O lixo e aqueles que trabalham com ele

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O lixo e aqueles que trabalham com ele A vivĂŞncia de varredores e coletores de lixo de Curitiba, a capital modelo Marcela Andressa da Silva



Marcela Andressa da Silva

O lixo e aqueles que trabalham com ele A vivĂŞncia de varredores e coletores de lixo de Curitiba, a capital modelo.

Curitiba 2014


Capa, projeto gráfico e diagramação: Karina Onishi Revisão de texto: Ana Paula Mira Este livro foi diagramado utilizando as fontes Helvetica Neue LT Std e Evogria e impresso pela Gráfica Copiadora Ink Card, em papel Offset 90 g. Silva, Marcela Andressa. O lixo e aqueles que trabalham com ele / Marcela Andressa da Silva – Curitiba, PR.


Dedico este livro

a todos que visualizam ou não os

trabalhadores da limpeza pública de Curitiba – varredores e coletores de lixo. Em especial, aos próprios profissionais que demonstraram tamanha dedicação e orgulho por serem trabalhadores da limpeza pública da cidade modelo.



AGRADECIMENTOS Ao Pai, pela sua honra, benção e cuidado em proporcionar tudo! Desde o encontro com cada personagem até o fim da construção e impressão deste livro; Aos pais, Marcelo da Silva e Josiane Salete da Silva, e aos irmãos Thiago Talysson da Silva e Júlia Raissa da Silva, pelo apoio e confiança na autora desta obra. Obrigada pelo amor de vocês; Aos amigos inseparáveis pela admiração e carinho pela autora desta obra. A consideração de vocês sobre a minha vida é linda e eu os agradeço por isso; A todos que diretamente ou não disseram palavras de incentivo ao decorrer de toda essa trajetória jornalística, universitária e além de tudo, humana; Ao varredor Antonio Marques, pela confiança e disponibilidade de conversar durante horas com a autora desta obra; Aos varredores Valdair e José Carlos, pela simpatia e receptividade em que demonstraram para com a autora desta obra; Aos coletores, Thiago e Diego pelo bom humor e simplicidade. “Até aqui o Senhor Deus nos ajudou” 1 Samuel 7:12



SUMÁRIO 08 Introdução 12 O lixo e aqueles que trabalham com ele Profissão A origem

22 Profissional como qualquer outro 30 Marcas deixadas pela sociedade Histórias pra contar

42 A coleta e os coletores do “lixo que é lixo” Coletores, o exemplo do bom-humor Dia a dia Reflexo Falta conscientização O que tudo isso significa

54 Varredores do “lixo limpo” Antonio Marques, há 20 anos com histórias pra contar “Doutor”

64 Curitiba, a cidade modelo 72 O outro lado 76 Referências


INTRODUÇÃO


“O verdadeiro papel do jornalista

é, e sempre

foi, fazer pensar” - Tiago Lobo, jornalista de Porto Alegre, RS, no Observatório da Imprensa. Não é apenas levar a informação, mas sim, a informação que faça pensar. Esse é um dos parâmetros do jornalismo que mais sensibilizaram a autora desta obra. Sempre acreditando em ir até às ‘fontes’, sejam elas as chamadas oficiais ou não, o mais importante está nos próprios entrevistados. Nos gestos, olhares e maneiras com que se comportam ou se vestem. Esse é o diferencial do fazer jornalismo. Esta obra buscou ir até as fontes – varredores e coletores de lixo de Curitiba, para mostrar por meio de seus relatos, como é trabalhar nas ruas da cidade com objetos imundos, seja o lixo comum ou o chamado “lixo limpo” - aquele mencionado pelos varredores como sendo “resíduos que vêm da natureza”. Além disso, desmascarar os preconceitos e estigmas sociais foi outro propósito desta obra. Diversos momentos quando observava as atividades de coletores e varredores nas ruas de Curitiba, a admiração e o questionamento de “como eles conseguiam trabalhar com resíduos” ficavam em meu pensamento. A partir de então, a oportunidade de abordá-los apareceu e

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aqui está registrada por palavras. Nesta obra, você lerá histórias e marcas que a sociedade acaba deixando simplesmente porque eles, cidadãos como qualquer um e profissionais como qualquer outro, trabalham com o lixo e acabam sendo considerados “diferentes” e discriminados. Espero que a partir do momento que ler, pensar e sair às ruas, sua relação, ou apenas a visibilidade que dá a esses trabalhadores, seja diferente. Que a importância e relevância de suas atividades como cidadãos e profissionais, seja realmente vista com outro pensamento, o pensamento de uma sociedade que é reconhecida como exemplar quando se fala em limpeza pública. Por fim, que a maneira com que o próprio “lixo” é visto, seja diferente. Que a conscientização da separação correta e a implicação que tráz na rotina dos profissionais e no meio ambiente, seja realmente percebida.

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O lixo e aqueles que trabalham com ele


Falar sobre o lixo não foi, não é e nunca será uma tarefa fácil. Já dizia o autor do livro “A limpeza urbana através dos tempos”, Emílio Maciel Eigenheer, professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, que estuda o ”lixo” há mais de 30 anos: “Lixo e dejetos não são temas bem vindos. Ao longo dos séculos não se encontram com freqüência autores que dediquem a ele mesmo parte do seu tempo; [...] o medo e a incerteza quanto ao desconhecido podem ter levado o ser humano, já em tempos memoriais, a olhar os dejetos e o lixo com insegurança, como sinais de precariedade. Fezes, restos de comida, cadáveres podem ser ameaças não só visuais e olfativas.” Nenhum ser humano gosta de conviver com o lixo e poucos escolhem ou necessitam tê-lo como objeto de seu trabalho. Garis são exemplos daqueles que vivem diariamente em contato e ao redor deste tal indesejável objeto. São resíduos empoeirados que caem ao chão e juntam-se aos papéis, bitucas de cigarros e milhares de bactérias; resíduos que saem de cozinhas, residências, restaurantes e que advêm de toda uma população com 1.751.907 habitantes da grande Curitiba, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.

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De acordo com o Manual da Abrelpe – Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais, o Brasil gerou 60.868.080 toneladas de resíduos em 2010 e 61.936.368 toneladas em 2011; um crescimento de 1,8% na geração de resíduos sólidos urbanos. Ainda segundo a pesquisa, em 2010, a coleta no país foi de 54.157.896 toneladas e em 2011 passou para 55.534.440 toneladas de resíduos. Outra pesquisa realizada em 2012 por parte da associação Cempre Compromisso Empresarial para Reciclagem afirma que cerca de 14% do país - 776 municípios brasileiros - operam programas de coleta seletiva, sendo as regiões Sul e Sudeste os locais de maior concentração dos programas municipais. De acordo com a pesquisa, a maior parte dos municípios realiza a coleta de porta em porta, sendo este o modelo mais eficaz até o momento. Na capital paranaense, no mesmo ano, foram coletadas 2.742 toneladas por mês somente na coleta seletiva. De acordo com a associação, junto com Santo André, a cidade de Curitiba tem 100% da sua população atendida De acordo com a

pela coleta seletiva, do período de

associação, junto com

2002 a 2012.

Santo André, a cidade de Curitiba tem 100% da sua população atendida pela coleta

Segundo a Prefeitura Municipal de Curitiba, a capital tem implantado programas de coleta de resíduos

seletiva, do período de

sólidos

domiciliares,

recicláveis,

2002 a 2012.

vegetais, serviço de saúde, além da varrição manual e mecânica e

programas como Compra do Lixo e Câmbio Verde. Atualmente, a empresa responsável pela limpeza urbana da capital é a Cavo - Serviços

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Ambientais, organização que faz parte do grupo Estre, considerado a maior empresa de serviços ambientais do país.

Profissão Os serviços de limpeza pública, além de ser uma questão de saúde pública, também criam empregos. Em 2011, de acordo com a Abrelpe, houve um aumento de 5% em relação ao ano anterior, na contratação de trabalhadores para o setor do lixo, excedendo 300 mil empregos diretos. Em Curitiba, calcula-se que hoje haja cerca de duas mil e quinhentas pessoas trabalhando na limpeza urbana da cidade, segundo a empresa responsável do setor, desde aqueles que coletam o lixo orgânico e reciclável, varrem as ruas e calçadas da cidade até os que capinam terrenos públicos. São profissionais na grande maioria de classe baixa e média que trazem consigo simplicidade e amor pelo trabalho. Cada setor destinado ao tratamento ou destinação do lixo traz consigo a figura e o perfil de um trabalhador. Na coleta, estão jovens com hábil porte físico e na grande maioria, homens; na varrição, o perfil se opõe ao primeiro, são veteranos de idade na empresa, de 15 a 20 anos no mesmo setor e cargo. Os coletores de lixo domiciliar, segundo a Prefeitura Municipal de Curitiba, são os responsáveis pela coleta regular de resíduos gerados nas atividades diárias nas residências, estabelecimentos comerciais, industriais e de prestação de serviços. Recolhem os dejetos cujo volume e características sejam compatíveis com a legislação municipal vigente:

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resíduos constituídos por restos de alimentos, papéis utilizados e fraldas descartáveis. A atividade é realizada durante o dia após as 7h e à noite após as 18h. A coleta do lixo que não é lixo, também designada pelos coletores, é destinada a resíduos gerados nas atividades diárias das residências como papéis, plásticos, vidros, metais, sucatas, entre outros. Esta, tem o funcionamento durante todo o dia, após às 7h, 15h e 19h. Popular e preconceituosamente chamado de “lixeiro”, o coletor de lixo possui os mesmos requisitos que o varredor para tornar-se um profissional do setor. A exclusividade está na coleta do lixo comum, em que apenas homens podem exercer as atividades; já na coleta do lixo reciclável, mulheres também são recebidas. Os coletores são responsáveis pela coleta de resíduos em diversos locais conforme roteiro já estabelecido pela empresa, acompanhando o caminhão compactador, recolhendo, manuseando, separando, carregando e descarregando o lixo em locais apropriados. Para ser um coletor, o condicionamento físico é o primeiro ponto a ser avaliado, já que a atividade requer bastante fôlego e disposição para correr. Já os varredores são os profissionais responsáveis pela limpeza de vias públicas, praças e parques estabelecidos pela empresa, executando os serviços de varrição, recolhendo o lixo, acondicionando-os em sacos plásticos ou contêineres e depositando em locais pré-estabelecidos, sendo posteriormente apanhados pela equipe de coleta regular da região. Segundo a Cavo – Serviços Ambientais, para exercer a carreira de um varredor é necessário ser alfabetizado, ter familiaridade com atividade operacional que possua esforço físico e, também, agilidade para se movimentar. Outro quesito é a “orientação espacial”, assim chamada pela

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empresa como o senso de localização geográfica na cidade. De acordo com a Cavo, são verificadas as condições de o candidato se localizar nos endereços que irá exercer suas atividades devido a inúmeros casos de varredores que já se perderam por não conhecerem a cidade. Tanto mulheres quanto homens podem exercer o cargo de gari.

