ao convite que


lhes fiz para escrever sobre o assunto em epígrafe. Lazzaratto, que tem aprimorado teórica e praticamente o conceito práxico “campo de visão”, apresenta um texto sobre a utilização de expediente técnico em linguagem – cujo procedimento, de certo modo, resulta em junção da performatividade e da performance –, em Ifigênia (2012). Com ampla e significativa produção teórica sobre o assunto, Luiz Fernando Ramos desenvolve interessante reflexão por meio de cotejamento entre certos expedientes tradicionais de espetacularidade e aqueles performativos e característicos da performance. Assim como nas edições anteriores da Rebento – Revista de Artes do Espetáculo, e considerando sua proposta editorial voltada para a reunião de documentos escritos, fotos e excertos de textos estéticos, o leitor terá acesso a um instigante processo de reflexão e de vivência, desenvolvido durante três dias nas dependências do Instituto de Artes da Unesp, em julho de 2012. Os textos, em tese, com alguns acertos de seus autores, decorrem dos encontros presenciais, e constam da publicação conforme “vieram ao mundo”, paridos por seus criadores. Os estilos são díspares, as extensões variadas, e, por vezes, as apreensões conceituais, quando comparadas, são quase contraditórias. O primeiro aspecto importante, que não é pouco para quem se preocupa com a questão de gênero, refere-se ao número de participantes: nove homens e dez mulheres. Mesmo havendo mais mulheres no universo educacional nem sempre esses números se comparam. É bom deixar claro que as professoras, artistas e performers foram convidadas para o evento pela potência e destaque em seus fazeres. Desse modo, para concluir a informação concernente ao quantitativo, contamos com relatos assinados por quinze mulheres e nove homens nesta edição. Uma novidade, e acredito que venha para ficar, é o registro escrito dos estudantes de pós-graduação, convidados a mediar as mesas de discussão: Lígia Borges, Alexandre Falcão e Milene Valentir escrevem textos referentes a cada dia de encontro e, por fim, elaboram uma apreciação coletiva. De certo modo, ainda ligado à participação dos estudantes no que se refere à composição da revista, são anexados, ao final, alguns relatos de experiências desenvolvidas no Instituto de Artes da Unesp com práticas escolares de encenação absolutamente performativas. Por último, além das atividades apresentadas durante o evento, realizou-se a exposição Renato Cohen: performance, ritualização do instante, em reconhecimento ao seu trabalho pioneiro e de preservação de

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memória, cuja idealização é de Alexandre Mate e curadoria de Stela Fisher. Constaram da exposição 15 cartazes (40 cm x 80 cm), em preto e branco, com fotos de suas principais direções. O texto de abertura da exposição é da professora Silvia Fernandes (ECA-USP), transcrito na última parte da revista.


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Foto de Bob Sousa do espetáculo Barafonda, com coordenação de processo de direção de Patrícia Guiford, apresentado pela Companhia São Jorge de Variedades. No cruzamento de duas ruas (com o sinal vermelho às proibições), o grande coro, em função protagônica, presta tributos ao bairro da Barra Funda e à sua gente.


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Bloco I: PROCESSOS E EXPERIMENTOS PERFORMÁTICOS – DA HISTÓRIA AO CORPO DO INTÉRPRETE Texto de apresentação do primeiro dia de encontros: abordagens da performance em performance por Lígia Borges4 Diante de um público ávido, e ao lado de saberes reconhecidos, havia o espaço de uma cadeira preenchido por um corpo; havia minha presença em presença; havia experiências que se davam no presente e performances que se davam ao longo de minha performance diante de outros. Definições de mim, definições de performance trazidas à tona. As reflexões que emergiam a cada instante, como também os corpos sentados à frente da audiência, mais tarde se estenderiam por todo o espaço e transbordariam as margens de pessoas e de pensares ao longo do 4 Graduação e mestrado em Artes Cênicas pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (IA-Unesp) e mestrado, também pela Université Paul-Valéry – Montepellier III (França). Docente no curso de pós-graduação lato sensu “A arte de contar história” do Instituto Superior de Ensino do Paraná (ISEP) e integrante do Teatro da Travessia (SP).


encontro. A partir de quatro subtemas propostos aos convidados Cassiano Sydow Quilici, Lucio Agra, Gilberto Icle e José Manuel Lázaro de Ortecho Ramírez, unidos sob o tema Processos e experimentos performáticos: da história ao corpo do intérprete, foram abordados, respectivamente: A performance de um corpo sem órgãos; Os processos de dinamização da performance na cidade de São Paulo; Performance, performatividade e presença e Dramaturgias pós-narrativas. Referindo-se à performance, falou-se em retorno à ritualidade; em como desfazer o autocentramento; em ação da presença; em exposição do corpo em potência diante do outro; em dramaturgia do corpo; em lugar de co-moção, no sentido de mover-se junto; em travessia para a relação; em presentificação do tempo no corpo e em espacialização desse tempo; em questionamento da representação e reforço do efêmero; em encontro de linguagens; rompimento da separação entre artista e público; emergência de uma nova dramaturgia, cujo texto literário se torna um “texto” a mais dentro do texto cênico que, por vezes, não é ponto de partida, mas sim registro de memórias do espetáculos. O tempo da experiência dilatou-se, ultrapassando as margens originalmente previstas. Por quatro horas, viveu-se a experiência da partilha de saberes entre corpos presentes, ouvidos atentos, mentes abertas, impulsionados pelo desejo do encontro. Diante da generosidade dos convidados, diluíram-se barreiras e estabeleceu-se uma comunicação direta e intensa que configuraria a dramaturgia rapsódica daquele encontro.

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Ação e representação nas artes performativas por Cassiano Sydow Quilici5

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Resumo: Neste artigo, discuto os conceitos de atuação e de representação associados ao teatro e a noção de “ação” utilizada por diversos artistas da performance. A partir daí, proponho uma abordagem crítica de discursos artísticos contemporâneos, refletindo sobre possibilidades das artes performativas na época atual. Palavras-chave: ação, representação, performance, teatro contemporâneo. Abstract: In this article I discuss the concept of acting and representation associated with the theatre, and the notion of action used by many artists in performance. From then I propose a critical approach to contemporary artistic discourses, reflecting on possibilities of performing arts at the present time. Keywords: action, representation, performance, contemporary theatre. A palavra “ação” tem ocupado um lugar central nos discursos de diversos artistas modernos e contemporâneos. Referências fundamentais na área da performance e do teatro, como Joseph Beuys e Jerzy Grotowski6, entre outros, denominavam suas atividades artísticas de “ações”. O termo é utilizado quase sempre em contraposição ao significado que a “ação” ganha num campo teatral mais tradicional. A ação performática não se apresenta como uma forma de atuação mimética, ligada a um cosmos ficcional, referenciada num texto dramatúrgico ou em outro tipo de matriz narrativa que “representa a vida”. Ela pretende, quase sempre, articular-se como um dispositivo de comunicação e de interferência direta Professor livre-docente do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), na graduação e pós-graduação, e do curso de graduação em Artes do Corpo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Autor dos livros Antonin Artaud: teatro e ritual (Annablume e Imprensa da Universidade de Coimbra) e O ator/performer: poéticas para a transformação de si (no prelo), além de vários ensaios e artigos publicados em revistas especializadas. 5

6 Refiro-me à última fase da trajetória de Grotowski, da “arte como veículo”, em que o artista assume os termos “performance” e “ação” em seu trabalho.


na realidade, um acontecimento que eclode da transgressão programada de convenções estéticas e sociais, apostando na eficácia transformadora (política, estética, existencial etc.) de suas estratégias. Nesse sentido, é frequente que performers elejam a atitude teatral convencional como uma espécie de inimigo, um obstáculo a ser superado7. A ação performática seria distinta e até oposta à atuação teatral porque não se construiria como representação: não simula, não “está no lugar de” outra coisa, mas é capaz de produzir um acontecimento singular, sem um referente preciso. Certamente, é necessária uma reflexão mais cuidadosa sobre o pretenso sentido não representacional da ação performática, se não quisermos nos manter num registro demasiado ingênuo. O conceito de “representação” é bastante complexo, ultrapassando o campo da arte teatral propriamente dita. Ele aparece em diferentes áreas de conhecimento – ciências sociais, psicologia, psicanálise, semiótica, filosofia etc. –, referindo-se a fenômenos sociais e mentais. Por exemplo, a vida coletiva em geral pode ser descrita em termos de “papéis”, “cenários”, “atores” que o ser humano “representa” segundo certas convenções e acordos tácitos, para que o “jogo social” se dê de determinadas formas. Vários estudos sociológicos e antropológicos se utilizam da metáfora da ação teatral para descrever e analisar a multiplicidade de estratégias utilizadas, mais ou menos conscientemente, nas interações cotidianas8. Tais correntes teóricas retomam a antiga metáfora do theatrum mundi, originária da Antiguidade e com forte presença no período barroco e mesmo no teatro de William Shakespeare, que sugere que entendamos o mundo como um grande palco no qual os homens representam seus papéis sem terem necessariamente os escolhido9. A sociologia moderna trabalha com uma versão secularizada dessa ideia, eliminando o criador divino que estaria por traz do grande espetáculo do mundo, para tentar desvendar a dinâmica das forças sociais que produzem os “cenários” em que vivemos. Pode-se dizer também que boa parte do chamado teatro naturalista parte da recriação mimética de cenas representadas no cotidiano, para 7 A performer Marina Abramovic assim se refere ao teatro numa entrevista por ocasião da apresentação de seu trabalho Seven easy peaces: “Oh Yes. In the beginning, you have to hate theatre. That was a main thing, because you have to reject all the artificiality of the theatre, the rehearsal situation, in which everything is predictable, the time srtructure and the predetermined ending” (Abramovic: 2007: 18). 8 Autores como Goffman (1975) realizaram análises minuciosas das múltiplas formas de representação do eu na vida cotidiana. 9 Um interessante estudo sobre o declínio dessa metáfora no mundo moderno pode ser encontrado em Sennett (1989).

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desenvolver uma abordagem dos conflitos e da condição humana. A mímesis teatral que recria o jogo social poderia nos conduzir à maior apreensão das representações que operam no nosso dia a dia de forma mais ou menos inconsciente. Nesse sentido, o ato teatral revela o teatro social em que estamos, na maior parte das vezes, submersos. Ao representar e recriar uma “fatia da vida no palco” (como diziam os naturalistas), o ator deveria, hipoteticamente, expressar uma consciência ampliada das situações cotidianas. Assim, na sociedade, somos “maus atores”, desempenhando nossos papéis de modo mais ou menos automático10. Seguindo ainda a mesma linha de raciocínio, podemos dizer que o performer, quando diz “não representar”, está se opondo à representação teatral mais convencional, mas ainda assim tem de lidar, em alguma medida, com as referências e representações sociais em que está inserido. Quase sempre há uma percepção por parte dos participantes envolvidos num evento performático de que se está “diante de uma performance”, de que aquele artista é um performer, e assim por diante. A arte da performance já tem uma história e um lugar no imaginário social, mesmo que em grupos restritos, criando uma espécie de expectativa no público em relação ao que poderá encontrar num evento desse tipo. Ao mesmo tempo, o performer sempre enfrenta os já mencionados a priori à sua ação: as representações sociais do que são a performance e o performer, construídas e reconstruídas pela própria atuação dos artistas e tudo o que gira em torno dela (discursos teóricos, informações midiáticas etc.). O performer não atua teatralmente; ele representa, em certa medida, o papel social do performer. Ele não se livra tão facilmente desse tipo de representação, mesmo que possa subvertê-la em certo grau, por meio de suas próprias ações artísticas. É certo que a arte da performance tem se afirmado, desde o princípio, como estratégia de crítica e desestabilização dos lugares predefinidos da arte e do artista, e seu confinamento nos campos previstos de produção cultural. O questionamento dos gêneros artísticos e da própria fronteira que separa a arte da vida, tema recorrente já nas vanguardas históricas, parece apontar para o redirecionamento das potências criativas do homem e para a reinvenção das próprias relações intersubjetivas em certos contextos. No entanto, é inegável que a performance tem se tornado uma nova área, A alta potência do naturalismo aparece em algumas obras de artistas como Anton Tchekhov ou August Strindberg, que conseguem colocar o “jogo social” contra um pano de fundo incerto e misterioso, que ultrapassa o próprio homem, evocando assim a fragilidade da nossa condição. 10


com seus circuitos próprios de circulação dos eventos, suas articulações com instituições (museus, universidades etc.), seus campos de produção teórica, pedagógica etc. Se a luta contra os processos de cristalização e de domesticação da arte parece estar no cerne das preocupações da performance, é inegável que um certo grau de estabilidade sempre se faz necessário para a própria continuidade da atividade. Os discursos artísticos e teóricos que tentam negar simplesmente esse tipo de inserção da performance no mercado artístico e no imaginário social contemporâneo correm o risco de mistificação. Ainda desse ponto de vista, poder-se-ia levantar a hipótese de que o crescimento da performance como arte nas sociedades contemporâneas está relacionado também à própria fluidez das subjetividades na nossa época, que não se enquadram mais tão rigidamente em “papéis” e “funções”. As convenções do teatro dramático e seu cortejo de personagens, situações, conflitos, parecem, muitas vezes, inoperantes para apreender as dinâmicas do mundo atual. Nesse sentido, a performance estaria mais sintonizada com processos de subjetivação do capitalismo contemporâneo que não se ajustam a identidades e referências estáveis, celebrando as possibilidades de recriação de um sujeito que se quer sempre em fluxo. Tal sintonia pode se expressar no sentido de uma crítica aos novos modelos vigentes, mas pode traduzir-se também como mero sintoma de uma época volátil e “líquida”. O aprofundamento dessa hipótese exigiria a análise de situações específicas, o que não caberia aqui. Desenvolvendo ainda a complexidade do conceito de representação, é necessário examiná-lo também sob a perspectiva da percepção, do pensamento e da linguagem. De modo genérico, digamos que boa parte da atividade mental dos seres humanos acontece como produção de representações. O processo começa mesmo antes da elaboração de pensamentos complexos que se desenvolvem por meio de uma linguagem elaborada. Mesmo na simples percepção de um fenômeno momentâneo como uma sensação, há o rapidíssimo processo de reconhecimento da experiência em relação a outras semelhantes registradas na memória, e a rotulação do fenômeno com um nome que o representa. Reconheço e nomeio mentalmente um fenômeno como “dor”, “azul”, e assim por diante. A operação de representação de uma sensação se apóia na nossa memória e em nosso repertório cultural. A experiência perceptiva é filtrada, recortada, formatada segundo as referências daquele que a nomeia. Nesse sentido, pode-se afirmar que a ação de representar os fenômenos é anterior à construção de estruturas narrativas e discursivas complexas, de

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que se vale, por exemplo, a dramaturgia mais convencional do teatro. Há representação mesmo no simples ato de reconhecermos os objetos e as sensações que experimentamos todo o tempo. Deve-se reconhecer também a importância dos processos primários de representação com vistas à criação de uma estabilidade mental mínima que permita a elaboração de leituras das situações em que estamos envolvidos, facilitando também a própria interação social. Mesmo diante de uma obra artística enigmática e hermética, sempre fazemos uma série de interpretações dos acontecimentos que nos situam minimamente nas circunstâncias. Sem isso, ficaríamos completamente perdidos e confusos. Mas, assim como as interpretações de um sonho nunca dão conta do seu centro enigmático (o “umbigo do sonho”, segundo Sigmund Freud), as leituras de uma obra não esgotam a experiência artística na sua totalidade, mas fazem parte dela e podem enriquecê-la. Quando a intensidade da experiência ultrapassa completamente a capacidade de representá-la, vive-se uma situação muito desestabilizadora, que poderia ser chamada de “traumática”. Ao descrever a pequenez do indivíduo diante das circunstâncias avassaladoras de uma guerra, Walter Benjamin, em O narrador (1985), constatava o emudecimento daqueles que voltavam do campo de batalha e não conseguiam digerir os acontecimentos vividos. Diante da extrema violência – física, sensorial, emocional – o psiquismo não é capaz de representar o que viveu e transformar a experiência pela da linguagem. A ausência de alguma forma de representação, nesse caso, pode significar o enclausuramento do indivíduo na intensidade das memórias e sensações, que ganham expressões involuntárias no corpo, como tiques, sintomas etc. Parece-nos necessária uma linguagem especial para se estabelecer conexão com o intolerável dessas situações, uma linguagem que trabalhe justamente com os limites do dizível e que circunscreva, de algum modo, uma experiência próxima ao irrepresentável. A arte da performance, muitas vezes, pretende se aproximar desse tipo de linguagem, trabalhando com situações que colocam o performer numa zona de risco, porém circunscrita como uma espécie de jogo ou ritual. Quando Joseph Beuys permanece fechado com um coiote numa jaula, na ação “I like América, América likes me”, convivendo com o animal durante um bom tempo, a tônica da ação não recai em seu sentido representativo. É certo que todos os elementos e gestos simbólicos mobilizados – a mitologia do coiote entre os índios americanos, o fato de o performer não pisar o solo da


América quando chega ao aeroporto, a leitura que faz dos jornais na jaula, os materiais de feltro e o cajado de que se utiliza – são aspectos fundamentais da construção da ação. No entanto, eles circunscrevem justamente o imponderável: o comportamento do coiote, o risco, o tipo de comunicação que se estabelece entre o performer e o animal. O sentido estabilizador da representação é tensionado pela imprevisibilidade da situação. Tal estratégia expressa uma postura crítica diante de nossa cultura, que tenderia a confundir conhecimento com a produção de um excesso de sistemas de representação. Quando Antonin Artaud, no texto introdutório de O teatro e seu duplo (1999), afirma que a cultura europeia está doente porque produziu uma infinidade de formas de pensamento que são impotentes para orientar a vida, para “nomear e dirigir as sombras”, intuiu ali, ao mesmo tempo, todo um programa de trabalho desenvolvido posteriormente por numerosos artistas performáticos. Trata-se, em primeiro lugar, de reconhecer os limites dos processos de produção de sentido, abrindo-se espaço para a relação com “presenças”, antes mesmo que elas possam ser nomeadas e representadas11. Para tanto, é necessário desenvolver habilidades que nos permitem sondar e investigar experiências fugidias, de uma intensidade não apenas traumática ou terrível, como no caso da guerra, mas pertencentes também ao campo do sublime12. Só a partir daí poder-se-ia começar a reconstruir uma “verdadeira cultura”, uma “cultura da ação” nas palavras de Artaud, que saberia “reger” a vida. A palavra “ação” ganha um lugar privilegiado neste tipo de programa. Tanto é assim que diversos performers a elegem como designação mais precisa de suas atividades. Ela manifesta, em primeiro lugar, uma atitude diante da arte e do mundo, uma escolha por tentar interferir mais diretamente nas relações sociais, no campo político, nas dinâmicas existenciais dos envolvidos, recusando a segmentação em áreas (política, economia, estética, ciência, religião etc.) que caracteriza a cultura ocidental moderna, desde o processo de “desencantamento” e “racionalização” que a inaugura13. A performance não quer ser entretenimento, arte, militância política ou religião, pelo menos nos sentidos convencionais desses termos. Ela aspira convocar as próprias potências criativas do humano, antes 11 Utilizo-me aqui da contraposição entre efeitos de presença e efeitos de sentido investigada por Gumbrecht (2010). 12 O conceito de “sublime” aponta para as experiências que transcendem de algum modo (grandeza, intensidade) a ordem da forma e da representação. 13 Daí alguns teóricos da performance, como Fischer-Lichte (2008), vislumbrarem nessa arte um impulso de “reencantamento do mundo”.

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mesmo da sua configuração em formas e gêneros, comprometida que está com a reinvenção da cultura e dos modos de vida. Mas, por vezes, o que move os performers é uma espécie de ambição desmesurada, uma hybris, que parece responder às expectativas de uma cultura que tende a idealizar o poder humano de invenção, refletindo pouco sobre as fragilidades da nossa condição de criaturas. Quando não há o cultivo da interrogação em profundidade sobre a própria época e os papéis sociais que nela se representa, o artista corre o risco de mimetizar traços marcantes da nossa sociedade, como o culto da tecnologia e da capacidade “fáustica” do homem em reprogramar completamente a si mesmo e a natureza14. Nesses casos, a performance, que se quer ação criadora de novas realidades, pode tornar-se mera expressão sintomática de nosso tempo. A meu ver, os artistas que não sucumbem a tais armadilhas são aqueles que se interessam por horizontes culturais distintos, se deixam atravessar por outras temporalidades (arcaicas, não históricas), mantendo-se, de certa forma, “extemporâneos” em relação à sua época15. Estes se abrem ao diálogo com outros modos de compreender e viver o humano, estrangeiros que são aos modismos hegemônicos de se pensar e agir, inclusive na arte. Nesta direção, a ideia de “ação” pode ser redimensionada, por exemplo, a partir de um diálogo com o pensamento da Antiguidade. Como nos mostra Arendt (1993), vita activa e vita contemplativa formam o par indissociável que define as esferas de experiência humana e os tipos de vida no mundo antigo. A vida ativa compreendia não só a manutenção da vida biológica (o labor) e o trabalho, como também a participação na vida pública, a que se denominava propriamente de “ação”. A ação possuía um sentido bastante específico, distinguindo-se do mero comportamento. Comportar-se significa atuar de modo previsível, correspondendo a uma função e a um papel predeterminados. A ação expressaria outro tipo de potência, capaz de inaugurar ou fazer nascer algo novo no mundo. Agir, nesse sentido, identifica-se mais propriamente com o campo da política, em que os gestos e as palavras podem canalizar as energias coletivas em certas direções. A performance almeja justamente esse tipo de eficácia, Sobre a tecnologia “prometeica” e a tecnologia “fáustica” ver o excelente trabalho de Sibilia (2002), O homem pós-orgânico. É discutido o impulso “gnóstico” subjacente a muitos empreendimentos científicos e tecnológicos recentes. 14

15 Para o desenvolvimento das noções de “contemporâneo” e “extemporâneo”, ver texto O contemporâneo e as experiências do tempo, Quilici (2010).


tentando recriar a relação entre os homens no espaço público, mesmo que em situações ritualizadas e circunscritas. Ao mesmo tempo, a vida ativa na Antiguidade se encontrava de algum modo subordinada à vida contemplativa. O agir eficaz e “reto” só poderia estar apoiado na faculdade humana de “ver”, que não se confunde exatamente com o processo de pensar por meio de representações. O sentido da contemplação tornou-se, no entanto, estranho ao mundo contemporâneo. Na medida em que a vida do espírito passou a se identificar especialmente com o pensamento, o exercício do contemplar caiu no esquecimento e atrofiou-se. O interesse de alguns artistas performativos por tradições contemplativas parece-me extremamente relevante nesse sentido (Marina Abramovic, John Cage, Bill Viola, Meredith Monk). Eles irão procurar, geralmente no Oriente, a sabedoria prática que apóia o desenvolvimento de faculdades como a atenção, a concentração, a consciência silenciosa (não representacional), sem as quais o agir perderia a eficácia e a profundidade. Uma pesquisa e um diálogo que, a meu ver, estão apenas no começo, mas que podem ter importância vital no reposicionamento das artes em relação aos graves dilemas do mundo atual. 41 Referências bibliográficas ABRAMOVIC, Marina. Seven easy pieces. Milan: Charta, 2007. ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense, 1993. ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. São Paulo: Martins Fontes, 1999. BENJAMIN, Walter. O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1985. Vol. 1. GOFFMAN, Erwing. A representação do eu na vida cotidiana. Petrópolis: Vozes, 1975. GUMBRECHT, Hans Ulrich. A produção de presença. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2010. QUILICI, Cassiano Sydow. O contemporâneo e as experiências do tempo. In: NAVAS, Cássia; ISSAC SSON, Marta; FERNANDES, Sílvia (Orgs.). Ensaios em cena. São Paulo: Cetera, 2010, p. 24-33. SENNETT, Richard. O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. SIBILIA, Paula. O homem pós-orgânico. Rio de Janeiro: Relume/Dumara, 2002.


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Foto de Bob Sousa do espetáculo Recusa, dirigido por Maria Thaís. Em cena Eduardo Okamoto e Antonio Salvador.


Dramaturgia na pós-modernidade: aspectos performáticos da escrita cênica contemporânea por José Manuel Lázaro de Ortecho Ramirez16 Resumo: Neste artigo parte-se do pressuposto da condição fundamental da arte teatral, em si mesma, como performática. Essa é parte da sua essência. Por esse motivo, ela traz consigo um presente intenso em seu ritual de representação. Já em si mesmo, o tempo presente é preponderante na vivência e narratividade pós-moderna. No caso do texto dramático, os autores têm muito mais motivos que os autores de narrativa literária para se apoiar nesse tipo de tempo. Em diversos casos, o presente da ação coincide com o presente da representação. Em outras pesquisas, porém, isso implica transgredir a cômoda condição de representação relacionada à teatralidade. É perceptível que a tendência do teatro contemporâneo decompõe todo tipo de coerência, geralmente apoiada em enredo, personagem e ambiente, por mencionar algumas estruturas estabelecidas de uma dramática tradicional. Os autores contemporâneos reivindicam liberdade narrativa. Para eles não há mais um único método certo nem uma forma ideal ou hegemônica a ser seguida. Na finalização, salienta-se a importância da discussão sobre os novos caminhos que estão sendo traçados pela teoria da dramaturgia, prestando atenção numa contemporaneidade que está propondo novos paradoxos na arte. Palavras-chave: teatro, performance, dramaturgia, pós-modernidade. Abstract: This article starts from the assumption of condition the premise that Theatre is fundamentally a performing art. Performance is part of the essence of Theatre. For this reason, it concerns an intense present moment in its performing ritual. Present time itself is prevalent both in the postmodern narrative and life. When it comes to Drama, playwrights have even more reasons than the other authors to cling on the present time. In many cases, the present of the action corresponds exactly to the present of the acting. Nevertheless, in other cases it implies the transgression of 16 Ator, diretor e professor-pesquisador da graduação e pós-graduação do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (IA-Unesp); graduado em Teatro pela Universidade Católica de Lima (Peru); mestrado e doutorado pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP); fundador e atuante no grupo de performance Desvio Coletivo.

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the comfortable acting inside the theatrical parameters. It is noticeable that the contemporary theatre tends to decompose every sort of coherence, which may be present in the plot, characters or settings, just to mention some of the aspects of the traditional dramatic structure. Contemporary writers demand narrative freedom. For these writers, there is not only one correct method or an ideal or hegemonic form to be followed. To finalize, we highlight the importance of the discussion on new paths that are being traced in the playwriting theory, focusing on the contemporaneity and its new paradoxes of art. Keywords: theatre, performance, play-writing, postmodern. Antes de tratar sobre as maneiras de como se apresenta a dramaturgia nessa nossa particular contemporaneidade (nomeada por muitos de pós-modernidade), é importante apontar a importância que a própria arte cênica tem na cultura hoje. A condição fundamental da arte teatral, em si mesma, é ser performática. Essa é parte da sua essência. E é particularmente por esse traço que ela influencia diferentes áreas culturais, sendo usada como referente no discurso contemporâneo. O teatral é tomado por inúmeros teóricos do pós-moderno como bandeira para recusar a ideia de “obra em si” (o status de obra acabada e terminada), preferindo-se a ideia de “obra como processo”. A verdadeira performatividade de toda obra, em qualquer área artística e circunstância histórica, está no próprio momento da recepção. É somente a partir de então que toda criação torna-se “obra em si mesma”, isto é, o momento da sua recepção na cultura é sua verdadeira garantia de existência e subsistência histórica. A arte cênica, por ser essencialmente performática, já em si mesma traz consigo um presente intenso no seu ritual de representação. Já em si mesmo, o tempo presente é preponderante na vivência e narratividade pós-moderna. Os autores de texto dramático têm muito mais motivos, se comparados aos de narrativa literária, para se apoiar nesse tipo de tempo. O texto dramático é elaborado para ser representado, e essa condição implica ações desenvolvidas prioritariamente no próprio instante do acontecimento cênico. Nesse sentido, a ficção passada se confunde com o presente da apresentação efetuada. Inclusive, quando na ação há uma rememoração do passado ou uma previsão sobre o futuro da personagem, tais atos são realizados num presente representado. Então, a aparição do “presente sublimado pós-moderno” na arte cênica não é uma grande novidade (pois


esse tempo sempre foi inerente à representação), sendo só uma condição que se afirma. O presente se evidencia ou intensifica-se, na dramaturgia, especialmente para efeitos de metalinguagem ou ritualização. No primeiro caso, para efeitos de teatro falando do teatro, a peça expõe a própria condição da sua linguagem. A obra parece dizer: “esse ritual cênico que fazemos aqui e agora, e que vocês estão assistindo, é uma representação”, seguindo uma herança teatral épica. Outro caso advém do fato de ter se desenvolvido um teatro ritualista e cerimonial, ou com elementos de performance, em que a improvisação ou a não premeditação cênica tornase muito importante. Em vários casos, o presente da ação coincide com o presente da representação. Em outras pesquisas, porém, isso implica agora transgredir a cômoda condição de representação relacionada à teatralidade. Ryngaert (1998) critica a ênfase no tempo presente que a dramaturgia atual tem desenvolvido. Segundo ele, existe o objetivo utópico de elaborar uma escrita em que a distância entre o que acaba de acontecer e o que é representado seja mínimo, ou seja, um presente impossível. Como na vida, também no teatro, assim que a cena foi representada, ela já se torna passado. A utópica concordância plena entre o “aqui e agora” pode se tornar impraticável. Na narrativa atual, as formas e os códigos utilizados para representar o mundo já não advêm exclusivamente das teorias aristotélicas. Mas isso não quer dizer que haja uma ruptura radical. Existem sementes, elementos básicos, que subsistem e que ainda encontram sua justificativa em diversas regras dramáticas convencionais ou em teorias da poética clássica. O teatro, seja qual for sua forma, ainda continua sendo um momento em que se apresenta a troca em cena entre seres humanos (actantes) que agem diante de outros seres humanos que percebem esse agir (assistentes). Em essência, esse continua sendo um acontecimento que se sustenta culturalmente. No entanto, há nos autores contemporâneos um desejo de desbaratar essa inflexibilidade que sempre cerca a representação tradicional. Quando esse impulso se manifesta na escrita, na criação dramatúrgica, começa a ser incorporada uma série de desestruturações das convenções estabelecidas. Segundo Ryngaert (1998), há uma contestação ao modelo da chamada peça bem-feita. Uma das oposições mais fortes, sem dúvida, ocorre diante do enredo (em si mesmo) e de suas convenções de estrutura. Tendo consciência desse processo, pode-se entender o surgimento de uma des-fabulização da narratividade dramática pós-moderna. Inserem-se nesse pressuposto as dramaturgias que pesquisam a transposição daquela narratividade convencional construída

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com momentos estabelecidos de “começo-meio-fim”, com interpretações fixas e leituras predeterminadas. Ou seja, obras de convenções mais fechadas que não colaboram para uma proposta dramática em constante processo ou que dificilmente aceitariam uma inclusão performativa. Uma fábula sem começo nem desfecho marcadamente determinados colabora para uma narrativa de fluxo em permanente evolução e interpretação. Além disso, esse tipo de fábula tende a ser flexível, deixando a possibilidade de interpretações cênicas performáticas. Possibilita também, na dramaturgia, que o elemento performático possa ser introduzido pelo autor na própria construção literária do texto. É perceptível que a tendência do teatro contemporâneo decompõe todo tipo de coerência, geralmente apoiada em enredo, personagem e ambiente, por mencionar algumas estruturas estabelecidas de uma dramática tradicional. Há um imediatismo radicalizado, pois o prazer existente no “presente da imagem” não pode ser perturbado por nenhum tipo de estrutura dramática. Esse prazer no pleno imediatismo da sensação encontrada no instante cênico vivido é compensado pelo ato performático. A criação do drama pós-moderno está carregada de imagens pictóricas com determinados padrões de espaço, ícones e quadros vivos (RYNGAERT, 1998). A procura de novas possibilidades teatrais extrapola o simples objetivo de mimese da realidade, não se justificando mais a elaboração da intriga, do diálogo, das personagens completas nem de um espaço cênico à italiana. É por meio da performance e do happening que se procura uma teatralidade enfraquecida ou incisivamente desconstruída. Essa característica, essa manifestação cênica no teatro atual começa a ser compreendida e levada em conta pela dramaturgia na hora de se elaborar um texto ou uma estrutura dramática. Textos que em vez de ser um empecilho (pela sua estrutura racionalista) são uma motivação para uma poética performática em cena, introduzindo elementos de estrutura de ação dentro de um código poético diferente. A tradição sempre concedeu uma posição privilegiada ao texto na elaboração do espetáculo. Certamente adiando injustamente o reconhecimento de outros elementos fundamentais que também têm participação importante na construção da obra cênica. A partir de Roland Barthes e de suas reformulações do conceito de “texto”, percebe-se que o material literário é somente um elemento a mais no amplo sistema de signos. O texto é mais um recurso, entre os outros da representação, que tem também importância para um processo de encenação mais sensível. Nesse sentido, a dramaturgia procura se renovar e dar conta das novas


inquietações expressas pelos criadores da arte cênica que não querem depender mais do autor nem de um texto preestabelecido para fazer um espetáculo surgir. É perceptível a atitude de vários dramaturgos que procuravam a renovação e temiam pela invalidação de seu trabalho criativo. Eles incorporam, na estrutura dramática do texto, as inquietações manifestadas por artistas que decidiram trabalhar sem um autor nem com uma dramaturgia convencionada. Ou seja, um novo tipo de texto dramático está estruturado de tal maneira que ele consegue propiciar o acontecimento performático, ritualista, além de acentuar a exploração do impacto do tempo presente na ação a ser desenvolvida em cena. Essa é uma das marcas da dramaturgia que então se torna explicitamente pósmoderna. Nesse tipo de proposta, o enredo tende a ser deixado de lado ou a não ser mais o foco principal da expressão narrativa. Podemos ver esse tipo de proposta refletido em textos como Máquina-Hamlet e Quarteto de Heiner Müller, ou em Paraíso perdido, de Sérgio de Carvalho, com o grupo Teatro da Vertigem. Os autores contemporâneos reivindicam sua liberdade narrativa. Para eles não há mais um único método certo nem uma forma ideal ou hegemônica a ser seguida. A construção do diálogo pode atingir realmente estágios radicais quando ele é composto apenas por pedaços de réplicas. Na estrutura, o espaço e o tempo são considerados de maneira particular, e a personagem é quase inexistente. Esse tipo de proposta está muito longe das estruturas convencionais de texto dramático. As regras aqui estabelecidas favorecem a ampla liberdade da simbolização poética no texto. Assim, a dramaturgia pós-moderna constrói fábulas com pouca informação e muita ambiguidade simbólica. Algumas feitas com fragmentos que não levam a lugar nenhum. São gerados textos obscuros que não se abrem mais à leitura imediata. Acentua-se no teatro um jogo entre o que está oculto, aquilo que parece velado e que termina sendo mostrado. Um jogo dramático em que uma obscuridade inicial termina se iluminando, ou aquilo que parecia indecifrável termina fazendo sentido. Cabe esclarecer que, no teatro e na dramaturgia pós-moderna, os dois modelos narrativos, o convencional e o alternativo, perduram e convivem. De um lado, há uma narrativa clássica com um enredo que se apóia numa estrutura em que são postas informações claras, completas e bem colocadas, de estrutura compacta, com um preciso encadeamento lógico entre as partes. Em oposição, existe uma narrativa alternativa, repleta de vazios, outra escrita que não pretende narrar uma fábula com toda a montagem de elementos que essa costuma ter. A segunda modalidade é

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uma narrativa cheia de ausências que podem atrair sentido para estimular a imaginação ou para construir a cena seguinte. Há o jogo do quebra-cabeça informativo e fragmentado que vai se montando aos poucos. Há uma exigência para com o receptor, que deverá trabalhar sobre as ausências e sobre uma escrita esvaziada pelo autor, para que o receptor a preencha com seu próprio imaginário. No entanto, essa proposital informação, insuficiente, nem sempre é aceita como um jogo pelo receptor. O teatro alternativo, no ambiente da dramaturgia pós-moderna, não é parte da corrente principal. Ela pertence só a uma área do movimento artístico preocupada com a renovação e a transformação de códigos. Ryngaert analisa esse fenômeno segundo a perspectiva percebida no ambiente teatral da França. Conforme Ryngaert, o autor que se preocupa menos em agradar e mais em renovar seriamente na arte corre o risco de ficar marginalizado pela nova ditadura do mercado cultural pós-moderno, pouco interessado em renovações artísticas sem retorno econômico seguro. A recomendação de Ryngaert para os autores contemporâneos é optar por um caminho intermediário: Nossa reflexão sobre o teatro moderno está se estabelecendo diante de autores condenados a inovar sem desagradar, a incomodar sem perder totalmente contato com o público, a oferecer prazer sem se contentar para isso com receitas já testadas. Tentamos retraçar os diferentes caminhos que eles exploram pela escrita dramática (Idem: 41).

Mas Ryngaert assinala também que continua havendo uma espécie de mal-entendido entre aqueles que escrevem e encenam e os que assistem ao teatro. Há uma real perda da referência tradicional quando não há mais códigos maciços e seguros. Os textos contemporâneos considerados ilegíveis ou fechados não conseguem ser lidos por falta de entendimento e de conhecimento desenvolvido para isso. Por uma falta de educação orientadora, o ato de leitura do receptor comum não acompanha as renovações dos textos que não seguem as regras clássicas da narratividade dramática. Essa situação se afirma quando o receptor fica acomodado a uma estreita linguagem midiática. Esses são alguns dos motivos pelos quais ainda há resistências fortes. Faltam as chaves necessárias para um novo tipo de leitura. Esse estado de “leitor convencional” continua na prática escolar e até na universitária. Ainda prevalece a pergunta “qual é a história?” diante de outra pergunta que ainda fica de lado: “de que trata?”.


