A communio ecclesiarum da patristica

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B. A COMMUNIO NAS VICISSITUDES DA HISTÓRIA

lhe dá lugar, tanto mais brilhará para os homens a sua relação com a obra do jesus terreno e do Senhor ressuscitado. Um bom critério para uma transparência de Cristo, que tenha sucesso desta maneira, está na disponibilidade do ofício eclesial de se incorporar sempre de novo às outras modalidades, que igualmente têm sua origem no próprio Jesus, de sua representação, e de se deixar "relativizar" por elas, sobretudo pelos pequenos, pelas crianças CMt 9,37) e pelos mais pequeni­ nos, irmãos e irmãs de jesus CMt 25,40.45). Contra toda tentação do ofício eclesial a uma fidelidade literal formalista ou a uma mística clerical de Cristo, que identifica diretamente os detentores do ofício espiritual e prati­ camente (e não de maneira sacramentalmente mediada) de tal modo com o Cristo exaltado, que chega a se posicionar sobre a comunidade: contra tais e semelhantes perigos a melhor protecào é oferecida pela solidariedade na amiza­ de, vivida na prática, dos detentores de ministérios eclesiais com os pobres, os pequenos e os pecadores. Então a palavra "serviço" não lhes sairá dos lábios tão fácil e copiosamente. Em seu lugar, temos a certeza, que traz a humildade, de que só é possível demonstrar confiança mediante um amor que não ama "com palavra e língua" mas "com atas e em verdade" (I]o 3,18).

A segunda grande seção de nossa "verificação histórica" ocupar-se-a agora das consequências históricas das origens bíblicas da Igreja. Queremos mostrar mais de perto na tradição de fé da Igreja algumas linhas evolutivas marcantes da autocornpreensão, que, como perspectiva conciliar e opção, nos vem conduzindo desde o início, ou seja, a Igreja como communio. Pas­ sam agora para primeiro plano questões de história da Igreja e dos dogmas: como se chegou a essa visão de Igreja' Como ela foi-se alterando' Como se chegou a esquecê-la' O que levou a seu redescobrimento' Mas também: em que medida se relacionam teologia e realidade da Igreja como communio nas diversas épocas da história 7 Levantamos essas perguntas não por interesse meramente histórico, mas no seio de nossa fenomenologia teológica da Igreja, na qual se trata de uma exata percepção e verificação da realidade presente de nossa Igreja. Buscamos, pois, mostrar como a compreensão conciliar e a realização da Igreja como communio que se orienta por ela podem ser fundamentadas, pela grande tradição que conserva as origens bíblicas da Igreja, como verdadeiras, ou seja, como correspondendo a ela e manifestando-a hoje adequadamente. É óbvio que neste ponto se deve levar especialmente em conta a patrística como fase fundamental do devir da Igreja na forma de communio.

A

IICOMMUNIO ECCLESIARUM

II

DA PATRíSTICA

A compreensão eclesial da "época patrística", que vai do século II ao século VII, não se nos depara - no que se assemelha ao Novo Testamento - na forma de tratados eclesiológicos. Estes só surgem no contexto das polémicas políticas e teológicas entre papa e imperador no século XlV, sobre­ tudo em conexão com a encíclica Unam Saneiam, de Bonifácio VIII CI 302)). 1. Entre as primeiras obras eclesiológicas globais estão: Jacó de Viterbo. De regime christiano (1302), João de Ragusa, Traclatus de Ecclesia (1440/4 J) e João de Torquernada, Summa de l:cclesia (450). 287 286


"

Até a alta Idade Média não foi preciso problematizar ou legitimar teologica­ mente a Igreja como óbvio "espaço vital da fé". Em vez disso, ela se tornou tema de incansável meditação: toda a Escritura do Antigo e Novo Testamento considerou-se e interpretou-se tipologicamente em referência a ela, sobretu­ do ao mistério de sua relação com Cristo. Por isso encontramos as afirmações eclesiológicas mais importantes destes séculos no seio de comentários bíbli­ cos e na literatura místico-espiritual'. Isso, porém, não exclui que se nos transmita também em numerosos outros textos teológicos desta época uma grande variedade de testemunhos sobre as realizações concretas de vida e as formas estruturais da Igreja, sem que se tenha já chegado expressamente a sínteses sistemáticas)

1. O

FUNDAMENTO TEOLÓGICO: A "KOINONIA" DO CORPO DE CRISTO

a) Raízes bíblícas É digno de nota que se tenha preferência em numerosos textos patrística por um conceito neotestamentário que conseguiu traduzir melh a realidade vivida e a imagem ideal da Igreja de então, ou seja, a idéia "koinonia". Precisamente sua ligação com a compreensão do corpo sacr mental de Cristo em ICor 1O,16s (ver Y Parte A 2d) será de extraordinár alcance para toda a eclesiologia da Igreja antiga: "Não é o cálice da bênçã] sobre o qual nós dizemos a bênção, participação (hoinonia ou communicati no sangue de Cristo? Não é o pão, que partimos, participação (hoinonia participatio) no corpo de Cristo? É um só pão. Por isso somos um só cor (soma); pois todos partilhamos de um só pão". Em conseqüência, j. Hai resume com razão sua pesquisa sobre o conceito paulino de hoinol1ia traduzir o seu conteúdo pleno por "comunidade por participação'". Seu emprego importante, ele o vê no evento da ceia, onde se unem entre si a compreen eucarística e a eclesiológica do corpo de Cristo pelo conceito de hoinoni

"Pensa-se de início na comunidade de comunhão dos indivíduos com Cri mediante a autocornunicação deste. Mas visto que são muitos os que p 2. Cf. a respeito especialmente H. de Lubac, Die Kirche. Eine Belrachlltng, Einsieq 1968; id., Corplls mysliUlm. ElIcharislie lInd Kirche im Mitle/aller, Einsiedeln, 1969; id., Gla alls der Liebe, "Catholicisrne", Einsiedeln, 1970; H. Rahner, Symbole der Kirchc. Die Ehhlesi der Valer, Salzburg, 1964; H. U. v. Balthasar, Sponsa Verbi. Shizzen ZLlr Theologie 11, Einsie 1961. 3. Cf. sobre a evolução histórico-dogmática da eclesiologia os quatro fasciculos. d) em: M. Schmaus-A. Grillmeier-L. Scheffczyk (eds.), lfandl.JLich eler Dogl11wgeschichle B 3, Friburgo, 1970s. 4. j. Hainz, Koinonia. "Kirche" ais Gemeinschafl bei Pau/us LDU 16), Regensburg, 1982','

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LLLLt~IAH.UM

DA PATRíSTICA

ticipam em comum do pão e do vinho, ou seja, do corpo e do sangue de Cristo, surge então por meio dessa participação comum uma relação de comunidade também entre eles: da comunidade na ceia pela participação no corpo de Cristo surge a comunidade 'eclesial' da partilha em comum no corpo de Cristo, a tomunidade"5. Esse modelo de hoinonia da comunidade eucarística por participação, que se realiza primariamente em toda celebração eucarística concreta de uma comu­ nidade, serve para Paulo interpretar eclesiologicamente a relação das comunida­ des entre si, sobretudo das comunidades gentio-cristãs para com a comunidade hierosolimitana das origens. Uma vez que de Jerusalém saiu a mensagem salví­ fica, todas as comunidades recém-fundadas estão, pela participação no Evangelho, em hoinonia com a comunidade de Jerusalém e, em conseqüência, com os apóstolos e outros transmissores da boa nova". Para além dessa relação com Jerusalém, a hoinonia significa em Paulo uma específica relação comunitária entre os fiéis das diversas comunidades locais, ou seja, a solidariedade da recíproca "participação nas necessidades dos santos" (Rm 12,13)7. Porque nas diversas comunidades transmite-se a mesma participação no Evangelho e no corpo eucarístico de Cristo, todos eles, os indivíduos e as comunidades em seu conjunto, estão ligados entre si pela hoinonia do único corpo de Cristo.

b) Recepção na patrística Essa compreensão de Igreja como "comunidade" desenvolve-se agora na patrística cada vez mais na linha da teologia espiritual e desdobra-se estruturalmente na prática. Os elementos teológicos decisivos dessa autocom­ preensão e dessa auto-realização são os seguintesH:

O) A Igreja forma uma hoinonia na fé. A confissão comum da fé é a

base dessa comunidade, que, por isso, é ferida da maneira mais profunda

precisamente pelos hereges. Um desvio na fé é considerado pelos Padres da

Igreja não apenas como questão abstrata de teorias ou interpretações diver­

sas, mas também como falta contra o amor tagape) da hoinonia, que abarca

igualmente fé e práxis de vida. 5. Id., ibid., 174. 6. Cf. GI6,6; Rrn 15,26s, onde Paulo chama de "koinonia" a coleta das comunidades na Macedónia e Acaia para os pobres de Jerusalém, ou seja, como sinal da gratidão devida

pela comunidade concedida pela participação no Evangelho.

