Mulheres, Trabalho e Alentejo

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MULHERES TRABALHO E ALENTEJO CADERNO DE HISTÓRIAS DE VIDA

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MULHERES TRABALHO E ALENTEJO CADERNO DE HISTÓRIAS DE VIDA Texto Marília Ribeiro Ilustração e Fotografia Marta Nunes Prefácios de Álvaro Domingues, Isabel Marçano e Teresa Simão

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Título Mulheres Trabalho e Alentejo Caderno de Histórias de Vida Edição Câmara Municipal de Portalegre 2018 Autora Marília Ribeiro Fotografia e Ilustração Marta Nunes ISBN 978-989-20-8788-7 Depósito Legal Impressão Fortisgraf Agosto 2018

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Índice Notas Biográficas 8 Agradecimento às Edições Colibri 10 Prefácios Adelaide Teixeira | Presidente da Câmara de Portalegre 11 Álvaro Domingues 12 Isabel Marçano 14 Teresa Simão 18 Palavras Prévias 24 A história da minha mãe 24 À procura de uma resposta 30 As trabalhadoras da Fábrica Robinson 35 As trabalhadoras da Fábrica de Lanifícios 61 As trabalhadoras da Manufactura das Tapeçarias 75 As trabalhadoras da Serra de S. Mamede 89 Acerca de uma visita ao Centro de Bem Estar Social de Reguengo 132 Notas breves 134 Palavras faladas nesta região do Alentejo 136

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Notas Biogrรกficas

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Nasci no dia 30 de novembro de 1963, em Lisboa, mas a minha infância e adolescência foram passadas em Sacavém e em Amieira do Tejo, uma aldeia do Alentejo. Nesta aldeia viveram os meus avós e a minha mãe, numa casa construída por um artista, o meu avô, pedreiro de profissão. Lembro-me de, em criança, contar os dias para que chegassem as férias para ir até àquela aldeia onde me sentia livre, até àquela casa onde me sentia feliz. Depois de ter terminado o curso de Sociologia, comecei a trabalhar como Conselheira de Orientação Profissional. A experiência que fui adquirindo desde 2003, ano em que me mudei para Portalegre, influenciou, de certa forma, o meu interesse por Histórias de Vida, porque, ao ler as autobiografias das pessoas que chegavam até mim, despertei para a riqueza que qualquer um(a) traz dentro de si, uma riqueza que merece ser perpetuada.

Nasci na primavera de 1984, em Lousada, desde que me lembro gosto de desenhar, aprendi a fazê-lo mesmo antes de falar ou escrever, dando forma aos meus sonhos e às histórias que as minhas avós me contavam. O desenho fez-me rumar para o interior do país e fazer a minha formação em Arquitectura, mas sem nunca deixar de gostar de ouvir histórias. Em 2013 mudei-me para Portalegre e continuei a desenhar mais do que a falar e a ouvir mais do que a escrever, sempre fascinada pelos rostos dos outros, pelas vidas que cada um tem para partilhar. Quando a Marília partilhou o seu sonho comigo, perguntei se lhe podia fazer companhia, se podia seguir com ela o caminho e ouvir tantas histórias como as que as minhas avós me contavam, fazendo o que sempre soube fazer melhor, ouvindo e desenhando.

Foi em 2013, ao participar na “Ajudada” - um movimento muito bonito e único que aconteceu em Portalegre - que tomei consciência de um sonho: eu queria sentar-me ao lado de mulheres lutadoras, ouvir as suas histórias e escrevê-las num caderno que estava guardado, à espera de ser usado. O pequeno universo de mulheres em cujas vidas eu queria dar um contributo para que não ficassem esquecidas foi ganhando forma e, em 2014, pus-me ao caminho.

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Agradecimento às Edições Colibri Depois de um sonho concretizado, ou seja, depois de ter oferecido a cada uma das mulheres destas histórias um livro da 1º edição apoiada pelo Município de Portalegre, que aconteceu no dia 8 de março de 2019 no auditório do Museu das Tapeçarias de Portalegre, agradecemos ao Fernando Mão de Ferro e às Edições Colibri a 2º edição deste livro. É uma alegria imensa saber que mais leitores poderão admirar as histórias de vida destas mulheres alentejanas, e, através das suas próprias histórias, imaginar ou reconhecer uma experiência aqui relatada. Eu e a Marta estamos muito gratas a si, Fernando Mão de Ferro, do fundo do nosso coração.”

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Ainda há muito por contar acerca do papel das mulheres na sociedade e na economia portalegrenses, na história local e até na História de Portugal. Apesar do sucessivo silêncio e aparente esquecimento a que têm sido votadas, as mulheres continuam a ser o pilar da casa e da sociedade, como tão bem demonstra este Caderno de Histórias de Vida, da autoria de Marília Ribeiro e Marta Nunes. Este livro é uma viagem ao passado e congrega um conjunto de biografias que fazem parte integrante do Património Imaterial do concelho. Cada capítulo é uma história de vida que tem nome próprio e nos permite aprofundar os nossos conhecimentos acerca das atividades do dia-a-dia dos portalegrenses, em particular nos setores agrícola e industrial. A história desenrola-se entre os trabalhos rurais na Serra de S. Mamede e as fábricas de Lanifícios e Robinson, passando também pela

Manufactura de Tapeçarias, e narra, através de conversas e entrevistas presenciais, vivências comuns a tantas mulheres alentejanas. Apoiada pela Câmara Municipal de Portalegre, a primeira edição desta publicação deu os primeiros passos no reconhecimento da relevância da fixação destas memórias relatando, de forma singela, a força, a sagacidade, o espírito sacrifício, a alegria e as dificuldades do dia-a-dia de mais de 30 mulheres entre os séculos XX e XXI. Nos últimos anos os debates em prol da igualdade têm reivindicado direitos, responsabilidades e oportunidades equânimes, mas nem sempre assim foi. E, porque o conhecimento do passado pode ajudar a transformar a realidade em que vivemos, damos os parabéns às autoras não só pelo trabalho final, mas sobretudo pela iniciativa de reunir e guardar neste volume tantas vidas que se cruzam ou cruzaram com as nossas nas ruas de Portalegre. Adelaide Teixeira Presidente da Câmara Municipal de Portalegre

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Mulheres Trabalho e Alentejo – caderno de histórias de vida Álvaro Domingues Geógrafo Professor na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto Investigador no CEAU - Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo

A minha vida foi trabalhar toda a vida A minha vida foi trabalhar toda a vida, afirma Joaquina Silva num depoimento muito sucinto mas absolutamente esclarecedor acerca da sua condição e daqueles que partilhavam o seu mundo – temos a noite e o dia e as veredas para andar, conclui. Os relatos que aqui encontramos, sejam os das operárias das fábricas de Portalegre, sejam os das gentes dos campos, sublinham a dureza da vida nos tempos da ditadura do Estado Novo. Para estas mulheres sujeitas a um imperativo moral de submissão aos mais velhos, ao homem, ao patrão ou à família, o trabalho começava bem cedo, antes mesmo de completarem a escola primária ou sequer de terem lá posto alguma vez os pés. As famílias eram numerosas e havia que tomar conta dos irmãos mais novos, ajudar a mãe, aprender costura, lavar roupa ou amassar pão, fazer as tarefas de casa, cuidar da horta ou dos animais. As casas eram exíguas, sobrelotadas e desconfortáveis. A vida na raia proporcionava alguns rendimentos do contrabando, coisa pouca que não dispensava as longas jornadas na apanha da azeitona, da castanha, na monda ou na ceifa. Não raro ia-se servir para casa de alguém mais abastado, faziam-se caiações, trabalhos de costura para fora ou matanças de porcos e preparação de fumeiro. As fábricas de Portalegre

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foram promessa de mudar de vida para muitas delas. Na cortiça, nos tapetes, nos lanifícios, os trabalhos e os dias seguiam repetitivos e duros, por vezes. Ao fim de semana ia-se visitar os parentes, a uma feira, a um baile, a uma excursão ou festa. No Natal havia festejos na fábrica e na fábrica se começavam namoros às escondidas. Reformavam-se cedo devido a problemas de saúde, - temos as mãos assim, desgraçadas - ou para cuidar de familiares. As vidas das pessoas comuns raramente constituem matéria de interesse para além de um campo estrito onde se confinam família e amigos. A grande história dispensa os relatos na primeira pessoa, reservando essa atenção apenas para os actores principais que desempenham cargos de poder ou que são apontados como marcadores importantes nos seus campos sociais de pertença e assim são conotados como grandes escritores, artistas ou pensadores. Os “famosos”, aqueles cuja visibilidade mediática se encarrega de multiplicar ou diminuir segundo a ocasião, constituem outro grupo de quem se fala. Face ao silêncio dos arquivos, à amnésia social ou à voragem do presente, estas histórias ficam como testemunhos de tempos em mudança, e de tempos cruzados entre a pré-modernidade e a modernidade. Por serem mulheres para quem os códigos de ética e moral eram mais severos

nas sociedades tradicionalistas, os contrastes são mais vivos, embora escassos. Todas as histórias são de vida e por isso há nelas todas as coisas que pensamos quando faltam as palavras para delas falar e então nos precipitamos nos lugares comuns – é a vida!, dizemos com aquele ar derrotado de quem desistiu de entender ou se entregou aos fados. Não é o caso destas mulheres. A vida foi-lhes aparecendo como as tais veredas para andar e por isso se andou, persistindo, sofrendo, lutando, resignando-se, ganhando ou perdendo, muita prática e pouca teoria. No trabalho por turnos, o caminho para a fábrica fazia-se a pé e demorava - à noite íamos com as estrelas e com a lua…, disse uma destas mulheres. A poesia da vida que vive nestas histórias é como esta viagem que, nos pequenos gestos, pode ser arrebatada para o firmamento como um sonho, um ímpeto de vontade para prosseguir sem grandes retóricas de pensamento, utopias ou desígnios heroicos, mas com a viva consciência de que a vida se vive com outros, com a capacidade de ser feliz e a consciência nítida da escassa possibilidade de mudar as injustiças do mundo.

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Isabel Marçano Investigadora de Sociologia e Antropologia CICS.NOVA (Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais/ Unversidade Nova de Lisboa CRIA - Centro em Rede de Investigação em Antropologia) - IUL (Instituto Universitário de Lisboa)

Chegar como turista a um lugar e partir é uma experiência diferente de permanecer e entrar na comunidade, aí se fixar com interesse pela vida local e pelo seu questionamento. À superficialidade da viagem como turista ocasional contrapõe-se a viagem mais profunda no tempo e no espaço, na participação de ritmos específicos, construção do conhecimento mútuo, pessoal mas também social. Na minha experiência como investigadora no Alentejo, ao qual também pertenço, saí da minha zona de conforto para uma aldeia apenas visitada na fruição de breves e raros passeios. A partir de 1990 fui passando na aldeia de Santa Susana, gradualmente, do trato à superfície ao tatear do conhecimento vivido, embrenhado nas relações sociais, no estar, no ficar, no dar-se a conhecer. Só assim foi possível aceder ao aprofundamento dos mundos que são as pessoas, com suas experiências, medos, sofrimentos e alegrias, sobretudo por se tratar de questões tão delicadas como os percursos pessoais e familiares no que respeita à intimidade, sexualidade, filhos ilegítimos e uniões de facto. Pela combinação de metodologias de pesquisa foi possível pôr em jogo significados e sentidos de ações e relações entre pessoas e grupos sociais no mundo rural dominado pela grande propriedade, pobreza e trabalho rural instável. O respeito pela intimidade privada das histórias partilhadas fez com que só muitos anos depois viesse a publicar parte do texto, entretanto revisto, sob o título Filhos de Engano. O livro de Marília Ribeiro parte de uma auto-

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biografia familiar, tendo a sua mãe, uma mulher alentejana especial para si, como personagem central. Perder a mãe é perder, simbolicamente, uma parte de nós. E é como resposta ao que identifica como “vazio” e “incompletude” da vida mãe-filha que a autora redefine o seu projeto de vida pessoal e familiar. Talvez que esta homenagem às suas raízes seja responsável por deambulações físicas, afetivas e mentais pelo Alto Alentejo, onde se radicou em 2003. O seu texto surge com pendor etnográfico com histórias de vida no feminino, registadas para a posteridade em texto e enriquecido por fotografias e ilustrações de Marta Nunes. 1 A metodologia da história oral de vida, tão valorizada na Antropologia, foi, durante muito tempo, menosprezada na investigação social faminta de certificação científica objetiva e que, por isso mesmo, se curva a valorizar os métodos quantitativos. Porém, é o próprio Pierre Bourdieu que, depois de a depreciar, se inclina e aceita as histórias de vida como metodologia no estudo da experiência do mundo social da pobreza, em França, ao dirigir um grupo de investigadores em 1993. Um dos principais contributos de Marília Ribeiro é registar a fala de mais de uma trintena de mulheres alentejanas que passa à escrita com simplicidade e que ficariam esquecidas. Mulheres entre 58 e 96 anos de idade mas

sobretudo na casa dos 80 e 70 e mais anos, surgindo, inesperadamente, um homem como contraponto das entrevistas no feminino. Esta é uma fonte de informação e, a partir daqui, gerações vindouras e futuras pesquisas de foro etno-sociológico poderão ensaiar a busca de sentidos e significados de vidas femininas, de sentidos do trabalho das mulheres e em diferentes gerações no Alentejo. Com efeito, na cova de cada idoso morrem também memórias pessoais, familiares e coletivas se as mesmas não forem objeto de atenção e registo. O que une e separa a experiência de vida de mulheres em diferentes épocas e espaços? Como recebem filhas e netas de hoje os relatos destas mães, avós, bisavós e mulheres mais velhas? É uma receção da mensagem interessada ou alheada no entusiasmo possível que o consumo da modernidade permite e a publicidade estimula? Onde está a potência do vivencial contado por mulheres mais velhas e agora transcritas e publicadas? Que sentidos ajudam a conferir à tapeçaria de vidas próprias e das gerações mais novas? Estas são algumas das questões que a leitura dos textos nos despertam. Para as mulheres de três unidades industriais de Portalegre e para as trabalhadoras rurais, tal como para as “minhas” mulheres do Baixo Alentejo, o trabalho faz parte da vida, sendo aceite o sofrimento como parte do trabalho fossem as mulheres trabalhadoras rurais ou operárias. Como refere Joaquina Silva (78 anos de idade, pág. 127) “a minha vida foi trabalhar

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toda a vida”. Algum convívio, sobretudo em bailes, depois de fainas trabalhosas, permitia usufruir a alegria de sobreviver às dificuldades do quotidiano e namorar. Nas histórias aqui recontadas, trabalho fabril e trabalho rural entrecruzam-se, muitas vezes. 2 A uma unha de Espanha, muitas famílias recorriam ao contrabando no Inverno para obter mais recursos de vida mas correndo riscos de acossamento e prisão. Trabalhar em ranchos de mulheres e dormir em casões de herdades longe da família são experiências comuns a mulheres e homens do Alto como do Baixo Alentejo, como pudemos estudar. Trabalho de servir, trabalhos de campo, trabalho fabril e contrabando são experiências que permeiam as histórias contadas sendo notório o papel das mulheres como gestoras do lar e “economistas” da casa mas sem pergaminhos oficiais. Nos relatos das mulheres é notório que o contrabando permitia ganhar mais do que o trabalho à jorna e os dados sugerem que o

trabalho fabril, pese embora as suas dificuldades, permitiu elevar o nível de vida que o trabalho do campo não facilitava. O vazio provocado pela quebra da rotina do trabalho na fábrica, seja por reforma ou desemprego, é válido antes como hoje, como assinalámos a propósito das vivências do trabalho e do desemprego em Amantes do Sr. Trabalho. A exposição de si próprio é, nas sociedades tradicionais (onde ainda tende a predominar o recato e o valor da privacidade) um ato de coragem, diferente dos gestos de abundante exposição narcísica dos tempos modernos na televisão e nas plataformas digitais, por exemplo. Tal coragem está presente em Marília Ribeiro que eu congratulo também pela amizade que nos une, pelo afeto que a liga ao Alentejo e à boa gente que o povoa.

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Teresa Simão Investigadora de Linguística e Património Imaterial Cátedra UNESCO em Património Imaterial e Saber-Fazer Tradicional Membro Integrado do CIDEHUS - UE (Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedade da Universidade de Évora

Mulheres – trabalho e Alentejo é uma obra escrita com o coração que retrata uma parte da sociedade portalegrense dos séculos XX e XXI. Inspirada na sua mãe, que partiu cedo demais, Marília Ribeiro reuniu cerca de trinta histórias de vida de mulheres do distrito de Portalegre que partilham o terem sido verdadeiros exemplos para as gerações vindouras. Com uma média de idades de setenta e sete anos, quase todas têm em comum um início de vida marcado por muitas dificuldades e uma melhoria conseguida a custo de muito trabalho e, na maior parte dos casos, muito sofrimento. Numa época em que Portalegre era uma cidade caracterizada por alguma indústria, muitas das senhoras aqui apresentadas passaram pela Fábrica da Robinson, pela Fábrica dos Lanifícios e pela Manufatura das Tapeçarias de Portalegre; outras dedicaram-se aos trabalhos rurais, ao contrabando e, claro, todas elas sempre desempenharam com zelo as funções domésticas e os papéis de filhas, mulheres e mães dedicadas. Na verdade, ilustram tempos em que a população mais carenciada vivia essencialmente para trabalhar, poucos eram os seus momentos de lazer. Estes resumiam-se a uma ida ao baile, à Feira das Cebolas, à Festa dos Aventais e pouco mais. Ainda assim, a amizade, a partilha e a entreajuda tinham um significado muito mais amplo do que atualmente. O facto de não terem podido ir à escola ou terem de a abandonar precocemente e logo começarem a trabalhar e a ter responsabilidades a nível

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familiar (por exemplo, a cuidar de irmãos mais novos) e profissional fê-las crescer mais rapidamente e dar mais valor a tudo o que iam conseguindo obter a pulso. No entanto, para muitas, o exercício de tarefas desadequadas para a sua idade e/ou para a sua estrutura física deixou-lhes marcas profundas e tornou a fase final das suas vidas num período também de muito sofrimento. Algumas senhoras tiveram de se reformar por invalidez ainda muito jovens; outras, quando chegaram a deixar o trabalho a que se dedicaram, estavam também já com a sua saúde muito debilitada, o que torna as suas vivências mais difíceis. Com a leitura desta coletânea de histórias de Mulheres, mais do que ficarmos a conhecer senhoras fantásticas, temos a possibilidade de viajar no tempo e relembrar profissões de outrora, tais como, ajuntadeira, urdideira, retorcedeira, escolhedora… Também os hábitos alimentares e costumes do quotidiano nos são aqui apresentados. Através destes trinta testemunhos, ficamos a conhecer como estavam distribuídas pelo dia as refeições e quais os principais pratos da época. Uma vez que os dias de trabalho começavam mais cedo do que atualmente, o almoço tinha lugar por volta das 9:00 horas, sendo o jantar às 12:00h. Às 18:00h merendava-se e, cerca das 21:00h, ceava-se. Numa época marcada por muitas carências económicas, a alimentação consistia essencialmente no que a horta lhes fornecia e em alguma carne de porco. Assim, constituíam refeições da altura couves com feijão preto,

favas cozidas, saramagos, sopa de couve, sopa de batata… Os enchidos eram muitas vezes o “conduto” e só em épocas festivas, como no Natal ou na Páscoa, comiam coelho ou galinha. Ao longo da obra Mulheres – trabalho e Alentejo, surgem ainda alguns regionalismos (a título de exemplo: esparramou, aventado, fintura de malteza, gateras, advertidas, caqueros, maraconhos, cordice) que já só os mais idosos compreendem em pleno. Com a partida destas gerações desaparecerão não só uma parte importante do nosso património imaterial, no que toca ao seu saber-fazer, como também variedades linguísticas que, se não forem rapidamente registadas, salvaguardadas e dinamizadas, não passarão de longínquas memórias. Em pleno período de globalização, em que tudo tende a assemelhar-se e se verifica uma perda generalizada das identidades, com esquecimento forçado de tradições e costumes, este trabalho e os cruciais testemunhos que ele encerra são um contributo indiscutível para reverter a tendência em curso. O livro de Marília Ribeiro para além de ser louvável por nos dar a conhecer testemunhos que, de outro modo, se perderiam sem ser partilhados, abre caminho para trabalhos futuros da autora ou de outrem com vista ao desenvolvimento das múltiplas temáticas aqui abordadas. Esperemos que haja uma continuidade e que as gentes e o património imaterial do Nordeste Alentejano continuem a ser estudados e devidamente valorizados. 19


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“As pessoas comuns universalizam, através de suas vidas e de suas ações, a época histórica em que vivem. Elas são exemplos singulares da universalidade da história humana.” Norman K. Denzin