Mas, como Ryngaert salienta, todo texto é legível se dedicamos tempo a ele e se nos damos os meios para isso. Não deixa de ser uma posição idealista, mas é bastante certa. Tudo o que o receptor pós-moderno parece não ter é exatamente isso: o tempo (e a paciência) para descobrir textos que empregam códigos diferentes. Também faltam os meios dados pela cultura de massa com os quais os receptores possam se aproximar dessas novas propostas. Para finalizar, gostaríamos de salientar a importância da discussão sobre os novos caminhos que estão sendo traçados pela teoria da dramaturgia. A contemporaneidade está propondo novos paradoxos na arte. Nesse sentido, a prática cênica de investigação tem produzido experiências vigorosas na teatralidade atual. A dramaturgia deixou de se restringir à arte ou ao método para orientar o labor de um dramaturgo, no sentido da criação exclusivamente literária. Considerando que a criação de um espetáculo teatral não se restringe mais ao estatuto texto do texto literário, os conceitos de dramaturgia se expandem, sendo necessários para todos os participantes do processo criativo. Uma nova teoria da dramaturgia está sendo pensada e concebida. Esse artigo pretende, de alguma maneira, colaborar com esse processo. 49

Referências bibliográficas HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 2000. HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo. Rio de Janeiro: Imago, 1991. JAMESON, Fredric. Espaço e imagem. Teoria do pós-moderno e outros ensaios. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1995. ______. Pós-Modernismo. A lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 2000. RYNGAERT, Jean-Pierre. Ler o teatro contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 1998. SARRAZAC, Jean-Pierre. O futuro do drama. Porto: Campo das Letras, 2002.


Performance e alteridade por Lucio Agra17 Resumo: O texto propõe uma abordagem diversa da usual para o termo “comover” e entende essa ideia como uma estratégia possível na arte da performance.

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Palavras-chave: comover, performance, arte brasileira contemporânea. Abstract: The essay proposes a different approach to the common sense use of the word “commotion” and understands this idea as a possible strategy in the field of performance art. Keywords: commotion, performance art, Brazilian contemporary art À Grasilele Sousa O Brasil pode ser visto como um lugar privilegiado para a observação das contradições resultantes dos processos que envolvem a dinâmica das relações com o outro. Um dos subprodutos negativos do capitalismo é a exclusão do outro, ou talvez a estratégia de rasura do outro. Tem-se nisso um paradoxo? Como enfrentá-lo ou rasurar esse outro se ele é, tantas vezes, objeto do desejo? A menos que se esteja no ambiente epistemológico, na clausura do existencialismo. Se se admite, por princípio, como Jean-Paul Sarte, que “[...] o inferno são os outros”, então o outro passa a ser uma ameaça a ser conjurada e é melhor que se acostume com essa triste sina da humanidade: ser um erro caído na terra e que, por conseguinte, se é obrigado a conviver com todos esses erros até que a coisa se extinga de uma vez por todas. Observamos, numa cidade como São Paulo, as consequências nefastas que pode produzir essa espécie de individualismo que é a rasura 17 Nascido em Recife (PE), vive e trabalha em São Paulo (SP). Performer, poeta, professor. Doutorado em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Publicou Monstrutivismo – reta e curva das vanguardas pela Editora Perspectiva, em 2010. Prepara novo livro sobre a performance no contemporâneo. (http:// contemporaryperformance.org/profile/LucioAgra).


do outro. Isso pode se dar patologicamente com as pessoas que têm graves sofrimentos afetivos e que desenvolvem um escudo de proteção atrás do qual não são capazes sequer de compreender a dimensão do sentimento do outro. A sensibilidade ferida do outro é inexistente para uma pessoa como essa, e ela sinceramente não sabe do que alguém estaria falando ao falar disso, porque efetivamente isso “não existiria”, não haveria essa situação, ela seria “impensável”, não acessível à cognição. Falta-lhe a dimensão necessária, por exemplo, para um ato de compaixão, que é aquela do olhar para o outro como quem tenta se colocar no seu lugar. Isso é particularmente sensível quando se observa esses fenômenos ligados ao trânsito das grandes cidades. Percebe-se a insistência de fazer seu próprio caminho a despeito da existência dos demais e a voracidade no agir; não se pode ceder porque ceder espaço significa abrir ao outro uma chance que se julga que se perderá na doação, pois é impossível doar qualquer coisa que seja. Isso cria situações em que um acaba sendo penalizado em função da presença do outro. Como se trata de uma competição, dois tentam passar por um lugar que só cabe um, e resultam os acidentes, as batidas etc. Deseja-se agir de uma forma tal como se fosse possível não existir o outro, como se quisesse rasurar o outro. Como se o outro fosse uma “paisagem” que se tem de eliminar. Nas relações interpessoais, essa “paisagem a se eliminar” é fruto de alguém infenso a qualquer afetação. As afeições são trabalhadas no regime do consenso sobre elas. Estabelecem-se consensos como: “quando eu namoro, eu abraço, quando eu namoro eu beijo, quando namoro eu transo” etc., porque aí se faz aquilo que é “necessário” fazer. Se, por acaso, há a surpresa de um afeto que não constava nesse “vocabulário das sensações”, não se sabe como lidar com isso. E isso não se dá somente no tipo de relação na qual um dos termos foi afetado negativamente por qualquer espécie de trauma afetivo, isso está hoje disseminado nas relações afetivas. Elas estão contaminadas por esse descaso deliberado quanto à dimensão do outro. Essa é talvez a grande questão política que tenhamos de enfrentar nesse século XXI. É a questão dos afetos, desfazer-se de uma subjetividade “acabada”, abrir-se para o outro, capacitar-se a observar e a ver o próximo como alguém que depende necessariamente do olhar alheio e é capaz de ser co-movido. Esse é o sentido de comover: mover-se junto. Comover, então, pode ser visto como o contrário da rasura do outro. Comover significa convidá-lo para seu convívio, chamar o outro à sua própria esfera de ação. Mas isso tem um custo. Significa que é necessário desprendimento, é

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preciso abrir mão de certas coisas, ouvir o outro, até mesmo modificar seus comportamentos em função do outro. Como produzir isso em uma sociedade orquestrada pela questão do individualismo?

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Provavelmente isso pode ser realizado pela criação artística. A arte seria um dos lugares desse co-mover. Desse modo, seria possível investigar, na criação artística, quais foram as oportunidades de comoção. Não no sentido que costumeiramente usamos a palavra comover, como emocionar. Sabe-se que há pessoas que sofrem de Alzheimer que são capazes de se comover com notícias da mídia, como se fossem pessoas “da família”. Mas se alguém próximo morre, às vezes mesmo com laços de parentesco, não se comove e trata a situação com certa indiferença. A impressão que se tem é que aquilo não a afeta de modo algum, seria uma situação como outra qualquer. Esse “déficit de afeição” contaminou a sociedade de modo geral nos dias que correm. Poucas chances restam para essa “comovência” (abrir-se para as possibilidades do outro, esquecer-se de si para que esse outro emerja dentro de você, essa possibilidade do “outrar-se”, como queria Fernando Pessoa), só existe essa possibilidade hoje, quiçá no terreno da criação artística. Ela é uma forma de relação com o mundo que desafia nossos sentidos sobre esse mundo. Ela não tem cessado de desafiar esses sentidos, então há grandes chances de que ela possa produzir a espécie de “deslocamento de si” que desejo defender aqui. Esse possível atentar para a existência de alguém mas que ocupa esse espaço além de si. Pode-se perguntar então quais seriam esses territórios artísticos nos quais se produz o deslocamento, esse desatentar-se, esse desfazer do autocentramento. Esses locais são, por exemplo, a performance. E por quê? Por que a performance pode ser um desses locais do “esquecimento de si”? Porque a performance, em primeiro lugar, trabalha o corpo como categoria e não só como evidência de presença. Isto é, ele também é um artefato epistemológico do campo da epistemologia artística. Traduzindo: quando se produz algo artisticamente, há um pensamento artístico – aquilo que chamamos de estética ou poética – que funciona dentro daquele preceito artístico que se está tentando desenvolver. Nessas circunstâncias, o corpo, que é alguma coisa que não está em jogo diretamente quando se trata de produzir um objeto, passa a ser uma condição sine qua non, um imperativo para que se tenha o evento artístico. Seja por presença ou ausência, imposição ou exposição. Mas é preciso que se tenha a presença do corpo. O corpo é necessário, absolutamente necessário.


Posto isso, considerando-se que a performance trabalha com certa abordagem do corpo, ela produz desde já uma afetividade primária – pois ela produz a presença desse corpo –, ela pode ser a chance excepcional para chamar a atenção para a existência do outro. Na dança, no teatro, nas assim chamadas artes cênicas, as demais artes ao vivo, em que pesem os esforços em direção a outras atitudes, o que se passa com frequência é uma situação em que esse outro que aparece à percepção, aparece fisicamente à distância. Esse outro é expresso como alguém que é ontologicamente diferente de mim. Porque ele estudou, ele se esforçou para ganhar aquela expressividade que só ele tem. Ele diverge completamente de mim e devo admirá-lo por essa divergência. Se eu quiser ser um artista também, tenho de percorrer o caminho que ele traçou, e uma vez isso feito, conseguirei fazer com que a minha expressividade equivalha à dele. Esse é um processo em que se produz uma situação de valorização do outro que institui uma diferença total. O outro passa a não ser alguém sobre quem eu possa sentir como algo que me afeta. Ele só me afeta no sentido de eu querer ser como ele, e não no sentido de eu querer persistir sendo eu, enquanto possa também ter algo dele. Não se trata de algo da ordem metafórica da devoração, mas do espelho. Para que fosse devoração, e não simplesmente espelho, teria de haver uma circunstância na qual eu pudesse ser afetado como se aquilo aparecesse como algo que pode pertencer à minha carne também, e a minha carne possa sentir tanto a dor quanto o prazer que ele pode sentir e que eu possa compartilhar. Esse é o sentido de compartilhamento ritual que existe em todas as religiões. “Com-partilhar” aí passa a ser outro derivativo da “com-paixão”. Compaixão, convívio, compartilhamento.

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Tempo, espaço, presença18

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por Gilberto Icle19 Resumo: Este texto apresenta o problema do tempo no corpo do ator. Parte-se da premissa dos Estudos da Presença, segundo a qual a presença é espacialidade para pensar a encarnação do tempo no corpo. Para tanto, discutem-se três dimensões do tempo: illud tempus, tempo poiético e o tempo tornado corpo. Essas questões são articuladas e amparadas em autores como Hans Ulrich Gumbrecht, Walter Benjamin, Giorgio Agambem, e especialmente na descrição de processos criativos nos quais o autor foi diretor e/ou ator junto ao grupo gaúcho Usina do Trabalho do Ator. Palavras-chave: tempo, espaço, presença, Usina do Trabalho do Ator; corpo. Abstract: This text presents the problem of time in the body of the actor. It starts with a premise from the Studies on Presence, according to which presence is spatiality, to think the embodiment of time. To this end, tree dimensions of time are discussed: illud tempus, poietic time, and time become body. These questions are articulated and supported by the work of Gumbrecht, Benjamin, Agambem, and, above all, the description of creative processes in which the author has been director and/or actor, with the theatre group Usina do Trabalho do Ator, from the state of Rio Grande do Sul, in Brazil. Keywords: time, space, presence, Usina do Trabalho do Ator, body. O objeto e objetivo deste trabalho é discutir a questão do tempo no trabalho do ator, na perspectiva dos Estudos da Presença. Para essa 18 Este artigo é uma versão revista e substancialmente ampliada da comunicação de pesquisa Pode o tempo ter lugar no corpo do performer? publicada em Anais. Encontro Nacional de Antropologia e Performance (ENAP), São Paulo: USP, 2010. Esta pesquisa foi financiada pelo CNPq. 19 Ator e diretor teatral. É graduado em artes cênicas, mestre e doutor em educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com estágio de pós-doutoramento em Etnocenologia pela Université Paris 8, na França. É professor de teatro na graduação e no programa de pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul onde coordena o Grupo de Estudos em Educação, Teatro e Performance (GETEPE). Editor-chefe da Revista Brasileira de Estudos da Presença.


modalidade de pesquisa, a presença não é apenas uma qualidade do ator – tal qual o discurso teatral tem engendrado nos últimos anos –, mas um movimento, uma relação que se estabelece ou não com as coisas próximas, com os corpos que estão ao alcance do corpo (ICLE, 2011). Para as práticas performativas, objeto desse estudo, trata-se de considerar, em especial, as experiências entre os corpos, nas situações em que esses estão em relação de proximidade. Assim, tal perspectiva alia a ideia de Hans Ulrich Gumbrecht, para quem a presença é experiência de espacialização, ao passo que os significados seriam da ordem do tempo, à noção de que a presença poderia ser ou circunscrever mais que uma qualidade da atuação, mas uma dimensão da experiência em geral. O estabelecimento dessas ligações entre presença e significado é apenas aparentemente uma relação de oposição, pois, com efeito, Gumbrecht não se cansa em sublinhar o caráter precário de tal assertiva, na medida em que a experiência estética, para ele, constitui-se em uma oscilação entre efeitos de significado e efeitos de presença (GUMBRECHT, 2004). Entretanto, mesmo considerando aqui a presença como um efeito no espaço, esforço-me para desenvolver a ideia de que no trabalho do ator é possível pensar em tempo feito presença, numa experiência que transforma o corpo e se entranha na carne, corporalizando o tempo, na espacialização da performance. Penso dessa forma, porquanto aduzo a meu próprio trabalho como ator e diretor, em especial, em alguns espetáculos que construí com o meu grupo de criação teatral em Porto Alegre (RS), chamado Usina do Trabalho do Ator. Assim, esforço-me na tarefa de mostrar, na forma ensaística que este texto assume, própria de um escrito que não apenas reflete a criação, mas sendo ele próprio um processo criativo, o tempo como experiência da presença e, dessa forma, vou propor a ideia de um tempo que se corporifica, que se torna corpo. Para isso, descrevo dimensões distintas, mas solidárias, do tempo: 1) o tempo como origem da criação, illud tempus; 2) o tempo como processo da criação, tempo poiético; 3) o tempo como presença, materializado no corpo do performer. Para tentar exemplificar essas dimensões, vou me referir a três de meus espetáculos para a rua, conjunto que faz parte do que intitulei Trilogia mascarada. São eles: O ronco do bugio (1996); Mundéu, o segredo da morte (1998) e A mulher que comeu o mundo (2006). Apenas para situar o leitor, trata-se de três performances que: 1) utilizam a rua como cenário;

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2) modificam de alguma forma o rosto dos atores (seja pela maquiagem ou pelo uso de suporte material, como máscara); 3) foram construídas a partir de elementos da cultura popular sul-brasileira em processos coletivos de criação. Devido ao espaço disponível aqui, vou me permitir deixar para outra oportunidade a explicitação e análise de tais características para poder me ater à experiência do tempo, assunto central deste texto.

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ILLUD TEMPUS A primeira dimensão de tempo eu chamo de illud tempus, e ela tem relação com a origem no sentido benjaminiano (PEREIRA, 2007; BENJAMIN, 1984). Como locus original e originário da narrativa, o illud tempus é sempre, para a minha criação, um tempo-espaço mítico que guarda algo de sagrado e, por isso mesmo, donde brotam uma potência imagética, simbólica e poética. Assim, os espetáculos em tela não tiveram sua origem em um texto dramático (LISBOA, 2012). Essas performances para a rua originaram-se de um illud tempus encontrado em lendas e narrativas populares anônimas recolhidas por autores, ou assinadas, mas que carregam em si a marca de certa ingenuidade, de traço quase infantil, em relação à cultura chamada erudita, assim como se caracterizam por parecer se manter à margem do que se conhece como cultura de massa. Esse espaço-tempo, aqui denominado illud tempus, conforma uma materialidade discursiva precisa (FOUCAULT, 2005). Trata-se de relatos coletados por alguns autores, histórias ouvidas de pais e avós, costumes híbridos herdados de distintos modos, e histórias e lendas publicadas na literatura sul-brasileira. Aqui temos um tempo idealizado, localizado num passado remoto. Esse tempo é espaço de potência. O illud tempus conserva a potência do ato criativo, pois remete a um tempo “[...] mítico, quando os homens podiam comunicar-se de modo concreto com o Céu” (ELIADE, 2002: 548). Entretanto, o trabalho artesanal de direção e de atuação cênica não pode se materializar apenas a partir desse espaço-tempo. É por isso que o illud tempus é tão-somente um ponto difuso de início. Ele não é início do discurso que ele origina, mas é início do qual provém o motif para a criação de nossos espetáculos. Vejamos alguns exemplos. Em O ronco do bugio, espetáculo de rua realizado entre 1996 e 1998 pelo grupo a que pertenço, a narrativa se baseava em duas ordens discursivas: a primeira tinha como centro a poética empregada que visava


misturar a imagem do bufão (como figura deformada e grotesca) com a imagem do bugio (macaco típico que vive sempre em bandos no sul do Brasil, conhecido pelo urro forte e pelos seus trejeitos humanizados). A figura do bugio não é apenas a de um macaco, mas a de uma figura mítica encontrada em diversas narrativas populares, contos e histórias da tradição oral. A segunda consistia em contar a história de Antônio Chimango, baseado num poema satírico homônimo de Amaro Juvenal, pseudônimo de Ramiro Barcellos, escritor gaúcho do fim do século XIX e início do século XX. A ideia de misturar a figura tradicional do macaco, ameaçado de extinção no sul do Brasil, de comportamento humanizado e que com seu grito forte deu origem ao único ritmo gaúcho (o bugio) e o bufão implicou alguns canibalismos culturais – procedimento de carnavalização próprio da cultura popular brasileira, também conhecido como antropofagismo (GRUZINSKI, 1999) –, bastante recorrentes nos espetáculos que realizo com meus companheiros de trabalho. As semelhanças entre as características das duas figuras são explícitas. O grotesco, a animação, a imitação, o fato de andarem em bando e serem marginalizados são recorrentes tanto no comportamento do animal quanto na tradição do bufão medieval. O bugio, então, pertence ao illud tempus narrativo no qual vagam tais imagens e se materializam em símbolos. A narrativa do espetáculo partia dessas duas dimensões discursivas para, ao final do processo criativo, ser fixada como uma história na qual se conta que no fundo do mato, num capão escuro, nas coxilhas do Rio Grande do Sul, vivia um bando de bugios-bufões. Macacos grotescos que imitam os seres humanos e que vivem num mundo antigo e mítico nos sonhos de homens e mulheres dessa terra. Cansados de serem mortos nas florestas, os bugios vieram em bando cantar velhas histórias pelas ruas das cidades (ICLE, 1999). A ação acontecia em quatro diferentes e múltiplos espaços. Os bugios chamavam a atenção do público ou conduziam-no até o espaço sequente. Aproveitavam-se os recursos de cada local de apresentação. Uma fonte, árvores ou paredes; quaisquer particularidades dos locais eram utilizadas. Traduzia-se cada espaço para uma correspondência do local (Idem). Em Mundéu, o segredo da noite, espetáculo estreado em 1998, um grupo de atores inicia um ritual. Ao som dos tambores, invocam espíritos lendários que, abandonando seu tempo e suas lendas, tomam seus corpos e, juntos, dançam uma dança dramática (Idem).

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Eles contam a história de amor de um homem e de uma mulher. O casal enamorado é surpreendido por Anhangá-Pitã, demônio formado pelos restos da natureza, que faz cair a noite, despertando a cobra de fogo conhecida como Boitatá. A grande cobra devora os olhos da mulher e a dor do seu amado comove Salamanca – uma princesa moura transformada em lagartixa. Salamanca revela ao homem as três provas mágicas que farão nascer o dia e cessar todos os encantos (Idem). A palavra mundéu, em tupi-guarani, significa armadilha, mas pode significar também um mundo de coisas. Ao partir da metáfora antropofágica, o grupo reuniu uma série de elementos e influências, criando uma nova história para as míticas personagens da obra Lendas do Sul, de Simões Lopes Neto (s/d). Ao usar linguagem gestual, o grupo procurava acessar um universo mágico, misturando teatro e dança representada, acompanhada de música, única forma de texto, especialmente composta e executada ao vivo. Mais uma vez no trabalho do grupo, e talvez de maneira mais profunda, usa-se a ideia da antropofagia ou do canibalismo cultural como modo de realização. Todas as influências possíveis foram incorporadas. O carnaval, novamente, oferece elementos importantes ao lado da dança-teatro do sul da Índia, o estilo Bharata Natyam (SARABHAI, 2000). Toda a ação do espetáculo é uma narrativa encenada a partir de uma rica codificação de gestos, passos e ritmos. Essa codificação aproxima-se, em certa medida, das relações que as escolas de samba do carnaval brasileiro fazem em seu desfile, no qual os códigos são sempre livres associações a uma temática geradora. Nesse espetáculo, usou-se mais o modo narrativo do Bharata Natyam – um grupo canta a história, enquanto outro a dança e a representa – do que propriamente seus elementos semânticos, os quais pertencem a uma cultura e a um contexto bastante específicos. Ao seguir a ideia de comer as influências, o espaço de Mundéu... lembrava os rituais afro-brasileiros e, de fato, a ideia de personificação, na qual os atores seriam possuídos por espíritos que vêm de velhas lendas, era tomada de empréstimo, também, desses rituais. Foi assim que as personagens de Lendas do Sul, de Simões Lopes Neto, texto que fixa diversas lendas sul-brasileiras, foram tomadas como mote para a criação de uma narrativa que não existia no original. Tais personagens, então, correspondem a um illud tempus produtivo, donde emanam aspectos culturais de certa forma esquecidos. Esse espaço-tempo de criação é novamente tomado como ponto de partida no espetáculo de 2006, A mulher que comeu o mundo. A


história narrada no espetáculo, encenada dramaticamente, se passa numa pequena cidade fictícia, na qual um célebre e rico ladrão, pai de uma moça gorda, chega ao fim em seu métier como larápio ao morrer, para alegria da ínfima e remota cidadela. A filha, gorda e corpulenta, devido à inércia em que vivia, só fazia comer. O pai a tratava como um bichinho de estimação, mantinha-a isolada do mundo, mimava-a e tudo lhe alcançava – não obstante lhe alimentar diretamente na boca. É basicamente isso que conta, de forma irônica, a primeira canção do espetáculo. Como não sabia fazer nada, sequer falar – no espetáculo, ela emite pequenos gritos, grunhidos e balbucios –, após a morte do pai, a moça à procura do que comer. Sem que os vizinhos saibam, ela devora o próprio pai, para aplacar sua dor mais profunda, mantendo-o para sempre consigo. A canibal insaciável nada regurgita e vai à rua em busca do que comer. Essa narrativa toda é cantada na música inicial, em que os atores brincam como numa espécie de folguedo popular. A história se alterna em narração musicada e encenação dramática. As cenas que se seguem à abertura deixam entrever que, depois de devorar o pai, a gorda chama a atenção dos vizinhos, tão logo eles percebem que ela não conhece o valor do dinheiro e está disposta a trocar toda a fortuna herdada por comida. Os vizinhos, oportunistas e interesseiros, bajulam-na em troca de suas riquezas. Ao tentar saciar seu apetite insaciável, ela acaba comendo a cidade inteira, e tudo o que nela havia, até mesmo os vizinhos, devorados pela gula da moça e pela própria mediocridade. Essa empresa é conquistada, também, pelo auxílio libidinoso de um dos vizinhos que se destaca do coro de vizinhos para, ao trair a confiança dos companheiros, fazer as vezes de cúmplice dos desvarios da gorda. Numa paisagem desterrada e inóspita, a gorda, ao perceber que nada mais havia, chora, pois está sozinha. Suas lágrimas atraem a última das criaturas, a vaca que a havia enganado algumas cenas antes, com o auxílio do coro de vizinhos, e mudado os desígnios que a todos acometia: ser devorada pela gorda sem pena nem dó. A alegria de ver, finalmente, uma companhia, de tê-la para si como companheira, confunde-se na conflituosa ação da gorda, com o desejo de comer. E não sabendo o que fazer, a gorda entrega-se ao desejo flamejante de comer a vaca e a devora: ensopa a vaca e come, come com vontade e, preferindo, assim, a solidão. Esse desenrolar dramático, com tratamento cômico-absurdo, é realizado na mise en scène numa sequência musical ao final do espetáculo, em que os atores, apenas com as cabeças a aparecer por entre a saia

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gigantesca da gorda, cantam uma espécie de modinha imperial cômica, enquanto a vaca dança e canta no entorno da personagem-título. A ação assume um caráter absurdo, visto que a situação é totalmente improvável e o tratamento beira o nonsense. Essa trama não existe em nenhum lugar, ela é criação coletiva do grupo de atores; no entanto, ela provém de uma origem. O illud tempus que lhe dá condições de existência emerge de um conjunto de relatos populares que descrevem a gula como uma moça que come uma estância. Tal relato é encontrado na literatura do sul do Brasil, especialmente em contos e causos. Tempo vago, aberto, cindido, espraiado na espessura da linguagem, tempo que vive num esquecimento, mas que, por isso mesmo, se faz potência criativa, possibilidade infinita com a qual nos defrontamos, as quais tomamos como aliadas para a nossa criação. É por isso que o tempo do qual se originam esses três espetáculos é um tempo ficcional, mas não inventado pelos artistas da cena; ele nos precede como origem, como dimensão dispersa de produções infinitas de significados e presenças. Tais significados – para não cair na armadilha da vontade de interpretação – são tomados como mote para a sua presentificação, especialmente para a produção de um segundo tempo, o tempo poiético. TEMPO POIÉTICO Se o illud tempus é, para nossos espetáculos, a origem, o pulular por intermédio do qual começamos nosso trabalho, ele é também possibilidade para o que chamo de tempo poiético, o tempo-espaço do processo, da criação artesanal na qual laboramos minuciosamente com os elementos que paulatinamente se configuram em formas teatrais. Esse tempo poiético é um tempo suspenso, pois não se trata do tempo cronológico, tampouco de um estágio de desenvolvimento, ainda que todo processo tenha certa medida de tempo cronológico. No entanto, esse tempo poiético não se resume à preparação dos atores ou do espetáculo; ele permanece a agir depois da estreia e durante a vida do espetáculo, enquanto estamos na estrada, em turnê; quando fazemos uma temporada num teatro, ele nos acompanha como dimensão criativa no nosso cotidiano de trabalho, mesmo que ele esteja mais explícito nos longos meses nos quais criamos a primeira (mas não última) forma de nossos espetáculos.


Seria muito trabalhoso aqui descrever todo o processo e seus respectivos procedimentos de criação que empregamos nesses espetáculos. Assim, atenho-me a um procedimento que tem íntima ligação com minhas preocupações com a presença e que ilustra, de certa forma, esse tempo poiético. Vou lhes falar um pouco sobre o que costumo chamar de burla. De modo geral, os atores de nosso grupo possuem um repertório de ações que é anterior à definição da ideia a ser trabalhada em cena. A ideia semântica aparece num segundo momento do processo de criação, depois que uma noção técnica ou um elemento da linguagem cênica são desenvolvidos, portanto, na maioria das vezes, antes mesmo da escolha de uma temática. É o caso, por exemplo, do processo criativo que conduziu à elaboração do espetáculo Mundéu, o segredo da noite. O processo de construção da dramaturgia se deu a partir de um trajeto que se iniciou na investigação da utilização de objetos cênicos (um leque, um bastão, uma peruca gigante, um pano, uma saia, uma flauta). Num momento posterior, com a leitura da obra Lendas do Sul, de Simões Lopes Neto, foi determinado, por intermédio de associações com o trabalho dos objetos, de forma coletiva, o personagem (das Lendas) de cada ator. O trabalho seguinte foi, então, constituir essas figuras a partir do trabalho prévio com os objetos. Assim, tangenciou-se um trabalho de interpretação das características das personagens para constituição da ação cênica. A partir da constituição dessas figuras – da investigação de comportamento e da fixação de um repertório de ações para caracterizar os comportamentos específicos de cada personagem/figura – que a dramaturgia foi sendo construída. Ela nasceu, portanto, de alguns meses de experimentação e em improvisações que respondiam a uma única pergunta: como as personagens são de distintas lendas, o que aconteceria se elas se encontrassem com outra personagem? Tratou-se aqui, com efeito, de um esforço de tencionar a vontade de expressar determinada ideia e o poder de legibilidade dos materiais. Assim, o processo resultou em ações inusitadas, coisas improváveis e peripécias que não se podiam imaginar numa espécie de (des)caminho de criação, em função do processo de burlar os significados. Em O ronco do bugio, o procedimento de burla, no entanto, era muito mais sutil. O processo de construção do espetáculo era mais parecido com os processos tradicionais (ou mais utilizados no Brasil), pois embora não tivéssemos um texto teatral, tínhamos o poema de origem que servia como roteiro das cenas. A transposição desse roteiro, sua materialidade em cena

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teatral se deu por intermédio de improvisações coletivas. Como eram 17 atores, eu propunha pequenos grupos de cinco a sete atores, os quais tinham a tarefa de resolver determinadas cenas. Eu lhes propunha, por exemplo, que durante uma hora, eles fizessem uma cena na qual ficasse clara a morte de uma das personagens. Após a apresentação dos três ou quatro grupos de atores, eu selecionava ideias e fragmentos de um ou outro e montava uma nova cena, evitando tudo o que me parecia demasiadamente fácil como solução cênica e procurando sempre contrastes com a cena que vinha imediatamente antes daquela que estávamos trabalhando. A situação criativa em A mulher que comeu o mundo, quase 10 anos depois, foi bem diferente. Nesse espetáculo, a função diretor foi muito mais dispersa entre os integrantes do grupo. Eu não concentrava de modo tão evidente a liderança da criação e isso permitia que cada ator trouxesse um tanto de sua própria direção para o trabalho. Nesse contexto, cada ator dirigiu um pequeno espetáculo, utilizando os outros atores, no qual deveria encenar um mito ou um clássico do teatro (que poderia ser uma tragédia grega, William Shakespeare ou Nelson Rodrigues, por exemplo) numa versão gorda. Isso significava que o mote da breve encenação deveria ser a gordura, a gula ou a ganância. Isso resultou em paródias dos mitos e clássicos dos quais coletivamente elegemos fragmentos para a montagem do roteiro e das respectivas cenas do espetáculo. Assim, por exemplo, a paródia dos Três porquinhos deu origem à cena na qual a personagem-título do espetáculo, a gorda, visita seus vizinhos e lhes come a casa e a eles próprios. Burlar os clichês significou para nós, nesse espetáculo, um tempo e um trajeto narrativo mais longo do que a simples transposição de um roteiro dado para a cena. Esse tipo de procedimento de burla implica tempo específico, aqui chamado de poiético: tempo de conduta, de normatização e de repetição. Mas é também tempo de diminuir a distância entre potência e ato, entre vontade e ação. O tempo poiético é, para nós, um tempo de profanação, usando o termo de Giorgio Agambem (2007), pois é o momento de intervenção da ética, a tomada de consciência da conduta criadora em prol de uma obra que emerge dessa própria conduta. Fazer-se presente não é uma operação inocente de presentificar um tempo qualquer, é uma postura política, uma ação potente para quem faz e para quem participa do ritual da partilha, desse partilhar o sensível como nos ensinou Rancière (2005).


TEMPO PRESENTIFICADO Por fim, a terceira dimensão de tempo que eu gostaria de apresentar aqui não é apenas o resultado do illud tempus no tempo poiético, mas uma dimensão complexa que se converte em presença: o tempo presentificado no corpo. Tem o tempo um lugar? Pode o tempo ser corpo? De que modo o tempo se materializa, então, na cena? De que maneira o tempo pode ser identificável no processo de criação ou na performance? Trata-se de uma duração determinada ou um espaço temporal multiforme? Se a presença é uma espacialidade, como nos ensinou Gumbrecht (2004), a cena é tempo no espaço. Corpos vincados pelo tempo de trabalho, pelo tempo originário, pela narrativa. No entanto, o que nos toca na cena não é a narrativa, não é a linguagem. O que nos toca é a presença de um corpo potente, a encarnação de um tempo feito espaço. Assim, os significados são apenas o suporte por intermédio do qual atingimos e somos atingidos pelo tempo da cena. Em nossos espetáculos, procuramos guiar o espectador por uma narrativa quase infantil, quase ingênua. Não é ela apenas que presentificamos. O que está em jogo é o tempo para além da duração. Em cinquenta minutos ou uma hora contamos uma história e fazemos ver, colocamos em evidência um tempo. A experiência mais significativa como ator em relação a essas questões, para mim, pode ser expressa na sensação de relação com o público. O significado, a narrativa, a história, funciona como elo, como isca para tomar a atenção do público, mas essa isca é sempre a mesma, não mudamos de história a cada apresentação do espetáculo. Em A mulher que comeu o mundo contamos sempre a saga dessa mulher gulosa e de seus vizinhos gananciosos. O que muda a cada apresentação e a cada instante mesmo da experiência de se dar a ver é a relação que se estabelece entre aquele que se oferece como corpo apresentável (ator) e aquele que o acolhe como corpo receptivo (público). Essa experiência – a da sensação de ter ou não uma ligação com o outro da cena – é que me permite pensar que é um tempo corporificado que se converte nessa espacialidade da cena. Percebo essa relação não como um tempo cronológico mas como um tempo material, um acontecimento que se desloca do tempo cronológico, do Kronos (BENJAMIN, 1994a). Quando o tempo se faz corpo na ação, o que essa ação faz é transgredir o tempo cronológico, seja na narrativa, com seus saltos e peripécias, seja na presença potente de um corpo que requer a atenção descomprometida do público. A dimensão visual atrai um primeiro olhar,

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pois não temos, na qualidade de espectadores, como ficar impunes ao perceber Anhangá-Pitã, o demônio feito dos restos da natureza, originário das Lendas do Sul, adentrar a cena na sua frenética corrida, pois ele é de um amarelo-ouro reluzente, usa um figurino que se assemelha a uma fantasia de carnaval. Somos capturados por esse efeito, mas não é na visualidade que o olhar se sustenta para além do primeiro momento, mas na presença, no movimento, na ação construída passo a passo, poieticamente forjada com o suor de um trabalho diário. Presença que toma forma renovada a cada instante pela relação com a plateia. No entanto, o que nos encanta como espectadores não é tanto a função narrativa que Anhangá-Pitã cumpre no decorrer da trama dramática do espetáculo, mas sua materialidade, a corporificação de um ente abstrato que está aí, em consonância com a suspensão do tempo cronológico e abstrato com o qual acostumamos a viver. Tempo como cronologia – Kronos –, ou como tempo como acontecimento – Kairos (PEREIRA, 2008). Essa distinção está apoiada na filosofia de Walter Benjamin, na medida em que Kronos indica um tempo desreferencializado do ponto de vista da presença, de desubstancialização, de abstração. O tempo cronológico é um tempo convencionado, abstrato, ao passo que Kairos é o tempo da tradição, templo pleno dos narradores (BENJAMIN 1994b; PEREIRA 2008). Narração como modo de transmissão que ultrapassa o verbal, que demanda o reconhecimento de um sentido corpóreo, sensível, intuitivo. Narração como a síntese da experiência, como cristalização em verbo da experiência. De uma experiência que só pode ser devidamente compreendida, abarcada por algo que está além da decodificação de meros significados. É um entendimento que passa pelas vísceras, que revolve o individuo por dentro (PEREIRA, 2006). Presentificar o tempo no corpo é mais do que reproduzir o tempo-ritmo da ação para simular uma personagem, para insinuar uma cena, para fazer o público lembrar um conflito. Presentificar o tempo é criar um corpo do qual emana uma intensidade na qual reside um labor. A atriz que joga Anhangá-Pitã usa o seu corpo cotidiano, mas instaura com ele outra espacialidade, diferente daquela do dia a dia. Ela presentifica um tempo passado (restos de imagens de um illud tempus perdido), uma experiência (a de criar coletivamente com seus companheiros de cena), uma vontade (a de estabelecer uma relação com a alteridade da cena). Ao fazer isso, ela faz uma transgressão, transgride o espaço da vida, transgride o tempo cronológico que nos envolve; ela profana, como diria Agambem (2007), a própria experiência da vida banalizada.


Acostumamo-nos a pensar o tempo como linearidade, como fluxo contínuo no qual o presente é apenas um ponto cego de uma linha entre passado e futuro. A vontade de significado que nossa civilização engendrou faz-nos medir o tempo, tentar aprisioná-lo no calendário, no relógio, no cronograma. Mas trabalhar na dimensão de tornar o corpo presente significa, antes de mais nada, experimentar o tempo sem medida, um tempo que, na imagem de Jorge Luis Borges, é areia do deserto: infinito e incomensurável. Esse tempo-movimento da presença, esse enigma que não cessa de nos causar desconforto, torna-se corpo em nosso trabalho como artistas da cena. Um tempo que não se torna presente, mas presença, materialidade, corpo. Da poiética – de nosso processo de fazer teatro, de criar formas, desse tempo de angústias que é a criação, desse espaço de incertezas que é o fazer teatral, desse tempo que nos consome de forma coletiva – é que provém o experimentar o tempo corporificado, rasgado, inscrito em nós mesmos, entranhado num corpo performer: tempo corporificado na ranhura da pele, na textura da carne, na elasticidade dos músculos, na dureza dos ossos. As artes da cena, as artes do corpo, as artes do espetáculo vivo utilizam uma forma que acontece no tempo. Não é noutro senão no tempo que ocorre a espacialização da experiência da presença. Não é senão no tempo que se conforma o teatro e a dança. E não é senão na extinção do tempo que o espetáculo vivo deixa de existir. Sustentar o tempo no corpo, presentificar a experiência viva, fazer emergir um tempo subjetivo, retomar a experiência e torná-la presente: haverá tarefa mais difícil e sensação mais agradável do que essa para nós que costuramos com o fio de Ariadne o tempo no corpo?

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Referências bibliográficas AGAMBEM, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007. BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984. ______. Sobre o conceito de História. In: ______. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994a, p.222-234.

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Foto de Bob Sousa do espetáculo Ficção, dirigido por Leonardo Moreira e apresentado pela Companhia Hiato. Em cena, o solo de Fernanda Stefanski.


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Apontamentos sobre a técnica dos viewpoints em experimentação prática por Miriam Rinaldi20 Resumo: Inspirada nas inovadoras experimentações no terreno artístico, ocorridas nas décadas de 1960 e 1970 em Nova Iorque (EUA), a coreógrafa Mary Overlie criou uma técnica de improvisação, os six viewpoints. Mais tarde, essa técnica foi desenvolvida e sistematizada por Anne Bogart, diretora da SITI Company. Sua ênfase está na articulação das categorias de Tempo e Espaço por parte do ator, que toma seu corpo como instrumento de composição da cena. O presente artigo apresenta alguns fundamentos da técnica. Interessa especialmente estudar e analisar a relação entre o processo criativo do ator e a metodologia dos viewpoints.

20 Atriz formada pela Escola de Arte Dramática da Universidade de São Paulo (ECA-USP) e em Educação Artística, com habilitação em Artes Cênicas, pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (IA-Unesp); professora no curso de Artes do Corpo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Participou do Teatro da Vertigem por mais de 10 anos. Dedica-se à pesquisa em Viewpoints desde 2008.