7. cr j. Hainz, op. cit., 115s. 8. CL a respeito P.-T. Camelot, "Díe Lehre von der Kirche. Váterzeit bis ausschlieBlich Augustinus", em: M. Schmaus e outros (eds.), Hanelbuch der Dogmengeschuiue Bd I11/3b, Friburgo, 1970, 64s; W Elert, Abendmahl und Kirchengemeinschaft in der alten Kirche haUplsachlich des Ostens, Berlim, 1954.

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(2) A Igreja vive como koinonia dos "mistérios", dos sacramentos; isso ocorre sobretudo no batismo, "pelo qual a mãe Igreja dá à luz sempre novos filhos na água e no Espírito Santo'", e na eucaristia, que desde o século II se tornou o sinal e o laço decisivos da communío. (3) A unidade indissolúvel das três modalidades de existência do "corpo de Cristo" (a histórica, a eucarístico-sacramental e a eclesial) constituiu o núcleo da teologia patrística da communio, e isso não absolutamente como um jogo espirituoso de palavras, mas como realidade experimentada na fé: a Igreja realiza-se em sentido próprio como comunhão de mesa com o Cruci­ ficado ressuscitado. Ela é o seu "corpo" real, ou seja, sua presença corpórea, traduzida para a comunhão social, na história, sem que todavia se deva

simplesmente identificá-la com ele. Essa koinonia adquire sua configuração perceptível primeiramente na Igreja local, que celebra a eucaristia e se reúne com o bispo em torno do altar. O bispo, como presidente da celebração eucarística, é considerado, desde o século II, como elemento essencial e indispensável da communio eucarística da Igreja local e de sua unidade (ver supra). Ele é "centro e laço da comunidade, sobretudo': pela celebração eucarística, mas também pela pregação da fé, de que ele é mestre e guarda, e pela solicitude por preservar. a disciplina e os costumes cristãos"lo:: Mas também a Igreja "universal", a "catholica", que se espalha por tod~ o mundo habitado, o ecúmeno, e pode ser encontrada em todos os lugares (ao contrário das Igrejas-conventículos heréticos e provincianos), entende-se como koinonia no mesmo sentido, como comunidade na fé e no amor (eu-' carístico). Ou seja: as diversas Igrejas locais já se acham sempre na únic' comunidade de "comunidades de mesa eucarística que se comunicam ent . si"ll. É isso exatamente que significa o conceito de "communio ecclesiarum a Igreja universal (= católica) é a "comunidade das Igrejas locais". Os me mos elementos estruturais que garantem a unidade da Igreja local (a sab confissão da fé, batismo e eucaristia, ministério episcopal) valem de ígu maneira para a Igreja universal. Aí o poder celebrar a eucaristia em comu representa o critério "decisivo e também socialmente perceptível da koinon' da única Igreja na diversidade das várias Igrejas e da verdade de sua úni fé na variedade das muitas fórmulas de fé. A communio eucarística de u Igreja local e a communio eucarística das muitas Igrejas locais entre si t constituem a única e a mesma realidade "Igreja", se bem que em cada cas em nível diverso; somente para ambos os níveis juntos vale o conceito d. '2 "Igreja" como "povo de Deus a partir do corpo de Cristo" no sentido pleno 9. P. T. Camelot, op. cito 10. ld., ibid., 64.

11.]. Ratzinger, Das neue Volh Gottes, Düsseldorff, 1969,234.

12. ld., ibid., 80ss.

2.

SINAIS E PRINCÍPIOS DE COMUNIDADE UNIVERSAL

a) O início

Quão concretamente essa autocornpreensão determinou ao longo dos séculos as funções de vida eclesiais fica claro por alguns sinais nos quais se realizou a communio da Igreja universal":'. Mencionem-se, por exemplo, as assim chamadas "cartas de comunhão" tuuerae communicatoriae), uma espé­ cie de "passaporte" ou carta de recomendação, que os bispos davam a seus fiéis quando viajavam ou mudavam de moradia. Essas cartas garantiam aos interessados uma acolhida hospitaleira nas Igrejas que estavam em communio com sua Igreja natal, a saber: participação na celebração eucarística, ofere­ cimento de teta para pouso à custa da comunidade etc. Tertuliano fala desta unidade das Igrejas: "Assim, pois, as muitas Igrejas, porque surgidas da única, são elas mesmas a Igreja apostólica das origens. Todas são a original, todas são apostólicas; pois todas provam sua unidade, pois elas têm a co­ munidade da paz, o nome da fraternidade, a comunhão de cartas da hos­ pítalídade"!", As mencionadas "cartas de comunicação" constituem uma parte daquela "comunidade de comunicação" entre os bispos que se informavam reciprocamente sobre eventos especiais em suas Igrejas (como, por exemplo, sobre sua escolha para bispos ou excomunhão de hereges). Um segundo sinal da hoinonia é constituído pela "comunidade de consa­ gração" dos bispos entre si. Quer dizer: o bispo local concede ao bispo de outro lugar, que se hospeda com ele, a presidência na celebração eucarística; ele podia fazer a pregação, dizer as palavras da consagração e distribuir a comunhão à comunidade. Justamente em caso de diversidades de opinião e de busca malograda de consenso, era este um forte sinal de communio que continuava a existir apesar da discórdia (como, por exemplo, entre o papa Aniceto e o bispo Policarpo na polémica acerca da festa da Páscoa no século II). A legitimidade da escolha do bispo local dependia, em última análise, da anuência dos bispos vizinhos, no que claramente se expressava - além da dimensão da Igreja local - também a dimensão da Igreja universal. Um terceiro sinal são as listas de bispos: cada bispo portava uma lista de todos os bispos com que sua Igreja local estava em comunhão. A lista era sempre atualizada (p. ex. depois das eleições); quem estivesse na lista, na 13. Cf. a respeito L. Hertling, "Communio und Primar - Kirche und Papsttum in der kirchlichen Antike", em: Una Sancta 17 (1962) 91-125:]. Ratzinger, "Primar und Episkopat", em: id., Das neue Volh Gottes, op. cit., 121-146; id., "Die pastoralen lrnplikationen der Lehre von der Kollcgialitat der Bíschofe", em op. cit., 201-224: K. Schatz, Der papstliche PrimaI. Seine Geschichte von den Ursprüngen bis zur Gegenwart, Würzburg, 1990 (apóio-me, relativa­ mente nessa visão geral excelente, sobretudo nas exposições históricas subsequentes). 14. Tertuliano, De Praescr. 20, PL 2,32 (citado segundo L Hertling, op. cit., 102). 291

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qual se registrava a maioria dos bispos mais importantes, pertencia à communio da Igreja "católica", ou seja, geral e universal (diferentemente das "igrejas de canto"). Em princípio, todos os bispos e todas as comunidades eram membros de direitos iguais dessa comunidade universal. Mas com o passar do tempo estabeleceram-se formas mais fortemente institucionalizadas de communio uni­ versal, suscitadas por cisões, heresias e conflitos que não podiam mais ser

do mencionado princípio da tradição, Roma ganhou, desde o século II, posição destacada entre as "Igrejas apostólicas". É a cidade onde se acham os túmulos dos dois mais importantes apóstolos, Pedro e Paulo, que - cada um por si - superam em importância todos os outros apóstolos (ver anterior­ mente). Por isso se confiava que Roma estava imune de modo especial de desvios da paradosis apostólica.

resolvidos por esses meios simples.