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Palavras Prévias Para além das minhas experiências de vida, foi a força da minha mãe que, embora tenha morrido há já 19 anos, me impulsionou para a descoberta das histórias de vida de mulheres que hoje caminhariam pela sua idade; mulheres com responsabilidades familiares semelhantes às suas, mas acrescidas de responsabilidades profissionais. Mulheres que nasceram e cresceram no mesmo distrito que ela, mas mais perto das oportunidades de emprego oferecidas por Portalegre, uma cidade com uma vida comercial e industrial na altura ativa. Outras aprenderam a ganhar o pão no país vizinho, para o qual passavam num pé, voltando no outro, em busca de um modo de sustento muitas vezes clandestino. Outras cresceram no mundo rural que a serra de São Mamede oferecia, um mundo onde se trabalhava debaixo de um sol tórrido, debaixo dos céus chuvosos e cinzentos de frio, este mundo, mais próximo da realidade da minha mãe. Curiosamente foi aqui que encontrei um maior número de senhoras na casa dos 80 anos, a minha mãe teria 84 se fosse viva, mas, como naqueles anos os percursos de vida se perpetuavam de uma década para a outra, as vidas das mulheres que atualmente vivem na casa dos 60, 70 e 80 têm muito em comum. Vou contar-vos histórias que fui anotando entre os meses de junho e dezembro do ano de 2014, num caderno que estava guardado para algo indefinido, mas que seria especial, histórias de mulheres que não precisaram de migrar ou emigrar com a sua família (tirando um ou dois casos), como acontecia noutras zonas do interior de Portugal, embora algumas se tivessem visto 22

privadas dos seus companheiros, roubados pela guerra colonial durante uns anos. Apesar deste acontecimento, ficaram por cá com as suas famílias, acolhidas e protegidas pela serra e pelo seu regaço, onde vive tranquilamente a cidade de Portalegre. Mulheres que trabalharam nas três unidades industriais da cidade e trabalhadoras rurais cujo dinheiro que ganhavam em solteiras ia diretamente das suas mãos para as dos pais, mas, uma vez casadas, passariam a ser gestoras do orçamento familiar. Algumas intercalaram o trabalho na fábrica com o trabalho no campo, onde, apesar de tudo, se sentiam mais próximas da sua natureza; outras, algumas das tecedeiras, tiveram o privilégio de tocar o exterior com seus dedos, que, devido à proximidade que tiveram com os artistas importantes da sociedade portuguesa, viram o seu trabalho manual bastante valorizado, porque único, belo e complexo. As trabalhadoras das fábricas Robinson e Lanifícios, indústrias de enorme valor nos anos 50, 60 e até 70, viram o resultado do seu esforço mais confinado ao espaço onde se movimentavam. Só algumas referiram com orgulho que o seu trabalho era valorizado fora da cidade e além fronteiras, como era o caso dos tecidos da Fábrica da Lanifícios e das placas de cortiça para revestimento ou isolamento de chão e paredes de espaços públicos e habitações. Ficou em mim gravado o elevado de realização profissional das mais antigas da Manufatura das de Portalegre, talvez porque, ao

sentimento tecedeiras Tapeçarias terem tido


oportunidade de contactar com a arte e com os seus criadores, tomaram uma consciência diferente do valor do seu trabalho em termos financeiros e emocionais. As operárias das outras duas indústrias tinham como motivação principal para o trabalho o peso dos escudos que recebiam em troca do seu enorme esforço físico e emocional, o qual permitia alimentar a família. Muitas reformaram-se cedo, por doença. As trabalhadoras rurais, na sua maioria, mostraram agrado pelo seu trabalho: semearam, viram crescer e colheram, na sua parcela de terreno, o que era seu e da família ou então, quando trabalharam em herdades ou quintas, viveram a alegria no trabalho, proporcionada pelo convívio entre as colegas, traduzida em cantigas à desgarrada, em risadas entre enamorados e em bailes, após a extenuante jorna. Algumas destas mulheres até viveram na sua infância e adolescência uma experiência profissional diferente, baseada em transações comerciais de contrabando, influenciada pela zona raiana onde viviam.

trabalhou numa empresa que oferecia bons salários aos profissionais especializados; aqui estas mulheres precisaram de trabalhar desde crianças para ajudar a alimentar a família e, uma vez adultas, casadas e com filhos, continuaram a aplicar a força do seu trabalho na indústria e na terra, contribuindo, assim, para que o país fosse alimentado com o que as fábricas produzissem e com o que da terra crescesse.

Num mesmo espaço temporal, enquanto a minha mãe bebia as oportunidades oferecidas por viver no litoral, ao lado da capital, ao mesmo tempo que desempenhava os diversos papéis esperados de uma mulher, outras mulheres do seu tempo reproduziam os costumes, a cultura e os hábitos da terra onde nasceram, situada a cerca de 200 Km de distância. Enquanto lá a minha mãe nunca sentiu a necessidade de dedicar o seu tempo a um trabalho assalariado, porque o meu pai 23


A histĂłria da minha mĂŁe

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A minha mãe nasceu numa aldeia do Alto Alentejo, separada da Beira Baixa por um rio cuja linha traça a fronteira. Amieira do Tejo não é uma aldeia de passagem e, talvez por isso, desconhecida ainda por muitos ao seu redor. Onde há hoje uma mancha de eucaliptos, tiveram vida hortas ricas em água que, antes de correr pelos carreiros de terra moldados pela sachola do seu dono, descansava tranquilamente em tanques ao som do coaxar das rãs. A ligação da aldeia àquelas hortas fazia-se por caminhos tortuosos de terra, de onde emergiam pedras nas quais escorregavam os cascos dos burros calçados pelo ferreiro da terra, assustando, por breves segundos, quem ia montado. Quis ela enamorar-se, casar-se e ir viver às portas da grande cidade de Lisboa. No meu imaginário, o meu o pai, que nasceu em Portalegre, andava descalço em criança, guardando porcos nos campos de um Alentejo para os lados de Ponte de Sor, a vila para onde a sua família se havia deslocado naquele tempo. Quando ele nos falava dos seus tempos de criança, sublinhava o seu andar “descalço”, acentuando esta palavra com o exato peso que ele sentia, mas a história real contada pela minha irmã, mais velha que eu nove anos, diz que o nosso pai andava descalço, sim, mas não guardou porcos. Ele andava descalço, porque os sapatos que tinha para calçar quando ia à escola, onde só se podia entrar calçado, eram do irmão, apertavam-lhe os pés e deste desconfortável estado ele queria libertar-se rapidamente assim que passava a porta.

O sonho de viver uma vida melhor foi concretizado por ambos ao migrarem para a grande cidade. O meu pai empregou-se, aprendeu o ofício de serralheiro mecânico na Companhia Nacional de Eletricidade, atual REN, uma unidade entre Sacavém e Moscavide, e a minha mãe cuidou do lar. Moraram durante uns tempos nesta última vila, num quarto à renda com serventia da cozinha e da casa de banho e, mais tarde, já com a minha irmã, alugaram uma casa situada num prédio localizado na Avenida, muito perto da igreja. Uns tempos depois, foi a minha mãe quem convenceu o meu pai a comprar uma casa em Sacavém. Grande coragem esta de uma mulher ter a iniciativa de pedir dinheiro emprestado ao banco para comprar uma casa nos anos sessenta!... O meu pai ainda recuou, com medo de não conseguir pagar aquele empréstimo durante 25 anos, mas ela insistiu e o contrato de hipoteca foi assinado. A casa custou na altura cerca de 250 mil escudos e ficou orgulhosamente paga sem quaisquer atrasos ao fim daqueles anos. A minha mãe nunca trabalhou fora de casa, mas os seus dias estavam sempre ocupados. As suas tarefas diárias relacionavam-se com o alinho da casa e das roupas, com a confeção do almoço e do jantar; as tardes eram dedicadas à costura, às rendas e aos bordados. Ao fim de semana decorava as refeições com um doce, às vezes uma receita nova ouvida da boca do chefe Silva através da RTP. Os programas sobre culinária e a vida animal eram os seus preferidos. Ouvia diária e atentamente o drama de “Simplesmente Maria” na sua telefonia estrategicamente colocada na 25


prateleira por cima do lava-loiças, bem como as notícias, as canções portuguesas e, de Lisboa, ouviam-se também as vozes incomparáveis dos Parodiantes. Era a esta telefonia que o meu pai colava o ouvido à noite, depois de fechada a porta da cozinha, e rodava aquele botão do lado esquerdo, procurando por entre os ruídos de pré sintonização, minimizados ao máximo, indícios de vozes antecedendo uma revolução. Este episódio que acabo de relatar também foi imaginado por mim e conservei-o como real até há bem pouco tempo. Mais uma vez, a história que a minha irmã me contou diz que esta atenção para com a telefonia de porta cerrada era com outro sentido, o de ouvir as notícias sobre o nosso país. Mas, como o pai tinha tanto medo, até receava que as paredes o vissem e ouvissem e fossem fazer queixa à polícia que defendia o Estado. O peso da PIDE tinha este efeito… Eu, ainda criança, não entendia o porquê de tanto segredo para com aquela telefonia, mas também não fazia perguntas, com medo de ser ouvida por alguém invisivelmente poderoso. Retomando a história da minha mãe, ela ia às compras diariamente, por volta das 9:30 horas, com a sua cesta de verga, a qual regressava a casa com as pendentes ramas cheirosas dos legumes cuidadosamente acomodados. Nestas compras diárias adquiria-se o essencial para o dia - o pão na padaria, o leite na leitaria, as frutas e os legumes na mercearia, um bolo na pastelaria e, na drogaria, algum produto de limpeza ou desinfeção em falta. As compras maiores eram feitas ao sábado, duravam a manhã inteira, num percurso que a mãe traçava desde o mercado 26

da vila (aqui comprava as frutas, os legumes e o peixe fresco), passando pela casa dos cafés, pelo talho, de onde trazia a mioleira fresca, alimento indispensável ao crescimento de qualquer criança, pela leitaria, pela padaria, até à drogaria. Ela orientava o ordenado do meu pai de tal forma que ainda conseguia poupar alguns escudos. Lia; gostava muito de ler Camilo Castelo Branco. O meu pai tinha ciúmes do Camilo e um dia desapareceu com o seu busto cinzento que decorava a estante dos livros - “os livros punhamlhe coisas na cabeça” - dizia ele. Ela gostava de conversar com as vizinhas quando ia ao mercado, de assistir a uma Revista Portuguesa no Parque Mayer, a um cinema indiano no Cinema Monumental e de ouvir o seu L.P. “Bolero de Ravel” no meu gira-discos de plástico cor-delaranja. Todos os anos, em setembro, eu acompanhava a minha mãe à Baixa de Lisboa. Lá íamos as duas levantar os juros que haviam crescido durante o ano num banco situado na Rua do Ouro e depois aproveitávamos para fazer a compra de um tecido mais bonito para uma saia ou um vestido, para fazer a compra de novelos de lã para umas camisolas com as quais receberíamos a próxima estação, para fazer a compra de linhas para bordar o nosso enxoval, trabalhado com anos de antecedência e guardado numa pesada arca de madeira de carvalho que ainda hoje oferece o seu aroma às peças aí arrumadas. Assim que eu entrei para a faculdade, comprou-me, aconselhada pela minha irmã, uma enciclopédia


da Imprensa Nacional Casa da Moeda que demorou anos a ficar completa - tudo demorava muito tempo a ver-se concluído…. Tinha uma aptidão que lhe permitia perceber a descrição verbal de um modelo de vestido pretendido por mim, desenhava o molde no tecido, cortava e cosia. Possuía uma grande destreza matemática que tentou passar-me - foram tantas as vezes que ela me ajudou naqueles problemas da 3ª e 4ª classes que implicavam mais do que um cálculo… - mas a rudeza da professora de instrução primária, Sra. Professora Dona Ilda, ajudou a criar dentro de mim um tal pavor por aquela velha escola que este passou a impor-se-me e a limitar a minha criatividade, a minha memória e a minha capacidade de aprender os cálculos matemáticos quando tinha que dar uma resposta sob pressão. Lembro-me que, um dia, a professora pediu à classe, composta só por meninas, que fizesse uma composição sobre a primavera e não é que nada me ocorria como história bonita? Com medo das consequências por nada escrever, copiei algumas frases da minha colega de carteira. Aqueles anos que passei dentro da escola, entre 1970 e 1974, foram amargos e frios, causaramme dores no estômago… queria ficar doente, ter febre, pretexto que usaria para faltar à chamada diária, quando chegasse a vez do meu nome. Cá fora sim, cá fora eu corria, brincava, era rápida nos jogos de rua, a correr, a saltar, a andar de bicicleta; era perspicaz a jogar às cartas e ao xadrez, às damas e ao dominó, ao jogo da Glória e ao Monopólio. Soltava-se-me a felicidade do corpo ao brincar. Felizmente para mim, tinha este espaço de

liberdade que compensava a prisão, imagem que ficou daquele espaço e tempo chamado Escola, cabendo esta numa frase de obediência entoada em coro, de pé, bem alto, para que ficasse clara a sua autoridade para com os mais pequenos “Sim, minha senhora”. A minha mãe andava muito a pé, adorava as flores e o cantarolar dos passarinhos. Não permitia que a gaiola da varanda da casa de Sacavém ficasse vazia, havia lá sempre um passarinho que cantava, geralmente um pintassilgo, cuja liberdade o meu pai roubava sempre que a morte deixava a gaiola sem cantor. Ela habituava-o a comer bocadinhos de maçã, bem como folha de alface, que, para além de a achar saborosa, suscitava nele uma vontade de se refrescar. Como tal, sempre que lhe oferecia uma, ele esfregava nela as suas penas eriçadas, permitindo este gesto o toque da frescura na sua pele. Um complemento que permitia esta fresca sensação nos dias quentes era uma mini banheira de plástico com água, onde ele se sacudia, saltando gotas de água por todos os lados. O auge da alegria acontecia quando a gaiola era colocada debaixo da torneira e ele a usava como se de um chuveiro se tratasse. Depois destes banhos, ficava no ar um cheiro a passarinho!... As flores e os catos que cresciam em vasos decoravam alguns móveis da cozinha, bem como o parapeito da janela da casa de banho e a varanda. Entretanto a vida em conjunto com o meu pai era difícil. Ele carregava uma doença psiquiátrica que foi diagnosticada alguns anos após terem casado e nós, a minha mãe, a minha irmã e 27


eu, sofríamos com as suas atitudes moldadas por aquela psicose. Depois de lhe passar o que nós nos habituámos a chamar de “euforia”, ele sofria e, nesse intervalo de ausência, desejava morrer a enfrentar o sofrimento que esse vazio deixava em si, um vazio pesado de remorsos. A minha mãe contou-me um dia que, embora já estivesse muito saturada, nunca teve coragem para desfazer o nó daquela relação, porque tinha pena, porque não queria perder a casa e a vida que ela ambicionava para as filhas na capital e porque sabia que ele a perseguiria até ao fim do mundo, a aldeia onde nascera, pedindo-lhe que voltasse. A minha mãe viveu até aos 64 anos. Um acidente interno prendeu-lhe os movimentos para sempre neste nosso espaço, neste nosso tempo. Queria ela ter-se chamado Maria João, porque nasceu no dia de São João, porque era o nome da sua melhor amiga, ou então Noémia, nunca Arménia. Ela lá tinha a ideia de que o seu pai, no trajeto a pé da aldeia até ao Registo, se teria esquecido que o nome a dar à sua filha seria Noémia e o mais parecido que encontrou na sua memória fora Arménia. À parte o nome com o qual a registou, ela admirava-o muito. Conhecido pelos amigos como o “Bom Vinagre”, uma das únicas vezes que fez frente à minha avó, conhecida pela “Tá Conceição Gargantada”, foi para permitir que a jovem filha Arménia

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comprasse umas meias de vidro para levar a um baile. Era um homem considerado pelos vizinhos como “uma paz de alma”. A imagem do seu vulto no palheiro onde comia e dormia a burra Boneca, lançando baforadas de fumo de cigarro aceso às escondidas da minha avó para que não lhe provocasse arrelias, ficou gravada na minha memória: uma imagem que se recolhia para evitar confrontos. Era alto, bonito e tinha muita força, mas a força feminina da mulher sobrepunha-se. Ele morreu com um cancro nos pulmões. Ela viveu mais uns anos e foi nesses que descreveu, em forma de poemas, a importância do papel social dos seus vizinhos de aldeia; desde o padre ao padeiro, passando pelo coveiro, não deixando escapar, neste relato, a história de todas as capelinhas.

do óleo, a mudar um pneu e a conhecer as respetivas ferramentas a utilizar caso algum se furasse numa viagem, o que era bastante comum naquele tempo, devido ao mau estado das estradas e aos pregos que se soltavam das rodas das carroças que, matreiramente, inutilizavam as rodas mais velozes dos seus concorrentes. A minha mãe não se metia nestes assuntos. A vida continuou, a minha irmã casou e saiu de casa, com muita pena minha. Eu saí também quando casei, aos 27 anos, e a nossa mãe deixounos passados cinco anos. Ficou em mim um vazio que eu estou aprendendo a aceitar. Sinto que, desde então, algo ficou incompleto na minha vida e na da minha mãe também.

Voltando àquela casa às portas da cidade de Lisboa, passaram-se aqui muitas histórias entre o meu pai, a minha mãe, a minha irmã, rapariga determinada, e eu, tímida e insegura. Acho que o meu pai ficou triste por nenhuma de nós ter nascido menino e ficaria muito contente se uma de nós concluísse um curso superior, se fosse o de Engenharia Mecânica, ainda melhor. Tentou motivar-me para apreciar motores e ferramentas; tinha uma enciclopédia sobre o automóvel e queria que eu a lesse, mas eu fugia dela. Todavia, não me escapei de aprender a lavar o carro da família, um Ford Cortina bege, a verificar o nível

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Ă€ procura de uma resposta

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Esta necessidade que eu tive de ouvir e de escrever histórias de vida de Mulheres do seu Tempo completará algo na história comum a nós duas? Quando, em 2014, planeei esta procura de histórias que seriam contadas por quem as viveu, imaginei-me numa casa tradicionalmente rural num dia de inverno, ouvindo uma senhora na sua importante cozinha e, por isso, maior do que as restantes divisões, onde a lareira ocupava uma parede inteira. Dentro dessa lareira alentejana, uma pequena mesa de madeira abrigava uma gaveta de um possante tamanho, da qual exalavam o aroma suave do pão e o forte e duro do queijo amaciado pelo azeite, uma mesa concebida para um casal, igual àquela que era usada pelos meus avós à hora do almoço, na cozinha do quintal.

Foi num dia de outono desse mesmo ano, na Ribeira de Arronches, que eu encontrei “aquela senhora” na sua cozinha, um cenário que imaginara meses antes! Este dia alimentou a minha alma com o pão e com o queijo dos tempos da minha infância, alma que se sentiu aquecida pelo calor de um lume que voltou a nascer no chão da lareira alentejana dos meus avós. A minha mãe bordou muitas peças do seu próprio enxoval, mas, para mim, há um naperon especial, um naperon onde gravou um desejo: “Quero ser Amada”. É com amor que a ela eu dedico este caderno de histórias contadas por Mulheres do Seu Tempo, mas que, ao invés da minha mãe, a vida convidou para continuarem no Alentejo, Mulheres que merecem ser Amadas.

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Nota introdutória à visita de mulheres do seu tempo Foi através do meu primo Artur Jorge e da Clementa, minha companheira de yoga, que dei os primeiros passos em direção àquelas mulheres. Bati às portas das suas casas, no coração da cidade de Portalegre, no Bairro do Atalaião e visitei algumas delas na Santa Casa da Misericórdia de Portalegre e no Centro de Bem Estar Social de Reguengo. Sem a preciosa colaboração da D. Fernanda Fortunato, da D. Idália, da Célia Tavares, da Marisa Candeias, da Elismar, da Helena Ceia teria sido muito mais difícil o meu contato com aquelas senhoras. Quanto às portas das casas distribuídas pela serra de São Mamede, estas iam-se desencostando da ombreira assim que ouviam o brado afinado e conhecido da D. Gertrudes, a senhora que me dispensou alguns dos seus dias para me levar às casas das senhoras da serra. A Marta Nunes, a amiga que me acompanhou na maioria das

visitas, fotografou estas mulheres e traçou a singularidade dos seus rostos com as linhas que nos levam até àquela dimensão que segura, para sempre, quem irá desaparecer um dia. Como terão oportunidade de se aperceber, a maioria destas senhoras não esteve toda a vida na mesma unidade fabril e algumas delas até intercalaram o trabalho operário com o rural. Foi a identificação mencionada pelas próprias e por quem me as apresentou ou indicou que determinou o espaço que escolhi neste caderno para as contextualizar nas Mulheres do Seu Tempo. Convido-vos a fazermos uma viagem lá atrás, paremos no ano de 2014 e visitemos as histórias contadas por mulheres guardiãs de histórias singulares.