A origem A palavra “lixo” tem origem do latim lix que significa cinzas ou lixívia; os dicionários afirmam que é o conjunto de restos que não servem mais e devem ser jogados fora. Na mesma obra, o autor inicia “A limpeza urbana através dos tempos” falando sobre o lixo como sendo a atividade que resulta das atividades diárias do homem na sociedade; desde restos de atividades humanas até papelões e poeiras. Desde a antiguidade ele existiu. Desde o surgimento da vida na terra, o lixo já estava lá presente. Segundo Eigenheer, com base em estudos arqueológicos, é possível dizer que na

pré-história,

período

que

A palavra “lixo” tem origem do latim lix que significa cinzas ou lixívia; os dicionários afirmam que é o

vai

conjunto de restos que

desde o surgimento do homem até o

não servem mais e

aparecimento da escrita, já se queimava

devem ser jogados fora.

lixo. Supostamente, era para eliminar o mau cheiro; as informações a respeito do lixo em tempos tão remotos são encontradas em obras como indícios, devido a não existência de

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recursos para ter registrado tudo o que já aconteceu. Já no início de tudo, não se gostava de conviver com o mau cheiro do lixo, e naquele tempo os problemas não eram tão complexos como na era em que vive o homem de hoje. Na época, o homem ainda vivia em grupos nômades – que não se fixavam em um único lugar para produzir tantos dejetos – além de a posição geográfica, o clima, o tipo de solo, o modo de produção entre outros fatores também serem aspectos responsáveis pelas características do lixo daquele tempo. Ainda no mesmo período os sumérios, que foram os primeiros a habitar a região da Mesopotâmia, onde hoje fica o Iraque, foram povos que desenvolveram cidades complexas, centradas nos templos, onde ficava a administração que organizava o abastecimento e desabastecimento de lixo e esgoto. Os sacerdotes eram as figuras responsáveis pela água e limpeza da cidade. Os babilônios, povo que foi se estabelecendo ao longo do tempo na mesma região onde atuavam os sumérios, também já faziam suas construções para captar as águas servidas e assim também os assírios, que utilizavam tijolos queimados para captar águas. No Egito, com as inundações do rio Nilo, os egípcios já desenvolviam sistemas de irrigação para aproveitamento das águas, tanto para irrigação quanto para águas servidas (águas de banho, por exemplo). Enquanto isso, em Israel, o povo nômade ordenou regras para a manutenção da limpeza dos acampamentos e dos locais para a destinação de resíduos de sacrifícios. Com o desenvolvimento da vida urbana, canais para o escoamento de águas de chuva ou de águas servidas foram construídos pouco a pouco em Jerusalém. Alguns trechos bíblicos dão indícios de que havia precariedade na limpeza das

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cidades israelitas; fezes humanas e fezes de animais, por exemplo, eram utilizadas como adubos. Na Grécia a situação se repetia; já se conhecia a canalização de água e a captação de águas servidas. Indícios mostram que em um palácio numa cidade grega já havia banheiro com água corrente para lavar as fezes, enquanto que as águas de uso geral e a de “toiletes” eram separadas. Em Atenas, como se utilizava muita água para limpeza doméstica e corporal, havia a necessidade de sistemas de canalização para captação; muitas casas que não tinham canalização conduziam as águas servidas para jardins ou ruas. Os responsáveis pela limpeza pública então começavam a aparecer. O grande nome deixado como exemplar na Antiguidade, por exemplo, foi o estrategista militar Epaminondas de Tebas; foi ele quem transformou sua cidade na mais limpa da Grécia, dignificando o cargo de encarregado da limpeza. Na época, a atuação dos limpadores de rua e coletores de excrementos era sempre nas ruas principais; chamados de Kropologen, os responsáveis pela limpeza tinham como dever levar os dejetos a uma distância de pelo menos 1920 metros fora dos muros da cidade onde moravam. Em Roma, a marca deixada sobre a limpeza pública foi o sistema de captação de águas servidas, especialidade dos romanos que utilizavam canos de chumbo, bronze e prata e um sistema tríplice de distribuição para fornecer águas primeiramente às fontes públicas e depois às casas particulares. Como um avanço, logo veio o sistema de escoamento de águas servidas, um importante desenvolvimento de infraestrutura de ruas e estradas que aos poucos foi se transferindo para uma perspectiva de conforto e salubridade. Com a decadência e a queda do Império Romano,

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a realidade começou a apresentar um cenário totalmente oposto ao encontrado anteriormente. Na Idade Média os indícios afirmam que a situação da limpeza na época deixava a desejar. Não havia canalização, ruas pavimentadas ou coleta de lixo. Os dejetos eram simplesmente jogados nas ruas e a coleta ficava a cargo das eventuais chuvas. Quando os espaços livres foram reduzidos e quando houve aumento populacional que contribuiu para a construção de casas pavimentadas, a situação ficou ainda mais caótica. Não se abria mão da criação de animais que, por um lado, serviam de eliminadores de lixo, e de outro como os responsáveis por uma crescente produção de excrementos. Foi no fim do século XIV - 1340, em Paris, que o local apresentou o calçamento de ruas e praças centrais facilitando o emprego de carroças. Começou então a instalação de um serviço regular de coleta de lixo e limpeza de vias públicas sob a responsabilidade de particulares. Na Holanda, o serviço teve início em 1407; em Bruxelas, 1560; em Viena, 1656, e em Londres, 1666. Sorteavam entre os cidadãos aqueles que, mediante juramento, responsabilizavam-se pela conservação de áreas da cidade. Eram os chamados scavengers, uma forma de designar os coletores de lixo de hoje que, desde aquela época, tinham a tarefa como não aceita de bom grado. O tempo foi passando e lentamente nas cidades europeias desenvolveram-se inovações para a limpeza urbana. Em Stettin, cidade localizada na Polônia, cada cidadão era obrigado a ter um tonel de lixo por cujo recolhimento se cobrava uma taxa de cada casa. A utilização de vasilhames especiais foi relatada pela primeira vez em Lubeck, na Alemanha, no início do século XIV. O motivo dessa padronização de

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recebimento de taxas e coleta era para o controle da limpeza na cidade. Os serviços inicialmente eram prestados por particulares e dificilmente optava-se pelo serviço público. A limpeza esteve sempre subordinada ao carrasco da cidade e aos seus auxiliares, além de receber também a ajuda de prisioneiros e prostitutas que eram colocadas na limpeza das ruas com o argumento de que “usavam mais as ruas do que os outros cidadãos.” Desde então, entende-se o motivo e o reflexo da desqualificação do trabalho e os estigmas da sociedade a respeito da profissão no setor. Na segunda metade do século XIX, com o surgimento da Revolução Industrial, devido ao acelerado crescimento urbano, foram necessárias medidas para amenizar não só a triste situação dos bairros operários como a pressão sobre as áreas mais nobres com a ocorrência de pestes, contaminação das águas, etc. Logo em seguida, houve o surgimento da teoria microbiana das doenças, quando, então, veem-se a necessidade e a importância da qualidade da água e da separação de esgoto e resíduos sólidos. A partir de então, continua o aperfeiçoamento das concepções e procedimentos sobre a limpeza pública. A fogueira, por exemplo, serviu de inspiração para a prática da incineração que teve em Londres o primeiro local para operar satisfatoriamente. O tradicional reaproveitamento feito pelos catadores traz o modelo das usinas de triagem, local onde ocorre a separação dos resíduos sólidos, que logo se inicia com a coleta seletiva nos Estados Unidos e chega depois à Europa.

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PROFISSIONAL COMO QUALQUER OUTRO


Alguns trabalham com o lixo

por opção, outros

por amor. Alguns ainda são novos e têm toda a disposição para uma carreira profissional, seja ela numa empresa que lida com resíduos ou não. Outros, visam à aposentadoria ou o fim de suas carreiras ali mesmo, nas ruas onde trabalham. Porém, nada disso com pesar ou tristeza. O cenário aqui é outro. Não é aquele repensado pela maioria da população com sentimento de dó e pena porque existe o objeto “lixo” no trabalho

O cenário aqui é o

deles. O cenário aqui é o de caráter,

de caráter, orgulho e

orgulho e paixão pelo que fazem. Os

paixão pelo que fazem.

profissionais da limpeza pública são a

Os profissionais da

representação de tudo isso: o exemplo

limpeza pública são a

de caráter, competência, orgulho e

representação de tudo

paixão por serem quem são e estarem

isso: o exemplo de caráter, competência,

onde estão.

orgulho e paixão por

São profissionais como qualquer

serem quem são e

outro, porém, sendo vistos como

estarem onde estão.

diferentes pela população. Na maioria das vezes, os garis acabam sendo notados como “profissionais” e

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“importantes” para a cidade, depois de episódios de paralisação. Março de 2014 foi o grande exemplo, já que cidades como Rio de Janeiro e Curitiba receberam a greve dos trabalhadores da limpeza pública. Faixas com os dizeres “Estamos sendo tratados como lixo” e “Não somos lixo” demonstravam o sentimento que continham, aquele que a população passa quando os vê nas ruas ou no trânsito: sentimento de discriminação. Na pauta de reivindicações estava a busca por melhores salários e condições de trabalho. Como suas atividades não são dispensáveis como qualquer outra, o resultado de braços cruzados da maioria dos trabalhadores não poderia ter sido diferente: na cidade maravilhosa, que de maravilhoso não apresentou nada se não ruas entupidas de lixos, calçadas abarrotadas e praias imundas, os trabalhadores mostraram para todo o país a importância e o valor de suas atividades. Os veículos de comunicação estampavam, logo na primeira página, imagens até mesmo consideradas fortes diante do cenário apresentado na cidade carioca. A quantidade de lixo era enorme. Em Curitiba, a cena não chegou à mesma proporção, porém, também houve um cenário bem diferente do encontrado na capital ecológica que é considerada modelo em limpeza pública. As ruas estavam cheias de sacos de lixo que esperavam pelo caminhão da coleta seletiva. A população sentiu e visualizou a falta dos profissionais. A prefeitura da capital chegou a alertar aos moradores para reduzir e segurar ao máximo o lixo dentro de casa, pois a coleta não seria realizada por conta da paralisação. A situação também foi anormal na cidade, principalmente por ter sido em Curitiba, capital que é reconhecida como exemplar quando se fala em limpeza e organização. Foi a partir de tais cenários que as condições salariais melhoraram