Foi de igual importância também o fato de que a comunidade romana repousava sobre o martirio desses dois apóstolos, ou seja, havia a convicção de que esse testemunho de fé selado com o sangue estava indestrutivelmente presente na fé da comunidade romana". No martírio, precisamente, a tra­ dição da fé encontra sua expressão mais tangível e autêntica.

b) Desdobramento estrutural Quanto a isso, sem dúvida ocupa o primeiro lugar o "princípio sinodal":

em conflitos que ultrapassavam as condições das Igrejas locais, reuniam-se,

a partir do século II, sínodos regionais de bispos (como, por exemplo, do norte

da África ou da Ásia Menor etc.), que chegavam a decisões doutrinais obriga­

tórias, condenavam heresias, apaziguavam querelas, comunicando suas gestões

às outras Igrejas - com o pedido, quando possível, de acordo explícito, o que

dava ainda maior peso a suas decisões. Desde o século III, as Igrejas principais

de Roma, Alexandria e Antioquia ganharam neste quadro sinodal especial pres­

tígio como importantes "lugares de governo" para a communio. Este princípio

move-se por si só - em casos de relevância universal - cada vez mais forte­ mente na direção de um sínodo da Igreja universal, ou seja, de um "concílio ecumênico", o que ocorreu pela primeira vez em Nicéia em 325. Na polêmica com a gnose e sua ênfase na experiência interna da verdade divina, foi ganhando cada vez mais importância um segundo princípio estrutu­ ral da communio universal, a saber, a "paradosis" (= tradição) exterior, historica­ mente perceptível e acessível a todos, dos apóstolos. Isso se manifestou primei­ ramente nos escritos do Novo Testamento que pouco a pouco se tomavam "canónicos" (diretamente dos escritos "apócrifos"), e, em segundo lugar, na su­ cessão apostólica do ministério episcopal. Afirmando-se, com a ajuda das listas de bispos (também construídas historicamente), uma continuidade ininterrupta entre os apóstolos e os bispos atuais, buscava-se assegurar a verdade da tradição apostólica. Adquiriram especial importância neste processo as Igrejas fundadas. pelos apóstolos ou as Igrejas em que agiram ou foram sepultados apóstolos: elas, são chamadas de "sedes apostolicae" ("sés apostólicas"). Encontrava-se nelas liame mais forte, mais seguro e mais palpável com a origem apostólica do que' em outros lugares. Isso valia, por exemplo, para as comunidades de Jerusalém', Filipos, Corinto, Efeso, Tessalõnica, Roma, Antioquia, Alexandria etc.

3. A

POSIÇÃO ORIGINAL DA IGREJA LOCAL ROMANA NA COMMUNIO

a) A "importância espiritual" de Roma É este o lugar para se falar explicitamente da importância de Roma, d' sua comunidade e de seu bispo para a communio. Pois, precisamente a parti

Por isso estar em comunhão com Roma era de especial importância para todas as Igrejas, sobretudo para as Igrejas do oeste e norte da África, uma vez que para esta região era a única fundação apostólica. Mesmo que Roma por longo tempo não detivesse algo como uma competência jurídica de decisão última no seio da communio universal, cabia-lhe, porém, por causa da relação singular com os dois "princípes dos apóstolos", "importân­ cia espiritual" destacada 16. Para isso contribuíram o exemplar cuidado dos pobres na comunidade romana e seu apoio de Igrejas mais pobres, bem como a grandeza crescente da comunidade, que em meados do século III já contava 30.000 membros, e também com certeza sua situação como ponto central de tráfego no império romano. Sua singularidade como capital do império significou, porém, de início muito pouco intra-eclesialmente; ao contrário, enquanto permaneceu a tensão teológica e política entre a Igreja e o império romano, Roma, em vista de sua atmosfera acentuadamente pagã, corporificava como cidade a apocalíptica "prostituta Babilõnia" (e não a "Je­ rusalém celeste"). Essa posição singular, simbólico-espiritual, de Roma comprovou-se muito palpave1mente, na medida em que a communio das Igrejas por longa data fez boas experiências com a fidelidade à tradição de Roma. Em quase todas as grandes controvérsias dos primeiros séculos (como, por exemplo, a festa da Páscoa, o batismo dos hereges, a fixação do cânon do Novo Testamento, as grandes polémicas cristológicas dos séculos IV e V), Roma assumiu relativa­ mente cedo e de maneira clara a posição que, com o passar do tempo, foi aceita e reconhecida por outras Igrejas. O espírito humano-pragmático da Igreja romana, espírito apegado à tradição e avesso às polémicas especulati­ 15. CL K. Schatz, op. cit., 20s. 16. CL a respeito os muitos testemunhos em particular em K. Schatz, op. cit., 21-30; nas polêmicas sobre a festa da Páscoa e sobre o batismo dos hereges (ambas no século UI), Roma tentou, com base nessa sua importância, faze!' valer ativa e vinculantemente uma responsabili­ dade eclesial-universal, o que todavia suscitou veemente resistência das outras Igrejas.

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vas do Oriente, espírito que com certeza herdou da Roma antiga, fez com que-ela se tornasse - precisamente em casos de conflitos difíceis - um tranqüilo ponto de orientação, um garante confiável da tradição e, em con­ seqüência, um sinal eficaz de unidade no seio da communio da Igreja como um todo, sem que por isso adquirisse posição especial de cunho jurídico. Observe-se, porém, que essa importância cabe em primeiro lugar à comu­ nidade romana em virtude de seu singular caráter apostólico, e não ao ministério episcopal do bispo de Roma. O papa Estêvão alegou, com efeito, expressamente pela primeira vez na polêmica acerca do batismo dos hereges no século III, que ele - no sentido de Mt 16,18 - era sucessor de Pedro e de sua autoridade de ligar e desligar; mas essa pretensão não foi recebida na Igreja universal, porque (de acordo com Cipriano) todo bispo está na sucessão apostólica de Pedro e de sua autoridade. A posição de primazia de Roma então existente na communio era nos três primeiros séculos uma primazia ainda muito mais fortemente ligada à comunidade e não a uma pessoa ou a um ofício.

b) Desenvolvimento para ser "centro" da communio Com a assim chamada "virada constantiníana" do século IV, pela qual o cristianismo tornou-se religião estatal' reconhecida e a sede do imperador mudou-se para Constantinopla, então recém-fundada, surgiram formas mais fortemente institucionalizadas para salvaguardar, de um lado, a continuidade (diacrónica) com a tradição apostólica das origens e, de outro, a unidade (sincrónica) da Igreja universal. Nascem, então, em nível regional as provín­ cias eclesiásticas (idênticas em grande medida às províncias estatais), à cuja cabeça estava um metropolita (= arcebispo). Essas províncias eclesiásticas tornaram-se espaço próprio da experiência da colegialidade episcopal, que aparece com poder de impor leis sobretudo em eleiçôes episcopais, na cons­ tatação e condenação de heresias ou na deposição de bispos hereges. De mais a mais, ganharam peso também os centros de unidade de nível mais elevado, os assim chamados "patriarcados": Roma para a Igreja latina, Alexandria para o Egito e Antioquia para a Ásia Menor. Já estavam fixadas, nesta sequência, em Nicéia (325), as mais importantes "sedes apostolicae". Elas exerciam certa "função de supervisão" em sua área de influência". Em fins do século IV, também Constantinopla se impôs na série de patriarcados, pretendendo desde o Concílio de Calcedônia (451) até mesmo o segundo lugar na communio, precisamente porque se tornara a "nova Roma", a segunda cidade do império. Essa fundamentação "profana" sempre foi rejeitada por Roma como decididamente não-teológica e contrária à tradição apostólica da communio. 17. CL K. Schatz, op. cit., 365.