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AS TRABALHADORAS

DA FÁBRICA ROBINSON

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JÚLIA PAPAFINA 72 anos Carreiras

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A D. Júlia faz, neste mês de junho de 2014, 72 anos. Nasceu nas Carreiras, freguesia rural do concelho de Portalegre, onde estudou até à 3ª classe (a 4ª fê-la em adulta). Saiu da escola com onze anos. Esta ficava a cinco km da sua casa. Para comer, levava um batido de pão com ovo cozido. As refeições eram à base de sopa de couves com feijão preto. Tinha só um vestido, o qual era lavado para voltar logo a vestir, andava descalça. Com o dinheiro do contrabando os pais lá conseguiam calçar as filhas com umas sapatilhas espanholas de pano de tempos-atempos, mas estas duravam pouco. Lembra-se de um dia em que nevou, em que a professora foi buscar roupas para emprestar às crianças para estas poderem voltar para casa, mas elas foram brincar com a neve. Recorda com saudade esse dia e refere que existia uma grande amizade. Se alguém lhe desse uma fatia de pão, levava-a para casa e repartia-a com os irmãos, a qual era acompanhada com azeitonas. Caracteriza a sua família como sendo muito pobre, composta por cinco irmãos. Os pais eram trabalhadores rurais, mas, como no inverno chovia quase todos os dias, recorriam ao contrabando -“Hoje havia que comer, amanhã não”. Comprava-se fiado na mercearia e, quando havia dinheiro, pagavam-se as dívidas. Com oito anos já tomava conta das irmãs mais novas e, assim que deixou a escola, foi para a cidade de Portalegre servir -“Era uma vida de miséria, não havia o que calçar, o que vestir”. Quando servia em Portalegre e queria ir às Carreiras, ia a pé e também fazia este trajeto com

a família entre estas duas localidades da mesma forma, a pé. Serviu até aos 25 anos, altura em que casou. Intercalava este trabalho com o trabalho rural, do qual fala com um brilho nos olhos. Quando se zangava com os senhores, ia pedir trabalho a um manajeiro seu conhecido das Carreiras e lá ia ela num rancho, composto por sete mulheres, para uma herdade a duas horas de caminho a pé e por lá ficavam com o manajeiro a orientá-las. As mulheres levavam o canastro à cabeça com os seus haveres: xailes, cobertor, comida, roupa de vestir. Trabalhou na azeitona, na castanha, sachou batatas. Só não fez a ceifa. À noite, recolhiam-se num barracão da herdade e tapavam-se com um cobertor, xailes e algum capote, se o houvesse. Recorda que nos trabalhos rurais as raparigas divertiam-se muito, dançavam e cantavam. Só na azeitona é que trabalhavam as mulheres em conjunto com os homens. Quando se acabava o comer, iam à loja da Alagoa. Na época da azeitona, chegavam a ficar fora de casa cerca de um mês. Quando regressavam à aldeia, faziam uma grande festa. Foi trabalhar para a Robinson com cerca de 30 anos, fábrica onde pela primeira vez fez descontos. Saiu em 2001, com uma reforma por invalidez, devido a artroses nas costas e nas pernas. Morava perto da Fábrica dos Lanifícios, quando começou a trabalhar. Trabalhava das 8 às 17 horas e ao sábado de manhã. Mais tarde, começou a sair às 18 horas para poder ficar livre ao sábado.

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Foi com esta idade que foi morar para o bairro onde ainda mora hoje. O Bairro do Atalaião foi construído para os operários e foi aquele 1º andar que lhe saiu no sorteio. Quando a D. Júlia começou a trabalhar na fábrica, entrou logo para a Secção da Colagem, onde, além de mulheres, também trabalhavam homens. Referiu com expressão de sofrimento que o seu trabalho era muito duro, muito pesado e trabalhava sempre de pé. Tinham uma hora para descansar ao almoço. Se bem se lembra, só depois do 25 de abril começou a ter um tempo para o lanche e a ganhar o dobro, cerca de dois mil escudos por mês. No Natal, recebiam mais cinquenta escudos. Quando começou a trabalhar na fábrica, havia cerca de trezentos operários e um sindicato, o Sindicato dos Corticeiros. Quando saía do trabalho, ia fazer o avio à mercearia, indo carregada com as compras até casa. O filho, com cinco anos, ficava em casa, enquanto ela e o marido, operário da mesma fábrica, trabalhavam. Não havia quem ficasse a tomar conta dele. A sua vida era vivida em dois locais, em casa e na fábrica. Hoje continua a ser uma vida de trabalho, mas resume-se àquelas quatro paredes. Lê a Bíblia. Comprou televisão quando casou. Antes ouvia rádio.

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As férias duravam um mês e a família ia acampar para a Barragem de Póvoa e Meadas o mês inteiro. O primo tinha uma carrinha de caixa aberta, onde colocavam tudo o que era necessário, e abalavam. Nem sequer o rádio acompanhava a família; queriam ficar em paz e isolados do mundo. Foi ao médico pela primeira vez com 21 anos. Em criança, a mãe curava as suas gripes com tintura no peito (diz ainda ter as cicatrizes das queimaduras). A tintura era para curar a tosse. Também se curava com chás. Neste dia treze de junho, sexta-feira, quando subi ao segundo andar daquele prédio, a D. Júlia estava à sua porta, no primeiro andar. Pergunteilhe se gostaria de partilhar a sua história de vida comigo, já que a sua vizinha, que também se chamava Júlia, não estava em casa e ela aceitou. Estava com dores nas pernas, não conseguia estar muito tempo de pé, parada. Eu disse-lhe que fosse buscar uma cadeira, que eu me sentaria nas escadas, mas ela convidou-me a entrar. Sentámo-nos à mesa da cozinha e conversámos com um som de fundo, o da televisão.


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ROSA SANTOS 64 anos Escusa

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A D. Rosa fez 64 anos em abril de 2014. Nasceu em 1950, no concelho de Marvão. Estudou até à 4ª classe na Escusa, onde morava. Saiu da escola com doze anos. Nos seus tempos livres de estudante, ajudava os pais nos Correios, na parte dos telefones pelos quais eles eram responsáveis. Os alimentos eram adquiridos na mercearia na Escusa, a roupa e o calçado nas feiras em Castelo de Vide. A sua alimentação era à base de sopa de batatas, couves, feijão, mogango. Ia muitas vezes ajudar nas hortas dos vizinhos, trazendo legumes em troca. Comia carne de porco e enchidos e, no Carnaval, comiase cabeça de porco. Começou por trabalhar no campo, nas tarefas relacionadas com a azeitona e a castanha, numa quinta em Alegrete, onde chegou a ficar uma semana. Depois trabalhou numa torrefação de café que existia na Escusa, durante dois anos. Tinha duas horas de almoço e, neste período de tempo, ficava ao ar livre descansando à sombra das árvores.

cortiça e trabalhava com a máquina da cera, era um trabalho rotineiro. Trabalhava com duas colegas. O horário era das 8 às 17 horas e ao sábado até às 13 horas. Quando remendava os mosaicos, estava sentada.

Fez cortes para a Fábrica dos Lanifícios, ou seja, levava peças de tecido para casa e era paga à peça. O objetivo era verificar os defeitos dos tecidos e, com uma pinça de lata, tirar o que estava a mais e colocar fio onde faltava.

A D. Rosa reformou-se por invalidez aos 42 anos, com espondilose e problemas do sistema nervoso.

Aos 16 anos foi trabalhar para a Robinson, namorava nesta altura com o seu marido, mas este, entretanto, foi para o Ultramar. Casou com 20 anos e foram morar para Portalegre. O marido também foi operário naquela fábrica. Na Robinson, escolhia e remendava placas de

Foi viver para o bairro do Atalaião em 1975, para aquela casa onde conversámos. Perguntei-lhe o preço da casa e ela, baralhada entre os escudos e os euros, acabou por dizer o preço do seu custo com a ajuda da filha: mil e trezentos contos. Referiu-se ao seu patrão como sendo amigo das operárias, pois pagava dois mil escudos de ordenado mensal. Descreveu como momentos de lazer a ida à festa de Natal da fábrica, organizada pelo Sindicato dos Corticeiros, as passagens de ano na Portagem, concelho de Marvão, as idas à praia de Sesimbra e as excursões a Setúbal. Gostava de fazer renda e ler romances, foi sócia do Circulo de Leitores. O marido está reformado e dedica-se a uma horta que têm no bairro.

Tivemos esta nossa conversa à mesa da sala de jantar, enquanto o almoço estava a ser preparado pela sua filha.

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JÚLIA BARRETO JOSÉ 77 anos Valência de Alcântara

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A D. Júlia nasceu a 21 de setembro de 1937, em Valência de Alcântara, Espanha, tem 77 anos. Os pais viveram naquele país durante quarenta e sete anos, com sete filhos, e, como trabalhavam em casas de lavradores, viveram em várias herdades. O pai também trabalhou na estação de Valência e foi lá que nasceu a D. Júlia. Quando era pequenina, acompanhava a mãe ao rio, onde lavava as roupas das encomendas das senhoras para quem trabalhava. A base da alimentação da família eram favas cozidas, saramagos e pão. Nunca estudou, nem sequer sabe assinar. Só o irmão, o que esteve na Alemanha, estudou até à 4ª classe, porque alguém descobriu que ele não tinha ido à escola e em Espanha o ensino primário era obrigatório, a partir dos dez anos de idade. Viveram as dificuldades motivadas pela guerra civil espanhola; durante três anos as fábricas estiveram encerradas, não havia farinha, os lavradores não lavravam por causa dos corpos que eram enterrados em valas. Lembra-se de que os pais engordavam um porquinho para alimentar a família. Quando chegaram a Portugal, a vida era ainda pior do que em Espanha. O avio fazia-se por cadernetas, estava tudo racionado. Uma prima da D. Júlia morava em São Julião (uma freguesia rural de Portalegre) e fazia contrabando de sedas e de sapatilhas. A irmã mais velha da D. Júlia, chamada Simone, veio para Portalegre com 18 anos, ajudada por aquela prima, e foi servir para casa de um médico em 1946, Dr. Francisco Vinte e Um, médico da Robinson. Em oito de agosto de 1947, o pai entrou para a Robinson

com ajuda daquele médico. O irmão chegou da guerra em 1948 e também foi para lá, mas, passado um tempo, foi trabalhar para o Hotel 21, gerido pela D. Rosalinda, mãe do médico. A D. Júlia casou com 21 anos. Conheceu o seu marido um dia quando ia ao Café Facha buscar uma chávena com café para a madrinha. Ele estava a dar serventia a um calceteiro – na altura calcetava-se aquela zona do Rossio - reparou nela e o colega disse-lhe: - “Olha que ela é espanhola!” Ele conseguiu a sua morada e escreveu-lhe uma carta pedindo namoro. Atualmente tem um filho de 55 anos, que mora em Portalegre. O marido, o mais velho de dez irmãos, sabia fazer de tudo. Adiaram duas vezes o casamento por não haver, na altura, casas para arrendar em Portalegre. “Era uma cidade com muito movimento, muito diferente era aquela Rua do Comércio!...” contou-nos, com saudade, a D. Júlia. Ele morreu cedo de acidente, tinha ela 39 anos. A D. Júlia entrou para a Robinson nos anos 60 e começou por tirar o pau da cortiça, chamava-se a essa tarefa “tirar a falca”. Ela também saiu da fábrica na fase em que dispensaram pessoal. Fez rolhas e trabalhou com várias máquinas, entre elas a da parafina e a da borracha. Passou pela oficina dos chouriços - chamavam-lhe assim por lá haver rolos de cortiça. Executou várias funções, sendo a mais difícil trabalhar com as placas de cortiça nas máquinas de verniz, pois o ambiente era muito quente e o cheiro muito forte - “Dei cabo da minha saúde”. Antes de sair, deixou 300 cinzeiros de cortiça envernizados. Saiu em 1970, muito doente, sem forças. Em 43


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1975, entrou para as Finanças como empregada de limpeza. Reformou-se há sete anos e desde então é que lhe apareceram as doenças. Em solteira, ia para todo o lado; ia ao cinema com o irmão mais velho, que era como um pai para ela, ia a todas as feiras, festas e excursões. Em casada, saiu muitas vezes na companhia do marido e daquele irmão. Nas excursões contava muitas anedotas, “algumas picantes” - afirmou ela, rindo-se… Mostrou-nos um pequeno álbum de recordações fotográficas que traz na sua mala de mão, onde está muito bonita numa fotografia que tirou no dia em que fez 18 anos. O vestido que trazia tinha-o comprado a uma senhora que vendia roupa em segunda mão, perto da Misericórdia. A respeito de outra fotografia que tirou em criança com a família, contou-nos que alguém lhe tinha comprado uns sapatos também em segunda mão, pois andava sempre descalça. Só assim, nesse dia, pôde tirar aquela fotografia calçada. Esta nossa conversa decorreu no café “O Alentejano” em Portalegre, café frequentado pela Marta, daí conhecer a D. Júlia que tomava diariamente o seu garoto por volta do meiodia, no mesmo lugar, como se estivesse sempre reservado para si.

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MARIA JOSÉ ROQUE 73 anos Reguengo

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A D. Maria José Roque tem 73 anos. Vive no Reguengo, freguesia rural de Portalegre, onde nasceu e cresceu. O irmão, único rapaz e mais velho, foi à escola, as duas irmãs não. A D. Maria José conseguiu estudar até à 3ª classe. Tinha oito anos, quando pediu à mãe para ir à escola - “Mãe compre-me uma mala, que eu quero ir à escola” - e lá andou até à 3ª classe. Como já era crescida, não quis continuar até à 4ª classe e foi trabalhar para o campo. Os seus pais tinham um prédio rústico. Ela ajudava nas tarefas agrícolas e fazia também o mercado do Corro em Portalegre. Tinha onze anos, quando começou a sair para mondar e colher azeitona. Matavam um porco todos os anos, faziam enchidos e guardavam-nos na salgadeira durante o ano. A família alimentava-se à base de enchidos, queijo, toucinho, sopa, coelho e galinha. Quando estava grávida de sete meses, ia a pé para Portalegre trabalhar no Lugar da Lixosa, onde fazia uma fega de azeitona que durava dois, três meses.Tinha ela 21 anos e o filho tinha um ano, quando o marido teve um acidente no olho. Andava a caiar e caiu-lhe cal no olho, queimando-o. Por isso, durante um período de tempo, foi ela que teve que sustentar a família; gastaram tudo quanto tinham poupado. Foi então que, com 21 anos, foi pedir trabalho na Fábrica Robinson. Nessa altura já não estavam a admitir novos trabalhadores, mas ela contou que tinha um filho pequeno e foi o que lhe valeu. Foi recebida pelo Sr. Borralho e foi o Sr. Ladeira, que trabalhava no escritório, quem lhe fez o cartão de ponto. “Comecei a trabalhar no duro” - expressou

pesarosamente a D. Maria José. Fazia turnos das 6 às 14 horas e das 14 às 22 horas (não fazia turnos à noite, pois estes destinavam-se aos homens). Levava uma hora de caminho a pé até à fábrica - “À noite, íamos com as estrelas e com a lua, às vezes a gente caía!”. O grupo era de oito mulheres. Começou num barracão escolhendo falca (tirava a cortiça do pau). Depois foi para a secção da espalda: metia a obra na máquina, a qual separava a cortiça boa da má para umas redes. Gostava mais deste trabalho de fábrica do que o do campo. A seguir foi para a secção da escolha - trabalhava com um máquina que lixava e rebaixava a rolha. Era uma tarefa que dava sono, tinha que ir lavar a cara à casa de banho para não adormecer. Entretanto o marido resolveu abrir um café em Caia e ela deixou a fábrica. No café, trabalhava até às duas horas da manhã, mas cansaram-se de aturar bêbedos que pediam petiscos até muito tarde. Aborreceu-se e voltou à fábrica, onde foi bem recebida. Trabalhou aqui num total de quinze anos. Saiu novamente e foi apanhar azeitona. Nesse trabalho, caiu de uma escada de madeira que se partiu. Estava no 11º degrau, veio-se agarrando aos ramos para amortecer a queda, mas fraturou a coluna quando bateu no chão. Reformou-se com 37 anos, por invalidez.A nossa conversa aconteceu na sala de jantar da sua casa, aberta para nos receber, mas como estava um belo dia de sol, fomos convidadas para apreciar as variadíssimas flores dispostas em vasos na sua marquise.

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MARIA DA ESTRELA FERREIRA 65 anos Portalegre

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A D. Estrela nasceu em Portalegre, há 65 anos. A sua mãe, doméstica, morreu após o parto da sua irmã, tinha a D. Estrela sete anos. Desde então, passou a viver com o avô, que era sapateiro de profissão, perdendo também os laços com o pai, que era pedreiro. Estudou até à 4ª classe e ainda fez o exame de admissão, mas não continuou os estudos por insegurança, embora a professora e o avô a incentivassem. Além de haver poucos recursos económicos, ela sentia-se inferior às outras meninas, “não tinha vestidos e sapatos bonitos como elas para levar para a escola…”. Quando era criança, brincava na rua com os caqueros, não tinha brinquedos. Ajudava o avô nos trabalhos domésticos; tratava das galinhas, colhia erva para dar aos animais. A sua alimentação era à base de legumes que a horta dava e de ovos. No Natal e na Páscoa, comiam ou galinha ou coelho, que, por ser tão raro, sabia muito bem. Aos treze anos, fez pela primeira vez uma fega4 de azeitona, que durou os meses de novembro e dezembro. Foi com os tios e ganhou seis escudos por dia, o mesmo que as mulheres adultas, tendo, por isso, ficado muito orgulhosa do seu trabalho. O dinheiro foi entregue ao avô, que o foi juntando no banco. Quando desejou ter um vestido, pediu uma quantia ao avô para poder comprar o tecido e o mandar fazer na costureira, o seu primeiro vestido novo. Toda a sua roupa era dada pela “Assistência Social” e só tinha um par de sapatos. Tal como a generalidade das raparigas da sua época, foi

aprender a costurar com uma mestra. Esta atividade não remunerada ocupava-lhe o dia inteiro. Às cinco horas da tarde, voltava para casa para se dedicar às outras atividades, as domésticas. O avô marcava-lhe aquela hora e ela não se podia atrasar. Um dia, foi entregar uma encomenda a uma senhora e ficou muito contente porque ganhou de gorjeta vinte cinco tostões, mas, ao chegar a casa, o avô deu-lhe uma tareia pelo seu atraso. Ficou de tal forma zangada com ele que o enfrentou e recusou-se a continuar na mestra foi nesta altura que ela mostrou a força da sua natureza. Teve o tio que a apoiou, vindo em sua defesa, chamando a atenção do avô pelo facto de ela estar todo o dia na costura e, ao fim do dia, trabalhar em casa, não estando certo o que ele tinha feito. Ainda com treze anos, iniciou a sua função de cerzideira, trazendo da Lanifícios cortes para casa e, aos catorze anos, atingiu a idade para entrar para a fábrica. Iniciou as suas funções de retorcedeira. Entrava às 6 e saía às 14 horas. Aos 19 anos, começou a fazer dois turnos. No Natal, as operárias recebiam como presente um corte de tecido.

Saiu ao fim de oito anos, foi com o marido para Mira D’Aire, trabalhar para outra fábrica de lanifícios, mas só lá estiveram seis meses, pois a filha tinha dois anos e era muito complicado organizarem-se para que não lhe faltasse o apoio, faziam turnos diferentes para um deles poder estar sempre com a menina. Ainda tentaram trabalhar em Lisboa, mas acabaram 49


por voltar a Portalegre, inscreveram-se na Robinson, onde entrou como escolhedora de parqué. Ao fim de algum tempo, foi anunciado pelo sindicato que aquela função era masculina. Como tal, as mulheres que a desempenhavam tiveram direito a um aumento no seu ordenado -“Enquanto, por exemplo, as outras colegas ganhavam 50 contos por mês, as escolhedoras ganhavam 70”. A equipa era composta por seis mulheres e a sua função era selecionar os parqués segundo os tons e colocá-los em caixas de 15 kg, nas quais se identificava o número da trabalhadora. Saiu da fábrica com 45 anos. Na altura, o trabalho era muito, sentia muita pressão para fazer grandes quantidades de trabalho e não recebia o ordenado. As chefias resistiram à sua saída, porque a sua função era importante na fábrica, apesar de tudo, ela conseguiu o que pretendia e acabou por ser a primeira escolhedora a sair.

pesado, pois tinha que puxar placas de cortiça pesadas e maiores que ela, além de trabalhar sempre de pé. Conheceu o seu marido na Fábrica dos Lanifícios, namoravam às escondidas. O seu tio descobriu e contou ao seu avô. Ele não aprovou este namoro. Desabafou sobre o peso do seu ambiente familiar, o qual a fazia sentir-se uma escrava, uma prisioneira: todo o dinheiro que ganhava na fábrica entregava-o ao avô, ele não a deixava sair, não a deixava conviver com outras raparigas. Recordou que, um dia, pediu ao avô um pouco de dinheiro e ele deu-lhe cinco tostões, o que só dava para comprar pevides embrulhadas num cartucho. Viviam numa casa só com duas divisões, em que uma delas era o quarto do avô. Por tudo isto, pensou que, se fugisse, talvez a sua vida mudasse para melhor. Fugiu, mas a sua vida não melhorou.