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para os trabalhadores. Após mostrarem as suas vozes na sociedade, conseguiram as reivindicações que pediram. Porém, não bastam apenas reivindicações aceitas, enquanto outros aspectos continuam intensos no dia a dia desses trabalhadores. O que a sociedade enxerga em profissionais que lidam com o lixo no dia a dia já vem de um estigma social deixado desde o período colonial no Brasil, o que acaba refletindo até os dias de hoje e influenciando-os no tratamento que recebem nas ruas, até mesmo de como são visto na sociedade. Segundo o Dicionário Aurélio, a palavra “estigma” significa uma ‘marca, sinal ou cicatriz deixada’. Trabalhar com o lixo sempre foi associado à ideia de sujeira e, nas pessoas que não trabalham no setor, passou a despertar sensações desagradáveis. Ou seja, a marca de “sujeira” ficou atrelada às suas atividades e à profissão. Os garis, como assim são chamados corretamente, levam a fama de “lixeiros” e são considerados cidadãos com desvantagens simplesmente por trabalharem com resíduos. Tratase de um elo entre o inservível – lixo – e a população marginalizada da sociedade que, no lixo, identifica o objeto a ser trabalhado. Ou seja, a relação social do profissional dessa área se vê abalada pela associação do objeto de suas atividades com o inservível, o que o coloca como elemento marginalizado. No Brasil, a prática de trabalhar com o lixo consistia em nomear alguém para limpar a sujeira dos outros, função que, naquela época, cabia aos escravos. Com o fim da escravidão, a tarefa passou a ser desempenhada pelas mulheres, em casa, ou por empregados encarregados dos serviços gerais. Depois é que surgiu a figura do trabalhador específico para executar as atividades ligadas aos resíduos:

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o gari. Desde então, a responsabilidade pela realização de tais tarefas foi delegada historicamente a classes estigmatizadas. (Entende-se por gari todo profissional que trabalha com resíduos, sejam coletores ou varredores – aqui não cabe o termo “gari” somente aos varredores e muito menos o termo “lixeiro” para aqueles que são coletores.) Estudos recentes sobre o tema reportam-se ao trabalho desses profissionais como atividades cronicamente reservadas a uma classe de homens subproletarizados, que se tornam condenados ao rebaixamento social. A sociedade acaba por estigmatizá-los simplesmente por não lidarem com objetos ou situações “limpas”, o que faz com que os profissionais sintam-se “inferiores” a todos àqueles que não lidam com resíduos. Além de também marginalizar o profissional insinuando sua condição humana, mascarando ainda mais sua importância perante o meio ambiente e a própria vida humana que possui. O interessante é que o objeto que faz parte das atividades dos coletores nada mais é do que aquilo que todos produzem: resíduos. Ou seja, um objeto que por mais indesejável que seja, não deveria ser refletido na figura desses profissionais como que os caracterizando. A profissão do coletor de lixo é vista como uma das atividades que se enquadram na chamada invisibilidade pública, em que o homem e sua profissão ficam desaparecidos para os demais, assim como a sua falta de importância social. Oposto ao que representam, esses profissionais realizam um trabalho tão importante quanto um médico, porém, o reconhecimento que acabam recebendo, assim como a atenção e os cuidados, torna-se totalmente inferior ao que os médicos, por exemplo, recebem. A figura de uma profissão importante ou desejada

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é praticamente inexistente no caso dos coletores ou varredores. É difícil encontrar alguém nas ruas que deseje ser um profissional da limpeza pública. Se essa opção existe para a maioria, segundo pais e familiares, existe para aqueles que não estudam ou não encontram nenhuma outra

Oposto ao que

profissão. É considerada a saída para

representam, esses

a falta de competência ou de qualquer outro substantivo que se enquadre em algo ruim.

profissionais realizam um trabalho tão importante quanto um médico, porém, o

o

reconhecimento que

motivo para a escolha pelo setor

acabam recebendo,

de catação, por exemplo, acaba

assim como a atenção

Pesquisas

apontam

que

sendo o desemprego ou a falta de oportunidades de ingresso no mercado de trabalho. É comum ouvirmos pais repassando aos seus filhos a errada

e os cuidados, tornase totalmente inferior ao que os médicos, por exemplo, recebem.

ideia de que “se não quiserem optar pelos estudos, a única alternativa que irá restar é o cargo de “lixeiro” pelas ruas da cidade”. De acordo com os próprios varredores e coletores entrevistados, essa ideia não chega a tal dimensão. Suas atividades acabam sendo muito bem valorizadas pelas empresas responsáveis pelos serviços do setor, fazendo com que o salário recebido ultrapasse o esforço das atividades ofertadas. “Não existe trabalho como este e que pague tão bem diante daquilo que precisamos fazer”, afirmaram os profissionais. Ou seja, a verdadeira resposta à ideia vinda de inúmeras famílias é de que o ingresso nestas atividades acaba sendo por não existir outro no mercado de trabalho que

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apresente o mesmo nível técnico e salarial que este apresenta. E não por ser algo desconsiderável, fácil ou desprezável. Estes são os responsáveis não

O futuro desses trabalhadores, se analisarmos a relação de suas

apenas por recolher

atividades com o crescimento da

o lixo das ruas,

população e, consequentemente, o

mas também, como

aumento da produção de lixo, acaba

resultado dessa

recebendo ainda mais importância.

atividade, impedem

Não há saída ou qualquer outra solução

a contaminação de

que substitua suas atividades diante da

doenças e epidemias

realidade de uma cidade. As atividades

provindas da falta

dos garis passam a ser inadiáveis e

de higiene sanitária;

insubstituíveis; uma necessidade do

contribuem com a

próprio estado que preza pelo bem

paisagem da cidade e

estar da população.

proporcionam o bem estar para a população.

Estes são os responsáveis não apenas por recolher o lixo das ruas, mas

também, como resultado dessa atividade, impedem a contaminação de doenças e epidemias provindas da falta de higiene sanitária; contribuem com a paisagem da cidade e proporcionam o bem estar para a população.

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MARCAS DEIXADAS PELA SOCIEDADE


Varredor há quase 20 anos pelas ruas do Água Verde e recentemente da região do São Bráz e Santa Felicidade, Antonio Marques sente e visualiza, literalmente, os reflexos de situações de invisibilidade e preconceito pelas ruas da cidade. Com 56 anos de idade, o varredor afirma a realidade vivenciada por ele. “Um dia eu estava varrendo a rua e, perto de mim, passou uma criança junto com a mãe. A criança ficou me olhando e a mãe cochichou no ouvido dela. Ainda olhando pra mim, dizia: “Não fala com ele porque ele é lixeiro”. Além da própria situação já ser constrangedora, a figura de um profissional de limpeza pública, como é de costume, acabou se confundindo com a palavra “lixeiro”. “Na hora só passou pela minha cabeça: ‘Além de a própria mãe ter o preconceito, acaba incentivando a criança a ter também. É triste isso”. A simples presença do profissional num local público também é outro sinal de estigmatização. Para almoçar, por exemplo, Antonio conta que prefere trazer a refeição da própria casa, preparada todos os dias pela esposa, com quem é casado há 23 anos, em vez de entrar num restaurante qualquer. “É esquisito entrar com a roupa que a gente usa, eu não me sinto bem; as pessoas ficam te olhando e acham que somos sujos”, ou seja, é uma outra atitude que mostra como a figura do gari é vinculada à sujeira, colocando-os como se eles mesmos fossem a sujeira

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e o problema do local. Nas ruas de Curitiba, é comum a presença dos varredores, por exemplo, em cantos ou praças mais isolados durante o horário de refeição que eles têm. Não encontramos garis em restaurantes ou comércios, até porque eles mesmos acabam se privando desses locais evitando a discriminação e o sentimento de exclusão repassado pela sociedade. Os varredores José Carlos Bueno e Valdair de Jesus, colegas de profissão há seis anos, também contam os desprezos que recebem nas ruas. Responsáveis pela famosa Avenida Manoel Ribas, no bairro turístico, o preconceito ainda existe e é grande segundo eles. Mesmo em um bairro onde a grande parcela que caminha por ali é considerada de classe média a alta, o preconceito é acompanhado dia após dia. “Tem gente que passa perto da gente tampando o nariz. Acham que a gente cheira mal”, relatam com indignação. “Outros ainda fazem questão de jogar o lixo no chão bem pertinho do nosso carrinho, só pra gente varrer”, dizem. No Centro, quando Valdair “Quando falam que eu sou lixeiro, eu logo respondo: Lixeiro é você e todos aqueles que fazem e produzem lixo”

trabalhava por lá, ele conta que um padre sempre rasgava o saco de lixo e derramava tudo na rua só para eles limparem. “Era inacreditável”, dizia. As atitudes demonstram o menosprezo

que os profissionais acabam recebendo nas ruas e a falta de consideração que a própria população tem pelas atividades de suas funções. Coletor há três anos, Tiago Paulino Batista, de 22 anos, conta que a sociedade tem mania e mau costume de chamá-los de lixeiros. “Quando falam que eu sou lixeiro, eu logo respondo: Lixeiro é você e todos aqueles que fazem e produzem lixo”, ressalta. “Normalmente crianças correndo

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na rua ou que passam do lado do caminhão, já comentam: “Olha o lixeiro!”, eu logo corrijo “Lixeiro não! É coletor!”, diz. Esse termo tão utilizado por todos os que o conhecem ou simplesmente os visualizam nas ruas vem totalmente ao desencontro do que a própria empresa gestora de suas atividades acaba repassando a eles. Os próprios entrevistados comprovam esse cuidado. “A Cavo sempre enfatiza isso: nós não somos lixo e nem lixeiros. Nós apenas limpamos tudo e trabalhamos com o lixo”, conta Tiago. A maneira como é interpretada a concepção do lixo pela sociedade moderna acaba revelando tudo isso. Nas residências, normalmente o lixo é posto fora de casa, sendo o contato com o lixo apenas quando o dispõe em lixeiras, frente às casas, nas docas dos prédios etc. Porém, a respeito do destino final dele, poucas pessoas se questionam; a importância dada a este indesejável objeto é quase nula. Diante disso, quem trabalha com o manuseio de algo em decomposição e com cheiros desagradáveis, acaba sofrendo retaliações. Na pesquisa da autora Gabrielle Thami Demozzi, da Universidade Federal do Paraná, do ano de 2013, sobre “o estigma social e os catadores de materiais recicláveis”, os próprios catadores afirmam sentir uma relação de nojo entre suas figuras de trabalhadores que lidam com o lixo perante a sociedade. “As pessoas pensam que eles são sujos de fato, e por isso evitam contato”. A relação social do profissional dessa área se vê abalada pela associação do objeto de suas atividades com o inservível, o que o coloca como elemento considerado marginalizado. É a ideia de que “alguém que trabalha com o lixo, do lixo deve ser”, pois mesmo que o lixo esteja presente na vida não existe uma relação tão grande com ele, pois representa algo que não é aceito e pode ser