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A estruturação da communio, apoiada pelo Estado, em províncias ecle­ siásticas e patriarcados acarretou maiores possibilidades de superar confli­ tos, mas ao mesmo tempo consideráveis riscos de regionalização, ou seja, de os patriarcados se tornarem independentes e mais poderosos em detrimento da communio eclesial. Isso se manifestou sobretudo na polémica do arianis­ mo do século IV, que durou ainda cinquenta anos depois de Nicéia e na qual Roma (com Alexandria, mas contra Antioquia) defendeu a primazia da co­ -responsabilidade e co-particípação universal-eclesiais perante a total "autocefa­ lia" das Igrejas singulares e seus sínodos provinciais e patriarcais. No quadro dessas polémicas em torno do arianismo, Roma cresceu, a ponto de ocupar o papel de centro da communio universal: "O fator mais decisivo aí foi que Roma demonstrou uma clara vantagem em firmeza, estabilidade e clareza, desde que se superou no Oriente o arianismo, cerca de 370, e se viu numa Igreja cheia de dificuldades teológicas a necessidade de retomar a communio, de consolidar as relações e fixar o consenso nas fórmulas de fé. De mais a mais, Roma representava, perante o Oriente em si esfacelado, a communio de todo o Ocidente latino. Com­ preende-se que em tal situação era importante para os diversos partidos obter communio e reconhecimento da parte de Roma. Esta tornou-se, então, de fato o centro mediador da unidade'v", Isso significou concretamente que, em tais situações de crise (de natu­ reza de fé, direito e disciplina), que não podiam ser resolvidas regionalmen­ te, voltava-se para Roma em busca de ajuda; isso, porém, superou com frequência as possibilidades de Roma quanto ao estado da informação e à competência de decisão. Contudo, considerou-se Roma (da parte da Igreja ocidental obviamente mais fortemente e mais depressa do que da parte da Igreja oriental) logo e de maneira geral ponto de orientação e socorro em situações de crise. "Poder-se-ia ver este grito por socorro antes como apelo de natureza suprajurídica a uma instância de autoridade religiosa superior, que se conclama a agir no sentido da solidariedade cristã, quando a ordem cristã foi destruída."!" Roma não era absolutamente nesta época uma instân­ cia de decisão legalmente obrigatória; era antes um apoio espiritual-moral que em situações de crise se esperava de Roma, seja na forma de aprovação ou rejeição de certas posições, de cartas de exortação a bispos e comunida­ des, de convocações de novos sínodos e concílios etc. Ao lado deste papel cada vez mais crescente de Roma, cresceu também - mais por motivos políticos - a importância de Constantinopla, que foi paulatinamente assumindo o segundo lugar na koinonia (que se legitimou 18. Id., ibid., 41. 19. Id., ibid., 43.

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mais tarde teologicamente com a lenda da fundação apostólica de Constan­ tinopla pelo irmão de Pedro, André). Formou-se assim no século VI a teoria e..a realidade (parcial) da "pentarquía", segundo a qual Roma, Constantino­ pla, Alexandria, Antioquia e Jerusalém foram consideradas como os centros mais importantes da communío eclesial. As Igrejas restantes deviam estar em communío com elas na fé e na celebração eucarística. A partir dos séculos VIII e IX, só se considerou ecuménico um concílio que tivesse participantes de todos estes cinco patriarcados. Por detrás estava a convicção: "Os cinco patriarcas são as cinco colunas sobre as quais está edificada a Igreja; neles repousa a infalibilidade da Igreja: eles não podem errar todos em conjunto; mesmo que quatro dentre eles falhassem, o quinto manteria a fé ortodoxa e traria de volta depois os quatro restantes. São considerados os verdadeiros sucessores dos apóstolos'?". No entanto, a essa idéia da pentarquia atribuiu-se com o passar do tempo cada vez menos uma real importância político-eclesial; pois desde a invasão do islamismo no século VII, que reduziu pela metade o número dos cristãos, Alexandria e Antioquia perderam de fato sua posição eclesial de primazia. Jerusalém a possuíra desde o século II apenas em teoria. No fim da era patrística, só a bipolaridade Roma-Constantinopla detinha uma real influência política, ao passo que a pentarquia continuou a ser muito apre­ ciada na Igreja oriental, sobretudo como noção crítico-estatal, para frisar a distinção entre a Igreja universal e o império bizantino. Quanto à nossa pergunta sistemática acerca da autocompreensão e do auto-realização da Igreja antiga resta constatar: por vários séculos a Igreja universal viveu e foi concebida como comunidade das muitas Igrejas locais, de igual valor teológico, que estavam em comunhão entre si. Aí determina­ das Igrejas locais assumiram, em virtude de sua origem apostólica, função especial na guarda da tradição e na fundação da paz e unidade na communio. Dentre elas, a comunidade romana foi crescendo cada vez mais no papel de centro ou de "prima sedes", todavia somente "inter pares"; essa foi uma posição que ela primariamente não pretendeu, mas que se lhe reconheceu por sua importância espiritual como garante último da tradição e pólo de orientação da unidade da comunidade das Igrejas. Isso, porém, não se condensou ainda numa competência jurídica de decisão última.

4. O

CAMINHO PARA UMA NOVA COMPREENSÃO DA IGREJA NO SÉCULO

V

Não podemos expor, no quadro de nossa eclesiologia, toda a evolução da história da Igreja até a compreensão de Igreja da alta Idade Média; indiquemos apenas algumas facetas decisivas deste longo e complicado caminho. 20. Id., ibid., 67s. 296

a) O bispo de Roma como "sucessor de Pedro" Sem dúvida começa no século V uma nova fase da autocompreensão e auto-realização eclesiais. Roma, mais exatamente o bispo de Roma, desem­ penhou aí papel decisivo. Já preparado por Dâmaso I 066-384), Siríaco 084-394) e Inocêncio I (402-417), sob Leão Magno (440-461) chegou-se, na teoria e na prática, a uma mudança decisiva, que anuncia o fim da "communio ecclesiarum" da Igreja antiga. Como explicar essa mudança? Em primeiro lugar, pelo fato de que sob o domínio de Leão Magno se amplia sistematicamente a idéia da sucessão de Pedro do bispo romano (para o qual se reserva agora o título de "papa"). Em conseqüência, só o bispo de Roma é considerado herdeiro legítimo de Pedro e do seu "poder das chaves", assim como também como "vigário de Pedro", ou seja, no papa fala e age o próprio Pedro. A idéia, ligada à pessoa, da sucessão do Apóstolo faz passar para segundo plano a representação, ligada ao lugar, da comunidade apostólica. Com essa teologia petrina liga-se ao mesmo tempo a pretensão do bispo de Roma de possuir autoridade de direção de toda a Igreja. Expressou­ -se isso em fórmulas, que doravante se tornarão vocabulário-padrão do papado: confere-se ao bispo de Roma a "sollicitudo omnium ecclesiarurn" (isto é, o cuidado de todas as Igrejas) e a "plenitude potestatis" (isto é, a plenitude da autoridade). No estilo e no título, pretende-se agora - apelan­ do-se a Mt 16,16ss - um poder de direção ativo, que interfere e põe ordem na vida das diversas Igrejas. Ele se expressa especificamente no fato de que doravante não mais só um sínodo ou concílio, mas também o papa (por "de­ cretos papais") pode agir como legislador que cria direito. Apela-se também aí a Pedro: ele é representado na arte e na teologia como segundo Moisés, ou seja, como o legislador da nova aliança que continua a viver no papa e que, por isso, pode prescrever para toda a Igreja as leis de sua organização vital (sobretudo no Ocidente; com respeito ao Oriente, Roma ainda é mais reservada). Precisamente neste ponto manifesta-se a estreita ligação que agora surgiu entre a Igreja romana e o império romano, especialmente a nobreza da cidade, cristianizada desde os séculos IV e V21: Roma, a antiga capital do império, que se gaba de ser "caput mundi" ou "Roma eeterna", da qual provêm as leis para todo o universo, agora se entende, também fora da comunidade eclesial, como correspondente "caput ecclesiae", que pode exer­ cer uma posição de domínio sobre todos os membros do corpo eclesial (ou seja, as outras Igrejas). Na medida em que o poder imperial perde força no 21. Um exemplo expressivo é o mosaico, do fim do século IV, da abside em Santa Prudenciana em Roma: Pedro e Paulo estão, com a toga senatorial romana, ao lado de Cristo no trono. A Roma antiga foi "banzada" ... (cf, K. Schatz, op. cit., 46). 297


