Gelineau j o amanhã da liturgia

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Titulo originai Olllmaln la IIturgle Essal sur I'évolution des assemblées chrétlenn88

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Les I:dltlons du Cerf. Paris.

APRESENTAÇAO à Edição brasileira

1976

Traduziu Ir. Isabel Fontes Leal Ferreira

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Gelineau não tem necessidade de apresentação. Este volume, no entanto, provoca muita meditação sobre a personalidade deste grande homem da Liturgia. "Ontem, hoje, amanhã" ­ título do primeiro capítulo ­ parece ser a dinâmica e a espiritualidade do autor. Liturgista antes, durante e depois do Concílio Vaticano II, agora Gelineau mostra outras facetas de seu amplo horizonte mental. Desde os "SALMOS de Gelineau" até o manual teológico-pastoral "EM VOSSAS ASSEMBL~IAS", sempre aparece aquele amante apaixonado que não cessa de descobrir sua bem-amada, soem deixá-la envelhecer! Não houve apenas uma admiração dos ritos exteriores. A renovação litúrgica, para o Autor, não consistiu na mudança de livros: foi no próprio íntimo do coração da Liturgia que o Pe. Gelineau penetrou. O conceito e o sentido de sua bem-amada foi reformulado, cresceu, ganhou novos horizontes. Nosso autor contempla cuidadosamente a Liturgia, descobre-lhe os mais íntimos e essenciais segredos; a seguir, desvela-os com prudência, sabedoria e curio­ sidade. '1(

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Neste volume o Pe. Gelineau não se mostra apenas músico e liturgista;

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Delc-Celam, mostrando os ingentes trabalhos que restam ser feitos. Constatou-se, em âmbito de América Latina, - muitas mudanças de ritos, com pouca mudança de mentalidade; - não se conseguiu ainda uma adaptação adequada da liturgia às várias e diferentes culturas; - nem sempre o Bispo exerce seu papel de moderador, animador, orientador em matéria de liturgia; parece limitar-se a coibir "abusos" sem analisá-los nem oferecer alternativas; - a liturgia não foi, eficazmente, integrada na educação religiosa.

- A liturgia de amanhã, vai ser. uma liturgia legitimamente diversificada, atendendo aos princípios da criatividade e da disciplina, sempre dentro da comunhão eclesial. - A liturgia está exigindo uma formação mais adequada para que haja mais CELEBRANTES e não meros executores de ritos válidos. - A liturgia será engajada e comprometida tanto com o Mistério pascal do Cristo na vida do povo - realidade invariavelmente presente na celebração ­ como com a tragédia da vida dos homens neste continente - realidade variante de cada celebração e peculiar de cada assembléia concreta ­ na esperança de ser integrada e redimida no Cristo. - A liturgia será obediente numa dimensão de diálogo que inclui Bispo, presidentes e povo. Só assim a Igreja se tornará toda ela celebrante e a celebração se tornará uma realidade da Igreja. - A liturgia exige normas para a unidade, mas igualmente pleiteia, com justiça e clamor de verdade, uma real adequação às assembléias concretas,

conforme a índole dos povos e as características dos grupos.

- A liturgia será sempre ligada à Palavra de Deus, mas levará a sério os fatos da história da vida do povo para serem transfigurados à luz desta mesma Palavra. - Enfim,

o mistério de Cristo tem algo de imutável e sempre será este mistério que a Igreja celebra em sua liturgia histórica; mas a vida da comunidade que celebra sempre será mutável, e é esta vida que deve ser integrada na liturgia para que o povo se torne participante do Mistério do Cristo. Esses dois pólos norteiam o futuro da liturgia fiel ao Vaticano II e ao Espírito.

Isso tudo sig ....ifica que temos muito a fazer (Cf. Boletim Informativo, Dele; e também a publicação El Medellín de la Liturgia, Dele).

o próprio Cardeal Tabera, então presidente da S. Congregação para o Culto Divino, dizia, em 1972, na reunião dos Presidentes e Secretários

das Comissões Nacionais de Liturgia da América Latina:

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"Penso que este Medellin, hoje famoso em toda a Igreja como poucos nomes o são

- porque sempre se faz referência a Medellín, aos documentos de Medellin, à reunião de Medellín adquire nova dimensão: porque espero que desta reunião

e de tudo o que dela se seguirá, se vá falar' de 'O MEDELLIN DA LITURGIA' ". Uma coisa é certa: a Liturgia está caminhando para novos rumos. Repetidamente se tem afirmado, em âmbito de reuniões significativas, que a Liturgia autenticamente fiel ao espí­ rito do Vaticano II está se enveredando para um futuro novo:

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PREFÁCIO

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o presente volume, de origem francesa, embora não se ocupe diretamente destes problemas

nossos,

traz luzes orientadoras para uma realidade

que muito se assemelha à nossa.

Com efeito, os séculos de uma liturgia imobilista

criaram no mundo inteiro, situações semelhantes. Há também entre nós, como na França e no mundo: "Aqueles que vão à Igreja para descobrir o sentido de Deus e da vida humana que vivem; há os que procuram as celebrações para melhor conhecerem Jesus e seus ensinamentos; há os que celebram a liturgia para participar de modo ativo, consciente e eficaz deste mistério do Cristo morto e ressuscitado, presente para dar fisionomia divina à comunidade humana, com suas realidades: querem fazer nascer a Igreja, construir o Reino".

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Que a leitura deste volume, abra o coração de tanta gente temerosa, ilumine a esperança de uma Liturgia viva, capaz de "atrair para aquele que foi levantado a multidão de quantos lutam no dia-a-dia de uma história que está prenhe de Salvação".

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Advento de 1976

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Este livro me foi pedido pelo seu editor. Parecen­ do-me a tarefa vaga, pretensiosa e bastante arriscada, primeiro recusei-me. Depois refleti que, no momento que atravessamos, em que se processa a evolução das assembléias litúrgicas na Igreja católica, havia algo a dizer. Verifiquei que eu estava em condições de dizer determinadas coisas. Pensei que isto podia ser de algu­ ma utilidade para muitos de meus confrades pastores e de meus irmãos cristãos. Nas questões que abordo, dou minha opinião e assu­ mo os riscos. Daí o emprego freqüente da primeira pes­ soa. J:: por honestidade. Não pretendo nem enunciar "a" verdade, nem programar uma política pastoral. So­ mente os responsáveis que vivem cada situação estão aptos a tomar decisões. Diversas hipóteses, porém, tal­ vez até utopias, podem ampliar o campo das orientações que adotam. Deliberadamente encarei a situação francesa. Mui­ tas questões abordadas ultrapassam as nossas frontei­ ras. São outros lugares, outros caminhos. Mesmo tra­ tando-se da França, não pude, em cada caso, levar em conta a diversidade de situações: grandes paróquias ur­ banas e pequenas paróquias rurais; ambientes de tradi­ ção cristã e Igreja em estado de missão; comunidade de zona em expansão socioeconômica, ou zona agrícola em retrocesso etc. Delineei diante dos olhos alguns quadros. Para situações que se afastem demais do modelo ado­ tado, esta ou aquela de minhas proposições pode não ser muito válida. Eu utilizo alguns dados da his tória e das ou tras ciências humanas a serviço da teologia. Com isto, entre­ 11


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tanto, não acho que tenha feito obra de historiador ou de sociólogo. Dentro do gênero "ensaio", aqui empre­ gado, lanço mão do que possa esclarecer o meu intento, e, reservadamente, de detalhes mais precisos extraídos de obras especializadas. Este livro não contém uma exposição metódica das questões abordadas. Ele faz seleções. Os capítulos são gavetas, em que arrumo o que pretendo dizer. Como paliativo da aparente falta de ordem lógica, coloquei, no início de cada capítulo, um sumário do seu conteúdo. As referências foram reduzidas ao mínimo. Não há notas nem bibliografia. Não que todas as idéias avan­ çadas sejam minhas. Pelo contrário, a maior parte delas são fruto de intercâmbio e de diálogo. Se algumas formulações causam impacto, visam a podar e não a corroer. Meu intuito não é destruir. mas edificar; não é condenar maneiras de fazer - e muito menos pessoas - antigas ou atuais, mas o de ser uma voz "concertante" dentro da Igreja, que creio Serva e Esposa de Jesus Cristo, animada por seu Espírito, e em quem reconheço minha mãe.

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J.G.

ONTEM, HOJE, AMANHÃ

A renovação litúrgica contemporânea: esperanças e inquietações - As vésperas do Concílio: um edi­ fício grandioso e rachado - Prosseguimento da re­ forma: desmoronamentos espetaculares - Mudanças preparadas de longe - Restauração efetuada pela autoridade central - O método empregado e seus limites - Urgência para a liturgia de encontrar sua físíonomía local.

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O que será a liturgia dos cristãos, dentro de uma ou duas gerações, ninguém pode descrever. Pode-se, porém, supor que as mudanças de ritos que se vêm realizando de dez anos para cá na Igreja católica romana sejam apenas o prólogo de mutações mais profundas no com­ portamento dos agrupamentos cristãos. Ser-nos-á possível apresentar desde já algumas orien­ tações? descobrir os impasses em que correm o risco de engajar-se nossas práticas atuais? descobrir na copa frondosa de tradições veneráveis, cujas riquezas no en­ tanto por vezes nos paralisam.. os ramos que devem viver e crescer porque nos trarão verdadeiros frutos evangé­ licos? esboçar alguns dos novos traços que nossa época não deixará de trazer à fisionomia da Igreja em oração? A finalidade das páginas que se seguem, mesmo com riscos e perigos para mim, é a de antecipar alguns ele­ mentos que contribuem para responder a tais perguntas, ainda que de modo parcial 'e incompleto. Depois de uma longa - demasiadamente longa ­ estagnação das formas litúrgicas, a reforma decidida pelo Concílio Vaticano II deu início ao degelo. Mas as águas, contidas por muito tempo, como seria de espe­ 13

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a morte. Houve tempo em que a Igreja se para ajustar sua fisionomia a seu ser em mutação, como o ser vivo que modifica continuamente as formas de seu corpo. A mudança litúrgica, porém, roi tão repentina e é tão radical, que se pode falar de crise. Alguns julgam que a reforma litúrgica em curso já modificou profundamente a vida da Igreja católica ro­ mana. Outros se espantam de que ela tenha produzido até agora tão poucos resultados: removeram-se certos entulhos, demoliram-se velhos muros, mas ainda não se vê delinear-se o novo edifício das assembléias em ora­ ção. Essas duas opiniões são sem dúvida fundamenta­ das. Um rápiuo olhar sobre o passado nos ajudará a apreender melhor a jogada de hoje e as tarefas de amanhã. O imenso edifício dos ritos romanos parecia, às vés­ peras do Concílio, poder ainda enfrentar séculos. Pelo menos, assim o pensava a maioria dos católicos, bispos ou fiéis. Lentamente construído pela vida das Igrejas locais e pela comunicação de seus usos particulares, pouco a pouco unificado depois do Concílio de Trento e estendido a toda a Igreja romana, cada vez mais sobrecarregado de prescrições e proibições minuciosas pelos rubricistas, ideologicamente valorizado pela renovação da piedade litúrgica a partir de dom Guéranger e de são Pio X, fortemente mantido pela edição dos livros litúrgicos, apenas normativos e todos seguindo à risca um modelo único, ilustrado pelas pesquisas históricas dos sábios, comentado pelos autores espirituais, difundido pelos mis­ sais em uso entre os fiéis, esse edifício parecia resistir a qualquer prova. No entanto, ele estava gravemente rachado. O aspecto absoluto da rubrica que se observa cega­ mente, mesmo quando não se entende, mesmo quando G

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fere o bom senso, pode manter-se durante um certo tempo e até um certo ponto, apelando-se para a "obe­ diência à Igreja" e por causa da carga de "sagrado" que afeta naturalmente o rito. Mas, quando tais prá­ ticas chegam a abafar a oração, ou atingem um deter­ minado grau de absurdo, acabamos lembrando-nos de que se o sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado, também os ritos são para os homens e não os homens para os ritos. Quando uma crítica assim começa a instaurar-se - quer se trate das regras para o jejum eucarístico, quer das sete peças com que o bispo tem de paramentar-se ou da incompreensibilidade do latim - o processo já não pode parar mais. Quando a Constituição sobr·e a liturgia recorda que esta é feita de sinais que devem "significar", todo rito volta a ser relativo a seu sentido. O absoluto da rubrica está rom­ pido. l:1 então que desabam colunas inteiras. A mais espe­ tacular é a da língua latina, à qual estava ligado o reper­ tório do canto, da qual dependia, por sua vez, o desen­ volvimento temporal (verbal, sonoro, cerimonial, visual) de um ofício, em que o conjunto formava a imagem global de um rito. Não nos enganemos neste ponto: tra­ duzir não é dizer a mesma coisa com palavras equivalen­ tes. l:1 mudar a forma também. Ora, a liturgia não é apenas uma informação ou um ensinamento em que só importam os conteúdos. Ela é uma ação simbólica que utiliza "formas" significativas. Se as formas mudam, o rito muda também. Se um elemento é mudado, a tota­ lidade significativa fica modificada. Que aqueles que, como eu, ainda conheceram a missa solene cantada em latim e em gregoriano, se recordem disso se puderem. Que a comparem com a missa atual, a de depois do Vati­ cano II. Não somente as palavras, as melodias e alguns gestos são outros. Na verdade, o que temos é uma outra liturgia da missa. l:1 preciso dizê-lo sem subter­ fúgios: o rito romano tal como o conhecemos antes não existe mais. Foi destruído. Os muros do primeiro edi­

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Iício ruíram enquanto que outras partes mudaram de aspecto, a tal ponto que ele hoje se nos apresenta ora como uma ruína, ora como a infra-estrutura parcial de um outro edifício. Não se trata de chorar sobre as ruínas, nem de so­ nhar com a reconstituição histórica. A renovação litúr­ gica é um sintoma de querer-viver por parte da Igreja ­ como também a renovação missionária ou a renovação bíblica. Quando há pobres que morrem de fome porque ninguém lhes oferece o pão da Palavra, é porque algu­ ma coisa resta a fazer. Quando conhecemos quais os tesouros de esperança que a liturgia contém, mas ao mesmo tempo constatamos que a "chave da ciência" foi retirada e que se "impede de entrar aqueles que quere­

riam fazê-lo" (cf, Lc 11,52), ~emos de abrir novas vias

de acesso às fontes da vida, sob pena de incorrer nas

maldições de Jesus aos fariseus.

Seria, entretanto, falso identificar essa renovação litúrgica com a reforma dos ritos decidida pelo Vati­

cano II. Esta reforma vem de muito mais longe e vai

muito além. A liturgia é uma atividade permanente.

O fato de que os ritos, depois de uma fase de elabora­ ção intensa (séculos IV-V), depois dos períodos de com­ pilação seguidos de relativa estabilização, tenham chega­ do finalmente a uma estagnação quase completa não significa o termo de sua evolução. Foi no próprio con­ texto da fixação pós-tridentina que aos poucos se veio preparando a renovação atuaI. Os eruditos dos séculos XVII-XVIII descobrem as liturgias antigas oe interessam-se pelos ritos orientais. O rito romano em vigor toma então a feição de um estado e de um momento do culto cristão. Ele não é o mais perfeito possível em todas as suas partes. Discute-se, por exemplo, a oportunidade do cânon da missa dito em voz baixa. No século XIX, a corrente representada por D. Guéranger revela uma convicção essencial: pode-se rezar usando os textos litúrgicos; eles são capazes de alimen­ tar a fé e a contemplação. No início do século XX, D.