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descartado. É uma relação de que “se alguém tem que colocar a mão no lixo, esse alguém deve ser o trabalhador marginalizado” e não qualquer outro. Desta maneira, a percepção do estigma vai além de um atributo pessoal do trabalhador, mas no modo em que a profissão é encarada e na aceitação que recebe por parte da sociedade civil. Somente quando se percebe a necessidade deste tipo de trabalhador numa sociedade é que se designa-o como um agente ambiental de grande importância. Fernando Braga da Costa, autor que estudou e vivenciou as atividades dos garis em São Paulo, aponta três características que estão vinculadas às atividades e figuras dos garis: a reificação, a humilhação social e a invisibilidade pública. A reificação é a concepção do indivíduo como objeto; a humilhação social é o conceito considerado histórico, desde a antiguidade quando os próprios excluídos sociais eram humilhados, e significa o ato de ser humilhado por alguém; a invisibilidade pública está atrelada como um resultado da reificação e da humilhação social. Quando se fala nos alicerces da sociedade moderna, podemos analisar que estes sempre foram determinados pelo poder mercantil, ou seja, o interesse mercantil determina os interesses políticos, culturais, éticos e religiosos e o valor presente nestas esferas apresenta-se primeiramente voltado ao econômico. Neste caso, o trabalho dos garis representa uma subjetividade de relação entre coisas e não pessoas, sendo o indivíduo apagado pela atividade estigmatizada que desenvolve muitas vezes considerada degradante já que lida com o inservível. A identidade do indivíduo é relacionada às atividades diárias e relações sociais envolvidas nestas atividades. A vestimenta ou o uniforme é outro ponto que tem uma significação importante. Além de cores chamativas, segundo Fernando Braga Cortes,

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ao se utilizar o uniforme os garis são vistos como garis e não como pessoas. Desaparece a figura da “pessoa” e é a sua identidade como trabalhador que parece justificar a sua existência. Histórias contadas por eles mesmos comprovam todos os conceitos e signifcados:

Histórias pra contar “Bacharel de Direito”, por Antonio - Eu era nervoso. Ficava com muita vergonha. Quem é do norte é assim, é mais fechado mesmo, não gosta de certas coisas. - Um dia eu tava “fazendo” a rua e na época já trabalhava de noite. Juntei um monte de lixo num lugar só, aí veio um cara com o carro e colocou o carro bem em cima do monte de lixo que eu já tinha ajuntado. Parei e fiquei olhando. Não falei nada. “Bem na hora que eu ia tirar o lixo dali, ele coloca a roda em cima”, pensei. O que der pra tirar eu tiro, fazer o quê. De certo ele mora aí, deve ser o prédio dele. - Com todo o cuidado fui tirar o lixo de baixo da roda do carro dele e bem na hora a vassoura encostou no carro. Pronto. O alarme tocou. Na mesma hora ele saiu na janela e falou: “ô, não ta vendo meu carro aí?”. Quando eu fui falar pra ele alguma coisa, ele já tinha saído da janela. De repente, ele já tava ali na porta me xingando. Tentei me explicar mas não adiantou nada. Falei pra ele, “Eu só relei no pneu, pode ver que não tem sinal nenhum, eu não bati no carro, foi o senhor que colocou a roda bem em cima do lixo que eu tinha ajuntado.” Ele começou a me xingar tanto

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que aquilo foi subindo, eu fui tremendo e ficando nervoso de vergonha, de ele me xingar e ter gente ali na rua me olhando passar por aquilo. “Você sabe com quem você tá falando? Eu sou bacharel de direito”, ele falava. E eu respondia, “tô falando com um ignorante”. Bacharel de direito deve ser advogado ou juiz, eu sabia que tinha esses dois cargos, mas até hoje eu não sei se tem alguma diferença. Depois falei pra ele “então o senhor entende da lei? Sabe que tem que encostar o carro pelo menos 30 centímetros do meio fio?” Bravo, ele só respondeu, “eu sou bacharel de direito e não de trânsito. Eu vou é falar com a tua firma e eles vão te mandar embora.” - Depois que ele foi embora, dois homens estavam parados bem de frente de onde eu tava e observaram tudo o que tinha acontecido. Perguntaram pra mim o porquê que eu não pedi a credencial do bacharel de direito pra ver se ele era realmente advogado, porque um advogado não briga desse jeito. Disse que iria me processar e telefonar na empresa. Eu pensei comigo, “o pior é que se ele telefonar pra lá e ainda como bacharel de direito, me mandam embora mesmo porque eu sou novo na empresa”. “Pode deixar”, disseram os que me observavam. “Nós somos advogados e, qualquer coisa, o senhor telefona pra mim que eu te defendo porque eu vi a situação e eu sei o que aconteceu”. Logo depois falei pro meu líder e expliquei toda a situação. Ele me entendeu e só falou que, se ligassem, ele só me tiraria do setor e me colocava em outro. No fim, ninguém ligou e nem falou nada para a empresa. - Às vezes a gente passa por situações assim. Quem trabalha com gente e ainda na rua, é assim mesmo e tem que ter paciência. Temos que pensar também que devemos preservar o nome da empresa.

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“No Água Verde somos invisíveis”, por Antonio - Já faz três meses que eu vim para a região de Santa Felicidade. Sempre trabalhei no Água Verde porque moro lá perto. Como aqui é um setor isolado, não tem posto* e tem pouco varredor, precisa vir gente de longe. Ao todo são três varredores que moram e trabalham por aqui só. Eu até expliquei pro meu líder quando aceitei que viria pra cá, que iria chegar atrasado porque moro longe e o horário do ônibus não bate. Só que não tem problema e nunca teve. Os líderes confiam na gente também. - Aqui as ruas são calmas, tranquilas. O povo parece que... Você conhece o interior? (perguntou para mim). Aqui esse bairro é mais ou menos como da terra de onde eu vim – Mamboré e Roncador, interior do Paraná. As pessoas conversam na rua, na porta da loja, cada um fala de um assunto. Aqui é quase igual lá. - No Água Verde não, o povo é

Lá no Água Verde são tudo “gato do mato”, nem sei porque são

esquisito, vive correndo, não dão a

assim, a gente é

mínima pra gente. Aqui em Santa

invisível, parece que

Felicidade, as pessoas tão trabalhando,

eles não têm tempo

chegam e falam bom dia, boa tarde,

nem de dizer um adeus.

cumprimentam, passam do teu lado e dão oi. Lá no Água Verde são tudo “gato do mato”, nem sei porque são assim, a gente é invisível, parece que eles não têm tempo nem de dizer um adeus. Os elogios ao bairro de Santa Felicidade não faltaram para Antonio.

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Ao decorrer da entrevista, o varredor elogiava a organização do bairro, as rampas para cadeirantes que, segundo ele, eram muitas, e até mesmo chegou a mencionar que, ali, o bairro parece receber um olhar diferente do prefeito. **Antonio mora no Santa Cândida, trabalhou por quase 20 anos no Água Verde e, no início das entrevistas, estava trabalhando em Santa Felicidade. Após duas semanas da entrevista, Antonio foi chamado novamente para retornar à região do Água Verde. (colocar essa informação no rodapé da página) *posto: local onde os varredores de determinada região se reúnem antes do horário do expediente para bater o ponto, colocar o uniforme e pegar seus kits de trabalho.

“Não gosto nem de lembrar dessa história”, por Valdair - Era umas 20h30 de sábado. Eu tava na esquina da Manoel Ribas, varrendo; quando olhei pra rua, vi uma moça atravessando a Via Vêneto e logo ela caiu no chão. Corri socorrer ela. Tinha dado uma convulsão e a moça ainda tava grávida. No mesmo momento, a região já ficou cheia de carro com triângulo e um monte de gente ao redor pra ver o que tinha acontecido. Então logo eu chamei o Siate. Quando ela me viu, viu que era eu, um gari, me distratou. Só falou assim “sai daqui, lixeiro! O que você tá fazendo aqui? Alguém te chamou aqui?” E tinha umas 30 pessoas no local; essas coisas enchem de gente, né? Ela me tratou igual cachorro. O povo meteu a boca nela, foi xingando de tudo por que ela falou aquilo pra mim. Eu só respondi pra ela “mais eu fui o primeiro que chamou o siate

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pra você“. Aí ela respondeu “Eu não quero saber, sai daqui”. - Voltei a trabalhar... Mas, nossa, voltei tão mal, muito triste! - Antigamente eu não conseguia nem contar essa história pra ninguém. “Dava um negócio no coração porque foi muito forte”. Hoje eu até consigo falar (conta a história com olhos cheio de lágrimas). É uma revolta muito grande pra mim essas coisas. Ajudar um ser humano e ainda ser destratado no meio do povo, acho que não tem coisa pior. É triste. Você tenta até mesmo salvar a vida de um ser humano e ainda leva. Podia ter acontecido coisa pior. Mas a gente vai fazer o quê... - Na terça-feira, então, veio um senhor, e um rapaz que tava dentro do carro, e me pararam. Achei que iam pedir informação. Eu tava trabalhando normal, aí ele me perguntou se tinha sido eu que tinha socorrido a moça naquele dia. Eu só respondi que sim. Ele quis me dar R$20. Aí eu falei pra ele “olha, você não precisa me dar nada disso, não. Quem tem caráter na cara não tem dinheiro que pague. A vergonha que eu passei ali não tem preço.” Sem graça, ele logo me pediu desculpas; era um moço muito humilde. “Deve ser pai dela’’, pensei. “O senhor foi o primeiro que chegou ali pra socorrer ela’’, dizia o moço. Ela até parecia que tava dentro do carro, mas nunca apareceu nem falou nada comigo.