Na fase em que esteve desempregada, ocupouse numa escola enquanto recebeu subsídio de desemprego, mas, assim que pôde, solicitou a reforma. Nunca mais esqueceu uma frase que o Dr. Amorim, médico na Robinson, lhe disse quando ela se queixou que trabalhou tanto, e desde tão cedo, e nada tinha: “Tens a tua dignidade, rapariga!”. Reformou-se passado pouco tempo, pois já tinha um número suficiente de anos de trabalho, embora ainda fosse muito nova. Nessa fase da sua vida, tinha um aspeto envelhecido pelo cansaço, tanto que um dos médicos, quando a consultou, perguntou-lhe por que tinha ela escolhido uma profissão de homem - o seu trabalho era muito

Atribuiu à ingenuidade dos seus 15 anos a causa daquela atitude impensada e também, como não tinha ninguém que lhe desse conselhos, tinha os olhos fechados naquele tempo. Além do mais, o namorado também sofria com o mau ambiente familiar provocado pelo pai. O casamento era assim o meio conhecido para fechar uma porta aos conflitos familiares. Contou o desespero que sentiu logo que deu o passo para aquela fuga, arrependeu-se no mesmo momento, e o medo e o desespero obrigaram-nos a voltar às famílias.

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Quando ambos quiseram regressar a casa, nem da família da parte dela, nem da parte dele


houve quem os acolhesse. Mais tarde, os pais dele foram os primeiros a ceder. Compraramlhes uma cama de ferro de corpo e meio, onde ambos mal cabiam. Sentiu-se outra vez na pele de uma escrava, talvez pior, porque escrava de uma família que não era do seu sangue. Viveu momentos de grande tristeza, mas talvez tenham sido estes que lhe deram a força para passar a ser ela a condutora da sua vida. Como o seu sonho era ter a sua casa, começou a procurá-la. Encontrou uma, mas teria que pagar quinhentos escudos mensais pelo seu aluguer. A família do marido criticou, pois era muito cara, mas ela tapou os ouvidos e decidiu ouvir só a sua voz.

O cancro que este teve no esófago levou-lhe a vida, deixando a D. Estrela viúva. Quer o seu filho, quer a sua filha vivem em Portalegre. Tem três netos, que tive o prazer de conhecer no dia da nossa conversa em sua casa, no bairro do Atalaião, cada um deles com um rafeiro alentejano ao colo ainda bebé. Referiu que tem uma família muito unida. Vive para ela, não tem outros interesses, não gosta de sair e até podia ir para fora de Portalegre passar uns dias, mas o sentimento que a liga à família e a sensação de que é precisa não a deixam abalar dali.

Mudaram-se para a casa nova, depois de terem vivido numa “em que se via o céu e as estrelas”, que não tinha sequer condições para fazerem as refeições, por isso comiam em casa da família. Portanto, aquela foi a sua primeira casa. Tinha um varandim e uma divisão. Essa divisão transformou-se numa sala e num quarto divididos por um biombo de madeira e, no varandim, nasceu uma cozinha. Foi por esta altura que surgiu a aproximação entre ela e o avô e se reconciliaram. O dinheiro que ela ganhou ao longo dos anos pelo seu trabalho e que ele tinha junto (150 contos) e retido como castigo desde que ela fugiu foi solto. Com aquele dinheiro, o avô comprou algumas mobílias, entre elas, uma cristaleira para guardar a loiça. Foi ela quem orientou a casa e a família ao longo dos anos com o seu ordenado e com a parte que o marido lhe dava. 51


MARIA ODETE TAVARES 74 anos Portalegre

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A D. Maria Odete tem 74 anos. No dia em que conversei com ela, estava em frente à sua companhia, a televisão. Diz ser dependente de outras pessoas, que só consegue andar com ajuda. O seu marido, com 81 anos, estava em casa e, enquanto eu lá estive, ele tomou o seu banho e o seu pequeno-almoço sem nunca interferir na nossa conversa. Foi a senhora que me contou que ele foi operário na Fábrica de Lanifícios. Casaram em dezembro de 1958, na igreja de São Lourenço, num dia de muita chuva. O almoço foi em Portalegre, no Bairro Alto, em casa de um familiar. Viveu com a família na Vargem (Portalegre) e começou a servir com nove, dez anos, não se lembra bem - a senhora demonstrou falhas de memória e por vezes ficava alguns minutos em silêncio a tentar recordar-se de um acontecimento ou da resposta a uma pergunta minha. Dizia-me: “Estou a tentar lembrar-me… “ e olhava para o passado. Não foi à escola, os irmãos rapazes, esses, sim, foram. Em criança e adolescente, usava sapatilhas coloridas que atava nas canelas com uns atilhos, as bem conhecidas sapatilhas espanholas. Sem que eu a questionasse, contou-me um episódio que se passou no dia do seu batizado, tinha ela cinco anos: no trajeto que fez a pé da Vargem com destino a Portalegre, ao lado da madrinha, vinha pondo os pés nas poças de água que encontrava pelo caminho. Teve de continuá-lo descalça, por imposição da madrinha, para não a sujar na igreja no momento da celebração quando estivesse ao seu colo, novamente

calçada - uma memória antiga e bem guardada no seu coração, não tanto por aquela imposição da madrinha, mas pela liberdade que sentiu ao brincar nas poças de água. Antes de ir para a Robinson, serviu durante alguns anos como empregada doméstica, depois foi trabalhar para a Fábrica da Moagem, onde limpava os sacos e as máquinas. Enquanto operária na Robinson, escolhia cortiça no exterior. Num barracão, tirava os paus das cortiças que chegavam dos montados e punhaos numa rede para depois alimentarem os fornos da fábrica. Das 8 às 16 horas tinha que fazer 25 Kg de cortiça. Quando as operárias não atingiam aquele objetivo diário, ficavam de castigo durante um dia (eram dispensadas e não ganhavam), ela teve dois castigos. De verão, a cortiça era muito leve, esta era depositada nas bancadas e “as mais espertas” arrebanhavam as cortiças mais grossas, pois pesavam mais. Este trabalho era feito de pé. A D. Maria Odete também tinha a tarefa de ajudar a cortiça a enxugar: colocavase em cima dos montes de cortiça e dava-lhes a volta para enxugarem. Fazia isto à torrina do sol. No inverno, só trabalhava no barracão e, nesta estação do ano, a água da chuva tornava a cortiça muito pesada. Foi mãe de nove filhos, embora só sete estejam vivos. Por vezes atrasava-se para deixar tudo em ordem na sua casa e, quando tal acontecia, ficava à porta da fábrica, podendo voltar a entrar 53


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ao fim de uma hora, com desconto no ordenado. Reformou-se com 31 anos pois tinha ataques epiléticos. Passou a dedicar-se só à casa e à família. Atualmente tem muitos netos e também bisnetos. Conversei com a D. Maria Odete em sua casa, no coração da cidade de Portalegre. Encontrei esta senhora por acaso, quando procurava a morada de uma outra. Assomei-me à sua porta, que estava aberta, perguntei-lhe se conhecia a D. Maria do Céu e, quando lhe contei o que me levava ali, ela mostrou disponibilidade para partilhar a sua história comigo. No final, perto do meio-dia, contou-me que o filho devia estar a chegar para lhes dar o almoço. Ela e o marido aguardavam vaga para entrar no lar.

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ANA GODINHO 62 anos Belver

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A D. Ana nasceu em Belver, em 1952, e tem 62 anos. Foi criada em casa dos tios, diz não se lembrar por que razão. Entrou para a escola primária de Castelo de Vide com a irmã, mais velha um ano, onde estudou até à 4ª classe. Como a irmã se atrasou, não conseguindo passar da 3ª classe, o pai tomou a decisão de tirar as duas da escola (se uma não seguia os estudos, a outra, a D. Ana, também não). Aos doze anos, foi então aprender costura de senhora e a irmã de homem. Com treze anos, começou a tarefa dos cortes. Ia buscá-los a um armazém na vila de Castelo de Vide e levavaos para casa. Quando os defeitos estavam emendados (tirados os nós e metidos os fios), devolvia a peça e trazia outra. O pai era cantoneiro, vivia com a mulher no campo. A D. Ana tratava das irmãs e das tarefas domésticas, reunindo-se a família ao fim de semana. A roupa era lavada no tanque comunitário que ainda existe à beira da estrada que nos leva até Castelo de Vide ou então no tanque da horta. Aos 17 anos passou a efetiva e começou a trabalhar fora de casa, num armazém, onde apurava se os cortes que chegavam não tinham defeitos. Se tivessem, eram emendados ali. Durou três anos essa tarefa. Por volta dos 20 anos ganhava cerca de 500 escudos por mês. Casou e foi para Portalegre. Entrou para a

Robinson com 21 anos. O seu marido também lá trabalhou. Aos fins de semana, iam de carreira até Castelo de Vide visitar a família. A respeito do lazer, referiu que ia à Festa dos Aventais e à Feira das Cebolas. A D. Ana trabalhou na secção de acabamento de parqué. Primeiro, começou por carimbar as amostras que iam para o estrangeiro, depois passou a escolher mosaicos, designando-se a sua profissão de escolhedora. O processo de escolha era o seguinte: colocava as amostras na mão esquerda e escolhia os mosaicos com a mão direita, comparando com as amostras e dividindo-os em grupos. Ao mesmo tempo, verificava se tinham defeitos. Saiu da fábrica com 56 anos, com os seus ordenados em atraso. O mesmo aconteceu com o marido -“Ficaram a dever-nos dinheiro”. Uma vez reformada, começou a cuidar de um jardim privado e o marido começou a dedicar-se a uma horta. Assim que deixou de trabalhar, sentiu um vazio. Quando o apito da fábrica apitava, sentia sempre esse vazio, até que se habituou. A fábrica fechou passado pouco tempo, em 2009, e o apito que chamava os trabalhadores silenciou-se. A nossa conversa aconteceu em sua casa no bairro do Atalaião, em Portalegre. Combinámos levar a D. Ana até ao lavadouro de Castelo de Vide onde ela lavava a roupa ou à Casa de Cantoneiros onde viveu com os seus pais, hoje já em ruínas. Levámo-la aos dois locais e tirámos umas fotografias. 57


DÉLIA NUNES 96 anos Portalegre

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A D. Délia tem 96 anos. Nasceu em Portalegre, na Quinta Formosa, onde habitaram alguns dos trabalhadores da Robinson. A água, a luz e a lenha eram de graça. A sua mãe queria ir viver para a cidade, mas o pai não concordava com a ideia, porque naquela casa não tinham despesas. A mãe, determinada, foi juntando o dinheiro que ganhava com a costura e comprou uma casa no centro da cidade. Com 17 anos, a D. Délia e a família mudaram para a nova casa. Ela terminou os seus estudos na Escola Industrial e queria ir para fora e continuar a estudar, mas acabou por ir aprender a bordar. Mais tarde, entrou na Robinson com a irmã Georgina, através do pai e do irmão, tinha ela 18 anos. Ela e a irmã trabalharam no escritório da Robinson até aos 65 anos, a idade da reforma (na altura, quando lhe disseram que o seu trabalho tinha terminado, confessou que nem se lembrava que estava na idade da reforma). Referiu que nunca esteve de baixa nem nunca

faltou - “Cumpri sempre o meu dever”. Não era por o pai e o irmão terem contribuído para a sua contratação que elas iriam ser beneficiadas, referiu ela. Ficou triste quando se veio embora. Trabalhava das 9 às 12 horas e das 14 às 18 horas, fazendo arquivo e caixa. Quando andavam na escola, iam às festas e aos bailes das escolas. Foram as únicas atividades ligadas ao lazer que se lembrou de referir quando questionada. A nossa conversa decorreu na Santa Casa da Misericórdia de Portalegre. Quando vi a D. Délia aproximar-se de mim na sua cadeira de rodas, lembro-me de lhe ter associado a palavra “cor”; esta senhora conservava o primor de se maquilhar diariamente. Nunca casou.

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AS TRABALHADORAS

DA FÁBRICA DE LANIFÍCIOS

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ALZIRA DA CONCEIÇÃO SERAFIM 71 anos Portalegre

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A D. Alzira tem 71 anos. Nasceu em 1943, na freguesia da Sé, em Portalegre. Estudou até à 3ª classe e concluiu a 4ª classe em adulta para poder entrar para a Fábrica de Lanifícios. Saiu da escola com nove anos para cuidar da irmã que tinha um ano, para que os pais, trabalhadores rurais, pudessem ir trabalhar. Aos onze anos, começou a servir na casa dos patrões dos pais, onde todos moravam. Aos 17 anos, iniciou o seu contacto com a Fábrica de Lanifícios, fazendo cortes em sua casa, e, aos 22, “entrei efetiva na fábrica” - disse-nos ela com alívio, expressando assim a felicidade sentida quando tal aconteceu. O seu trabalho consistia em bobinar fio nas máquinas, fazer a escolha e pesar o fio que ia para os teares. Gostava muito desse trabalho, mas “deu-lhe cabo dos ossos”. Diz sofrer de osteoporose e da coluna. Esta tarefa estava encarregue a si, não a partilhava com mais ninguém e trabalhava por turnos: das 6:30 às 15 horas e das 15 às 23:30 horas. Alternava semanalmente. Quando saía da fábrica, por vezes ia ao café com as colegas conviver um pouco e seguia para casa. Fazia renda nos tempos livres. Naquele tempo, havia um autocarro que transportava os trabalhadores que moravam na Serra para a cidade e viceversa, como era o seu caso. Se bem se lembra, trabalharam na fábrica mais de mil homens e mulheres. Os homens trabalhavam nos teares e o controlo da qualidade dos tecidos que passavam nas passadeiras era assegurado pelas mulheres. A assiduidade era compensada com tickets oferecidos, os quais eram trocados por

bens quando iam às compras. As compras eram feitas nas mercearias, mas os legumes e as frutas vinham da horta dos seus pais. Conheceu o seu marido na Serra, pois ele também morava lá. O namoro era sempre controlado pelos pais, nunca estavam sozinhos. Quando a mãe já estava cheia de sono, começava a mexer nos borralhos com a tenaz, era sinal de que estava na hora de ele ir embora, contou a D. Alzira. A fábrica fechava para férias no mês de agosto e, nesse período, a D. Alzira dedicava-se às limpezas e ia uns dias à Nazaré, a conselho do médico, pois os ares da praia preveniam problemas na garganta do filho. Também chegou a ir à praia de Sesimbra. O único convívio organizado pela fábrica de que se lembra é o da Festa de Natal, organizada pelos patrões.O seu marido também trabalhou na fábrica de Lanifícios, como operário, durante doze anos, e depois foi desempenhar o ofício de sapateiro no Internato dos Rapazes. A D. Alzira reformou-se por invalidez, com 52 anos. Esta nossa conversa decorreu na sala de jantar da sua casa, no bairro do Atalaião, onde nos sentámos ao lado uma da outra. O marido estava na cozinha, paredes meias, descascando frutos secos. Foi quando eu já tinha fechado o meu caderno de anotações que D. Alzira me confessou que a companhia dos netos era uma alegria para ela. Agora que a neta fez 10 anos e vai para o 2º ciclo, não vai estar tanto tempo em casa da avó. Disse que estava farta de chorar. O neto, esse, já tem 16 anos. Só tem um filho, que está próximo, pois trabalha em Portalegre.

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MARIA JÚLIA CABEÇAS 63 anos Portalegre

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A D. Maria Júlia tem 63 anos e nasceu em Portalegre, onde passou a sua infância de filha única - “Só vivi com o meu pai até aos cinco anos, era um bom homem…”. Começou a ajudar a mãe e o padrasto na horta, com nove anos (executava várias tarefas, entre elas a de mondar). Com catorze anos, iniciou o seu trabalho na Fábrica de Lanifícios. Descreveu-nos assim o seu dia de trabalho: saía de casa às 5 horas e 30 minutos da manhã e, das raparigas, era a que saía mais cedo, pois era a que estava mais despontada; morava na Aldeia da Mata e apanhava as colegas de caminho, nos Fortios. Trazia ao ombro uma peça de tecido de tafetá ou de fazenda, ou seja, um corte, o qual seria entregue no seu destino em Portalegre. Embora o transporte daqueles cortes lhe custasse por serem muito pesados, passou bons momentos. A sua vida familiar era tão triste que, quando se juntava com as colegas, umas seis ou sete, e caminhavam a pé, era o seu momento de liberdade, já que a mãe e o padrasto não a deixavam conviver. Mal chegava do trabalho, tinha que ajudar na horta, correndo a sua vida entre a casa e o trabalho. Como os pais eram “viciados em cinema”, iam duas vezes por semana ao Cine-Parque e, sempre que o filme era para a sua idade, ela ia também. Quando chegava à fábrica, lá ficava até à hora do almoço a emendar algum defeito que lhe tinha escapado, pois, o corte era analisado

por outras operárias para confirmar se estava perfeito. Voltava para casa com outro, no qual trabalhava desde que chegava até a luz do dia o permitir, por não ter luz elétrica. Trabalhou quatro ou cinco anos a carregar cortes. Saiu da Fábrica de Lanifícios com 20 anos. Foi para a Manufatura das Tapeçarias de Portalegre tecer, onde esteve dois anos. Despediu-se para com o marido tentarem a sua sorte numa fábrica de fiação na Alemanha, assim que ele voltou do Ultramar ao fim de três anos. Mas, ao fim de cinco anos, voltaram a Portugal, pois tinham muitas saudades do filho pequenino, e voltou ao trabalho dos cortes. Contou-me como conheceu o seu marido: tinha 16 anos e, numa excursão que fez a Abrantes, no caminho para o castelo, passou por uma oficina onde trabalhava um rapaz e trocaram olhares. Ele saiu da oficina e foi ter com ela ao castelo para se apresentar. Simpatizaram logo um com o outro. Ela disse-lhe onde morava; nessa altura morava numa casinha na Fonte dos Fornos, em Portalegre - “o padrasto tinha a mania de andar sempre a mudar de casa” - e, passados uns dias, vê-o aparecer no momento em que ela estava à porta. “Caiu-me tudo” - disse-nos ela ao ver que ele era o rapaz que ela tinha conhecido em Abrantes. Ele declarou-lhe o seu amor, mas ela estava muito receosa e acanhada, com medo de que a mãe os visse ali à porta. Qual foi o seu espanto quando a mãe apareceu e ela lhe contou como se conheceram e como ele tinha ali aparecido: a mãe reagiu bem! Mandou-os 65


entrar para não serem alvo da coscuvilhice das vizinhas. O padrasto entretanto chegou, ouviu a história e, para seu espanto, a Maria Júlia não foi repreendida. Namoraram por carta durante dois meses, ele vinha visitá-la de comboio até Portalegre, ficando numa pensão que ainda hoje existe, até que casaram, ao fim de dois meses, tinha ela 16 anos e ele 19. Foi “amor à primeira vista” e ainda hoje ela fala do marido com muito carinho.

escrever a carta, desobedeceu-lhe e ele bateulhe. Este foi um episódio que esta senhora me contou para ilustrar uma das atitudes familiares que tornavam a sua vida triste.

Quando ele lhe pediu a mão, como os pais nunca mais se decidiam, ela pensou na vida triste que não queria manter e saiu-se com este desabafo: “Se não me deixarem casar, eu fujo!” Uma filha que fugisse com o namorado era uma vergonha para qualquer pai ou mãe ou mesmo padrinho. Lá casaram e foram viver para um lugar perto de Abrantes, numa casa alugada, perto dos pais dele. Mas, quando ele foi para o Ultramar, ela, ora estava em casa dos sogros, ora em casa dos pais. Todos os dias trocavam correspondência e, como os selos eram caros, o Estado facultava aerogramas para que as famílias se comunicassem. Ela escrevia as cartas à noite, após o trabalho dos cortes, pois era o único tempo que tinha disponível. Um dia, quando escrevia uma carta ao marido, o padrasto ordenou que apagasse a chama do candeeiro a petróleo, mas ela, como queria

Ela e o marido adquiriram uma casa no campo, no Reguengo, e ela passa lá muito tempo cuidando do que a terra lhes dá.

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Reformou-se muito cedo, com 39 anos, com problemas de coluna e artroses nas mãos. As suas mãos atualmente têm pouca sensibilidade e estão deformadas, além de ter perdido um dedo numa fábrica na Alemanha.