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Lambert Bauduin dá um passo além: a riqueza espiri­ tual da liturgia não pode ficar reservada a uma elite culta e capacitada para ler o latim e compreender o sentido dos ritos à luz da história. Ela precisa ser acessível ao conjunto do povo cristão na missa do do­ mingo. Entrementes, são Pio X facilita a todos o acesso à comunhão freqüente. Que longo caminho foi percor­ rido desde que o 4? Concílio de Latrão (1215), diante de um abstencionismo generalizado, teve de impor aos batizados a obrigação grave de comungar uma vez por ano! Ou ainda em relação ao uso dos devotos da idade moderna que obtinham do confessor a permissão para comungar uma vez por mês ou, no máximo, uma vez por semana. Seguiu-se depois a advertência de que a co­ munhao constituía uma das partes essenciais da missa e de que não era fora da missa mas dentro dela que con­ vinha comungar. Começava-se a redescobrir que a euca­ ristia tinha sido instituída por Jesus sob o sinal de uma refeição. Em outra linha, uma evolução importante se deli­ neava. Desde a idade média, a liturgia era uma ação principalmente clerical a que o povo assistia. Mesmo os cantores ou crianças do coro deviam ser assimilados aos clérigos como ministros do culto. Pouco a pouco os batizados foram reaprendendo que eles também esta­ vam "habilitados ao culto", que não eram simples espec­ tadores passivos e mudos, mas participantes ativos da celebração. O símbolo dessa tomada de consciência foi a generalização, depois dos anos 30, da "missa dialo­ gada", conquistada não sem luta junto aos rubricistas. Os trinta anos que precederam o Concílio viram fermentar todos esses germes. Foi a "renovação litúr­ gica" que Pio XI I chamou de uma "passagem do Espí­ rito Santo em sua Igreja". Então, quando ainda não se havia tocado na lei litúrgica, procurava-se por todos os meios um modo de utilizar a língua do' povo nas leitu­ ras bíblicas, de traduzi-Ias de maneira acessível, de tor­ nar participantes as assembléias através do canto e do

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diálogo, de explicar o sentido dos ritos e das orações, de colocar a celebração dos sacramentos no coração da liturgia. Muitos dos cantos franceses que, ainda atual­ mente, formam o fundo comum do repertório das assem­ bléias datam dessa época. Sem essa efervescência e essas longas preparações, a reforma do Vaticano II não teria sido possível e não teria tido sentido. Os Padres do Concílio admitiram que era preciso adaptar a liturgia às condições de nosso tempo (Const.

Lit. 1) e votaram a Constituição sobre a liturgia, do­

cumento sobre a reforma que se seguiria. Evidente­

mente que eles fizeram isso dentro da perspectiva jurí­ dica em vigor, segundo a qual tudo o que se refere à liturgia depende exclusivamente da Sé Apostólica. Adrni­ t~ram, não obstante, que tal reforma podera acarretar a diversidade de alguns usos conforme os lugares e as culturas. Para tanto, concedeu-se às Conferências Epis­ copais um certo poder (Const. Lit. 39-40). Mas essas digressões, que se afastassem da norma geral, deveriam ser precedidas de experiências controladas e ter sempre a autorização prévia do poder necessariamente unifica­ dor. Nessas condições, a reforma imediata de todos os "Livros" litúrgicos só podia ser preparada por uma comissão com mandato para tal - composta de especia­ listas sob o controle de um conselho de 40 bispos do mundo inteiro - depois promulgada para toda a Igreja pelas instâncias competentes. Os especialistas que prepararam o documento con­ ciliar e os que executaram o trabalho de reforma dis­ punham de triunfos sérios. De um lado numerosas gera­ ções de .sábios. historiadores, exegetas, teólogos e Iitur­ gistas tinham acumulado uma considerável quantidade de trabalhos, permitindo, por uma volta às fontes e um estudo comparativo ,dos ritos, apreender melhor o que a Igreja, na sua liturgia, pretende significar e fazer viver. Eles podiam razoavelmente julgar que estavam transmitindo o melhor das riquezas da tradição litúr­ gica. De outro lado, a reflexão pastoral subjacente à 18

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renovação litúrgica contemporânea fornecia um certo número de observações sobre as necessidades e as capa­ cidades de nossos contemporâneos em matéria de vida litúrgica, como o desejo de compreender, um certo gosto pela simplicidade, a expectativa de uma participação efe­ tiva e a resistência em face de símbolos ultrapassados. Ao rever os ritos, os especialistas tencionavam levarem consideração tais necessidades e limites. Foi assim que se elaboraram sucessivamente o novo missal, os novos rituais dos sacramentos e a nova litur­ gia das Horas. Trata-se de celebrações completas, in­ cluindo o desenvolvimento detalhado das ações e dos textos previstos in extenso - embora com algumas va­ riantes e escolhas possíveis, o que não se conhecia antes. Alguns terian. preferido uma lei esquemática, adaptável às circunstâncias. Mas um esqueleto não dá a imagem de um indivíduo vivo. Para que uma ação litúrgica seja significativa, é preciso que tenha todos os seus sinais e símbolos. Somente um espírito mal humorado pode queixar-se de que a noiva esteja muito bela. Como lamentar a riqueza sem precedente do ledo­ nário, do missal ou da liturgia das Horas? Malgrado tudo o que a reforma evidentemente trou­ xe de positivo, malgrado o acolhimento geralmente favo­ rável que o povo cristão lhe ofereceu nas diversas regiões do mundo, temos de reconhecer que a satisfação não foi completa. Por certo, nenhuma liturgia jamais será perfeita. É forçoso, porém, admitir que o método em­ pregado - sem dúvida o único possível nesse momento de evolução - não podia corresponder a todas as exi­ gências do empreendimento. Se pedíssemos a um cos­ tureiro para fazer uma veste universal, que pudesse ser usada por todos os indivíduos da espécie humana, ou de faria o hábito ideal que por definição não conviria a ninguém, ou deixaria no seu modelo tantos ajustes a serem feitos que dele se poderiam tirar as mais dife­ rentes vestes. Ou antes, já que a liturgia é destinada a grupos, se um arquiteto quisesse preparar as plantas de 19

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uma casa que servisse de habitação a qualquer família do globo, teria de tomar algum "partido" quanto ao tipo de moradia, a dimensão, o material. o estilo, o preço de venda, e não poderia espantar-se de que. depois que seus planos se concretizassem por meio do trabalho de em­ preiteiros do lugar, não servissem para todos nem ficas­ sem do gosto de todos. Como todas as comparações, essas também claudi­ cam. Mas podem ajudar-nos a apreender de um modo geral - antes de encarar os problemas com mais deta­ lhes - o que uma reforma inevitavelmente preparada por uma comissão e imposta por via de autoridade a todas as assembléias do mundo conseguiria fazer ou não conseguiria fazer de todo. A reforma forneceu essencialmente estruturas, ele­ mentos e conselhos pastorais. Assim, para a missa, te­ mos uma estrutura de conjunto com um rito de aber­ tura, uma liturgia da Palavra etc., e estruturas de deta­ lhe para cada uma das partes. A seguir, temos os ele­ mentos: as leituras, as orações, os cantos, as procissões, de que se compõem as diversas partes. Finalmente, temos preciosas observações sobre o sentido de cada rito. Ora, isso não constitui uma liturgia. isto é, a ação simbólica concreta de uma determinada assembléia. Quando se sabe que uma casa tem dois andares, com uma sala de estar e uma cozinha no térreo, quartos de dormir no primeiro. um sótão no segundo (estrutura) e que há mesas, camas, cadeiras etc. (elementos), não se sabe se a casa é bela, agradável, se ela é o "lar" em que uma determinada família gostaria de viver. Isto vai depender das proporções, do estilo, dos materiais, da disposição... Pode-se ter o melhor ou o pior. Com o mesmo "programa" da missa de um domin­ go apresentado de acordo com O missal de Paulo VI, pode-se chegar a celebrações bem diferentes. Dir-se-á que isto não é novidade e que, mesmo na era rubricista, sempre houve boas ou más celebrações. De certo. Mas

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o que aqui é absolutamente novo é a relação entre a lei e a vida. Em matéria de liturgia, até o Vaticano II, primeiro se celebrava. Depois nasciam os usos; em se­ guida vinham as leis para dizer os que eram bons ou maus; colecionava-se em livros o que parecia ser o me­ lhor, e esta prática viva acabou por tornar-se uma regra. As assembléias celebrantes tinham uma fisionomia que se podia descobrir delineada nos livros litúrgicos. Com o Vaticano II passou-se a fazer o inverso. Primeiro foram feitos os livros. E é segundo um retrato-robô que se deve imaginar e moldar a fisionomia de uma celebra­ ção; de acordo com planos de construção "pré-fabrica­ dos" que se deve tornar a casa habitável. O que torna uma liturgia viva e significativa, não são a sua estrutura e os seus eleme-vtos, é seu estilo, a maneira humana de comportar-se nela. Numa liturgia oriental há muitos ritos de entrada, uma liturgia da palavra com leituras e cantos, uma oração eucarística e os gestos da refeição do Senhor. Mas há também uma determinada maneira de adorar, de cantar, de visualizar a ação, em uma palavra, de significar o mistério, que depende do grupo, de sua cultura, de sua sensibilidade religiosa. E tudo isto converge para uma celebração que nos parece totalmente diferente da nossa - muito mais do que acontece na realidade. E impressionante ver que aquilo a que se prendem mais os que estão habituados a um certo tipo de litur­ gia - tradicional ou nova - é constituído, na maioria das vezes, de detalhes que parecem sem importância ao teólogo liturgista: uma melodia, uma forma de incensar, um ícone, um badalar de sino, uma formulação etc. Pois, quando se ama uma mulher que se acha bela, não é porque ela tem uma cabeça, braços, um corpo e per­ nas, mas porque ela tem aqueles olhos, aquele contorno de lábios, aquele tipo de cabelos. ~ a individualidade, a diferença que dá o toque especial. Evidentemente, os livros litúrgicos reformados não podiam dar aos ritos um rosto, uma carne viva, uma

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cor, um estilo: só as assembléias concretas é que podem fazê-lo. Posições, gestos, dança, voz, canto, poesia, mú­ sica, vestes, imagens, edifícios, são a carne e o rosto da liturgia que só pode existir encarnada num grupo, num lugar, num tempo, numa cultura. Toda essa parte da reforma litúrgica ainda está por ser feita. Ela não é acessória. É essencial aos "sinais", ao dispositivo simbólico em que consiste a celebração. Seria um erro pensar que se trata apenas do reves­ timento sensível de ritos cristãos que já têm por si mes­ mos sua consistência e sua permanência - em outras palavras, achar que os livros reformados nos dão a subs­ tância e o conteúdo - ficando a cargo dos diferentes países e de suas comunidades o ver em que língila, com que música e com que compor-amentos corporais os diversos elementos rituais podem ser praticados. Quan­ do se trata de sinais simbólicos, no rito como na arte, forma e conteúdo são inseparáveis. A forma é também uma mensagem. Não temos, portanto, de um lado os livros refor­ mados pelo Vaticano II e de outro a sua transposição à prática. Quando esta muda, a liturgia não diz mais lia mesma coisa". Uma oração latina não diz a mesma coi­ sa quando é traduzida em português, francês ou chinês.

Um versículo de salmo não diz a mesma coisa se cantado

em gregoriano segundo a restauração de Solesmes, ou se entoado como responsório no ritmo de Camerum com balafo e dança. A transposição à prática local sempre modifica sob algum aspecto o modelo promulgado. Mes­

mo as estruturas, os elementos e os intuitos pastorais do

modelo são afetados.

:e tão importante dar-se conta disso como perceber que o modelo fornecido pela reforma é neutro. Ele foi elaborado num contexto cultural particular, em parte proveniente da tradição da Igreja - a latina sobretudo - mas revisto por uma mentalidade ocidental do século XX, esta também fortemente marcada por procedimen­ tos particulares de origem eclesiástica, burguesa, esco­

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lástica, literária, e pela sensibilidade religiosa de uma determinada área eclesial, . Convém, pois, aguardar para ver se os ritos cristãos se enraízam de fato nas diferentes culturas, de modo que a expressão litúrgica da fé, e a própria fé, adqui­ ram uma fisionomia, um estilo, uma personalidade mais individualizados. Este processo pode afetar toda uma zona cultural se esta for bastante homogênea, mas pode também atingir assembléias locais nas regiões de cul­ tura adiantada. Aliás, não é assim que se manifesta a catolicidade da Igreja? Não é na sua liturgia que a Igreja manifestará melhor que ela não é nem judaica, nem grega, nem oci­ dental, nem latina, mas africana com os africanos e chinesa com os chineses? E, entre nós, como é ela então, e como pode ser?

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A liturgia tornada para muitos o sinal quase exclu­ sivo de pertença à Igreja - Evolução histórica do papel da liturgia na vida da Igreja - Generalização e isolamento dos atos sacramentais máximos - Em­ pobrecimento das outras formas de culto - Consu­ mação de missas e caridade evangélica.

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Nunca a Igreja, desde que existe, celebrou, sem dú­ vida alguma, tantas missas nem administrou tantos sa­ cramentos como em nossos dias. Inversamente, os cris­ tãos talvez jamais tenham tido tão poucos meios para demonstrar que pertencem à Igreja, a não ser partici­ pando das celebrações litúrgicas - sobretudo da missa dominical. Esse fenômeno duplo, enquanto de certa maneira valoriza a liturgia, coloca-a, ao mesmo tempo, de forma bastante paradoxal, numa situação crítica. Muitos pro­ blemas atuais referentes à celebração e à sacramentali­ zação não decorrem primeiro de uma inadaptação das formas rituais, mas de desequilíbrios entre evangeliza­ ção e sacramento, entre vida cristã e culto. Não temos de lamentar que o século XX tenha redescoberto a im­ portância da liturgia, origem do ser cristão. Mas é. pre­ ciso atribuir-lhe o seu justo papel no conjunto da vida cristã e eclesial. Tanto quanto é possível esboçar um julgamento, as assembléias cristãs dos primeiros séculos despertavam interesse em meio ao contexto da vida e da comunidade local, consideradas como um todo. Anunciava-se aí a Palavra. Praticava-se aí a caridade. Celebrava-se aí a 25

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refeição do Senhor. Aí se rezava em comum. Se Lucas conseguiu idealizar, por pouco que seja, o modelo da primeira comuni da de de Jerusalém (At 2,42-47), é jus­ tamente essa visão de conjunto, essa globalidade, que logo de início impressiona. Reunindo-se freqüentemente "em um mesmo lugar", "os irmãos tinham um só cora­ ção e uma só alma". Eram assíduos ao ensinamento dos apóstolos, à caridade fraterna - chegando até à par­ tilha dos bens - , à fração do pão e às orações. Quase não se sabe em que consistia a liturgia deles, e até mes­ mo se ela constituía uma atividade formalmente distinta entre as outras atividades da assembléia. Em todo caso, a imagem que ali se delineia não é primeiramente cul­ tua l, no sentido dos ritos e das cerimônias. O que ali aparece em primen o plano, antes da fração do pão, antes da refeição do Senhor de que fala 1Cor 10, é o anúncio da Palavra (pelo que Paulo se diz ministro, cf. Rm 15,16) e a caridade fraterna (consistindo o verdadeiro culto em oferecer-se a Deus como sacrifício vivo, ef. Rm 12,1). Urna mudança ocorre no século IV, com o cresci­ mento em número dos cristãos (batizados ou catecúme­ nos) e o desenvolvimento do culto litúrgico. A liturgia permanece muito ligada à vida e próxima do povo; seus ritos estão em simbiose com a cultura ambiente; a Pa­ lavra e o serviço dos pobres conservam sua prioridade. Mas a celebração conquistou sua autonomia. Esse equi­ líbrio relativo não dura muito tempo. Desde o século VI o povo não mais se apresenta como o sujeito principal da celebração. Os monges cenobitas ocupam o lugar do povo nos ofícios quotidianos. Os serviços e ministérios se clericalizam, a celebração se ritualiza. Durante toda a idade média - pelo menos no Oci­ dente, já que a evolução das Igrejas do Oriente foi dife­ rente - a piedade do povo não parece alimentar-se pri-ll mordialmente da liturgia. Comunga-se cada vez menos. . Os clérigos e os cantores absorvem as cerimônias, en­ quanto que o povo fica fora do presbitério, separado pela tribuna que corta a Igreja em duas zonas. O 26

povo é cristão de nascimento, de nacionalidade, de cul­ tura. Sua religião cada vez mais se alimenta de devo­ ções, costumes e usos que hoje se nos afiguram mais paralitúrgicos. A devo tio moderna forma os devotos à oração, à ascese, à caridade, numa via paralela à liturgia. Recitar o ofício e fazer oração são duas atividades bem distintas. A época moderna é herdeira dessa situação. O povo cristão vai (em parte) à missa aos domingos. Mas sua pertença à Igreja exprime-se de muitas outras maneiras; os costumes cristãos impregnam a vida social. Quando a sociedade entra no movimento de secula­ rização, as manifestações de pertença à Igreja se redu­ zem sutilmente. As confrarias, as peregrinações, as pro­ cissões, as devoções populares se estcrIlizam pouco a pouco. A religião se retira das igrejas. O sobressalto da Ação Católica não detém tal processo. Chega-se à situação atuaI. Excetuada uma minoria, ou mais cultivada, ou mais militante, ou mais devota, que tem diversos pontos de contato em nome da fé (reu­ niões de Ação Católica, retiros, círculos bíblicos, grupos de oração, conselhos pastorais, equipes litúrgicas etc.), a maioria dos católicos só têm como engajamento pes­ soal eclesial o culto: missas de domingo ou dos dias de festa, sacramentos de batismo e de matrimônio, funerais, e, para alguns deles, missas de semana, celebrações pe­ nitenciais. E, portanto, sobretudo nas celebrações litúrgicas que os cristãos se encontram como Igreja. Ora, desde muito, o culto está justaposto ao anúncio missionário de um lado, e, do outro, à vida comunitária sob suas múltiplas formas de ajuda fraterna. Uma vigorosa reação surgiu na França desde o mi­ cio da renovação da pastoral litúrgica, para reduzir a dicotomia entre a liturgia 'e a missão. Por sua vez, a reforma conciliar restituiu o primeiro plano à tarefa e às funções da Palavra na celebração. E, de alguns anos para cá, diversas iniciativas têm sido tentadas para con­ 27