“É uma forma de gratidão das pessoas”, por Tiago e Diego - Todos os dias, durante a rotina, por onde a gente passa, nos dão alguma coisa. Bolos, lanches, café, volta e meia estão nos dando de tudo pra comer. A gente nem precisa trazer comida ou se preocupar com isso porque já sabe que alguém vai dar alguma coisa. A refeição do horário do

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expediente já fica garantida! - Alguns dão por troca. Comércios, por exemplo, dão marmita se a gente limpar o caixote de lixo que eles deixam sujo. E a gente limpa, depois só recebe a comida em troca ou até mesmo uma taxa em dinheiro. - Fim do ano é recorde de presentes. Nos dão muita coisa! Eu tenho champagne por exemplo que ganhei há dois anos já; panetone, então, ganhamos demais. Vejo isso, principalmente no final do ano, como uma forma de gratidão das pessoas com o nosso trabalho. - É bom receber isso, esse carinho das pessoas.

“Tampam o nariz”, por José Carlos e Valdair - Sem consciência nenhuma do que faz e fala, certa vez uma mulher apenas encostou em mim, de leve, na calçada, e já fez uma cara de nojo. Como se não bastasse, quando se afastou de mim, saiu limpando sua roupa como se eu fosse algo sujo pra ela ou até mesmo o próprio lixo. - Tem gente que passa por perto da gente e tampa o nariz. Outros passam perto do carrinho e jogam o lixo no chão, de propósito, só para nós varrermos. Teve uma vez no Centro, quando ainda trabalhava naquela região, que a situação era ainda pior. Um fato que me deixou marcado foi quando um padre fazia propositadamente o rasgo em um saco de lixo, derrubando todos os resíduos no chão só para limparmos. - Mesmo nos tempos de hoje, o preconceito existe e muito. Ainda é uma realidade no nosso dia a dia.

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A COLETA E OS COLETORES DO LIXO QUE NÃO É LIXO


Notícias de viajantes e documentos disponíveis sobre o lixo no Brasil mostram que o padrão higiênico das cidades brasileiras nos séculos XVI até o XIX deixava muito a desejar. Os escravos eram os responsáveis por transportar o lixo e os dejetos das casas para as praças e praias; todas as noites eles carregavam barris ou tubos de excremento e lixo sobre a cabeça pelas ruas do Rio de Janeiro. Já os prisioneiros realizavam a mesma tarefa para as instituições públicas. Ao longo do tempo se procurou melhorar a situação e conservar a salubridade. Horários determinados para os escravos, locais determinados de despejo, barris fechados e carroças para o seu recolhimento começaram a fazer parte da rotina carioca. Em 1854, a responsabilidade da limpeza da cidade passou para o governo imperial. Em 1864, houve a implantação de um sistema de esgoto na cidade através de uma companhia inglesa, o que possibilitou uma especialização na limpeza urbana voltada propriamente para o lixo. A grande efetivação dos serviços do setor estava caminhando. Antes, coletores e varredores, por exemplo, às vezes, eram contratados de firmas particulares ou eram da organização dos serviços públicos. Somente em 1876 contratou-se a empresa de Aleixo Gary como responsável pela

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limpeza das ruas do Rio de Janeiro. Este então foi um marco para a limpeza urbana carioca, designando até mesmo os trabalhadores como chamados de “garis”, nome dado aos profissionais da limpeza urbana de hoje. A coleta seletiva no Brasil teve início no ano de 1985, especificamente no bairro São Francisco, em Niterói, no Rio de Janeiro. Consistia na separação, ainda na fonte geradora, de materiais que podiam ser reutilizados, reciclados ou compostados. Em 1988, Curitiba se tornou a primeira cidade a ter o sistema de coleta.

Coletores, o exemplo do bom-humor Bem-humorados e felizes. Esse é o sentimento que os irmãos Tiago e Diego repassam a qualquer pessoa quando contam suas trajetórias como coletores de lixo na Cavo. “Nós se divertimos muito!”, contam. “Seja em dia de chuva ou sol, é a risada “Seja em dia de chuva ou sol, é a risada que contagia o nosso dia a dia”

que contagia o nosso dia a dia”, diz Diego. Tiago, que tem 22 anos, é solteiro e trabalha há três como coletor. Diego, é casado e há 8 meses, é auxiliar

administrativo na Cavo, mas durante um ano também foi coletor de lixo. Ao ser questionado se o cargo administrativo é melhor ou vale mais a pena como profissional, a resposta veio direta e sem demora, com sorriso no rosto: “Se eu pudesse escolher, voltaria a ser coletor, com certeza. É divertido e tem um bom salário.” Diego conta que sofreu

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um acidente em casa e deslocou o ombro; o suficiente para impedi-lo de seguir com a carreira de coletor de lixo. Para não sair da empresa, conseguiu uma oportunidade na portaria da Cavo, onde monitorava a entrada e saída dos caminhões. Depois de um ano, a vaga conquistada foi no departamento administrativo, onde é responsável pelo controle de pagamentos de notas fiscais, compras e manutenção do pátio, entre outras atividades relacionadas à área administrativa da empresa. A procura pela profissão pode ser vista toda quarta-feira às oito horas da manhã em frente a uma das sedes da empresa, na Rua João Negrão. Semanalmente, acontece o processo seletivo que busca coletores para trabalhar em Curitiba. “Faz fila pra fora! É muita gente que toda semana vai até lá pra conseguir emprego”, conta Diego. Durante uma entrevista, dois pontos principais são vistos pela empresa: a resposta de perguntas como “por que ser coletor” ou “por que escolheu a Cavo” e características do porte físico do trabalhador que são vistos no processo de recrutamento. Outro destaque da empresa é a preocupação e o incentivo com os estudos dos trabalhadores. A Cavo oferece gratuitamente em uma escola, localizada dentro da própria empresa, para os profissionais que não concluíram seus estudos. São três dias da semana, das 15h às 17h30 que os trabalhadores podem cursar o Ensino Fundamental, Médio e até mesmo curso de inglês. “A empresa “pega no pé” de quem não tem estudo completo e incentiva sempre os coletores ou varredores a estudarem”, conta Diego. O principal motivo para a escolha de tal profissão é o salário recebido e horário destinado para as tarefas, que são recompensáveis diante do

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que deve ser feito como atividade do trabalho. “Não precisa fazer 6 ou 8 horas de trabalho por dia, basta você e a equipe toda trabalhar junto para terminar o setor”, contam. O trabalho de equipe, principalmente, no caminhão de lixo é crucial para o bom trabalho durante o dia dos coletores. A rotina flui com a rapidez e agilidade de cada um deles. É preciso acertar o passo na corrida do caminhão pra rua e da rua para o caminhão; é necessário força para arremessar os sacos de lixo para dentro do baú e, além de tudo isso, resistência física não pode faltar para aguentar as corridas. Orgulho é o que eles sentem por trabalhar com o lixo. Mesmo sendo algo indesejável, é o que traz o sustento e o caráter à vida desses profissionais. “Não tenho vergonha de dizer que sou coletor. Não tenho do que reclamar. Não tenho o “Gosto de ver gente diferente, assoviando, se divertindo. Esse é o motivo pelo qual eu não largo a profissão de jeito nenhum”

estudo completo mas ganho até mais daqueles que têm”, declara Tiago. “Eu não consigo ficar numa sala o dia todo. Gosto de ver gente diferente, assoviando, se divertindo. Esse é o motivo pelo qual eu não largo a

profissão de jeito nenhum”, diz ele. “É gostoso também receber o carinho das pessoas e principalmente de crianças. Elas olham lá de cima de um prédio, dão tchau... falam ‘oi coletor’”, afirma. Sobre o interior da empresa, Diego conta: “Trabalhar com peão é terrível”. Quando estava como responsável pela construção de um novo vestiário no local, havia muito roubo dentro da própria empresa. “Você não podia deixar o celular em cima do armário ou próximo dali. Quando você

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virava as costas, não estava mais lá”. Hoje, a situação já mudou muito. “Existe mais segurança. As coisas vão melhorando ao longo do tempo, como em qualquer outra empresa”. Uma de suas responsabilidades é controlar o número de funcionários e benefícios recebidos por eles, bem como outros assuntos ligados à área administrativa da empresa. Segundo ele, existem na Cavo cerca de 580 coletores pela manhã e a mesma quantidade durante a noite - somente na sede da Rua João Negrão. O setor de “Lixo que não é Lixo” é localizado em outra sede, na Rua João Bettega. Lá o trabalho é diferente. “Não lida com lixo comum - como comida, mas em compensação tem que trabalhar aquelas oito horas, ter uma rotina certa”, contam. Dependendo da disponibilidade, os profissionais, quando são contratados, podem escolher se preferem trabalhar com o lixo comum ou com o lixo que não é lixo. A insalubridade presente nas suas rotinas diárias devido ao forte cheiro e composição dos resíduos fez com que a legislação os recompensasse. Com atividades reconhecidas ao grau máximo de insalubridade, os coletores recebem uma taxa mensal de R$250,00. Ao serem questionados sobre o forte cheiro que o lixo comum carrega, eles apenas mencionaram: “Ah, isso acostuma. Às vezes dá um embrulho no estômago, dependendo do que for, é difícil também. Mas isso passa”, contam. A função do coletor, segundo os trabalhadores, é simplesmente coletar o lixo das residências. Quando há a presença de animais que dificultam o acesso aos sacos de lixo, por exemplo, os coletores não são obrigados a retirar os resíduos. “Ás vezes o morador liga pra empresa reclamando que não tiraram o lixo da casa dele, aí o líder vai até lá e explica o ocorrido”, diz. Outro fator bem comum no dia a dia são sacos de lixo muito pesados

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para a resistência do plástico. “O morador tem que ter a consciência do peso do saco de lixo”. Não é obrigação dos profissionais ajuntar os resíduos, caso os sacos se partam ao meio. “Nossa função é apenas pegar os sacos das lixeiras das casas e arremessar no caminhão.” A coleta do lixo comum atende toda a região de Curitiba e até alguns municípios isolados, próximos à capital, como o caso do Passaúna. Com um contrato direto com a Cavo, sem aval da prefeitura, a empresa garante que o caminhão passe por essas regiões, previamente acordadas. Depois de toda uma rotina, os coletores também podem fazer o despejo dos resíduos junto ao caminhão no aterro sanitário, hoje localizado em Fazenda Rio Grande. Não é uma obrigação própria dos coletores, apenas do motorista que precisa ir até o aterro diariamente, sempre no fim de sua jornada, para fazer o despejo. Com funcionalidade de quase 24 horas por dia, o descanso no local só existe das 4h30 às 6h30. “É muito lixo!” conta Tiago ao falar sobre a primeira vez em que foi até o aterro para conhecer. “É uma imagem que fica gravada na mente”.