Foi voluntária no hospital durante seis anos, mas, como as suas mãos não lhe davam segurança, começou a ter receio de deixar cair a comida em cima dos doentes. Quando eu saí da sua casa, num prédio do bairro do Atalaião, deparei-me com a quantidade de retratos que ela tinha dispostos pela parede da sala e por cima dos móveis. Retratos dos dois netos e do filho que estão distantes, aquele filho cujo sentimento de saudade a fez voltar da Alemanha, do filho que já morreu e do filho, nora e neta que estão muito próximos e que são a sua alegria.


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ODETE MĂƒO DE FERRO 80 anos Portalegre

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A D. Maria Odete tem 80 anos. Nasceu na freguesia da Sé, em Portalegre, e viveu sempre nesta cidade. O seu pai foi pedreiro e depois encarregado na Fábrica Robinson, a mãe foi doméstica. Frequentou o Colégio Teresiano quando era pequenina. Lembra-se de ser levada ao colo pelo pai, pois ele trabalhava lá; lembra-se de usar uma farda castanha até à 3ª classe, altura em que o colégio encerrou as portas, não tendo por isso terminado a 4ª classe. Concluiu-a uns anos depois. Foi aprender costura com doze anos e, com catorze, aprendeu o ofício de ajuntadeira, que consistia em trabalhar o calçado da parte de cima do pé (juntava as peças de pele e cosiaas). Depois passava o trabalho ao sapateiro, que colocava as solas. “O Sanches” era o sapateiro que recebia as encomendas dos sapatos e lhe dava os cortes para ela trabalhar em casa. Com 27 anos, a D. Maria Odete casou e foi morar para onde vive hoje. O seu marido também aprendeu o ofício de sapateiro e, a partir daí, começaram a trabalhar os dois em conjunto. Mais tarde, aos 33 anos, a D. Maria Odete foi trabalhar para a Fábrica de Lanifícios, porque estava aborrecida de estar em casa agarrada às máquinas. Um dia, viu o Sr. Guy Fino passar à sua porta e lembrou-se de ir pedir-lhe emprego “Eu estava farta de estar agarrada às máquinas e agarrada às máquinas fiquei, mas era diferente” - afirmou ela. Assim, ao fim da semana sabia

com o que podia contar, o que não acontecia antes, pois os seus clientes eram pobres e o seu ganho dependia do número de encomendas “Graças à fábrica, tenho a minha reforma. Foi todo o bem que eu fiz, 27 anos foi o tempo que ali estive.” O seu primeiro ordenado foram 114 escudos e era pago à semana. Começou por varrer as oficinas e depois aprendeu a trabalhar com as máquinas. Rodou por várias tarefas; desde a Secção da Fiação à da Conversão. Fazia dois turnos (das 7 às 15 horas e das 15 às 23 horas). O turno da noite, das 23 às 7 horas, era feito só pelos homens. Almoçava na fábrica e jantava às 19 horas. A sua filha, assim que fez quatro anos, teve que ir para o infantário, o atual “Girassol”. Ao longo da sua vida tem tratado sempre da família. Começou por tratar da avó, antes de aprender a ser ajuntadeira. Era ainda gaiata, lavava-a e vestia-a enquanto a mãe ia para a horta. Quando a sua mãe ficou entrevada, também tratou dela (lembra-se que, na altura, a sua filha estava na creche). Depois foi o seu pai que ficou entrevado, após uma trombose. Ajudou também uma tia com cancro, ia com ela aos tratamentos - “Esta tia foi como se fosse minha mãe e, eu, filha dela”. A D. Maria Odete é viúva há treze anos e tem a companhia da sua filha, que é professora, ao almoço e ao jantar. Até há pouco tempo, fazia o almoço e o jantar para o irmão que vive sozinho 69


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na Quinta Formosa, tarefa que já estava a ser uma responsabilidade muito pesada para ela. Esta senhora continua a aplicar as suas aptidões de costureira, restaurando o interior de sacos gastos pelo uso. Foi por ter um saco que necessitava de conserto que a Marta a conheceu e me levou até ela. A nossa conversa decorreu em sua casa, a dois passos do belo edifício onde em tempos foram tecidas as belas tapeçarias de Portalegre. O seu gato Tintim fez-nos companhia.

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MARIA DE LURDES LACÃO 58 anos Portalegre

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A D. Maria de Lurdes tem 58 anos e nasceu na cidade de Portalegre. Trabalhou na Lanifícios durante cerca de 25 anos, mas reformouse muito cedo, na casa dos trinta, por sofrer de um problema na perna que a impedia de trabalhar em pé. Estudou até à 4ª classe e foi trabalhar com treze anos, como aprendiz de urdideira (preparava as teias que iam para os teares). O marido trabalhava na Robinson, como contabilista. Tinha sete irmãos, a mãe era doméstica e o pai operário na Robinson. Voltou à escola com catorze anos e estudou à noite até ao 5º ano, que não concluiu, porque entretanto casou, tinha 19 anos, e “veio o filho”. Quando casou, como tinham carro, iam às compras fora de Portalegre. Tem saudades desses tempos, pois diz que havia mais segurança, havia polícias na rua, não tinha medo de andar sozinha, “não é como agora”.

Perguntei-lhe se alguma vez tinha sido assaltada, disse que não, mas o que vê na televisão causa-lhe muita insegurança. O bairro onde vive também era habitado por mais pessoas, agora restam os mais velhos, os filhos escolheram outros locais para morar, o Bairro dos Assentos, por exemplo. Enquanto trabalhou na Fábrica de Lanifícios, a assistência na saúde era melhor do que agora, solicitava uma credencial e ia ao médico que queria. Ia muito ao Cine-Parque ver cinema, às vezes duas vezes por semana, referiu ela, sendo esse o seu momento de lazer preferido e ia também as matinés no Crisfal. As férias eram passadas em casa da irmã que morava em Lisboa. Nos dias de hoje mantém o convívio com catorze colegas da fábrica, constumam encontrar-se às terças-feiras na Pastelaria Conforto.

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AS TRABALHADORAS

DA MANUFACTURA DAS TAPEÇARIAS

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MARIA JOSÉ CURADO 88 anos Portalegre

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A D. Maria José Curado tem 88 anos. Foi morar para Elvas, ainda em bebé, onde o pai foi sargento no Forte da Graça. Neste forte havia residências e ela foi para lá morar, tinha quatro meses. Aprendeu a ler e a escrever com uma mestra. Voltou com os pais para Portalegre tinha nove anos e foi para a Escola da Corredoura frequentar a 3ª classe, fazendo a 4ª noutra escola. Com doze anos, aprendeu a bordar com a D. Josefina, que morava na Rua Olinda Sardinha. Depois pediu à mãe para ir para a costura, onde se manteve até se casar. Foi por essa altura que conheceu o marido, tinha 18 anos e ele 20. Tiveram dois filhos, o Tomás e o Manuel Lino. O marido era carpinteiro, tinha uma oficina onde fazia carroças e havia muito trabalho naquele tempo. Depois este tornou-se escasso e ele foi trabalhar para a Fábrica Robinson, onde chegou

a encarregado. Esteve 37 anos nessa fábrica. Moraram na Quinta Formosa, em Portalegre, numa casa construída para os trabalhadores da Robinson. A D. Maria José entrou na Manufatura das Tapeçarias de Portalegre com 31 anos, já os filhos eram crescidos. Eram os sogros que cuidavam deles quando ia trabalhar ou então iam para a mestra. A sua mãe ajudava-a passando a ferro e lavando a roupa. Trabalhava por turnos (611 horas; 11-16 horas; 16-21 horas e, algumas vezes, também pela noite fora quando havia muito trabalho). Conheceu os artistas João Tavares e Guilherme Camarinha. Antes ainda teceu tapetes de “ponto de nó”. Trabalhou dez anos na Manufatura. Deixou o seu ofício para cuidar dos netos, tinha 46 anos. A nossa conversa decorreu na Santa Casa da Misericórdia de Portalegre.

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MARIA DO CÉU CEIA 65 anos Portalegre

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A D. Maria do Céu tem 65 anos. Estudou até à 4ª classe. Os pais eram agricultores, sendo a base da sua alimentação garantida pelo que a família produzia e pelos animais que criava. Aos catrorze anos, foi para a Manufatura das Tapeçarias de Portalegre. Até chegar a tecedeira de primeira, demorava-se cerca de quatro a cinco anos e a aprendizagem desta arte era feita com a colaboração das colegas mais velhas. Referiu que aquele trabalho era muito complicado e tinha que se começar de nova, “com a cabeça descansada, sem filhos e marido”. Desses tempos, recorda com saudade o bom ambiente que existia entre as colegas. Dos seus 51 anos de trabalho, quarenta e muitos foram passados nesta Manufatura, nas suas antigas instalações. Quando morava na serra, ia de autocarro com as colegas para o trabalho.

Divertia-se indo a bailes - nas instalações da Manufatura, havia a Sociedade “Robinson” (SIC) e era aí que dançavam. Também ia, e ainda vai, a muitas excursões. Depois contou-nos que esteve na Bélgica com uma colega, numa exposição em que as Tapeçarias de Portalegre foram as mais apreciadas. Elas estavam lá a trabalhar num tear, demonstrando como se fazia aquele trabalho. Estiveram dois meses neste país e o casal que as acolheu levouas a conhecer o Luxemburgo e a Holanda. Também esteve em Lisboa, na Gulbenkian, a fazer demonstrações numa exposição. A última tapeçaria em que participou foi uma de Joana Vasconcelos. A nossa conversa decorreu à porta da sua casa, no bairro da Fonte do Penedo, onde vive há 27 anos. Reformou-se no ano passado.

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MARIA DO ROSÁRIO RAMALHO ISAURA RAMALHO CELESTE RAMALHO 81, 78 e 75 anos Portalegre

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Foi numa visita que fiz à D. Fernanda Fortunato, na Manufatura das Tapeçarias de Portalegre, que, após me contar a história das Tapeçarias, me conduziu a uma das tecedeiras já reformadas, a D. Celeste Ramalho. Foi no dia seis de junho que subi a Rua do Pirão e, guiada pela descrição da D. Fernanda, cheguei àquela que pressenti ser a casa da D. Celeste. Vi uma janela aberta e gritei: “É aqui que mora a D. Celeste?” Lá dentro uma voz respondeu: “ É sim!” A senhora subiu um estore interior de madeira e foi assim que nos vimos pela primeira vez. Combinámos o nosso primeiro encontro para o dia nove de junho, numa pastelaria que ela e as suas duas irmãs frequentavam diariamente, a “Pastelaria Conforto”. As histórias e aventuras destas três irmãs foram-nos contadas, a mim e à Marta, naquela mesa de café, a última ao fundo à esquerda. Utilizei um gravador para as gravar, pois não seria fácil ouvir e ao mesmo tempo escrever, os diálogos das três.

de nó aos 14 anos, “nos baixos” da antiga Fábrica das Sedas, localizada na zona do antigo ciclo preparatório, conhecido hoje pela Escola Cristóvão Falcão. O Sr. Manuel do Carmo Peixeiro, o patrão, foi quem inventou o ponto das Tapeçarias de Portalegre e pediu à D. Maria do Rosário para procurar mulheres com o 5º ano da escola industrial para lhes ensinar aquele ponto, mas ninguém quis ir aprender, porque era muito difícil. Foram ela e mais três mulheres de fora da cidade as primeiras a ter uma nova experiência na arte da tecelagem que viria a ser um sucesso nacional e internacional - “Uma veio de Lisboa, a outra tinha sido freira e deixou de ser e a outra era a Madalena” descreveu-nos a D. Maria do Rosário.

Na narrativa que se segue, utilizo com frequência o discurso direto entre as personagens, porque, como achei tão genuinamente alentejana a forma como as senhoras usaram as palavras, foi desde logo minha intenção mostrar-vos. Alguns diálogos não estão reproduzidos tal e qual como foram falados por elas, porém fiz o possível para que o sentido dado pelas senhoras estivesse lá.

Quando a D. Isaura foi aprender aquele novo ponto, chorava que se fartava, por ser tão difícil aprendê-lo.

A D. Maria do Rosário, a irmã mais velha, tem 81 anos, a D. Celeste tem 78 e a D. Isaura 75. A D. Maria do Rosário começou a tecer tapetes 82

Foi da forma que vou passar a descrever que as três irmãs nos foram contando a sua história de vida comum passada na Manufactura das Tapeçarias de Portalegre:

- Tens que ir, tens que ir! - dizia-lhe a D. Maria do Rosário - Eu não queria ir, porque aquilo era muito custoso de aprender - justificou-se a D. Isaura. - Eu ia experimentar para casa o ponto da “Pata do Galo”, de Jean Lurçat, e contava para mim mesma: três pontos, meio ponto, quatro pontos, pontos deitados…a gente nunca tinha visto aquilo! De momento, abriu-se-me o cérebro e eu comecei a


compreender aquilo tudo (…) a primeira tapeçaria que a gente fez foi “A Diana”, “Diana a Caçadora”. Depois dali começámos a fazer. Ele passava horas a dizer “faz assim, faz assim”. O nosso trabalho era muito ingrato, pois era feito do avesso, era preciso jeito e amor. Eles (os patrões) ficaram comigo… as outras (as colegas) foram embora e fiquei eu, que tinha a 3ª classe - contou a D. Maria do Rosário.

para comigo mesma, se ela saberia o que era aquilo. Ela perguntou espantada o que era aquilo e eu disse-lhe que era dos porcos e ela entendeu…

As três irmãs começaram a trabalhar juntas na Antiga Fábrica das Tapeçarias, no edifício onde nasceu “A Real Fábrica de Lanifícios” e onde está hoje instalado o Município de Portalegre.

Contaram-nos que antes do 25 abril faziam-se muitos trabalhos para as câmaras e para os hotéis, apontando como exemplos o Hotel Ritz e a Câmara do Funchal, na qual está exposta uma tapeçaria do pintor Guilherme Camarinha.

Naquele tempo, a equipa era composta por cinco, seis mulheres. Se faltasse uma, era um transtorno. A equipa tinha que trabalhar ao mesmo ritmo. Trabalhavam à empreitada, embora recebessem um ordenado, um valor fixo, mas, quanto mais fizessem, mais ganhavam. Há 58 anos, numa Tapeçaria do Camarinha, a D. Celeste ganhava por semana 120 escudos. Na altura, ela estava toda contente por lhe ter calhado aquela tapeçaria, pois permitiu-lhe ganhar esse dinheiro. Depois do 25 abril, passaram a ganhar 1500 escudos por mês. Na altura em que Jean Lurçat veio a Portalegre, nos anos 50, com o objectivo de visitar a Manufatura, bem como a sua pequena tapeçaria, “Le Coq Guerrier”, reproduzida no ponto de Portalegre, as três irmãs conheceram também a sua esposa. D. Isaura pregou-lhe uma pequena partida e contou-nos, com um sorriso brincalhão, como foi: - Eu não falava francês, mas falava perfeitamente para ela. Uma vez dei-lhe uma bolota e pensei,

Às vezes chegavam a fazer turnos seguidos, ou seja, a trabalhar toda a noite. “Fez-se muitos sacrifícios” - disse uma das irmãs, facto que foi confirmado, de seguida, pelas outras duas.

- Era a três contos o metro quadrado o preço de venda! Isto há de chegar a pontos que há de acabar, pois não é qualquer pessoa que compra - disse-nos a D. Celeste, que já pensava isto nessa altura. - Depois o Sr. Guy levou isto para a Fundação Ricardo Espírito Santo Silva. - acrescentou a D. Isaura - Fui mais a minha irmã Celeste, mas aquela gente lá de Lisboa abalava. Aquele pessoal não tinha vocação para aquilo! A tapeçaria que está no hotel Estoril Sol, a do “ovo esborrachado”, era a do Pedro Leitão, fezse lá. E muitas do Carlos Botelho - a cidade de Lisboa com aqueles rosas muito pálidos…, e da Maria Keil. Queriam fazer em Lisboa a Fábrica das Tapeçarias, mas não conseguiram. À vista das outras cá, lá ganhávamos bem - Comidos, bebidos e dormidos, ganhávamos dezassete e quinhentos (escudos) por dia há 56 anos! 83


Perguntei-lhes o que faziam depois do trabalho. - Depois do trabalho, íamos para casa fazer a comida. Tratávamos da roupa num tanque e não havia tempo para festas. Eu trabalhava em malhas - informou a D. Maria do Rosário. Às vezes até me ponho a pensar… aquilo que a gente fazia dantes!… Tudo se acaba, tudo se acaba… e agora para o fim, quando eu estava para ser reformada, já tinha quarenta e tal anos de casa. Temos as mãos assim desgraçadas, a gente chegou a pontos dos dedos não caberem na teia… tenho estes dois dedos da posição do trabalho. - Ainda arranjámos Arraiolos, eu mais ela, fora parte daquilo (do trabalho) - acrescentou a D. Isaura. Deram-nos lá um bocadinho do casão e ainda restaurámos tapetes antigos. A Menina Fernanda e os patrões autorizaram, aos sábados e depois do trabalho. Os soalhos estavam em tão mau estado, que as tesouras desapareciam, caíam pelos buracos do chão. Caíam no celeiro que lá havia por baixo. Mais tarde foram arranjados. De bancos também não éramos bem, eram uns caixotes. Tínhamos que andar nas lojas a ver de caixotes de madeira. Depois arranjaram o género de um escadote e montaram umas tábuas, mas não era à altura que a gente queria. Numa noite, fomos trabalhar às quatro da manhã, e duas de nós caímos com as costas no chão. Uma grande poeirada!... A Leucádia levava uma marmita com grelos e batatas e o garfo ficou sem um dente! A tábua caiu em cima da marmita! Já 84

não se trabalhou nada até às oito da manhã, com medo d’algum fantasma… eu nunca vi nada! - Mas havia lá ossadas! Eu posso dizer que vi afirmou a D. Celeste. - E tigelas onde comiam os frades… - acrescentou a D. Isaura. Na sequência deste episódio, a D. Celeste quis contar-nos uma parte em que a gente se ia rir: Num dia em que entrava às seis da manhã, a lua entrou-lhe dentro do quarto e acordou-a. Ela olhou para o relógio, mas viu mal as horas, viu os ponteiros ao contrário, e então pensou que já tinha passado a hora de entrar no seu turno. Levantou-se sobressaltada. Ia sozinha pela rua e, quando chegou à Manufatura, estavam as colegas a sair do turno que terminava às duas da manhã. A mãe, vendo-a à quina, pediu às colegas que não lhe dissessem nada, pois devia vir a dormir - “Julgavam que eu vinha sonâmbula! Depois já não vim para baixo, fui p’ra casa da m’nha mãe. Nesse dia tinha-se enforcado uma pessoa à Boavista e eu passei lá rente a ela”. Como as conversas são como as cerejas, outro episódio veio à memória da D. Isaura: - Olhe!… davam-se coisas nas escadas … As tecedeiras subiam as escadas do edifício todos os dias, pois trabalhavam no andar de cima.