Ocidente, crescem a Igreja romana e o seu bispo rumo à sucessão do pen­ samento jurídico e pragmático de Roma. Eles assumem aí ao mesmo tempo algo de sua sóbria mentalidade prática, que busca integração com equilíbrio e está dotada de segura percepção das possibilidades do poder. "A Igreja da tradição, na qual a vinculação às origens ainda é especialmente forte (Ireneu), torna-se a Igreja da capital, que ministra ao mundo suas leis; a Roma da paradosis, que testemunha, torna-se a Roma da legislação, que manda.':" Sem dúvida, com essa construção de um centro forte de unidade alia­ -se muita coisa positiva para a Igreja, o que haveria de se manifestar breve­ mente na época da queda do império ocidental e na confusão gerada pela invasão dos bárbaros. Não só a Igreja e o papa na saída da Idade Antiga muitas vezes representavam no nível da sociedade em geral o único poder confiável de ordem, mas também intra-eclesialmente a força de integração do bispo de Roma com muita frequência preservou a Igreja de muitas cisões. A Igreja deste tempo viu no ofício de Pedro duas colunas-mestras de sua iden­ tidade conservadas da forma mais eficaz: tanto a vinculação normativa com a origem apostólica da tradição como o cuidado prático pela unidade universal da Igreja no presente. Além disso, a segura posição legal do bispo de Roma contribuiu muito para que a Igreja ocidental (diversamente da Igreja do império oriental) também pudesse afirmar uma relativa autonomia quanto ao domínio do imperador e de outros detentores de poder. Deve-se conceder que a Igreja romana não "fugiu" dos violentos desafios políticos do tempo, mas tentou, pelo contrário, interferir à sua maneira, organizando e configurando. No entanto, com o tempo ela pagou por isso um alto preço. Pois foi-se diluindo cada vez mais a consciência da diferença qualitativa entre estruturas e autoridades jurídicas eclesiais, de um lado, e estatais, de outro. Como muitas vezes acontece na história da Igreja, a formação institucional da própria iden­ tidade eclesial, distinguindo-se de outras formas sociais, foi obtida pelo fato de haver, é verdade, uma delimitação no campo legal e estrutural, mas, em com­ pensação, de se adotar muita coisa do estilo e método alheios na formação do próprio direito. A Igreja sofre até hoje as conseqúências dessa primeira grande adaptação ao mundo jurídico da monarquia imperial da Roma antiga. Pedro e Augusto não se podem juntar na communio.

b) O abismo entre pretensão e realidade Que passe despercebido um aspecto nessas reflexões: a realidade da Igreja, também no Ocidente, correspondeu à pretensão de Roma em medida muito modesta (comparando com a Idade Média e os Tempos Modernos). O "patriarcado do Ocidente", que 22. ld., ibid., 47.

298

"abarcava todo o Ocidente e, ademais, o Ilírico e a Grécia, não foi absolu­ tamente uma Igreja governada por Roma, mas uma configuração muito livre e heterogênea. O máximo de ligação a Roma era que em questões eclesiais (em geral práticas de administração dos sacramentos, de moral cristã, da práxis penitencial e de organização eclesiástica) se perguntava ao bispo de Roma e se seguiam suas orientações (entrando em seguida para as coletãneas posteriores de leis); além disso, o papa podia tomar decisões de organização eclesial para as Igrejas provinciais. No entanto, a realidade em geral correspondia muito menos à pretensão de Roma. Na Espanha, no sul da Gália e no norte da África ainda se decidiam questões de fé e se condenavam hereges, sem que Roma Interviesse.v" Essa situação não muda essencialmente entre 500 e 700, sobretudo por causa das migrações dos povos e de suas conseqüências; não se chegou abso­ lutamente a uma crescente centralização das Igrejas do Ocidente em Roma. Pelo contrário, desenvolveram-se Igrejas regionais muito autônomas, principalmente a Igreja norte-africana, a Igreja gótico-ocidental na Espanha, as províncias ecle­ siásticas de Milão e Aquiléia e a Igreja irlandesa. Todas elas mantiveram uma autonomia muito ampla na liturgia, no direito e no poder decisório em questões de fé e disciplina. Reconheciam inteiramente Roma como centro da communio e garante da verdadeira fé, mas viviam de fato bastante isoladas tanto entre si como de Roma. A queda do império romano ocidental levou também a uma perda geral de caminhos e meios de comunicação. c) A orientação das novas Igrejas para Roma

Essa situação só mudou fundamentalmente a longo prazo com a missão dos anglo-saxões na Inglaterra, pela virada do século VI ao século VII, iniciada por Gregório Magno e continuada por monges romanos. A Igreja romana em­ preende pela primeira vez uma iniciativa missionária, da qual nasce na ilha britânica uma Igreja regional fundada por Roma e, em conseqüência, orientada de modo especial por Roma. Essa estrita ligação a Roma foi trazida pelos mis­ sionários anglo-saxões (sobretudo Vilibrordo e Bonifácio) para o continente eu­ ropeu, de modo especial para o reino franco, pela qual surge a Igreja regional franca que se orienta pela tradiçâo romana de fé e sua liturgia. Esse fortalecimen­ to da Igreja romana no Ocidente acontece, pois, menos por imposição de uma pretensão de poder de Roma do que pelo apoio dos povos germânicos a Roma como garante da tradição apostólica e centro da unidade. Uma nova variante da veneração de Pedro desempenha aí papel rele­ vante. Os germanos veneram Pedro sobretudo como porteiro do céu, ao qual 23. ld., ibid., 475.

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se confiaram as chaves do Reino dos céus. Mantendo-se unido a este pode­ roso patrono e a seu representante terrestre, esperam estar mais perto da salvação celeste e da unidade eclesial. Concretamente, a fidelidade a Roma Elos francos consiste em seguir em questões de fé, liturgia, direito e costumes o que "Roma segue e ensina", Roma é aceita como critério exemplar, e a imitação de Roma também serve muito para a unificação cultural e política das diversas tribos. Todavia os reis francos se precaviam de um governo romano para dentro de sua Igreja regional, que estava sob sua direção. Aceitar critérios de Roma - sim, mas não ser regidos por Roma!" Outro fator que fortaleceu neste período a posição da Igreja romana foi a expansão do Islã, que eliminou quase inteiramente a Igreja norte-africana e a gótico-ocidental (Espanha), que tinham consciência fortemente desenvol­ vida. Pela supressão de importantes centros eclesiais de unidade como Cartago, Toledo, Alexandria e Antioquia, só restaram Roma e Constantinopla. Esta última, porém, que em todo caso já se situava nas margens do império romano oriental, afastou-se por si de Roma e cada vez mais da Igreja ociden­ tal, de sorte que para o Ocidente praticamente só restou Roma como o único centro intacto de unidade e orientação. Entrementes, não se podia mais falar de uma real communio de Igrejas locais de igual valor político e teológico e de uma estrutura sinodal-colegial do ofício episcopal": Apesar de todos esses fatores, foi', contudo, relativamente inexpressiva, até o século XI, a real influência política de Roma na Igreja (abstraindo-se o pontificado de Nicolau I, 858-865). Isso ocorreu, em grande parte, por causa da fraqueza moral do papado, que, no assim chamado "saeculum obscurum" (séculos IX e X), esteve quase inteiramente preso à política tribal da nobreza romana, caindo, em conseqüência, ao mesmo tempo numa dependência estrutural dos imperadores alemães (por exemplo Oto Magno, Oto III e Henrique III), os quais, para impor ordem no "brejo" romano, com freqüência depunham papas e instituíam outros. Somente no decorrer da reforma gregoriana no século XI foi que se impôs teológica e politicamente a centralização romana, que co­ meçara com Leão Magno e abriu caminho na Igreja anglo-saxônica/franca: o papa assume ativamente o papel de "cabeça" visível da Igreja ocidental e da comunidade cristã de povos nela unida, ou seja, da "cristandade".

5. O

PEDRO BÍBLICO E O OFÍCIO DE PEDRO NA IGREJA ANTIGA

Antes de acompanhar essa evolução ulterior, devemos intercalar uma pergunta que se impõe nesta retrospectiva histórica: qual seria ainda a rela­ 24. Id., ibid., 85ss. 25. Não posso examinar aqui mais de perto as falsificações das chamadas Decretais Pseudo-isidorianas do século IX e de sua importância para o fortalecimento político de Roma perante os metropolitas franceses; cl. a respeito K. Schatz, op. cit., 90s. 300

ção entre essa estrutura da Igreja e especialmente do ofício de Pedro com a Igreja do Novo Testamento? A Igreja (seja qual for a acusação que lhe im­ putam), depois da virada constantiniana, teria entrado num caminho errô­ neo fatídico, o que fez com que ela se afastasse cada vez mais do Evangelho? Ou se permitem construir, sem tentativas de legitimação que pareçam ideo­ lógicas, linhas de ligação teologicamente resistentes entre a figura neotesta­ mentária de Pedro e essa estrutura, formada no decorrer do tempo, da Igreja e do ofício de Pedro?