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seguir que a assembléia cultual seja um lugar de comu­ nhão fraterna, humana e cristã. Veremos os problemas levantados por essas duas correntes. De fato, elas pouco têm modificado a situação geral. Seria preciso procurar a causa disto. É assim que muitos praticantes, e, mais ainda, parti­ cipantes ocasionais do culto, continuam pouco evangeli­ zados e pouco engajados como cristãos no mundo. Essa redução cultualizante da vida cristã acha-se reforçada por um empobrecimento geral das formas de culto. Não faz assim tanto tempo que um cristão de nível comum entregava-se, pelo menos de quando em quando, à recitação do terço, do ãngelus, à via sacra, às procissões do Corpo de Deus e das Rogações, aos louvores e adorações ao Santíssuao Sacramento, às ora­ ções tradicionais da manhã e da noite, eventualmente a novenas e outras devoções. Que resta de todas essas práticas que impregnavam a vida dos cristãos sob múl­ tiplas formas? Quase nada. Dir-se-á justamente que não há perda mas ganho se, ao mesmo tempo, os fiéis reencontraram a Bíblia, os salmos, a missa, a comunhão, os tempos litúrgicos, a quaresma e o mistério pascal, o valor dos sacramentos do batismo e do matrimônio. É preciso creditar à reno­ vação litúrgica o fato de ter restaurado o valor das fon­ tes bíblicas e sacramentais da fé. Nossos contemporâ­ neos não podem mais alimentar-se de sucedâneos. Eles necessitam de alimentos mais substanciais. Ao revalorizar ao máximo, porém, o que constitui o próprio cerne da liturgia, o batismo e a eucaristia, será que o movimento litúrgico não ultrapassou a sua finalidade? Ao desvalorizar todo o resto, será que ele não correu o risco de banalizar aquilo mesmo que pre­ conizava? Quando nos ref.erimos a uma época como os sé­ culos IV-V, em que a liturgia bem que parece ter sido o alimento principal da fé do povo e em que as devoções que depois lhe tomariam o lugar ainda não existiam. 28

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encontramos, apesar de tudo, um equilíbrio muito carac­ terístico. A eucaristia, ação da igreja local, era domini­ cal. Mas, em muitos lugares, o povo era convidado du­ rante a semana a um ofício matinal e vesperal (que não era ainda atividade exclusiva dos clérigos e monges). Aí lia-se e explicava-se a Escritura; cantavam-se salmos e hinos; rezava-se pelas intenções da Igreja. Em certas festas ou aniversários de mártires, celebravam-se vigí­ lias, por vezes com procissões. Quando, na idade média, a missa tende a tornar-se quotidiana nos capítulos e mosteiros, o ofício reúne ain­ da muitas vezes por dia a comunidade para o louvor. Além disto, os monges lêem a Escritura em particular. Num como noutro caso, vê-se que o ritmo da escuta da Palavra e da oração é mais freqüente, o da eucarís.Ia mais raro. A situação atual é o inverso (exceto nos mosteiros). Quase que toda vez que os cristãos se reúnem, celebra­ -se a missa: no domingo e em todos os dias da semana; de manhã, ao meio-dia e à tarde; nas igrejas, nas cape­ las e nos apartamentos. As proposições da liturgia da Palavra, pacientemente selecionadas durante vinte anos, estimuladas pela Constituição sobre a liturgia, obtive­ ram pouco sucesso. Os fiéis católicos dizem: "É frio"; protestante". Quando podem ter uma missa, prefe­ rem-no. As exortações para restaurar o Ofício, mesmo sob a forma de orações da manhã ou da noite adaptadas aos fiéis, permanecem como desejos platônicos. Quase que há somente o fenômeno recente, ainda esporádico mas importante, dos "grupos de oração" que oferecem uma. certa oportunidade de escuta à Palavra, seguida de orações diversas e (às vezes) de louvor. Notemos de passagem que a própria reforma acen­ tuou essa situação ao dar prioridade ao lecionário quo­ tidiano da missa em relação ao lecionário do Ofício. l:!. a liturgia da Palavra da missa que se encontra colo­ cada assim em primeiro plano, antes de qualquer outro "é

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Oficio. Apoiou-se uma corrente recente e rompeu-se com urna sólida tradição. Podemos perguntar-nos se essa situação é sadia. Cada dia, o cristão deve rezar e, se possível, com outros. Incessantemente, deve deixar-se questionar pela Palavra de Deus para converter-se e adaptar sua vida quotidiana às exigências do Evangelho, sempre redescobertas no Espírito. Mas participar da Refeição do Senhor compro­ mete-o a morrer com o Cristo e a oferecer-se a si pró­ prio como sacrifício espiritual. Para isto, são Paulo recorda aos coríntios que é preciso discernir e exami­ nar-se a si mesmo para não comer e beber a própria condenação (JCor 11,23-31). Acrescenta que, por não se ter feito assim, há na assembléia muitos enfermos. doentes e até um grande número de mortos. O sacra­ mento não pode ser urna prática automática. Para que ele seja frutuoso, é preciso que haja um ambiente e ritmos. Além do mais, a prática única da missa, mesmo sendo ela o ápice da liturgia, constitui um empobreci­ mento notável das formas simbólico-rituais por meio das quais podemos acolher o Espírito e aproximar-nos de Deus. Quando elas já não são escoradas pelos ritos habituais da missa, muitos fiéis parecem tornar-se para­ líticos e afásicos. Andar, prostrar-se, elevar as mãos, olhar um ícone, escutar a Palavra com vagar, calar-se durante longo tempo, cantar salmos e hinos de toda espécie, repetir uma fórmula, dizer alto as inten­ ções da oração, testemunhar sua fé, todas essas inú­ meras maneiras de celebrar e de rezar sozinho ou em grupo permanecem um tesouro inexplorado, um tesouro a explorar-se. É em outros ofícios, que não a missa, que tudo isto poderia ser aprendido e praticado. Nunca é bom cair no excesso. Jesus nos alertou contra a crença de que a abundância de palavras (Mt 6,7-9) ou a multiplicidade dos ritos (Mt 23,23-26) pos­ sam atrair-nos as graças de Deus. Apesar disto, há uma tendência constante dos "zelosos" de querer sempre 30

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recorrer a elas. A história revela-o claramente: dema­ siadas horas no Ofício, salmos em demasia, missas dema­ siadas etc. Os reformadores e os verdadeiros mestres espirituais, como Pacômio ou Bento, sempre reduziram e aliviaram o peso das práticas. O Vaticano II teve o mesmo intuito (Const. Lit. 34). Só o realizou em grau restrito; e podemo-nos perguntar se houve resistência suficiente diante de ideologias do gênero desta: "Quan­ to mais missas houver, maior glória se rende a Deus", ou contra a mentalidade religiosa contratual: "Quanto mais faço por Deus, mais ele fará por mim". Acaba-se assim por deformar o que é e deve permanecer "sinal", sinal da fé e sinal para a fé. O único critério da justa medida continua a ser a caridade, Esta não é propor­ cional à quantidade dos sinais cultuais, mas à medida da conversão do coração e dü sacrifício espiritual em Jesus morto e ressuscitado. Diante de uma sociedade de consumo, de uma men­ talidade ativista, de um frenesi de lucro, tem-se por vezes a impressão de que alguns cristãos também se sentem tentados a produzir e consumir o rito de acordo com tais modelos. Outros fizeram a experiência de que um certo jejum de ritos, e mesmo de sacramentos, podia ser salutar se despertasse o desejo e a fome de Deus, se reavivasse a atitude evangélica fundamental: o sen­ tido de nossa pobreza. Ser rico de ritos não significa obrigatoriamente ser rico de graça.

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3.

IGREJAS GRANDES DEMAIS

Um pouco de história - Herança pesada - Dupla parábola: a missa numa grande igreja e numa igreja pequena - Dois casos à parte: o pequeno grupo e a assembléia de festa - Busca do melhor para a assembléia dominical ordinária Exigências para o bom funcionamento dos ritos - A percepção de si mesma que a assembléia deve ter - Justifica­ tivas para as assembléias restritas - Objeções sem resposta.

Os historiadores das origens cristãs julgam que, na época da Igreja dos mártires, as assembléias - quase todas urbanas - incluíam apenas algumas dezenas de pessoas. Reuniam-se então na casa de um cristão que pudesse acolher os outros. Com a paz constantiniana, as massas afluem pouco a pouco à Igreja - que em grande parte é constituída de catecúmenos. Começam-se a construir as igrejas ou a restaurar construções públi­ cas. Algumas igrejas de metrópoles podem primeiro conter várias centenas, depois vários milhares de pes­ soas, como a dupla basílica constantiniana de Treves, ou a antiga basílica de São Pedro de Roma. Quando os campos começarem a ser evangelizados, construir-se-ão sobretudo pequenas igrejas. A capacida­ de das pequenas igrejas romanas rurais, das quais a França conservou muitos exemplos, não excede muitas vezes a de cem pessoas. Durante inúmeros séculos, vive-se no conjunto com um duplo regime: o das peque­ nas igrejas rurais ou suburbanas (e as capelas de con­ vento) em que se celebra o culto ordinário, e o das :I •

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grandes igrejas, catedrais, lugares de peregrinações, mos­ teiros por onde passam as pessoas, se reúnem em certas ocasiões, mas onde o único pessoal estável é consti­ tuído pelos clérigos, cantores ou monges. Com a urbanização contemporânea começaram-se a construir igrejas cada vez maiores como paróquias de cidades cada vez mais populosas. O critério era o núme­ ro das almas recenseadas em cada paróquia. O gigan­ tismo apoderou-se da arquitetura religiosa neo-romana, neogótica ou neobízant ina. O prestígio da cidade, as rivalidades entre paróquias e um certo triunfalismo não deixaram de surgir. A corrente influenciará até algumas zonas do campo com forte densidade de prática em que, no século XIX, se substituirão igrej as romanas por outras novas e mais espaçosas. Esta é a situação que nós herdamos: na França, por exemplo, a metade talvez dos católicos praticantes ­ não disponho de estatísticas, mas isto pouco importa ao que me proponho - vão à missa nas grandes igrejas. Às vezes, são cinqüenta ou trinta perdidos em uma nave que poderia conter várias centenas de pessoas. Às vezes são mil num edifício com as mesmas dimensões. Enfim, há todas as catedrais transformadas em paróquias e as igrejas urbanas de mil ou mais lugares onde se cele­ bram numerosas missas dominicais. Acrescentemos que o espaço dessas grandes igrejas raramente é unificado. Na maioria das vezes, está divi­ dido em compartimentos, várias naves separadas por pilastras, coros, altares com grades e mesas de comu­ nhão, capelas laterais, transeptos, peças removíveis, tri­ bunas etc., e isto mesmo depois que as galerias, que outrora dividiam a igreja em dois quase todas já desa­ pareceram. O estilo jesuíta e o estilo barroco, em que tudo se centralizava no altar-mar, não produziram na França muitos edifícios, e as igrejas recentes com espa­ ço unificado são ainda pouco numerosas. A influência dessa situação sobre nossas liturgias é múltipla e considerável. 34

Quase não me deterei nas dificuldades por demais evidentes que se encontram ao querer-se inscrever a liturgia de depois do Vaticano II nos espaços e volumes conc-ebidos para uma liturgia de um tipo muito dife­ rente. Basta recordar os problemas de visibilidade e de acústica, cadeiras e grades que gostaríamos de tirar; ao fundo coros, altares-mores monumentais diante dos quais se coloca um novo altar por falta de outro lugar mais adequado, os altares secundários atravancando, os bancos vazios que ocupam o melhor espaço, as capelas laterais sem utilidade, os coros para os cantores e os órgãos colocados em plano superior, completamente separados da assembléia. Além de todos esses elementos tornados inadequadas e incômodos, ainda há todos aque­ les que foram acrescentados por causa das necessídad-s da nova liturgia: púlpitos, estantes, cadeira para o cele­ brante, círios, cruz, microfones etc., colocados seja lá como for. É bem difícil coser um pedaço de pano novo numa roupa velha. Sei que se têm conseguido restaura­ ções e adaptações em que a beleza de um edifício antigo é realmente aproveitada numa liturgia atual e viva. Mas a maioria permanece condenada aos expedientes: tentar agrupar-se o melhor possível quando o agrupamento é quase impossível; experimentar cantar em conjunto quando não se sabe cantar; arriscar palavras e gestos que não vão além do braço transversal do transepto. Entretanto, essas dificuldades de ordem funcional ou de ordem estética, ainda que importantes, não me parecem as mais graves. Entro num domingo em uma igreja de cidade de estilo neogótico, para a missa de 11 horas. Várias cen­ tenas de pessoas já estão lá. Primeiro vejo-lhes as cos­ tas. A nave central parece-me cheia. Hesito colocar-me na parte mais baixa, porque gosto de ver. Encontro um lugar no último terço da nave. Estou sempre vendo as costas. Lá no fundo, distingo um altar-mor de aspec­ to simples. Depois, percebo o busto de ministros com alva, voltados para a assembléia, mas muito longe de 35


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mim. Que estão eles fazendo? Ouço que se canta. Che­ ga-me uma voz pelos alto-falantes, Sem dúvida deve ser a de um dirigente que distingo por trás de um micro­ fone. Será que, na minha frente, a multidão está can­ tando? Provavelmente. Mas eu não escuto. Em todo caso, em torno de mim estão calados. Eu gostaria de cantar, mas tenho a impressão de que faria um solo e daria um espetáculo. Agora são as leituras, depois a homilia. Ouço-as corretamente graças aos aparelhos de som. Entretanto, estou distraído. Faço esforço para escutar o sermão. O que é dito parece inteligente, mas essa voz anónima não me atinge. Mas afinal, que faço eu ali? Se tivesse ficado diante da televisão, provavel­ mente teria aproveitado melhor do sermão. Por certo, mas eu tenho também de comungar. "E nós v os supli­ camos que, participando do corpo e sangue de Cristo, sejamos reunidos pelo Espírito Santo num só corpo", diz justamente o padre. Comungar com Deus e com meus irmãos. Olho à minha volta. De fato, é preciso que eu creia nisto! "Saudai-vos uns aos outros em Cristo". Meu vizinho não se abala. Nem eu também, pois não quero Incomodá-lo. Com o rebanho ajuizado, eu vou também comungar. No entanto, depois de tudo, saio da igreja sentindo um certo mal-estar. No domingo seguinte, experimento uma outra igreja, num quarteirão do subúrbio, de que tive boas informa­ ções. Entro numa ampla sala quadrada, com forro de madeira. A luz do dia entra por janelas invisíveis. O chão é em declive e os bancos arrumados em semicír­ culo. Uma centena de pessoas aí se acham reunidas. Descubro um lugar livre. A senhora do lado me sorri, como que dizendo que eu posso sentar-me perto dela. Eu lhe sorrio também e sento-me. O senhor da esquerda me dá bom-dia e eu lhe respondo o cumprimento. Le­ vanto os olhos. Com um só olhar vejo todo o mundo. Jovens casais, crianças, pessoas mais idosas. Ensaia-se um canto. O animador está no centro do semicírculo, em baixo, a alguns metros distante de mim. Ele canta 36