Dia a dia De acordo com os trabalhadores, a região do Centro é a que mais tem lixo de comida. “A maioria dos coletores não gosta de fazer essa região porque é estranho; é muita gente, muita comida, muita movimentação”. Bairros de classe média já são mais preferidos. O lixo não é tanto e as ruas são mais tranquilas. Na favela a situação é totalmente oposta. É muito lixo, bagunça e desordem. “Não dá nem pra pegar todo o lixo,

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pegamos o que está fora das casas e pronto. O caminhão tem que andar e não pode ficar esperando a gente retirar tudo. É muito rápido”, contam. Alguns prédios de classe alta e grande nobreza não costumam deixar o lixo para fora da área ou em lixeiras à vista. “O condomínio paga uma taxa extra de mais ou menos R$60 para os coletores entrarem no prédio e retirarem o lixo”, contam. De segunda a segunda, a rotina dos coletores não para, até porque a produção de lixo também nunca acaba. É infinita. As segundas, segundo eles, são os dias em que mais encontram lixo. Durante o fim de semana a produção costuma ser ainda maior e o acúmulo fica para o início da semana com bastante trabalho. Chuva ou sol, frio ou calor. Pode estar caindo água ou um sol forte, o trabalho continua. “É muito difícil parar. Tem que ser uma tempestade muito grande. Se chove, acaba sendo divertido. A gente coloca capa de chuva e se diverte, é muito engraçado”, conta Diego. Além do bom humor, da correria, dos assovios pra lá e pra cá, outro motivo que os encanta e os atrai são os objetos que encontram no lixo. Durante a entrevista, Tiago mostrou o tão cobiçado celular Iphone na cor branca, encontrado nada mais nada menos do que no lixo. Se não bastasse, o tênis que estava usando também havia encontrado no lixo. Roupa de mergulho, notebook, dinheiro... de tudo. “Dentro da empresa acaba até virando um comércio. Os coletores são tudo muambeiro porque acham tudo no lixo e vendem lá dentro, trocam entre em si ou simplesmente levam pra casa”, contam. “Esses dias achei R$20,00 no lixo”.

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Reflexo Essa é uma das comprovações de que a sociedade não separa o lixo corretamente. Lixo comum não significa lixo eletrônico nem tampouco lixo reciclável. “Se eu vejo que a pessoa não separou e tenho a oportunidade de falar com ela, eu falo. Tem sacos de lixo que vem de tudo: calha, faca, espetinho... tudo pra fora!”, declara Tiago. “Se a gente se machuca, se corta ou fura a mão, a culpa ainda acaba sendo nossa porque a regra da empresa é de que o coletor não pode encostar ou pegar no lixo, apenas pegar em cima do saco de lixo e arremessá-lo para o caminhão. Só que isso é impossível”, diz. “Eu mesmo já ralei a perna numa calha. Na hora nem senti nada, só depois é que meu colega veio me falar do sangue que tinha ultrapassado a minha calça”, conta. “Outro dia foi o meu colega que pegou um saco cheio de palito de espetinho. Um dos palitos ultrapassou a mão dele na hora. Chegou até a levar pontos, conta. O trabalho realizado por eles no decorrer de suas profissões também se reflete na vida pessoal dos profissionais. “Eu não jogo mais lixo no chão e separo direitinho. Sei até mesmo o melhor jeito de amarrar para facilitar o apanhado do coletor”, conta. “Se eu tô no meio de amigos e um deles joga um papel de bala no chão, eu vou lá e ajunto”, diz Tiago.

Falta conscientização Essa foi a resposta sobre o motivo de a população ainda jogar lixo nas ruas ou não separar corretamente os resíduos. Todos já ouviram falar da reciclagem e da separação, porém, o resultado ainda refletido na cidade

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não leva o cargo de modelo que tanto apresenta. Na própria coleta seletiva encontram-se aparelhos tecnológicos jogados junto a restos de comida e objetos de madeira misturados aos resíduos domiciliares. Por mais que esteja sendo clichê dizer que a separação incorreta implica danos ao meio ambiente, é preciso entender que tipo de danos é esse e quais são as implicações que esse tipo de atitude ocasiona, por exemplo, na vida do trabalhador da limpeza. Separar o lixo comum e o reciclável implica prejuízos como a poluição visual, do solo, do ar, do lençol freático e danos à saúde do ser humano. De acordo com o Portal do Governo Federal, quando os resíduos são misturados, apenas 1% de todo esse lixo pode ser reciclado. Quando há a separação correta, esse número aumenta para 70%. Se 100.000 toneladas de lixo são separadas incorretamente, significa que apenas 1000 toneladas serão recicladas e o restante será destinado incorretamente ao meio ambiente. Estimativas da Organização das Nações Unidas afirmam que os brasileiros produzem cerca de 360 mil toneladas de lixo tecnológico – TVs, computadores, celulares etc, que são compostos por substâncias como mercúrio, cádmio, berílio e chumbo. São metais que, quando liberados em um aterro, podem contaminar o lençol freático, região que é formada pela infiltração da água das chuvas no solo e poluem o ar se forem queimados. Muitos desses componentes eletrônicos, por exemplo, podem ser reciclados e destinados corretamente. Sobras de alimentos, cascas de frutas e legumes precisam estar em sacos separados de plásticos, vidros, metais e papéis, separando-os em

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orgânicos e recicláveis. As embalagens do tipo longa vida, latas, garrafas e frascos de vidro e plástico devem também ser separados. É importante lembrar que materiais como esses devem ser lavados para evitar que o líquido e a sustância contaminem outros resíduos. Por isso, é importante secá-los antes de depositar nos coletores. Os papéis podem ser dobrados para ir à lixeira, mas não devem ser amassados e nem molhados. Os vidros quando quebrados e outros materiais cortantes em papel grosso (do tipo jornal) precisam ser embrulhados ou colocados em uma caixa para evitar acidentes com coletores. O que não deve ser depositado no lixo reciclável é: papel-carbono, etiqueta adesiva, fita crepe, guardanapos, fotografias, filtro de cigarros, papéis sujos, papéis sanitários, copos de papel, cabos de panela e tomadas, clipes, grampos, esponjas de aço, canos, espelhos, cristais, cerâmicas e porcelana. Pilhas e baterias de celular são materiais específicos e devem ser devolvidas aos fabricantes ou depositadas em coletores específicos destinados somente à elas. Além de contribuir com o meio ambiente, a reciclagem mantém a renda de muitos trabalhadores. Segundo a Associação Brasileira do Alumínio, cerca de 100 mil pessoas no Brasil vivem exclusivamente de coletar latas de alumínio e recebem em média três salários mínimos mensais por isso.

O que tudo isso significa Que uma única lata de alumínio, por exemplo, economiza energia suficiente para manter uma TV ligada durante três horas. Uma tonelada

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de papel reciclado economiza 10mil litros de água e evita o corte de 17 árvores adultas. Cada 100 toneladas de plástico reciclado economizam 1 tonelada de petróleo. Um quilo de vidro quebrado faz 1kg de vidro novo e pode ser infinitamente reciclado. Cada 100 toneladas de plástico economizam uma tonelada de petróleo. Outros 1000kg de alumínio usado e

Reciclar é pensar no

reutilizado, por exemplo, evitariam que

meio ambiente e cuidar

5000kg de minérios fossem extraídos.

do espaço. É também privar a segurança

Reciclar é pensar no meio ambiente

dos trabalhadores da

e cuidar do espaço. É também privar

limpeza pública.

a segurança dos trabalhadores da limpeza pública. Assim, o benefício torna-se completo: para o ambiente e para as vidas que ali estão em contato com os resíduos.

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varredores DO “lixo lImpo”


Paciência, bom humor, paixão e simplicidade. Essas são algumas das características dos responsáveis pela varrição em Curitiba. Chamados de “garis”, porém, reconhecidos como varredores, esses profissionais passam oito horas nas ruas da capital com o único objetivo de deixar tudo limpo para o próximo dia. Suas atividades são destinadas apenas à varrição das calçadas e meio-fios, porém, de quando em quando, a retirada de grama no meio das calçadas ou até mesmo a varrição de áreas privadas, também são realizadas por eles. As ruas mais movimentadas da capital são as escolhidas para o serviço de varrição, de acordo com a determinação da Cavo. A cada região, uma casa é alugada pela empresa e chamada de “posto” – local onde os varredores pegam seus carrinhos, tomam banho e batem o cartão ponto na hora da chegada e saída, quando, então, partem rumo aos seus “setores” – como são chamadas as ruas por cuja varrição são os responsáveis. O posto reúne cerca de 50 varredores que trabalham em aproximadamente 60 ruas da região além da presença do “líder”, encarregado pela fiscalização de toda a movimentação no posto e na região. Em algumas regiões, como a de Santa Felicidade, não há postos. Segundo os varredores entrevistados nesses locais, não há varredores

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suficientes para a existência de um posto. A solução então é o empréstimo de comércios e locais da região que permitam a movimentação dos varredores. Na Avenida Manoel Ribas, por exemplo, uma farmácia famosa da região oferece os fundos do terreno para o depósito dos carrinhos e contribui com banheiros para a higiene dos profissionais. O trabalho da varrição é constante e não pode ser interrompido, teoricamente, pelas condições climáticas. Em dias de sol, as áreas com sombras são as mais desejadas pelos profissionais e onde mais tempo acabam levando para finalizar suas atividades. Quando chove a situação muda. Os varredores são obrigados a utilizar capas de chuvas e devem ao menos sair nas ruas como se fossem trabalhar; porém, é permitido permanecer embaixo de marquises esperando a chuva passar, desde que estejam com a capa de chuva. “É ruim ficar nos lugares esses dias de chuva, não tem ninguém pra conversar e dá sono também. Acabamos ficando sozinhos e cansados de ficar parados, sem fazer nada” conta Antonio. O que mais encontram nas ruas são folhas. O Centro é o único local que foge da regra. Lá, o papel é o campeão do lixo encontrado. Devido à quantidade de comércios e empreendimentos, as árvores perderam espaço, as folhas desapareceram e os papéis acabaram sendo comuns na região. A bituca de cigarro é outro resíduo presente no dia a dia, esse é o tipo de lixo que não pode ficar na rua; é lixo humano e jogado por alguém, diferentemente da folha que é da natureza. Ao longo do dia, dependendo da região, os varredores enchem mais ou menos 30 sacos com o lixo das ruas. A maioria composta de folhas e bitucas e poucos papéis e plásticos. Em época de eleição é que o

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trabalho triplica. “Se eu acabei de varrer um quarteirão, daqui a pouco olho, tá cheio de papel de novo. Só no outro dia é que vou voltar lá pra retirar tudo de novo”, dizem. A regra da atividade é não voltar atrás na rua

Ao longo do dia,

que já varreu, não pode retornar. Se

dependendo da região, os varredores enchem

precisar, só no outro dia.