a) Reflexões hermenêuticas: entre apologética e critica

meramente histórica

No decorrer de uma abordagem hermeneuticamente mais consciente dos testemunhos da Bíblia e da história dogmática da Igreja sobre a origem da Igreja e seus ministérios, impôs-se, também na eclesiologia católica, a convicção de que não se pode projetar nos textos bíblicos um conceito anacronicamente posterior de Igreja e papado, para aí ler o que os textos não querem nem podem absolutamente dizer por si26 • Devem-se pesquisar, num procedimento teológica e historicamente responsável, as origens bíblicas do serviço de Pedro com exa­ tidão metódica de maneira semelhante como acima se fez na questão do fun­ damento da Igreja na atividade do Jesus Cristo terreno e ressuscitado. Assim, a pergunta, feita de maneira hermeneuticamente correta aos tex­ tos do Novo Testamento, será: é possível mostrar entre o papel de Pedro na vida do Jesus terreno, nos encontros com o Ressuscitado e na vida das primeiras comunidades, de um lado, e, de outro, a figura, que desde os séculos IV e V cada vez mais institucionalizante de um ofício eclesial-univer­ sal de Pedro, uma "continuidade estrutural" que mostre este ofício como tal (não em todas as suas concreções históricas') em condições históricas distin­ tas como legítima conseqüência dos testemunhos bíblicos sobre Pedro? Deve­ -se chamar de "legítima" a conseqüência, quando o ofício de Pedro no con­ senso da Igreja destes e dos séculos posteriores se considera como um ele­ mento constitutivo de estruturas de unidade da Igreja inteira, o qual faça justiça, a seu modo, à intenção original de Jesus na reunião do povo esca­ tológico de Deus, ajudando assim eficazmente a manter a Igreja na unidade e identídade operadas pelo Espírito Santo. 26. Cf. W Kasper, "Dienst an der Einheit und Freiheit der Kirche. Zur gegenwãrtigen Diskussíon um das Petrusarnt", em: A. Brandenburg-H. ]. Urban (eds.), Petrus und Papst II, Münster, 1978, 119-141; id., "Das Petrusamt ais Dienst der Einheit", em: A. v. Aristi e outros, Das Papstamt. Díenst oder Hindernis für die Okumene?, Regensburg, 1985, 113-138; W Trilling, "Zum Perrusamt im Neuen Tesrament", em: id., Studien zur jesusüberlieferung, Stuttgart, 1988, 111-139; R. E. Brown-K. P Donfried-]. Reumann (eds.), Der Petrus der Bibe/. Eine okumenische Untersuchung, Stuugart, 1976, 154s, 174s. 301


Que de fato essa convicção de fé se tenha difundido a partir do século 11, pelos diversos motivos acima mencionados, cada vez mais pela Igreja inteira (em que - como em todo processo histórico - o pecado humano desempenhou também, mas não de maneira absolutamente predominante, ãlgum papel, na forma da busca de poder, entre outras coisas), pode-se ver claramente pelo esboço histórico que fizemos. Na luta, carregada de confli­ tos, em busca de formas estruturalmente eficazes de unidade e fidelidade à tradição, a comunidade romana e o ofício do seu bispo de fato emergiram como um elemento estrutural de toda a Igreja. Com base nessa experiência histórica, este ofício foi considerado desde os séculos IV e V, numa "releitura" da Sagrada Escritura, a maneira, adequada para aquela época, de fazer pre­ sente na Igreja a figura bíblica de Pedro. "Descobriu-se: a tarefa, dada a Pedro, de fortalecer seus irmãos verificou-se concretamente na Igreja de Roma, tendo sido então assumida como tarefa permanente.'?" Se virmos assim o nexo entre a figura bíblica de Pedro e o ofício posterior de Pedro, faremos metodicamente uma via "média" entre uma infiltração dogmática de elementos estranhos nos textos bíblicos, de um lado (o perigo da apologética') e um confronto aparentemente "objetivo" da Bíblia e do ofício posterior de Pedro (o perigo da consideração meramente histórico-crítica'). Ambos os modos qe proceder não podem mostrar con­ vincentemente a legitimidade teológica do ofício de Pedro, porque não co­ locam fé e história em adequada relação recíproca. O primeiro método interpreta, sem considerar as grandes diferenças históricas, a compreensão dogmática, surgida muito posteriormente, do ofício de Pedro, introjetando­ -a na escritura de uma maneira que não está dada em sua própria compreen­ são historicamente examinável. O outro método colocou-se, de maneira igualmente a-histórica, como árbitro fora ou acima da evolução eclesial con­ creta e obviamente vê depois apenas a grande discrepância histórica entre o século I e o século V, sem levar em conta o possível nexo teológico. Em contrapartida, uma hermenêutica que quer fazer justiça à dialética histórica da identidade na mudança da Igreja penetra no processo histórico, sustentado pelo Espirita Santo, de interpretação da escritura dentro da Igreja. Ela partilha assim em princípio da perspectiva de fé da Igreja destes séculos e de sua nova interpretação da Sagrada Escritura, sem aí aprovar acriticamente todo e cada elemento, produzido pela história, no ofício de Pedro e em outras estruturas eclesiais, como fundado biblicamente e, em conseqüência, como "querido por Deus". No horizonte da recepção eclesial da Sagrada Escritura, a hermenêutica teológica tem uma vez mais a tarefa de fazer cri­ ticamente a pergunta acerca da verdade histórica e teológica, a saber, se, por exemplo, determinadas evoluções estruturais (precisamente em suas "conse­ 27. W Kasper, "Dienst an der Eínheir und Freiheit der Kirche", op. cit., 122. 302

qüências de longo termo") fazem justiça ao todo da vida e atividade de jesus e correspondem a seus critérios basilares (ver supra); ou também se elas se deixam introduzir convenientemente no tecido global complexo da communio, por exemplo na sua busca de consenso genuíno, marcado pela "unanimidade", de uma unidade diferenciada que possibilita a variedade, de uma fidelidade à tradição que se entenda responsável ao mesmo tempo pela tradução do Evan­ gelho na situação temporal em questão etc. Para poder responder adequada­ mente a tais perguntas e assim poder afirmar uma legítima "continuidade estru­ tural", abordamos primeiramente os testemunhos bíblicos sobre Pedro. b) Pedro no Novo Testamento (1) A figura histórica 28 : Simão Pedro integra, de acordo com os sinóticos

e a tradição joanina, o número do primeiros discípulos que jesus chamou para segui-lo, para "estar com ele " e (como "pescadores de homens") colaborar com ele na pregação do Reino de Deus e, conseqüentemente, na reunião do povo de Deus (Mc 1,14-20; jo 1,35-42). No seio do grupo dos Doze, Pedro, que recebe de jesus o apelido de Kephas = Petrus = Pedra, obtém clara posição de destaque: é sempre mencionado em primeiro lugar na enumera­ ção dos Doze (assim muito expressamente em Mt 10,2); faz parte do mais estreito grupo da confiança de jesus (Pedro, joão, Tiago); aparece com muita freqüência como porta-voz do grupo dos Doze (d. Mc 8,29.32s; 10,28; jo 6,68 etc.). A ampla difusão dessa tradição deve ser sinal de que aí o papel pós-pascal de Pedro não só é reconduzido a jesus, mas também reproduz o real estado histórico das coisas. Decisivo para o seu posterior prestígio na .Igreja das origens será o fato de que Pedro fez urna confissão expressa de fé em jesus como o Messias esperado de Israel (Mc 8,29)29. Pedro entendeu, com efeito, muitas vezes equivocadamen­ te o Messias sofredor (na transfiguração Mc 9.5s ou na prisão de jesus jo 18,10s); e até mesmo foi uma vez rechaçado por jesus, veementemente chama­ do de "satanás", "opositor" (Mc 8,33); e, enfim, ele o nega explicitamente na paixão. Mas, não obstante esse fracasso, Pedro "tornou-se simplesmente para a 28. Cf. a respeito especialmente R. Schnackenburg, "Díe Stellung des Petrus zu den anderen Apostei", em: A. Brandenburg-H. J Urban (eds.), Petrus und Papst 1, Münster, 1977, 20-35; R. E. Brown e outros (eds.), Der Petrus der Bibel, op. cit.; W Trilling, "Zum Petrusamt im Neuen Testarnent", op. cit.; R. Pesch, "Neutestamentliche Grundlagen des Petrusarntes", em: K. Lehmann (ed.), Das Petrusamt. Geschichtliche Stationen seines Verstandnisses und gegenwartige Positionen, Munique, 1982, 11-41; R. Pesch, Simon Petrus. Geschichte und geschichtliche Bedeutung des ersten ]iíngers ]esu Christi, Stuttgart, 1980. 29. Ainda que não tenha aproximadamente a mesma conseqüência histórica eclesial, não se pode esquecer ou se abafar estruturalmente na Igreja a confissão do Messias de Marta, a irmã de Lázaro, e Maria, que tem o mesmo teor verbal. 303