"A ti, meu Deus, cantem os homens louvor", "Senhor, a tua Igreja somos nós, numa só voz". Sem sentir, come­ cei a cantar com todo o mundo. Fui assimilado ao unís­ sono. Cantam-se também as estrofes. Minha vizinha me mostra o livro e a página. Quando o canto pára, ouço: "Bom-dia, irmãos. Que a paz e a alegria de Deus estejam convosco!" O celebrante estende-nos os braços e sorri. Ele tem um ar simpático. Sua voz é agradável. Reparem: aqui não há necessidade de microfone! Como isto é re­ pousantel "Hoje um sacerdote africano está entre nós. Rezaremos pela Igreja da Africa. E, dentre vós, eu saúdo especialmente os estrangeiros e as pessoas de passagem. Será que todos já arranjaram um lugar? O evangelho de hoje ... " Depois do evangelho, o padre começa per­ guntando a uns e outro.-, tanto às crianças como aos adultos, o que compreenderam e o que não compreende­ ram. No momento das intenções da oração, muitos da assembléia apresentam as suas. Há umas lindas. De­ pois,' homens e mulheres, deixando seus lugares, levam o pão e o vinho ao celebrante. Eles permanecem em torno do altar. Agora ajudam a dar a comunhão. À saída, sinto vontade de entrar em contato com aquelas pessoas. A isto elas se prestam de bom grado. Todo o mundo conversa em frente à porta. Há uma espécie de pátio, com uma máquina de servir café. Alguns ainda discutem a propósito do evangelho e do que disse uma [ovem mãe. Acho que voltarei um outro domingo. Dir-se-ia que fiquei com a melhor nas minhas duas pequenas parábolas. De fato, não é nada mau descrever uma liturgia enfadonha numa grande igreja e uma inte­ ressante numa pequena! Vá lá que seja. Mas acontece que o que é possível numa assembléia de 100 a 150 pessoas já não o é quando se trata de numerosas cen­ tenas. Se nós nos prendermos realmente ao que é pos­ sível no primeiro caso e não em outras circunstâncias, 6 preciso deduzir as conseqüências. Primeiro que tudo quero delimitar bem os casos de que vou falar, assinalando aqueles de que não tratarei. 37


Não pretendo falar aqui das liturgias de "pequeno grupo" que se formam espontaneamente por co-opção, que nascem e que morrem, que se reúnem com cadên­ cias variadas, tanto durante a semana como aos domin­ gos, e nos lugares mais variados: salas, apartamentos, igrejas. O pequeno grupo tem funções próprias na igreja local e modos de funcionamento peculiares. Voltarei a falar disto em outra ocasião. Aqui, eu encaro uma assem­ bléia "ordinária", 'especialmente a assembléia domini­ cal, com base local, aberta a todos os praticantes sem distinção de idade, sexo, meio social e origem geográfica. Aliás suponho reconhecidos o interesse e a validade das grandes assembléias que se reúnem por ocasião das festas, de certos acontecimentos ou de peregrinações, em lugares significati :os, edifícios e sítios históricos ou não. Direi mais adiante que tais assembléias nos fazem falta. Nas circunstâncias anteriores, a maior parte das limitações que o número de pessoas ou a capacidade do local impõem em outros casos à celebração, neste, são superáveis graças à forte motivação festiva dos par­ ticipantes. O clima é tal que se aceita tudo o que de­ corre de uma multidão aglomerada. Ainda uma vez, repito-o, o caso aqui considerado é o do culto ordinário cujo exemplo típico é a missa semanal do domingo na paróquia. Finalmente, vou deixar de lado no momento a dis­ cussão sobre a utilidade e os inconvenientes da igreja como edifício exclusivamente cultual, visível para a cidade, bem comum da sociedade e da cultura. Quer o edifício seja ou não propriedade do Estado, quer seja ou não um monumento histórico, quer seja uma sala polivalente ou um lugar reservado apenas à liturgia, par­ to da afirmação de que a assembléia dos cristãos pre­ cisa de um lugar estável para reunir-se, onde ela se sinta em casa e que, de alguma forma, tenha sentido pa­ ra os que participam dos mistérios aí celebrados. Assim colocada a questão, parece-me fora de dúvida que, para a liturgia dominical ordinária de uma assem­ 38

bléia local aberta, um edifício de dimensão restrita permite hoje um tipo de celebração melhor adaptado àquilo que dela espera, consciente ou inconscientemente, o conjunto dos fiéis. Para isto, podemos apresentar diversas razões que decorrem tanto do número de par­ ticipantes como do próprio edifício.

O mais evidente dos condicionamentos devidos ao número e à capacidade int·eressa ao funcionamento ri­ tual. Em matéria de comunicação, escolhe-se um lugar - e aqui o quantitativo se torna qualitativo - desde que a voz pública normal e o gesto público natural não sejam fácil ou imediatamente percebidos. A sig­ nificação do comportamento corporal, especialmente do rosto, se esmaece. Basta recordar o t-atro para com­ preendê-lo. As boas salas de teatro não são grandes, pois que nenhuma parcela do público deve ficar longe dos atares (os teatros, porém, aumentam o número de espec­ tadores, dispondo o público em níveis diferentes, com galerias e camarotes - disposição geralmente excluída quando se trata de assembléia litúrgica, porque aí todos são também, cada um a seu modo, atares). Bem sei que hoje há o recurso dos microfones para levar a voz tão longe quanto se queira e que o altar e adjacências po­ dem ser colocados em lugar mais elevado para ficarem bem visíveis. Mas, se a sonorização eletrônica já entrou cm nossos costumes, se ela dá à voz possibilidades novas, mesmo numa pequena assembléia, ela jamais substitui L\ comunicação direta. De qualquer forma, ela não resol­ ve o problema da visibilidade, especialmente dessa comu­ nicação pessoal que se estabelece entre um interlocutor c seu público quando este se acha colocado numa dis­ tância tal que sua atitude, seus gestos, ou a expressão do seu rosto também podem "falar". Mesmo supondo que se entenda corretamente gra­ à sonorização e que se veja bastante bem o que se passa, ainda resta o fato de que a celebração litúrgica l~ uma ação muito complexa. Nela intervêm não somente yUS

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indivíduos (celebrante, leitores, animadores etc.) mas também grupos da assembléia (coral, os que tiram esmo­ las, os que levam as oferendas) e a própria assembléia: cantos, diálogos, comunhão, entrada e saída, fazem parte da ação celebrante. Todos os responsáveis e práticos em liturgia sabem disto: quanto mais numerosa a assem­ bléia e maior o edifício, mais complicada e arriscada se torna a "administração" da celebração. preciso então ter previsto o desenrolar-se das operações em todos os seus detalhes e com todos os agentes' implicados (cele­ brante, leitores, anirriador, dirigente do coral, organis­ tas, ministros das oferendas e da comunhão etc.), mas é preciso considerar também que a qualificação técnica dos agentes deve ser tanto mais elevada quanto mais importante é o volante de manobra. Muitas assembléias estão longe de possuí-los - a começar por um celebran­ te à altura de sua tarefa, e até mesmo quanto aos ins­ trumentistas. Além do mais, vive-se à mercê da técnica: controle do tom de cada microfone, volume sonoro do coral, iluminação do local, organização das procissões, dimensão dos objetos e dos gestos rituais. Entra-se num domínio de especialistas. Muitas preocupações, tempo, dinheiro, pessoas... Bem que se quereria fazer algo assim por ocasião de festas. Mas seria razoável exigir o mesmo para cada missa de cada domingo? Não se poderia evitar que a liturgia ficasse tão onerosa? Quantas vezes já tenho tido a impressão de que minhas forças vivas estavam desviadas do essencial da celebração - a Palavra, a oração, a adoração - em favor da técnica! Ao contrário, que repouso, que sensação de liberdade para a oração, quando se celebra numa pequena assem­ bléia onde se pode agir, falar, cantar de uma for­ ma quase familiar, sem negligências, mas sem se preo­ cupar com nada mais a não ser o funcionamento dos ritos. Aí, "sente-se" a reação da assembléia: pode-se, pois, ajustar-se a ela, enquanto que num grande reci­ piente a pessoa muitas vezes se perde sem perceber o impacto real dos sinais produzidos.

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Deixemos o lado dos agentes rituais e passemo-nos para o lado da assembléia. Na igreja grande, é necessá­ ri? ~m coro elevado para que se veja o celebr~nte, o púlpito, o altar. Impõe-se, portanto um espaço CIrcuns­ crito, à parte, onde se movimentam' os sacerdotes e lei­ gos em função. e então difícil evitar a imagem de uma liturgia de "clérigos" manipulando a multidão. E será possível fazer compreender, enquanto se celebra a pró­ pria liturgia, que esta é a ação de todos e que a assem­ bléia nela é o primeiro "sujeito"? De nada serve que­ rê-lo, afirmá-lo, explicá-lo, se os fatos inculcam o con­ trário. Só se faz aumentar um mal-estar de que muitos são conscientes. "A liturgia está nas mãoS de alguns; o resto do rebanho segue (ou não segue)". Procurarr-n-se diversos corretivos, por exemplo, aproximando ao máximo o altar da assembléia. A inten­ ção é boa. Mas, na maioria das igrejas, o resultado é mau. O altar fica sendo uma tela a mais. a palavra - sob todas as suas formas - que se precisa engajar primeiro na assembléia (o que um altar recuado demais muitas vezes atrapalha). O altar tem necessidade de distância para ser visto. A ação que aí se desenrola, que dura pouco e que praticamente se resume na oração eucarística (já que no ofertório e na comunhão intervém a assembléia), suporta melhor um certo reCUO. A igreja grande também requer distâncias que lhe sejam propor­ cionais. A igreja pequena em contrapartida, mesmo que não resolva automaticamente todos os problem~S (pode-se, por exemplo, continuar aí a ser muito c1encal), torna possível uma outra imagem da assembléia celebrante. Particularmente, a cisão entre presbitério e nave, entre agentes e público, desaparece. Por meio de u~ certo espírito e de um determinado estilo o grupO mteu-o pode mais 'facilmente entrosar-se e constituir-se "suporte" da celebração. O mais importante, com efeito não está nem no funcionamento dos ritos, nem na reÍação agentes-públi­

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co, mas na imagem que a assembléia projeta a si mesma e nas relações que se estabelecem entre os co-celebrantes. Na igreja grande, na maioria das vezes, só se vêem as costas e uma multidão anônima. Na igreja pequena, se ela tem boa disposição e se os participantes o querem, as pessoas se podem ver umas as outras, umas ouvem o que as outras dizem, podem cumprimentar-se, falar entre si, acolher um estranho, perceber as "diferenças" e reconhecê-las como tais. Pois ninguém pode sentir-se à vontade na assembléia dos irmãos se não se sente reconhecido tal qual é e respeitado em suas diferenças individuais: quem canta e quem não quer cantar; quem comunga e quem não comunga; quem quer falar e quem quer escutar; quem quer participar e quem quer rezar em silêncio ou mesmo ficar separado. Creio que muitas de nossas liturgias sofrem de um gigantismo de assembléias. Há aí um obstáculo de-que, paradoxalmente, muitos pastores e fiéis não parecem ter consciência nítida. Pelo menos é o que tenho muitas vezes observado, não sem surpresa. Acho que, para seu culto ordinário - fora dos "pequenos grupos" e das grandes assembléias de festa - , a Igreja ganharia com celebrar seu culto em espírito e em verdade em lugares onde 100 a 150 pessoas possam realmente falar, cantar, rezar em comum e partir o pão, onde cada grupo de crentes possa realmente encontrar sua fisionomia e sua identidade. Sempre fiquei impressionado com a experiência seguinte: uma nova paróquia vai nascer. Fez-se uma construção modesta ou encontrou-se um lugar provisó­ rio para o culto em que se celebrou durante meses ou anos. Durante esse tempo, foi-se construindo concomi­ tantemente com grandes despesas - uma "verdadeira" igreja, mais ampla e mais "digna". Afinal chega o dia da inauguração. Que decepção! Já não é a mesma coi­ sa ... As pessoas já não se encontram aí como antes se ·encontravam. Perdeu-se algo que nunca mais se há de recuperar. Que terá sido então? 42

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Não posso passar para o outro capítulo sem fazer duas objeções ao projeto pastoral de assembléias meno­ res. A primeira se refere aos ministros litúrgicos: "Vo­ cês queriam assembléias menores, portanto em maior número. Isto é fugir totalmente do realismo histórico no momento preciso em que o número de padres dimi­ nui de maneira fabulosa, em que os seminários desapa­ recem, e em que por toda parte o que se precisa é de reunir paróquias. Se se trata de assembléias dominicais, e portanto da eucaristia, onde se encontrarão celebran­ tes?" - Recuso-me simplesmente a colocar o carro adiante dos bois: os ministros são para as assembléias e não více-versa, Voltaremos a esta questão. Parto do princípio de que, seja lá onde for, havendo assembléia de Igreja, esta precisa estar preparada para manter os serviços de que tem necessidade. Quando não se aplica tal princípio, deve ser por razões extrínsecas à questão, e com grande dano para a vida eclesial. Segunda objeção: "Nossas igrejas existem; melho­ res ou piores, mas existem. Vamos então abandoná-las a fim de emigrar para diversas salas? Mas e estas salas, onde encontrá-las? Quando uma igreja paroquial vê pas­ sarem mais de 3.000 fiéis pelas missas de um só domin­ go, segundo os cálculos de vocês, para ela seriam neces­ sários pelo menos 30 lugares de culto anexos! Seria sim­ plesmente inexeqüível". Não quero levantar de novo aqui a questão, que cau­ sou tanto alarde quando esteve em foco e quando meu amigo P. Antoine propôs que a Igreja deixasse ao Esta­ do e à sociedade a possibilidade de dispor das igrejas "monumentos históricos" como um bem da cultura e fosse celebrar em lugares onde tivesse toda a liberdade para fazê-lo como bem entendesse. Confesso que isto não me pareceu de todo insensato. .. Penso que temos igre­ jas demais - sobretudo em demasia, igrejas inadequa­ das ao que se espera delas - e não temos em número suficiente lugares para assembléias cristãs. Em todo caso, não estou sonhando com a hipótese de plane­ 43


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jar a operação ou de dividir as paróquias em pequenas capelas. Muitos fiéis acham-se atualmente insatisfeitos com suas grandes igrejas e suas missas numerosas. Desejo apenas chamar a atenção sobre um fato que esclarecerá os capítulos seguintes: a maioria de nossas, grandes assembléias estão minadas. Um certo número de pessoas deixarão de freqüentá-Ias se não lhes propu­ sermos uma outra alternativa. Compete a nós procurá-Ia e encontrá-Ia. Finalmente, não se pode esquecer que, ainda agora, na França como em muitos outros lugares, há uma in­ finidade de assembléias dominicais, constituídas de algu-: mas crianças do catecismo e de algumas senhoras ído-: sas. Aqui, o problema não é tanto o de um número demasiado de igrejas. mas de assembléias pequenas de­ mais. Antes de ser uma questão de liturgia, esta é uma' questão de vida eclesial e de pastoral em geral.

4. ASSEMBLeIAS DE FISIONOMIA INCERTA

Assembléias que querem ser abertas e que perma­ necem herméticas - Da assembléia permissiva à assembléia questionante - Aqueles que nela não se sentem à vontade - Evangelização e catequese pré­ vias? - Em direção a assembléias que integram as diferenças - Soluções da história - A circulação de dentro para fora - Urna iníciaçâr contínua ­ Assembléias com muitas "entradas" e muitas "saí­ das" - Os cristãos, pessoas à parte.

Suponhamos que se faça a um cristão, bom prati­

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f'unte, a pergunta seguinte: "Será que você acha bem

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lll'áticas ordinárias da Igreja, mas que diz crer em l~cus, que se interessa pelo Evangelho e que deseja rezar, venha, se o quiser, às nossas liturgias? Você o ueeíta?" Em geral obter-se-á uma resposta positiva e mesmo generosa: "Mas é claro! Só posso alegrar-me tom isto". Se, em seguida, lhe fizermos a observação du que tais pessoas existem de fato, mas que a maioria doias se sentem antes afastadas do que atraídas pelas nossas liturgias, nosso interlocutor ficará muito espan­ mdo: "Logo hoje, que se é muito mais tolerante e acolhe­ dor na Igreja!" Por aí se vê que nossas assembléias quereriam ser ubertas e acolhedoras. De fato, muitas vezes sem o sabe­ rum e a contragosto, tornaram-se até certo ponto de mais IHf:1cil acesso do que antigamente. Agora, que certas bar­ ruíras de ordem confessional, doutrinal e disciplinar fo­ mm até atenuadas, apareceram outras, sobretudo de or­ 45

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dem psicológica. Elas já não separam apenas, como antes, o crente do descrente, o cristão do não-cristão, o cato­ lico do não-católico. Novas separações surgiram entre o cristão engajado e o cristão marginalizado (às vezes por motivos opostos), entre o praticante e o não-praticante, entre fiéis evoluídos e fiéis conservadores e, é certo tam­ bém, entre os que defendem a integração e os que pro­ pugnam pelo progresso. J Não se trata, porém, aí de posições individuais? Eml que pode isto afetar a fisionomia das assembléias litúr-]., gicas? ~l' Até uma época bastante recente, quando a Igreja se] apresentava, antes de mais nada, doutrinal e moralmen-i te intransigente, sua liturgia era preponderantemente "permissiva". Qualquer um po.lia - como agora também entrar numa igreja durante um ofício. Via ali realizar. -se um certo número de "cerimônias sagradas"; ouvia cantos e orações em latim. Não havia nada que o excluís­ se; nada que necessariamente o fizesse sentir que não, estava em seu lugar. Ninguém lhe pedia contas - exceto quando chegava o momento da coleta! O mais que lhe podia acontecer seria sentir-se questionado por um ser­ mão ou fazer-se, ele próprio, a si mesmo perguntas sohre o sentido dos ritos. • A renovação litúrgica, depois, a reforma do Vaticano II modificaram esse estado de coisas. Agora as leituras e as orações são feitas em voz alta de modo a serem; tão inteligíveis quanto possível a todos. Se preciso, a' voz é aumentada pelos alto-falantes para que ninguém' deixe de escutar. Os ritos são explicados. Convida-se todo o mundo para formar o grupo. Às vezes, as pessoas são recebidas à porta; dão-lhes uma folha ou um livroj, levam-nas até o lugar. Elas são exortadas a participar, a' responder e a cantar. Assim se coloca nos lábios de cada uma delas a plena confissão da fé batismal. Além disso, quase a totalidade dos cultos católicos são hoje eucarís­ ticos, isto é, neles se celebra a refeição do Senhor. Para quem leva a sério o que é dito: "Tomai e comei todos

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e o que é feito -

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'IHuse impossível estar ali sem ir também comungar.