- Um dia, íamos entrar no turno das seis da manhã e uma colega que já ia à frente lembrou-se de gritar. Outra colega pediu-lhe que não gritasse, pois iam muitas colegas atrás delas. Mas ela gritou e aquela gente pensou que era alguma coisa que se estava a passar, voltaram para trás…uma entornou uma cafeteira de café com leite; outra ficou com a cabeleira postiça de lado. Depois (para que se pusesse um ponto final naquela brincadeira) alguém disse que não era nada, tinha sido só um pombo que tinha batido na janela. Uma colega teve de ser levada para casa, pois tinha batido com a cabeça e já não trabalhou nesse dia… O segredo desta brincadeira ficou só entre duas ou três colegas. Lembrando-se de mais uma aventura, a D. Isaura descreveu-nos que, num outro dia, na hora do banho (era costume tomarem lá banho depois do trabalho), uma colega lembra-se de dizer: “Fujam que é gás! Fujam que é gás!” A colega, que tomava banho, saiu a correr e foi pelas escadas fora. A D. Celeste tinha entre mãos quatro bolos chamados “Maravilhas”, que se compravam no mercado, mas que não lhe pertenciam. Mordeu em todos com os nervos que apanhou. Outra fugiu pela rua com os rolos na cabeça. - Na altura, éramos poucas, a gente fazia assim aquela vida. Depois veio o 25 de abril e começouse a retrair (nesta época entraram colegas novas, o que fez com que não se sentissem tão à vontade como antes). Ao princípio aquilo era um conjunto, até nos permitiam fazer os turnos de acordo com

o sítio onde morávamos, para irmos e virmos juntas - relembrou com saudade. Foi a D. Mercedes, a mulher do Sr. Guy, quem fez a separação das cores com uma lógica matizada, construindo um placar das cores. Nessa altura, saía tarde do edifício e, numa noite às 9 horas, ao pôr a mão no interruptor para apagar a luz, sentiu uma mão gelada em cima da dela. Assustou-se! E foi esta a última aventura fantasmagórica relatada pelas três irmãs. Contaram-nos também como eram os seus intervalos de trabalho: Após o 25 de abril, começou a manifestar-se a preocupação pela saúde daquelas senhoras e instaurou-se um intervalo de meia hora para elas fazerem ginástica de manutenção, mas nem todas aderiram a essa iniciativa. O outro intervalo era o que sempre foi. Ao fim de quatro horas de trabalho, paravam para comer, mas muitas vezes punham o comer no colo e continuavam a trabalhar enquanto comiam - disse-nos uma das irmãs. Chegaram a assar linguiça no “mirante”, para que não cheirasse a comida no local de trabalho, mas o Sr. Guy, quando entrava na sala, dizia: “Cheira aqui à comida da vizinha!...”. Ao fim do dia, a última meia hora do turno de trabalho era guardada para arranjar a tapeçaria da parte da frente, para que ficasse perfeita. Havia classificações de A a C, sendo também, ao fim do dia, que o lugar de cada uma era avaliado. 85


Quem ficasse bem classificado era compensado financeiramente. Um dia, a D. Maria do Rosário teve pena da colega, que estava atrasada, e ajudou-a. Resultado: a outra ficou classificada e ela não. Desde então, ficou sem vontade de ajudar as colegas. Nessa nossa conversa, as três irmãs abordaram igualmente aquilo a que chamo o seu toque na arte: foram as tecedeiras que inventaram algumas técnicas de restauro quando um pedaço de teia não ficava bem trabalhado. O artista Cargaleiro chamou-lhes “as abelhinhas daquela arte”. Elas conheceram Camarinha, Vieira da Silva, Bernardo Torres, Maria Keil, João Tavares. A primeira tapeçaria de Portalegre foi deste, era professor no Liceu. O poeta José Régio também desenhou a cidade de Portalegre para uma tapeçaria. Martha Mood, artista na arte de patchwork, enviou as suas peças dos Estados Unidos da América até Portalegre, num avião privado, para que fossem reproduzidas pela arte da tapeçaria. Paula Rego e Graça Morais foram outras artistas cujas pinturas foram tecidas pelas suas mãos. Guilherme Camarinha foi quem as ensinou a fazer o “efeito degradé” na tapeçaria. Ele fazia as suas maquetes na cidade do Porto, os desenhos em Lisboa e passava meses em Portalegre acompanhando a evolução das tapeçarias de sua autoria. Retocava os seus traços diretamente na tapeçaria. Estas três senhoras entraram para a Manufatura muito jovens, com treze, catorze anos. Descrevem o seu trabalho como um trabalho muito minucioso, asseado, só de senhoras, enquanto o das tapeçarias francesas 86

era feito por homens. Esta diferença de género parece-me, pelo que eu percebi, dever-se à posição exigida ao corpo. Para trabalhar uma tapeçaria, a posição das mulheres é sentada de frente para a teia, com as pernas juntas e inclinadas para o lado direito; a posição exigida aos tapeceiros franceses era diferente, pois, segundo entendi, os teares eram horizontais e exigiam um trabalho mais adequado à sua condição masculina. Quando uma aprendiza entrava para a Manufatura, iniciava-se nas tarefas dos mandados e ia aprendendo a tecer nos intervalos dos recados, sentandose às pontas. Quando entrava outra, a mais antiga passava para o tear. O tempo para uma tecedeira ficar a valer demorava quatro anos. - Olhávamos para o desenho e tecíamos ao mesmo tempo (sem paragens). Demos cabo dos ossos e da vista. Apesar de tudo, gostaram muito daquele trabalho. Ficam contentes cada vez que veem tapeçarias tecidas com as suas próprias mãos, reveem nelas as suas memórias e também a felicidade dos artistas. Terminámos a nossa conversa ouvindo algumas descrições baseadas num livro com imagens da Manufatura, um livro que lhes foi oferecido. No 50º aniversário da Manufatura das Tapeçarias de Portalegre, as três irmãs foram convidadas para ir à Gulbenkian, a um almoço, apesar de já lá não trabalharem. É por estas atitudes que elas têm a certeza de que a sua arte continua a ser valorizada e sentem orgulho no seu trabalho.


O Sr. Guy era uma pessoa conscienciosa disseram. Noutro dia, a D. Maria do Rosรกrio foi convidada para tirar uma fotografia com Jorge Sampaio por ser a tecedeira mais antiga, a primeira.

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AS TRABALHADORAS

DA SERRA DE S. MAMEDE

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EUGÉNIA TAVARES 82 anos São Julião

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A D. Eugénia nasceu em São Julião e tem 82 anos. Com seis anos, carregava contrabando para a mãe, pois os guardas não o tiravam às crianças, mas, um dia, o guarda mandou-a parar e ela esparramou todo o arroz que levava no caparucho para o guarda-fiscal não a levar. Ficou muito assustada nesse dia e a mãe ralhou-lhe por ela ter aventado o arroz para o chão. A sua mãe ficou presa durante cinquenta dias em Portalegre por ter sido apanhada a fazer contrabando de um metro de riscado e uma bobina de linhas. Não ficou mais tempo por ser portuguesa. Quando a D. Eugénia fazia contrabando, levava o dinheiro guardado pela sua mãe num lencinho e lá ia ela por entre as veredas. No destino, o comerciante oferecia uma mão cheia de rebuçados de açúcar depois de pagar e receber a pequena encomenda. A sua mãe fazia caiações, participava em matanças e arrumava bem a casa. “Desmanchava e voltava a compor” - exemplificou a D. Eugénia. Com doze anos foi mondar trigo com outras mulheres ganhando tanto como elas. O rancho dormia num casão, em enxergas de palha que elas faziam com sacas cosidas umas às outras. Para estes trabalhos, levava uma bolsa com dois lençóis, um cobertor de tabela, uma manta. Juntavam-se umas três ou quatro raparigas e compunham uma cama daquela maneira com enxergas de palha. Trabalhou numa horta na Ribeira do Caia e, em Elvas e Campo Maior, apanhou a azeitona de empreitada, orientada

por um manajeiro. Tinha que ter cuidado para não rasgar as ramas. Também ceifou e foi para Espanha plantar algodão. Nesse país ganhava-se mais. Aos 23 anos casou e mudou-se para uma casa sua em São Julião, onde também tinham a sua horta. O marido trabalhava no campo e era contrabandista de café e de gado - “Ele nunca perdeu o gado”, ou seja, nunca deixou que o gado se assustasse, caso fosse descoberto pela Guarda. O cunhado é que chegou a apanhar uma sova. Ele, um dia, foi apanhado por um guarda, mas enfrentou-o: tirou-lhe a arma, amandou-a para as silvas e fugiu com o gado inteiro sem perder uma cabeça. Ela ficava sempre com o coração apertado até ele regressar. A D. Eugénia nunca se dedicou ao contrabando por ser muito nervosa e o marido não a deixava. Ela também trabalhou em matanças, chegou a participar em algumas em casas de guardas, mas nunca se falava de assuntos de contrabando. Aprendeu a prática da matança com a mãe, bem como a de caiar. Esteve onze anos em Espanha com o marido, ambos como caseiros numa herdade. Ele cuidava do gado e ela da casa. Ficavam à distância de uma hora e meia de São Julião, como tal, vinham a casa de vez em quando. Depois, quando voltaram definitivamente, arranjaram uma “piara” - designação espanhola para cabrada. Cuidavam da horta, semeavam em terreno arrendado para poderem alimentar os animais e confecionavam queijos com o seu leite. 91


Quando as fronteiras já estavam abertas, ela e o marido também trabalharam em tomatais espanhóis - plantavam, sachavam e colhiam. “O serviço do campo era muito bonito!” No verão, lavava a roupa no ribeiro e corava-a ao sol. No inverno, lavava em regatos mais perto de casa. Perguntei-lhe se lhe custava muito lavar a roupa no inverno e ela respondeu que não, reforçando que gostava mais de lavar na ribeira, a água era mais limpa. A nossa conversa decorreu na Santa Casa da Misericórdia de Portalegre.

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MARIA PIRES 83 anos São Julião

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A D. Maria Pires nasceu em São Julião e tem 83 anos. Estudou até à 3ª classe - “Os homens é que precisavam de estudos para irem à tropa” Começou desde muito cedo a trabalhar no campo com os pais. Ela era a única rapariga, tinha cinco irmãos. Ela regava, sachava batatas e feijão, cuidava da casa, juntava pedras, colhia azeitona, ceifava feno para alimentar o gado… levantavase às seis horas. Ela e a família comiam o que a horta dava e tinham também animais. Tem muitas saudades do sabor daquelas comidas. Como cultivavam trigo, mandavam-no moer ao moleiro e faziam pão com aquela farinha. A sua preparação dividia-se em duas fases: uma primeira fase, denominada de fintura de malteza, que acontecia num alguidar de madeira depois de amassado o pão. Uma segunda fase, a fintura de tabuleiro, quando o pão estava já moldado. Também fazia limpezas em casas de senhoras, caiava; participava nas matanças, com a tarefa de lavar as tripas na ribeira, de temperar e voltar a lavar. Por fim, temperava as carnes e pendurava os enchidos em fumeiros nas chaminés das lareiras, para que ficassem curados pelo fumo quente dos sucessivos lumes de inverno. Esta carne era depois vendida em Portalegre. Andava 60 dias à azeitona e ganhava 10 escudos por

dia. O homem ganhava um pouco mais, cerca de 15 escudos. Com este dinheiro comprava o azeite para o ano inteiro (60 dias de trabalho correspondiam a 60 litros de azeite). Deslocavam-se a Portalegre a pé ou de burro. Abalavam, ela e a família, de São Julião ainda de noite para chegarem à cidade por volta das onze horas. Iam ao médico ao Porto de Espada. A este propósito, contou-me que um dia, tinha seis anos, veio para o hospital de Portalegre de burro com o pai e tiveram que parar por estar muito frio. Pararam para que o pai fizesse um lume para ela se aquecer. Quando veio para Portalegre, em 1966, já tinha os dois filhos. Veio trabalhar com o marido para uma horta. Depois trabalhou na Fábrica de Lanifícios, nos cortes. Ia de madrugada para os apanhar, senão esgotavam. Os filhos empregaram-se na Fábrica Serraleite. Depois de se reformar, ainda ajudou o filho que foi proprietário do restaurante “O Solar do Forcado” durante 20 anos. O filho dizia-lhe que ela era a melhor empregada que ele tinha. A nossa conversa decorreu na Santa Casa da Misericórdia de Portalegre.

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NAZARÉ MEIRA 86 anos Carreiras

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A D. Nazaré nasceu nas Carreiras e tem 86 anos. Viveu sempre naquela localidade com os pais e a irmã mais velha. O pai fazia carvão e era tirador de cortiça. Na recolha do carvão, a mãe apanhava o grosso e a D. Nazaré apanhava o miúdo. Dissenos que começou a brincar a apanhar carvão, pois tinha cinco anos, a mãe levava-a para o campo e a irmã ficava com a avó. Depois foi à escola, a qual frequentou até à 4ª classe -“A minha mãe era amiga que eu aprendesse”. Antes ainda andou na mestra a aprender a bordar - “Não me faltou nada”. Quando saiu da escola, foi aprender costura (remendava, fazia coletes para homens, passajava meias, cerzia). Ao mesmo tempo trabalhava no campo com a mãe. O pão era feito em casa e era consumido até ao fim, embora o passar dos dias o endurecesse. Para contrariar este seu destino, molhavam-no e enxugavam-no num paninho, tornando-se macio. Os sapatos de obra grossa, com a sua sola em borracha, eram feitos pelo sapateiro da terra e eram os usados no campo. Os pais inicialmente trabalhavam em hortas arrendadas, só depois adquiriram uma. O pai tinha homens que trabalhavam por sua conta nos fornos de carvão, bem como na tiragem da cortiça dos sobreiros. O cozedor de carvão dormia perto dos fornos numa cabana, garantindo assim que estes não pegassem fogo. Quando o carvão ficava preparado, o pai transportava-o até Portalegre em duas bestas, muito bem arrumado com a

ajuda de um rapaz, e vendia-o para aquecer os invernos rigorosos das casas de Portalegre. Mais tarde, comprou uma carroça - “Lembro-me de vir naquela carroça à Feira das Cebolas”. *Neste momento em que escrevo, penso o quão importante seria aquela negra preciosidade para o povo desta cidade e do campo que a rodeava e, por serem pedras preciosas, estas que em tempos já tiveram a vida de uma árvore, à minha memória regressou o seu brilho incandescente e crepitante em salvas chamadas braseiras* O “brincar à macaca” no pátio da sua casa com as vizinhas era muito comum na sua infância. Num dia em que a D. Nazaré e uma amiga estavam na rua, despertadas pela curiosidade, foram espreitar um funeral invulgar por o caixão ser branco. Levava uma mulher nova e solteira, por isso era daquela cor. Nesta sua história de vida, a D. Nazaré não se esqueceu de mencionar a existência de um porquinho e de como ela tinha um enorme prazer em apanhar punhados de landes e darlhe a comer. “Trabalhei muito, mas estou feliz” Ao ouvir esta frase, afirmei: “Está em paz com a vida.” Ela assentiu com a cabeça. “A vida era difícil para toda a gente. No casamento, levei uma mesa de cozinha, um faqueiro, seis cadeiras, uma mesa-de-cabeceira, uma cama, duas cadeiras pequenas de bunho, de um bunho grosseiro para estarmos mais 97


perto do lume. Depois do 25 de abril, a vida começou a melhorar, já havia Caixa”. O seu filho já teve uma oportunidade para estudar e, depois dos estudos, foi trabalhar para Portalegre, deslocando-se na sua bicicleta. A D. Nazaré trabalhou até aos 80 anos na horta, cuidando ao mesmo tempo de alguns animais. Hoje é viúva. A nossa conversa decorreu na Santa Casa da Misericórdia de Portalegre. Quis que soubéssemos que era ali muito bem tratada.

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ROSA CORTA-LARGO 89 anos Pisão

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A D. Rosa nasceu no Pisão, Crato, e tem 89 anos. Viveu uns períodos da sua vida no Pisão e outros em Portalegre. Aos quatro meses, foi morar com a sua irmã para Portalegre, foi ela quem a criou, e a vizinha, como tinha uma bebé, partilhava com ela o seu leite. A sua primeira papa foi de bolacha com chá, feita pela irmã. A mãe ficou muito doente quando ela nasceu, daí aquela separação. A D. Rosa já caminhava pelo seu pé quando a mãe saiu do hospital, mas, nessa altura, ela só queria a mana. A respeito dessa proximidade que ela sentia pela irmã, contou-nos que, quando esta se casou (no Pisão), foi morar para uma casa ao lado daquela onde morava a mãe. De noite, quando a D. Rosa já dormia, levaram-na para a cama da mãe. Ela acordou e, ao passar a sua mão pela sua cara, percebeu que não era a irmã que estava a seu lado. Chorou tanto que o cunhado a foi buscar e meteu-a na cama entre os dois -“Adormeci logo!” - exclamou. Com doze anos, o pai foi buscá-la e levou-a consigo para aprender a trabalhar no campo. Aprendeu a mondar (lembra-se que no mês de maio andava sempre molhada nos regos) e arrancou sargaços. Nestes tempos limpavase a terra para semear trigo. Ceifou e gostou muito dessa tarefa. Ela deitava o trigo no chão e os homens faziam molhos. Acarretava também lenha para os fornos de carvão, enquanto os homens a empilhavam e deixavam umas gateras para o lume respirar. O pai guardava os fornos e apagava o lume quando estes ardiam. Depois, quando o carvão ficava preparado, ela

apanhava-o para as sacas e, por fim, andava ao rabisco para ser usado nas braseiras - “As fragalhas de Portalegre iam roubar os rabiscos” - dizia a D. Nazaré, que estava a seu lado nesta conversa que decorreu na Santa Casa da Misericórdia de Portalegre. Depois vinha a apanha da azeitona, gostava muito de subir às árvores e ripar cá para baixo. Também apanhou xaras, mas esse era um trabalho muito custoso - “Cheguei a cair de cu ao arrancá-las, pois eram muito grandes e estavam bem presas pela raiz. Eram boas para atiçar o lume”. Como não gostava de viver no Pisão, voltou a Portalegre e casou. Casou com 15 anos, mas, como tinham pouco dinheiro, foram viver para casa dos pais dela no Pisão. Estava grávida de um mês, quando o marido saiu de casa. Mais tarde ele ainda voltou para se reconciliar, mas tal não chegou a acontecer, pois ela continuava magoada. Voltou para Portalegre para casa da irmã e teve a sua filha. A sua irmã ajudou-a a cuidar dela, tal como fez com ela. Entretanto foi servir para casa de um casal. O senhor, como era professor, foi viver para Coimbra e levou a família (o filho e a filha deste patrão eram os padrinhos da sua menina). Quando o seu pai adoeceu, ela voltou ao Pisão. Após a sua morte, voltou à casa da irmã, foi servir para outra casa como cozinheira e, desde então, nunca mais deixou esse ofício. Cozinhou para grandes casamentos, chegou a fazê-lo para 200 pessoas, na Cooperativa Operária Portalegrense, demorava quatro dias para 101


confecionar os pratos, incluindo os doces. A filha casou com 16 anos e logo a seguir casou a D. Rosa. Embora gostasse muito do seu homem, só casaria com ele depois do casamento da filha, pois tinha medo que ele a maltratasse. Assim foi, casou com trinta e tal anos e, afinal, o seu marido foi um grande amigo para ambas. Era polícia, viúvo, com dois filhos. Ela nunca mais precisou de trabalhar. Embora tivesse ficado viúva, ela quis partilhar comigo a sua sorte -“Se eu não tivesse casado com ele, não poderia suportar a despesa da Santa Casa”.

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GUILHERMINA MARTINHO 80 anos Reguengo

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A D. Guilhermina nasceu nos Barreiros, Reguengo, há 80 anos, um lugar com quatro casas. Lembra-se que era a menina mais pequenina da escola. Nesse tempo, a relação de submissão das alunas para com a professora passava das portas da escola. Contou-nos que, quando dormia lá na d’ela, a professora chamada Iria, pedia sempre para lhe fazer um caldo de farinha. Também lhe fazia outros favores, como por exemplo, lavar as chaminés dos candeeiros a petróleo no tanque com um bocadinho de sabão. Um dia, partiu uma chaminé por o sabão ser tão duro. Quando tinha onze anos, nasceram os seus dois irmãos gémeos. Só a sua mãe é que trabalhava, o seu pai “era muito doente dos pulmões”, estava em casa e, então, a D. Guilhermina teve que abandonar a escola para tomar conta dos irmãos. Como o trabalho da sua mãe era no campo e também nas casas do lugar, fazendo caianças, ela pegava nos dois irmãos, um em cada braço, e levava-os à mãe para os amamentar. Lembra-se que um dia, numa subida, teve que os colocar no chão devagarinho, porque já não tinha força nos braços - “Depois, para os voltar a apanhar, foi o cabo dos trabalhos” - contou-nos ela. Além de cuidar dos irmãos, tomava ainda conta das tarefas da casa, pois a mãe só chegava à noite. Assim que os manos ficaram mais crescidos, trabalhou na Relva e nos Cantarinhos. Para além daqueles, tem um outro irmão, que aprendeu o

ofício de carpinteiro - marido da D. Zélia. Os pais deram-lhe ordem para casar tinha ela 19 anos. A partir desse momento, ela e o marido passaram a ser caseiros na quinta de uns ingleses no Reguengo. O marido, pedreiro de profissão, fez um poço, fez muros, fez um caminho em pedra, rachou lenha… Cuidaram daquela quinta durante treze anos. Trabalhou durante sete anos na casa do Dr. Jaime Azedo, um cirurgião de Portalegre, foi nessa altura que ela começou a fazer descontos, mas não por esses patrões. A casa onde ela reside, no Reguengo, foi construída pela família. Os irmãos vivem na mesma rua e também numa casa construída pela família, há mais de trinta anos. No final da nossa conversa na sala de jantar da sua casa, contou-nos um episódio da sua vida passado em criança, quando o seu pai ainda trabalhava: Ele era serrador e ficava temporadas fora de casa. Quando chegava, a mãe queria ficar à vontade com ele e mandava os filhos para a rua. Ela não queria ir, porque tinha saudades do pai. Assim, a mãe, para lhe meter medo, ameaçava-a com o clister - “Enganavam muito a gente!... Disseram-me que eu nasci atrás de uma porta e o meu irmão debaixo de um estrado perto da lareira…”.