Palavras chaves: Viewpoints, Anne Bogart, Mary Overlie, composição, técnica, ator. Abstract: Inspired by the innovative artistic field trials, which occurred in the 1960s and 70s in New York choreographer Mary overlie created a technique of improvisation, the Six Viewpoints. Years later, this technique was developed and systematized by Anne Bogart, director of SITI Company. Its focus is the articulation of the categories of time and space by the actor, who takes his body as a tool for composition of the scene. This paper analyzes presents some milestones of the technique. Especially interested in studying and analyzing the relationship between the creative process of actor and the methodology of Viewpoints. Keysword: Viewpoints, Anne Bogart, Mary Overlie, composition, technique, actor.

OS VIEWPOINTS: UM PERCURSO PESSOAL O que motiva um ator a escolher determinada técnica ou treinamento? Seria uma meta, um desejo ou uma ideologia? Tomei conhecimento dos viewpoints durante a criação do espetáculo Apocalipse 1,11, em 1999. Cinco anos depois, me inscrevi no curso intensivo de viewpoints com a companhia teatral SITI (Saratoga International Theater Institute) em Nova Iorque21. “O que estão batalhando em vocês como artistas? O que estão perseguindo?”, foram as perguntas que Anne nos fez no primeiro encontro do curso. Um a um fomos tecendo nosso rosário de deficiências e nossas contas de desejos. Como veremos, viewpoints não são uma técnica que compreende um conjunto fechado de códigos. Ao invés disso, eles propõem um sistema de peças que podem ser livremente combinadas. Por se tratar de um sistema aberto, a pergunta ou questão pessoal, “aquilo que se busca” funciona como um farol por onde o praticante pode se orientar22. A autonomia do ator diante das escolhas do treinamento, bem A SITI foi fundada em 1992 em Saratoga Springs (Nova Iorque), por Anne Bogart e Tadashi Suzuki, cujas bases do trabalho dos atores são o treinamento das técnicas de Viewpoints e o método de ator criado por Suzuki. 21

22 Essa maneira de encarar o trabalho do ator sobre si mesmo não está distante daquela exigida por Jerzy Grotowski, em que a única prática que merece o nome de treinamento é

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como a correção, a assiduidade e o rigor ficam a cargo do praticante, o que enfatiza seu comprometimento e sua responsabilidade. Portanto, aquilo que se adquire com a prática de viewpoints, independente do nível técnico, são escolhas – ideológicas ou afetivas – do ator.

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A sensação de liberdade que experimentava ao longo das sessões de improvisação era de uma euforia infantil, que me despia de antigos hábitos de construção de cena e de jogo entre os atores. Um ano depois, me inscrevi em outro curso intensivo. Dessa vez, me deparei com uma das questões mais difíceis: Como utilizar os viewpoints nos ensaios? Como aplicá-lo em uma peça? Foram escolhidos cinco candidatos para trazerem pequenos estudos, e eu fui um deles. Será que a proposta de utilização da técnica, independente do contexto, da cultura ou do projeto do artista, possibilita que os viewpoints possam ser manipulados sob qualquer circunstância, não se atendo a uma única estética ou linguagem? Transformar a experiência do treinamento – pessoal e isolada (afinal, tratava-se de um workshop com duração de poucas semanas, com um grupo de pessoas que nunca haviam trabalhado juntas) – em uma experiência compartilhada, foi um exemplo claro de quão aberta essa técnica poderia ser. Antes de uma expertise, a técnica difunde um princípio que pode ser largamente contextualizado. Outro aspecto importante que deve ser considerado na metodologia é que parte do aprendizado dos viewpoints se dá na observação. Para tanto, o grupo deve ter um número razoável de participantes que dê a oportunidade para cada um, em algum momento, apenas observar uma sessão de improvisação. Como eu já havia realizado os dois cursos intensivos oferecidos pela SITI, enviei um email para Mary Overlie23, criadora dos viewpoints, na intenção de dar continuidade àquilo que havia começado. Passei a frequentar seu curso na Experimental Theater Wing (ETW), da Universidade de Nova Iorque, por mais de dois meses. Overlie forneceu os pilares filosóficos que sustentam a prática. Porém, durante meu acompanhamento, pude perceber que a maneira como Overlie sistematiza e organiza os exercícios era muito diferente daquela que havia experimentado anteriormente. Suas sessões de viewpoints eram muito mais soltas e de longa duração. A observação não era uma estratégia metodológica e a aula exatamente aquela que não tem método único, tampouco pode ser considerada universal (The theatre of Grotowski, London: Methuen, 1985 apud Lisa Wolford, “Grotowski’s vision of the actor”: 1995). 23

Para mais informações, consultar: <http://drama.tisch.nyu.edu/object/OverlieM.html>.


era entremeada de longas explicações. A experiência com Mary Overlie trouxe para minha pesquisa um enriquecimento filosófico e conceitual rico ao entendimento dos viewpoints. A coreógrafa apresentou outra forma de abordagem e, apesar de menos eufórica, eu estava bastante impressionada com a consistência dos princípios, com a maneira como Overlie reconstruía os conceitos que ela mesma elaborara, refazendo os caminhos do pensamento com esmero. Durante o período em que acompanhei suas aulas, percebi que o Zen e o conceito de Composição, tanto do ponto de vista das Artes Visuais quanto da Dança, eram fortes referências no pensamento e na forma de organização dos materiais do The Six Viewpoints, nome conferido à sua teoria. Um ano após meu retorno ao Brasil, em 2008, criei um grupo de estudos composto de alunos recém-formados no curso de Artes do Corpo da PUC/SP, onde leciono, e de atores profissionais. No evento Urdiduras da Performance, o grupo (formado por Cris Lozano, Cristina Rocha, Emerson Rossini, Camila Ventureli e Joaquim Lino) teve a oportunidade de mostrar sua apropriação da técnica. Nossa aula aberta foi dividida em três partes: aquecimento, apresentação prática dos viewpoints e improvisações. BREVE HISTÓRICO Os viewpoints foram criados pela coreógrafa norte-americana Mary Overlie, que dedica a origem da técnica à influência de uma comunidade de artistas desconstrucionistas com quem conviveu em Nova Iorque entre 1960 e 1970. Esses artistas transformaram sua maneira de relacionar os elementos compositivos da cena e os princípios que envolvem o fazer teatral. A ideia de engrenagem e de lógica é muito importante para a compreensão de como seu sistema funciona e está interligado. Para Overlie, toda arte funciona por meio de uma combinação de informações dentro de um sistema lógico específico. Em 1978, Overlie iniciou um programa de treinamento na Universidade de Nova Iorque que foi sendo desenvolvido ao longo dos anos e que, segundo ela, só foi concluído como teoria em 2002. A técnica nasceu a partir de questionamentos sobre coreografia e migrou para o teatro justamente porque emergiu de um período efervescente, abundante em produções de linguagens híbridas. Críticos e estudiosos se esforçaram para entender as experimentações artísticas desse período e, com certa dificuldade, tentaram distinguir as linguagens, inclusive a relevância de tal distinção. De certo, o grau de hibridez não

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subtrai nem agrega valor de importância a uma obra de arte, mas, nesse período, afirma-se como fator pioneiro e marcante. Os territórios e as fronteiras entre as artes tornaram-se, a partir de 1950, cada vez mais difusos. Algumas produções acabaram sendo forçosamente chamadas de escultura ou de teatro, para dar conta dos desafios que algumas obras e artistas lhes impunham. Isso exigiu maior elasticidade das nomenclaturas, por um lado, e, por outro, a revisão de conceitos e de suas especificidades. Foi assim na passagem da escultura, assentada em seu pedestal, para obras superdimensionadas de Claes Oldemburg, nas intrigantes experimentações de Trisha Brown e seus dançarinos escalando paredes durante o apogeu da Judson Church ou, mais tarde, na polêmica discussão suscitada pelas peças de Pina Bausch, se dança-teatro ou teatro-dança. O desejo de reconhecer o novo como familiar é uma atitude bastante frequente por parte dos críticos e do público, como bem explicado por Rosalind Krauss. Apesar da extensa gama de experimentações, é possível encontrar algumas características comuns em obras desse período: a crença em uma arte não hierárquica – tanto do ponto de vista estético, em que cada elemento compositivo tem a mesma importância, quanto do ponto de vista ético, em defesa por uma arte democrática em que todos teriam igual acesso e oportunidades dentro da cena e fora dela. Revela-se o desejo por uma arte em “tempo real” por meio de estruturas de jogos ou tarefas que incluíam performers e público, como em obras inovadoras como 18 Happenings in Six Parts de Allan Kaprow (1959) ou 9 Evenings, evento idealizado por Robert Rauschenberg em 1966. A palavra performance, tal como a compreendemos hoje, ainda não existia, e o happening acabava de firmar-se. Mergulhada em um cenário de inovações no campo das artes, de intenso diálogo entre artistas e de questionamento das fronteiras entre as linguagens, a coreógrafa e dançarina Mary Overlie emoldura os fundamentos de sua técnica e cria os Seis pontos de vista (The Six Viewpoints)24: Espaço, Forma, Tempo, Emoção, Movimento e História. Em 1979, a diretora Anne Bogart encontra-se com a coreógrafa Mary Overlie, na ocasião, ambas professoras da Universidade de Nova Iorque. Anne apaixona-se pelo sistema e, ao longo dos anos que se seguem, ela e sua companhia desdobram os seis em outros viewpoints. Mas foi apenas em meados da década de 1990 que os viewpoints alcançaram maior interesse e repercussão entre atores e artistas do mundo 24

Conferir em: <http://www.sixViewpoints.com/)>.


inteiro graças aos espetáculos e workshops de Bogart e seu grupo. Anne Bogart e Mary Overlie seguiram por caminhos distintos. Apesar de terem sido colaboradoras, há certa tensão quanto à discussão do rumo que Bogart tomou. Enquanto Overlie, de maneira mais solitária, dedicou-se ao embasamento dos aspectos filosóficos da técnica, que resultou na criação de um site e na publicação de raros artigos, Bogart e sua companhia conseguiram sistematizar a técnica criando exercícios que revelam seus princípios de maneira clara, além de difundir os viewpoints em workshops bem-sucedidos e, mais recentemente, publicar, em 2005, o livro The Viewpoints Book, a practical guide. Várias pessoas tomaram conhecimento do trabalho de Overlie por meio de Bogart que, por sua vez, nunca negou o brilhantismo do sistema inventado por Mary. Nas escolas de teatro, e mesmo entre artistas norte-americanos, a técnica de viewpoints é colocada ao lado de outras técnicas de ator, como a de Michael Chekhov, Stella Adler, Sanford Meisner e Uta Hagen. A técnica dos viewpoints já preenche os currículos universitários com aulas na Universidade de Columbia e na TISCH School of Art, onde Bogart e Overlie são professoras, respectivamente. No Brasil, a técnica vem ganhando espaço em cursos de Artes Cênicas (CAC/ECA/USP), Universidade Federal de Santa Catarina (grupo de estudos da professora Sandra Meyer) e Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Entre os grupos de teatro que se utilizam da técnica, destacamos OPovoemPé (SP), Súbita Companhia (PR), Coletivo Improviso (RJ) e Espanca! (MG)25. O QUE É A TÉCNICA DOS VIEWPOINTS? Viewpoints é uma técnica de improvisação que compreende um sistema organizado de categorias relacionadas à noção de Tempo e de Espaço. Como vimos, há duas maneiras de compreender os viewpoints: aquela original, de Mary Overlie, e a que Anne Bogart desenvolveu posteriormente. A explicação a seguir advém da experiência com Anne e a SITI Company (o que nos pareceu mais adequado para nossa aula aberta).

Como toda técnica de improvisação, os viewpoints também estão

25 Segundo Rinaldi, para 2013, a editora Perspectiva prevê a publicação da edição brasileira do The Viewpoints book, de Tina Landau e Anne Bogart.

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ligados ao momento presente e conjuga acaso e controle. Ela pode ter como finalidade o refinamento da escuta e da presença do ator, a formação de um grupo de trabalho ou, ainda, facilitar o domínio do movimento sobre o palco convencional ou em qualquer outra arquitetura destinada à ocupação cênica (rua, site specific, intervenção urbana). Sua ênfase está na produção de movimentos físicos, corporais. Em uma sessão de viewpoints não há, obrigatoriamente, um enunciado prévio. Os jogadores entram um a um, olham-se e começam a jogar. Pode haver, no entanto, uma ou mais tarefas a serem realizadas pelo grupo ao longo da improvisação. Cada participante articula as nove categorias de tal forma que as imagens produzidas por seus movimentos transformam-se e ressignificam-se continuamente. A técnica de viewpoints não apresenta uma codificação de movimentos, como o balé, por exemplo, mas um conjunto de princípios que o ator organiza ao longo da improvisação. Nesse sentido, os viewpoints, como treinamento, não levarão seu praticante a um virtuosismo, senão a um maior nível de sensibilidade e de refinamento das escolhas. Os viewpoints de tempo são: Velocidade (do lento ao rápido), Duração (unidade de tempo para marcar um momento ou etapa), Repetição (de percurso, de gesto, de velocidade ou ainda uma combinação de todos), Resposta Cinestésica (reação física a um elemento externo, como um som ou um gesto). Os viewpoints de espaço são: Forma (linhas produzidas pelo corpo humano, curvas, retas ou a combinação delas), Espaço Relacional (distâncias entre os corpos), Gesto (comportamentais, sociais, expressivos etc.), Arquitetura (linhas, volumes, texturas, cores do espaço circundante) e Topografia (desenho do deslocamento). Os nove viewpoints funcionam como cartas que o jogador lança e combina no momento do jogo. A orientação é que o jogador fique consciente de quais viewpoints está articulando ao longo de uma improvisação. O jogador de viewpoints está permanentemente fazendo escolhas que são negociadas na especulação por um “eu” e por um “outro”, entre os desejos individuais e as necessidades do grupo. O que a distingue das demais técnicas é que, de modo geral, apesar de terem fundamentos comuns, como a noção de Tempo e Espaço, os viewpoints não encerram a cena em uma única circunstância ou situação (tradicionalmente reconhecidas pelo onde, quando, o quê e quem da ação), mas, como vimos, a partir de outras nove categorias. Não é incomum encontrar artistas entusiasmados pela técnica e não menos raro os que a veem como moda ou tendência passageira.


Acreditamos, no entanto, ser de extrema importância que os viewpoints sejam difundidos e discutidos. Só assim poderemos analisar criticamente sua importância e relevância; se tal técnica reflete, amolda ou camufla as necessidades e buscas do ator em sua produção artística. Parece-nos, no entanto, que tal entusiasmo esteja associado ao fato de a técnica ser uma possibilidade de expandir os alicerces da cena e de oferecer outra abordagem revigorada na maneira de lidar com antigos paradigmas da construção dramatúrgica, seja em nível textual ou de composição da cena.

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Bloco II: DISTINTOS PROCESSOS PERFORMÁTICOS NAS ENCENAÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Foto de Bob Sousa do espetáculo Ficção, dirigido por Leonardo Moreira e apresentado pela Companhia Hiato. Em cena, o solo de Luciana Paes.


Texto de apresentação do segundo dia de encontros: política e performance – angústias e provocações por Alexandre Falcão de Araújo26 À mesa, para conversar sobre procedimentos performáticos nas encenações contemporâneas, Nelson Baskerville (Companhia Mungunzá), Leonardo Moreira (Companhia Hiato), José Fernando de Azevedo (Teatro de Narradores), Thiago Vasconcelos (Companhia Antropofágica) e Georgette Fadel (Companhia São Jorge de Variedades), todos diretores vindos do teatro de grupo paulistano. A mesa contou ainda com a participação especial da atriz polonesa Ludmila Ryba, ex-integrante da Cricot 2 de Teatro, de Tadeusz Kantor. Todos os diretores expuseram várias dúvidas e provocações que instauraram emoções e silêncios diversos. Neste sucinto texto, destaco dúvidas, questões não respondidas, campo de tensões dialéticas. A partir da experiência dos espetáculos Cidade desmanche e Cidade fim. Cidade coro. Cidade Reverso, José Fernando contou que, no trabalho do Teatro de Narradores, a performatividade surgiu da necessidade de o grupo falar de si próprio, de sua própria trajetória, sem esconder os traumas do caminho, expondo o processo contraditório de busca de criação de vínculos e “alguma aliança” entre artistas e público. Durante o debate, ele questionou a importância dada à performance, destacando sua origem na matriz política e ideológica norte-americana e na filosofia pragmática. Por fim, lançou a provocação-desafio de irmos além da performatividade e criarmos outras formas de ação que combatam o esvaziamento da esfera política e caminhem em direção ao que seria uma dimensão pública do teatro. Georgette Fadel, de forma honesta, falou do processo do espetáculo Barafonda e dos riscos de se fazer um espetáculo mágico, sem força política, algo que funcione como uma animação de rua, que contribua para a valorização imobiliária da região da Barra Funda e acabe por expulsar o grupo de lá. Barafonda tem a intenção de criar um rasgo na cidade. O grupo risca o chão e se posiciona, mas ainda há muita incerteza em relação a isso. Como a atuação cênica, inclusive no que tange à performatividade, pode deixar de ser apenas perfumaria no solo da cidade-mercadoria?, pergunta Fadel. 26 Ator, educador e pesquisador. Cursa mestrado no Programa de Pós-Graduação em Artes do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (IA-Unesp) e integra o coletivo Aliança Libertária Meio Ambiente (Alma).

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Thiago Vasconcelos trouxe a intervenção cênica de rua Karroça antropofágica como exemplo da performatividade na cena contemporânea, em diálogo consciente com o teatro de revista, o agit-prop e as vanguardas modernistas. Falou sobre a experiência do grupo ao realizar um jantar público na Praça Ramos de Azevedo, que contou com a participação não planejada dos moradores de rua, cujo comportamento cotidiano tornou-se uma performance que a todos estranhava. Por último, o diretor afirmou que parte das perguntas referentes à busca de uma dimensão pública do teatro pode ser respondida na práxis junto aos movimentos sociais.


Relato de uma atriz e diretora de coletivo teatral (des)amarrado e em permanente processo de libertação por Georgette Fadel27 Resumo: Texto-relato, forma híbrida que fala de uma atriz e diretora que se entregou a um momento de grávido processo de criação. Que se permitiu correr todos os riscos... Uma atriz que, depois de muito tempo de reflexão, permitiu-se conhecer um bairro e sua gente: uma Barafonda explosiva. Palavras-chave: Barafonda, atuação, confidências explosivas, atriz na rua. Abstract: A text-report, hybrid form, which speaks of an actress and director who gave himself a moment of pregnant creation process. What if allowed to run any risks ... An actress who after a long time of reflection allowed to know a neighborhood and its people: an explosive Barafonda. Keysword: Barafonda, performance, confidences explosive, actress on the street. O mais recente trabalho da Companhia São Jorge de Variedades, Barafonda, desenvolveu-se (do meu ponto de vista, porque nessa louca Companhia da qual faço parte desde sua fundação, cada integrante tem suas razões, embora nascidas da mesma semente amorosa) sobre a percepção de que nossos corações não se interessavam verdadeiramente pelas pessoas que nos cercavam: nossos vizinhos, o bairro (Barra Funda) e sua história. Passamos alguns meses discursando sobre vínculo, comunidade, pertencimento etc., mas, na realidade, nossos interesses reais estavam longe daquilo. Pelo menos posso falar por mim. Estarrecida, depois de um longo processo, tive de perceber a falta de musculatura do meu coração... Tal constatação foi muito triste. Lembro-me de, naquele momento, ter querido intensamente, de acordo com aquilo que estávamos propondo fazer, sentir! Sentir!! Sentir!!!

27 Atriz, diretora formada pela Escola de Arte Dramática (USP) e pelo CAC – Departamento de Artes Cênicas da Escola de Comunicações e Artes (USP), fundadora da Companhia São Jorge de Variedades.

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Queria sentir, principalmente, curiosidade... Como gostaria de ser algo mais próximo do que eu considerava ser belo. Como eu gostaria que a poesia estivesse onde deveria estar!

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Posso confessar terem sido meses duros de reflexão sobre os efeitos duros da minha formação burguesa naquele meu momento de percepção da vida. O fato é que meu coração abriu. O fato é que foi essencial ser verdadeira. 2012... Ah, 2012... Uma espécie de ano da verdade! Arrastando tudo o que estava velho, trazendo a crise, a ruptura e o frescor dos novos caminhos... Orgulhosa de mim, terminei o ano tendo resistido à tentação de envelhecer... Chorando muito, como uma recém-nascida, diante da maravilha de estarmos juntos, sermos juntos, formarmos um. Voltando ao que, de certa forma, havia deixado pendente em relação ao momento que se vivia na São Jorge. A tentação era, ao perceber a falta de interesse, assumi-la e mudar de assunto. Ficar nos meus assuntos. Mas a vergonha que eu sentiria me levou a exercitar musculaturas frágeis e a me tornar aquilo em que eu acredito. Levou-me a lidar de maneira nova com meu tempo, minha escuta e meu olhar. Não, não me tornei uma perfeição de mulher ou de artista, mas dei um passo a mais para longe da autorreflexão umbigada e da perda de tempo com bobagens. Tirei um fino véu que não me deixava ser penetrada pela poesia, às vezes tão triste, de vivermos nesse planeta regido por leis tão distorcidas... Aí, então, vamos ao caos dos lampejos que brilharam para mim. Algo, mesmo que de modo contraditório e teimoso, vinha-me à cabeça. Irradiações como: Não quero ser atriz durante os espetáculos. Estou pronta todo o tempo, meu corpo e minhas funções são minhas Máscaras. Interfiro, crio a todo instante. Não preciso do reconhecimento, não quero agradar. Prefiro ser perigosa, imprevisível ... Indefinível... a algo pronto e limitado. Prefiro errar a viver com medo de errar a abrir mão da humana liberdade de invenção de realidades.


Minha liberdade não termina onde começa a do outro. Eu sou o outro, todo o tempo quero nossa liberdade. Quando falo de mim, não falo de mim. Tudo que conquisto desejo que todos possam conquistar um dia. Não estou separada de nada nem de ninguém. Isso causa alegria e imensa dor. A dor de qualquer ser é minha dor, e isso não pode me paralisar. Preciso ser imensamente forte. Saio às ruas e percebo o quanto preciso ser infinitamente forte em minha performance como atriz e como ser humano. A densidade do meu coração é a força da minha performance. Minha única certeza é que quero viver o amor, obviamente não aquele que construiu em nós quase uma aversão por esse termo por ser slogan de propaganda de margarina e merdas do tipo, mas aquele que nos permite transformar lixo em ouro, aquele que abre espaço em nossas rígidas fronteiras para a visita da vida, aquele que nos faz dançar apaixonadamente, violentamente, que nos torna leves e não fazedores de sombra, os estorvos, os assassinos que nos tornamos, espécie egoísta, patética e iludida: estou performer!

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Máquinas de intervenção urbana – uma experiência antropofágica ou O uso livre de todos os modelos e procedimentos ou Zezé de Karl Marx e Luci Engels cantam enquanto um coro de Macunaímas declama Maiakóvski em São Paulo de Piratininga por Thiago Reis Vasconcelos28 Resumo: O texto apresenta um relato da experiência da Companhia Antropofágica, intitulada pelo grupo de Máquinas de intervenção urbana. Palavras-chave: teatro de rua, teatro de grupo, intervenção. Abstract: The text presents an account of experience of the Companhia Antropofágica (Anthropophagic Company) as a group calls Machines Urban Intervention.

Integrante da Companhia Antropofágica desde 2002, onde dirigiu vários espetáculos e intervenções teatrais. É professor de música e de teatro e coordenador do projeto de formação da Companhia, que envolve o desenvolvimento de oficinas do Ator Antropofágico e o Projeto de Formação de Atores (py).

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Keywords: street theatre, theatre group, intervention. Como a pintura desceu do mural, abandonou as paredes das igrejas e se fixou no cavalete, o teatro deixou o seu sentido inicial que era o de espetáculo popular e educativo, para se tornar minarete de paixões pessoais, uma simples magnésia para as dispepsias mentais dos burgueses bem jantados. Ponta de lança – do teatro, que é bom... Oswald de Andrade. Pois há uma regra e uma exceção. Cultura é a regra. E arte a exceção. Todos falam a regra: cigarro, computador, camisetas, TV, turismo, guerra. Ninguém fala a exceção. Ela não é dita, é escrita: Flaubert, Dostoyevski. É composta: Gershwin, Mozart. É pintada: Cézanne, Vermeer. É filmada: Antonioni, Vigo. Ou é vivida, e se torna a arte de viver: Srebenica, Mostar, Sarajevo. A regra quer a morte da exceção. Então a regra para a Europa Cultural é organizar a morte da arte de viver, que ainda floresce. Quando for hora de fechar o livro, Eu não terei arrependimentos. Eu vi tantos viverem tão mal, e tantos morrerem tão bem. Je vous salue, Saravejo (o filme). Jean-Luc Godard. Soluçando eu avanço por vias que se cruzam Desdobro minhas páginas, Tropas em paradas, E passo em revista o front das palavras. Estrofes estancam chumbo-severas Prontas para o triunfo Ou para a morte. Poemas-canhões. Ei-la, a cavalaria do sarcasmo. Nossa arma favorita, alerta para a luta. Vamos pelas cidades e vilarejos, andaremos. Como bandeiras nossas almas penduraremos. Montagem de poemas. Vladimir Maiakóvski.

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Prólogo De acordo com algumas definições de dicionário, máquinas são aparelhos e dispositivos formados por um conjunto de mecanismos que trabalham juntos para transformar ou transmitir movimento, energia ou força. As máquinas de intervenção urbana formam um sistema complexo e organizado que temos desenvolvido como uma expressão cênica diferente da dos espaços onde se espera o acontecimento teatral. As máquinas pressupõem um pensamento que não separe pesquisa de linguagem e atuação política. Trata-se de uma experiência pouco convencional, com parcos registros, que vão do carro de Téspis aos agit-props soviéticos. Nossa primeira máquina, uma carroça movida a um coro de dezenas de atuadores e músicos, foi para as ruas munida de poemas, textos dramatúrgicos, canções e comidas. Essa carroça foi inspirada primeiramente no estudo dos tropeiros e suas rotas realizadas durante largos períodos da história do Brasil, principalmente nos períodos que vão da Colônia ao Império. Durante as intervenções com a carroça, sentimos necessidade de integrar outros elementos que pudessem somar a concepção de máquina. Concepção que diz respeito a um conjunto de mecanismos que trabalham juntos. Daí vieram bicicletas, triciclos e diversos aparelhos criados. As máquinas de intervenção são, portanto, a junção de elementos diversos que envolvem aparelhos, veículos, coro, banda de música etc., e que, a cada intervenção, podem assumir diferentes configurações. Para que essa experiência possa ser bem entendida, faremos um breve relato sobre o processo de criação, dividido (mais por motivos didáticos) nas áreas de dramaturgia, encenação, música e trabalho de ator. Dramaturgia O processo de desenvolvimento de uma dramaturgia para as máquinas de intervenção urbana se inicia nas primeiras experimentações com a carroça. Tratou-se de uma criação pouco convencional, cujas origens remontam ao início da Antropofágica. Nossa referência estava relacionada ao nosso trabalho com teatro de rua, especialmente a adquirida com as apresentações de nossa primeira peça, Macunaíma no país do rei da vela. Esse trabalho com a carroça, num primeiro momento, foi baseado no texto Mãe coragem, de Bertolt Brecht, penso que por dois motivos: primeiro,


porque estávamos investigando os levantes e as revoltas populares no período do Império; segundo, pela aproximação física com a carroça de mãe coragem. Nossa ideia consistia em uma espécie de “mãe-coragemtropeira” perambulando pela história da Cabanagem, da Sabinada e de outros conflitos do período imperial. No decorrer da primeira etapa de trabalho com a carroça, já no projeto da trilogia, percebemos que estávamos adaptando a peça no sentido de aclimatá-la aos acontecimentos do Brasil, e a carroça cumpria basicamente uma função de objeto cênico. Vimos, no entanto, que esse não era exatamente o caminho que queríamos trilhar. Estávamos buscando algo que viríamos entender só um pouco mais adiante. Chegamos a fazer apresentações dessa primeira etapa de trabalho, mas logo começamos a pensar em outra dramaturgia-base para a carroça. Iniciava-se um período de andanças, em que a dramaturgia passou a ter uma liberdade maior em relação à fábula e à história que fosse contada. Entramos em um período mais performativo, cuja ideia de acontecimento, de happening, era predominante. Deixávamos de contar uma história para sermos uma trupe migrante pela cidade. Nessa fase, nossos caminhos eram de longa duração e saíamos levando refeições (carne seca, feijão tropeiro). Agora não estávamos mais no campo da representação e, sim, da vivência: juntávamo-nos como tropeiros. Nesse momento, a música ao vivo tornou-se nossa principal forma de diálogo textual. Cantávamos canções do repertório do grupo e do cancioneiro popular; eram músicas que gostávamos e seu encadeamento não era necessariamente uma proposta de roteiro. Cantávamos como os carregadores de piano, tropeiros e errantes. A geografia ditava o repertório que, por sua vez, ditava nossas ações: quando tínhamos uma subida íngreme e precisávamos de mais força, era necessário um repertório mais ritmado que unificasse o coro em figuras musicais, proporcionando um ritmo mais marcado e constante; nos momentos de relaxamento, músicas mais melodiosas e menos marcadas. Era a constituição de uma dramaturgia caminhante que dialogava com a topografia de ladeiras, retas e paradas. Na hora da comida, era fundamental cantar para organizar as tarefas. Eram cantos de trabalho. A fase seguinte consistiu em longa marcha, feita de leste (sedes de grupos) a oeste da cidade (sede da Antropofágica), dessa vez acompanhados por grupos e por pessoas que se incorporaram à andança. Essa marcha começou em Cangaíba, extremo leste da cidade de São Paulo, com o grupo Buraco d’Oráculo. Então, nossa dramaturgia teria uma

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construção conjunta, unindo repertório e experiência de dois grupos. Com o Buraco, verticalizou-se a experiência de cortejo popular cuja apresentação e prática de diálogo com os moradores da comunidade se somou às práticas anteriores. Aprimorava-se, assim, o processo de construção de uma dramaturgia conjunta apoiada no repertório de dois grupos. Marchamos em direção às sedes dos coletivos Buraco, Dolores, Engenho Teatral e Estável (na zona leste); Pyndorama e Tendal da Lapa (na zona oeste).

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Revistas teatrais e outras máquinas Após a marcha, havíamos percebido que a carroça tinha dois momentos muito distintos de encontro com o público. O primeiro, quando estávamos caminhando; o segundo, quando parávamos. Passamos a pensar uma dramaturgia que dialogasse com esses dois estágios. A chave foi entender que existem três maneiras de o público se relacionar com tais intervenções. Essas três maneiras provêm dos tipos de espectador que identificamos ao longo das marchas e que acabam por determinar a sua relação com aquilo a que se assiste: aquele que somente olha pela janela das casas, pelo balcão de seu trabalho ou pela janela dos ônibus; aquele que resolve acompanhar o deslocamento da carroça; e, por último, o que está nas praças ou em lugares onde o cortejo para. Iniciamos então um percurso de pesquisa de soluções dramatúrgicas para os dois momentos distintos (carroça parada e carroça em movimento) e para essas três formas de estar com o público. O cortejo e bloco de carnaval serviram de base para a criação dos momentos em movimento, o que proporcionou camadas de apreciação e de estranhamento que, de alguma forma, dialogavam com essas duas manifestações populares. O teatro de revista foi o gênero escolhido para os momentos de parada e para aqueles que acompanhavam o percurso todo ou parte dele. A estrutura de quadros com narrativas de começo, meio e fim permitia a quem acompanhasse uma só parada fruir o que estávamos dizendo, e quem estivesse acompanhando, tivesse acesso a uma apresentação de quadros que se ligavam por um eixo temático. O tema escolhido foi Brasil República. Propusemo-nos a criar seis diferentes peças curtas contendo os dois momentos – o do cortejo/bloco e o da parada –, em cujas cenas passávamos em revista a história do Brasil. Chamamos essa experiência de “teatro de estações”, por sairmos de uma estação e entrarmos em outra. Essas seis peças curtas tratavam, respectivamente, dos temas:


República dos Marechais; Café com Leite; Período Vargas; 3xJ (JK, Jânio, Jango); Ditadura Militar; Novo Período Presidencial. Tínhamos, então, uma apresentação em quadros na qual passávamos em revista momentos do Brasil República. Em todos esses quadros, enfatizávamos o diálogo reflexivo entre a história e o momento político do Brasil hoje. Por exemplo, falávamos de Canudos e, ao mesmo tempo, colocávamos em discussão a questão da terra, abordando acontecimentos que estavam na pauta do dia, como o caso de Pinheirinho. Encenação A estrutura das máquinas e o espaço físico são os condutores do pensamento da encenação com a carroça. Andar pelas ruas exige que o coletivo crie soluções cênicas ligadas a questões muito práticas, como a segurança dos atores, por exemplo. Não se pode ocupar todas as pistas por um período longo; isso pressupõe uma estrutura de fila muito parecida com bloco de rua e de manifestações. A carroça e as bicicletas têm características visuais muito fortes e potentes. O deslocamento lento da carroça opõe-se a desenhos proporcionados pela movimentação mais ágil das bicicletas, o que imprime desenhos de cena e de movimentação interessantes. Criar uma encenação que dê conta de problemas práticos e, ao mesmo tempo, comunique visualmente a quem está de fora e a quem está dentro do bloco consistia em desafio. Optamos por roupas coloridas e movimentos largos. A condução, quase sempre partindo de estímulos sonoros, provinha do fato de que, em determinadas posições, não se conseguia ver muito além do espaço ao redor. Movimentações em coro, com coreografias simples, de modo que quem estivesse dentro facilmente pudesse participar e quem estivesse apenas olhando de uma janela, por exemplo, pudesse captar elementos da intervenção, foram alguns dos recursos a que recorremos. Na rua, com o intuito de dar destaque ao cenário, utilizamos também elementos visuais-chamarizes, como estandartes, bandeiras, faixas e lousas, que puderam ser aliados às coreografias e danças, criando gestualidades cênicas passíveis de reconhecimento em diversos ângulos.

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Música Os pilares da pesquisa musical constituíram-se, desde o princípio, a partir da utilização de instrumentos não convencionais e por formações musicais itinerantes, como a das bandas de pífanos e bandas marciais. O segundo movimento foi buscar um repertório de canções afinado com uma intervenção que se propunha manter-se em movimento. Durante as intervenções revisteiras, o processo musical, inicialmente, concentrou-se em pesquisa, transcrição e adaptação de um material ligado ao recorte histórico em questão. Foram coletados, entre outros gêneros, jingles e marchinhas de carnaval, a fim de compor uma trilha sonora narrativa capaz de contextualizar os temas abordados durante a encenação. A pesquisa de formação instrumental contava com violão, baixo e bateria que, em cima da carroça, somados às vozes de coro e aos outros instrumentos de percussão tocados pelo atores, geravam uma máquina sonora com potência e alcance superiores às das primeiras tentativas. A música, ao longo das intervenções, buscou diferentes modos de apresentação, partindo da necessidade de uma agilidade de interpretação diante de um novo material a cada intervenção. Marchas de carnaval, canções especialmente compostas para a intervenção e paródias de músicas muito conhecidas, repetidas e aprendidas pelos participantes, foram recorrentes ao longo do processo: Tá na hora, tá na hora, De trocar de presidente, Vem a Xuxa, vem com a gente, Que Floriano não vem mais! Quando um rico vai pra frente, Muito pobre vai pra trás, Pode trocar presidente, Mas só governa quem tem mais! E o Pobre, o pobre o pobre ê Se ferrou! E o pobre, o pobre, o pobre ê Se ferrou! É a turma da elite que vai dando seu alô!


Utilizando o ritmo e a melodia da música Ilariê (de Cid Guerreiro), amplamente conhecida, convidávamos todos a cantar uma nova letra. Percebemos que, ao cantar a nova versão, as pessoas que participavam da intervenção, como público e como coro, predispunham-se a pensar os limites da democracia eleitoral burguesa. Com isso, abríamos uma sequência de cenas que falavam de antigos presidentes do Brasil ao mesmo tempo que colocávamos em pauta a relação de espectadores de um processo que deveria ser de sujeitos históricos com participação mais ativa nos processos políticos. Trabalho de ator A receptividade constante e a prontidão são elementos básicos para que o ator possa estar em um trabalho dessa natureza. A receptividade constante não pode ser confundida aqui com alegria forçada, nem convites exagerados ao público; consiste em receber e acolher olhares e corpos dispostos a compor ou criticar. Receber o que a rua dá e saber responder a isso coletivamente gera um amálgama forte e necessário quando se atravessa uma avenida, como a Radial Leste, por exemplo, à noite. A prontidão é condição quase óbvia, mas necessária de ser reiterada pelo risco envolvido. Mesmo na composição dos coros, nas falas de poemas e em canções é preciso estar atento, pois nem mesmo o número de vezes em que uma música é repetida pode estar marcado. Não raras vezes, um texto precisa ser repetido, pois é dado no momento em que passa um carro com escapamento furado. É um trabalho de ator que envolve alta capacidade de improvisação e integração coletiva. Para além da cena, o ator trabalha extrapolando o conhecido em seu ofício. Passa a exercer funções de segurança, guarda de trânsito, reparador de pneu, cozinheiro etc. Isso gera um estado de não interpretação muito ligado à performance, à presença do ator, e não só da personagem, uma vez que, em diversos momentos, seu texto ou sua cena acontece quando, por exemplo, se está fechando uma rua para que as máquinas e os participantes passem com segurança. Ou quando uma cena ou um texto está calcado em roteiros que explodem em diferentes vias, exigindo do ator clareza imediata do que está mostrando e para quem, o que desencadeia, consequentemente, modulações cênicas exigidas pelo instante. Há ainda o trabalho de ator como integrante de um coro, acoplado ao todo, mesmo diante de inúmeras interferências. Todas essas variantes

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demandam um preparo do ator que não está relacionado às técnicas que ele costumeiramente domina e desenvolve para o espaço fechado. A criação das técnicas se faz ao longo do percurso, do processo, e em virtude dele.

Epílogo ou Saída para a esquerda ou A quem interessa dizer que Karl Marx só pode ser entendido em alemão Diante desse caminhar de experimentos com máquinas de intervenção urbana, a Antropofágica tem discutido as possibilidades de articulação e desdobramentos das máquinas em sua relação com a cidade. Um teatro político, divertido, popular e que visa, a todo momento, à pesquisa e à livre experimentação da linguagem. O simples fato de tomar a cidade com uma carroça, dezenas de bicicletas e um coro de 30 pessoas (entre atores e músicos), por si só, causa estranheza na paisagem viciada de carros e de ritmo alucinado. Abrir espaço para a poesia e para a música e ver como isso é estranho ao cotidiano nos faz refletir como é triste uma cidade em que a arte é uma exceção. Chiquinha Gonzaga se encontra, então, com Maiakóvski, cantando textos de Florestan Fernandes, provocando e rindo das idiossincrasias dos donos do poder que gostariam que a arte servisse como mero entretenimento para refrescar o tempo livre de trabalhadores.