Em certo sentido, era isto mesmo que se queria. J111V·cmos felicitar-nos de que a liturgia já não se apre­ W'lItc como uma "cerimônia sagrada", suscetível de mis­ IllJcações em demasia; que ela já não mais reúna uma 1J.u.\SSa amorfa "de assistentes", mas que ela seja uma ll.l:ofissão expressa da fé em Cristo Salvador e uma ação 1~lm1.Um do povo que crê. Entretanto, ao procurar apro­ símer-se de seu modelo ideal e ao querer evitar deter­ mlnados escolhos, a liturgia atual encontra outros que )ll;,ocisamos encarar de frente. Participar da liturgia passou a incluir tantas exi­ I~l\ncias que aparentemente há somente uma "entrada" vúlída para ",; nossas celebrações: a entrada de um bati zudo que está consciente de sua fé, que toma parte em lodos os ritos (entre eles, a comunhão sacramental) e 1.lue está cristãmente engajado em sua vida. Vemos Imttío que, no limiar da missa de depois do Vaticano II, IHWTsas categorias de pessoas hesitam e por vezes re­ l':l1am - aliás por motivos diferentes. Pode tratar-se do nrlstão tradicional, praticante "festivo" (Natal, Ra­ 1Il0S, Páscoa, Assunção, Todos os Santos) ou católico Ilü estações da vida (batísmo, primeira eucaristia, casa­ monto, enterro) que "aí já não se encontra mais" em sua l\l1fgião, com um "Pai-nosso" diferente do que aprendeu 110 catecismo, com uma missa sem o toque da campainha 110 momento da grande elevação, sem Kyrie eleison, com nutras melodias e outros textos. Pode tratar-se do cris­ 11.\0, jovem ou menos jovem, até então praticante, que l',mneça a questionar sua fé, a interrogar-se sobre Jesus, Filho de Deus, sobre a ressurreição, sobre a eucaristia, Iltlbre a Igreja-instituição, e que hesita em repetir os Icxtos que lhe querem colocar nos lábios ou em ir comun­ HUI': "Não me sinto bem seguro a respeito do que tudo limo significa". Pode tratar-se do cristão engajado, social 1\ politicamente, e que não pode mais suportar um culto que 'lhe parece estranho à sua vida militante, por não 47


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encarnar-se na realidade. Pode tratar-se ainda daquele que se julga adulto e que não mais tolera ser tratado na igreja como um carneirinho ou uma criança de escola, sem direito de abrir a boca, de fazer perguntas, de dar a sua opinião, e sem participar das decisões do grupo; ou, ao contrário, daquele que é inseguro, que prefere ficar no meio da multidão anônima, que receia qualquer forma de imposição. Há também todos aqueles que, batizados ou não, católicos ou não, mas que, tendo vivido fora da Igreja e de seus cultos, têm fome de conhecimentos religiosos, de oração, de sinais. Os livros já não lhes bastam, nem as conversas particulares, nem os meios de comunica­ ção. Um grupo de crentes seria capaz de atraí-los. Mas será cue eles encontram em nossas assembléias o que procuram? Ser-lhes-à possível participar de saída de nossas liturgias vigentes, especialmente de uma missa? Seria preciso lembrar ainda as crianças, os adoles-, centes, os catecúmenos. Sabe-se que, apesar do esfor-i. ço feito ultimamente com o catecumenato dos adultos, a maioria dos balizados adultos jamais se tomaram pra­ ticantes regulares. Por quê? Será que não se sentiram à vontade nas nossas assembléias? - Mesmo nas famí­ lias mais cristãs, os adolescentes relutam em ir à missa no domingo. Para um bom número, isto não é necessa­ riamente indício de desinteresse pelo problema religioso ou de uma perda de fé, mas é uma espécie de alergia , por um tipo de assembléia onde se aborrecem ou que '. i lhes parece falsa. Durante muito tempo, nenhuma ques­ tão foi levantada a respeito da presença regular à missa !' das crianças em idade de catecismo. E eis que agora tan-! to catequistas como pais seriamente se questionam sobre J o fundamento desse estado de coisas. Não estaríamos )i por acaso gerando cristãos prematuros? . Cada uma das si tuações evocadas mereceria evi­ dentemente ser analisada de per si em sua especificidade , e sua complexidade. Para todas, porém, uma mesma i I

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questão é proposta em face da imagem monolítica de nossas atuais assembléias litúrgicas. Parece que não foi dito tudo quando se recordou a "boa doutrina", a saber que a liturgia, por sua própria natureza, supõe homens convertidos à fé em Jesus Cristo, e suficientemente instruídos em sua fé para entender a Bíblia, unir-se às orações e participar do sacramento. Também eu ensinei isto: "A catequese deve preceder a liturgia; não é a esta que cabe suprir aquela". Penso sempre que isto tem um sentido e que nada se ganha em confundir a evangelização como chamado à fé, a cate­ quese como inteligência da fé, e a liturgia como celebra­ ção da aliança na fé. Mas evangelização, catequese e liturgia não são primeiramente e sobretudo "momentos cronológicos", etapas isoladas do tornar-se cristão - mesmo que a ini­ ciação cristã suponha limiares de ordem sacramental. Trata-se de componentes da vida de fé que devem com­ pletar-se e harmonizar-se entre si. Desde o início de uma formação religiosa de orien­ tação cristã, a dimensão litúrgica é necessária, como continua a sê-lo em todas as suas etapas. Ela compreen­ de a assembléia dos crentes, a proclamação pública da Palavra, a oração comum, os ritos que expressam a intervenção' de Deus. Se nem tudo foi dito para distinguir catequese de liturgia, também nem tudo foi feito no sentido de con­ seguir que elas se articulem. Diante dos efeitos de gueto que produzem muitas de nossas assembléias atuais, levanta-se a questão: podemos imaginar como seriam assembléias reunidas em nome de Jesus, a que todos os que reconhecem terem sido chamados podem vir e ser acolhidos, seja qual for o seu nível de fé e de cultura; em que possam ser reconhecidos em suas diferenças Individuais, caminhar no seu ritmo próprio, tal cerno lhes permitem o Espírito Santo e suas capacidades pes­ soais, para ir tão longe quanto lhes seja possível, no d •

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49 amanhã da liturgia


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seio desta mesma assembléia, na profissão de fé, na comunhão eclesial, e na vida de caridade? Um tal projeto pode parecer difícil. No entanto, é necessário. E é possível. Contanto que se aceite o que chamarei de muitas "entradas" e muitas "saídas" nas assembléias. Contanto também que a celebração seja orientada em tal sentido, de modo que não valorize demais o "psíquico" e não impeça o "pneumático" de ir tão longe quanto o Espírito queira levá-lo. No curso da história, a Igreja soube aproveitar si­ tuações pluralistas nas suas assembléias e, para levá-las em conta, inventou diversas soluções. Quando o mundo mediterrâneo se cristianiza, no século IV, as assembléias têm efetivamente muitas entradas e rnuitas saídas. Nelas , se encontram não só iniciados, cristãos formados, a um i tempo crentes, catequizados, batizados e comungantes, mas também outras categorias respeitadas em sua situa­ ção peculiar. Há neófitos, ou neobatizados, que são cer- ! cados de cuidados especiais. Há os catecúmenos candi-i f datos ao próximo batismo pascal, que seguem uma for- ;) mação intensiva, doutrinal e moral. Há os catecúmenos ordinários, que foram marcados pelo sinal da cruz, que fazem parte da Igreja à maneira deles, mas para os quais a questão do batismo ainda não está amadurecida. Há os simpatizantes, que vêm para ver e escutar a Palavra. Mesmo entre os "fiéis", distinguem-se "penitentes" que estão impedidos de comungar por uma falta grave e pública, e que estão em via de reconciliação; os "ener­ gúmenos' que, por razões complexas, não se acham em estado de comungar. Estes não são rejeitados pela assembléia: pelo contrário, são por ela recebidos e envol­ vidos de cuidados especiais. Essas diversas categorias retiram-se em momentos precisos da celebração, depois que se rezou por eles. Somente os fiéis comungantes ficam para a oração dos "fiéis", o beijo da paz no Espí­ rito Santo e a refeição do Senhor reservada aos "santos". Objetar-se-á talvez que essas assembléias eram mui­ to menos abertas do que as nossas. Não se viam aí diá­

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conos e diaconisas vigiarem às portas para não deixar entrar os pagãos? Não se entregavam à prática do arca­ no, disciplina que consistia em nada revelar aos estra­ nhos e mesmo aos catecúmenos sobre os "mistérios" da iniciação (batismo, confirmação, eucaristia)? Não se era singularmente exigente quando se tratava de admi­ tir aos sacramentos os candidatos, chegando-se a obri­ gá-los a trocar de ofício ou profissão quando estes se opunham aos costumes cristãos? Não se lhes impunha primeiro uma instrução completa sobre a fé? Enfim, soa­ ria mal em nossos dias ouvir um diácono gritar no meio da missa: "Saiam todos os catecúmenos! Nenhum estra­ nho à fé pode permanecer aqui!" Poderíamos pedir aos pecadores públ.cos ou aos psicopatas que se viessem ajoelhar para receber uma bênção e serem despedidos antes da eucaristia? Não questionamos a história para nela encontrar soluções prontas, mas para que ela nos ajude a refletir sobre nossa situação e descobrir condutas novas. Um primeiro valor a ser restaurado na assembléia Seria uma melhor circulação de dentro para fora, um intercâmbio vital entre a célula local da Igreja que se reúne e a sociedade ·em que ela se insere. Se um grupo não tem mais possibilidade viva de iniciação e de incor­ poração de novos membros, ele está moribundo. Se há apenas iniciados para se reunir regularmente entre si e se pretendem continuar tratando-se sempre como tais, onde se fará a iniciação? Em outro lugar? E o que ficou quase instituído: a evangelização se faz não somente "fora", nos diversos "meios de vida", o que.é normal, mas também "por fora", o que é lamentável. A cate­ quese se faz nas instituições "ad hoc", catequese das crianças e catecumenato de adultos. A liturgia - assim se julga - deve intervir depois para crentes-catequiza­ dos-batizados. A realidade, porém, nem sempre parece correspon­ der a esse belo esquema institucional. Evangelização, catequese, catecumenato estão numa situação cada vez


mais crítica no seu funcionamento institucional. Não assistimos porventura a um esvaziamento dessas fun­ ções eclesiais demasiadamente setorizadas, exercidas por uma Igreja de cristandade que se esgota para manter sua coesão numa situação de diáspora mal aceita? No entanto, pequenos grupos de encontro, de refle­ xão, de oração são criados, dentro de uma visão funda­ mental e de uma aproximação mais global das realida­ des Deus-Evangelho-Igreja. Este tipo de agrupamento parece corresponder melhor à expectativa dos que os procuram. Não estará aí um convite para reconsiderar as funções da assembléia litúrgica? Será que ela deve continuar o mundo à parte e fechado que se tornou de uso exclusivo para os sacramentalizados praticantes? Não poderia ser também e primeiramente, ainda Que a " seu mOGO, o lugar privilegiado para uma aproximação global da fé cristã tal como é vivida pelos homens e mulheres que se acham reunidos para escutar a Palavra, para fazer oração e partilhar a esperança? Mas para isto seria preciso demolir certas trincheiras, descer dos nos­ sos pedestais e deixar de fazer reivindicações para nos­ sos "movimentos" privativos - e muitíssimas vezes autófagos - , sejam eles de ação católica, de catequese ou de liturgia. Há um segundo valor implicado na hipótese da as-!' sembléia aberta: o aspecto iniciático dos sacramentos. Não tomamos aqui a iniciação no sentido de privilégio daqueles que conquistaram um diploma de cristão e receberam a garantia da salvação, mas no sentido de processo para corresponder ao dom de Deus em Jesus Cristo. Este trabalho exige a fé, não como uma bagagem, recebida de uma vez por todas, mas como uma relação que se aprofunda continuamente. Ele requer tempo, um estabelecer-se dentro da vida que pouco a pouco deve ser impregnada pela fé. Supõe a comunidade dos que crêem, na qual vive o Cristo ressuscitado, na qual ele se manifesta, fala e age através de outros crentes; o pro­ cesso, enfim, precisa de sinais e de símbolos que adqui­

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rem sentido graças a tudo o que precede e antecipa a vida do Reino que deve vir. Se tudo isto é verdade, o sistema de iniciação cristã elaborado pelos séculos que nos precederam e que por eles nos foi legado apresenta-se hoje em dia cada vez me­ nos plausível. Dar ao maior número, desde o princípio e o mais depressa possível, a totalidade do batismo empe­ nhando-se em seguida para suprir e ir recuperando tudo o que este sacramento continha em si e todos os com­ promissos que incluía é uma prática que se tem tornado altamente problemática. Ela não é absurda nem ilegíti­ ma em si e pôde-se, por um longo período de tempo, dar-lhe preferência e fazê-Ia funcionar. Hoje, porém, ela suscita questões enormes, que a teologia e a pastoral contemporâneas tentam resolver. Aqui só quero abor­ dar os aspectos que interessam à assembléia. Várias constatações se impõem. Excetuadas raras exceções, todos os membros adultos das assembléias litúrgicas são batizados católicos, já freqüentaram o catecismo, receberam a confirmação e comungaram. No entanto, é de notar-se que para um grande número, aliás seja qual for seu grau de instrução e de cultura, os aspectos essenciais da fé continuam obscuros e incertos, talvez distorcidos e discutíveis. Na França, por exem­ plo, segundo algumas pesquisas, dentre mais de 80% de batizados que dizem crer em Deus, apenas dois terços declaram crer na divindade de Cristo e um terço somen­ te, na ressurreição. Não podemos apontar tais indiví­ duos como catecúmenos uma vez que são batizados. Mas, do ponto de vista da inteligência da fé, em parte ao me­ nos eles ainda estão "para ser iniciados". Que fé batis­ mal é esta que não confessa Cristo ressuscitado? Daí resulta que a liturgia que lhes é proposta, com suas leituras bíblicas que não se tem tempo de aprofundar e com orações redigidas para crentes formados, os deixa parcialmente "fora de órbita" e não lhes dá oportuni­ dade de uma iniciação progressiva e adaptada à sua situação. O pão da palavra que lhes é distribuído não

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chega a ser digerido. Pelo menos, não dá para nutri-los. E, pior ainda: eles próprios o rejeitam. Para um número mínimo - e não parece um para. doxo e uma grave anomalia? - é a comunhão eucarís­ tica que questiona esses neocatecúmenos. Alguns se abstêm de comungar. Mas que verdade pode haver em participar da refeição do Senhor, em ouvir: "Tomai e comei todos vós ... Tomai e bebei todos vós", sem comer nem beber? Outros comem e bebem, porém com uma consciência incerta. Outros, mais lógicos, renunciam simplesmente à assembléia para evitar a eucaristia. Mas, se a Palavra e a oração os interessam, por que não pode. riam encontrá-Ias na assembléia sem serem moralmente constrangidos a assistir também à eucaristia? Que solu­ ção se lhes poderia apontar? Eis-nos diante da necessidade de assembléias com várias entradas e várias saídas. Admitir diversas entradas é constatar que nem todos

que aceitariam vir à assembléia se encontram no mesmo

nível de aprofundamento na fé, mas que têm o direito

de encontrar nela o que melhor possa ajudá-los a pro­

gredir. Para alguns, será primeiramente um sentido de

Deus e um sentido para a vida humana que eles vivem.