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JOANA MARIA FONSECA 95 anos Vale Cavalos

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A D. Joana Maria mora em Vale de Cavalos e tem 95 anos. Quando era criança, vivia com os pais no seio de uma grande família, ao todo eram dezoito a partilhar duas divisões. Nunca foi à escola, pois não havia escola onde morava, mas aprendeu a assinar. Com cerca de oito anos, tomou conta de um sobrinho e de um primo. Ia buscar o leite para eles todos os dias e fervia-o. Aos doze anos começou a trabalhar no campo, fazia uma sesta de duas horas na estação mais quente do ano e tinha o domingo disponível. Trabalhou para “patrões fixos” e andava cerca de uma hora a pé para o trabalho. Era a filha mais adorada pelo pai (dito pela própria), lembra-se de ele a levar aos bailes ia ele, ela e o namorado, que vivia no “Monte Basteira”. De regresso, vinham os três de conversa. Referiu que naquele tempo as pessoas eram mais advertidas. A casa onde viveu em criança tinha oliveiras ao redor e era arrendada. A sua mãe era lavadeira, lavava a roupa na levada ao lado da casa, perto da escola construída anos mais tarde, aquela que os filhos frequentaram. A mãe era chamada com frequência para fazer outras tarefas, por exemplo, a matança dos porcos, e ela acompanhava-a já os gaiatos (os primos) andavam à escola. Quando foi trabalhar, escolheu o campo - “Eu não queria ir servir!” Na sua casa, toda aquela família era alimentada

com sopa de batata ao almoço, servido às 9 horas, e com uma panela de couves ao jantar, servido às 13 horas. A partir do dia três de maio, merendava-se e havia um intervalo para a sesta de duas horas, que durava até setembro, por altura da “Feira das Cebolas”. A merenda era às 17 horas e durava meia hora - “Comia-se um naco de pão”. As suas tarefas rurais consistiam em sachar, semear feijão e milho e hortaliças, regar, apanhar azeitona, mondar trigo e, em abril, semeá-lo. Era uma hora a pé até ao trabalho. Levantava-se de madrugada, lavavase, vestia-se e levava um pão para comer pelo caminho, bem como o que comeria ao almoço. Na altura da apanha da azeitona, lembra-se de lhe rebentarem as frieiras nos pés e de o sangue sair pelo sapato. As companheiras ajudavamna, transportando-a nos seus braços em forma de “cadeirinha”: duas delas colocavam os braços em posição de assento, ela sentava-se e era levada até casa. Começou a namorar aos 16 anos e casou aos 20. Quando ia aos bailes, tinha muitos pretendentes, mas “depressa os despachava!”afirmou com determinação. Quando dançava com a comadre, os pretendentes dirigiam-se a elas e apartavam-nas para dançarem cada um com seu par, mas, a partir do momento em que começou a namorar, o seu par era só um. Os bailes eram animados com cantigas e a toque de concertina. A D. Joana cantava ao desafio com a Ti Felizarda, a irmã, e também cantava com a Maria Jacinta, a outra irmã. Os rapazes, os alvos das provocações desafiantes, respondiam-lhes à altura. 107


Casou, foi morar para o pé da mãe, mas em casas separadas. Pagava renda anualmente. Foi trabalhar para o “Monte da Basteira”, onde o sogro era rendeiro. Lembra-se de no verão se mudarem para lá - punham uma esteira e um colchão na carroça que os levava até ao monte, a D. Joana, o marido e os filhos. Tiveram oito filhos, dois já morreram. Morou em cinco casas, pois procuravam sempre a mais barata. Um dia o seu sogro disse ao filho: “quero ver os meus netos debaixo dos meus telhados” e assim foi, os filhos mais novos da D. Joana nasceram na casa onde me foi contada a sua história de vida. Toda esta riqueza foi possível ficar escrita, porque a Ana Rosa, a sua segunda filha mais nova, e a Vanda, a sua neta, foram preciosos estimulantes das memórias adormecidas.

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JOAQUINA SILVESTRE 86 anos Escusa

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A D. Joaquina tem 86 anos e mora na Escusa, na mesma casa em que entrou com quatro meses de existência. Nesta casa à renda, passou tudo da sua vida; alegrias e tristezas - “Saí daqui para a escola, saí daqui vestida de noiva, com 22 anos”.

nos a mensagem de que o pão amassado com as mãos fica melhor do que o amassado por uma máquina elétrica. Quando faz pão, faz uma “tiborna”, muito apreciada por si e que consta de pão quente saído do forno, barrado com azeite e açúcar.

Estudou só até à 3ª classe, o que já foi muito bom. Nunca gostou de escrever, porque associava a escrita aos erros e às reguadas que levava como castigo. Já nas contas, ninguém a alcançava, era melhor do que algumas que frequentavam a 4ª classe.

“A minha infância foi muito maravilhosa”.

Os pais trabalharam no campo por conta de outras pessoas e por conta própria também - “Colhíamos aquase tudo para se gastar em casa; a terra é que nos cria e nos alimenta”. Compravam o peixe do mar aos “sardinheiros”, os peixeiros que vendiam as sardinhas. Viveu com os pais e uma irmã mais nova. Teve mais dois irmãos, mas morreram precocemente. Hoje, à sua volta, além da horta e dos castanheiros, vive acompanhada por um gato, por uma cadela, por um porco, galinhas e coelhos. No tempo dos seus pais, o pão era quase sempre caseiro. Semeavam e colhiam o trigo. O forno era de poia, ou seja, quem o usava tinha que dar em troca um pão ao forneiro. Hoje a D. Joaquina ainda amassa, teve que aprender, pois a mãe não permitia que ela começasse a namorar sem saber primeiro amassar e, reforçando a importância desta tarefa, passou-

As raparigas pobres não podiam vestir como as ricas. Havia amor e respeito…hoje não há nada! Todos se ajudavam no campo (…) hoje, nesta aldeia, já se vive o ambiente da cidade, não se diz Bom Dia quando se passa pela escada acima.” Brincava com os caqueros que se partiam. Das castanhas “feridas” fazia colheres, dos trapos velhos fazia bonecas. Brincava-se “à Semana”, “às Cinco Pedrinhas” e “à Macaca”, sempre na rua. Aos catorze anos começou a trabalhar para uma casa de três rapazes. Eles, ao verem que a Menina Joaquina enchia a cesta que trazia na mão como as mulheres crescidas, combinaram pagar-lhe como tal, como a uma mulher. Ela ficou tão contente… afirmando com convicção: “Foi para isso que eu vim, para trabalhar”. Por falta dos pais, a renda da casa passou para o marido e, por falta do marido, passou para ela. Trabalhou sempre no campo, quer em solteira, quer em casada e é viúva desde os 47 anos. Foi nessa altura que foi trabalhar para a Santa Casa da Misericórdia de Marvão, “a fazer noites”. 111


Comprava o passe e deslocava-se de camioneta. Foi trabalhar para juntar dinheiro e comprar a casa - “Tanto sacrifício que fiz para ter a minha casinha. Com a ajuda do Senhor consegui a minha casinha. Ele tem estado sempre do meu lado, não me falta nada, estou feliz!”. Esteve doze anos a trabalhar naquela instituição, ao fim dos quais se reformou. O facto de ter conseguido ficar com a casa com o esforço do seu trabalho foi para si um orgulho, reforçando-o mais tarde este verso: “Ó minha rica casinha, casinha do meu lar, com a ajuda do Senhor, eu a consegui comprar.” O marido trabalhou nos fornos de cal -“O serviço mais escravo que houve” - afirmou-nos. A pedra era retirada das caleiras com brocas e estopim - “Onde há barro vermelho, há cal” - ensinounos. Quando se dava a explosão, os homens gritavam “Fogo” do alto da pedreira e todos tinham que fugir para longe, para as pedras não os caçarem. A cal branca era a melhor, branca como a neve - “Há muitos pisa-papéis de pedra de cal espalhados por aí” e alguém, um dia, até disse: “Na minha terra até as pedras são bonitas”. A cal que não prestava, o desperdício, aquilo a que chamou de macaronhos, servia para construir as casas. A cal preta era separada da branca na pedreira e eram ambas carregadas para os fornos para cozer. A cal preta era utilizada na construção civil e como estrume. Cada forno tirava três mil arrobas de cal -“Três homens e um ajudante metiam lenha para os fornos sem cessar, dia e noite, de verão e de 112


inverno. Quando chovia, não se podia trabalhar”. O trabalho das caleiras era todo feito por homens. Recebiam à semana, mas por vezes os patrões não tinham dinheiro para pagar aos empregados - “A vida mais dura e mais pobre que conheci foi esta” - disse a D. Joaquina. Este trabalho era intercalado com o da apanha da azeitona e o da ceifa. A castanha também se apanhava e havia tanta gente a querê-la que esta não chegava para as encomendas. Era usada predominantemente nos magustos e também era seca em secadores para se vender. A cal era vendida em Nisa, Castelo Branco e Portalegre, sendo que na Escusa havia um homem que a vendia em saquinhos. Ao relembrar tempos antigos, descreveu-nos a divisão das funções dos homens da aldeia: *os homens que apanhavam a lenha (esta eralhes dada pelos proprietários depois das árvores limpas); *os homens que atavam a lenha para colocar nas bestas; *os homens que a transportavam até aos fornos; *os homens que metiam a lenha nos fornos; *os homens que arranjavam a pedra para depois ser cozida; *os homens que empilhavam as pedras de cal dentro do forno.

dia seguinte e bebiam uns copitos. Começavam a trabalhar ao nascer do sol até que ele se pusesse. As suas senhoras levavam-lhes o almoço às 10 horas, o jantar às 14 horas e, por vezes, merendava-se às 6 da tarde. Lembra-se de ter havido um cortejo onde se juntaram em rancho trinta homens e trinta mulheres. O traje das mulheres compunha-se de uma saia azul clara, blusa branca e laços azuis e brancos nas cestas de papel. Os homens levavam uma camisa branca e um forno de cal que representava a caleira. “Foi um cortejo muito bonito” - recordou com um sorriso. Foram todos convidados para ir a Portalegre, à “Feira das Cebolas”. Ela não foi, porque a mãe não deixou – “Naquela altura, palavra de mãe era palavra de rei”. Um dos filhos, o mais novo, tem uma oficina de carpintaria perto de sua casa e “faz um excelente trabalho” - disse ela com orgulho. Juntam-se às refeições, ele ajuda-a na horta, mas, à noite, regressa a sua casa para dormir. O mais velho não gosta da terra. Foi assim que se despediu de nós naquele dia: “Esta casa não é nobre, mas que importa? Nunca está fechada quando as visitas batem à porta”.

Naquele tempo, as caleiras empregavam todos os homens da aldeia. Depois os seus filhos empregaram-se em “bons empregos”. Os patrões pagavam um jantar quando uma fornada ficava pronta. Os homens iam à taberna quase todas as noites receber ordens para o 113


JOAQUINA GONÇALVES 87 anos Galegos

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A D. Joaquina tem 87 anos e nasceu numa localidade chamada Pitaranha, perto dos Galegos. Teve seis irmãos, os pais eram trabalhadores rurais e viviam também do contrabando. Iam a Portalegre comprar sabão, linhas, pão e café e vendiam em Valência. Do lado de lá da fronteira, as mulheres quando não tinham dinheiro, pagavam com artigos, por exemplo, loiças. A D. Joaquina começou a vida de contrabando com as amigas tinha onze anos. A mãe mandava vir uma camioneta de sardinhas de Peniche, eram depositadas no Posto Fiscal dos Galegos e ela comprava as caixas, dizendo aos guardas que eram para vender em Portugal, mas não, ia vendêlas porta-a-porta do lado de lá da fronteira. Os guardas controlavam os contrabandistas nas arraias e, quando apanhavam as mulheres com sabão ou café, prendiam-nas. A D. Joaquina e a mãe, a D. Jacinta, chegaram a ir presas. Contounos que, num dia, sete raparigas, ela incluída, traziam sapatilhas e pimentão, quando foram apanhadas do lado de cá pela Guarda-Fiscal. A D. Joaquina disse que estava aflita para fazer “xixi” e foi a uma parede, ou seja, foi atrás de um muro, descalçou-se e calçou as sapatilhas espanholas, porque, assim, já podia dizer que não trazia nada. As amigas, como foram apanhadas com contrabando, foram levadas para a cadeia de Marvão. A certa altura, pôs-se de noite e elas ficaram com fome. Lá de dentro avistaram um homem na rua ao pé de uma taberna. Uma delas assomou-se às grades da cadeia e pediu ajuda ao homem para fazer queixa à guarda que havia sete mulheres com fome dentro da cadeia. Passado

pouco tempo, apareceu um guarda-republicano com comida numa cesta de verga. Elas cantaram e dançaram de contentes, a D. Joaquina tinha na altura cerca de 14, 15 anos. Na manhã seguinte, levaram-nas para a cadeia de Castelo de Vide, mas, como a guarda dali não tinha ordem para as receber, foram-se embora. Voltaram por ordem do tribunal e ficaram presas nove dias, mas desta vez levaram comida para não passarem fome. Acabaram por ficar absolvidas. Disse-me a D. Joaquina que viveram aqueles dias com alegria, ou seja, viveram uma aventura. Um tempo depois, a mãe quis que ela saísse daquela vida e pô-la a trabalhar à jorna. Ganhava três escudos por mês e ia comer à da mãe, ou seja, a casa da mãe. Ela ia com as amigas aos bailes em Espanha e à festa do Pino, uma aldeia espanhola. Num dia de festa, estava ela a tirar o pão e o chouriço de uma bolsa de trapo e constatou que não tinha como cortar o pão. O Sr. João estava ali ao lado e ela perguntou-lhe se não tinha uma navalha. Ele respondeu com malandrice que a que tinha não cortava e foi assim que se conheceram. Namoraram três anos e oito dias. Além daqueles bailes do lado de lá, também frequentavam os do lado de cá, pois na freguesia havia dois salões de dança. “À roda das arraias não havia quem não vivesse do contrabando” - disse-me o seu marido no dia da nossa conversa, no quintal da sua casa. Ao fim do dia encontravam-se na taberna e conviviam juntos, guardas e contrabandistas. “Não havia maldade nesse tempo” - afirmou. 115


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A D. Joaquina casou com 20 anos e foi morar para o Montinho, Cimo do Monte, a terra do marido. Ainda trabalhou à jorna, mas por pouco tempo, trabalhou mais para o seu próprio sustento. O Sr. João teve 40 homens a carregar contrabando. Ele era o chefe. Levavam 25 Kg de café às costas dentro de mochilas. Perto do 25 de abril e após essa data, o preço do café subiu muito, mas, como ele tinha “posses” para poder manter algum em stock, conseguiu ganhar muito dinheiro naquele tempo. Chegou a ganhar 90 escudos em cada kg de café. Entretanto a D. Gertrudes, a senhora que nos acompanhou nestas conversas pela serra, como conhecia bem estas senhoras do tempo em que trabalhou no Centro de Saúde do Reguengo e de São Julião, aproveitou este dia para se atualizar das novidades com a D. Joaquina e, a propósito

de um episódio que lá se passou com umas mulheres, a D. Joaquina expressou estas palavras em sentido metafórico: “Como a cabra salta a vinha, salta a mãe, salta a filha” - expressão que eu achei engraçada e que se encaixa no provérbio: “Quem sai aos seus não degenera”. O Sr. João falou-me que usava naquele tempo uma bilba, a boina preta usada pelos contrabandistas daquela zona raiana, e contou-me também que o contrabando era feito à noite pelos homens que comunicavam entre si através de assobios. As mulheres, essas faziam o contrabando à luz do dia. Esta nossa conversa com a D. Joaquina aconteceu no seu quintal, num dia de sol, na presença do seu marido, que aproveitou e me contou estas histórias inesquecíveis passadas consigo.

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JOAQUINA SILVA 78 anos S. Julião

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A D. Joaquina mora na Ribeira de Arronches, Reguengo, com o seu marido e filho, e tem 78 anos. Nasceu em São Julião e foi lá criada. Tem dois irmãos, mas nem ela, nem eles foram à escola. Aprendeu muito “poucachinho” com uma senhora à qual os pais pagavam cinco tostões por dia para a ensinar. Só sabe assinar e mal. Com 15 anos foi trabalhar à jorna com outras mulheres para o Monte Sete: ceifou fetos para pôr na cama das cabras, foi à azeitona, à castanha, semeou, mondou trigo e também caiou. O pai era pedreiro e a mãe doméstica. Lembra-se que ganhava oito escudos por dia quando era jovem. Cantava e dançava, ia a pé para os balhos e foi num que conheceu o marido. Casaram com 23 anos. Trabalhou muito para os lados do Porto da Espada. Ia a pé para o Montinho de Alegrete aos bailes e para os Besteiros às festas. “A minha vida foi trabalhar toda a vida”

da horta, da casa, do gado e dos filhos (um casal). Os sapatos e as roupas eram comprados em Espanha. Quando precisava de ir a Portalegre, deslocava-se a pé ou num macho. Quando já morava na Ribeira de Arronches, também se deslocava a pé até ao Monte Sete para ir à mercearia comprar o pão. O peixe ia comprá-lo a Portalegre, num macho ou numa besta com uns alforges. Carregava uma quarta de leite (20 litros) às costas ou à cabeça para um lugar chamado Freixos, a três km de distância. Quando estava em São Julião, ia a Castelo de Vide às feiras. Lembra-se de levar os filhos para a horta familiar e, como regava até às 11 horas da noite, deitava a filha numa caminha que ela própria fazia no chão. O marido vendeu gado quando era novo, ia muitas vezes para Espanha. Ao contar-nos a sua história, revelou expressões de resignação, mas simultaneamente de força para continuar a sua caminhada - “Temos a noite e o dia e as veredas para andar”.

O marido era trabalhador florestal e ela cuidava

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LEONILDE GARÇÃO 84 anos Reguengo

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A D. Leonilde mora com o seu marido na Ribeira de Arronches, Reguengo, e tem 84 anos. Nasceu nesta freguesia rural de Portalegre, nunca foi à escola, tinha seis irmãos, duas eram raparigas, e o pai era trabalhador rural. Tinha ela sete anos quando a mãe se apartou do pai. Face a isto, ela foi trabalhar “de graça” para a casa de uma senhora e vinha dormir a casa da avó paterna, onde também vivia uma tia. “Apartaram-se os filhos por justiça e eu fiquei com o meu pai”. O pai trabalhava na Cabaça e vinha à noite, quando vinha. Mais tarde, arranjou uma mulher, a “Ti Mari Grila”. Quando a D. Leonilde foi trabalhar para a tal senhora, partiu a chaminé de um candeeiro e ela ficou tão zangada que quis mandar-lhe com a panela do leite. A jovem acabou por ir-se de lá embora com medo dela. Ao fim de uns anos, conheceu o marido, apaixonou-se aos 16 anos. O pai não consentia o namoro por o rapaz ser da Ribeira de Arronches e não ser do Reguengo e então ela fugiu para casa da mãe -“Fui para a da m’nha mãe”. Depois, devido a uns problemas com a mãe, ela resolveu sair de casa e foi trabalhar como criada para uma quinta, “Os Cantarinhos”. A seguir foi para outra, “ A Relva”, para a casa das inglesas. Ainda chegou a arrancar bredos, mas tinha as mãos tão finas que ficaram todas gretadas e a inglesa, a Letícia, filha do dono da Robinson e de D. Helena, mudou-a para dentro de casa. A outra inglesa chamava-se Oldine, era amiga de Letícia. Enquanto solteira, ia aos bailes do Reguengo e cantava na apanha da azeitona, recordou

estes momentos de alegria e convívio com saudade. Quando casou, foi viver para a Ribeira de Arronches, para uma habitação com “duas casinhas”, ou seja, com duas divisões. No dia do seu casamento foi de carroça até à igreja e os seus pais, como não se falavam, não foram ao casamento, mas o seu pai ofereceu-lhe a mobília. O jantar foi na casa da sogra. Quando a casa onde eles vivem hoje vagou, arrendaramna, bem como o terreno em volta e mudaram-se para lá, já lá vão 50 anos. *Meses antes, quando imaginei este projeto de recolha de histórias de vida, vi-me na serra, envolvida por dia cinzento, num lugar rodeado pela Natureza, ouvindo uma senhora na casa dos 80 anos a contar-me as suas histórias, sentada a uma lareira como aquela, de parede a parede. A novidade, quando me vi naquele sítio, foi que aquela lareira tinha uma cordice, um pano com padrões de cores vivas que se costuma ver nas casas tradicionalmente alentejanas, mas que eu nunca tinha visto a não ser num livro que li sobre Campo Maior. Nele, a autora conta-nos que estas cordices também guardam histórias passadas por detrás, histórias de namorados. Foi naquele dia 29 de novembro, véspera dos meus anos, que eu entrei dentro da casa com a qual havia sonhado!!...*

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MARIA DE LURDES MIRANDA 85 anos Reguengo

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A D. Maria de Lurdes Miranda tem 85 anos, nasceu no Reguengo e nunca foi à escola. Os pais eram trabalhadores rurais e, desde que nasceu, acompanhou-os sempre pelo campo. Eram dez filhos, quatro rapazes e seis raparigas, sendo ela a mais nova. Viviam em “três casinhas”, ou seja, uma casa com três divisões. Os pais dormiam num compartimento, as meninas noutro e os rapazes noutro. A roupa que vestia durava toda a semana, mas, ao domingo, lavava-a para ir namorar. Um pão de quilo dava para a mesa de uma família inteira, embora, quando chegava ao último filho, já quase não houvesse pão. Casou com 25 anos e foi morar com o marido para a Biquinha. Ele era pintor da construção civil e trabalhador rural. Enquanto foi solteira, frequentou muitos bailes: ao sábado, os do Reguengo e, ao domingo, os do Salão Frio. No Salão Frio, dançava-se à licença e, por isso, o namorado não apreciava muito aquele baile. Também se cantava à desgarrada, mulheres com homens, sendo ela uma grande cantadeira. Nessa altura, a D. Maria de Lurdes ganhou um prémio de vinte e cinco escudos, não a cantar, mas a dançar “o Vira”. Levantava-se às 5 horas e bebia um copinho de

leite na vacaria antes de ir trabalhar. Depois, no campo, almoçavam às 9 horas, jantavam às 12 horas, merendavam às 18 horas e a ceia era às 21 horas. Lembra-se que costumava levar batatas com bacalhau como refeição. Trabalhou na Relva e nos Cantarinhos e o trabalho para si mais custoso foi o de carregar os carros com feno com uma forquilha, o feno que alimentaria os animais. O trabalho de que mais gostou foi o da ceifa, recordando ao mesmo tempo com saudade as cantigas à desgarrada com outros ranchos na época da colheita da azeitona. Com 25 anos casou, deixou o trabalho do campo e foi servir em casa de senhoras, “foi fazer horas”. Teve dois filhos e atualmente vive com a família, na casa de um deles. No dia em que conversámos em frente à sua casa, cantou à desgarrada para que nós ouvíssemos e contou-nos este episódio deveras cómico: - Quando a minha mãe estava doente, comia açorda quente e costumava deixar-me um pouco no fundo, era eu pequenina. Quando ela estava a tardar, eu perguntava-lhe: - Vomecê chamou-me? E era assim, fingindo que tinha ouvido um chamamento, que ela garantia aquele rico mimo para si.