mais ou menos 30 sacos

Outra regra é não utilizar fone de

com o lixo das ruas.

ouvido enquanto trabalha. “Não pode. A gente pode não ouvir alguma coisa e acabar se machucando ou prejudicando alguém”, diz Antonio. “Uma vez um carro veio na minha direção de onde eu tava varrendo e quando tirei a vassoura da rua, ele bateu no posto que estava próximo de mim. Acho que o motorista até desmaiou. Foi por pouco, muito pouco que eu escapei. Nesse caso, se eu tivesse com o fone de ouvido, poderia ter ficado ali distraído e ainda acidentado”, diz. A escolha da varrição, assim como da coleta, para os profissionais, também vem a respeito do salário, condições e benefícios oferecidos pela empresa. “Se você trabalha certinho, não tem atestado, entra no horário e faz as atividades certinhas, a empresa paga de bonificação R$500”, contam. O fiscal passa para ver se precisam de algo, se está faltando algum material e ainda elogiam o nosso trabalho. Em uma das entrevistas, por volta das 22h, o fiscal chegou no momento em que estávamos conversando. A ida até o setor onde os varredores estavam era para entregar o cartão-ponto do mês (ficha em que eles anotam seus horários de chegada e saída, à mão; dependendo do setor, o controle não é feito via aparelho eletrônico), além de também levar o informativo

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da empresa. Ao falar sobre o jornal, Valdair ressalta: “eu já saí no jornal uma vez. A Cavo tem até um quadro meu na empresa como funcionário destaque do mês”, conta orgulhoso. “Se eu devo algo, é para essa empresa. Tudo o que conquistei veio dela a partir do meu trabalho”, conta. Até oportunidade de crescimento surge. “A expectativa é sempre subir de cargo, mas é muita gente pra concorrer a uma vaga de encarregado por exemplo. Uma hora então chega a nossa vez”, ressalta. Outro cuidado da empresa com os trabalhadores, até mesmo de segurança, é o trabalho em equipe. A organização frisa a importância do trabalhar juntos, no mesmo ritmo e um próximo ao outro. Além de ser uma certa garantia para a segurança dos trabalhadores, a amizade construída também acrescenta no dia a dia nos trabalhadores. “Somos uma família, conversamos mais com nosso colega do que com a própria família. É gostoso assim. Eu me dou super bem com ele (José Carlos)”, conta Valdair.

Antonio Marques, há 20 anos com histórias pra contar Sendo o mais “antigo” trabalhador do setor encontrado para esta obra, Antonio Marques de 56 anos, casado há 23, tem histórias de sobra pra contar. Desde o primeiro contato, feito numa tarde de sábado na Av. Toaldo Túlio, sentiu-se honrado por ter a oportunidade de conversar sobre o que é trabalhar nas ruas como varredor. Sua história vem de Mamborê, interior do Paraná com aproximadamente

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15.000 habitantes. Quando tinha 8 anos, trabalhava na lavoura. “Naquela época não tinha essa coisa de lei que o menor não podia trabalhar”. Em 1971, tendo a mãe falecido e o pai casado com outra mulher, Antonio e seu irmão foram buscar oportunidade de trabalho em São Paulo. A carreira começou numa floricultura paulista, depois foi a vez de trabalhar numa fábrica de sofá, e logo, numa metalúrgica. Depois de um tempo, voltou ao interior do Paraná, onde conheceu sua atual esposa, para então programar a sua vinda para a capital em busca de um emprego fixo. O foco era trabalhar numa fábrica de geladeira. “Como eu era ajudante de produção na metalúrgica que trabalhei em São Paulo, achei que viria pra Curitiba pedir oportunidade e me contratariam. Eu sabia montar e desmontar máquinas e eu achava que isso era o suficiente.” Ao chegar na cidade e encontrar a empresa de eletrodomésticos, Antonio ficou surpreso com o que ouviu. “A única coisa que me falaram era que eu precisaria fazer no mínimo um curso no Senai, aí quem sabe eu conseguiria tentar uma vaga para entrar na empresa. Na época, eu nem sabia o que era Senai. Me informei, fiquei sabendo dos cursos ofertados por eles mas as mensalidades eram muito altas”. Depois dessa tentativa, conseguiu uma vaga numa fábrica de imóveis, porém, como o salário era muito baixo, decidiu sair. Pela primeira vez então, por meio de uma prima de sua esposa, ouviu falar sobre a Cavo. Seria a primeira experiência como varredor, cargo que ofertava um bom salário. Antonio sabia ler, escrever e não tinha problemas de saúde, o mínimo e suficiente para conseguir entrar na empresa. Foram então 90 dias de experiência na rua que perduram até os dias de hoje - quase 20 anos. “Trabalhar na rua com a varrição é um serviço que não rende, você

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faz, mas no outro dia já está tudo sujo de novo. Se o tempo estiver bom, a limpeza dura uns quatro dias, se não, no outro dia já está da mesma maneira que você encontrou anteriormente, com muitas folhas e resíduos.” Ao longo do dia, dependendo das condições climáticas, do dia da semana e da região em que se está localizado, os resíduos chegam a lotar de 15 a 30 sacos de lixo, que são amarrados e deixados na própria rua para o caminhão da coleta. Sobre Santa Felicidade, Antonio ressalta a limpeza do bairro. “Aqui não é sujo, sujo mesmo é no Água Verde, lá as ruas são muito sujas. Quando é assim, a gente não pode fazer bem feito porque não tem como vencer tamanha sujeira. Isso também é ruim pra gente porque é resultado de serviço acumulado. O varredor tem que conseguir “fechar” a rua, se não, fica acumulado para o outro dia. No Centro, por exemplo, como a quantidade de lixo é grande, acaba-se fazendo o serviço mal feito porque nunca se dá “conta” de fechar todo o setor, assim, o lixo vai se acumulando para os outros dias. Num bairro como o de Santa Felicidade, dá pra fazer bem feito, com tempo e com calma. Os próprios moradores já sabem que a gente passa pela rua deles e às vezes já deixam um monte de folhas amontoadas – fica prontinho pra gente varrer.” Junto ao seu carrinho, Antonio carrega um material criado por ele mesmo para suas atividades na varrição: uma escova para a vassoura. “Eu sou uma pessoa muito curiosa e gosto de criar. Já tiraram bastante sarro de mim com isso, perguntam se é pra pentear o cabelo e eu só respondo que é para ‘escovar os dentes’”, conta ele com humor. “No Água Verde, não sei se é porque tem muito prédio ou muito salão de beleza, mas a quantidade de cabelo que tem na rua é muito grande. Os

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fios então ficam empelotados e grudam na vassoura. A vassoura pra varrer bem, precisa ‘vibrar’, assim, com essa escova que eu criei, eu passo nela, tiro os fios e pronto. Ela já fica macia de novo”. Outro momento de criação foi em 1998, quando trabalhava na Av. Mateus Leme. “Lembro-me de uma rua cheia de carro. A gente tinha que varrer com uma pazinha de ferro bem pequena e baixinha. Era quase impossível aquela pá conseguir pegar todo o lixo que eu ajuntava. Como tinha muito carro no meio fio, não tinha como conseguir pegar o lixo com aquela pá. Então decidi pegar uma lata de tinta. Cortei e fiz uma pá maior.” Se foi denunciado ou não, até hoje Antonio não sabe, mas o próprio encarregado do setor o chamou a atenção porque estava com um material que não fazia parte do “Equipamento de Proteção Individual” disponibilizado pela empresa.

“Doutor” Em um dos momentos durante a entrevista, Antonio me questionou: “Não é difícil fazer um livro? Você já parou pra pensar o quanto é importante fazer um livro?”. Respondi que já havia parado pra pensar sim mas deixei ele mesmo continuar a falar: “Eu leio bastante, até mesmo jornal. Chego a carregar livros dentro do meu carrinho, embaixo do saco de lixo, e leio durante o horário de almoço. A turma me chama de “doutor” só por conta disso, porque a maioria não tem esse costume e aproveita a hora do almoço pra dormir. Eu não sou assim, jamais durmo em um papelão no meio da rua, acho que isso fica

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feio. Teve uma vez que tiraram uma foto de um varredor deitado na hora do almoço, dormindo num papelão na rua. Colocaram a foto na internet e começaram a fala que ele não estava trabalhando. Chegaram a procurar pelo líder dele e tudo. No fim, ele tava só descansando mesmo na hora do almoço. Na minha opinião, eu acho isso bem esquisito. As pessoas pensam que somos mendigos se nos comportarmos assim. Teve uma época que eu fiz um curso de “remédios naturais” e comprei um livro de 300 e poucos reais, de tanto que eu gosto de ler. Gosto de ler tudo quanto é tipo de livro. E assim que você terminar o seu, sobre a nossa profissão, eu vou querer um também, viu?”. Durante as entrevistas Antonio também falava sobre o seu grande sonho que, por mais que faça suas atividades de varredor com amor, não é onde deseja permanecer por muito tempo. “O que eu quero mesmo é me aposentar e ter um projeto na lavoura. Na cidade as pessoas descobrem muitas coisas, tem acesso a muita informação e na lavoura não funciona assim. Depois que a gente aprende, vem da lavoura e volta pra cidade, é bom ver tudo isso, mais é ainda melhor poder voltar pra lavoura. A cidade é para o jovem, e eles não sabem a força que tem!”.

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CURITIBA, A CIDADE MODELO


A imagem da capital “ecológica”

considerada

modelo consolidou-se na década de 1990 como fruto de um processo de desenvolvimento urbano promovido pela administração municipal. Desde 1886, Curitiba já era pensada de maneira “correta e sustentável”. O presidente de Província Alfredo d’Escragnolle Taunay discutia sobre a necessidade de conservar o maior número de praças e lagos como lugares de saneamento, futuros locais ajardinados e arborizados formando, assim, pontos de recreio trazendo benefícios à saúde física e mental da população. O gosto, então, pela contemplação do verde e a visão das praças como espaços de lazer e congraçamento já eram percebidos no começo do século XX. Parques particulares foram tomando conta da cidade e atraindo seus habitantes. A natureza então foi se infiltrando na capital, fazendo com que o verde no meio urbano fosse não apenas uma opção de lazer, mas também um instrumento de prevenção de problemas da cidade. Ao longo do decorrer da história e planejamento urbano, a cidade apresentava suas preocupações com meio ambiente. Em 1919, o Código de Posturas de Curitiba, documento que reúne um conjunto de normas sobre obras, saúde, meio ambiente, construção etc, no artigo 144: “A

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municipalidade colaborará com o Estado e a União para a execução de todas as leis tendentes a evitar a devastação das florestas, e a estimular a plantação de árvores para formar bosques nos lugares onde convier”. A ideia de que jardins e parques, que preservavam o verde da cidade, eram considerados os “pulmões” da capital continuava se fortalecendo; devido à importância disso, eles deveriam se multiplicar. O tempo foi passando e as necessidades de uma nova estrutura foram sendo evidenciadas na capital. De uma pequena cidade com cerca de 11 mil habitantes, Curitiba recebeu um grande fluxo migratório proveniente da Europa que teve como destino os campo curitibanos. Nessa época, a cidade sofreu intensas transformações. De cidades com refrências coloniais, Curitiba expandiu-se e tomou ares de cidade eclética, construída ao modo europeu.