Para outros, será sobretudo o conhecimento de Jesus.

Para outros, o mistério da Igreja e de seus sinais. Se

não é possível encontrar uma forma única de celebração

da Palavra que convenha a todos, será preciso diversifi­

car essas formas. Várias soluções podem ser apontadas.

Poder-se-ia, na mesma assembléia, admitir vários grupos simultâneos. Por exemplo, um grupo onde al­ guém explica uma leitura bíblica ou um mistério; um grupo em que se faz a partilha da palavra com base num texto escolhido; um grupo que ouve as leituras do dia, canta o salino, escuta uma homilia. Se não se dispõe de meios, sob o aspecto de locais e de pessoal, para fazer tudo isso, por que não adotar essa diversificação no decorrer de assembléias sucessivas? Por exemplo: um domingo (ou durante uma série deles) o acento seria

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colocado na catequese ou na explicação da Escritura, em seguida, na troca e na partilha; depois, na celebração da Palavra. Ou ainda, numa cidade com vários lugares de culto, num setor rural onde há possibilidade de loco­ moção e onde existe uma certa harmonia, estimular-se-ia uma certa diversificação. Saber-se-á que aquela deter­ minada assembléia usa tal forma de aprofundamento da Palavra, com liberdade para cada um escolher o tipo que melhor corresponde às suas necessidades. Supomos que esses grupos ou assembléias não só se aprofundam realmente no conhecimento da Palavra, mas também rezam e cantam em comum. Conviria também admitir várias saídas. Quero dizer: a possibilidade de cada um deixar a assembléia no mo­ mento em que sente que não deve mais ficar, sem que isto implique em qualquer sentimento de censura ou de culpabilidade para a pessoa em questão, nem de perturbação para o grupo. Isto poderia ocorrer depois da reflexão sobre a Palavra e antes da oração comuni­ tária, se esta for a explicitação plena de uma confissão da fé batismal (daí a utilidade de escolher de antemão orações que convenham a todos, como acontece com alguns salmos). Um momento adequado seria sobretudo antes da eucaristia. J! fato igualmente discutível o saber s'e quem não comunga está moralmente obrigado a assis­ tir à eucaristia, e ainda: se se deve privá-lo da participa­ ção à assembléia porque não se sente em condições de tomar parte na refeição pascal do Senhor. Se adotássemos uma tal política, talvez que crentes e cristãos de espécies diversas (batizados em situação dita "irregular", pessoas em busca ou, em crise, adoles­ centes às voltas com urna religião infantil) teriam a oportunidade de poder viver da Palavra e dos sinais da Igreja em oração, enquanto que na conjuntura atual se acham afastados. Inversamente, a eucaristia, em vez de ser, como o é atualmente, a cerimônia ad omnia, seria revalorizada como a profissão e o pacto supremo dos que aceitam morrer e ressuscitar em Cristo. Talvez

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que também isto nos encaminhasse para um novo tipo de iniciação cristã mais sígnificativa. Já estou vendo surgir aqui toda uma série de obje­ ções: Por que levantar questões assim a respeito da missa do domingo? A maioria dos participantes parecem satisfeitos. Seria perturbá-los sem vantagem nenhuma. - Por que não atender às necessidades particulares de que você fala, e que in teressam apenas a uma minoria, nos grupos e nas reuniões feitas para eles? Aliás, eles não viriam, mais do que já o fazem, a essas assembléias utópicas! - Você parece fazer pouco caso da obrigação dominical, ou, pelo menos da assistência regular à missa do domingo. - Você dá prioridade à Palavra em detri­ mento da Eucaristia, com as suas "saídas" possíveis, contrariar..Jo tudo o que nos foi ensinado e que, a duras penas, foi inculcado aos fiéis etc. Tais questões são reais e precisam ser levadas em conta. Eu poderia retomá-las imediatamente e discuti­ -las uma por uma. Mas, ao querer responder a cada uma, eu me teria de fechar parcialmente dentro de pro­ blemáticas das quais justamente desejo sair. Permitam­ -me, pois, prosseguir na busca de uma nova coerência para a "vida como Igreja" hoje, imaginar qual poderia ser a fisionomia das assembléias litúrgicas realmente portadoras dos valores essenciais do Reino, tão signifi­ cativas quanto possível e reveladoras desses valores para os homens de hoje. A fisionomia de nossas assembléias é incerta porque quereria ser uma fisionomia aberta e no entanto é fecha­ da, porque não exprime o que quereria exprimir.. Mas, ao pleitear que a assembléia cristã se torne capaz de manifestar melhor o que ela é tanto aos de dentro, quanto aos que a circundam ou estão de fora, ao desejar uma circulação melhor entre a eclésia e o mundo em que ela se reúne, não entenderíamos sonhar com uma transparência total nem com um nivelamento entre a soleira e a casa. ~ a fé em Jesus Cristo e somente ela que dá sentido à reunião dos cristãos. Não há grupo

humano possível nem identificável sem que se manifeste estado dos que lhe pertencem e dos que não fazem parte dele, dos que desejam nele entrar e dos que não o desejam. Os cristãos reunidos em assembléia serão sem­ pre, num certo sentido, pessoas "à parte". Não será apagando os sinais de nossa fé e destruindo suas arestas mais significativas que daremos às nossas assembléias a fisionomia firme e livre com a qual elas devem teste­ munhar ao mundo a libertação em Jesus ressuscitado.

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COMUNIDADES IMPOSS1VEIS DE SEREM ENCONTRADAS

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Ambigüidades do termo comunidade - Situação recíproca das comunidades de Igreja e das assem­ bléias de Igreja - Relações entre elas - Assem­ bléias por demais cultua'< - Reequilibrar as fun­ ções: o anúncio evangélico e sobretudo o viver-jun­ tos (koinonia) - Hipótese de três níveis de reu­ niões de Igreja - Entre os pequenos grupos e as assembléias de festa: a assembléia ordinária domi­ nical, núcleo da vida eclesial, subcomunidade da paróquia ou da zona pastoral - Não multiplicar as reuniões.

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Numa noite de domingo, fui convidado para jantar num subúrbio com um jovem casal amigo. A conversa­ ~âo, pela tagarelice das crianças em idade de catecismo, dirige-se para assuntos religiosos. E o marido inter­ rompe: "Vocês são uns chatos, quero dizer os outros párocos! Ainda hoje de manhã, na paróquia, o vigário nos 'dizia: 'Vocês são uma comunidade! E preciso que uns se preocupem com os outros como membros de uma mesma comunidade ... ' E assim foi indo no seu 'papo furado'. Eles só têm a palavra comunidade na boca. Mas basta ele olhar para nós para ver que' não somos uma eomunídadel Eu não conheço praticamente ninguém dentre as pessoas que freqüentam essa igreja. Se vou ~ missa ali é porque é a igreja mais próxima e porque l11eus pirralhos têm de ir lá para o catecismo ... " Há muito de verdade nessa explosão de franqueza. Primeíramente, faz-se mesmo, nos sermões e na litera­ 59

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tura religiosa, um uso imoderado da palavra "comuni­ dade", adaptando-o a todos os sabores. Depois, é ver­ dade também que muitos cristãos que freqüentam as igrejas, e, sem a menor dúvida, a maioria deles, não têm' a mínima intenção de formar entre si uma comunidade. , Alguns nem de longe se preocupam com isso. Outros suportam a idéia. Uns tantos contestam abertamente. a validade de liturgias que em nada se assemelham a • uma assembléia de irmãos, e preferem ir procurar um : grupo onde haja mais calor humano - ou então desis- .• tem simplesmente. Diante de tal quadro, é caso de per-j guntar-nos em que a assembléia litúrgica deve ser uma' comunidade e em que não pode sê-lo. Impõe-se hoje uma reflexão sobre a relação entre. comunidade cristã e assembléia litúrgica. Ao situar mal esta relação, correm-se riscos e criam-soe ilusões. De um lado, seria estranho que a assembléia não desenvolvesse entre os cristãos relacionamentos comunitários. Uma comunhão invisível que não se manifestasse através de nenhuma forma visível seria ilusória. De outro lado,'. porém, quem vem à assembléia litúrgica com a esperan-' . ça de ver aí satisfeitos todos os seus desejos de sociabi- . lidade humana em meio aos outros crentes bem poderia' terminar numa decepção perigosa. Tentamos primeiramente situar os dois termos da relação. Pois que eles não se identificam. Pode-se cha-. mar de comunitário, em sentido amplo, tudo o que é' comum a um certo número de pessoas. É assim que podemos falar de liturgias verdadeiramente cornunitá­ rias, porque nelas todos são e se sentem participantes. Ou então se poderá falar da natureza comunitária da liturgia porque ela convida e visa à união de todos na fé e na caridade. Nesse nível bastante geral, poder-se-ia também falar de unidade, de solidariedade, de comunhão.': A comunidade permanece, não obstante, um con­ ceito preciso, que designa uma realidade definida. O sociólogo Jean Rémy assim se exprime: "A comunidade supõe normalmente um território no interior do qual o

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Indivíduo encontra condições para atender às suas diver­ necessidades e aspirações sociais" 1. Diferentes rea­ lídades sociais nos fornecem modelos disso. A família lllitá na base; mas a comunidade familiar, ao nível de relacionamentos internos com uma forte coesão afetiva, oferece um modelo demasiado restrito; ela é o lugar em que se passa apenas uma parte da vida de seus membros. A aldeia rural já forneceu um modelo predominante. J~la continua ainda a ser, na mentalidade de muitos, uma imagem ideal da vida em sociedade, com uma proximi­ dade e urna solidariedade perceptíveis. De fato, é o modelo urbano que predomina hoje. Ele favorece múl­ tiplas possibilidades de laços e compromissos e, ainda, relações eletivas, é bastante descompromissado e, com isto, capaz de gerar frustrações pelas suas inevitáveis ['01.nas de relação despersonalizadas e pelo enfraque­ cimento do sentimento de ligação e dependência. Corno se insere a vida da Igreja nas comunidades humanas e em que condições será legítimo falar de comunidades cristãs? Nos primeiros séculos, em meio a uma sociedade pagã, os grupos de Igreja se apresentam mais com as características de uma seita (grupo res­ trito, com recrutamento eletivo e forte coesão interna). Nos tempos da cristandade, sociedade civil e sociedade de Igreja se englobam. A aldeia rural se identifica com tt paróquia. Pode-se então falar de comunidade cristã. A urbanização, multiplicando as paróquias numa mesma cidade, introduz urna brecha no modelo, mas ainda o conserva. A secularização é que vai modificar as coisas. Num primeiro período, a vida eclesial se retira (ou é nfastada) de alguns setores da vida social. Mas conti­ nua a dividir o território das cidades em paróquias e conserva a imagem da aldeia e a nostalgia da paróquia­ -comunidade. Hoje, é forçoso reconhecer que existe urna IJrande defasagem entre a instituição paroquial urbana NUS

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J., "Communauté et assemblée liturgique dans une

via sociale en voie d'urbanisation" in La Maison-Dieu, 91 (1967), p. 87.

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e a vida real da Igreja. Em Paris, por exemplo, muitos

batízados, praticantes ou não, nem mesmo sabem qual: é a sua paróquia. Até no campo as fronteiras paroquiais ;

começam a diluir-se. Uma nova maneira de pertencer .

à Igreja num mundo secularizado está sendo procurada.

Em meio à desestruturação progressiva da cristan­ dade e de suas comunidades territoriais, uma realidade persiste com uma solidez espantosa: a assembléia litúr­ gica, e especialmente a missa do domingo. Os indícios de um enfraquecimento da prática dominical são incon­ testáveis. E sem dúvida que vão acentuar-se. Assim mesmo o que se vê é mínimo em vista das predições feitas há dez anos atrás. Pois a realidade das assembléias é distinta da realidade das comunidades cristãs territo­ riais. A evolução de umas e outras é diferente. A assembléia é constituída por mdivíduos que se " agrupam em um determinado lugar, por um tempo Iírní-« tado, e para uma tarefa específica: celebrar como cren-. tes sua esperança e acolher a salvação que lhes é ofere- • cida por Jesus Cristo. A assembléia litúrgica é um dado: . social original. Ela nunca reúne todos os membros da '.' comunidade paroquial; em compensação, está aberta a todos os crentes, venham de onde vierem. Ela é locali- , zada, mas não territorial. Enquanto que uma comuni-. dade é estável, a assembléia é móvel: nunca reúne as ' mesmas pessoas. Enquanto que à comunidade interessa, ' de maneira contínua, tudo o que constitui a vida de um" individuo, a assembléia só intervém visivelmente de for·, ma episódica e passageira. E o que é bem mais: a liturgia, por seus ritos e" símbolos de alcance escatológico, apresenta-se sempre como ruptura em confronto com a realidade comunitária. Se, por um lado, ela testemunha a esperança que têm em comum os que se reúnem em assembléia, anuncia ao ' mesmo tempo e sobretudo uma comunhão que precisa ser realizada. Ela denuncia a não-unidade, a não-comu­ nidade dos que se acham reunidos no próprio momento em que mostra o sinal-sacramento dessa unidade que 62

.leve vir. Não se ocupa diretamente e em detalhe da '\IMa comum concreta dos cristãos reunidos, ou seja, com IllUlS necessidades materiais, com a reconciliação entre .loís indivíduos, o engajamento político ou social de seus membros. Tudo isto está presente, mas sob a forma do ugir simbólico que é próprio da liturgia. Esta toma sínaís simbólicos à luz dos quais cada um dos partici­ pantes e todos eles juntos terão de situar-se. Enfim, a nssembléia se dissolve e devolve cada um à sua vida quotidiana, individual e coletiva, Está claro que, em tais condições, a assembléia não constítui urna comunidade no sentido preciso do termo. No entanto, normalmente é um grupo instituído que mantém as assembléias, que a convoca para um lugar II urna hora determinados, que programa e anima a celebração. Inversamente, o anúncio evangélico e o aacramento inculcam uma certa maneira de viver jun­ tos segundo as exigências do Reino. A assembléia não existe portanto, normalmente, sem um mínimo de ins­ tituição e de vida comunitária. A necessidade que têm as assembléias [ítúrgicas de poder apoiar-se em alguma forma de vida comunitária, humana e cristã, explica, sem dúvida, o mal-estar que He percebe nas celebrações que parecem não ter mais estabilidade social e eclesial. As deficiências se manifes­ tam. As frustrações surgem. Aparecem limitações den­ tro da própria celebração. Os indícios disto facilmente saltam aos olhos. Quantas vezes ouvi observações deste gênero: "De fato, não me é possível celebrar com sinceridade uma eucaristia ao lado de pessoas que não conheço e no meio das quais parece que ninguém se interessa pelos outros". "É uma contradição comungar sem colocar nada em comum". Ou ainda: "Essas missas no anoni­ mato são-me insuportáveis. Para mim elas são um con­ tra-sinal da vida cristã". Reflexões como essas mani­ festam evidentemente uma compreensão incompleta do mistério da assembléia litúrgica; mas revelam expectati­

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vas decepcionadas. Explicam por que alguns abandonam assembléias que lhes parecem tão desumanas quanto pouco cristãs, e vão procurar um grupo pequeno onde poderão trocar idéias e experiências e celebrar numa proximidade real. Outros tentarão ir mais longe na aven­ tura comunitária, com tentativas de convivência, de par­ tilha de bens, de compromissos sociais ou políticos assu­ midos em conjunto. É esta a feição tradicional da "co­ munidade religiosa" que constitui, de fato, a única rea­ lização que hoje em dia possa verdadeiramente ser cha­ mada de "comunidade cristã". É certo que a fé não pode abranger toda a vida de um homem e que este não pode viver plenamente como Igreja, se, para exprimir isto, só dispuser de uma assis­ tência individual a ritos. Enquanto se espera por uma reforma qu... faça cada cristão, na Igreja, sentir-se reco­ nhecido e sustentado, parece que a assembléia, única j instância de pertença eclesial habitual para um grande número de cristãos, pode desempenhar um papel deci­ sivo. Para isto, porém, ela deve ampliar suas funções e modificar sua fisionomia. Em primeiro lugar, tenho a dizer que nossas assem­ bléias atuais são, por demais, exclusivamente cultuais. ,1 A assembléia de Igreja nunca se contentou de celebrar 'I': ritos - mesmo considerando os sacramentos como o ' : coração de seu ser íntimo. Quando se observa como vivia , ; a Igreja primitiva, constata-se que seu traço mais carac-: [ terístico é o de manter assembléias. Os Atos dos Após- • I tolos assinalam freqüentemente que eles "estavam todos :: em um mesmo lugar". Quando procuramos ver em que I consistiam essas assembléias, notamos três aspectos. I Primeiro vem o "ensinamento dos Apóstolos" (a Didas- ,I cália), isto é, nada menos do que a pregação do Evangelho, o anúncio da Boa-nova sobre Jesus e a conversão • que se deve seguir. Depois está colocada a Koinonia, I que podemos traduzir como "caridade fraterna", mas também como "vida comum": os irmãos tinham "um só coração e uma só alma", diz-nos o texto. Isto se tradu­