Comunicado a uma academia e o espetáculo Primus por Veronica Fabrini29 Resumo: O texto não é um artigo de cunho acadêmico. É antes um pequeno memorial, em primeira pessoa, sobre a criação do espetáculo Primus, adaptação do conto Comunicado a uma academia (de 1917), de Franz Kafka, criado pela Boa Companhia em 1999. Pela natureza do espetáculo, temas como dramaturgia de imagem, teatro físico, teatralidade/ performatividade, teatro-documento, processos colaborativos tecem o contexto dentro do qual se gestou o espetáculo e que acompanha seus mais de dez anos de carreira, com seu elenco original. Palavras chave: processo colaborativo, imagem, cena, palavra, teatralidade. Abstract: The text that follows is not an article of academic grant. It is rather a small memorial, written in first person, on the creation of the play “Primus,” an adaptation of Franz Kafka’s short story “A report to an academy” (1917), created in 1999 by Boa Companhia. By the nature of the play, topics such a dramaturgy of images, physical theater, theatricality / performativity, theaterdocument, collaborative processes, weave the context within which the play was created and that follows the spectacle in its more than ten years of presentations all over the country and abroad, with its original cast. Keywords: collaborative process, image, scene, word, theatrics. Primeiro contato O primeiro contato que tive com o conto Comunicado a uma academia, de Franz Kafka, não se deu no silêncio íntimo da leitura. O conto apresenta a narração em primeira pessoa de um macaco: sobre sua captura na Costa Africana e seu aprendizado para tornar-se “homem”, no sentido de este expediente safá-lo de ser mandado para um zoológico. Conheci-o 29 Diretora artística e fundadora da Boa Companhia (1992). É professora do Departamento de Artes Cênicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde leciona na graduação e atua junto ao Programa de pós-Graduação em Artes da Cena. Graduada em Artes Cênicas (1990) e mestre em Artes (1996) pela Unicamp; doutora em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo (2000).

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Foto de Bob Sousa do espetáculo Terror e misérias no novo mundo. Parte III - Autópsia da República, dirigido por Thiago Vasconcelos e apresentado pela Companhia Antropofágica.


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diretamente no palco, na voz de uma atriz venezuelana, num Festival de Teatro, na cidade de Campinas (SP), em meados dos anos 1980. Ela, uma chimpanzé coquete, de bolsinha anos 1960, figurino Chanel impecável e uma interpretação fabulosa. Falava de como havia conquistado o mundo dos homens. Seus gestos e sua fala eram um amálgama de Chita e Betty Boop. Estava lá, no programa da peça: Comunicado a uma academia, de Franz Kafka, 1917. 1917!!!!! Mas aquilo a que eu assistia, o que eu presenciava na performance da atriz e nas palavras de Kafka era pura modernidade. Como se Kafka falasse diretamente comigo, para minha época. Um macaco e uma atriz falavam de minha época. Essas coisas de bicho, essas coisas da natureza, do vivo, do concreto, da physis passou a ser um tema presente. Mais do que isso, tornou-se uma obsessão. Minha formação profissional não começou com Teatro, mas com a Física, porque queria ser astronauta; depois fui para a Biologia, porque queria entender o vivo, e depois, Ciências Sociais, para entender o homem. Não completei nenhum dos cursos. Da Física, ficou o fascínio pelo movimento e pelos astros, mas tive meu raciocínio lógico completamente derrotado por um “0,5” numa prova de Cálculo II. Mergulhei na vertigem de saber que o espaço é infinito, que o tempo é apenas mais uma dimensão e que estamos num planeta minúsculo imerso numa escuridão pontilhada de estrelas. E que estamos juntos, aqui e agora. Num breve período estudando Ciências Sociais, pensei em Antropologia (o ser humano é um bicho fascinante) e Mikhail Bakhtin me seduzia. Com a Biologia, a história foi um pouco mais longa. Quase completei o curso, sempre encantada com a Zoologia, com a Botânica. As estratégias das flores para atrair seus polinizadores e o comportamento animal atuavam como um chamado e já eram, em si, um ensinamento: a Natureza sabe. Tudo isso foi bruscamente interrompido pela dança, depois pelo circo, e finalmente, pelo teatro. Nessa pequena anamnesis estão os ganchos que me fisgaram desde o início quando assisti a essa encenação do conto de Kafka, Comunicado a uma academia, naquele longínquo festival; hoje a cidade de Campinas não possui sequer um teatro público. Até hoje sou grata àquela atriz, cujo nome não consegui recuperar. A peça e o conto me levavam a pensar o homem nessa passagem de natureza para cultura e, ao mesmo tempo, me lançava no meu tempo, me deixando frente a frente com os resultados dessa cultura: uma civilização desumana, à beira do colapso. Afinal, o que era “ser humano”? E mais: Pedro, o Vermelho, a personagem-macaco do conto de Kafka que narra sua saga, aprende a falar, ingressa no mundo


dos homens e torna-se uma estrela do teatro de variedades. Outro elo, subjetivo e afetivo, me ligava à personagem-narrador de Comunicado a uma academia. Novamente a dança, o circo e, finalmente, o teatro. Mais tarde... A Boa Companhia – grupo formado em 1992, ainda durante a graduação em Artes Cênicas da Unicamp – andava numa crise profunda. O Hopi Hari havia roubado algumas de nossas brilhantes atrizes e outras seguiram por outros caminhos. Tínhamos quatro atores e nenhum espetáculo no repertório. Resistimos. Um dos atores da companhia, Eduardo Osório, trouxe o Comunicado a uma academia como se fosse uma semente. E fomos – os cinco – construindo Primus (como batizamos nossa adaptação), passo a passo, arriscando uma forma de criar mais aberta, apostando no jogo cênico do improviso, numa dramaturgia de imagens, na construção de corporeidades, na potência da música, das canções, desmontando e remontando o texto; enfim, arriscando nossas últimas fichas e nosso gosto por um teatro físico e musical – sem ter a menor ideia de chegada. Nessa época, minha irmã, Maria Isabel Almeida, estava fazendo mestrado em Psicologia Experimental, estudando etologia e investigando o comportamento de primatas em cativeiro. Isso foi fundamental. Ela nos ajudou na construção de uma corporeidade precisa e nos presenteou com uma bibliografia magnífica. Passamos a estudar comportamentos de ritualização em diferentes espécies, lemos alguns artigos sobre primatologia (fiquei impressionada com as repercussões de alguns estudos no campo da ética), tomamos contato com inúmeras experiências de ensino e aprendizagem de linguagem com chimpanzés. Leitores vorazes contaminados por universos desconhecidos e surpresos, íamos descobrindo. Desde a obra de Kafka, até onde ela nos levava. É impressionante o poder do teatro quando nos dispomos de corpo e alma a seguir as sendas abertas por um tema, por um texto. Assim foi com essa redescoberta da Natureza; e, outra vez, senti o mesmo maravilhamento: a Natureza “sabe”. Passando para o lado da “cultura”, ou seja, para o domínio do homem sobre a natureza, a chamada “civilização”, comecei a colecionar fotografias e reportagens de guerras e outras violências em larga escala. Triste constatação: era um material inesgotável. Oriente Médio, Leste Europeu, África, populações indígenas... Vivemos em plena barbárie. A montagem desse arquivo era, e ainda é, pois estamos sempre

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atualizando as imagens na peça, uma tarefa doída. Acredito que esse é um sacrifício que o diretor, o ator deve fazer: afetar-se profundamente por aquilo que quer comunicar. Queria que Primus desse voz a essa dor. Afinal, o conto narra a saga de um macaco que “conquista seu lugar no mundo dos homens”. É preciso saber o que é esse “mundo dos homens”. Pedro, o macaco capturado na Costa do Ouro, para escapar do jardim zoológico, aprende a agir e a falar como os homens. Escapa da jaula e torna-se um sucesso do teatro de variedades. Pensando nesse tipo de teatro, começamos a colecionar gravações de programas de auditório e uma infinidade de sucessos da mídia. Bobagens igualmente intermináveis. Ambas parte da nossa “natureza humana”. E seguimos numa viagem internáutica pelas imagens de atrocidades com animais, pelas pesquisas comportamentais, investigando sobre a expressão das emoções e seu papel na evolução, sobre a questão da autoconsciência do mundo animal e das implicações éticas disso. Enfim, rastreando as emanações do conto, para lidar com a criação da cena. Nossa principal força motriz foi a construção (descoberta?) do corpo-animal e do corpo-cultura. Nas oscilações entre essas duas corporeidades é que se desenrolava a trama desse conto, irônico e brilhantemente racional, que seria encarnado e performado por um... macaco. Os quatro excepcionais Pedro encontrou ressonância imediata nos quatro atores. Vitalidade. Era preciso buscar uma vitalidade de qualidade animal, instintiva para os corpos. Assim, buscamos a capoeira e a acrobacia. Paradoxalmente, era preciso também preservar o gosto pela razão irônica e estranhamente poética de Kafka. A conexão com nosso tempo foi fundamental. Queríamos muito falar sobre aquilo, mantendo-nos afinados com a voz de Kafka. Os quatro rapazes sentiam suas – cada um à sua maneira – as palavras de Pedro, especialmente em sua passagem para o mundo dos homens, quando ele se transforma numa estrela do show bussiness (nossa versão eleita para o teatro de variedades). Ao performarem o narrador-macaco, os atores expurgavam sua própria história. Comunicavam para a academia sua própria história, nas palavras escritas em Praga, em 1917. É impressionante essa atualização – no sentido de trazer para o presente – esse diálogo entre tempos que a cena permite. Ela é capaz de operar a concomitância de planos, pois nela espaço e tempo são dimensões


intercambiáveis. A cena nos permite colocar em consonância momentos singulares do tempo-espaço. No caso de Primus, sobrepõe Praga de 1917 a São Paulo do início do segundo milênio. E podemos conversar com essa voz que vem do passado, voz visionária, voz de um artista inspirado. Em Primus, fervorosamente conversamos com Kafka. O ritmo, o som de uma peça é, para a Boa Companhia, um dado fundamental para começar a criar. Como se peças e temas, à semelhança da música, possuíssem um tom e um andamento. Por exemplo, um conto em dó menor, em três por oito, andante. E então vieram os tambores, os djembés, os ritmos africanos, transportando-nos para a Costa do Ouro (onde o macaco Pedro é capturado) pelo som do couro dos espíritos. Outro ponto no trabalho da Boa: o corpo do ator necessita gravar em suas entranhas experiências reais (ou o mais próximo de...). A sala de ensaio é um risco quando se torna a única e asséptica experiência. O corpo precisa do real; seus cinco sentidos precisam “beber” o real, abastecer-se. Confiar na etimologia de saber-sabor. Apreender com os sentidos. Resolvemos passar uns dias “junto à natureza”, tocar tambores para as árvores, tomar banho de cachoeira, essas coisas que os atores costumam fazer e que é uma das coisas mais gostosas da profissão: brincar de habitar “outro espaço”. E isso é coisa séria, seriíssima. Ou, como diria Rita Lee, “brincar de ser sério e levar a sério a brincadeira”. Porque foi também uma experiência engraçada: “pagar o mico” de ficar dando cambalhotas e guinchos simiescos na praia, os insetos no meio do mato, alguns tombos na cachoeira, deslocamentos do bando aos urros à beira-mar, espalhando água, ou calmamente catando piolhos no couro do outro, tranquilos sob o sol. Ficou a lenda que por ali, na Rua 26, estavam hospedados uns rapazes “excepcionais” (ainda não era uso comum a tal “necessidades especiais”); quatro marmanjos com hábitos e comportamento muito estranhos... A excepcionalidade foi se transformando em técnica, em risco, em experimentos com quatro corpos, quatro corporeidades que fundam a dramaturgia da peça: o corpo-macaco, o corpo-rústico, o corpo-homem-normal e o corpo-superstar. Depois dos tambores veio o sapateado, conectando-nos com um pulso e uma corporeidade de music hall. Dos grunhidos foram aos poucos brotando as canções (Don’t fence me in, de Cole Porter, King of the Bongo, de Manu Chao) e o canto lírico (Carlos Gomes e Villa-Lobos). Assim como o macaco, a linguagem da cena também “civilizava-se”. Para refinar o repertório na corporeidade animal, em especial sob o bizarro e triste comportamento alterado pelo cativeiro,

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passamos a ser visitantes assíduos do Zoológico de São Paulo, observando os diferentes primatas, especialmente aquela população que minha irmã estudara com afinco e sobre a qual estava escrevendo sua dissertação. Permito-me um pequeno aparte que me afirma e assegura sobre “o que pode o corpo” (e o teatro como seu espaço privilegiado). Vale também como um elogio aos atores. Quase dez anos depois dos trabalhos realizados para a criação de Primus, apresentamos a peça em Brasília. Lá, tivemos na plateia um renomado zoólogo, professor da Universidade de Brasília, colega querido dos antigos tempos na Biologia. Ao final do espetáculo, orgulhosa pela pesquisa realizada na área do comportamento animal, contei ao professor um pouco sobre o trabalho. Antes mesmo que eu entrasse em algum detalhe, ele me interrompeu: “[...] e eu digo exatamente a espécie e qual a população que você observou.” Para o meu pasmo, ele reconheceu, macaco por macaco, todas as nossas referências do Zoológico de São Paulo, onde ele havia estagiado. Falamos de cada macaco como se comentássemos de antigos conhecidos. Fiquei impressionada com esse fato. Ficou gravado no corpo dos atores, que nunca se preocuparam em um trabalho depurado de mímesis, algo que, de tão singular, permitia reconhecer a fonte, depois de quase dez anos. Com a peça, podíamos dar voz a esses macacos que há mais de dez anos brincam tristonhos em seus pequenos paraísos artificiais. Dez anos Primus estreou em outubro de 1999; daí em diante, levounos a conhecer boa parte do interior paulista, da grande São Paulo; apresentamo-nos em quase todos os Estados do País e em alguns cantos do Velho Mundo. Suzano, Mauá, Limeira, Cravinhos, Rio Branco, Patos, Arco Verde, Cuiabá, Erlangen, Lisboa, Moscou. Sempre refazendo, sempre transformando, tentando outras línguas, outros públicos e espectadores com um enorme “s” plural. Encenamos trechos da peça em alemão, em inglês, francês, espanhol, russo, descobrindo que essa história encontra eco em muitos lugares. Rendeu ainda três dissertações de mestrado (Eduardo Osório, Alexandre Caetano e Daves Otani) e duas teses de doutorado (Eduardo Osório e Daves Otani), todas elas na Unicamp. Na véspera da estreia, uma incerteza: “Será que alguém vai entender isso?”. “Isso”? Afinal, o que é que estamos fazendo? Mas o fato é que a peça tem sua autonomia e sua força de querer dizer algo, de


precisar dizer algo. Ela busca um ouvinte, ela grita por um ouvinte. E os encontrou em diversos lugares, com os mais diversos públicos. Gostamos de imitar macacos. Macacos gostam de imitar. Sentimo-nos domados, domesticados. “Tá dominado, tá tudo dominado!” Felicidade do artista: encontrar um ouvinte! Impulsionados por outros contos e encenações que se seguiram ao Comunicado a uma academia, formando nossa Trilogia K (Um artista da fome, de 1924, e Josefina, a cantora ou o povo dos ratos, de 1927) há, em Primus, uma denúncia, revertendo (pois Primus é um espetáculo...) a ideia de espetáculo como representação, como inversão concreta da vida, ou movimento autônomo do não vivo. No percurso que fazemos do conto de 1917 até a nossa encenação em 1999, e nos dez anos ininterruptos de apresentações que se seguiram, Primus foi se configurando também como um espetáculo sobre a “sociedade do espetáculo”, expressão cunhada por Guy Debord, sociedade essa que substitui a imagem-potência pela imagem-simulacro. Dez anos nos quais a espetacularização da sociedade cresceu vertiginosamente – daí a empatia com a peça. Em contrapartida, do lado de cá da cena, de dentro dela, cada vez mais buscamos a não representação e a criação de imagens vitais que não estão no lugar de coisa alguma, imagens que não são nem sentido nem representação, mas que são jogo, fluxo e metamorfose. Encenação e literatura, radiância das palavras e emanações das imagens Gosto muito do desafio de passar de uma linguagem literária para uma linguagem cênica. É como projetar no espaço-tempo o imaginário que se gesta na solidão e na intimidade da leitura. As palavras de uma leitura apaixonada incendeiam as imagens interiores, que crescem, ganham autonomia e desejam projetar-se na cena. Um conto é como uma pedra bruta. Mais fechado que um tema, mas muito mais aberto que uma peça já escrita para ser encenada. Para uma dramaturgia que preza tanto as imagens quanto as situações dialógicas, ou mesmo a narração, o conto é um material estimulante, pois há uma “fala” das imagens: sonoridades, ritmos, formas, silêncios, atmosferas. Tenho imenso prazer em ir descobrindo com os atores como escrever diretamente na cena, alimentada pela leitura, pelas palavras,

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retroalimentada pelo jogo dos atores jogando com a imaginação ativa. A paixão pelas imagens brota das palavras precisas, das metáforas que estabelecem conexões entre palavras e imagens. Gosto também do desapego que essa ação de escrever na cena pede, pois se parece, em sua fugacidade, com o escrever na areia, no vento ou para as ondas desmancharem, ou aquela meditação dos monges budistas de compor as mais incríveis mandalas de areia para depois desmanchá-las. Esse desapego é um grande exercício e um grande desafio para o diretor. Foi um desafio com Primus, e, depois, com toda a Trilogia K, pois eu sou apaixonada pelas palavras de cada conto. E é preciso cuidar para que isso não pese na cena, senão, semelhante a uma mãe exagerada, superprotege-se, tira-se o risco, fala-se por ela em lugar de deixar que ela (a cena ou a imagem, pois para mim são palavras quase sinônimas) e ele (o conto) falem por si, libertos, jogando com os atores no momento da apresentação. Esse trabalho com os contos de Kafka também apresentava um grande desafio na relação com os atores, pois não há propriamente personagem, e isso deixa os atores, no mínimo, desconfiados... Atores se sentem protegidos pelas personagens. Por um lado, foi um processo difícil de conduzir. Por outro, é um processo riquíssimo, pois os atores têm de se impregnar de toda a obra, têm de arriscar uma jornada para os labirintos do cérebro do escritor, buscar aproximar-se ao máximo da sensibilidade (e da linguagem) daquele que gerou o conto, e cada detalhe da encenação tem de estar impregnado de sentido e fugir do “explicativo”, de querer explicar a obra. Não é “embrulhá-la” numa forma cênica, mas fazer com que a cena “desembrulhe” a obra e exponha-a novamente ao caos das sensações, à fugacidade do momento, aos riscos da apresentação e não à segurança da representação. É claro que isso sempre acontece, em maior ou menor grau, com qualquer encenação. Desde o texto mais tradicional da dramaturgia “bem- feita” às experiências mais radicais. Apenas, na minha experiência, foi a encenação de contos que me ensinou isso. São múltiplas as portas de entrada para um texto ou uma ideia. Uma imagem é sempre um início fundamental, mas uma imagem não é uma coisa simples. Aqui não estou falando da imagem, no sentido de uma visualidade. Essa imagem da qual falo é dinâmica e, muitas vezes, condensa sentidos e sensações contraditórias. Aliás, uma imagem é antes uma experiência. Ela se oferece, convida a uma experiência e não a uma busca de sentido. Tem de ter o poder de condensar muita informação, de condensar possibilidades de experiências sensíveis. Uma imagem, assim


como eu a entendo, é algo gerador e não estável; não é uma ilustração nem uma coisa puramente visual. Claro que gosto de cercar as formas visíveis com uma referência visual (fotografia, cor, forma, textura) e uma sonora (música, sons); às vezes, com palavras, pequenas frases. É da alquimia de tudo isso que nasce uma imagem que depois vai ser destrinchada, desenovelada no transcurso dos ensaios até vir a ser a encenação, a imagem espalhada no tempo, com suas metamorfoses, seus ritmos, suas configurações, seus desaparecimentos e reconfigurações. Na Boa Companhia, costumamos trabalhar associando imagem visual, música, sons, qualidades sonoras e frases do texto com o qual estamos trabalhando, ou frases poéticas que possam nos evocar algo do tema. Outra característica dos pontos de partida para um trabalho é a afetação disso tudo no corpo; como esses “detonadores” reverberam no corpo. Como se buscássemos “encarnar” (fazer habitar o corpo) essas imagens. Afetar também nosso coração. Peço isso dos atores, que se coloquem em prontidão, também do ponto de vista afetivo, em relação ao material trabalhado. Só assim podemos plasmar e irradiar uma ética “quente”. Há um jogo entre essas “figurinhas” (imagens, sons... ou até mesmo metáforas, símbolos, arquétipos) e o concreto do espaço-corpo na potência do acontecimento. Esse “duplo” daquilo que pretendemos configurar em forma cênica deve funcionar como um impulso e não como um modelo. Uma espécie de “portal” para o campo ficcional, sem, no entanto, deixar de habitar o acontecimento. Estar presente nesses planos, buscando criar um fluxo que atravesse sua presença e conecte os três planos: o da cena, o da ficção e o do espectador, da testemunha. Boa Companhia Confiança e companheirismo. Essas são qualidades para percorrer vinte anos de grupo e dez anos de Primus. O nome da Companhia vem daí: “Boa Companhia”. Vivemos nessa era pré-apocalíptica e queremos fazer uma arte pré-apocalíptica. Tenho implicância com esses “pósqualquer-coisa”, “pós-tudo”. Quero o pré. Gosto dessa vertigem da beira do abismo, de arriscar um porvir. Para isso, para inventar esse adiante, para se acelerar o caos, é preciso confiança. Vivemos numa época triste, muito triste. É impressionante o grau de degradação a que a humanidade chegou. Vejo as guerras (as grandes e as pequenas), o extermínio de povos e de culturas, a destruição do planeta, a ganância desmedida dos

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poderosos. É um mundo em que as forças da criação perdem para as forças da destruição, do isolamento. Um mundo que pertence ao “Número um”, aos “winners”, não pode ser o mundo da Arte, da Poesia, que é o mundo do múltiplo, do único, do singular, da diferença, do detalhe, do sutil, do introvertido, da intimidade, da solidariedade. Criar é aliar-se ao diferente (daí o trabalho mito-guiado pelos dois grandes arquétipos anima-animus), é fecundar-se pela diferença e não aniquilá-la. Há tensões em diferenças, mas o que o teatro me ensinou é que tensões são geradoras, criadoras e que é possível vivê-las sem relações de poder, mas com fluxos e colaboração de potências. Por isso, o companheirismo, a amizade, a gentileza.

FICHA TÉCNICA Espetáculo: Primus Atuação: Alexandre Caetano, Daves Otani, Eduardo Osório e Moacir Ferraz Direção/adaptação: Veronica Fabrini Trilha sonora, cenário, figurino: Boa Companhia Desenho de luz: Marcio Aurelio


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Foto de Bob Sousa do espetáculo Cidade Fim. Cidade Coro. Cidade desmanche, dirigida por José Fernando Azevedo. Em cena Vinícius Merloni e Tetha Maiello.


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Performance feminista e performatividade de gênero: relato da oficina mulheres performers por Lúcia Romano30 Resumo: O texto apresenta o relato da experiência de oficina realizada na IV Semana de Estudos Teatrais, coordenada por Lúcia Romano, cuja proposição foi a experimentação de procedimentos encontrados nas obras de algumas performers mulheres que questionaram, em suas criações, as identidades de gênero e a dominação masculinista nas sociedades contemporâneas ocidentais. A atividade relacionou a arte feminista, a performance e o conceito de performatividade de gênero, de Judith Butler. Palavras-chave: arte feminista, arte da performance; performatividade de gênero; processos de criação.

Bacharel em Teoria do Teatro pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), Mestre em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e Doutora pela ECA-USP. Tem experiência nas áreas de Artes Cênicas e Dança, com ênfase em interpretação teatral, corporeidade, gênero e processos de criação. Professora do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (IA-Unesp). Atriz fundadora dos grupos Barca de Dionisos e Teatro da Vertigem. Atua como atriz e produtora na Companhia Livre de Teatro e na Mundana Companhia de Teatro, ambas localizadas em São Paulo (SP). 30


Abstract: The text reports the experience of the workshop held at the Fourth Week of Theatre Studies, coordinated by Lúcia Romano, who proposed the experimentation of procedures found in the works of some women performers who questioned in their creations gender identities and masculinist domination in contemporary Western societies. The activity built connections between feminist art, performance art and the concept of performativity of gender, by Judith Butler. Keywords: feminist art, performance art, gender performativity; creative processes. “Mulheres performers” foi o título da oficina realizada na IV Semana de Estudos Teatrais do Instituto de Artes da Unesp, em 2012. A discussão bastante ampla sobre performatividade sugerida na Semana pedia um corte mais incisivo para o desenvolvimento de uma atividade prática em tempo limitado. A relação estreita entre performance art e as artistas feministas, principalmente a partir da década de 1960, foi o enfoque escolhido, por ser um exemplo profícuo da conjugação entre linguagem artística, posicionamento diante do mundo da arte e ação política; permitindo, ainda, a exploração do conceito de performatividade de maneira diferenciada daquela derivada diretamente da performance art (nesse texto, traduzida como “arte da performance”). O intuito da oficina foi, então, oferecer material para a discussão da definição de performatividade a partir da concepção de J. L. Austin e segundo Judith Butler. Nesse aspecto, o título ideal da oficina teria sido “Performance feminista e performatividade de gênero”, porque, para Butler, a discussão sobre gênero depende da ideia de performatividade. Segundo a autora, performatividade de gênero corresponderia aos atos e comportamentos (não apenas de fala) e comportamentos reiterativos, construídos pela incorporação da lei (uma norma ou um conjunto de normas), permitindo a definição dos gêneros e, a partir destes, das relações sociais. Correspondendo a performatividades, os gêneros não poderiam ser tomados como naturais, nem diretamente alinhados ao sinais de sexo biológico (nem mesmo os primários), ao desejo ou ao comportamento sexual. Três frases foram apresentadas no início da atividade, com a finalidade de situar o universo de referências com o qual trabalharíamos e, ao mesmo tempo, inspirar a experimentação: “Meu corpo em ação não está em relação, mas é relação ele próprio”, de Gina Pane; “Seu corpo é um campo de batalha”, de Barbara Kruger e “O pessoal é político”, de Carol Hanisch.

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Pane, performer nascida na França, declara o lugar essencial do corpo para a significação da sua obra. Visto dessa maneira, o corpo não seria “suporte” ou “objeto” de algo; não sendo apresentado “como se” em relação, mas sendo a relação em si (seja entre a obra e seu sentido, seja entre o “evento artístico” e o espectador). Pane, seguindo esse norte, expunha o próprio corpo em situações de sofrimento físico, em rituais públicos de sacrifício e de automutilação. Suas ações performáticas, dos anos 1970 até o fim dos 1980, poderiam ser lidas como protestos intensos, ou respostas catárticas ao mundo, em toda sua potência de violência e dor. No quadro de sua autoria Your body is a battleground [Seu corpo é um campo de batalha] (1989), Kruger sobrepõe a um rosto de mulher os dizeres claramente propagandísticos que dão nome à obra, formulando um chamado à luta e à resistência. Reutilizando a linguagem da publicidade, Kruger declara sua mensagem de apoio ao direito de aborto. A defesa pela livre escolha da mulher, ilustrada pela face individual, traz de fato uma mensagem de fundo coletivo: a luta de todas as mulheres se dá no corpo e é pelo corpo e em favor dele que a batalha deve acontecer. Ainda que seja uma imagem estática, a obra-cartaz remete à ação política para a qual foi criada (a passeata pro-choice), provocando o espectador a abandonar a imobilidade da mera apreciação artística. A frase “o pessoal é político” dava título e resumia a ideia principal do texto de Hanisch (integrante do Women’s Liberation Movement – WLM), publicado em 1970, nos Estados Unidos da América. “The personal is political” encontrou inúmeras reimpressões e alcançou tal amplitude que se tornou slogan do tipo de ação que caracterizaria alguns movimentos das mulheres a partir de então. O texto defendia aspectos norteadores das ações do WLM, extrapolando seus limites e influenciando a criação artística, ao abrir caminho para a inclusão do chamado depoimento pessoal na obra de arte de uma maneira que, mesmo entre as criadoras de vanguarda, era ainda pouco praticado. Hanisch enfatiza em “The personal is political” que os chamados grupos de “formação de consciência” dos anos 1960 objetivariam não a terapia, mas a política, porque almejavam a criação de soluções coletivas com vistas à mudança de condições objetivas, e não o ajuste pessoal às situações problemáticas vividas pelas mulheres participantes. Esses grupos seriam, portanto, uma estratégia para revelar que as questões relativas às mulheres não seriam exclusivas desse ou daquele indivíduo, mas de todas as mulheres. Na mesma linha de pensamento, soluções políticas não


nasceriam senão da partilha das experiências pessoais, “acordadas pela fala”; criando um sentido de comunalidade entre as mulheres ali engajadas, visto que todas (de um modo ou de outro) seriam profundamente marcadas pela desigualdade entre os gêneros e pela ação coercitiva das normas construídas por uma sociedade patriarcal e masculina. Além disso, a frase perpetuada por Hanisch deixava claro que, para a ação política, todas as pessoas seriam bem-vindas, incluindo aquelas que se sentiam excluídas da discussão política de esquerda mais baseada na luta de classes. Assim, Hanisch dialogava também com os chamados movimentos feministas mais radicais, que encaravam a orientação da Pro-Women Line (um braço independente que veio a constituir o WLM) como excessivamente “psicológica” e encerrada na chave “sociológica”. A partir do estímulo das frases, a oficina propôs a construção de um caminho para a discussão da performatividade de gênero (tanto gênero masculino quanto gênero feminino, à escolha dos participantes homens e mulheres), partindo de um “despertar pessoal” para a maneira como as construções de gênero e a desigualdade entre os sexos apresentam-se na vida de cada integrante da atividade. A partilha do breve relato das perspectivas pessoais conduziu ao desenvolvimento de dinâmicas em grupo, com o objetivo de expor cenicamente os depoimentos individuais tornados coletivos. A seguir, a observação de “casos” retirados de diferentes estratégias de criação de onze performers mulheres conduziu à formulação, pelos participantes, de um programa de ação performática. Tais ações roteirizaram modos de (a)presentação do corpo na cena, em diálogo com suas representações socioculturais de gênero, no terreno híbrido entre teatro, artes visuais e performance. Assim, além de fundir os limites do pessoal e do coletivo, do artístico e do político, as ações construíam pontes entre os artistas-participantes da oficina e a história da performance dos anos 1960 até meados dos 1980, nas obras e em depoimentos artísticos e pessoais de Carolee Schneemann, Gina Pane, Ana Mendieta, Hannah Wilke, Marina Abramovic, Suzanne Lacy, Adrian Piper, Coco Fusco, Linda Montano, Eleanor Antin, Tanya Mars e Orlan. Registro das atividades desenvolvidas com os participantes em Urdiduras da Performance

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Fase 1 – Aquecimento 1. “Abrir a percepção para o que está acontecendo, continuamente” – Andando pelo espaço, olhar o espaço; olhar o outro; nunca tocar em ninguém; depois, sempre tocando em alguém.

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2. “Mostrar-se versus ver o outro” – Formar dois grupos, em filas paralelas. No grupo A, alterar detalhes de si mesmo (posição, roupas etc.). Um parceiro da outra fila (grupo B) deve apontar onde ocorreu a alteração. 3. Mesmo jogo, agora em grupo, formando quadros. Dois grupos fazem o jogo dos sete erros. A faz um quadro, composto de posição 1; B fecha os olhos enquanto A faz novo quadro, composto de posição 2. B aponta os sete erros. 4. “Relação no limite do jogo/conflito” – Duplas: ocupar o espaço do outro (trabalhando no plano do chão). Depois, pessoa A posiciona-se de pernas abertas sobre pessoa B, que fica deitada de costas no chão. Os dois devem mover-se pelo espaço, sem que a pessoa B saia do plano do chão e sem que a pessoa A perca sua posição de dominação. Ainda em duplas, A coloca todo seu peso sobre o corpo de B, que permanece no chão. Sem que se possam tocar com as mãos, B deve procurar escapar de A. Fase 2 – “Quem sou eu?” 1. Individualmente, cada participante deve fisicalizar e sonorizar respostas às provocações sobre a compreensão de si expostas nas seguintes perguntas: a) Qual adjetivo melhor define sua essência? b) Como você se sente/percebe? c) Como veem você? d) Qual parte do corpo melhor caracteriza você? e) Conte sua biografia (dois momentos marcantes de vida) em palavras ou gestos. Fase 3 – “Da tomada de consciência à constituição de uma comunalidade” 1. Em roda (em grupos), ou usando livremente o espaço da sala,


apresentar-se, usando as respostas anteriores. Não fixar uma sequência única, mas buscar contar/expor “quem sou eu?” de maneiras diferentes, considerando também o que se transforma, dependendo de quem recebe a informação (para quem ela é contada/exposta). 2. Em grupos menores, estabelecer uma rápida troca de informações, respondendo aos estímulos seguintes: a) O que oprime você? Escolher um fato (narrar; evocar). Experimentar evidenciar em relação a quem ou o quê a relação de opressão foi estabelecida. b) No grupo, buscar relações e maneiras de fundir ou contrapor as respostas apresentadas. c) Apresentar para outros grupos. Na apresentação, feita em grupo, observar qual é a posição do espectador: quem/o que ele é no momento da “performance”? Fase 4 – “Da experiência no corpo à ação performática” Cada participante recebe, escrito num papel, uma série de Objetivos Gerais e um Caso (de A a L) e, a partir deles, propõe um programa de ação pessoal que realize os procedimentos ali descritos. Obs.: O programa de ação poderá ser efetuado por um ou mais performers. Ele deve, como um protocolo de experimento científico, incluir: 1. Objeto da ação 2. O lugar da ação 3. A ocasião da ação (um quando amplo) 4. O momento da ação (um quando restrito) 5. Espaço para a indeterminação e risco Objetivos gerais - Parodiar um discurso falocentrista. - Revelar a assimetria da percepção da sexualidade nas artes. - Questionar a tensão entre repressão e desejo inscrita no corpo. - Evocar o prazer e o desejo do espectador.

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- Expor sua corporeidade. - Criticar as estruturas de poder. - Criticar o sistema de representação nas artes e na cultura. Caso A (inspirado na obra de Carolee Schneemann) - Apresente seu corpo de maneira explícita. - Encontre formas de materialização de seus conteúdos não facilmente socializáveis (desejos, pulsões, sonhos…).

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- Inverta a expectativa do observador (manipulando aspectos da recepção: ponto de vista; distância-proximidade; duração; acordo ficcional). Caso B (inspirado na obra de Gina Pane) - Ritualize experiências extremadas, despertando a sensibilidade do espectador e formando com ele uma “comunalidade pulsante”. Caso C (inspirado na obra de Ana Mendieta) - Dialogue seu corpo com a paisagem. - Encontre registros e rastros no entorno do desaparecimento do seu corpo. - Usar rituais de sua cultura original (de onde você veio). Caso D (inspirado na obra de Hannah Wilke) - Critique os padrões do corpo feminino. - Ofereça seu corpo à exposição, ressaltando sua fetichização (como objeto de desejo). - Ofereça seu corpo à exposição, expondo sem pudor seu aspecto abjeto (desmascare). Caso E (inspirado na obra de Marina Abramovic) - Desafie os limites do corpo, em ações vigorosas e chocantes. - Transforme a realidade corpórea e a dos objetos. - Rompa a ordenação temporal linear. - Rompa o tempo convencional da recepção. - Privilegie a metonímia à metáfora. - Provoque o espectador a dominar a situação.


Caso F (inspirado na obra de Suzanne Lacy) - Encontre o eco comunal da experiência individual. - Aborde uma questão social e atue sobre ela. - Envolva o grupo todo na ação. Caso G (inspirado na obra de Adrian Piper) - Procure um ambiente pouco usual para a intervenção artística. - Aborde problemas de identidade, fundindo demarcadores sociais diversos (gênero, raça, cor, classe social). - Estabeleça uma relação direta com o espectador. - Denuncie. Caso H (inspirado na obra de Coco Fusco) - Use narrativa ficcional (como um “diorama vivo”, sem bonecos, mas com performers). - Misture ficção e realidade. - Use os celulares, iPods e outras tecnologias disponíveis na sala para conversar com os espectadores sobre a situação ficcional criada. Caso I (inspirado na obra de Linda Montano) - Traga um aspecto da sua vida ordinária para a ação performática. - Traga a ação performática para sua vida ordinária (numa performance que dura um, dois ou mais anos). - Revele uma experiência traumática ou de perda. Caso J (inspirado nas obras de Eleanor Antin e Tanya Mars) - Crie personas desdobradas de você mesmo. - Fixe essa persona e experimente essa mutação de identidade. - Junte essa dissimulação aos lugares em que a cultura e a tecnologia constroem traços do real. - Crie tramas por meio dessas outras aparências. - Utilize toda sorte de “estilos teatrais menores” – do burlesco ao quadro vivo e ao drag. - Desarme o espectador com o humor e a ironia.

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Caso L (inspirado na obra de Orlan) - Transforme seu corpo. - Misture o belo e o monstruoso. - Teatralize essas intervenções na imagem de si mesmo. - Faça da transformação radical de si mesmo um espetáculo sobre a ausência de naturalidade nos ideais de beleza (e de feminilidade). - Devolva o olhar de fetiche do espectador, tornando-se agente da ação.

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- Some à linguagem visual e sonora uma “retórica da pose” (congelada em quadros, ou estendida no tempo, como uma dança ou uma cena teatral). Fase 5 – Elaborados os planos por escrito, cada participante lê para o grupo de participantes seu projeto de ação performática Embora as artistas investigadas na atividade não visassem à formulação de uma programática rígida, a observação de cada um dos Casos e sua manipulação por parte dos participantes da oficina permitiu que viessem à tona as diferentes soluções encontradas pela arte feminista para questionar os cânones artísticos, os papéis sexuais e as políticas de identidade. A centralidade do corpo, seus usos e transformações, assim como o emprego da espacialidade e da visualidade, a utilização do texto e dos elementos “dramáticos” e a revisão do lugar do espectador na performance feminista foram aspectos que também ganharam relevo. Perpassando todos esses aspectos, a performatividade de gênero foi o tema de fundo, tanto nas dinâmicas sugeridas na oficina quanto nos programas de ação escritos pelos participantes. O terreno da performance foi o espaço tomado por nós para a batalha dos/nos corpos, na guerrilha contra a inconsciência amplamente apoiada pelo isolamento dos indivíduos e pela naturalização das identidades de gênero. A performatividade de gênero foi a chave para o rompimento com a reiteração das tecnologias de opressão, transformadas em material artístico em nossos planos de ação performáticas.