História Voltando um pouco no tempo, tudo começou ainda na década de 1920, quando a cidade teve um impulso de urbanização. Algumas ruas, como a XV, foram asfaltadas; avenidas como a Sete de Setembro e a Getúlio Vargas foram abertas, expandindo a malha urbana e mostrando o crescimento de Curitiba. O prefeito da época, João Moreira Garcez, remodelou com sua gestão praças como a Tiradentes e Santos Andrade, estabelecendo também normas de higiene e de ordenamento do tráfego. Devido ao ritmo que a capital estava tomando, em 1930 foi criado um Serviço de Praças, Jardins e Arborização da Cidade, subordinado à

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Diretoria de Obras. A partir de 1941, a empresa Coimbra Bueno & Cia começou a contribuir pensando no crescimento da cidade. Assim, teve início a construção de um Plano para Curitiba. Mesmo com toda fama e Curitiba sendo um centro econômico, político, militar, estudantil e cultural que, desde o início do século tinha acentuado desenvolvimento, ainda não dava a impressão de ser uma capital. Saneamento e tráfego urbano eram dois problemas emergenciais para a cidade. Nas conclusões do Plano, Curitiba não sofria da falta de espaços livres, mas sim da má distribuição desses espaços. A presença de vegetação era recomendada e a criação de um horto botânico foi uma das necessidades descritas. No saneamento, incentivava-se a continuidade das obras na rede de esgotos e canalização dos rios que cortavam, principalmente, as áreas centrais, mais sujeitas às inundações. Outro ponto ressaltado foi a proibição de loteamentos nas regiões dos mananciais, a fim de preservar não só a vegetação, mas a qualidade da água. O Plano Agache, assim como ficou conhecido, influenciou a adoção de um novo código de posturas. Um dos quesitos presentes no código era a preocupação com a limpeza da cidade. O código previa o tratamento do lixo hospitalar, o uso de canais de esgoto, proibia o lançamento de lixo em vias públicas, despejo de dejetos industriais nos rios além de ressaltar a manutenção da limpeza de terrenos. Após o crescimento e desenvolvimento da cidade, em 1986 acontecia a reestruturação administrativa da estrutura da Prefeitura. Antigos departamentos e divisões foram substituídos por secretarias, buscando ampliar a eficiência administrativa. Assim, ações do meio ambiente passaram a ser geridas

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pela Secretaria Municipal do Meio Ambiente, que abrangeria não apenas a administração e conservação de parques e praças, mas também serviços como limpeza pública, iluminação, manutenção de cemitérios municipais, entre outros. Em 1990, outro marco foi a promulgação da Lei Orgânica do Município, onde ficava explícita que a política de desenvolvimento urbano assegurava a proteção, a recuperação e a preservação do meio ambiente. Na mesma década Curitiba ficou conhecida como a capital ecológica do país. Assim como demonstra sua história e evolução, a cidade preocupava-se com a “quantidade” existente de área verde na organização. De acordo com a Organização Mundial de Saúde, o índice de área verde exigido por espaço era de no mínimo 18 metros quadrados por habitante. Segundo a Prefeitura Municipal de Curitiba, dados de 2012 afirmam que a capital passou a ter 64,5 metros quadrados de cobertura vegetal por habitante, sendo a maior taxa do país. Outra preocupação da capital foi a interação entre política de desenvolvimento urbano e projeto ecológico que a cidade tem. O objetivo estava em crescer economicamente e demograficamente sem degradarse ambiental e socialmente. A coleta seletiva acontecia na capital, pioneiramente em todo o país, visando à alternativa para o destino final do lixo. Dessa maneira e com este postulado é que Curitiba estabeleceu, por exemplo, o programa “Lixo que não é Lixo”. A quantidade de lixo recolhido pelo programa acabava se transformando e se tornando em novos materiais; eram toneladas de metais, plásticos, vidro e outros resíduos que poderiam ser utilizados pela indústria da reciclagem. O programa teve e continua tendo grande destaque em todo país, pois desencadeou uma

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série de iniciativas na área de proteção ambiental, de educação ambiental e de melhoria da qualidade de vida. O desperdício com a utilização de materiais recicláveis e que poderiam ser totalmente reaproveitados, começou a

A presença do caminhão era e continua sendo

ser corrigido. Um terço do lixo classificado como reciclável passou a ser recolhido, uma vez por semana nos bairros e

identificada pelo toque do sino. Uma lembrança que tornou-se tradição desde os velhos tempos.

diariamente no centro da cidade, por caminhões especiais. A presença do caminhão era e continua sendo identificada pelo toque do sino. Uma lembrança que tornou-se tradição desde os velhos tempos. As escolas da rede municipal, por exemplo, começaram a apresentar campanhas de esclarecimentos aliadas à educação ambiental para mostrar o que a capital podia fazer com o seu lixo. Acompanhada de uma intensa estratégia de marketing, a capital mostrava para o país a famosa “família folha”. Os personagens explicavam à população o que era o “Lixo que não é Lixo”. Em 1990, a capital paranaense foi premiada pela ONU por intermédio do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, e começou a receber atenção fora da cidade. Desta maneira, a construção do ideal de cidade ecológica foi se firmando e o titulo de capital ecológica foi conquistado. Hoje, o departamento responsável pelo setor na capital é o de Limpeza Pública. As atividades contam com a responsabilidade da empresa Cavo – Serviços Ambientais, que compõe o Grupo Estre, considerada a maior empresa de serviços ambientais do Brasil, que tem como foco a gestão

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e valorização de resíduos. Os

trabalhadores

da

limpeza

pública

sentem-se

totalmente

responsáveis por tal fama que a cidade carrega em seu nome. “Somos nós os responsáveis pela limpeza da cidade, pela fama que Curitiba tem. Se não tivesse o nosso trabalho, isso não aconteceria”, contam os varredores. “A limpeza é muito especial. Uma cidade sem os garis é a mesma coisa que um hospital sem médicos. A cidade precisa ter. É um serviço para todo o povo”, diz Antonio. “Me sinto totalmente responsável pela fama de a cidade ser considerada a “mais limpa” e a “capital ecológica”.

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O OUTRO LADO

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Limpar e manter uma cidade de quase 1.752 milhões de habitantes e que produz cerca de 1.100 toneladas de resíduos sólidos por dia é uma das missões de Curitiba. Outra é dar destino correto a toda essa quantidade de lixo. Apesar de ser considerada pioneira em programas para a reciclagem do lixo, por exemplo, e que tenha conquistado o título de capital ecológica, não quer dizer que tenha encontrado soluções permanentes para a manutenção da disposição final do lixo. No ano de 1989, havia sido escolhido um local de armazenagem dos dejetos urbanos: o aterro da Caximba, localizado entre Araucária e Fazenda Rio Grande. Devido ao limite máximo de sua capacidade de suporte, depois de mais de dez anos, a capital começou a procura por outro espaço. Sem encontrar, a solução na época foi a construção de um “anexo” no mesmo local, que continham cerca de 51m², ampliando a capacidade do aterro e dando o suporte necessário para mais quatro anos. Foi depois de 21 anos de operação que o aterro da Caximba foi oficialmente desativado. Hoje, estão sendo utilizados aterros sanitários temporários, sendo que 2,4 mil das 2,5 mil toneladas de lixo estão sendo destinadas ao

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aterro da Estre em Fazenda Rio Grande, e as 100 toneladas restantes vão para a Essencis na divisa de Curitiba com Araucária. Os dois aterros foram contratados como solução emergencial e provisória. De acordo com a Prefeitura de Curitiba, a cidade destina aos aterros 1,9 mil toneladas de resíduos a cada dia. Nos próximos quatro anos, a meta da cidade é enviar 380 toneladas de resíduos a menos por dia aos aterros sanitários, o que significa uma diminuição de 20% do volume total enviado hoje. Será reduzida em 10% a geração total de resíduos e em 10% a destinação final dos resíduos no aterro, estimulando a separação correta. De acordo com a prefeitura, parcerias com a Federação das Indústrias do Paraná (Fiep-PR), o Sindicato da Indústria da Construção Civil do Paraná (Sinduscon) e a Associação dos Transportadores de Resíduos de Curitiba e Região (Acertar) foram assinadas a fim de que as próprias entidades viabilizem alternativas para melhor aproveitamento de resíduos. No caso da construção civil, os resíduos poderão ser descartados em pontos específicos instalados pela Prefeitura para serem reaproveitados. No ano de 2013, em cerimônia de comemoração ao Dia Mundial de Meio Ambiente, a prefeitura lançou um caminhão de coleta de lixo movido a gás, em caráter experimental, numa parceria entre a Prefeitura e a empresa Cavo. O veículo permite uma redução de 25% na emissão de gases poluentes que funcionará em teste por um período de seis meses. Dessa maneira, a cidade busca encontrar soluções para o destino da grande quantidade de lixo gerada a cada dia. A dificuldade continua sendo grande, e a importância do cuidado com o processo desde a separação até a coleta dos resíduos, continua crescendo. Diante de tal

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cenário, a figura dos trabalhadores da limpeza pública também continua a crescer em importância e relevância. Sem eles, não há a capital ecológica ou modelo e exemplar. Eles sempre foram e continuarão a serem os responsáveis pelas belas paisagens curitibanas com ruas e calçadas limpas.

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Mesmo sendo um objeto indesejável, o lixo faz parte da rotina de profissionais da limpeza pública. Independente do caráter do objeto com que trabalham, os varredores e coletores de lixo orgulham-se em serem o que são: responsáveis pelas belas paisagens curitibanas de ruas e calçadas limpas. No livro “O lixo e aqueles que trabalham com ele – a vivência de varredores e coletores de lixo de Curitiba, a cidade modelo” a figura dos profissionais é repassada com o objetivo de visualizálos com outra dimensão. A partir de histórias vivenciadas no dia a dia, o tema é apresentado por meio de outro contexto: o contato e a realidade diária desses profissionais com o inservível.


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