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MARIANA PIRES 67 anos Elvas

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A D. Mariana tem 67 anos, nasceu na Fonte Santa, um lugar às portas de Elvas. Os pais trabalharam sempre no campo e tiveram cinco filhos (dois rapazes e três raparigas). Foi à escola, mas não chegou à 2ª classe, pois teve que ficar em casa a tomar conta da irmã, com meses de idade, para a mãe poder continuar a trabalhar. Sabe ler, assinar e fazer contas. Com dez anos foi à jorna da azeitona e, desde então, trabalhou no campo até hoje. Havia pouco que comer, os pais não tinham terra. O pai tinha um macho com o qual lavrava as terras de outros. Andou descalça até aos oito anos, comprou as primeiras sapatilhas espanholas com o primeiro dinheiro que ganhou. Naquele tempo, a vida era tão pobre que saía para trabalhar sem comer e só comia a bucha, um naco de pão, às 10 horas. A alimentação da família era à base de tomate e de grão, mas, quando começou a crescer, como começou a ganhar mais, já pôde comprar carne para comer. Com 18 anos, ajuntou-se com o companheiro que conheceu em Elvas. Foram morar para a casa da mãe dele, no Montinho. Continuou a trabalhar

no campo; na apanha da castanha, da azeitona, das maçãs e das cerejas. Levava os filhos para o campo com ela até chegar a idade de irem para a escola, pois não tinha quem cuidasse deles. Esta aproximação dos deveres familiares com os profissionais era permitida pelo aconchego da terra, onde os deitava em cima de uma manta e lá ficavam. Quando chovia, resguardava-os com um chapéude-chuva. Por outro lado, como perdia algum tempo do trabalho com os filhos, compensava os patrões dedicando-lhes mais um pouco do seu. Era a D. Mariana quem organizava a vida doméstica. O marido, que começou a trabalhar na Câmara Municipal já eram os filhos grandes, dava-lhe o seu ordenado, ela punha de parte o dinheiro para pagar a renda e outras despesas e ainda juntava algum. Sente-se muito orgulhosa por ter comprado a casa que era da sogra, pagando aos irmãos do marido a parte que lhes cabia. Foi à porta desta casa, adquirida com muito esforço, que nós conversámos.

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ODETE MARIA PIRES 70 anos Montinho

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A D. Odete nasceu e viveu sempre no Montinho. Tem 70 anos e fez a 4ª classe em São Julião, em 1955. Brincava e cantava com as amigas, cuidava da casa, pois a mãe era doente, tinha bronquite. Quando esta entrava em crise, passava as noites sentada à janela, pois só assim conseguia respirar. Tinha uma irmã mais velha, que casou tinha ela doze anos. Mais tarde, como gostava tanto de cantar e de dançar, frequentava os bailes de dia e de noite, cantando também na igreja. Namorou com o marido estava ele em Angola (ele nasceu perto dela, na Alagoinha). Quando ele voltou, casaram ao fim de um ano. Ele, como era guarda-fiscal, foi colocado em São Leonardo, perto de Évora, e foram para lá morar. Mais tarde mudaramse para o Retiro, Campo Maior, e depois para o posto de Rabaça. Em São Leonardo e no Retiro, tinham casa. Nos outros locais, alugaram. O último local foi na zona onde vivem hoje. Só trabalhou em solteira, no campo, para o pai. Depois de casar, dedicou-se à casa e à família, acompanhando o marido pelos locais onde trabalhou. O Sr. Fernando, seu marido, tem 72 anos e, como era guarda-fiscal, passava as noites na rua à espera dos contrabandistas. Grande parte dos raianos tinha como projeto de vida ser guardafiscal, porque tinha o futuro garantido, era a forma de se fixar na sua terra e também de ter a sua reforma garantida. A sua categoria era de soldado e a diferença de salário para cabo era de 100/200 escudos, o que era pouco. Para além

disso, como cabo, se fosse promovido, corria o risco de ficar colocado longe da sua terra, no Algarve. Foi por isso que ele não quis concorrer àquela categoria. Ele era amigo dos que “mexiam” no contrabando - “Cada um tinha a sua vida…”. Os laços de família ligavam-no ao Sr. João, que foi contrabandista. Este era seu tio. Ele lembra-se de um episódio cómico que passou numa noite com um colega na serra, quando estava no Posto da Rabaça -“Estava um frio de rachar; estávamos lá porque éramos obrigados. Estávamos na parte de baixo do carreiro, com a cabeça para a vereda, e ouvi uns passos. O meu colega ressonava. Como tínhamos os pés dentro de uns sacos de plástico, quando o colega acordou por causa dos passos dos contrabandistas que vinham lá de Espanha com a carga, fez barulho e um deles ouviu e fugiu”. O Sr. Fernando não conhecia aquele caminho, era a primeira vez que ia para ali, mas correu atrás de um deles. O contrabandista escondeu-se na urze e largou a mochila. Ele não o encontrou, mas recuperou a mochila. Naquela noite, a carga que vinha nas várias mochilas que se soltaram das costas dos contrabandistas assim que se sentiram ameaçados era composta por soutiens, uma gadanha, câmaras-de-ar para os pneus e colchas muito bonitas. Contou-nos que, à medida que iam resgatando as mochilas espalhadas pelo terreno, deixavam-nas escondidas no caminho. Depois carregavam-nas às costas até ao posto 127


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- “Eram levadas à formiga”, assim chamavam a esta técnica de recolha, que se resumia a um caminhar de idas e vindas. Foi este senhor que nos ensinou que os ”carabineiros” eram os guardas-civis espanhóis. Os guardas-fiscais, os portugueses, costumavam ir à taberna ao fim do dia conviver com os homens, à espreita das suas combinações. Em São Julião havia seis tabernas e as reuniões entre os homens faziam-se nesses locais. Pela serra havia olivais até ao alto com macieiras e castanheiros, como tal, havia vários prédios que davam trabalho aos residentes, mas os homens preferiam o contrabando, porque ganhavam mais dinheiro do que a trabalhar à jorna. Um frete, que consistia em levar a mochila com o contrabando a determinado sítio, era pago a 40 escudos. A nossa conversa com a D. Odete aconteceu na cozinha da casa do casal, na presença do marido, por isso a razão desta sua intervenção deveras interessante.

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ZÉLIA RELVAS 75 anos Reguengo

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A D. Zélia nasceu há 75 anos, num lugar do Reguengo a que se habituaram a chamar de Refroz. Brincou ao ringue, à roda, desenhou casinhas na terra com “linhas” de caruma, ajeitando-as com pedrinhas. Estava sempre deserta que a mãe partisse um prato, porque os cacos serviriam para brincar: colocava um caco em cima de uns paus fingindo uma frigideira e outros pauzinhos fingiam a existência do lume. A D. Guilhermina, cuja história já foi contada neste caderno, é sua cunhada e também a companheira mais próxima, vive na casa ao lado da sua. Tal como ela, só estudou até à 3ª classe, mas, no seu caso, porque teve escarlatina. Ambas completaram a 4ª classe em adultas. Começou a trabalhar aos onze anos, na casa do avô que era lavrador (o avô pagava-lhe como às outras mulheres e dava-lhe de comer), o pai também lá trabalhava. Lembra-se de no verão ir aprender costura e depois começarem os trabalhos da vindima e, por fim, as fegas da azeitona. Aprendeu a mondar trigo e a semear batata. O seu pai lavrava a terra com uma junta de vacas. Com onze anos também fazia queijos e confecionava a comida para os ganhões, o avô tinha muitos homens a trabalhar para ele. Peneirar, lavar roupa e passar a ferro com um ferro de brasas eram outras das tarefas executadas pela D. Zélia. Este trabalho doméstico veio substituir o do campo, pois a senhora que dele tratava adoeceu e o avô “puxou-a para casa”. O avô faleceu, os filhos herdaram as terras e ela continuou a trabalhar

no campo até que casou (depois de casada ainda ajudou o pai). Casou com 22 anos, em novembro, num dia de muita chuva. O almoço foi na casa do noivo e o jantar na casa da noiva. Nesse dia, os convidados foram conhecer a casa dos noivos a pé e com um tocador de concertina a acompanhar, tal como ditava a tradição. Nesse tempo, quando precisavam de vir a Portalegre, vinham pela azinhaga de laje, hoje uma estrada alcatroada. Teve três gravidezes, mas nenhuma chegou a um fim feliz. Quando o seu pai se reformou, descobriu a arte de talhar bonecos em troncos e raízes de urze e ela começou a pintá-los, mas depois deixou de o fazer a conselho de alguém, porque se confundiam com bonecos de barro. Numa visita pela sua casa, mostrou-nos bonecos decorativos que comprou no passado para pintar, desenhos de casais regionais e caixas desenhados e pintados por si. Mostrounos também desenhos traçados a carvão pelo marido, bem como um livro escrito por ele, que me foi oferecido - “Tia Zelinda e a sua boneca de trapos”. Em homenagem ao seu pai, Emílio Relvas, nasceu um museu no Reguengo, o Museu do Boneco, onde está exposta a sua vasta coleção. Embora este museu mantenha viva a memória do seu pai, a D. Zélia sente-se sozinha; a natureza não a ajudou a deixar descendentes e já levou todos os seus ascendentes.

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Acerca de uma visita ao Centro de Bem Estar Social de Reguengo Foi também no Reguengo que um dia entrei no centro de dia a convite da Elismar, a responsável pelo mesmo, e conversámos à mesa com um pequeno grupo de senhoras. Uma delas, de 74 anos, contou-nos que foi cozinheira na Santa Casa da Misericórdia durante 22 anos e, aos 24 anos, casou “por procuração”. O namorado tinha ido para a guerra colonial, na Guiné, e lá esteve como cabo escriturário durante dois anos e meio. Casaram e, ao fim de dois meses, o marido voltou. Em gaiata, sachou milho para um patrão, tinha ela onze anos, e depois passou a trabalhar para a sua família, que tinha hortas nos Fortios. Brincava na rua e aos domingos ia passear à serra. Aqui nesta instituição, conheci senhoras que dançaram nos bailes de Portalegre ao som da banda “A Ideal” e da orquestra “A Ferrugem”. Uma outra senhora do grupo sentado à mesa contou que, no seu tempo, havia carroças que saíam enfeitadas do Reguengo para dar as oferendas da terra a quem estava no “Hospital Velho”, o edifício onde está sediada hoje a Santa Casa da Misericórdia de Portalegre. Ia também um rancho a acompanhar, que tocava e cantava até à cidade. Foi em dezembro, com este relato solidário, alegre e colorido que eu pensava terminar esta viagem às histórias de vida, mas aconteceu algo mais! Estávamos já no ano de 2015, quando um dia o meu primo António, que se refere com 132


frequência ao meu pai como tendo sido um grande amigo seu, me deu o número de telefone de um senhor cuja história haveria gostar de ouvir. “Eu já falei com ele. Telefona-lhe, que ele aguarda o teu telefonema!” - disse-me. Embora este caderno tivesse a missão de guardar histórias contadas no feminino, no dia 18 de fevereiro de 2015, fui ouvir o Sr. Edmundo Catalão, de 84 anos. Como este senhor tinha sido operário na Fábrica Robinson, achei que um dos locais ideais para ele contar a sua história de vida seria no espaço da Fundação Robinson. Combinei com a Célia Tavares e ela orientou-nos para um espaço reservado do museu do Convento de São Francisco. Cristo, que estava deitado muito perto do altar, passava por um processo minucioso de conservação. Senti uma enorme tranquilidade, ao mesmo tempo que ouvia o Sr. Edmundo contar o difícil processo de limpeza da chaminé da fábrica Robinson, aquela que deitava fumo branco, o vapor produzido pelas caldeiras e utilizado nas autoclaves que coziam a cortiça. O Sr. Edmundo nasceu e viveu sempre em Portalegre. Estudou até à 3ª classe, que não concluiu, indo trabalhar para uma carpintaria aos 7 anos, só em adulto, incentivado pelas chefias da Robinson, fez a 4ª classe. Da primeira vez que a limpou deram-lhe três

dias para o fazer. Sempre que se dedicava a esta tarefa (de dois em dois meses quando a produção era boa), levava consigo uma gambiarra para alumiar, um instrumento que servia para soltar os blocos resinosos que se colavam no seu interior e uma espécie de andaime que montava no seu interior para se poder deslocar. Aqueles blocos altamente inflamáveis (as borras) eram, por sua vez, utilizados para alimentar o lume das caldeiras, confirmando, este processo, um ciclo ditado pela natureza das coisas: nada se perde, tudo se transforma. Aquele andaime foi sofrendo uma evolução ao longo do tempo até que se transformou num elevador movido a electricidade. No final da nossa conversa, contou-me algo que não era comum nos homens daquele seu tempo: -“Tomei mais conta dos meus filhos do que a minha mulher. Saía da fábrica às 8 horas da manhã, ficava a tomar conta dos filhos pequenos e só me ia deitar quando a minha esposa regressava, por volta das 5 horas da tarde”. As chaminés da Robinson, que são afinal um dos ícones da cidade de Portalegre, simbolizam o Trabalho. Talvez fosse a força dessa simbologia que nos tivesse juntado no final de todas as histórias, histórias de Mulheres de Trabalho. E, porque, ao ter-me cruzado com o Sr. Edmundo, não me esqueceria de sublinhar neste caderno que, naquele tempo, também havia homens que estavam ao lado das suas mulheres!

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EDMUNDO CATALÃO 84 anos

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Notas Breves As histórias que acabaram de conhecer foram dirigidas pelas próprias senhoras, pois eu queria ouvir a genuinidade dos caminhos e dos acontecimentos que ficaram traçados nas suas memórias, embora eu, ao passá-los para este caderno, tivesse alterado a ordem pela qual me foram contados para, assim, as histórias serem de mais fácil leitura. Coloquei-lhes algumas questões, pontualmente, para clarificar algo que eu própria não tivesse entendido ou para satisfazer alguma curiosidade que me assaltasse no momento. Com as mulheres guardiãs de histórias singulares, cheguei até estas palavras e compulas à nossa moda, num português que por vezes deslizou e ganhou a forma de uma composição espontânea, como se os meus dedos puxassem umas gavetas onde guardei as falas de com quem ia conversando, e elas saltassem e se colassem ao papel, com a força da tradição, a força do costume de assim falar, um tudo por tudo, por querer abraçar a fala à escrita. E, porque eu não sou escritora, procurei o apoio da minha amiga Teresa Simão, que, para além de ter dado uma ajuda na organização dos textos, deu-me alguns conselhos no que concerne à sua redação. A minha amiga Marta Nunes ofereceu as suas belíssimas ilustrações a este Caderno de Histórias.

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Palavras faladas nesta regiĂŁo do Alentejo

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à da mãe - a casa da mãe abalar – ir embora acarretar - transportar às costas ou à cabeça advertido – divertido ajuntar-se – juntar-se, passar a viver em união de facto amandar – atirar apartar-se – separar-se aprendiza - aprendiz aquase - quase arraia – raia, fronteira arrebanhar – açambarcar assomar-se - espreitar atilho - fita aventar – atirar fora avio – compras balho - baile bilba - boina muito usada pelos contrabandistas bucha – pequeno lanche que se toma entre as refeições principais para atenuar a fome caiança – pintura das paredes com cal canela - perna caparucho - cartuxo em cartão pardo caquero – recipiente de barro velho, inútil carrera – veículo coletivo de transporte público cobertor de tabela - coberto vendido a preço mais barato cordice - cortinado usado nas chaminés corte – peça de tecido dançar à licença - estilo de dança em que o rapaz pedia permissão à rapariga com quem queria dançar despontado – longe, afastado

esparramar – espalhar estar deserto - estar ávido por fazer alguma coisa fega – campanha fintura – processo de fermentação do pão fintura de malteza - o pão repousava num alguidar de madeira com fundo quadrado depois de amassado fintura de tabuleiro - o pão repousava num tabuleiro de madeira depois de estar moldado fragalha – pessoa com pouca importância gaiato - jovem gatera – fresta jorna – salário diário pago ao trabalhador rural lá na dela - na casa dela levada – corrente de água desviada de um rio, ribeira/queda de água por entre rochedos mandados - recados macaronho - a cal que não prestava paredes meias – paredes comuns, do outro lado da parede poia - paga que se dava por se usar o forno comunitário, normalmente um pão quina - esquina rabisco – bocado de carvão disperso pelo terreno sapato de obra grossa - sapato tosco Tá - forma de tratamento equivalente a senhora Ti - forma de tratamento equivalente a senhora torrina – sol intenso vereda – caminho estreito, de terra batida e sem paredes vomecê – você

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BREVES CONSIDERAÇÃOES ACERCA DE ALGUNS LIVROS QUE CONSULTEI Na Biblioteca Municipal de Portalegre, e com a orientação da minha amiga Olga Ribeiro, passei alguns dias do mês de maio de 2014 mergulhada em livros que contêm histórias, contos, relatos e análises sobre a realidade socioeconómica e cultural portuguesa na primeira metade do séc. XX. Em minha casa e no Jardim da Corredoura em Portalegre, li outros livros, emprestados por esta mesma amiga, havendo um especial, do qual (a) guardo saudades sempre que penso no dia em que terminarei a sua leitura, refiro-me à obra “Através dos Campos”, de José da Silva Picão. A outra obra que me apaixonou, “As Mulheres do Meu País”, de Maria Lamas, procurei-a numa Feira do Livro e fiquei muito feliz ao encontrá-la numa bancada. “Campo Maior, memórias das minhas raízes”, de Joana Munõz, é uma delícia cheia de cor e de tradição.

O “Dicionário do Falar Raiano de Marvão” de Teresa Simão ajudou-me numa interpretação mais precisa das palavras faladas na região. Por fim, deixo-vos três caminhos: *um para que disfrutem de uma visita guiada à Manufatura das Tapeçarias de Portalegre http://www.rtp.pt/play/p1623/e188111/visitaguiada *o outro através do documentário de Jorge Murteira sobre a vida dos operários nos últimos dias de laboração da Fábrica Robinson https://www.youtube.com/watch?v=wI929Csjejk *por último, um que consiste nos nossos endereços de correio eletrónico, através dos quais poderemos trocar mensagens sobre este caderno de histórias, se for esse o seu desejo, pois será para mim um prazer: mariccribeiro@gmail.com martanunesarq@gmail.com

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UMA NOVA PÁGINA Com aquele(a) que acabou de se cruzar com a alma deste caderno de histórias, tentámos partilhar a força da natureza destas mulheres alentejanas. A força que ficou e a força que foi à procura de um futuro melhor. Gostaríamos muito que, um dia, estas histórias fossem motivo de inspiração para um poema, para um estudo, para uma história escrita por um escritor, para um guião de uma peça de teatro, ou então, que motivassem mais pessoas a escreverem as histórias de vida dos seus familiares.

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“Temos a noite e o dia e as veredas para andar.�

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