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tradição da Igreja das origens o tipo do discípulo: zelo ardente de fé, afirmação clara de sua extrema disponibilidade e, no entanto, pensamento humano, fra­ casso quando o perigo se torna iminente, mas também tudo isso sustentado pela conversão possibilitada pela recordação. A imagem que Pedro fazia de si mesmo devia se esfacelar para que se tornasse capaz de 'fortalecer seus irmãos' por mandato de Jesus e em seu lugar'?". Depois da Páscoa, Pedro muito cedo teve prestígio no cumprimento deste papel dentro da comunidade das origens. Deve ter contribuído para isso o fato de ter sido chamado pelo mais antigo querigma da ressurreição pré-paulino (lCor 15,5) de a primeira testemunha "oficial" do Ressuscitado. O que, porém, contra­ diz claramente as narrativas pascais dos quatro evangelhos, nos quais são em geral mulheres do grupo dos díscipulos de Jesus que vão ao sepulcro e daí são enviadas como as primeiras testemunhas e anunciadoras da mensagem pascal. Como quer que seja, o encontro de Pedro com o Ressuscitado (cf Lc 24.34) deve tê-lo destacado de modo especial entre os Doze (só ou em parte com João); ele surgiu como seu porta-voz e manifestamente foi a força propulsora na nova tentativa de reunir definitivamente Israel e levá-lo à fé no Evangelho de Jesus, o Messias confirmado por Deus (At 1,15; 2,14.37s; 3,4.12; 4.8; 5,3; 12,6ss). Daí se poderá concluir com bastante segurança que até o dia em que teve de deixar Jerusalém por causa da perseguição do rei Herodes Agripa I, cerca de 41 d.e. (At 12,17), ele foi o dirigente da comunidade hierosolimitana das origens. Em favor disso fala também o testemunho de Paulo na carta aos Gálatas, segundo a qual Pedro representava uma autoridade em Jerusalém (GI 1,18; 2,9). Mas Pedro desempenhou importante papel também na pregação missionária da fé; Paulo, por exemplo, chama-o de responsável pela missão entre os judeus (GI 2,8; d. também At 9,32.38). Mesmo para a missão entre os gentios, manifestamente proveio dele uma iniciativa decisiva (At 10); depois de partir de Jerusalém, Pedro agiu como missionário não só entre os judeus, mas também entre os gentios (At 15,7ss; l Cor 1,12; lPd 1,1; GI 2,l1ss). Quanto à sua posição teológica, seria melhor inseri-lo entre Tiago e Paulo. Tiago provavelmente defendia uma fidelidade mais rigorosa para com a lei entre os judeu-cristãos (d. Gl 2,12); também dele procederam no "concílio apostóli­ co" as exigências mínimas de cumprimento da lei por parte dos gentio-cristãOS (d. a assim chamada cláusula de Tiago: At 15,19ss). Paulo, em contrapartida, torna tão relativa a lei e conseqüentemente as diferenças entre judeu-cristãos e gentio-cristãos, que, para ele, a comunhão de mesa aberta entre esses dois grupos torna-se uma obviedade exigida pelo Evangelho (d. GI 2,12ss). Que a posição intermediária de Pedro podia ser muito conflitiva mostra-o o incidente em Antioquia, onde Pedro se embaralha e recebe uma admoestação pública de 30. R. Pesch, "Neutestamentlíche Grundlagen des Petrusamtes", op. cit., 19.

Paulo (2,14). Não sabemos como se resolveu o conflito. Talvez tenha Pedro encontrado um compromisso igualmente aceitável para judeu-cristãos e gentio­ -cristãos, o que em todo caso corresponderia a seu papel, consignado nos Atos, de mediador entre esses dois grupos (d. At 10; 11,1-18; 15.7-11). Pouco sabemos sobre a atividade ulterior de Pedro; segundo fontes extrabíblicas, ele chegou a Roma na época do governo de Nero (portanto, não antes de 54 d.C), sofrendo aí o martírio na perseguição contra os cristãos entre 64-67 (certamente por crucífixão: Jo 21,18s). Já a Primeira Carta de Clemente (cerca de 96) e as cartas de Inácio dão testemunho da atividade e morte dos dois apóstolos Pedro e Paulo em Roma. Desde o século II, os cristãos da comunidade romana estão convencidos de que o sepulcro de Pedro se acha na coluna vaticana (portanto, debaixo da atual basílica de São Pedro) e o de Paulo na estrada para Óstia. (2) A imagem de Pedro nos escritos do Novo Testamento: não admira que essa figura de Pedro, que se destaca como nenhuma outra na vida de Jesus e na Igreja das origens, receba ainda maior interpretação, também teologica­ mente, em numerosos escritos do Novo Testamento; em diversos aspectos, ele é considerado pelos primeiros crentes como modelo e tipo do discípulo, do apóstolo e do dirigente responsável da comunidade. Assim, ele aparece - a partir de sua origem e de sua vocação missionária - representado como "pescador de homens" a serviço do Evangelho (Lc 5,10; J o 21 ,3ss). Ele incorpora ao mesmo tempo o modelo do bom pastor, ao qual se confiam a pastoral e a direção da comunidade 00 21,15ss; lc 22,32; lPd 5,1ss). Na medida em que empenha sua vida nisso, ele se torna o modelo da testemunha de fé cristã e do mártir (At 4,8ss; 5,29ss; jo 21,18; l Pd A ele, como destinatário de uma revelação especial vinda de Deus, a qual lhe concede pro­ funda intuição de fé sobre o mistério de Jesus, cabe especial confiabilidade e autoridade (Mt 16,17; Mc 9,2ss; 2Pd 1,16ss; lCor 15,5; At 10,9-16). Mediante isso, ele se torna a "pedra de alicerce" da Igreja, que não pode ser vencida pelas forças de morte do inferno (Mt 16,18); o Senhor da casa, da ekklesia, confia a ele, como fiel administrador de Cristo, a "chave" do Reino de Deus, para nele introduzir os homens que desejam entrar (Mt 16,19; d. 24,45-47). A isso se liga também a atividade de "ligar e desligar" (ib.), ou seja - segundo modelo rabínico - , de interpretar o direito, a vontade de Deus para a comunidade com decisões jurídicas e doutrinais, até a exclusão de indivíduos da comunidade (cf também 2Pd 1,20s; 3,15s). Expressa-se aí manifestamente a consciência de muitas co­ munidades do tempo pós-apostólico de que Pedro em sua pregação era um "vigia da verdadeira fé contra doutrinas erróneas'?'.

s.n.

31. R. E. Brown e outros (eds.), Der Petrus der Bibe/, op. cit., 145. Este papel é cor­ roborado por outros importantes fatores: "A atribuição do Evangelho de Marcos a Marcos,

304 305


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Apesar desse alto prestígio, o Novo Testamento não glorifica absoluta­ mente a figura de Pedro: ele é apresentado abertamente também em sua fraqueza, em sua dificuldade de entender jesus e até em sua pecaminosidade. Também aí a Igreja primitiva vê uma imagem consoladora do seu próprio díscipulado: Deus chama mediante jesus não os justos, mas os pecadores dispostos à conversão e ao arrependimento (Mt 9,13); sobre eles e a partir deles, ele edifica sua ekklesia. Tampouco se permite reconhecer no Novo Testamento um destaque isolado de Pedro do grupo dos Doze, dos apóstolos. Assim, por exemplo para os Atos dos Apóstolos, do capítulo 13 em diante, para as deutero­ paulinas (Ef e Cl) e para as cartas pastorais, não é Pedro mas Paulo que se torna a figura decisiva da época da fundação apostólica da Igreja. Também aos outros discípulos, ou apóstolos, promete-se segundo Mt 18,18 o mesmo poder de ligar e desligar; também eles são enviados pelo Ressuscitado para o mundo inteiro (Mt 28,16ss); também eles são considerados fundamento permanente da Igreja (Ef 2,20; Ap 21,14); também os epíscopos e presbí­ teros posteriores são chamados sem nenhuma restrição de "pastores do re­ banho de Deus" OPd 5,2), sendo que precisamente em 1Pd se dá o título de "sumo pastor" exclusivamente a Cristo (e não a Pedrol) OPd 5,4). Na história das conseqüências bíblicas, a figura de Pedro já superou, com efeito, a de todos os outros discípulos e apóstolos quanto à força sim­ bólica e garantia da tradição. No entanto, o Novo Testamento oferece, por sua apresentação muito humana de Pedro, que erra e peca mas está disposto a se converter, e por sua inclusão no grupo dos/as) outros/as) dicípulos(as) de jesus, um insuperável corretivo contra todas as tendências não-bíblicas de uma glorificação de Pedro e de um isolamento dele ou de seu serviço na Igreja posterior. c) Sinais de uma "continuidade estrutural"