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Bibliografia bibliográfica ROMANO, Lúcia Regina Vieira. De quem é esse corpo? – a performatividade do feminino no teatro contemporâneo. Tese apresentada à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Doutor em Artes Cênicas, São Paulo, ECA/USP, 2009.


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Bloco III: PROCESSOS PEDAGÓGICOS EM PERFORMANCE: O(A) PROFESSOR(A) PERFORMER

Foto de Bob Sousa do espetáculo Luís Antônio-Gabriela, dirigido por Nelson Baskerville, apresentado pela Companhia Mungunzá de Teatro. Em cena, Marcos Felipe no papel de Luís Antônio e Gabriela.


Texto de apresentação do terceiro dia de encontros: desenforma por Milene Valentir Ugliara31 Processos pedagógicos em performance na pauta do último dia de encontro. Diante de questões referentes à forma, ao corpo, às relações com o outro e com a noção de “junto”, formuladas nos dias anteriores, tentei me deslocar do papel consagrado de “mediadora da mesa” em busca de um desafio: propor ao público e aos convidados uma nova configuração do espaço que melhor os agradasse, uma vez que as arquibancadas eram modulares e possuíam rodas; com a movimentação, criou-se um espaço circular, e os convidados acomodaram-se entre os participantes – redução das distâncias. Naira Ciotti refletiu sobre o híbrido professor-performer. Apresentou referências brasileiras em performance alimentadas pelas experiências de Lygia Clark e de Hélio Oiticica; sobre as influências estrangeiras, propôs canibalizar questões e críticas para nosso contexto. Para ela, o professor-performer atua também na micropolítica, e o processo educativo ocorre entre os dois: o professor e o performer, o regional e o estrangeiro, ou mais elementos envolvidos, bem como na retroalimentação que se dá entre eles. Carminda Mendes André, trajando pijama, referindo-se a uma intervenção realizada por ela, trouxe um subtexto: em que lugares nos sentimos “em casa”? Apontou para a “sociedade de controle” que permeia as relações dentro do espaço institucional e fora dele, e, diante disso, ela falou sobre a importância de se intervir no entorno e dentro do espaço institucional, à procura do contrafluxo, do diálogo, da ressignificação das relações. Mariana F. M. Monteiro trouxe suas vivências na cultura popular. Onde estaria a performatividade nesse campo? Na temporalidade cíclica e na quebra da mania do novo – fazer o mesmo com novidade –, no viver comunitariamente a festa e não transformá-la em objeto estético ou obra acabada, nos agenciamentos para a convivência e no “fazer fazendo”.

Por fim, Marcos Bulhões discorreu sobre a performance no Brasil

Performer e arte educadora, atua principalmente com intervenção urbana, video e xilogravura. É integrante do Coletivo Mapa Xilográfico dese 2006. Atuou no Grupo Alerta! de intervenções urbanas de 2004 a 2008. É mestranda do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (IA-Unesp) com pesquisa na área de arte educação.

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e as influências oriundas também das culturas indígena e popular, em contraposição à crítica que seria unicamente uma estética importada dos Estados Unidos da América e que, portanto, traria consigo a ideologia dominante. Diante dessa questão, Bulhões atentou para o ato estético/ético que transcende a forma, pois tanto a performance quanto qualquer outra manifestação artística podem apontar para a ideologia dominante, ou para o discurso redentor da “iluminação” das consciências ou, diferente disso, podem buscar a comunicação com o outro e o compartilhar da experiência.


O mestiço professor-performer por Naira Ciotti32 Resumo: Os processos de retroalimentação serão vistos aqui como de natureza comunicacional, ou seja, como o signo pode ser entendido num movimento de mestiçagem. Também temos de analisar que os processos de retroalimentação, em geral, podem servir como metáfora para o hibridismo proposto aqui entre a Pedagogia e a Arte, de um ponto de vista que busca convergir aspectos de cada um dos elementos e propor a migração entre eles. Dessa maneira, entendemos que o professor alimenta-se do performer, que, por sua vez, se alimenta das informações e estratégias das políticas, dentre elas a Educação. Entendida a partir da corporização, a proposta do híbrido professor-performer transforma a sala de aula em um lugar complexo e aberto a experimentações. Palavras-chave: retroalimentação; processos de criação; processos pedagógicos, hibridismo. Abstract: The definition of teacher performer is that it is also a teacher and performer. Teacher performer is a kind of mathematical formula, so to speak, with two elements in feedback: These are processes of hybridization between the pedagogical and artistic in contemporary art. The feedback processes will be seen here how nature of communication, i.e. how the sign can be moved. We also have to analyze that feedback processes, in general, can serve as a metaphor for hybridism proposed here between Art and Pedagogy from a viewpoint that seeks to converge aspects of each of the elements and propose the migration of these together. Thus, we believe that the teacher feeds the performer, which in turn feeds the information strategies and policies, among them education. Understood from the embodiment, the proposed hybrid performer teacher, the classroom becomes a place liability on a complex place and opens to experimentation. Keywords: Feedback; creation processes; pedagogical processes, Hybridism.

Professora-performer. Desenvolveu pesquisa de doutorado sob orientação dos professores Renato Cohen e Christine Greiner, no Programa de Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. 32

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A definição do termo professor-performer é a de que se trata de um professor que também é performer. Professor-performer é uma teoria da retroalimentação submetida, como afirma Amálio Pinheiro, a outra paisagem, pela mestiçagem: Incluamos aqui o corpo, com suas dobraduras e curvaturas, como lugar de convergência dos códigos e séries da cultura: voz, dança, performance, alimentação, vestuário, mobilidade urbana (PINHEIRO, 2009).

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A transmissão de conhecimento vem se alterando na medida em que a própria noção de conhecimento deixa de pertencer a uma área restrita, como a Pedagogia. Para ampliar as noções de conhecimento, pode-se recorrer à Filosofia, Psicologia, Teorias Comunicacionais, Neurologia, Informática e Ciências Cognitivas. Quando um professor está diante dos alunos, ele tem condições de usar vários elementos, como a voz, o corpo e o lugar onde está para comunicar aquilo que pensa aos corpos que estão diante dele. Vamos comentar a atuação do professor como performance em três situações de aula. O primeiro caso é o da ausência quase completa de performance. A professora da Escola Fundamental, em geral, cumpre etapas predeterminadas. Apresenta aos alunos exercícios que ela considera serem os mais adequados para que eles compreendam o universo da matemática, o mundo da matemática, por exemplo. Ela sabe, de antemão, qual é a resposta certa, o que deve fazer para que o aluno acerte os exercícios, aquilo que o aluno deve memorizar e compreender. Seus sinais são o do certo e do errado. Os alunos encontram sempre o mesmo corpo numa trajetória uniforme. Se os alunos “atrapalharem” o andamento inercial do curso, a professora de matemática reage à altura, seu corpo se enrijece, seus punhos se fecham, sua boca funciona com grande velocidade. Seus sinais e a trajetória interrompida pela performance dos alunos podem causar desastres aos corpos em movimento. O segundo exemplo é diferente. O corpo da performance do professor universitário, o professor-pesquisador, é um corpo relativizado pelo recorte que sua pesquisa proporciona. Os movimentos entre os alunos e o professor não são, como no primeiro caso, conhecidos de antemão; embora o professor universitário tenda a provocar uma determinada direção ao movimento, ele sabe que só conseguirá imprimir essa direção a partir


do momento em que ele conseguir seduzir os alunos por sua pesquisa, por sua paixão. Nesse movimento, alguns alunos não se deixarão seduzir; outros terão repentina e passageira admiração pelo ardor com que o professor-pesquisador demonstra sua paixão. Alguns compartilharão com ele e “performatizarão” futuramente com o movimento. Entrarão em ação, em relação ao movimento iniciado pelo professor-pesquisador. Quando o professor é também um artista, e tem uma pesquisa específica, recortada do universo da História da Arte, por exemplo, a partir de sua experiência e de técnicas pessoais, a relação é de sedução, à semelhança do segundo exemplo. O movimento do corpo de conhecimentos transmitidos aos alunos é o de propiciar o entendimento da obra específica daquele artista e de sua família artística, ou seja, dos artistas que o influenciaram. Ao final do curso, o aluno tem como aval o currículo no qual constam as aulas com tal professor, durante determinado tempo, tendo ele continuado ou não sua pesquisa. O professor-performer movimenta os conhecimentos que possui sobre Arte em direção ao aluno. Ele pode movimentar corpos de conhecimentos, além da representação e da técnica. Os alunos estão, na verdade, em muitos lugares, não necessariamente no ateliê. Eles podem estar numa exposição, após terem ficado durante horas na fila, ao lado dos colegas e do professor, para serem atendidos pelo serviço educativo de um museu. Podem estar num espetáculo, num recital, num determinado local da cidade. Os materiais do professor não são predeterminados, uma vez que ele não pretende passar nenhuma técnica específica (muitas vezes suas aulas requerem apenas um material simples). Sua matéria é um pensamento de arte, um pensamento em movimento, um pensamento em performance. Conclusão Este texto não propõe uma teoria da performance; antes, procura fazer a reflexão relacionando a prática da performance e a Pedagogia. O corpo, as novas tecnologias e uma infinidade de acontecimentos e de situações sociais contemporâneas confundem a fronteira entre a cognição pessoal e o mundo. Assim, a experiência pedagógica não pode ser separada da artística. A palavra performance refere-se a uma forma artística existente. A performance, como a vida e toda a experiência, é complexa. À medida

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que adquirimos instrumentos para ler a performance nos damos conta de que esse fenômeno é múltiplo, polissêmico, misturado. Somos todos performers em sentido geral, mas há diferenciações. O artista se apropria da performance num sentido de ruptura com padrões tradicionais da Arte. E eu me aproprio da palavra performance para falar de uma atitude pedagógica diferenciada. Não só corpo, voz e lugar estão imbricados, corno também, nessa forma de ver a performance, está implícita uma preocupação pedagógica.

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Um dos teóricos sobre o processo de apreensão de conhecimento é Francisco Varela. Ele criou o conceito de corporização (embodiment, em inglês). Em geral, os filósofos europeus, embora objetem explicitamente sobre muitos dos supostos da hermenêutica, continuam produzindo exposições detalhadas mostrando que o conhecimento depende de estar em um mundo inseparável de nosso corpo, nossa linguagem e nossa história social, em síntese, de nossa corporização (1991).

A arte contemporânea, nesse sentido, exerce função pedagógica, habituando o olho e o pensamento do homem a uma sucessão ininterrupta de outras visualidades. De igual modo, a performance provoca mudanças no olhar e na sensibilidade dos indivíduos, tendo uma função pedagógica. O professor-performer, caracterizado nesse momento, propõe uma pedagogia sobre questões da arte contemporânea na qual a performance se inscreve. Consequentemente, em nossas escolas tão precárias em termos de material para sensibilização dos alunos, o professor de arte que tem essa maneira alternativa de ensinar pode conseguir resultados valiosos para provocar mudanças na percepção dos alunos. Lygia Clark fornece encaminhamentos em suas propostas para se colocar a obra de arte perto do corpo do espectador, transformando-o em participante, a nosso ver, uma proposta pedagógica possível para o ensino da Arte na universidade. Não se trata de um método rígido, mas sim de uma atitude de pesquisa. Portanto, esta perspectiva incorpora a performance do professor, conteúdo específico da arte contemporânea. A precoce esperança cognitivista de um “mecanismo geral de resolução de problemas” teve que ser substituída por programas que funcionavam em domínios locais do


conhecimento, e aonde o programador’ podia inserir na máquina todos os conhecimentos de fundo que fossem necessários (1999).

A ideia de retroalimentação nos levará aos processos de criação e de educação. Questionamo-nos há muito tempo sobre a implicação da presença da arte contemporânea e sua inserção nos ambientes acadêmicos. Talvez essa seja uma das questões mais básicas de nossa discussão aqui, pois, ao ser traduzida para o interior da academia, a arte contemporânea canibalizaria as atenções e críticas, promovendo o que estamos tentando entender pelo conceito de política. Na verdade, o híbrido professor-performer é, acima de tudo, uma micropolítica. A micropolítica de inserção de certos processos artísticos no interior de instituições consagradas ao cânone e à especialização. A arte contemporânea, como sabemos, introduz-se na academia e é por ela seduzida. Vemos as transformações das escolas de arte em centros de experimentação, institutos de pesquisa prática em desenvolvimento tecnológico. O que essa micropolítica representa? Em nossa opinião, a contaminação do ambiente por uma grande quantidade de corpos que desejam, que subvertem a disciplina e impõem o criador-intérprete ao ambiente da universidade. O conceito de corpo, nessa pesquisa de uma leitura pós-estruturalista, apóia-se na ideia de corpo-performer. As conexões que o corpo como conceito criou com o corpus da pesquisa revelam-se na frase de Gilles Deleuze e Félix Guattari (1997): “[...] um corpo não se expressa senão por partículas”. Segmentarizado, o corpo instaura seu plano de imanência no espaço, máquinas de afecção.

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Referências bibliográficas CIOTTI, Naira. O hibrido professor-performer: uma prática. Dissertação de Mestrado defendida na PUC- SP, 1999. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Ed. 34, 1997. GOMBRICH, E. H. Meditações sobre um cavalinho de pau. São Paulo: Edusp, 1999. Lygia Clark. Fundació Antoni Tápies, Barcelona, Galleries Contemporaines des Musées de Marseille, Fundação Serralves do Porto, Société des Expositions du Palais de Beaux-Arts de Bruxelas, Paço Imperial do Rio de Janeiro, 1999. PINHEIRO, Amálio (Org). O meio é a mestiçagem. São Paulo: Estação da Letras e Cores, 2009. STUCK, Nathan; WIMMER, Cynthia. Teaching performance studies. Southern Illinois: University Press, 2002. VARELA, Francisco et al. The embodied mind: cognitive science and human experience. Massachusetts: MIT Press, 1991.


Artes como mediadoras de afetos por Carminda Mendes André33 Resumo: O ensaio relata experiências poéticas urbanas entre estudantes de teatro e transeuntes que circulam no entorno do bairro da Barra Funda, na cidade de São Paulo. Relata e reflete sobre as possíveis relações da história do bairro encontrada nas ruas, as formas artísticas híbridas e o ato político dessa atividade. Palavras-chave: pedagogia, arte urbana, performatividade. Abstract: This essay is an account of experiences that happened between urban poetic drama students and pedestrians moving around in the Barra Funda, in the city of São Paulo. Reports and also reflects on the possible relationship of the history of the neighborhood found in the streets, hybrid artistic forms and political sense of this activity. Keywords: pedagogy, urban art, performativity. Introdução

Fiquei sem o terreiro da escola/ Já não posso mais sambar./ Sambista sem o Largo da Banana/ A Barra Funda vai parar./ Surgiu um viaduto, é progresso/ Eu não posso protestar/ Adeus, berço do samba/ Eu vou-me embora, vou sambar noutro lugar. Vou sambar noutro lugar. Geraldo Filme.

Se experiência pode ser compreendida como padecimento de algo,

Doutora em Educação, pesquisadora do Programa de Pós-Graduação do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (IA-Unesp), ministra aulas na disciplina Jogos e Teatro e Educação, no curso de Licenciatura Arte – Teatro, na Unesp.

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como nos ensina o filósofo da educação John Dewey, ou como aceitação do trágico vivencial, como nos ensinam o ensaísta Michel de Montaigne e a professora Luiza Christov, ou como algo que nos atravessa e que caminha em passos lentos, como nos ensina o educador Jorge Larrosa Bondia, ou ainda como algo que pode nos fazer perder o próprio projeto original da pesquisa, como nos ensina a antropóloga Jeanne Favret-Saada, a arte na rua, praticada com licenciandos, pode vir a ser um modo de fazer da arte experiência educativa e estética. Para formadores de futuros professores de teatro, a performance art, em sua face urbana, pode funcionar como mediadora de encontros poéticos e afetivos entre artistas não profissionais e a cidade. Afetos bons e desagradáveis. Objetivos O que interessa performar com os estudantes nas saídas às ruas é o que alguns filósofos contemporâneos têm nomeado “sociedade do controle”. Não é preciso muita teoria para compreender isso. É só propor uma ação performativa dentro do metrô Barra Funda que logo o criador será impedido de continuar, seja pelos seguranças do metrô, pela guarda metropolitana ou polícia civil. Todos estão legitimados pelo poder público para impedir a criação. O “controle” também pode ser percebido pelas filmadoras, pelos radares de velocidade, pelo revólver do policial, pelas roupas da moda que fabricam corpos quase idênticos, cabelos quase idênticos, maquiagem quase idêntica, modo de mexer no cabelo quase idêntico, modo de andar e falar com as mãos, tudo quase idêntico aos modos dos atores e das atrizes das novelas de televisão. Não precisa abrir nenhum livro para aprender tais coisas, apenas observe os usuários do metrô Barra Funda ou de outro lugar público. Ou então, observe, principalmente nos shopping centers, o andar da maioria das mocinhas ou mulheres já maduras lembrando o mesmo andar das modelos cadavéricas das passarelas; ou o andar dos mocinhos ou jovens adultos imitando policiais de filmes enlatados norte-americanos. O corpo como simulacro; o modo de mexer a cabeça como simulacro; o corpo deformado para simular o que não foi vocacionado a ser. As filas, o fluxo de pedestres à direita vai, à esquerda vem, simulando uma rua de mão dupla são sinais que nos remetem a corpos-máquinas. No entanto, muitos têm se perguntado: somos corpos obedientes apenas? Se não somos só obediência, como podemos performar seu escape, sua indisciplina, sua insurgência? Ou seja, como podemos subjetivar,


inventar outras maneiras possíveis para nossos corpos, por meio de formas artísticas? Ao tentar responder a essa questão, temos encontrado a seguinte situação: não é possível subjetivar outros possíveis de nós mesmos sem o olhar do outro, do diferente de nós, do estrangeiro para nós. O aprender sobre si – a tal da consciência de si – se faz com o outro. Nesse sentido, na posição de professora, a rua torna-se a sala de aula. Desde que viemos para a Barra Funda (2009), tenho estudado o bairro com pequenas intervenções poéticas realizadas com estudantes do curso de Jogos. Descobri nessas pequenas andanças que o local sofre uma violenta transformação a partir de um plano de “revitalização da Barra Funda de Baixo”, que vem sendo implantado desde o final da década de 1980. Interesso-me por saber como o capitalismo trata o imaterial nesses lugares (a cultura local, os sujeitos). Descubro que a construção do terminal de metrô e o Memorial da América Latina formam uma das primeiras intervenções urbanísticas dentro desse planejamento municipal. E, certamente, nossa presença aqui só foi possível graças a esse “plano”. Agora a região é um verdadeiro canteiro de obras faraônicas, compostas de construções suntuosas. Nessa situação, pergunto: quem somos nós, na Barra Funda, para os que aqui já estavam? Metodologia de ensino Junto com os estudantes, vamos às ruas buscando sinais dessa história local. Não incentivo que saiamos como sujeitos de conhecimento que lançam seu “olhar inteligente” para seu objeto que aparentemente se dá, generosamente, a ser conhecido. Queremos “conversar” com o bairro de outra maneira. Durante esses poucos anos de caminhadas, tomamos consciência de que somos estrangeiros na Barra Funda, assim como somos estrangeiros da rua de nossa própria cidade. E nos perguntamos: será que não olhamos os que passam também como estranhos? Estamos à procura de inventar modos de mediação em que seja possível a realização de afetações entre nós e os usuários do bairro ou da rua sem desconsiderar nossas mútuas diferenças. Observamos que a arte na rua tem funcionado como mediadora de encontros poéticos entre nós e transeuntes. Isso tem facilitado o conhecimento sobre o entorno fora da versão oficial. Com a arte, tentamos elaborar possíveis trocas culturais, experiências que possam provocar afetos

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desestruturantes; momentos que coloquem em risco o que pensamos de nós mesmos, pois talvez seja nesse momento que possamos escapar do corpo disciplinado que reina em nós e performar outros possíveis de nós mesmos. No susto. No risco. No imediato da relação estabelecida com o outro. A primeira incursão que realizamos nos arredores da Unesp foi em 2010 com o artista Duda Mendonça. Ali “reperformamos” a obra Manifesto do pijama criada por ele na cidade de Nova Iorque. O pijama é uma metáfora de crítica a todo tipo de dormência e uniformização mental representadas pelos próprios uniformes de trabalho, principalmente o terno e a gravata. Em sala de aula, inventamos figuras (alguns desenvolveram personagens também) cujo figurino deveria ser roupas de dormir. Naquele ano, realizamos ações performáticas com nossos pijamas na visitação à Bienal e ao Museu da América Latina. No Memorial, o que nos chamou a atenção foi o contraste de nosso entusiasmo com a aridez do lugar (enormes distâncias cimentadas e vazias). Isso fez pensar que alguma coisa estava equivocada por ali. Chegamos a ser avisados de que não era permitido realizar nenhum tipo de ação artística, nem mesmo filmar ou fotografar sem a prévia autorização da direção. Coisa que discutimos e nos posicionamos por não pedir licença para poetizar em um espaço que se propõe a ser uma casa de cultura. Particularmente, eu gostaria de sentir na pele o que uma insurgência ativista pode provocar. Sabíamos que daí sairia algum tipo de violência, próprio de uma sociedade construída a partir de dispositivos disciplinares com a finalidade de castrar laços afetivos (pois é preciso ser impessoal e não se sentir em casa nesses lugares). Para a realização da ação no Memorial, aprimoramos o que já havíamos começado em sala de aula: a criação de um coral de música espontânea. Esse coral foi inspirado no trabalho pedagógico do músico e arte-educador Stenio Mendes, que nos ensinou sinais simples de regência (cada sinal representa um tipo de sonoridade) e, com exercícios de iniciação à música corporal, pudemos chegar a um coral amador quase afinado. Antes, porém, já havíamos testado o tal coral no prédio do Tribunal Regional do Trabalho, mais conhecido como o prédio do “Lalau” (ex-juiz Nicolau dos Santos Neto que escandalizou o Brasil com o volume de dinheiro que desviou para sua conta bancária). Depois de um reconhecimento do percurso até o Museu da América Latina, em dia e hora marcados, atravessamos o metrô e entramos pelo portão da frente do Memorial. Nosso ponto final era o mapa da América do Sul que tem dentro do museu dos povos sul-americanos.


Dentro do Museu, naquele dia, havia uma visitação de escolas e dois monitores (talvez contratados pelo Memorial). Não sabíamos disso, foi fruto do acaso. Mesmo com a proibição da ação, sem pedir autorização alguma, fizemos o percurso escondendo as filmadoras e os celulares e terminamos nossa ação no ponto previsto. Ali regi o coral de música espontânea conforme o nosso programa. Ao entrar no recinto, o grupo dos brincantes com pijamas chamou a atenção dos escolares que se encantaram (alguns pediam para entrar no grupo). Em poucos minutos já tínhamos um séquito atrás de nós. Quando iniciamos o coral, pude mostrar o jogo da regência àqueles que nos seguiam. Eles entenderam o jogo e formaram um segundo coro. Depois de iniciado o jogo musical entre universitários e secundaristas, um tumulto começou a se formar pela gritaria da monitora. Continuei o que havia planejado, mas fui literalmente empurrada pela moça, que em desequilíbrio quase insano, tentou chamar a atenção dos escolares, por meio da força física, que, em uníssono, retrucavam: “Você é uma chata, queremos ver o que eles estão fazendo”. Achei engraçado tudo aquilo, quase surreal, pois a monitora, obcecada em cumprir sua programação, não percebeu que éramos parceiras, que eu também era arte-educadora e que poderíamos compartilhar uma reflexão sobre todos aqueles objetos em conjunto. Sem me alongar na confusão, concordei que o segurança – que também fez par com a monitora desvairada – nos conduzisse até a porta de saída. Fomos empurrados e expulsos dali como malfeitores, enquanto os escolares batiam palmas. Constatei que ali não era um lugar público, mas uma propriedade particular mantida também por verbas públicas. A violência se performatiza ali, onde jamais imaginaríamos que pudesse acontecer entre educadoras. Já conhecendo um pouco dos lugares vigiados pelo poder panótico do entorno do Instituto de Artes, a segunda ação se deu com uma intervenção urbana intitulada Troque Banana por Sampa, realizada com os estudantes do primeiro ano de 2011. No trajeto realizado, rodeamos a estação de trem (um espaço com vigilância quase nula onde encontramos moradores de rua e transeuntes comuns), depois entramos no saguão do Metrô (onde fomos interpelados e censurados pelo policiamento) até chegar a um ponto de táxi, em frente ao portão principal do Memorial da América Latina. Acompanhados dos parceiros do Coletivo Mapa Xilográfico (que ministraram um workshop sobre derivas e intervenções urbanas para nós), realizamos um mergulho nos arredores.

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Cientes de que a região da Barra Funda entrou na história da cidade de São Paulo como o berço do samba, cientes ainda de que existiu o Largo da Banana, onde muitos sambas foram compostos, mas desconhecendo o lugar exato de tal “Largo”, pensamos em uma ação para descobrir, com a população, o tal lugar. A Intervenção constituía de uma troca inusitada: saíamos com instrumentos musicais, mesas e cadeiras, caixotes de bananas na cabeça, doces de banana e uma garrafa de pinga 51. Quando conseguíamos uma boa possibilidade de troca com pessoas, parávamos, armávamos a mesinha de bar com guloseimas e convidávamos os transeuntes a cantar um samba (acompanhávamos com os instrumentos e com o canto, quando sabíamos a música) e, em troca, oferecíamos bananas, doce de banana ou pinga. Poucos foram os transeuntes que deram notícias do Largo da Banana, que começou a virar uma lenda entre nós. Mas muitos foram aqueles que cantaram conosco, levando banana ou doce de banana pelo caminho. Lembro-me de um rapaz que desejou tocar pandeiro; lembro-me de outro senhor que carregava uma sanfona e cantou algumas serestas para nós. Temos gravado o encontro com dois emboladores. Outro morador de rua que cantou sambas que eu nunca tinha ouvido antes (dizia ele que era dos anos 1930). Ainda outro morador de rua que cantou para nós, contou parte de sua vida e nos quis ensinar coisas que sabia. Encontramos, entre os taxistas que moraram na redondeza quando crianças, os que conheciam o Largo da Banana. Foi uma folia quando soubemos que o Largo realmente havia existido. A intervenção funcionou como um espaço de expressão, de encontros e de trocas entre desconhecidos, entre classes sociais, entre culturas. Terminamos nossa intervenção no portão de entrada principal do Memorial, intitulado por nós como o “Mausoléu do Samba”. Descobrimos que o Largo da Banana está soterrado em parte pelo concreto do calçamento árido no Memorial da América Latina e em parte pelo viaduto da Avenida Pacaembu. Voltamos à Unesp cansados e cheios de vida. Para mim, juntando a experiência de 2010 e a de 2011, já posso perceber a violência que a cultura do bairro, patrimônio imaterial para muitos, está sendo violentamente desapropriada, dando lugar à corrida do ouro imobiliário. Nesse ano de 2012, nossos olhos se voltam para dentro do prédio do Instituto de Artes com suas cores cinzentas lembrando a disciplina de


quartéis, com suas novas normas de funcionamento, com sua acústica irritante, tudo tem esfriado nossas relações com os funcionários; tudo tem nos desapropriado dos corredores, das escadas, do refeitório, das sessões burocráticas, lugares de pessoas que, antes, sempre foram parceiros de acolhimento das nossas ações poéticas, mesmo que ainda em germinação. Até mesmo as salas de aula, antes espaços de alegres intervenções, têm se tornado lugares receosos para nós. Professores com lábios retesados, olhos em fúrias, cabeças quase sempre cabisbaixas têm sombreado possibilidades de afetos. Clima que não é um problema do Instituto de Artes, mas de um cotidiano que produz sujeitos à beira de um ataque de nervos. Do outro lado, os estudantes se armam com cartas desqualificando professores, funcionários e o curso. E assim continuamos a guerra. Em nossa percepção hoje, o fora (a rua, o espaço público) e o dentro (parte interna do prédio, o espaço privado) parecem transformar-se em “o mesmo”. Queremos performar o outro; gritamos pelo outro, pois, como afirmei, sem o olhar do estrangeiro não estamos conseguindo sair das malhas do discurso do controle disciplinar. Critérios de avaliação Como se pode perceber, não consigo mais dividir tema de forma; teoria de prática; vida de arte; arte de educação. Sem dúvida, estou perdendo algo (por exemplo, as metodologias para a formação do ator), mas, para esse momento histórico, momento em que adoeço pela ausência de afeto no ambiente de trabalho, por falta de pertencimento, com medo de esquecer como criar e manter a amizade. Enfim, por necessidade, volto-me para as práticas artísticas contemporâneas que aproximam radicalmente o ato artístico do ato de vida, dois termos cunhados de Renato Cohen. “O performer é sujeito e objeto de sua obra, ao contrário do ator que objetiva a cena teatral” (COHEN, 1992: 231). O desejo utópico que carrego comigo todos os dias quando entro para dar aulas de jogos é levar a mim e aos estudantes à compreensão de que a “obra” que vale a pena a ser criada é o afeto enquanto estamos juntos.

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Referências bibliográficas CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1994. COHEN, Renato. Do teatro à performance: aspectos da significação da cena. In: SILVA, Armando Sérgio da (Org.) Diálogos sobre o teatro. São Paulo: Edusp, 1992. FLORENTINO, Adilson; TELLES, Narciso (Orgs.). Cartografia do ensino do teatro. Uberlândia: Edufu, 2009.

Sites Coletivo Mapa Xilográfico. Disponível em: <http://mapaxilografico.blogspot.com. br/>. História dos bairros paulistanos – Barra Funda. Disponível em: <http:// almanaque.folha.uol.com.br/bairros_barra_funda.htm>. Série História dos bairros de São Paulo – Barra Funda (Volume 29). Disponível em: <http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/upload/hb_barra_ funda_1285344976.pdf>.


A estética relacional e a festa do Boi no Morro do Querosene em São Paulo por Marianna F. M. Monteiro34 Resumo: O texto expõe algumas indagações surgidas nas idas às festas populares, em especial aquelas transplantadas para a grande metrópole em função do interesse de artistas e educadores que buscam inspiração e referências na cultura popular para suas atividades de teatro, dança e música. Tomo como exemplo a Festa do Boi do Morro do Querosene, que ocorre há mais de 20 anos no bairro paulistano do Butantã, e busco analisá-la a partir de ferramentas conceituais concebidas pela crítica de arte contemporânea. Trabalho com a hipótese de que o grande interesse pelas práticas de cultura popular tradicional, a partir da década de 1990, é compreendido se levarmos em conta os rumos tomados pela arte contemporânea no mesmo período. Ferramentas conceituais pouco utilizadas para pensar a cultura popular são mobilizadas. Vale destacar o sentido relacional dessas práticas, entre elas os conceitos de “estética relacional” e de “pós-produção”, cunhados pelo crítico francês Nicolas Bourriaud. Palavras-chave: festa popular, bumba-meu-boi, estética relacional, pós-produção. Abstract: This paper is about the questions that arises when attending popular festivals. Specially those festivals that where brought to the big cities by the artists and educators looking for inspiration in popular culture, usually through theater, music and dance activities. For instance the “Bumba meu Boi” which occurs for more than 20 years in the district of Butantã, Sao Paulo. Here I am analyzing it using the conceptual tools of the contemporary art. Working with the hypothesis that the great interest in the practice of traditional popular culture, from the nineties, is best understood if we take Marianna Francisca Martins Monteiro é professora do Departamento de Artes Cênicas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), coordenadora do Grupo Terreiro de Investigações Cênicas, Teatro, Rituais, Brincadeiras e Vadiagens. Autora dos livros Noverre: Cartas sobre a dança (Edusp,2002) e Dança popular: espetáculo e devoção (Terceiro Nome, 2011). Coautora dos vídeos: Lambe sujo uma Ópera dos Quilombos e Balé de pé no chão: a dança afro de Mercedes Baptista. Sócia efetiva da Associacão Cultural Cachuera! (1981). 34

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into account the direction of the contemporary art of the same period. The conceptual tools that were never used before to think the popular culture are here mobilized. Among those is the concept of “relational aesthetics” and “post production” created by the french critic Nicolas Bourriaud. Keywords: popular festival, Bumba-meu-boi, relational aesthetics, postproduction.

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Introdução Trata-se de expor aqui algumas indagações surgidas nas idas às festas populares, em especial aquelas transplantadas para a grande metrópole em função do interesse de artistas e educadores que buscam inspiração e referências na cultura popular para suas atividades de teatro, dança ou música. A proposta tem como objetivo geral configurar ferramentas conceituais que permitam estabelecer paralelismos entre as práticas da chamada arte contemporânea e as iniciativas bem-sucedidas de transplante de tradições populares festivas para as metrópoles, agenciadas por uma classe média recém-iniciada nessas tradições. Volto-me, inicialmente, para a análise de um caso concreto: a festa do Boi do Morro do Querosene, festejo concebido nos moldes da tradição festiva do Maranhão, que se realiza três vezes ao ano no bairro paulistano do Butantã, e que congrega há mais de 20 anos artistas, estudantes e arte-educadores como seus principais promotores. Em torno do festejo, ao longo desses anos, formou-se um público cativo, além de um flutuante. Neste artigo, pretendo explorar a possibilidade e a fecundidade de se pensar determinadas práticas festivas tradicionais, que têm lugar no contexto atual dos grandes centros urbanos, a partir de conceitos gerados no bojo da crítica de arte contemporânea. No que diz respeito às ferramentas conceituais, interessou-me a discussão proposta por Nicolas Bourriaud, na obra Estética relacional (2009), a respeito das artes contemporâneas, em especial o conceito de estética relacional elaborado para a análise das manifestações artísticas que, a partir da década de 1990, configuraram, segundo esse autor, um novo sentido para as artes visuais. Tentarei testar a fecundidade desse conceito e de seus desdobramentos na análise de uma festa tradicional transplantada, na mesma década, para a grande metrópole. Antigas tradições populares, sempre ligadas às devoções católicas,


fenômenos festivos multifacetados, em geral voltados para o festejo de algum dia santo, alguma data religiosa, consolidam-se em novos contextos, junto a novos agentes sociais, estabelecendo novos equilíbrios entre tradição e modernidade. Sem deixar de lado elementos tradicionais, esses festejos perpetuam-se nas grandes cidades, habitando territórios ideológicos bem diferentes daqueles em que tais práticas se desenvolviam até então. O confronto entre essas manifestações de arte popular e os rumos que tomaram as artes contemporâneas, na passagem do século XX para o XXI, pareceu-me instigante e intrigante. O que implica evitar, de saída, pensar tais manifestações de arte em nichos separados. Acredito que as tensões e os intercâmbios entre elas seriam partes constituintes das próprias dinâmicas intrínsecas a cada uma delas. A própria distinção entre os dois âmbitos artísticos – o da arte contemporânea e o da arte popular – fica, nesse caso, relativizada. Importante ressaltar, do ponto de vista da contextualização histórica dos dois fenômenos culturais, que o crescimento vertiginoso do interesse dos jovens de classe média, nos grandes centros urbanos, pelas manifestações tradicionais populares, até então desprezadas por tomá-las como resquícios arcaicos e anacrônicos, cresceu significativamente a partir da década de 1990 e foi concomitante às novas tendências nas artes visuais, precisamente as que o conceito de arte relacional pretende dar conta. A transposição de tradições populares para o âmbito das sociabilidades metropolitanas é um fenômeno cultural potente que se fez presente nos principais centros urbanos brasileiros, sobretudo a partir da década de 1990, como processo de recontextualização de antigas tradições. O que chamou minha atenção é que esse processo se deu paralelamente às transformações ocorridas nas práticas da chamada arte contemporânea. Do ponto de vista dos agentes, tanto os criadores quanto os fruidores envolvidos com essas manifestações artísticas, como também as distinções entre os dois âmbitos artísticos – arte contemporânea e arte popular –, devem ser relativizados, tendo em vista a circulação efetiva de práticas, ideias e discursos para além de quaisquer irredutibilidades entre esses dois campos, ainda que o reconhecimento dessas separações possa informar os discursos e a compreensão que os próprios agentes têm de suas práticas. Os participantes dessas festas tradicionais, que têm lugar nos grandes centros urbanos, confundem-se com os agentes envolvidos com a

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arte contemporânea – artes visuais, dança, teatro contemporâneo, música ou performance. Os dois tipos de manifestação artística estão presentes no universo cultural da classe média instruída, capaz de manejar com destreza códigos que pareciam irredutíveis. Vale observar, em primeiro lugar, o arcabouço conceitual proposto pela crítica de arte contemporânea por meio do conceito de estética relacional, quais as características dos fenômenos artísticos aos quais se aplica, quais as leituras propostas por essa crítica, como os concebe a partir de certa visão do desenvolvimento da arte no século XX. A seguir, uma breve descrição de certos aspectos da Festa do Boi no Morro do Querosene pretende apontar para confluências interessantes e para a pertinência da utilização de quadros conceituais comuns à análise de fenômenos artísticos aparentemente distintos. Para finalizar, apresento uma série de considerações surgidas da aproximação entre arte contemporânea e novas práticas de cultura popular tradicional, apontando para novas formas de analisar e de compreender essas festas populares. Estética relacional O conceito foi criado pelo crítico e curador de arte francês Nicolas Bourriaud, antigo diretor do Palais de Tokyo, templo das artes visuais contemporâneas em Paris (França). Na obra citada, esse autor desenvolve o conceito de estética relacional que havia sido utilizado pela primeira vez no texto do catálogo da exposição “Traffic”, da qual ele próprio foi o curador. A teoria elaborada a partir do conceito de estética relacional pode ser definida como plataforma estética e método crítico com base na detecção de certa sensibilidade compartilhada por alguns artistas contemporâneos com os quais o crítico se identifica. Bourriaud tenta criar ferramentas de análise que permitam dar conta de uma série de atividades artísticas que marcam as artes visuais contemporâneas. Trata-se de elaborar um discurso teórico capaz de esclarecer “[...] quais são os verdadeiros interesses da arte contemporânea, suas relações com a sociedade, a história e a cultura” (BOURRIAUD, 2009: 9). A primeira questão formulada por Bourriaud diz respeito à forma material dessas produções artísticas, cujo caráter processual e comportamental parece estilhaçar os padrões tradicionais da obra de arte. Ele tem em mente iniciativas que marcam certa produção artística da década de 1990 que têm como característica embaralhar arte e vida. É o


caso do trabalho do argentino Rirkrit Tiravanija que, em 1992, transformou a sala de exibição e o escritório da Galeria de Arte 303, em Nova Iorque, em um espaço para encontros sociais. Na sala vazia da exposição, apresentou dois potes de curry e um de arroz para oferecê-los como almoço aos visitantes, armazenando no escritório da galeria os outros ingredientes para a preparação da refeição, assim como suas sobras, que mais tarde seriam convertidas em obras, fotos e vídeos para documentar essa situação. O mesmo artista, no projeto intitulado The Land (1998), implementou, em uma propriedade na Tailândia, um laboratório de teste para novos modos de vida, novos modos de engajamento social, sob monitoramento de uma universidade local. Desenvolvendo fontes de energia alternativa, retomando formas tradicionais de colheita tailandesas, num projeto que, segundo o próprio artista, tem nítido fim social, inclusive distribuindo os frutos da colheita entre as famílias vitimadas pela aids. Outro caso citado por ele é o do artista Philippe Parreno, que convida pessoas para praticar seus hobbies numa linha de montagem industrial no Primeiro de Maio. Segundo Bourriaud, a arte dos anos 1990 estaria novamente reagindo às linguagens da tradição, à volta da pintura e da escultura, característica da década anterior (tendo em mente o novo expressionismo da década de 1980), procurando romper novamente com essas linguagens, retomando a confluência entre arte e vida proposta pelas vanguardas históricas do início do século XX e pelos happenings e body-art da década de 1960. Não caberia aqui apresentar a discussão suscitada por Bourriaud sobre as relações entre essa arte de caráter processual e comportamental e as propostas modernistas, sejam elas da Bauhaus, do Surrealismo ou do Dadaísmo. Fiquemos apenas com sua hipótese de que esses processos artísticos do fim do século XX correspondem a uma nova modalidade de embaralhamento entre arte e vida, que não assume as mesmas estratégias vanguardistas, principalmente por se afastarem de qualquer pretensão à ruptura ou à utopia. Tratar-se-ia de: [...] aprender a habitar melhor o mundo, em vez de tentar construí-lo a partir de uma ideia preconcebida da evolução histórica. Em outros termos, as obras já não perseguem a meta de formar realidades imaginárias ou utópicas, mas procuram constituir modos de existência ou modelos de ação dentro da realidade existente (BOURRIAUD, 2009: 18).