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zia concretamente pela partilha dos bens e a ajuda mútua. Em terceiro lugar, vêm as "orações", feitas diariamente, e a "fração do pão" que designa aqui a Refeição do Senhor, mais tarde chamada eucaristia. As assembléias asseguram, pois, tudo o que é necessário à vida da comunidade primitiva. Podemos caracterizar as diversas funções asseguradas pelas assembléias de Igre­ ja apontando três aspectos prioritários - anúncio evan­ gélico, sustento mútuo, culto (oração e sacramento) ­ sem que nos seja possível distinguir assembléias pura­ mente catequéticas, caritativas ou litúrgicas. Essa fun­ ção global das assembléias cristãs parece ter durado por todo o período da Igreja dos mártires. Com o passar do tempo foram ocorrendo separa­ ções e reduções. O aparecimento de grandes assembléias depois da paz constantiniana, com uma forte proporção de catecúmenos, certamente representou aí o seu papel. Tudo o que diz respeito à diaconia, ao serviço dos pobres, dos doentes e dos prisioneiros, é organizado à parte. O ensino desempenha ainda um papel de grande importância. A primeira tarefa do bispo é a .catequese. Mas, depois da conversão dos bárbaros, a pregação decai. Pouco a pouco a assembléia vai-se tornando cultual, Numa sociedade dali em diante cristã, a assembléia é apenas o lugar de cerimônias realizadas pelos clérigos. O povo somente assiste. Quando, depois do concílio de Trento, é retomada a catequese dos adultos (catecismos, missões paroquiais) e criada a cateques·e das crianças, a coisa é feita à margem da liturgia. A era dos rubricis­ tas acentuará a ruptura entre os ritos sagrados e qualquer outra atividade cristã de piedade, de ensino, de carida­ de. O movimento litúrgico do último século desenvol­ ver-se-á nesse contexto cultual que assinala sempre, e quase exclusivamente, nossas assembléias dominicais. A reforma do Vaticano II começou a reequilibrar as coisas. Fez ressaltar grandemente o valor da função da Palavra em toda assembléia litúrgica. Aliás só encarava esta função sob sua forma ritualizada: leitura da Escri­ 65

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tura e homilia presidencial (ou pelo menos feita por um sacerdote), supondo que as catequeses e as diversas formas de ensinamentos bíblicos ou teológicos seriam feitas em outra ocasião. Mas bem depressa se percebeu que, de um lado, a maioria dos cristãos praticantes não tinham outra oportunidade para receber o alimento evangélico a não ser a missa do domingo, e, de outro lado, apenas as leituras bíblicas e a homilia presidencial não bastariam para que o pão da Palavra fosse real­ mente repartido, distribuído e assimilado. Daí nasceram , as tentativas de partilha da Palavra em pequenos grupos,:; de homilia dialogada, de leituras não bíblicas mais aces- ' síveis, de reflexões sobre textos. Uma liturgia da Pala- '! vra fortemente ritualizada está exigindo uma mudança de feição para que cada um possa ser evangelizado de acordo com a sua capacidade. A assembléia está vol­ tando a ser lugar de didascálía. Retomaremos este pon­ to num capítulo especial. Resta-nos ver a função que os Atas chamavam de Koinonia. O Ordo missae do Vaticano II a ela se refere em duas palavras, as duas primeiras: Populo congregato, "Estando o povo reunido em assembléia ... ". Isto quer dizer que ele supõe o problema já resolvido quando o : culto começa. Mas a questão está precisamente em saber i se os fiéis materialmente reunidos - mesmo isto é prov' blemático, já que até o começo do ofertório há pessoas' chegando à missa - mantêm entre si relações humanas' que permitam uma escuta comum frutuosa da Palavra, uma oração verdadeiramente partilhada, uma comunhão' fraterna. Sem dúvida que não é por acaso que os Atas' colocam a koinonia antes das orações e da fração do; pão. Os ritos simbólicos da liturgia são significativos na' medida em que o contexto da assembléia que os celebra lhes dá sentido. Será que não é isso que é confusamente percebido por todos os que hoje sofrem com o anonimato e a ausência de sociabilidade em nossas assembléias? "A gente não se conhece ... " "Não se é capaz nem de dar um

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bom-dia na igreja". Não é a esta necessidade elementar de humanidade que desejam atender as experiências de acolhimento no inicio das assembléias, as apresentações mútuas nos pequenos grupos, o cafezinho à saída da missa? Tímidos paliativos de uma ausência bem sentida de koinonia. f. claro que, se não existe a comunhão humana, a partilha da Palavra ficará corno algo mera­ mente formal, a apresentação de intenções em orações um tanto personalizadas será impossível ou não terá razão de ser, a comunhão em sua dimensão de serviço mútuo se fará em nível do abstrato. Finalmente, se a assembléia litúrgica não se identi­ fica com a comunidade cristã local, esta não pode viver sem procurar alguma forma de harmonia. Mas onde se encontrarão "assembléias de Igreja" - além dr 3 rituais - nas quais possam ser tratadas questões referentes à sua vida? Organização dos diversos serviços litúrgicos, catequéticos, de caridade: designação dos papéis e das pessoas que vão desempenhá-los; subsistência do clero e dos colaboradores leigos; manutenção e conservação dos locais; opções de ajuda aos mais necessitados, às missões, ao terceiro mundo; reflexões sobre a iniciação das crianças, o lugar dos adolescentes, a preparação ao casamento; atenção à população do bairro e à evangeli­ zação que deve ser feita etc., essas decisões pastorais são geralmente tomadas pelos padres e, na melhor das hipóteses, também por alguns leigos dedicados ou mais influentes. Parece que uma tal forma de governo, quer tecnocrática ou autocrática, não corresponde à maneira moderna e, ainda menos, evangélica de viver juntos. Atualmente, não seria o caso de dar vez a assem­ bléias de cristãos que não visem somente, a escutar a Palavra e celebrar a eucaristia, mas também a viver juntos segundo o Evangelho? Alguns propuseram que cada domingo, no início da assembléia, .se dedicasse algum tempo a dar atenção às pessoas (presentes e ausentes), a fim de que se saiba melhor a quem se dirige a Palavra e que compromissos decorrem da partilha do 67


pão. Em certos lugares, mantêm-se assembléias assim uma ou várias vezes ao ano. Aí também, a Igreja reunida procura tomar para si uma fisionomia a fim de poder .: apresentar-se como uma comunidade. . Para que as diversas funções de uma assembléia de Igreja, que não seja exclusivamente ritual, mas também evangélica e comunitária, reencontrem o equilíbrio, para que essas reflexões ainda teóricas se tornem operacio­ nais, para que as experiências esporádicas tentadas aqui e ali se desenvolvam, é preciso confrontá-las com a rea­ lidade de nossas assembléias, com a composição, a fre­ qüência e a dimensão que elas têm. Como, numa gran­ de paróquia de cidade, em que as missas de domingo se sucedem de hora em hora, se poderá fazer partilha de evangelho e favorecer a sociabilidade eutre os cristãos? E que fazer nos recônditos afastados da zona agrícola que um só padre visita apressadamente com sua Rural e onde encontra, alguns minutos antes da missa, oito crianças e quatro mulheres? Olhar com coragem a rea­ lidade existente, não porém para deixar-se abater por ela... De fato, nossas paróquias, dividindo o território de uma diocese e centralizadas em uma igreja com seu cle­ ro e seus serviços, estão em crise sob vários aspectos. A instituição paroquial deve ser inteiramente repensada.. Será necessário tempo para isto, e ninguém ainda pro­ pôs um "modelo" institucional, verdadeiramente fun­ cional que possa ser aceito e experimentado. Entre­ tanto, as assembléias dominicais continuam tendo o seu lugar. Continuam existindo e evoluindo, quaisquer que: sejam as vicissitudes por que atravessa a instituição paroquial e os seus ministérios. Elas são mesmo ­ isto é convicção nossa - o penhor mais seguro da per­ manência de uma Igreja viva, cujas estruturas pastorais e missionárias estão transformando-se. Tentemos destacar alguns traços comuns de tais assembléias e procurar as condições em que elas podem funcionar. Partimos da hipótese da assembléia regular, 68

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localizada, aberta. Para abreviar, chamá-Ia-emos de "do­ minical", no sentido etimológico de assembléia do "Senhor" ressuscitado - sem especificar no momento seu liame com o dia da semana que denominamos domingo. Primeiramente, elas se realizam num lugar deter­ minado e delímitável, em dia e hora conhecidos. São abertas a todos os que crêem (ou desejam crer) no Deus de Jesus Cristo. Neste sentido, são "públicas", diferenciando-s·e dos pequenos grupos. Todo "irmão" pode vir a elas e deve sentir-se à vontade para participar da celebração na medida de sua fé, mesmo que sua presença seja apenas esporádica. Normalmente, elas possuem um enraizamento local. Apóiam-se sobre um núcleo de fiéis que pode ter que se constituir de manei­ ras diversas. Há os que vão à igreja mais próxima. Há os que, por escolha, decidem freqüentar uma determi­ nada assembléia. Necessariamente há os responsáveis pela celebração: sacerdote e ministros que desempe­ nham as diversas funções. Tudo isso acaba por criar na assembléia um grupo de presença habitual. Por meio deles se estabelece o relacionamento normal entre as­ sembléia e comunidade local (geográfica ou não). De um lado, portanto, a comunidade mantém assembléias regulares. Do outro, é na assembléia, que escuta a Palavra e partilha o Pão, que se baseia a .comunidade ele Igreja. Um elo entre a assembléia dominical e a comuni­ dade localizável parece indispensável para o bom fun­ eíonamento da celebração. De uma parte, é preciso um núcleo de pessoas habituadas para poder celebrar com uerta facilidade: serviços distribuídos com segurança, língua comum, cantos conhecidos, hábitos de grupo. Não 'lI possível, de cada vez, inventar de novo o funciona­ mento ritual: a participação nele ficaria dificultada, pura atenuar as dificuldades usar-se-iam forças que se­ dam melhor empregadas na escuta à Palavra, na oração,

69


! na adoração. De outra parte, é pela reação do grupo

diante dos sinais e símbolos propostos é que estes podem

ser interpretados, verificados e ajustados. Como saber

se a linguagem usada é boa, se o estilo da celebração

convém, se os cantos e as orações estão adaptadas, se

o tom geral está como devia ser, se não existe ao menos . um punhado de pessoas que se conheçam, que possuam ),. um mínimo de vida e de cultura comuns e que possam manifestar isto como grupo? A questão é ainda mais séria se se trata de julgar o impacto da Palavra anun­ ciada e da validade (não somente jurídica, mas humana em perspectiva de fé) dos sacramentos. Para que haja oportunidade de um tal tipo de as­ sembléia funcionar, já mostrei a importância do número de pessoas ..eunidas e da dimensão do local. Não penso que uma assembléia possa atualmente equilibrar as fun­ ções da Palavra, da caridade fraterna e do rito quando agrupa várias centenas de pessoas. Se minha hipótese for exata , daí se segue que esse tipo de assembléia ordi­ nária - que chamamos de dominical e que seria como a célula de base da igreja local - se apresentaria numa escala menor do que a da maioria das paróquias urba­ nas atuais, e maior do que a de algumas paróquias rurais de população rarefeita. Em conseqüência também, dever-se-ia, por certo, distinguir dois níveis de organização pastoral no interior de uma diocese. Um nível intermediário abrangeria zo­ nas bastante amplas, munidas de todos os serviços de uma Igreja local completa, e como que autônoma: evan­ gelização, catequese, preparação para o batismo e o ma­ trimônio, ação católica, movimentos e obras diversas etc., com um representante do bispo e um presbitério. E um nível básico, organizado em torno da eucaristia dominical" com tudo aquilo que possa interessar à vida ordinária dos que se reúnem. Rigorosamente falando, só a zona corresponderia à comunidade cristã. As assem­ bléias "dominicais" seriam antes subcomunidades par­ 70

ciais. Tornar-se-ia então possível, se a circulação e a harmonização existissem dentro de uma determinada zona, que as subcomunidades diversificassem sua fisio­ nomia e seus serviços. Elas já, não teriam a pretensão de fazer tudo como as antigas paróquias auto-suficien­ teso Aqui se poderia dar ênfase à catequese e ali a um discernimento sobre questões atuais da fé; aqui à ini­ ciação das crianças ou à integração dos jovens, e ali a uma liturgia mais contemplativa etc. Para isso, levar-se­ -iam em conta realidades existentes, competências e ca­ rismas dos responsáveis e animadores, realizações come­ çadas, necessidades 'percebidas. Os cristãos de uma zona assim poderiam escolher melhor a sua assembléia ordi­ nária, e trocar quando o desejassem. Essa hipótese evoca uma outra que a completa: para que a Igreja viva primeiramente através de suas assem­ bléias locais, no momento atual, três níveis de reuniões lhe seriam necessários. Já fiz alusão a esses três tipos de reuniões.

Antes de tudo, é preciso reconhecer a importância e o interesse dos pequenos grupos espontâneos, tais como os temos visto nascer de alguns anos para cá, sob as formas mais variadas. Eles são um lugar de relaciona­ mento intenso, em que cada um pode ser acolhido e reconhecido na sua maneira de ser, de acordo com seu nível de fé e de cultura. Desenvolvem um forte senti­ mento de pertença (a Cristo e à Igreja pelo, e no gru­ po). O cantata com o Evangelho em geral é aí algo de sério, exigente e concreto. Aí a oração é partilhada e ex­ pressa com simplicidade e profundidade. As eucaristias Lli celebradas tocam mais profundamente os que delas participam. Aí todos se tornam sensíveis ao símbolo do pão repartido e do cálice comum. Em tudo isto, dizem, cada um se sente diretamente "envolvido". Mediante esse tipo de pertença, é que alguns tomam consciência de viver mais do Cristo, do Evangelho e da Igreja. Re­ cordemos, entretanto, que os pequenos grupos abrangem 71


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apenas uma minoria de cristãos. Eles são demasiado restritos para incluir todos os aspectos da vida como Igreja e pretender serem tidos como uma "comunidade ' de base". Não poderiam, por exemplo, assegurar a ini­ ciação cristã, porque lhes faltam durabilidade e estabi­ lidade. Eles só dão uma imagem parcial da Igreja. Por isso, devem estar atentos em manter-se continuamente abertos a outras comunhões. São como estufas no meio dos campos a cultivar.

veis supõe, para ser bem sucedida, que .se disponha de meios apropriados e de pessoal competente.