O) A diferença históJica: voltamos à nossa pergunta sistemática de par­ tida; antes, porém, de mostrar positivamente as linhas de ligação entre o Novo Testamento e a compreensão do ofício de Pedro desde os séculos IV e V, é preciso apontar as grandes diferenças históricas. o hermeneuta de Pedro, coloca a tradição básica de Jesus sob a autoridade de Pedro; o uso de Pedro como o transmissor decisivo da revelação no Evangelho de Mateus, que se tornou o Evangelho mais utilizado, tem em conjunto mais conseqüência do que a atribuição deste escrito ao apóstolo Mateus; na dupla obra lucana, cabe a Pedro o duplo papel de testemu­ nha ocular desde o início e de servo da palavra na pregação apostólica e, sendo assim, de garante da continuidade básica da tradição". Assim R. Pesch, "Neutestamentliche Grudlagen des Petrusamtes", op. cit., 33s.

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Em primeiro lugar: é historicamente improvável que Pedro tenha sido na comunidade romana "bispo" no sentido do episcopado monárquico (= que governa sozinho) defendido por Inácio de Antioquia; pois, de acordo com o testemunho da Primeira Carta de Clemente e das cartas de Inácio, até o século II não havia em Roma essa instituiçã0 32. Deve-se antes supor que Pedro era no colégio de presbíteros um "<TU/.17Tpsa{3ÚTepo<;" (co-presbítero) à maneira de um "primus inter pares"; assim em todo caso o expressa a primeira Carta de Pedro como autodesignação de Pedro diante dos presbí­ teros da Ásia Menor OPd 5,1). Em segundo lugar: donde se deve concluir que não deve ter havido em Roma até o século II nenhum "sucessor" de Pedro ou de Paulo como um bispo "monárquico". Somente no fim do século II (por exemplo, Ireneu, Hegesipo, Tertuliano) é que ganha importância a idéia de "sucessão apostó­ lica" na Igreja, quando se tratou de acentuar, contra a tradição esotérica dos gnósticos, a tradição pública, acessível a todos e historicamente assegurada, da fé cristã. Para isso, fixaram-se as listas mais importantes de "bispos" das Igrejas locais que se atribuíam aos apóstolos e que teriam sucedido aos apóstolos na respectiva Igreja; essas listas visavam garantir a continuidade da tradição da fé. Aí sem dúvida cabia à Igreja romana e a seu bispo especial "posição de primazia" (Ireneu: "potentior principalitas"). Em terceiro lugar: a "sucessão apostólica" do bispo romano na sucessão do apóstolo Pedro referia-se na consciência de toda a Igreja (abstraindo de pretensões romanas ulteriores), até o século V, somente à direção da Igreja romana, com a qual estar em comunhão era também por isso especialmente decisivo (ver supra). A idéia da sucessão no ofício de Pedro propriamente dito, que se sabe responsável pela direção jurídico-vinculadora da Igreja universal, somente em Leão Magno veio a ganhar relevância eclesial-univer­ sal. "Se se perguntasse a um cristão pelos anos 100, 200 ou também 300,

se o bispo de Roma era o chefe de todos os cristãos, se existia um bispo

supremo que estivesse acima de todos os outros bispos e que teria a última

palavra em questões que afetassem toda a Igreja, ele teria com certeza res­

pondido que não."33 (2) Identidade na diferença: sem saltar por sobre essas grandes diferenças históricas, permite-se todavia mostrar suficientes pontos de partida no Novo Testamento que fundam, com referência ao posterior ofício de Pedro (obvia­ mente sem seus exageros e desvios), uma "continuidade estrutural", no sen­ tido de uma conseqüência histórica e teologicamente legítima. Em primeiro lugar: já nos tempos do Novo Testamento, Pedro foi con­ siderado por muitas comunidades como o decisivo garante da tradição da 32. Cf. R. Pesch, op. cit., 36. 33. K. Schatz, op. cit., 14.

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verdadeira mensagem de Jesus. Desde o anúncio do Reino de Deus por Jesus, a palavra do Evangelho está ligada ao testemunho de pessoas concre­ tas (ver anteriormente); ela não continua a viver primeiramente em escritos sagrados, e sim mais originariamente em pessoas determinadas, enviadas para pregar com autoridade. Quando as comunidades dos tempos pós-apos­ tólicos apelam expressamente a Pedro, que já estava morto na época do " surgimento de muitos escritos do Novo Testamento, estão recorrendo a esse princípio pessoal da transmissão da fé. Assim eles também autorizam em princípio a Igreja de épocas posteriores a se ligar a sua maneira, por causa da fidelidade para com o Evangelho, a determinadas testemunhas, concreta­ mente: aos bispos das diversas Igrejas e especialmente ao bispo de Roma.

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uma autoridade de decisão juridicamente vinculadora. "O serviço de Pedro é (portanto) não só sinal representativo, mas também sinal sacramental­ -eficaz da unidade da Igreja. "34 Tudo depende - da mesma forma que em cada ofício eclesial - de que, em sua estrutura e em seu exercício concreto, se torne transparente a força unificadora e diferenciadora, vinculadora e libertadora do Espírito Santo. Com base neste critério, vamos abordar a evolução posterior da communio e do ofício eclesial de Pedro.

Em segundo lugar: a larga ressonãncia que a pregação de Pedro encon­ trou nas diversas comunidades da Igreja das origens constitui o ponto de partida para estabelecer um centro supralocal de orientação, tal como o encon­ trou a Igreja posterior nas "sedes apostolicae" e sobretudo em Roma. Em nenhum tempo uma Igreja local foi tão autárquica em sua fé que não de­ vesse se ligar às outras Igrejas e à sua communio. Neste ponto, houve, já no começo da Igreja, vários graus de normatividade de tais autoridades supra­ -regionais. Paulo estava para a região das comunidades por ele fundadas, como Jerusalém e os apóstolos de Jerusalém estavam, junto com os presbí­ teros, para todas as demais comunidades. Depois da destruição de Jerusa­ lém, essa função eclesial-universal passou com o tempo para a comunidade de Roma, o que depois, a partir dos sécs. IV e V foi uma vez mais concre­ tizada pessoalmente e referida ao bispo dessa cidade. Que aí também esta­ vam em princípio implícitas medidas juridicamente vinculadoras, pode ser fundamentado com base no poder de ligar e desligar prometido aos discí­ pulos, sobretudo a Pedro, no Novo Testamento. Em terceiro lugar: a Pedro coube manifestamente na Igreja das origens um papel mediador entre judeu-cristãos e gentio-cristãos. Não apenas por­ que missionou nos dois campos, mas também porque deve ter sido em sua pessoa e em sua pregação um laço criador de unidade na evolução, cheia de conflitos, destes dois grupos rumo a uma só Igreja de "judeus e gentios". Este serviço à unidade, decisivo para a Igreja universal, permaneceu presen­ te - de outra maneira - para a Igreja antiga precisamente na comunidade de Roma e no seu bispo. Como o centro da communio, coube a Roma desde muito cedo uma posição responsável pela unidade da Igreja universal nos diversos conflitos doutrinais e disciplinares. É óbvio que isto, conforme o Evangelho, só pode acontecer segundo o modelo do bom "pastor" e na forma de serviço desinteressado. Mas assim como amor e direito não envolvem contradição em princípio, assim também o serviço à unidade, enraizado na communio, do ofício de Pedro não exclui 34. W Kasper, "Dienst an der Einheit und Freiheit der Kirche", opl'cít., 129'.

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