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Essas intervenções artísticas, segundo Bourriaud, visam à reconfiguração material e simbólica de “territórios socialmente compartilháveis”, funcionando como corretores das falhas existentes no plano dos vínculos sociais. São mecanismos postos em ação para redefinir referências a um mundo comum, para redefinir atitudes comunitárias. Novos espaços de interação, lugares para descansar e viver bem, polos de convivência entre pessoas antes que partam em suas direções próprias. Esses processos são compreendidos como instauradores de lugares de esperança e de mudança, destituídos, no entanto, de qualquer ideal nostálgico ou utópico. Não se trata de produzir experiências de alteridade radical; ao contrário, estabelecem-se mecanismos de resistência, modos de vida e de discurso na contramão da sociedade do espetáculo. O autor vê, nessas tendências da arte contemporânea, o movimento de questionamento das condições em que hoje se dão os contatos humanos e comunicacionais, restritos a espaços de controle que têm como característica decompor os vínculos sociais em elementos distintos, definindo trajetos entre diferentes lugares da vida humana, predeterminados pelo mercado, concebidos em termos de parques recreativos, áreas de lazer. No cerne desses processos artísticos de caráter contestador estão em funcionamento noções interativas, conviviais e relacionais que se dão fora dos espaços de controle que caracterizam as formas de comunicação e de contato humano hegemônicos nas sociedades contemporâneas que, nas palavras desse autor, estabelecem “[...] autoestradas de comunicação, com seus pedágios e espaços de lazer, que ameaçam se impor como os únicos trajetos possíveis de um lugar a outro do mundo humano” (Bourriaud, 2009: 11). Os artistas creem conduzir nessas “autopistas”, mas, de fato, são apenas conduzidos, freados por pedágios, acelerados pelos faróis dos que vêm atrás. As passagens entre esses elementos distintos estão muitas vezes obstruídas, e à arte contemporânea atribui-se a missão de desobstruir essas passagens, tornadas impossíveis. Na arte relacional, as experiências e os repertórios individuais estão a serviço da construção de significados coletivos, o que faz com que a participação do público seja decisiva na ativação ou efetivação dessas propostas. Valorizam-se as relações que os trabalhos estabelecem em seu processo de realização e de exibição com o envolvimento de artistas e do público. Uma iniciativa emblemática dessa linha de pensamento, no contexto brasileiro, foi o projeto curatorial de Lisette Lagnado para a 27a. Bienal de São Paulo, Como viver junto (2006).


A visão desses processos artísticos como espaços de resistência à condição definida das relações humanas na pós-modernidade, como espaço de experimentação social, campos de interrupção da vida cotidiana em que a prática artística aparece como um campo avesso às uniformizações do comportamento (BOURRIAUD, 2009), parece-me muito próxima do conceito de situações liminoides proposto por Vitor Turner para caracterizar zonas de interação social e processualidade nas sociedades complexas. Turner (1982) refere-se aos “símbolos selvagens” que aparecem não somente em culturas tribais, mas também nos diferentes gêneros de entretenimento, como a poesia, o teatro, a pintura das sociedades pós-industriais. Voltado inicialmente para o estudo dos rituais em sociedades pré-capitalistas, Turner propõe uma leitura dinâmica do símbolo no interior de um cenário de situações liminares que se forjam a partir de crises que abalam estruturas sociais estabelecidas. Os símbolos, assim compreendidos, revelam-se com uma dimensão emocional, volitiva e eminentemente processual e, por isso, é preciso captá-los em movimento, jogando e dialogando com suas diversas possibilidades de sentido e de forma a partir dos campos concretos e históricos em que aparecem, associados a interesses e propósitos humanos, finalidades, aspirações e ideais individuais e coletivos. Nas obras mais recentes, atento ao desenvolvimento do teatro norte-americano na década de 1960, Turner pensa os gêneros do entretenimento, nas sociedades pós-industriais, por meio do conceito de liminoide que, nesse caso, serve para aproximar os “símbolos selvagens” surgidos na dimensão liminar dos rituais primitivos, dos símbolos que são criados nos gêneros artísticos das sociedades pósindustriais, que instituem um campo independente de atividade criativa para além de uma máscara e/ou espelho distorcido do “mainstreams” e do “trabalho social produtivo” (TURNER, 1982). No caso da reflexão de Bourriaud, um conceito equivalente vai ser mobilizado: o de interstício. Tomado de empréstimo da teoria marxista, interstício é compreendido por Bourriaud “[...] como um espaço de relações humanas que, mesmo inserido de maneira mais ou menos aberta e harmoniosa no sistema global, sugere outras possibilidades de troca além das vigentes nesse sistema” (BOURRIAUD, 2009:22-23). No âmbito desse artigo, não cabe desenvolver uma reflexão sobre a relação entre o conceito de Victor Turner de liminoide e o marxista de interstício. Todavia, gostaria de ressaltar que a proximidade entre eles parece explicar a mobilização desses conceitos quando se trata de pensar as práticas artísticas que pretendem seguir na contramão das determinações sociais hegemônicas:

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no caso de Victor Turner, a contracultura norte-americana da década de 1960; no caso de Bourriaud, a arte relacional da década de 1990.

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Prosseguindo na elaboração dessa noção, Bourriaud afirma que, na arte relacional, os artistas interpretam, hibridizam, reproduzem, expõem novamente, misturam ou utilizam obras já realizadas por outros e produtos culturais disponíveis, que são re-informados. O conceito que se estabelece a partir daí, em paralelo ao de arte relacional, é o de pós-produção, visando dar conta de uma atividade artística cujo paradigma não é mais a pintura, nem a escultura, nem o cinema, nem a dramaturgia. O modelo se aproxima da atividade do DJ. Inscrever a obra de arte no interior de uma rede dinâmica de signos e de significações, negar-lhe qualquer dimensão de autonomia ou de originalidade, é o traço marcante da arte relacional. O artista já não se pergunta o que há de novo a fazer; ele busca elaborar o sentido a partir de uma massa caótica de objetos e referências. A obra assume a forma de uma narratividade que se projeta sobre a cultura que, por sua vez, numa progressão infinita, aponta para novos roteiros possíveis. A atividade artística torna-se um contínuo reinterpretar de relatos anteriores. O novo deixa de ser “o outro” para ser um valor que enaltece o presente na relação entre o passado e o futuro. É o relevante, a diversidade considerada interessante. Desorganizações, desestruturas, redes: o sentido é construído colaborativamente, relacionalmente, pondo em marcha os símbolos selvagens mencionados por Turner para criar situações necessárias ao enfrentamento de alienações coletivas. A festa do Boi na metrópole Esse conceito de arte relacional e de pós-produção suscitou o ensejo de utilizá-lo como ferramentas na análise da emergência dessas festas ditas “tradicionais” que, deslocadas de seus contextos originais, são transplantadas para as metrópoles brasileiras, mobilizando uma multidão de jovens interessados em dançar o Boi, sair em cortejo de Maracatu; compor rodas de jongo, de tambor de crioula, rodas de samba e capoeira, em vivências multifacetadas, de caráter comunitário e festivo. O interesse em recuperar tradições culturais brasileiras no contexto da cultura moderna é antigo, permeia a própria constituição da arte moderna brasileira; o que parece novo agora é a tônica no encontro comunitário,


na festa. Ao longo do desenvolvimento da arte moderna brasileira, traços estilísticos das formas de arte popular interessaram os artistas cultos, que os deslocaram no sentido de contribuir para a elaboração formal de produtos artísticos no campo da arte brasileira. O que se verifica agora é o aproveitamento dessas tradições na construção de espaços de sociabilidade, de convivenciabilidade, que visam ao estabelecimento de territórios comunitários engendrados a partir dessas tradições, sem que necessariamente haja preocupação em realizar propriamente uma releitura dessas expressões populares tradicionais. Em detrimento da preocupação com a elaboração de uma obra artística original, constituída no interior da separação palco/plateia ou artista/público, o que atrai nessas festas é a possibilidade de participação coletiva numa experiência que extrapola os limites das diferentes linguagens artísticas e que se volta para o compartilhamento de vivências comunitárias. Configuram-se redes de participação que contribuem para a realização das diversas instâncias da festa. Os diversos momentos da festa são alinhavados pela música, pela dança, pelo teatro, mas o que está em jogo vai além da mera produção ou fruição dessas artes. Numa festa popular, ainda que metropolitana, come-se, reza-se, assumem-se papeis rituais que, por sua vez, também se conectam com outras tantas trocas materiais e simbólicas. A confecção de figurinos, as decorações, os enfeites, a composição musical e o aprendizado das danças nascem de inúmeros encontros e diversas vivências que ocorrem nos interstícios dos dias festivos e parecem manter conectada toda uma comunidade ao longo do ano. A compra dos ingredientes e o preparo da comida ritual na véspera da festa interconectam os participantes; papéis são distribuídos e promovem-se interações que vão na contramão dos vetores de relacionamento social próprios das relações mercadológicas dominantes nas sociedades pós-industriais. Do ponto de vista da expressão artística, seja ela musical, teatral, plástica ou coreográfica, a dimensão autoral apaga-se diante da dominância do aspecto comunitário e participativo. Seguindo o padrão secular dessas tradições populares, a questão da originalidade e da inovação artística não tem nenhuma relevância, o novo surge apenas como decorrência das dinâmicas festivas concretas e de seus contextos, não se constituindo em elemento de valorização artística; ao contrário, muitas vezes o que se verifica é a busca do tradicional, do supostamente autêntico, no transplante de tradições de outras regiões e contextos.

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Essas manifestações de cultura popular tradicional sempre ocorreram em contextos festivos, e a elaboração de uma “tecnologia” festiva é algo que foi se constituindo ao longo de décadas, até mesmo de séculos. O que é novo é sua revalorização e retomada no contexto de uma sociedade dominada pela cultura de massa, como forma de renascimento de sociabilidades comunitárias, num contexto que até recentemente parecia rejeitá-las. Essas festas populares, de novo atualizadas, apropriam-se de saberes e fazeres muito antigos, trazendo-os para o novo contexto de modo a “inovar” pela repetição. A partir desse pano de fundo inspirado pela noção de estética relacional, vejamos alguns elementos que compõem uma dessas celebrações: a festa do Boi no Morro do Querosene, que se converteu em verdadeira tradição da cidade de São Paulo. Entre os promotores e responsáveis por essa festa sempre houve a intenção de reproduzir práticas e procedimentos tradicionais das festas maranhenses. Um primeiro aspecto a ser destacado nessa repetição diz respeito à temporalidade da festa. Repetindo-se ciclicamente, ao longo dos anos, a festa se desdobra em três grandes encontros anuais: o Nascimento do Boi, o Batizado do Boi e a Morte do Boi. Essa estrutura em três tempos é a reprodução da sequência tal qual ocorre na tradição maranhense. Tratase de se apoderar de modos preexistentes, repetindo suas formalizações de modo a fazer funcionar no novo contexto um itinerário cultural já conhecido. No caso da temporalidade que é dada pelo recorte anual, a qualidade que parece mais relevante é a recuperação de um tempo cíclico, em meio a uma sociedade impregnada pela noção de progresso; portanto, por uma temporalidade que se quer ascendente e linear. O Boi propõe aos paulistanos a relativização dessa dinâmica que representa, antes de tudo, o constante empobrecimento de experiências que se esvaem, predominando o sentido do sucateamento da vida e das relações interpessoais. A cada ano, a repetição desse ciclo do Boi é a garantia da vivência de uma temporalidade cíclica, em que perspectivas de compartilhamentos e de relacionamentos se transformam radicalmente a partir dela. Há sempre a promessa de reencontros, a possibilidade de percepção das transformações, dos crescimentos, das transmutações sem o esquecimento das fases anteriores. O nascimento, a vida e a morte do Boi, bem como sua ressurreição, propiciam a vivência de uma temporalidade que está nas antípodas daquela vivida nos termos dominantes de nossa sociedade que se propõe


constantemente a instaurar a novidade, embora o faça por meio da repetição velada. Ao longo de cada ano, a retomada desses três momentos de festa, paradoxalmente, permite perceber o crescimento e as transformações, em contraste com o pano de fundo dessa circularidade, tornando possível assenhorar-se desses movimentos sem ser ultrapassado ou superado alienadamente por ele. Os “boieiros” tiram férias desse tempo voraz, consumidor e consumista, para gozar da dinâmica da morte e do renascimento de um Boi a cada ano. A vontade e a conquista de uma festa que se repete a cada ano, “igual-diferente”, interrompe o afã da originalidade e do novo. Quebra-se com o que Octavio Paz chamou de tradição do novo (1984). Além das três festas que compõem o ciclo anual, cada uma delas se divide em um número preciso de partes, que são as mesmas nas três celebrações. Apesar do sentido diferente de cada uma dessas festas, as três apresentam a mesma sequência de “movimentos”, para utilizarmos uma linguagem musical. Numa festa de Boi, segundo a ordem em que aparecem na festa, temos basicamente três momentos: o “guarnecer”; o “lá vai” e o “dona da casa”. No âmbito desse artigo, gostaria de destacar a primeira fase da festa: o “guarnecer”, que me parece paradigmática de uma arte relacional. O “guarnecer” O “guarnecer” é o grau zero da brincadeira: o início. A festa inicia-se por ele. Uma série de intensidades é produzida a partir dele. Trata-se literalmente de acumular forças. O primeiro momento da festa, no primeiro momento do ciclo anual, significa um “guarnecer” em toda a sua potência: de alguma forma, pode-se dizer que a festa do Nascimento do Boi, no Sábado de Aleluia, é um “guarnecer”, se a referência for o ciclo anual completo das três festas. Depois da interrupção da Quaresma, o Boi vai renascer, a festa vai voltar a acontecer. Com o Nascimento do Boi guarnecemos, acumulamos intensidades, para darmos início a um movimento que durará o ano inteiro. O “guarnecer”, num sentido mais próprio e restrito, é o primeiro momento de qualquer uma das três festas. Ele relaciona-se à fogueira, onde são aquecidos os instrumentos percussivos – os pandeirões e o tambor onça –, em torno da qual a multidão vai se aglomerando aos poucos. É o momento inicial da festa: de reunião de forças, momento em que a comunidade e os visitantes unem-se e tornam-se corresponsáveis pela festa: assumem os versos, as canções, os passos de dança etc.

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Em torno da fogueira, onde está sendo aquecido o couro dos instrumentos percussivos para afiná-los, os brincantes se confraternizam. O cantor-solista puxa, inicialmente a cappella, as primeiras toadas. Pouco a pouco, o número de brincantes aumenta, misturados à assistência que também rodeia a fogueira; a resposta às toadas ganha corpo com a participação de todos, que repetem a chamada do solista. Na segunda ou terceira repetição desse diálogo entre cantor-solista e coro composto de brincantes e pela assistência eventual, o solista começa a pulsação de seu maracá (chocalho com cabo) e é imediatamente acompanhado pela entrada de toda a percussão, devidamente aquecida e afinada pelo calor da fogueira. Durante o “guarnecer”, as toadas novas são mostradas, experimentadas em grupo pela primeira vez. É testada a capacidade de se imporem ao coletivo, e o resultado dessa experimentação define, muitas vezes, a forma musical. Como nos revela André Bueno, toadas muito longas acabam tendo somente o refrão memorizado. Pode-se, nesse sentido, afirmar que a fixação de uma toada se dá pela mobilização do coletivo. É no momento do “guarnecer” que se instaura uma negociação entre o coro e o solista, da qual depende a forma final da expressão musical. O “guarnecer” marca a presença estruturante do coro já que, no âmbito musical, guarnecer é conseguir as vozes coletivas em diapasão com a voz solista e delas com a percussão (BUENO: 2001). Fazer, fazendo: cantando, tocando e, finalmente, dançando. Depois de “firmado” o canto e integrada a percussão, a última coisa que se agrega é a dança, que vai aos poucos se organizando a partir de alguns padrões coreográficos. É o renascimento do Boi confundido com o renascimento da festa. Na prática, nesse início da festa, trata-se de acumular forças para reunir o grupo de novo, de ajustar papéis, confrontar toadas, balancear as danças e energias das figuras cômicas e grotescas. Uma toada bastante significativa vai dizer: Cantarei de novo pra meu boi guarnecer da primeira vez que eu cantei não deu pra convencer guarnece batalhão, guarnece a vida cresce e meu povo não quer mais perder

O “guarnecer” não é um metáfora, não se coloca no lugar de nada; ele é, sendo: um acumular de força autonomeado na própria letra da toada.


Os versos da toada falam da necessidade de repetição até que a união se faça e a participação de todos se concretize, ao mesmo tempo que são os meios pelos quais isso vai se dar. A estrutura do canto responsorial, presente na grande maioria dos folguedos populares, a meu ver, pode ser compreendida como um recurso formal cuja principal virtualidade é possibilitar a irrupção de uma prática coletiva. Aberta à participação de todos, confere ao canto, para além de qualquer função mimética, uma performatividade que se dá no contexto mesmo da convivenciabilidade coletiva propiciada pela festa. Outros tantos dispositivos voltados para o estabelecimento de uma convivenciabilidade estão presentes nessa festa (e na maioria das festas da tradição popular). Quisemos aqui analisar o “guarnecer” como exemplo da indissociabilidade entre forma estética e performativa coletiva. No “guarnecer”, assim como em outros momentos dessa festa, estabelecem-se tecituras relacionais, conviviais, indissociáveis da expressão artística, caracterizando uma “tecnologia” sofisticadíssima a serviço de uma arte da inter-relação entre as pessoas. A forma estética na manifestação do Boi-bumbá do Morro do Querosene, como nos exemplos de arte contemporânea trazidos por Bourriaud, não se confunde com as diferentes “coisas” que os artistas produzem, não é o resultado de uma composição material. Ao contrário, ela opera mais como princípio criador que emana dos signos, dos objetos, dos gestos e das relações, que extrapola a mera forma material do canto, da dança ou da música; é algo que surge no campo das inter-relações e dos encontros. Nasce do estar junto, do encontro, da elaboração coletiva do sentido. Como na arte contemporânea, teorizada pela estética relacional, os modos de fazer a festa, a “tecnologia” festiva, destinam-se a quebrar barreiras, inaugurando modos de convivências diferentes dos hegemônicos, principalmente por não se pautarem por interessas extrínsecos à festa, podendo, assim, ficar praticamente incólume à manipulação do mercado. Na festa do Boi no Morro do Querosene, cuida-se muito dos elos comunitários e da solidariedade desinteressada de valores exteriores à festa. Como evento cultural e festivo na cidade, a festa do Boi do Morro do Querosene fortaleceu-se pelo viés comunitário e soube garantir seu caráter não mercantil. A festa é o ponto de encontro de pessoas que se integram no mercado de diversas maneiras, mas ela própria não se converte em empreendimento ou negócio; ao contrário, é uma rica elaboração de

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geradores de sociabilidades outras, no seio da própria criação artística, completamente dissociados de interesses mercadológicos. Ao analisar a emergência de performances festivas tradicionais nas grandes metrópoles, numa chave mais próxima à crítica de arte contemporânea, evito pensar essas tradições populares em termos de suas supostas características essenciais. Acredito que a festa do Boi, como também outras práticas de cultura popular, ao se adaptar a novos territórios e novos tempos, é mais bem compreendida, tanto quanto a arte relacional, como operação na esfera das relações humanas. Bourriaud afirma, a respeito das obras de arte derivadas de uma estética relacional, que elas lidam com os modos de intercâmbio social, com a interação com o espectador dentro de certa experiência estética proposta, com os processos de comunicação como instrumentos concretos para interligar pessoas e grupos (BOURRIAUD, 2009). Essa visão parece aplicar-se igualmente aos móveis que impulsionam muitos jovens de classe média a praticarem formas antigas e tradicionais de cultura popular. A novidade da arte relacional, segundo esse autor, não está na interatividade, mas no papel que ela desempenha; não mais como recurso coadjuvante para a fruição de uma arte tradicional, mas como ponto de partida e de chegada da própria criação. Em suas palavras: [...] o que produzem (as artes relacionais), são espaços-tempos relacionais, experiências inter-humanas que tentam se libertar das restrições ideológicas da comunicação de massa, de certa maneira são lugares onde se elaboram sociabilidades alternativas, modelos críticos, momentos de convívio construído. Sabe-se, porém, que o tempo do Homem novo, dos manifestos futurizantes, dos apelos a um mundo melhor com as chaves na mão, já passou: vive-se hoje a utopia no cotidiano subjetivo, no tempo real das experimentações concretas e deliberadamente fragmentárias. A obra de arte apresenta-se como um interstício social, no qual são possíveis essas experiências, e essas novas possibilidades de vida (BOURRIAUD, 2009: 62)

Outro aspecto interessante da reflexão de Bourriaud para pensar as práticas de cultura popular tradicional no contexto da contemporaneidade diz respeito ao caráter híbrido da arte relacional, assinalado anteriormente. Para além da distinção entre produção e consumo, entre criação e cópia, a festa do Boi aproveita-se também de tradições muito antigas, exatamente


porque deixou de lado qualquer pretensão à originalidade. Participa, de alguma forma, do que Bourriaud chama de pós-produção, ou seja, o trabalho sobre o já criado, a atividade de dar uma nova forma ao já formatado. Como diversos artistas o fizeram a partir da década de 1990, os “boieiros” de São Paulo reprogramam obras já existentes, habitam estilos e obras já historicizadas, demonstram que deixou de ser importante criar algo novo. O que se busca agora é descobrir o que se pode fazer com o que já se tem. Trata-se de produzir singularidade a partir de referenciais tradicionais. A dança, o canto e a música, por exemplo, já não estão preocupados em superar alguma forma antiga. O que se busca não é mais um produto final original, mas uma nova orientação, novas combinações no interior de informações preexistentes.

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Referências bibliográficas BOURRIAUD, Nicolas. Estética relacional. São Paulo: Martins Fontes, 2009. ______. Pós–produção: como a arte reprograma o mundo contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2009. BUENO, André Paula. O bumba-boi maranhense em São Paulo. São Paulo: Nankim Editorial, 2001. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs, capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 1997. FABBRINI, Ricardo Nascimento. Arte relacional e regime estético: a cultura da atividade dos anos 1990. Revista Científica da Faculdade de Artes do Paraná, Curitiba, v5. p-p 11-24, jan/jun. 2010. PAZ, Octavio. Os filhos do barro: do romantismo às vanguardas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. TURNER, Victor. From ritual to theatre, the human seriousness of play. New York: PAJ Publications, 1982.


Texto final dos estudantes-artistas, mediadores do evento: antagonismos e falsos antagonismos por Alexandre Falcão de Araújo, Lígia Borges e Milene Valentir Ugliara

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Urdiduras da Performance propôs o entrelaçar de corpos, de tempos e de espaços para sustentar uma importante discussão das artes cênicas contemporâneas: relações possíveis entre teatro, ensino e performance. A multiplicidade de compreensão e de práticas observada ao longo dos três dias de discussão, apresentada de maneira honesta e convidativa ao diálogo, parece uma maneira saudável de estímulo à reflexão. Acreditamos que a oportunidade de conhecer o diferente seja fundamental à ampliação do olhar, ao aprimoramento da capacidade crítica e à liberdade de criação. Conhecer o outro e o que por ele é produzido auxilia a pensar e a contextualizar o que é feito, evitando reproduções alienadas ou apropriações ingênuas de conceitos. Nesse sentido, as falas dos encontros explicitaram campos de conflito entre vertentes distintas da práxis artística brasileira contemporânea, apontando possíveis antagonismos sobre os quais vale a pena a continuidade da reflexão. Entre os diversos temas tratados, é importante citar os paradoxos estabelecidos entre performance e teatro político, matrizes norte-americanos e outras origens (inclusive ameríndias) da performance, atuação nas esferas macro e micropolítica, co-moção (no sentido de mover-se junto) e hermetismo. A apreensão dos mediadores das mesas do encontro revela que a “satanização” da forma não é o caminho para a superação das contradições evidenciadas. A performance brasileira contemporânea não herdou exclusivamente a matriz norte-americanos e não compartilha todo o projeto político pragmático que pode estar por trás dessas práticas nos Estados Unidos da América. A diversidade de manifestações e de projetos em nosso contexto permite que pensemos a relevância do campo performático para além do uso desse conceito meramente como moda ou como importação de um modelo. O desafio de não se dissociar da esfera macropolítica diz respeito a todas as vertentes artísticas, é uma necessidade para a sociedade, mas passa também pela superação de autoritarismos e opressões existentes


no campo da microfísica do poder. Assim, a proposta de mover-se junto é imperativo para qualquer criação que se pretenda coletiva, que queira ocupar espaços públicos e promover transformações na ordem que nos é imposta. A consciência crítica dos usos da forma e dos procedimentos estéticos presentes nas criações, inclusive a das contradições implicadas no fazer artístico (e sempre haverá contradições) é, portanto, fundamental para a superação das segregações entre os campos da arte, sem negar as diferenças.

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Foto de Bob Sousa do espetáculo Barafonda, com coordenação de processo de direção de Patrícia Guiford, apresentado pela Companhia São Jorge de Variedades. Em primeiro plano Alexandre Krug.


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Bloco IV: MATÉRIAS DE COLABORADORES CONVIDADOS

Foto de Bob Sousa do espetáculo Acordes, dirigido por Zé Celso e apresentado pela Companhia Uzina Uzona.


O conceito de performativo, a performance e o desempenho espetacular por Luiz Fernando Ramos35 Resumo: A noção de desempenho espetacular é produtiva para analisar performances ou espetáculos contemporâneos. Afeita menos à eficácia cognitiva, que costuma avalizar a dimensão dramática, do que aos aspectos performáticos, no sentido de aferição do que efetivamente se perfez em um fenômeno espetacular, inclui tanto aqueles aspectos ficcionais como os relativos às suas dimensões física e material, como pulsões irracionais e aspectos energéticos. Palavras-chave: performance, performatividade, mimesis, desempenho espetacular. Abstract: The notion of performance is spectacular productive to analyze performances and contemporary performances. Accustomed to less cognitive efficacy that usually endorse the dramatic dimension than the performative aspects in the sense of measurement that effectively perfez in a spectacular phenomenon, including both those aspects fictional as those relating to their physical and material, as irrational impulses and energy aspects. Keywords: performance, performativity, mimesis, spectacular performance. O termo performativo tem se tornado um conceito recorrente na análise dos fenômenos da performance e do teatro; ele merece, pois, ser examinado detidamente36. De fato, há certa confusão referente à compreensão do termo, a partir da mescla de um seu aspecto adjetivo, ou seja, o de se pensar o performativo como meramente afeito à performance; Professor associado do Departamento de Artes Cênicas da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e coordenador do Grupo de Investigação do Desempenho Espetacular (GIDE) do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas (PPGAC) da USP.

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Em The transformative power of performance: a new aesthetics (New York: Routledge, 2008), Erika Fisher e Saskya Iris Iain Lichte apresentam uma síntese mais produtiva do campo da performance e da performatividade.

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com o seu caráter substantivo, o de ser alguma coisa que implica realização completa, ou que perfaz e concretiza uma ação, constituindo, assim, um objeto a ser decodificado, algo próximo do que poderíamos entender como uma mimesis. Nesse sentido último, o aspecto performativo estará presente em qualquer fenômeno espetacular – o que se dá a ver com intenção de afetar outrem –, e as variações que ocorrerão a cada caso estarão ligadas a uma gradação entre índices mínimos e máximos de performatividade. Na situação dramática mais convencional, os elementos performativos na atuação dos atores estarão presentes, mas ocultos sob a capa da caracterização. Na pura performance art, em que já não haveria supostamente nenhuma ficção, a performatividade aparecerá em carne viva, sem disfarces. O conceito de performatividade, antes de estar associado ao teatro ou à performance, emerge nos estudos literários e de análise do discurso a partir de trabalhos seminais como How do to things with words de Austin e da Teoria dos atos da fala de Searle. Ali, na análise da capacidade de as palavras, em determinados discursos, estabelecerem ações concretas e propiciarem consequências sérias, ou seja, de seu potencial performativo, é que emerge o sentido mais consagrado do termo (AUSTIN, 1971)37. Pode ser produtivo explorar esse aspecto linguístico para constituir um modo alternativo de pensar o fenômeno espetacular. Se o performativo é relativo ao que se perfaz, ou mesmo ao que se está fazendo diante de outrem e, assim, pode ser percebido como fato autônomo, está claro que envolve certo desempenho, que alcança ou não o “a fazer” originalmente intencionado. O que é perfeito é o que se completou, é o que se fez completamente de acordo com um projeto original, realizando uma intenção. Um dos termos técnicos mais utilizados contemporaneamente na produção de vídeos é “render”. O anglicismo vem do verbo da língua inglesa “to render” que poderia ser traduzido aproximadamente como concretizar. É usado quando certa edição programada digitalmente em um computador se consuma, ou seja, torna-se algo definitivo em termos de imagem, não podendo mais se perder, como um arquivo de texto de computador que é salvo e poderá ser acessado de novo no futuro. Assim, quando o computador termina as operações de fixar aquela determinada edição, ele, no jargão, a “rende”, ou concretiza-a. Pois bem, no sentido que emana dos estudos linguísticos, e que pode muito bem ser aproveitado na dimensão espetacular, uma ação – performance, cena dramática ou coreografia – se perfaz quando se completa diante do observador a quem alguém se propôs a apresentá-la. Sobre o assunto, ver Ana Bernstein. Of the Body/of the text: desire, affect, performance. Tese de doutorado defendida na New York University, 2005.

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É nesse sentido que aqui se sugere como termo operador na leitura da cena contemporânea, tomada nessa amplitude que se vem destacando, a expressão “desempenho espetacular”. Aplicado a uma cena concreta, ele supõe analisar as circunstâncias e a qualidade do que foi perfeito em condições espetaculares. Por um lado, poder-se-ia aproximar a noção de desempenho espetacular à de mimesis, já que neste conceito milenar também está em jogo, pelo menos em sua compreensão clássica, associada à representação realista da natureza, a questão da eficácia e de como um efeito pretendido, no caso o da verossimilhança na exposição de uma determinada realidade, efetivou-se ou não no seu destinatário. Por outro, mais pertinente à cena contemporânea, que muitas vezes não opera na lógica do sentido e do reconhecimento de referentes anteriores e já não carece de verossímeis persuasões, a análise do desempenho espetacular poderá ser tomada como um comentário distanciado sobre o que se perfez espetacularmente, levando em conta menos os aspectos persuasivos de uma realidade a ser concretizada diante dos olhos do espectador, e mais o que efetivamente se apresenta em contraste às intenções previamente existentes, ainda que não se mostre como algo passível de ser reconhecido ou compreendido. Alguém dirá, inclusive, que muitas produções espetaculares da performance ou do teatro contemporâneo, que trabalham em chaves antimiméticas, antiteatrais ou antiespetaculares, não pretendem persuadir ninguém de nada. É verdade, mas essa desambição cognitiva não isenta um evento espetacular de se efetivar, de se concretizar diante dos olhos de seus espectadores com maior ou menor intensidade, maior ou menor confiabilidade. Nós não precisamos estar em busca de uma mensagem ou de um sentido para aceitar ou recusar algo que se nos apresenta espetacularmente. Ou nos submetemos à sua capacidade de se impor como um fato, ou não nos impactamos, a ponto de sequer considerarmos a possibilidade de nos deter sobre ele. Sobre esse ponto, é interessante recordar a distinção que Aristóteles estabelece, na Retórica, entre os aspectos silogísticos de um discurso e seus aspectos externos, que poderíamos chamar de espetaculares. Nos livros I e II do tratado tudo que Aristóteles nos afirma é referente à importância de um discurso logicamente consistente para se obter a persuasão de nossos interlocutores, seja nas deliberações da justiça, seja nas políticas. No livro III, em que se detém sobre os ditos aspectos externos, Aristóteles admite uma série de situações em que a força de persuasão de um discurso se afirma também, e principalmente, pela forma dessa apresentação, por meio daqueles

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elementos que hoje chamaríamos de espetaculares e que passam ao largo de qualquer raciocínio lógico ou de qualquer correspondência semântica38. Vale também recordar seu comentário em Política, qualificando a mimesis musical como mais potente que a mimesis pictórica para caracterizar estados humanos, já que suplanta o plano cognitivo com facilidade e vai direto ao âmago do interlocutor para alcançar seu reconhecimento39.

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Feitas as considerações, vale dar um exemplo de como a ideia do performativo pode ser trabalhada nessa perspectiva menos literal, e de associá-lo ao gênero da performance, e percebê-lo quase como uma marca de toda a produção experimental contemporânea, principalmente aquela que opera no que se poderia nomear como campo antidramático. Em vários espetáculos contemporâneos de teatro, principalmente aqueles concretizados em processos que se pretendem colaborativos, mas não só nestes, é comum perceber uma tensão entre o fio da narrativa dramática, tecido a partir de uma peça anterior ou de um tema ou referência literária, e a própria textura do espetáculo, considerada como a série de camadas significantes que se podem justapor ou sobrepor umas sobre as outras. Essas camadas podem ser estritamente ligadas aos atores ou atuadores que estiverem envolvidos naquela apresentação, ou dizerem respeito aos criadores não presentes, o encenador e sua equipe de apoio, quando houver. São ações paralelas à trama e estranhas ao que se poderia considerar como o padrão dramático de uma ação. Tais açoes não derivam de um eixo na condição de reverberações, e se antepõem a ele, autônomas e contraditórias. Não se confundem com o teatro épico de Bertolt Brecht, em que a ideia de uma interpretação distanciada, quando os atores combinam “[...] São, por conseguinte, três os aspectos a observar: são eles volume, harmonia e ritmo. Aqueles que, entre os competidores, empregam estes três aspectos arrebatam quase todos os prêmios; e tal como os atores tem agora mais influência nas competições poéticas do que os autores, o mesmo se passa nos debates deliberativos devido à degradação das instituições políticas. [...] Alem disso, a representação teatral é algo inato e o mais desprovido de técnica artística, enquanto que na expressão enunciativa é um elemento artístico. Por isso, os actores, que são melhores neste aspecto, ganham e tornam a ganhar prêmios, tal como os oradores, no caso da pronunciação. Na verdade, há discursos escritos que obtêm muito mais efeito pelo enunciado do que pelas idéias”. Aristóteles. Retórica. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1998, p. 176-7. 38

“Ritmo e melodia oferecem imitações de raiva e gentileza, e também de coragem e temperança, e de todas as qualidades contrárias a estas, e de outras qualidades de caráter, que dificilmente não apanham as reais afecções como sabemos de nossa própria experiência, pois ouvindo a esses efeitos nossas almas se modificam. O hábito de sentir prazer ou dor com uma mera representação não é muito distante do mesmo sentimento sobre realidades; por exemplo, se qualquer um se deleita com a visão de uma estátua só por sua beleza, necessariamente se segue que a visão do original seria prazerosa a ele”. Aristóteles. Política. In: The complete works of Aristotele. Edited by Jonathan Barnes. Princeton: University Press, 1984, p. 2126. 39


e contrapõem momentos em que estão imersos na personagem integrada à ação dramática com outros em que se distanciam dela e atuam como comentadores de suas ações e mesmo da ação geral do espetáculo, já que não se expressam no plano estritamente cognitivo. Nessa característica contemporânea, o que ressalta é exatamente o caráter performativo das ações dos criadores – atores ou encenador – evidenciando, para além da trama e de qualquer consideração crítica sobre ela, o próprio desempenho diante do público, como se fosse impossível apagar essa evidência. Se o teatro realista buscou com todas as forças a ilusão do público quanto às circunstâncias em que se encontra diante de um espetáculo, essas manifestações contemporâneas têm como característica ímpar esse jogar luz sobre o ato performativo em curso, o que muitas vezes desestabiliza qualquer leitura dramática e, na maioria dos casos, destrói a possibilidade de que ela venha a ocorrer. É como se o tema central na teatralidade desses artistas fosse esta ênfase no que se está fazendo imediatamente diante do público, remetendo-nos a intenções semelhantes verificadas em tentativas antidramáticas que se deram ao longo do século XX no plano da própria literatura dramática, como é o caso do teatro de Gertrude Stein. O traço performativo do teatro contemporâneo diz respeito a essa pulsão que, como uma gravidade excedente, puxa todos os sentidos de um espetáculo para a situação presencial, contrapondo-se, rivalizando ou até eliminando completamente qualquer sombra de narrativa dramática. O que se narra é, pois, essa presença, contaminada eventualmente de traços fragmentários de referências externas, dramáticas, literárias ou puramente visuais e iconográficas. É evidente que essa característica, comum tanto a espetáculos teatrais como a performances realizadas em museus ou, ainda, a todos os tipos de performatividade espetacular que se abrigam nos campos irrestritos da live art, por exemplo, podem ser associados ao fenômeno da performance. Provavelmente a perspectiva fortemente presencial de atualização em tempo real, uma das bandeiras da performance nos anos 1960, quando esse gênero se conformou institucionalmente, tenha colaborado decisivamente para a afirmação dessa tendência. Por outro lado, é importante extrapolar esses limites categóricos e perceber como o espetáculo contemporâneo, principalmente aquele que se quer antidramático, trabalha fortemente esse aspecto performativo e faz dele um dos elementos decisivos para apreendê-lo e analisá-lo produtivamente. Por isso mesmo, pensar o desempenho espetacular de certo espetáculo ou performance não é conferir eficácia ao seu sistema semântico, como se estivéssemos recompondo os poderes confirmadores da mimesis; trata-se

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simplesmente de se estar atentos aos seus aspectos sintáticos (seu topos, seus deslocamentos, suas proximidades e distâncias), performáticos (seus lances performativos, o que de fato se apresentou e se fez presente) e históricos (a margem de invenção que viabilizam) no sentido de poder avaliar as condições em que se perfazem, ou como repetem a forma espetáculo enquanto diferença.

Referências bibliográficas AISTÓTELES. Retórica. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1998. BARNES, Jonathan. The complete works of Aristotele. Princeton: University Press, 1984. BERSTEIN, Ana. Of the Body/of the text: desire, affect, performance. Tese de Doutorado apresentada na New York University, 2005. FISCHER, Erika; LICHTE, Saskya Iris Iain. The transformative power of performance: a new aesthetics. New York: Routledge, 2008.


Ifigênia: quando o coro improvisa por Marcelo R. Lazzaratto40 Resumo: O presente artigo tece considerações a respeito do espetáculo Ifigênia da Companhia Elevador de Teatro Panorâmico: o entrelaçamento da técnica e da estética que ali se opera graças ao sistema improvisacional Campo de Visão e a difícil tarefa de se improvisar coletivamente sem perder a noção do eixo narrativo e dos códigos da linguagem. Palavras-chave: teatro, tragédia, improvisação, Campo de Visão, coro e alteridade. Abstract: This article consists in considerations regarding the performances of Iphigenia, the most recent play staged by Companhia Elevador de Teatro Panorâmico: the intertwining of art and aesthetics that operates there by virtue of improvisational system “Campo de Visão” (Vision Field), and the difficult task of collectively improvise without losing notion of narrative axis and the codes of language. Keywords: theatre, tragedy, improvisation, Campo de Visão (Vision Field), chorus and otherness. Em março de 2012, entrou em cartaz na cidade de São Paulo, no SESC Belenzinho, o espetáculo Ifigênia com a Companhia Elevador de Teatro Panorâmico, concebido por Marcelo Lazzaratto, com texto de Cássio Pires baseado no original homônimo de Eurípedes. Em maio, Ifigênia cumpriu temporada no Espaço Elevador, até o fim de 2012; em 2013 circulará por cidades do interior paulista e por algumas capitais do Brasil. A Companhia Elevador de Teatro Panorâmico é um núcleo permanente de investigação em linguagem teatral, propondo a junção da verticalidade da pesquisa com a horizontalidade de sua abrangência em relação ao público. Formado em direção pelo Departamento de Teatro da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), mestrado e doutorado pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp); professor do Departamento de Artes Cênicas da Unicamp; ator e diretor artístico da Companhia Elevador de Teatro Panorâmico, responsável pela direção de diversos espetáculos; autor de Campo de visão: exercício e linguagem cênica (2001).

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Ao longo de nossa trajetória de pesquisa estética, que tem por base o sistema improvisacional Campo de Visão, trouxemos à cena peças que dialogam com questões inerentes ao homem contemporâneo, como a procura de si mesmo, a desconstrução de realidades e a fragmentação da memória, o limiar entre arte e realidade, entre cotidiano e criação. E seguindo nesse caminho de estudos sobre o Homem e a sociedade atual, deparamo-nos com uma questão que é o binômio em que nosso sistema de criação se apóia: a relação indivíduo e coletivo. E nos perguntamos: quais as relações estabelecidas entre essas duas forças na sociedade em que vivemos? E para tal estudo, decidimos aprofundar nossa pesquisa com foco nas tragédias, em que a relação coro-protagonista é clara e os mitos faziam parte da vida social e política dos homens. Antes, porém, é oportuno elencar algumas características do Campo de Visão. Trata-se de uma técnica de treinamento para o ator, desenvolvida por Marcelo Lazzaratto há 20 anos. Como diretor artístico da Companhia Elevador de Teatro Panorâmico venho, com os atores, sobretudo da Companhia referida, sistematizando o Campo de Visão em processos de treinamento para os atores e na construção poética dos nossos espetáculos. A técnica caracteriza-se na base de nossa pesquisa e na estrutura central das nossas criações cênicas. Com o espetáculo processual Amor de improviso (2003, e em repertório), o Campo de Visão transformou-se, também, em linguagem cênica. A proposta, em 2011, apresentou-se organizada por meio da publicação do livro Campo de visão: exercício e linguagem cênica, de Marcelo Lazzaratto, fundamentando os diversos aspectos de sua sistematização. Campo de Visão é um exercício de improvisação teatral que tem na coralidade sua característica principal. Ele contém apenas uma regra, simples e abrangente: os participantes só podem movimentar-se quando algum movimento gerado por qualquer ator estiver em seu campo de visão ou nele entrar. Assim, os atores ampliam a percepção visual periférica e, por meio dos movimentos, de suas intenções e pulsações, conquistam naturalmente uma sintonia coletiva para dar corpo a impulsos sensoriais estimulados pelos próprios movimentos, por algum som, pela música, por algum texto ou situação dramática. O Campo de Visão é um procedimento ao mesmo tempo técnico e estético. Nele não se faz distinção entre técnica e conteúdo; os dois aspectos são trabalhados conjuntamente sem que divisemos, ao certo, suas fronteiras. Essa não distinção ajuda os atores a encontrarem uma dimensão criativa fora do espaço-tempo convencional.


É por um caminho subjacente, subliminar, pleno de desvãos e indícios que o Campo de Visão atua. Nada é predeterminado, muito menos préconcebido. Pois ele é um caminho ao mesmo tempo imaginado e físico, um caminho que leva em consideração o instante que presentifica a experiência com seu impacto revolucionário e transformador sobre a consciência; um caminho em que o “eu” só existe em diálogo com o “outro”, um caminho da imaginação em que a intuição e a sensibilidade passeiam livremente, oferecendo à consciência, ao mesmo tempo apreciadora e condutora do processo, chaves estranhas para fechaduras que antes não existiam. O Campo de Visão leva em conta o acaso e a escolha como partes constituintes de sua estrutura fundamental no momento presente de sua criação e de sua fruição. Nele é sempre o “outro” que proporciona ao “eu” seu sentido e forma. Tudo o que se cria no Campo de Visão – a gestualidade, o ritmo, o movimento, as “personagens” – nascem do profundo diálogo criativo que se estabelece entre o “eu” e o “outro”. Ao estabelecermos a relação entre os conceitos identificação-alteridade, o que queríamos em Ifigênia era conceber um espetáculo que contivesse o jogo proposto pelo Campo de Visão, sob a estrutura rigorosa do texto clássico, preservando, em primeiro lugar, a comunicação direta, clara e profunda com o espectador. Ifigênia – o mar e suas ondas Para a montagem de Ifigênia, na condição de diretor, propus à equipe de criação – atores, dramaturgo, diretora de arte, compositor e iluminador – uma imagem como força motriz e guia de todo o trabalho: o mar e suas ondas.

O mar como metáfora do todo, do arquetípico, do coletivo.

A onda como metáfora da parte, da subjetividade, do indivíduo.

À luz da metáfora: todos são mar (coletivo) e, de vez em quando, uma onda se manifesta (indivíduo), desenha seus contornos específicos, dura seu tempo devido e depois se esvanece, reintegrando-se ao mar. Mar ininterrupto, dinâmico, latente, gestador de tudo e de todos. Criador de suas ondas, que dele se manifestam sem deixar de ser. As ondas não deixam de ser mar. Para realizar esse espetáculo, utilizamos o sistema improvisacional Campo de Visão. Ele é coletivo, coral: nosso mar de tudo que se configurará na cena. O tempo verbal no futuro – configurará – porque Ifigênia é um

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espetáculo em que os atores, os músicos e o operador de luz improvisam. Ou seja, a cada dia um novo espetáculo. O “o quê” sempre será o mesmo: ele conta uma parte do mito dos Átridas, composto de 8 cenas. O momento em que vento não há. E sem vento não haverá guerra nem vida. O “como” é que nunca será o mesmo. A cada dia, as cenas se configurarão de maneira diferente, regidas pela dinâmica do Campo de Visão. Dinâmica variável, movediça. Não há personagens definidas. Não há, a priori, distinção entre coro e protagonistas. A cada dia, ou melhor, a cada momento do espetáculo, a “onda” Agamenon, gestada no mar, pode se manifestar em qualquer ator, por exemplo, bem como a onda Clitemnestra ou Ifigênia. O mar improvisando sua ondas... Porque, nesse processo, interessou processar o Coro. Para nós, Coro é mar. Do coro é que nascem os indivíduos que descrevem sua trajetória e ao coro retornam. Um transformando o outro constantemente, indivíduo e sociedade. Com isso, enfatizamos no espetáculo a relação entre o público e o privado, alicerce da democracia e base do pensamento estético grego, para trazê-lo à tona em nossos dias: tema complexo que deve ser recorrentemente visitado para que as questões de civilidade estejam sempre na pauta do dia dos cidadãos. Na peça, a personagem Ifigênia percebe a função e o valor de sua vida quando compreende profundamente a necessidade de sua nação e, por ela, se entrega ao sacrifício. Ifigênia se sente parte de um todo. E, entre a parte e o todo, ela opta pelo todo porque se sabe parte dele. Essa dialética vai ao encontro de nossos objetivos que buscam entender nosso trabalho inserido em uma realidade que se nos mostra. O tema de Ifigênia é indispensável ao momento histórico no qual vivemos, em que as ações individualistas guerreiam com a compreensão de que tudo e todos estamos de certa forma entrelaçados e que vivemos uma relação de interdependência atávica. Com o encontro entre Ifigênia e o Campo de Visão, entendemos que tema e linguagem se entrelaçam e se potencializam porque discutem, tencionam e operam as mesmas questões e necessidades. O Coro improvisa Após um ano em cartaz, é possível tecer aqui algumas reflexões a respeito do espetáculo. Na condição de peça improvisada, Ifigênia exige dos atores um tipo específico de atuação. Todos têm o texto decorado. Todos e qualquer um podem interpretar qualquer personagem a qualquer


instante da peça. Em um dia de apresentação, por exemplo, um ator pode interpretar Clitemnestra em uma cena, Agamenon em outra, e Aquiles em uma terceira... Isso pode parecer surpreendente devido à dificuldade de tamanha empreitada. Porém, não está na interpretação das personagens protagonistas o ancoradouro da encenação de Ifigênia, mas no Coro. Se os atores podem interpretar qualquer personagem em uma apresentação, eles nunca deixam de ser e de pertencer ao Coro. Pode-se afirmar, depois de um ano de ensaios, de um ano de temporada, e depois de inúmeras conversas com os atores antes e depois de cada apresentação, que o mais difícil é se entender fazendo parte de um Coro. E de um Coro que improvisa livremente sem deixar escapar o fio narrativo da tragédia. A improvisação é um lugar em que o indivíduo encontra espaço para experimentar, para criar, para reverberar e fazer opções a partir de suas necessidades individuais dentro da dinâmica do jogo. A improvisação é um lugar em que o “eu” está livre de marcas predeterminadas pela direção, sejam elas espaciais, rítmicas ou intencionais. E é exatamente nesta contradição que opera a força do Campo de Visão. Nele quem improvisa é o coletivo. E o coletivo adquire no próprio fazer a dinâmica necessária para ele se desenvolver. É durante o fazer que o coletivo descobre os limites necessários para que a linguagem se estabeleça. E isso jamais pode nascer da vontade de um indivíduo apenas. Cada ator deve estar profundamente conectado com o outro e com a história que estão contando. Deve fazer suas opções vinculadas às necessidades de todos e às necessidades das circunstâncias ficcionais. O Campo de Visão gesta, assim, uma estética que contém em sua gênese uma ética na qual as ações individuais transformam o coletivo, como também a coletividade transforma o indivíduo, não em uma relação de causa-efeito, mas simultaneamente. O ator se percebe pertencente a algo maior do que ele e, a partir daí, passa a fazer escolhas. Não se tira do indivíduo a possibilidade da escolha, mas que ela surja da interação profunda com o todo. Para isso, o ator deve se impregnar por tudo o que o cerca. Seu corpo cotidiano deve se tornar um corpo-perceptivo aberto às impregnações. Exercitar profundamente a alteridade. Entender/sentir como um “outro-seu” as palavras do texto e suas imagens, o som, os espectadores, os outros atores, o figurino, o espaço, a luz, ou seja, todos os elementos que compõem a cena teatral. Porque, ao se jogar nesse Campo de Visão, o ator passa a perceber com maior nitidez tudo que o cerca, tudo que o atinge, tudo que o move. Ele adquire a compreensão de que é afetado pelas coisas e que isso o modifica, o transforma. Ele se torna mais permeável e se coloca, de fato, em interação,

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em diálogo com as coisas. Essa permeabilidade livra-o de imagens e de julgamentos preconcebidos, e essa permeabilidade o coloca no jogo, no presente, na ponta do instante, enfim, coloca-o de fato na experiência. Ali ele não vai experimentar algo porque ele se percebe constituinte da experimentação; ele faz parte, está inserido, ele se presentifica. No Campo de Visão, aprende-se que a escolha pela exclusão significa a atitude em dupla mão: de si e do outro. Esse aspecto evidenciava-se nos ensaios de Ifigênia. Se, por exemplo, ao se escolher a realização de uma ação violenta, sem levar em conta a delicadeza, a própria violência perde a razão de ser porque o ser humano carrega em si ambiguidades e, em cada momento, o que fazemos não é optar por uma coisa ou outra, mas, sim, enfatizar um aspecto daquela coisa. É tudo uma questão de ênfase. A força da escolha criativa é selecionar sem excluir, seja o que for. E esse momento de aguda tensão vai ao encontro das escolhas e das tensões operadas na tragédia. É aqui que tema e linguagem se entrelaçam porque nascem da mesma necessidade e urgência, impulsionando o homem/ator a agir, potencializando o espetáculo. Quando entendemos isso, tocamos de fato nos problemas humanos; vivemos, sim, em contradição, e o ator, na cena, não pode deixar de conviver com isso porque a expressão de nossas contradições talvez seja de fato a sua arte. Esse exercício de alteridade e a necessidade de se manter o fio narrativo, trazendo consigo a sensação de pertencimento, são de fato o maior desafio para os atores em Ifigênia porque, em nenhum momento, o espetáculo pode perder as características que o definem como linguagem. Ou seja, a cada dia de apresentação Ifigênia era outro e o mesmo espetáculo. A cada dia um movimento coral diferente, atores interpretando personagens diferentes, a luz incidindo sobre os atores de maneira diferente, a música e os ruídos dialogando livremente com os atores na cena; porém, sempre a mesma Ifigênia, da Companhia Elevador, tendo como linguagem o Campo de Visão. Referências bibliográficas EURÍPIDES. Ifigênia em Áulis, As Fenícias, As Bacantes. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. LAZZARATTO, Marcelo R. Campo de visão: exercício e linguagem cênica. São Paulo: Escola Superior de Artes Célia Helena, 2011. PIRES, Cássio. Ifigênia. In: Sobe? Ano II, n.2. São Paulo, 2012.


A tríade conceptiva nas performances do coletivo artístico Gob Squad: ator, vídeo e espectador por Renata Ferraz41 Resumo: Tenta-se analisar, neste ensaio, as produções em video-teatro do coletivo Gob Squad, partindo das obras resultantes de processos exploratórios da fusão entre as matrizes do audiovisual e das artes performativas, tomando o público como gerador de tensão e de transformação da ação do performer. Busca-se problematizar dois pontos fundamentais no trabalho do grupo em questão. O primeiro concerne à participação ativa do espectador, partindo das considerações que Jacques Rancière (2010) apresenta em O espectador emancipado, questionando a inclinação contemporânea quanto à participação do público na obra de arte; a segunda questão diz respeito à prática comum da cena performativa contemporânea, por meio da inserção do vídeo como um elemento cênico que auxilia na organização da narrativa. Partindo dessa observação, pergunta-se: como conceber a criação em vídeo para que ele deixe de ser apenas um elemento cênico e passe a ser, aliado à ação do performer, o ponto de partida da construção narrativa? Para tanto, utilizam-se como exemplo as obras produzidas pelo Gob Squad, que constrói a narrativa tomando como elementos fundamentais o vídeo e a ação do performer em tempo real. Palavras-chave: performance, vídeo, espectador, interatividade. Abstract: We try to analyze this test video productions in theater collective Gob Squad starting with the works that are the result of exploratory processes of fusion between the headquarters of the visual and performing arts, taking the audience as voltage generator and transforming action of the performer. We seek to discuss two key points in the work of the group in question. The first concerns the active participation of the viewer, leaving Atriz, performer e educadora, formada em Educação Artística, com habilitação em Artes Cênicas, pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (IA-Unesp). É uma das fundadoras do Corrosivo, coletivo de artistas de diferentes áreas, tendo participado de diversos projetos no Brasil, em França, Argentina e Espanha. Desde 2007, desenvolve trabalhos em videoarte, com participação em algumas exposições mundiais. Cursa mestrado em Arte Multimédia, com especialização em Audiovisuais, pela Universidade de Lisboa, Portugal, cujo foco centra-se nas fronteiras entre vídeo e teatro. 41

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the considerations that Jacques Rancière presents in The emancipated spectator (2010), questions the contemporary inclination regarding public participation in the work of art, the second question concerns the common practice of performative contemporary scene: by inserting the video as just a scenic element that assists in the organization of the narrative. Based on this observation, the question arises: “How to design in creating video so it ceases to be just a scenic element and becomes the starting point of the narrative construction along with the action of the performer?” For that, we use as an example the works produced by the aforementioned collective that build the narrative taking as fundamental elements of the video and action performer in real time. Keywords: performance, video, spectator, interactivity. Um dos pioneiros da Net Art, o norte-americano Mark Napier, escreveu certa vez, numa declaração como artista, que “ao interagir com a [sua] obra, os visitantes moldam a peça, levando-a a mudar e a evoluir, muitas vezes de forma imprevisível” (JANA; TRIBE, 2007: 70). A tendência em direção a uma prática colaborativa e participativa é, inegavelmente, uma das principais características da arte contemporânea. Tais práticas estão, cada vez mais, voltadas para motivar o público a participar ativamente do meio social em que essas performances acontecem, diluindo, dessa forma, a fronteira entre o espectador e o artista. Estamos lidando com inúmeras tentativas de questionar e transformar a separação entre eles. Dessa forma, a arte, tal como concebida em nossos dias, busca um nível de interação que possibilite que a obra se modifique a ponto de se transformar em outro objeto, podendo até guardar semelhanças com o original, mas que também está sujeito a se tornar algo radicalmente diferente daquele previsto inicialmente pelo artista. Mas será que necessariamente toda interatividade pressupõe um comportamento ativo do espectador e toda observação, um comportamento passivo? Será que precisamos tornar o espectador mais um artista para, só então, podermos problematizar a hierarquização dos elementos que compõem um objeto artístico? Para nos debruçar sobre essas questões, optamos por analisar alguns trabalhos do coletivo Gob Squad, tendo como norte conceitual as reflexões propostas pelo filósofo francês Jacques Rancière em O espectador emancipado (2010). Rancière questiona exatamente a interatividade que a arte


contemporânea tanto tem buscado. Na medida em que se tenta eliminar a fronteira entre o ator e o espectador, esses projetos de teatro correm o risco de criar uma distância que alegadamente viriam suprimir em seguida. Entretanto, ao contrário daquilo que tendemos a imaginar, manter a posição dos artistas e da plateia não é, necessariamente, dar mais valor ao ator em relação ao espectador. É, antes de mais nada, valorizar e pressupor a existência de ambos para que as artes performativas aconteçam. Nesse sentido, o trabalho do Gob Squad representa uma das experiências estéticas atuais que buscam por em xeque nossas ideias acerca da experiência entre o ator e o espectador. Formado por artistas ingleses e alemães no início da década de 1990, o coletivo Gob Squad trabalha com performance, teatro e instalação que são resultados exploratórios da tríade espectador, ator e vídeo. Embora possuam um roteiro para os trabalhos que propõem, ele é radicalmente alterado a partir da relação dos atores com os espectadores. Mais do que a interatividade entre espectador e ator, o trabalho do Gob Squad causa-nos enorme interesse pela experiência que nasce do contato entre os dois. O que os artistas do coletivo propõem não é uma mera participação do espectador; é, antes de tudo, uma alteração radical do roteiro criado por eles, alterando os rumos prévios da narrativa. Parece-nos que o coletivo está pouco interessado em levantar a bandeira de que o espectador tem de sair de sua cadeira e subir ao palco, pois só assim ele estaria tomando as rédeas da sua própria história. Antes disso, os artistas do Gob Squad propõem um jogo em que eles perdem o controle da sua própria criação. Dito de outro modo, os artistas do Gob Squad não se colocam numa posição paternalista, não se propõem a libertar o espectador de sua alegada passividade. É exatamente o seu contrário. São afetados e modificados pelo encontro com o público. Os atores optam por trilhar um caminho desconhecido – a partir do contato com o público –, tendo como ponto de partida um roteiro preelaborado. Entretanto, em nenhum momento, dissolve-se a fronteira entre o espectador e o artista. Talvez aí esteja o ponto mais tocante do trabalho do Gob Squad: cumplicidade e valorização do papel do público, sem que seja necessário transformá-lo em espectadores supostamente emancipados. Em Super Night Shot, por exemplo, a performance inicia-se no saguão do teatro, quando alguém da produção pede ao público para aplaudir, clamar, jogar confetes e serpentinas nos atores que estão

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prestes a chegar ao local. Eles chegam com câmeras nas mãos, correndo, muito eufóricos, e entram no teatro sem dizer uma palavra sequer. O público, ainda sem entender o que se passa, acompanha-os. Dentro do teatro, notam uma sala convencional, à meia-luz, onde já não é possível identificar a presença dos atores, onde já não resta mais nada a fazer a não ser ocupar os assentos da plateia. No palco, vemos uma tela onde se projetam quatro imagens simultâneas gravadas por quatro performances, 60 minutos antes do horário previsto para o público chegar ao teatro. Portanto, aquilo a que o público assistirá é a ação que acabou de acontecer, em quatro vídeos, sem edição de imagem, apenas com edição de áudio. O que vemos projetado é um esquadrão composto de quatro atores que saem às ruas de uma determinada cidade com o objetivo de produzir um vídeo contra o anonimato observado nas grandes cidades. Cada um dos atores, seguindo a lógica dos heróis mitológicos, que mais tarde emprestarão suas virtudes e seus destinos aos heróis cinematográficos, revelam ao público a tarefa a ser cumprida. Para os espectadores que se encontram no teatro, a única coisa que lhes compete fazer é observar os transeuntes fora do teatro sendo convidados pelos artistas a contribuir com o filme que está sendo gravado naquele instante. Para os atores, não é possível continuar o filme se não receberem ajuda dos espectadores. Quando um transeunte concorda em propor algo para a narrativa, o ator também deve aceitar o que é oferecido pelo espectador e continuar construindo a história com as propostas sugeridas. É interessante notar que os transeuntes, primeiramente, são convidados a ser espectadores, ou seja, é narrado para eles o que está se passando e, só então, podem dar a sua contribuição. Portanto, o público do Super Night Shot é composto de dois grupos: o que observa da plateia e o que participa nas ruas que circundam o teatro. É evidente que a participação das pessoas que compõem uma ou outra plateia é diferenciada. Mas será que as pessoas que estão dentro do teatro são menos ativas se comparadas às que estão fora só porque apenas assistem ao filme? Rancière inverte o que é comum pensarmos hoje em relação ao papel do público. Ele chama nossa atenção para o fato de que ao consideramos o espectador como passivo apenas porque ele observa implica a sustentação da crença que olhar é o oposto de conhecer e de agir. Nesse sentido, pensamos que um espectador sentado observando seria necessariamente um espectador que não age, enquanto o ator em


cena estaria em constante ação. Problematizando as e “equivalências entre público teatral e comunidade, entre olhar e passividade, exterioridade e separação, mediação e simulacro, oposições entre coletivo e o individual, entre a imagem e a realidade viva, a atividade e a passividade, a posse de si e a alienação” (RANCIÈRE, 2010: 15), é que podemos não apenas chegar à emancipação do espectador, mas, sobretudo, chegarmos à dissolução das hierarquias que fazem com que algo como a emancipação se torne uma exigência estética e política. Por isso, Rancière defende que mesmo o espectador que apenas observa é capaz de ressignificar os diferentes signos presentes na obra e aprender com a própria experiência, isto é, trata-se de um espectador não tutelado, que dispensa a opressão prévia que supõem todos os projetos libertadores. Por isso também, o pensador francês nos mostra que a performance pode não ser feita com base no suposto saber transmitido do artista para o espectador, uma vez que ela é o objeto que nenhum dos dois é dono, é algo desconhecido para os dois, eliminando assim qualquer relação de causa e efeito. No trabalho do Gob Squad, esse jogo do qual ninguém é dono evidencia-se no roteiro das performances que, na totalidade das vezes, pressupõe um elemento que cause desequilíbrio e force os atores a improvisarem. O improviso poderia vir do jogo com outro ator, poderia resultar de um estímulo sonoro ou de um adereço de cena. Mas a escolha aqui diz respeito ao espectador, alguém que não participou do processo de criação, mas que se coloca em pé de igualdade com o ator ao interagir com ele. Dessa maneira, o público se torna mais um elemento da encenação e, no caso do Gob Squad, um elemento tão importante quanto a ação do ator ou a projeção do vídeo. Se o espectador ganha destaque na narrativa, isso não significa que o vídeo seja apenas o dispositivo pelo qual se conta a história, que, por sua vez, transforma-se em personagem na mesma medida que o público e os atores. Entretanto, do mesmo modo que o espectador mantém o seu estatuto ao longo da performance, o vídeo não deixa de ser vídeo, todos o reconhecem como tal, e, no entanto, Super Night Shot não existiria se não fosse esse dispositivo. Gob Squad sabe, como poucos grupos, combinar o mundo do teatro com as possibilidades eletrônicas do vídeo. O dentro e o fora do espaço apresentam-se fundidos um no outro. Indo na contramão das tendências contemporâneas das artes performativas que buscam, a todo custo, levar a arte para as ruas, Super Night Shot traz a rua para

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dentro do espaço cênico. Impossível pensar em fazer algo do gênero antes da criação do cinema. Mas, então, Super Night Shot poderia ser considerado um filme resultante da performance ocorrida uma hora antes da exibição? Não há dúvida que esse trabalho seja um filme. Mas ele é mais que isso. Super Night Shot não elimina a ação performativa, na medida em que os atores, aos poucos, vão sendo reconhecidos dentro da sala escura da projeção. Vale lembrar que se o vídeo é o registro da performance isso não significa que a performance tenha sido tragada pelo vídeo, sobretudo se nos recordarmos de que antes de os espectadores entrarem na sala de exibição eles defrontavam-se com os atores, por assim dizer, de carne e osso. Seguindo essa mesma ideia de concepção cênica, outro trabalho que merece destaque, por pressupor a mesma estrutura fundamental de vídeo, ator e espectador, é Room Service. O subtítulo desse trabalho – Help Me Make it Through the Night – já traz em si a perspectiva do espectador. Nessa performance, dois homens e duas mulheres estão em seus respectivos quartos de um mesmo hotel. Cada um deles está sozinho, com apenas uma câmera de vídeo e um telefone que dá acesso ao serviço de quarto, que só os espectadores estão autorizados a atender as chamadas. A tarefa desses heróis é a de se manterem acordados ao longo da noite. O público assiste aos quatro vídeos ao vivo no saguão do hotel e são eles os responsáveis por ajudar os atores a manterem-se acordados ao longo da noite. Aqui existem dois pontos que gostaríamos de sublinhar. O primeiro diz respeito ao jogo cênico proposto, que por ter regras bastante explícitas desde o início – parte delas revelada no próprio titulo da obra – faz com que o espectador sinta-se como mais um jogador, com o mesmo objetivo dos atores, e que durante o período em que a performance acontece, faça parte do coletivo Gob Squad. É importante frisar que os espectadores e os atores ocupam diferentes posições neste jogo, embora tenham a mesma importância para a concretização e êxito da performance. Esse comportamento ativo do espectador – mesmo que seja apenas como observador – não é um dado novo nas artes performativas e já estava presente nos primórdios do teatro, nos festivais gregos de Comédia e de Tragédia. O próprio edifício teatral era construído de tal modo que os olhos da multidão deveriam confluir para o centro do palco,


ali onde acontecia o jogo teatral. A plateia já conhecia todas as histórias mitológicas que seriam encenadas, e o jogo era descobrir de que forma este ou aquele autor contaria a história conhecida por todos. Mais tarde, na Inglaterra Elisabetana, homens, mulheres e crianças conversando muito alto, com comida e bebidas em punho, aglomeravam-se em pé, diante dos atores, que tinham de ter atuações exímias para não serem vaiados ou não terem a cabeça acertada por coxas de frango que voavam da plateia para o palco. Não é por acaso que, na primeira cena da grande maioria das peças de William Shakespeare, acontece sempre algo da ordem do extraordinário, como é o caso da briga entre Montecchios e Capuletos, na cena inicial de Romeu e Julieta, a aparição do fantasma do rei, em Hamlet, ou a tempestade e as três bruxas em Macbeth. Shakespeare conhecia muito bem o público de sua época, o que gerava certamente implicações na sua escrita. A cena contemporânea vem, de certa forma, devolver ao público aquilo que o teatro realista do século XIX tentou de todas as maneiras esconder: a influência de uma plateia composta de pessoas de carne e osso que, só por estarem ali, já influenciariam a atuação dos atores e a escrita dos dramaturgos. Com a criação do conceito de quarta parede42, o teatro realista separou definitivamente o espectador do ator, criando um vão que, só mais tarde, com as vanguardas do século XX, seria ultrapassado. Mas mesmo o teatro realista, que ignora a presença da plateia, possui suas regras, que são claras e objetivas, não deixando dúvidas de como os espectadores deveriam se comportar. Retomemos pois Rancière: Quanto a emancipação, essa começa quando se põe em questão a oposição entre olhar e agir, quando se compreende que as evidências que assim estruturam as relações do dizer, do ver e do fazer pertencem elas próprias à estrutura da dominação e da sujeição. A emancipação começa quando se compreende que olhar é também uma acção que confirma ou transforma essa distribuição das posições. O Presume-se que o termo tenha surgido no século XIX com as experiências de teatro realista. Trata-se de uma parede imaginária situada à frente do palco do teatro, pela qual os espectadores assistem ao espetáculo como se o fizessem por meio de um buraco de fechadura, ou seja, seus olhares não seriam notados pelos atores. Dessa maneira, a quarta parede deveria ser invisível para o público e opaca para o ator. Apesar de ter surgido no teatro, o termo é usado também no cinema para se referir à fronteira existente entre a ficção e a plateia. 42

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espectador também age, como o aluno ou o cientista. Observa, seleciona, compara, interpreta. Liga o que vê com muitas outras coisas que viu noutros espaços cênicos e noutro gênero de lugares. Compõe o seu próprio poema com os elementos do poema que tem à sua frente. Uma espectadora participa na performance refazendo-a à sua maneira, por exemplo, afastando-se da energia vital que esta supostamente deve transmitir para dela fazer uma pura imagem e associar essa imagem para um história que leu ou sonhou, que viveu ou que inventou. Deste modo, ele e ela são ao mesmo tempo espectadores distantes e intérpretes activos do espetáculo que lhes é proposto (RANCIÈRE, 2010: 22).

Portanto, se pensarmos que observar também é agir e que o sujeito/espectador pode também gerar conhecimento, o que difere o teatro realista das performances do Gob Squad, do ponto de vista de participação do espectador? Nesse ponto, deveríamos deslocar o ponto focal da discussão do espectador para a encenação. O espectador, mesmo nas encenações realistas, nunca é ignorado, e o espetáculo é concebido em função dele, mesmo que seja para ignorá-lo. Pois bem, aos nossos olhos, o que difere os inúmeros tipos de teatro praticados ao longo desses 2500 anos é a hierarquização dos elementos cênicos. É ela que fixa um determinado lugar, uma determinada função e um determinado valor para os diferentes elementos que perfazem as experiências cênicas. Então vejamos o que está em jogo nos trabalhos já citados do Gob Squad. Como espectador, vemos a nós mesmos em duas posições, que aparentemente seriam antagônicas e não poderiam ocupar o mesmo tempo e espaço: sentimo-nos seguros no escuro da sala de exibição, pois os atores se encontram do outro lado da projeção e, ao mesmo tempo, estamos vulneráveis, pois podemos ser, a qualquer momento, requisitados para entrar em cena. O vídeo proposto como elemento fundamental para a criação de suas performances traz um signo indissociável à linguagem audiovisual: ele separa ator e espectador. Entretanto, reconhecemos as pessoas que estão na projeção – independente de serem os performers ou os espectadores, que estão ou estarão do lado de cá da tela. Tais pessoas reagem a estímulos daqueles que os assistem, quebrando não só a


quarta parede invisível das artes performativas, mas também a tela de projeção, parede visível que separa a cena gravada da presença ao vivo do espectador. Nos trabalhos analisados, fica evidente que os artistas do coletivo tentam, insistentemente, fixar o mesmo valor ao ator, ao público e ao vídeo. São esses três elementos que impulsionam a concepção das cenas sobreditas. O coletivo Gob Squad utiliza o poder da imagem como aliado e inclui nela a experiência entre o ator e o espectador, tão cara aos nossos dias. É como se nos dissessem que enquanto encontrarmos frestas nas quartas paredes impostas por um meio ou outro, enquanto compararmos os signos conhecidos com os desconhecidos, poderemos garantir que experiências estéticas outras possam ter lugar na ordem do mundo, desde que não fixemos as hierarquias entre os componentes cênicos.

Referências bibliográficas BAZIN, André. O mito do cinema total. In: O que é cinema? Lisboa: Livros Orizonte, 1993, p.23-6. BHAGAT, A. Gob Squad`s room service. Available online at www.leftlion.co.uk, 2005. FRIELING, Rudolf; GROYS, Boris; ATKINS, Robert; MANOVICH, Lev. The art of participation: 1950 to now. São Francisco: The São Francisco Museum of Modern Art, 2008. GEADA, Eduardo. O cinema espetáculo. Lisboa: Edições 70, 1987. JANA, Reena; TRIBE, Mark. New media art. Cologne: Taschen, 2007. KNOPF, Robert. Theater and film, a comparative anthology. New Haven and London: Yale University Press, 2005. MARTIN, Sylvia. Vídeo art. Cologne: Taschen, 2006. MATE, Alexandre. Histórias na história do teatro mundial: processos, disputas, lugares, experiências, atravessamentos. São Paulo: 2010. Disponível em: <http://www.ia.unesp.br>. QUIÑONES, Aenne; SQUAD, Gob. The making of a memory. Berlin: Erstausgabe, 2005. RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. Lisboa: Orfeu Negro, 2010.

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Bloco V: EXCERTOS DE OBRAS ESTÉTICAS

Foto de Bob Sousa do espetáculo Terror e miséria do novo mundo. Parte III - autópsia da República, dirigido por Thiago Vasconcelos e apresentado pela Companhia Antropofágica. Em cena Danilo Santos.


Renato Cohen: performance, ritualização do instante43 Quando sinto saudade de Renato Cohen releio o ensaio de Susan Sontag sobre Antonin Artaud. Talvez porque a ensaísta fale de Artaud como o xamã de uma viagem espiritual feita por todos nós. Para mim, Renato também foi o xamã de uma jornada arriscada pelos territórios movediços da arte contemporânea. Mergulhado até o pescoço na cena performativa, sofrendo os mesmos sobressaltos de seu objeto, transformou o perigo em gênese da criação. Por isso, viveu tão pouco e com tanta intensidade. Além de estudioso e teórico da performance, o maior entre nós, foi um artista pioneiro no uso da multimídia, das instalações, da teatralidade, da dança e das artes plásticas para uma prospecção mais funda, feita em direção às lonjuras da metafísica. No seu caso, desconstruir a cena não tinha por objetivo chegar à vida, mas ao “corpo numinoso” da manifestação teatral, à sua qualidade sensível e anímica. A opção pelo irracional e o apelo ao inconsciente foram tentativas desesperadas de acesso àquilo que, em sua criação, podemos chamar de alma. Talvez por isso tenha enveredado pelos caminhos difíceis da arte da performance. A exposição do eu, a fala disforme, o gesto avesso, o espaço disjunto, a colagem estranha compuseram as vicissitudes de uma cena que recusava a forma acabada e fazia sua ontologia no território obscuro da subjetividade. Sem discernir a teoria da prática do teatro, fazia seu trabalho em proveito da hibridação de conteúdos e gêneros e da emergência de soluções provisórias, que se manifestavam para se desfazer num movimento imprevisível que, em muitos sentidos, tinha semelhança com a teoria do caos. Quem assistiu a seus espetáculos sabe do que se trata. Em todos eles, desde o belo e intrigante Espelho vivo até a desnorteante Viagem a Babel, era inevitável embarcar na luta do artista para alcançar o sublime que, como bem disse [Jean-François] Lyotard, sempre se esquiva como um empuxo da formalização. A impossibilidade de fazer arte e a teima em fazê-la foi o tópos de construção da vida de Renato Cohen. Quem teve o privilégio de acompanhá-lo nesse work in progress sabe dos riscos que correu. E reconhece a grandeza do que criou.

Texto gentilmente escrito por Silvia Fernandes para a exposição apresentada no Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (IA-Unesp) durante a realização do evento que origina esta publicação.

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A “aula” hoje é na rua: relato de atividades...

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por Carminda Mendes André Certo dia, os amigos Carminda Mendes André e José Manuel Lázaro de Ortecho Ramírez (Instituto de Artes – Unesp) e Marcos Bulhões e Marcelo Denny (Instituto de Artes – USP), entre o vinho na taça e vídeos de performers históricos, resolveram quebrar as barreiras acadêmicas e aproximar suas pesquisas em performance art. Iniciaram uma parceria que produziu, em 2011, com coordenação compartilhada, o curso de extensão Experimentos em Performance I, pioneiro no Instituto de Artes da Unesp sobre a temática em epígrafe. Desse curso, nasceu um coletivo artístico composto de estudantes de graduação do Instituto de Artes da Unesp e da ECA-USP e artistas já profissionais. Trata-se do Desvio Coletivo. No segundo semestre de 2012, os quatro amigos e pesquisadores deram continuidade aos estudos, propondo o segundo módulo do curso de extensão intitulado Experimentos em Performance II, cujo processo desenvolveu-se no Teatro Reynúncio Lima, do Instituto de Artes da Unesp. Como os desafios sempre caracterizam cursos dessa natureza, os professores-pesquisadores resolveram pôr em execução uma performance urbana que já durava a gestão de dois anos, batizada recentemente de Os cegos, em referência ao famoso quadro do pintor Pieter Bruegel. Desse modo, em 17 de outubro de 2012, um grupo de performers, cobertos de lama da cabeça aos pés, com os olhos vendados, saíram do Parque Trianon (situado na Avenida Paulista), vestidos à moda dos(as) executivos(as) do lugar, ou seja, com terno, pasta, saltos, saias elegantes, bolsas de grife etc. A arte da intervenção urbana, como grande parte da produção artística contemporânea, convidando o observador-transeunte a tecer sua própria versão sobre o evento, tornando-se coautor. Tendo em vista os diversos elementos componentes da cena, e como é característico da arte, todo tipo de interpretação e sentido atribuído à obra é pertinente, na medida em que, construído por símbolos o espetáculo é rigorosamente polifônico. Naquela tarde, inúmeras versões foram tecidas, diferentes modos de sentimentos foram experimentados pelos transeuntes e artistas. Não há por que unificar uma única versão; não há a “verdadeira”, e, sim, aquela que o espectador produz para si. Diante da foto daquela intervenção, convidamos os leitores a tecerem suas “traduções”. Como referência, Os cegos é uma criação de Marcos Bulhões,


pesquisador e artista originário da cidade de Natal (RN), onde acontece, em todas as terças-feiras de carnaval, a saída do bloco Os Cão. O bloco é composto por quem mergulha o corpo no mangue e, por um trajeto preestabelecido, segue-o enlameado ao som de grupos musicais da cidade. Os foliões mais tradicionais assumem a metáfora dos “seres saídos das profundezas”, vestem o próprio corpo com lama, colocam chifres na cabeça e seguram um tridente. A brincadeira de Natal, de certa forma, assemelha-se àquela da cidade carioca de Paraty (chamada Bloco da Lama, que acontece também no carnaval); entretanto, os potiguares e aqueles que participam da brincadeira em Natal têm como objetivo metafórico espantar os maus espíritos para que o carnaval siga em paz.

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Os cegos. Foto de Carminda Mendes Andre.

Carminda Mendes André é professora de Jogos do curso de Licenciatura em Arte-Teatro do Instituto de Artes da Unesp. Durante o segundo semestre do curso, estudantes e professoras dedicam-se aos estudos práticos com Intervenções Urbanas Artísticas (ou Performances Urbanas, como muitos têm chamado). Já se tornou uma prática, nesses cursos, a aproximação dos estudantes com artistas ou coletivos de artistas. Em 2010, professora e estudantes participaram do Manifesto do pijama,


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que contou com a participação do artista plástico Duda Penteado, residente em Nova Iorque. Dentre as várias ações que fizeram com Duda Penteado, destaca-se a visita à Bienal, em que todos trajavam roupas de dormir, explorando as obras interacionistas. Em 2011, foi a vez do Coletivo Mapa Xilográfico realizar, com os estudantes do Instituto de Artes, a performance “Troque banana por samba”. Dessa vez, o lugar de ação compreendeu as imediações do Instituto de Artes, localizado no bairro da Barra Funda. A ação performática brincou com a história do bairro (considerado como o “berço do samba paulista”), espaço que o projeto de “revitalização” da região se encarregou de soterrar, sem pudor, os vestígios da cultura negra, que ainda teimam em permanecer vivos. Em 2012, a professora trouxe Marcos Bulhões e Marcelo Denny para dentro da sala de aula. Ou foram eles que a levaram para fora da sala? O fato é que, naquela quarta-feira, dia oficial do curso da professora, a aula foi na rua, com a participação dos artistas urbanos.

FICHA TÉCNICA Evento: Os cegos Criação e coordenação: Marcelo Denny e Marcos Bulhões Realização: Desvio Coletivo e Coletivo Pi, em parceria com o Laboratório de Práticas Performativas da USP e do Instituto de Artes da Unesp Performers: Alberto Eloy, Angela Adriana, Atton Macário, Carolina Thieghi, Eidglas Xavier, Felipe Michelini, Felipe Vasconcellos, Gabriel Máximo Ferraz, Isabella Dragão, Kanansue Gomes, Marcelo D’Avilla, Marcelo Prudente, Marcos Bulhões, Mariana Morena Alvin, Michele Carolina, Milene Valentir, Moyra Madeira, Outro Luiz, Pâmella Cruz, Priscilla Toscano, San Mascarenhas, Sylvia Carolina Aragão, Thomas Fessel, Tiago Salis Fotografia: Carminda Mendes André


Performance Dada por Carolina Caetano, Evill Rebouças, Lígia Borges e Renato Barreto44 A experimentação artística, que aqui aparece como explicitação de uma alegre memória, foi realizada no curso História do Teatro Mundial e da Literatura Dramática, ministrado por Alexandre Mate em 2003. Um coletivo de estudantes do 3o ano de Educação Artística, com habilitação em Artes Cênicas, integrado por Carolina Caetano, Juliana Notari, Lígia Borges e Renato Barreto, reuniu-se ao longo de um mês para preparar o que seria intitulado por nós de Performance Dada. Princípios históricos e políticos da performance Antes de adentrarmos o experimento em questão, e para que hoje nós possamos entender melhor o que produzimos com as bases que tínhamos em 2003, apresentamos alguns antecedentes históricos da performance. Essa prática artística desenvolveu-se ao longo da segunda metade do século XX, ou seja, depois da Segunda Guerra Mundial. No entanto, alguns historiadores defendem que as origens das práticas performativas são remotas por entenderem que elas se aproximam do ritual, antecedendo os movimentos de vanguarda do início do século XX, entre eles o Dadaísmo e o Surrealismo. Mas a noção de performance como a conhecemos hoje surgiu por volta de 1960, época de inúmeras manifestações artísticas que não se encaixavam em cânones do teatro, da dança, da pintura, da escultura ou de qualquer outro gênero previamente conhecido. 44 Carolina Caetano é atriz formada pelo Teatro-escola Célia Helena (SP), professora licenciada em Artes Cênicas pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (IA-Unesp), foi atriz em vários grupos da cidade de São Paulo; é atriz e cantora no espetáculo musical permanente do parque multitemático Beto Carrero World (em Santa Catarina). Evill Rebouças é ator, encenador e autor (com indicação aos prêmios APCA e Shell); professor licenciado pelo Instituto de Artes da Unesp, fundador da Companhia Artehúmus de Teatro, autor do livro A dramaturgia e a encenação no espaço não convencional (Edunesp). Lígia Borges cursou graduação e mestrado em Artes Cênicas no Instituto de Artes da Unesp e, igualmente, pela Université Paul-Valéry – Montepellier III (França); docente no curso de pós-graduação lato sensu “A arte de contar história” do Instituto Superior de Ensino do Paraná (ISEP) e integrante do Teatro da Travessia. Renato Barreto tem graduação em Arte-Teatro pelo Instituto de Artes da Unesp; é docente na Universidade Estadual do Rio de Janeiro e bailarino.

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Performance Dada se aproxima desse desencaixe em relação ao que se encontra consagrado. Para sua realização, partimos de um roteiro que previa a junção de inúmeros expedientes para além dos cânones teatrais.

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O roteiro Performance Dada consistia em um tour pela Casa Rosada – antigo prédio do Instituto de Artes da Unesp, localizado na rua Dom Luís Lasagna, 400 – Ipiranga, em São Paulo. Apresentamos diversas microperformances inspiradas em características do “antimovimento” Dadaísta e na estrutura do teatro processional. Para a ocasião, foi confeccionado um “mapa crítico” do local e de seus arredores no qual constavam onde aconteceria cada intervenção e os comentários sobre o funcionamento da instituição de ensino (com uma “cara feliz” sobre o desenho da cantina e uma cara triste sobre a secretaria do departamento de graduação). Criamos estações correspondentes aos sentimentos humanos, pelas quais os espectadores deveriam transitar; buscava-se, em cada uma delas, intensificar o choque produzido pela imagem apresentada. Elaboramos sete esquetes a partir da proposição de lidar com um imaginário sem limites, com a criação e interpretação irrestritas, e com as ideias de loucura, de gula, de tempo e de morte. Buscávamos o afastamento de pudores e de valores moralistas da burguesia e rejeitávamos qualquer forma coercitiva ao pensamento e à ação. A proposta central consistia em uma grande exposição, no duplo sentido da palavra. Por um lado, a dos performers, que rompiam com seus tabus e inseguranças, entregando-se a situações extremas. Por outro, a dos espectadores, que eram convidados a participar de uma exposição cultural interativa. As ações se desenvolveram em diversos ambientes da Casa Rosada e em um ponto de ônibus. O tempo da apresentação não era sabido de início, já que dependeria dos espectadores-participantes. Tampouco havia um texto predefinido. Estabelecemos apenas um roteiro com a sequência de ações e liberdade de improviso para os discentes-performers. Primeira estação Os espectadores que ainda estavam dentro do Instituto eram encaminhados, por uma frase de comando dita em ordem inversa, ao


ponto de ônibus próximo à instituição. Lá, uma monitora entregava-lhes um mapa no qual estavam destacados os locais em que ocorreriam as performances e explicava todo o trajeto por meio de bruitismo (blablação). Um tempo depois passava um homem de bicicleta, trajando terno, que os cumprimentava com um sonoro e caipiresco: “Taaaaaarde”. Estação tempo I Na sequência, todos se dirigiam ao jardim da Casa Rosada. Um casal de velhos que lá estava permanecia inicialmente calado e realizava apenas pequenos movimentos, por alguns minutos. Em seguida, a senhora começava a cuspir os dentes (canjica) na plateia e o senhor transformava-se em uma galinha (que comia o que por ela era cuspido e bicava as pessoas ao seu redor). Retomada então sua forma de velho, ele começava a reclamar da vontade constante de ir ao banheiro. Estação tempo II Todos o acompanham ao toillete do teatro da Unesp (agora sem monitoria). Lá chegando, encontravam um homem em uma das cabines, em cujo crachá constava o nome Tutu-Prato. Seu texto era algo como: “Olá! Meu nome é Tutu-Prato e vou apresentar para os senhores um invento da mais alta tecnologia: a máquina do tempo. Bastará acionar este dispositivo (apontando para a descarga) e voltaremos 10 segundos. Querem ver?” Dava-se a descarga e o texto reiniciava-se ad aeternum. Pela terceira ou quarta descarga/volta no tempo, o velho que havia conduzido os espectadores até ali e que ainda estava dentro do banheiro, não podendo suportar, alagava de urina todo o chão. O procedimento para que isso acontecesse era revelado. A atriz que o representava posicionava uma bexiga furada cheia de chá entre as pernas e esguichava o líquido em direção aos presentes.

Estação desejo Saindo de lá, as pessoas se deparavam com uma mulher faminta diante da cantina. Sua cabeça estava apoiada em um pedaço de madeira,

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afastando-a de um bolo. Esse “apoiador” tinha um fio que deixava os espectadores livres para puxá-lo quando lhes conviesse e para realizar o desejo de gula da mulher. Quando um voluntário realizou a ação, a mulher caiu com o rosto diretamente no bolo e, finalmente, pode devorá-lo com ferocidade. Durante essa ação, ouviram-se gritos que vinham de alguns poucos metros dali, e todos dirigiram-se para esse outro local.

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Estação loucura Um homem jovem bem vestido, usando uma meia na cabeça, ao passar pela rua viu a senhora da segunda cena lendo um jornal. Estuprou-a violentamente, gritando escrotamente toda sorte de insultos e de xingamentos, urrando de prazer. Ela, por sua vez, aproveitava-se intensamente da agressão, não se mostrando menos jubilosa. Posteriormente, o homem bem vestido serviria aos presentes um “chá de pica” (com sementes de jequitibá, de formato sugestivo) e os encaminhava para a estação da morte. Estação morte I Em uma das salas da Casa Rosada, uma mulher nua, com divisões desenhadas por todo o corpo, como se fosse um boi em cartaz de açougue. Além dela, havia também um homem, vestindo casaco de pele e portando uma cabeça de boi, que se dirigiu até ela desejando comê-la. Ele pegou a carne (que, no escuro, pôde ser relativamente bem substituída por gelatina) e ofereceu aos que assistiam à cena. Estação morte II Apagou-se a luz. No escuro, uma palha de aço era queimada enquanto se ouvia uma música tibetana. Tratava-se da constatação da beleza existente no fim, no nada. Modos diferenciados de recepção

Pela elaboração do roteiro, nota-se a importância do papel do


espectador no experimento, principalmente porque ele é colocado como sujeito que pode interferir no andamento das situações apontadas e, nesse sentido, sua participação configura-se como discurso poético e político. Na Primeira estação, localizada no ponto de ônibus, o mais importante não era o que seria realizado pelo performer, mas o modo como as pessoas se comportariam diante de uma cena que não era iniciada. “Será que não existe cena? Será que a cena é a gente ficar esperando? Vamos ficar esperando do mesmo jeito como quando ficamos esperando os ônibus que nunca passam?” Comentários dessa ordem foram feitos até o momento em que o homem passou de bicicleta, disse “Taaaaaarde” e sumiu na paisagem urbana. Já na Estação loucura, a participação dos espectadores se deu de modo mais contundente. Enquanto se assistia pelo lado de dentro (no jardim da Casa Rosada) ao que se passava do outro lado da grade, o trânsito da Avenida Nazaré (a instituição ficava na esquina da rua Dom Luís Lasagna com essa Avenida), a alguns metros da entrada do Instituto, parava. Pessoas se aglomeraram na rua; um carro da polícia parou e invadiu a cena; um motorista de ônibus elétrico deixou o veículo na avenida e, enfurecido, tirou o cinto da calça para bater no homem da cena. O ator só não apanhou do motorista porque os espectadores (alguns sorridentes, outros assustados) explicaram a ele e ao policial o que estava acontecendo ali. Alguns estudiosos teatrais explicam esse fenômeno de participação do espectador amparados em algumas teorias, como, por exemplo, as relações proxêmicas (CAMARGO, 2003): a proximidade ou distância do público, bem como o seu livre percurso e escolha de lugar em relação ao espetáculo. Há nesses expedientes uma explicitação de liberdade perante a obra, e como não há separação ou limite entre cena e espectador, é possível sentir-se no direito de agir diante daquilo que se vê. Outro fator determinante para que se tenha uma plateia ativa se dá em função de características formais da dramaturgia. Nesse caso específico, o roteiro de Performance Dada é estruturado por fragmentos, bem como a ausência de trajetória de herói – expedientes que explicitam a inexistência de fábula (SARRAZAC, 2002). Se há alguma compreensão do que está sendo mostrado, ela não se dá pelos cânones da estrutura clássica, pois, como identifica Renato Cohen, temos outras possibilidades de recepção nesse tipo de experiência: A eliminação de um discurso mais racional e a utilização mais elaborada de signos fazem com que o espetáculo

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de performance tenha leituras que é antes de tudo uma leitura emocional. Muitas vezes o espectador não “entende” (porque a emissão é cifrada), mas “sente” o que está sendo feito (COHEN, 2009: 66).

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O que queríamos provocar (de modo intuitivo) Assim como fizemos em 2003, ainda hoje permanece, no meio acadêmico, a tendência de classificar um produto artístico como performance quando ele não se encaixa nos moldes consagrados de arte. Por outras palavras: se a obra é híbrida em termos de linguagem e não apresenta características formais que facilitem o seu entendimento, logo a classificam como espetáculo das artes performativas. Felizmente, existem outros estudos que elevam a performance a outros patamares, pois, sendo uma arte surgida no cenário do pós-guerra, carrega uma perspectiva de denúncia; de resposta por parte do espectador e, para tanto, necessita de uma proposta diferenciada como proposição estética. Eleonora Fabião, em entrevista ao jornal Diário do Nordeste, afirma: Gosto de colocar a performance em perspectiva histórica e relativizar sua origem ao invés de buscar defini-la ou enquadrá-la teoricamente. A estratégia da performance é resistir a definições. Ela trata justamente de desnortear classificações, de desconstruir modos tradicionais de produção e recepção artística (2009: 12).

O pensamento de Fabião e de outros estudiosos ajuda a desvendar o que se intentou realizar em 2003. Não se buscava apenas utilizar expedientes pouco convencionais como forma de se contrapor ao consagrado, mas lançar questões que estão no cerne das experimentações performáticas: pôr em suspensão certezas sobre o que é obra de arte – o espectador – o artista?


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Referências bibliográficas CAMARGO, Roberto Gill. Palco e plateia – um estudo sobre proxêmica teatral. Sorocaba, SP: TCM-Comunicação, 2003. COHEN, Renato. Performance como linguagem. São Paulo: Perspectiva, 2009. FABIÃO, Eleonora. Performance e teatro: políticas e poéticas da cena contemporânea. Revista Sala Preta. São Paulo, n. 8, p. 235-46, 2008. ______. Definir performance é um falso problema. In: Diário do Nordeste. Fortaleza: 09/07/2009. SARRAZAC, Jean-Pierre. O futuro do drama. Porto: Portugal: Campo das Letras, 2002.


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Foto de Bob Sousa da oficina ministrada por Marcos Bulh천es no Instituto de Artes da Unesp.


Poema – obra-colagem inserida no Primeiro Manifesto Surrealista (1924)

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por André Breton Historicamente, o movimento Surrealista (ainda que diretamente derivado do Dadaísmo) surge em 1924. A obra transcrita a seguir, intitulada Poema, foi composta por processo mecânico de montagem (a partir da junção de fragmentos de títulos recortados de jornais), cujo procedimento fora inventado pelos dadaístas. A inserção do Poema, inserida no Primeiro Manifesto Surrealista – cuja “transcriação” buscou seguir certo padrão para os estilos de letras e tamanhos do original –, atém-se à seguinte questão: Ao apresentar uma obra como esta, por meio dos mais diferenciados suportes, é possível “escapar” de sua tecitura original, bastante performativa? Uma gargalhada De safira na ilha de Ceilão As mais belas palhas TÊM A TEZ ESTIOLADA Na prisão

numa fazenda isolada DIA-A-DIA agrava-se O agradável Um caminho carroçável conduz à beira do desconhecido O café roga por si mesmo A ARTESÃ COTIDIANA DE SUA BELEZA MINHA SENHORA, um par de meias de seda


não é Um salto no vazio UM CERVO Antes de tudo o amor Tudo poderia acabar tão bem Paris é uma grande aldeia Vigiai o fogo incubado a oração do tempo bom Sabei que os raios ultravioleta terminaram seu trabalho bom e rápido

O PRIMEIRO JORNAL BRANCO DO ACASO Será o vermelho

o cantor errante ONDE ESTARÁ? na memória Na casa dele NO BAILE DOS ARDENTES Faço dançando O que se fez, o que se fará45

45 Dentre outras fontes, consultar André Breton. Manifestos do surrealismo. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2001.

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Um experimento performativo com O despertar da primavera46 por Lissa Santi Eu vejo a moral como o produto de duas forças imaginárias – o dever e o instinto.

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Homem, em O despertar da primavera. Era um seminário sobre o Expressionismo alemão. Muito estudamos sobre a vanguarda histórica europeia em questão e, como se já não fosse a proposta inicial, percebemos de fato que havia a necessidade de uma proposição estética sobre o que significaria o Expressionismo alemão aplicado ao teatro hoje, com os recursos de hoje. O despertar da primavera de Frank Wedekind, texto escrito em 1890, inaugurador, de certa forma, do Expressionismo em teatro, possuía características predominantes da primeira fase da vanguarda histórica estudada. Em razão disso, era necessário promover uma análise mais aprofundada, buscando entender tudo o que estaria em jogo em sua escrita. Houve uma grande identificação do grupo com o texto, tanto pela temática – o descobrimento da sexualidade de alguns pré-adolescentes e as questões sombrias que a moral impunha a esse respeito na vida adulta – quanto pela briga de gerações, grandemente decorrente da instabilidade política na Alemanha após a queda de Otto vom Bismarck. Além disso, pode-se afirmar que o Expressionismo (desde o pré-Expressionismo, e é esse o caso em questão) organizava-se por meio de palavras sombrias que combinavam com as demonstrações plásticas dessa vanguarda e sua apologia à escuridão, à deformidade. Escolhido o texto, quisemos evidenciar suas características, como a oposição da pureza e da inocência diante daquilo que pareceria natural e da moral imposta, sufocante e dominadora. Nesse ponto, pudemos nos aproximar de textos contemporâneos que, para nós, possuíam aproximação poética nesse sentido. Escolhemos um deles, A refeição – Segundo Movimento (MORENO, 2008), de Newton Moreno, autor pernambucano, lido por um dos integrantes do grupo, propositor da experiência, como uma introdução à instalação cênica na qual transformamos a sala 201, de aproximadamente 64 m², do Instituto de Artes da Unesp. 46 Relato escrito por Lissa Santi, com contribuições de Guemera Jorge, Luís Guilherme Conradi e Priscila Ortelã, estudantes do curso Licenciatura em Artes – Teatro do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (IAU - Unesp).


A instalação, por sua vez, era repartida em quatro ambientes, divididos por grandes estruturas de madeira encobertas por tecidos pretos que foram utilizados como divisórias. Em todos havia uma iluminação específica, predominando a cor azul e o foco direto, com consequente criação de sombras condizentes com a escolha da evidência de oposições. Muitos galhos, folhas secas e pedras recriavam no ambiente a floresta na qual as personagens da peça descobriam suas identidades sexuais, adultas e conflituosas, o que, no Expressionismo, simboliza o retorno à sua natureza humana, atávica... O público deslocava-se por entre as cenas e escolhia a que queria assistir. No primeiro ambiente, havia uma participante-propositora que fazia uma provocação parecida com a de Wendla, que pedia a Melchior que batesse nela. A intenção era sentir e descobrir o significado desse tipo de dor. Em seguida, em outro ambiente com duas participantes, acontecia o aborto de Wendla, cena que optamos por evidenciar, uma vez que na obra é apenas narrada, feito pela mão de uma figura-freira, símbolo opressor da Igreja. Em outro ambiente, havia uma recriação de Hanschen, aquele que se masturba com a gravura ou imagens de figuras míticas da Antiguidade clássica, transmutado por nós em mulher, na tentativa de evidenciar somente o que simboliza essa excitação, sem a necessidade de diferenciar os sexos. Na cena escolhida para inspirar esta ação, Wedekind propõe mais que uma crítica em relação à adoração ao passado, tão característico dessa vanguarda histórica, o faz, no caso da peça em questão, por meio das imagens de períodos históricos anteriores (a partir de imagética clássica). Trata-se de expediente característico texto, que vem acompanhado de uma reflexão quase perturbadora, uma vez que nele a descoberta do sexo é a descoberta das sombras. O último ambiente era habitado pela ideia de Moritz, rasgando um texto recitado em frente ao seu túmulo, projetado na parede por meio de refletores e chamas de velas. Na dramaturgia da cena, para performatizar os sentidos do público, colocamos, numa região mais escura, um homem aprisionado em uma gaiola; com ele, certa quantidade de carne especialmente apodrecida para a ocasião. Moritz e o “homem enjaulado” (que poderia representar aqueles que fruíam a obra) não apenas simbolizavam a morte e a prisão do corpo, mas, também, sobre a morte e o enjaulamento da esperança: o claro e o escuro imbricados no sem cor da alma humana. O experimento, desenvolvido na aula de História do Teatro e da Literatura Dramática V, solicitava certa junção, no trabalho de criação,

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entre expedientes característicos da vanguarda expressionista e outros da contemporaneidade que transitam com teatralidade mais contundente e performativa.

Referência bibliográfica MORENO, Newton. A refeição. São Paulo: Aliança Francesa, Consulado Geral da França em São Paulo. Coleção Palco Sur Scène.


Acaso... experimentação... ou Dada e o relato da primeira comunhão por Letícia Leonardi47 Misturo cânfora particular com miolo de sabugueiro do tempo e subo pelos mastros e velas retais definitivamente até a eternidade

Dada: arte e antiarte. Hans Arp48. A memória é um vaivém que se esconde, meu vestido é todo branco e minhas mãos estão cobertas de merda, cocô, excremento do mais sujo, ainda quente e úmido eu o devoro.

Letícia Leonardi. Dada é um espelho que se espatifou49, e os relatos aqui apresentados são apenas lembranças, cacos da minha própria imagem refletida. Muito jovem e recém-chegada do interior de São Paulo para estudar teatro, eu trazia comigo uma dose de selvageria e uma mala imbuída de bons modos e de vergonha com as quais o Dada viria dançar, zombar e fornicar. Cheiros, movimentos, gargalhadas, deboche, brincadeiras são lampejos que retenho. Pouco me lembro de como ocorreu o processo de criação do exercício dadaísta, proposto em 2005 pelo professor Alexandre Mate, no curso de Educação Artística – Habilitação em Artes Cênicas. Sei que o grupo, composto por Júlio Razec, Emanuela Araújo, Jorge Peloso, Luciana Hilst, Juliana Mado e por mim, fez inicialmente um estudo teórico e individual. Na bibliografia, tínhamos como referências Ribemont Dessaignes, Tristan Tzara, Hans Richter, além dos manifestos dadaístas. 47 Atriz e educadora no Centro Infantojuvenil do Sesc Belenzinho. Fez a graduação em Educação Artística, com habilitação em Teatro, e pós-graduação pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (IA-Unesp). É integrante do Grupo Terreiro de Investigações Cênicas da Unesp e atriz do Coletivo Cênicas Joanas Incendeiam. 48

Hans Arp apud Hans Richter. Dada: arte e antiarte. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p 44.

Segundo Hans Richter. In: idem, ibidem: “[...] a imagem do Dada será uma imagem pessoal sua, projetada a partir de suas convicções estéticas ou pessoais, de suas concepções referentes à nacionalidade e história da arte, e moldada por suas preferências”. 49

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No primeiro encontro coletivo, destacamos as informações que gostaríamos que estivessem evidenciadas na cena: “desmistificar atitudes”, “dinamitar a cultura”, “criticar a família”, “tudo ao mesmo tempo”, “ações paralelas” e “zombaria”. Espontaneamente, sugerimos músicas, casos, piadas, situações que julgávamos ter relação com os elementos destacados. Criamos então um argumento, livre de texto, contando apenas com a sequência das ações capitais e intervenções paralelas. O experimento aconteceu no antigo Instituto de Artes da Unesp, ainda no bairro do Ipiranga. Jorge Peloso era um cachorro humano, vestindo terno e gravata, que percorreu a entrada do campus na rua Dom Luis Lasagna, sendo perseguido por mim, a mãe exagerada e alienada que usava uma peruca loura e um vestido branco semelhante ao da musa norte-americana Marilyn Monroe. No interior do espaço de trabalho havia uma sala de estar de uma família burguesa. Sofá, abajur, tolha de crochê, televisão ocupando um lugar de destaque. Ao canto, um consultório médico. Júlio Razec era o doutor, que com deboche vendia o sangue de Cristo – Jesus Delivery. Ele narrava às gargalhadas a história do recém-nascido que jogara pela janela do hospital, por pura brincadeira com a mãe, pois o bebê já estava morto. Em seguida, Razec passava a ser o próprio bebê defunto. Lúcido e cabeludo, o bebê dialogava com as demais figuras com fluidez enquanto fumava um charuto. Seu pai, Juliana Mado, era um palhaço compulsivo que não deixava de ler nomes e sobrenomes da lista telefônica. A mãe se concentrava apenas em “Fi”, o cachorro da família, que estava terminantemente proibido de defecar sem informá-la, para que ela pudesse comer suas fezes ainda quentinhas, também oferecidas ao público. “Comer” e “defecar” eram ações que perpassavam toda a performance e suas ações aconteciam na mesma intensidade. Os atores do processo discorriam sobre as “teses”, de Xuxa Meneghel, em Luz no meu caminho, a Iná Camargo Costa, em Sinta o drama. Ler e ingerir comida eram atos indistintos, desmandantes do mesmo processo aflitivo, tanto para comer um bife quanto discutir filosofia. Ana Maria Braga, ao vivo, “participou” de uma cena ensinando os atores a desossar um frango. Repetidamente, o cachorro mandava a filha mais velha, Luciana Hilst, fechar a torneira; os atores xingavam o público e, quando menos se esperava, alguém erguia uma placa “O DADAÍSMO ABRAÇA AMOROSAMENTE O INCONSCIENTE”. Os atores, então, abruptamente paravam, abraçavam-se, beijavam-se, acariciavam o público


que segundos atrás fora agredido verbalmente. Tudo acontecia ao “mesmo tempo”, numa estrutura rápida de sitcom50 entrecortada por risadas em áudio. Estabeleceu-se uma relação de jogo, de riso e brincadeira com o público; porém, aos poucos, o nojo, a repugnância e o medo da sujeira tomaram conta da sala 5 do Instituto de Artes, culminando na simulação de um vômito coletivo dos atores e de algumas pessoas que, com ojeriza, retiraram-se do espaço. Pronto, lá estava eu com meu vestido tão branco como o de minha primeira comunhão, carregada por um palhaço, inebriada pelo acaso, com as mãos meladas pelas fezes de um cachorro de terno a me rodopiar às gargalhadas, “[...] liberdade: DADA DADA DADA, rugido das dores crispadas, abraço dos contrários e de todas as contradições, dos grotescos, das inconsequências: A VIDA”51. Ali eu comungava com Ela em meu vestido branco.

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Referências bibliográficas RICHTER, Hans Georg. Dadá: arte e antiarte. São Paulo: Martins Fontes, 1993. TZARA, Tristan. Sete manifestos Dada. Lisboa: Hiena Editora, 1987. 50 Abreviação de Situation Comedy. No Reino Unido, a expressão surgiu primeiro no rádio e depois na televisão para designar cenas de humor em situações cotidianas principalmente em ambiente familiar. 51

Tristan Tzara. Sete manifestos Dadá. Lisboa: Hiena Editora, 1987, p.19.


A estética do sonho em tempos midiáticos

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por Beatriz Marsiglia e Leonardo Mussi52 A vida só parecia digna de ser vivida quando se dissolvia a fronteira entre o sono e a vigília, permitindo a passagem em massa de figuras ondulantes, e a linguagem só parecia autêntica quando o som e a imagem, a imagem e o som, se interpenetravam, com exatidão automática, de forma tão feliz que não sobrava a mínima fresta para inserir a pequena moeda a que chamamos “sentido”. A imagem e a linguagem passam na frente. O surrealismo: o último instantâneo da inteligência europeia. Walter Benjamin.

As primeiras imagens vieram como lampejos após a orientação de trabalho sobre Surrealismo feita pelo professor Alexandre Mate. O fato se deu na moradia estudantil da Unesp, onde há anos não havia um aparelho de TV, que não nos fazia falta nem nos mantinha alienados em relação ao mundo. Como tinham o hábito de conversar, numa dessas prosas Emanuela Araújo (Manu) apresentou ao Leonardo Mussi (Leo) a ideia de uma TV que perseguia alguém pela cidade. Isso foi suficiente para que as imagens viessem num fluxo constante. Conseguiram uma caixa de TV antiga, enfeitaram as antenas com bombril e presilhas de cabelo, e compartilharam a ideia com todos da turma. A proposta foi muito bem recebida pelo grupo que passou a discutir como seria o andamento da performance e a elaborar o roteiro do vídeo. Concluímos que seria interessante para quem assistisse ao vídeo reconhecer os caminhos. Por isso, pensamos no Museu Paulista do Ipiranga, Metrô Vila Mariana, Centro Cultural São Paulo, Avenida Paulista e, por fim, a chegada ao Instituto de Artes da Unesp. Para compor os demais quadros, decidimos que cada figura seria de uma cor: Azul (Beatriz Marsiglia), Verde – duende (Camila Andrade), Preto – Menino Carvoeiro (Jorge Peloso), Branco (Leonardo Mussi), Roxa (Emanuela Araújo), Vermelha (Indiara Belo), Fadas (Ana Fuser e Kátia Beatriz Marsiglia é atriz e arte-educadora, licenciada em Artes Cênicas pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (IA-Unesp), integrante do Coletivo Joanas Incendeiam e trabalha em formação continuada de professores da Rede Sesi-SP. Leonardo Mussi é licenciado em Artes Cênicas pela Unesp; formado em direção pela SP Escola de Teatro – Centro de Formação das Artes do Palco; participou da Companhia Artehúmus de Teatro (2004-2012) e desenvolve pesquisa ligada ao teatro contemporâneo e à performance. 52


Ponte). Cada um pintaria o próprio corpo com a respectiva cor. A performance aconteceu da seguinte maneira: Primeiro movimento Na sala de aula, as pessoas eram vendadas, ouviam uma meditação, tinham seus sentidos estimulados com o toque, cheiros e sons agradáveis e recebiam um beijo azul. Segundo movimento Em seguida, eram conduzidas ainda de olhos vendados, de mãos dadas, por duas figuras/fadas até a sala onde tudo estava preparado. A sala escolhida não era muito utilizada; queríamos, com isso, criar a sensação de se estar em um lugar sem saber exatamente onde, sentir-se levado para outro plano, outro mundo... o que de fato aconteceu. Terceiro movimento As pessoas entravam na sala e sentavam-se em cadeiras dispostas ao longo das paredes, formando um corredor. Elas podiam retirar a venda, embora não houvesse nenhum comando especifico para isso. E foi o que ocorreu. A iluminação se dava pelas próprias projeções e por algumas lanternas manipuladas pelo público. Foram utilizadas algumas luzes muito suaves em determinados quadros para valorizar especificamente um ou outro momento. Quadro 1 A sala estava tomada pela fumaça; no teto, a projeção do vídeo de animação Estrela de oito pontas de Fernando Diniz53. Ambiente instaurado, o pião de madeira que era lançado ficava girando ao som de uma caixa de música.

53 Artista plástico, interno do Hospital Psiquiátrico Engenho de Dentro, frequentador das seções de terapia ocupacional da Doutora Nise da Silveira.

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Quadro 2

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A seguir, na parede à direita do corredor, próxima à porta, começava a projeção do vídeo em que Manu (de pijama e pintada de roxo) era perseguida pela TV (Kátia Ponte) pela cidade de São Paulo. A projeção terminava com ela chegando ao Instituto de Artes. De repente, batidas na porta da sala. As pessoas assustavam-se. Mais batidas na porta. Manu entrava correndo, como no vídeo, e trancava a porta. Depois de outras tantas batidas na porta, a TV entrava à procura da Manu. Entreato Queda de uma pessoa como se estivesse sonhando que estava caindo num precipício. A Figura/Fada (Kátia) caía no chão; entre espasmos corporais, dava um grito. Aos poucos ia silenciando. Quadro 3 Uma Figura Branca (Leo), com uma saia longa de papel vegetal, entrava e começava a dançar/rodar como um dervixe/pião e a movimentar-se como se estivesse tirando várias máscaras que cobriam sua face. Quadro 4 Surgia, então, uma espécie de duende verde (Camila Andrade), ao som de Yann Tiersen, com uma gata empalhada como se a estivesse oferecendo ao público, projetado em uma tela como se fosse uma legenda de cinema mudo, anunciando: Algo Maravilhoso!!! Lebre! Lebre! Lebre! Olha a Lebre! Quem vai querer? Ei!!! Ei!!! Psiu!!! Psiu!!!


Uma brincadeira com o dito popular “Vender gato por lebre”, corriqueiramente proferido por Alexandre Mate em sala de aula, ao som da Valsa de Amélie Paulain, de Yann Tiersen. Entreato Queda (Kátia) – continuação. Quadro 5 A Figura Azul (Beatriz) aparecia sem as mãos (encobertas por um casaco costurado por dentro). A porta da sala era trancada. Ela tentava sair da sala, sem conseguir. Desesperava-se, pegava vários “remédios” e tomava-os. De repente, a porta se abria. Ela saía. Quadro 6 Manu manipulava uma caveira que ria. Quadro 7 A Figura Branca (Leo), em movimento, começava a se despir, a rasgar a saia e ficava nu, começando a arrancar a pele e a sangrar. (Passei tinta guache no cabelo e na minha pele, cola e depois joguei talco por cima, o que criou uma segunda pele e uma textura; e colei, com esparadrapo, alguns saquinhos plásticos espalhados pelo corpo com líquido vermelho que, encobertos pela cola e pelo talco, não apareciam a princípio; rasgados, jorravam como se tivesse me cortado). Tudo isso ao som de Valsa de Amélie Paulain, de Yan Tiersen (parecendo uma caixa de música). Epílogo Momento de despertar do sonho da queda. A Figura/Fada (Kátia) deitada no chão, de olhos fechados, dava um grito como se acordasse de um pesadelo, tinha um espasmo corporal e se levantava.

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Enquanto todas as ações aconteciam, todas as figuras passeavam pelo lugar, seres de todas as cores entre os espectadores, auxiliando na manipulação dos equipamentos, criando um verdadeiro mundo de sonhos. Durante toda a performance o público reagiu como se tivesse adentrado um não lugar, onde a televisão, ícone da mídia – que impõe seus padrões e estereótipos de todas as formas, inclusive morais e comportamentais –, transformou-se num monstro que assustava e perseguia a todos. A reação do público se ampliava, como se tudo fosse realmente um sonho hiperbólico. As figuras de todas as cores, ao passarem, deixavam imagens que se dissipavam rapidamente. Não havia nenhuma linearidade, fazendo com que a plateia ficasse em um momento de suspensão, instante em que tudo poderia acontecer...


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Coletânea: SOBRENOME, Nome. Título do capítulo. In : SOBRENOME, Nome (Org.). Título em itálico. Local de publicação: Editora, data, página citada.

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