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Considerando-se o verso da medalha, a Igreja tem; necessidade de assembléias de festa, com a participação de um público numeroso,' em tempos e lugares significa­ tivos. Depois do Concílio ocorreu um prejuízo importante com o nivelamento das liturgias dos domingos e das !.: festas. A festa permite expressar de maneira especial a realidade desse povo heterogéneo. feito de coxos e de cegos, de brancos e de negros, de ricos e de pobres, de homens e de mulheres, de velhos e de crianças, que a Boa-nova convida ao festim das núpcias. Ela se faz atra­ vés de símbolos que, de cada vez, se apresentam de determinada forma, sem oscilar entre o ritualismo e a desmistificação. Permite que alguns, que não se sentem muito atingidos pela missa do domingo, sejam ajudados " no seu ser religioso e crente. Para mim, essas grandes " assembléias de festa teriam muito de comum com o culto celebrado habitualmente nos lugares de acentuada evidência e abertos a todos: catedrais, basílicas e igre­ jas que são centros de peregrinações, santuários histó­ ricos, por onde passam pessoas de todas as línguas, de diversos berços sociais e de diferentes níveis de fé. Em casos assim, não se pode cogitar de "comunidade". São assembléias que acontecem uma só vez, ainda que possa. incluir uns poucos participantes habituais. A liturgia aí ' só pode funcionar com meios garantidos por um grupo de animação estável, estruturado e especializado: clero, animadores, cantores, coral, organista, serviço de recep­ ção. A celebração com multidões heterogêneas e variá­

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Entre os pequenos grupos mais ou menos espontâ­ neos e seletivos de um lado, e as grandes concentrações ocasionais de outro, a Igreja não pode viver sem assem­ bléias locais relativamente estáveis, normalmente liga­ das a uma comunidade territorial. Essas assembléias significam antes de tudo a convocação permanente de Deus a seu povo para ouvir a sua Palavra e celebrar a Aliança. A Igreja, como "convocação" de Deus, é prio­ ritária em relação à decisão que os indivíduos tomarão de ir ou não ir à assembléia. I1. a primeira coisa que deveria assinalar a convocação semanal no dia em que se comemora a ressurreição do Senhor e eJ"'1 que se atuaíiza a sua vinda. Não é possível nem indispensável que venham todos à assembléia, embora todos estejam convocados para ela, mas é necessário que a assembléia se realize para que o dom de Deus seja oferecido a todos pela sua Igreja, que é dele depositária e mediadora. Urna última reflexão prática: quando se constata que uma assembléia-comunidade está precisando de ree­ quilibrar suas funções dó viver-juntos-como-Igreja, quer favorecendo as relações pessoais, quer intensificando as diversas formas de transmissão da fé, para atender a isso, será acaso necessário instituir outras assembléias além da assembléia ordinária que estabelecemos cha­ mar de "dominical"? Um ritmo de reunião semanal entre cristãos já é bastante denso, tendo em vista a vida moderna. Chega até a ser bem pesado para alguns. Se se fizerem assembléias suplementares, somente um pe­ queno número comparecerá a elas - sempre os mesmos: os mais engajados e os mais dedicados; aqueles que estão sempre presentes a tudo. A maioria dos "praticantes" flcará por fora do que se passa nessas reuniões. Eles continuarão a vir aos domingos para "assistir à missa". Por este meio, a assembléia do domingo quase não evo­ luirá. A sabedoria não estará então em aproveitar pri­

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meiro o que já existe, isto é, as assembléias do domingo? É justamente aí que se precisa pôr em prática a koino­ nia, com a tríplice partilha efetiva da Palavra, dos bens (não apenas os materiais) e do Pão. Se o esquema atual de nossa missa parece rígido demais para se conseguir isto, então será necessário ampliá-lo. A finalidade é fazer que a Igreja viva. A Igreja viverá se as assembléias forem vivas.

6.

CLAROES NUM Cf.U CINZENTO

A festa - O domingo, uma festa? - A festa-mistério e as festas-festividades - Nivelamento das festas depois da reforma litúrgica - e na sociedade ­ Compete à Igreja estabelecer suas festas - Uma nova política dos tempos e das festas - Economia e desperdício - Reuniões festivas - Diversificação das reuniões ordinárias.

A festa é a um tempo repetição e novidade. Quer se trate da festa nacional; da festa das mães, ou do domingo de Ramos, há uma data estabelecida para cele­ brar-se a festa, data que exclui qualquer outro dia do uno. Há ritos: o baile e os fogos de artifício; o presente; EI procissão com os ramos bentos. Quase todos os ele­ mentos da festa se repetem de um ano para o outro. E. no entanto, se se tivesse a impressão de estar-se apenas repetindo o que já se havia feito, a festa ficaria frus­ trada. A festa é um acontecimento. Espera-se que nela se passe alguma coisa: o desfile e o discurso que cata­ lisam as energias políticas; a refeição em torno da mãe que estreita e aquece os laços familiares; o ramo que, segundo a fé de cada um, vai evocar a lembrança dos falecidos, garantir a proteção de Deus, introduzir na Semana Santa, manifestar uma soberania que não é deste mundo. Cada celebração litúrgica participa desses dois aspec­ tos humanos da festa. A renovação litúrgica esforçou-se para revalorizar a celebração dominical como festa sema­ HuI da ressurreição elo Senhor. Cada "primeiro dia da semana", os cristãos se reúnem para recordar a manhã 74

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da Páscoa. Cada vez, eles relêem o Evangelho e refazem a Ceia do Senhor. Mas, através desses ritos repetitivos, é um algo "a vir" que eles celebram: a vinda do Reino. .e. a atualidade da libertação trazida ao mundo de hoje pela morte e ressurreição do Senhor que eles acolhem na fé. Até que ponto essa teologia e essa espiritualidade do domingo são percebidas pelos cristãos praticantes? A defasagem é grande entre a ideologia e a práxis. Não resta dúvida de que sempre foi e de que sempre será assim. Mas o que talvez se apresente como algo de novo é um certo tédio confessado por diversas categorias de praticantes. Ele pode ser notado em reflexões deste gênero: "Vocês dizem que a liturgia é uma festa, que cada missa de domingo é a festa do Cristo ressuscitado. l\1as não é isto o que nós vivemos. Nossas missas de domingo denotam entediamento, como já se viu, o abor­ recimento diante de um dever que se tem de cumprir. Nossas assembléias não dão quase idéia nenhuma de um povo em festa! Seria preciso uma liturgia menos rígida mais inventiva, mais alegre". E o adjetivo que volta muitas vezes: "As liturgias de vocês são tristes". Pode-se contestar dizendo que nunca se fizeram tan­ tos esforços para que a celebração se torne interessante, viva, e que, aliás, nunca os fiéis foram nelas tão ativos e participantes. Algumas equipes de animação litúr­ gica desdobram-se, usando os tesouros da. imaginação, no intuito de dar relevo ao tema do dia, apresentar as leituras com uma introdução, encontrar intenções rela­ cionadas com dados da atualidade para as orações, esco­ lher cantos alegres, populares, bem ritmados, acompa­ nhados com violão. .. Tudo isto é verdade. Mas a im­ pressão que se tem é que esses esforços imensos para organizar a festa cada domingo só fazem aumentar o cansaço e o tédio do público. Tentemos desembaraçar um pouco essa meada, sem confundir precipitadamente nossos desejos com realidades, ou nossos sucessos apa­ rentes por êxitos reais. Há alguns anos, quando os novos 76

"cantos ritmados" conquistaram o mercado de nossas igrejas, muitos pastores pensaram que finalmente o es­ pectro do tédio e dos "cantos tristes" havia desaparecido de nossas liturgias, e que os mais atingidos, os adoles­ centes e os jovens, retomariam o gosto pela missa. Um pouco em toda parte, nasceram as "missas de jovens" com bateria, violão e cantos com ritmos populares (às vezes mais batucados do que propriamente acompanha­ dos com música, mas pOUCa importa). Esta onda durou alguns anos e foi pouco a pouco passando. O que não significa que tenha ficado tudo perdido. Outras formas de cantos mais vivas foram encontradas. No entanto, não há mais jovens do que antes nas missas. E a ques­ tão da missa dominical continua sempre mais pungente. Impõe-se uma distinção. .e. justo que se diga que toda celebração cristã é por essência uma festa, se por este termo se entende a ação simbólica em que os cren­ tes, recordando a libertação pascal em Cristo, se rea­ nimam na esperança do novo mundo que vem. Mas é uma festa do espírito que se vive na fé. .e. uma realida­ de "mística", em que o invisível é percebido através de um visível simbólico. Ora, não há proporção "quantifi­ cável" entre a massa dos meios festivos de ordem visí­ vel utilizados na celebração e a intensidade do engaja­ mento do crente no mistério pascal. Eu posso entrar tão profundamente no mistério durante uma eucaristia do­ méstica, em que os meios rituais são reduzidos ao míni­ mo, como durante uma liturgia solene. Isto quer dizer que é necessário distinguir entre a festa no Espírito, que depende do grau da fé, e a expressão festiva da cele­ bração que decorre dos sinais e símbolos postos em ação. Ora, o grau de festividade que vai ser adotado não se decide de acordo com o objetocelebrado, que é sempre a mesma salvação oferecida por Deus, mas de acordo com as necessidades e capacidades dos que se reúnem para celebrar. Aqui os critérios são de ordem humana, históricos e antropológicos, culturais e naturais, pedag6­ 77

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gicos e pastorais. São aqueles que presidiram à elabo­ ração das festas cristãs e do ciclo litúrgico, cujo con­ texto essencial está de agora em diante inscrito na fisio­ nomia da Igreja. São eles que, num outro nível, devem guiar as assembléias na prática de suas celebrações. Primeira constatação: "Não há festa todos os dias". Há oposição entre o quotidiano e o festivo. A festa imo plica saída da rotina, algo além do comum. Para isto gasta-se tempo, dinheiro, forças. Tal só pode ocorrer de tempos em tempos, em ocasiões excepcionais, em datas significativas, em dias simbólicos. A festa, porém, é tão necessária ao homem quanto o pão quotidiano. ~ ela que pode dar sentido à sua existência. Ela significa o alhures sem o qual o aqui e agora não teriam sentido. Ela o significa e o torna presente. Sendo assim, a Igreja, como todo grupo social, tem necessidade de festas, no sentido de "momentos festí­ vos", em que o mistério é significado de maneira mais intensa. Indubitavelmente é este o caso do Tríduo Pas­ cal e do Natal. Mas que dizer então da celebração domi­ nical? Poder-se-á festejar cada domingo? Ou, mais exa­ tamente, que grau de festividade pode ter a celebração dominical para que ele seja plausível, significativo, fru­ tuoso? Antes de abordar essa questão, eu gostaria de voltar: a uma constatação já assinalada: a reforma litúrgica pós-conciliar, que se baseia numa belíssima teologia do domingo, dos tempos litúrgicos e das festas, paradoxal. mente, parece ter acabado por nivelar os dias e os ele­ mentos festivos. Explico-me. Todos os esforços pastorais se têm voltado para a participação ativa dos fiéis em todas as missas: Ieíturas bíblicas mais abundantes; textos traduzidos e lidos, fl'tl' qüentemente introduzidos e explicados; ritos símplil'l­ cados para que sejam mais "transparentes"; cantos sim pIes - novos para a maioria porque substituem cantil" em latim - a fim de que todos possam tomar parte: estilo mais direto, mais familiar, menos hierático e 11111· 78

nos triunfalista. Tudo isto constitui um programa váli­ do cujos resultados foram em parte positivos. Mas é preciso examinar-lhe todas as conseqüências. Isso quer dizer também: desaparecimento dos cantos que eram como que o símbolo de um tempo ou de uma festa (por exemplo: Rorate, Adeste ... ); abandono de particulari­ dades cerimoniais próprias de determinados dias (pro­ cissão do Corpo de Deus, das Candeias e das Rogações; o altar das Santas Espécies da Quinta-feira santa etc.); atenuação geral da cor dos tempos litúrgicos; caráter mais didático que festivo do conjunto da liturgia. Em lima palavra, nivelamento das celebrações entre si. Hoje, em muitas paróquias, quase não há diferença entre o dia de Pentecostes e um domingo comum. Ao querer-se exaltar, o máximo possível, cada domingo, as emergên­ cias festivas não mais aparecem. Aliás, já não se sabe mais o que imaginar para expressá-las. E, por causa disto: os verdadeiros símbolos não mais se inventam; são recebidos de uma cultura. Precisamente, do fenômeno que acabamos de anali­ aar, a reforma litúrgica é menos causa que sintoma. A perda dos símbolos necessários a toda festa não é pe­ culiaridade da Igreja. Ela decorre de nossa sociedade cuja cultura está partida. As festas da Igreja tinham nldo estruturadas em simbiose com a vida socíorreligiosa dos meios onde o Evangelho era anunciado. De um lado, u Igreja retomava alguns usos pagãos - quer fossem tlatas como o solstício de 25 de dezembro ou as festas da lll'hnavera nas Rogações de são Marcos; quer elementos rltuaís como os presentes, as árvores de Natal, os ovos til) Páscoa. De outro lado, ela dava um novo sentido a IlIis costumes e usos. Assim nasceram as combinações rnmo Todos os santos e culto dos mortos, Natal e festa tIu família, quaresma e carnaval (com sua contra-festa flw; Quarenta Horas). Ora, colocando de parte a festa de Nútal, que resta ainda desse conjunto sociorreligioso na 'j(wiedade industrial secularizada? Um esquema cronoló­ I';ko para férias, como na Páscoa, ou dias feriados que 79


possibilitam "programas" (Corpus Christi, 8 de dezem­ bro, 1'.' de janeiro), com, aqui e ali, um pouco de folclo­ re. Já não há, porém, em nossa sociedade, "tempos sa~ grados" suscetíveis de oferecer uma base a nossas cele­ brações cristãs. Podem-se citar, é verdade, algumas festas de origem moderna e pós-cristã, como o dia do trabalho ou a festa das mães. Seria o caso de dizer que foi isto que permi­ tiu à Igreja instituir a festa de são José Operário? Claro que não. Se a Igreja quer ter festas, e tempos privilegiados. ela deve estabelecê-los com a comunidade dos crentes e dentro desta, sem contar primeiro com o suporte exter­ no. Não foi assim que aconteceu nos primórdios da Igreja, que vivia num meio pagão, quando o domingo cristão era um dia como outro qualquer do calendário civil? A Igreja de hoje talvez seja até obrigada, para poder celebrar suas festas como quer, a desembaraçar­ -se de costumes sociais que nasceram dela própria e que acabaram voltando-se contra ela. Refiro-me à data da Páscoa com .as férias a ela ligadas em muitos países, como por exemplo os europeus. Em algumas paróquias de cidade, em que as férias da Páscoa ocasionam o êxodo em massa de todas as forças vivas da comunidade cristã, uma parte do sentido não fica perdido quando a quaresma celebrada em comum se vê totalmente trun­ cada, sem terminar numa festa comum do mistério pascal? Se a vigília pascal é para os cristãos o cume das festas de suas comunidades, não seria preciso procurar um meio de celebrá-la no momento que lhe é mais favo­ rável para essas mesmas comunidades? ~ evidente' que não vou supor que cada comunidade escolha a seu bel­ -prazer a data da Páscoa, mas que, para fixar esta, 'os critérios humanos têm prioridade sobre os critérios astronômicos. Quando os cristãos procuram, entre Igre­ jas separadas, encontrar uma data comum para celebrar a Páscoa, mostram que o essencial não é o 14 nizan, abandonado desde o século II, nem a lua desse mesmo

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mês de que dependem nossos calendários, mas o sentido de memorial pascal que a Igreja tem a intenção de dar a esse dia. Inversamente, poder-se-ia aproveitar certos dados favoráveis do ciclo anual civil para estabelecer festas que não existem. Assim, todas as paróquias sabem que a "abertura do ano" é um momento decisivo para a vida das comunidades. ~ ela, mais que o dia 1'.' de janeiro, o verdadeiro início do ano. f: nesse momento que se delineia a feição do novo ano, que se retomam todas as atividades pastorais e que, de volta das férias, os fiéis estão mais disponíveis e anotam datas em suas agen­ das. Não seria esta a ocasião propícia para a festa da Igreja local, abrindo as atividades do ano, como símbolo da própria existência dessa mesma Igreja e de sua comu­ nhão com todas as outras igrejas da catolicidade? Aliás, isto não seria de todo uma inovação, já que os judeus restejam, no fim de setembro, o início do ano deles [rôsh. ashana) e que a Igreja havia conservado algo disto com uma das Quatro Têmporas em setembro. Sem dúvida que seria preciso ir muito mais longe o procurar uma nova política dos tempos e das festas Iítúrgícas, com um ritmo vivo das celebrações cristãs. A vida tem necessidade de ritmos, de tempos fortes e de tempos fracos. Uma série monótona de domingos iguais nontradíz a psicologia dos indivíduos e dos grupos. Mas «aír da monocronia atual implica muita coisa. Primeiramente, é preciso aceitar que existam domin­ /{os "ordinários". Do contrário, como se haveria de per­ I~(lher quais os dias a que se quer dar um cunho ver­ tlndeiramente festivo? ~ preciso aceitar que haja um ,lnHenrolar-se ordinário, habitual, de ritos bem conheci­ ,108 e que já se tornaram familiares. Nesses dias, cada um é deixado a seu desejo e à sua fé para participar ,ln festa do Espírito. ~ um dos papéis - e não dos de Wtlnos importância - do rito repetido, o de propor­ I lunar espaços de liberdade em que sentidos imprevistos podem ocorrer. O rito extraordinário surpreende, arre­

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() amanhã da liturgia

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bata, orienta para o sentido da festa. O rito comum fica lá na sua opacidade, fonte inesgotável de claridade para o coração ávido ·e o espírito atento. Depois, em certos dias, surge a festa. O que sai das normas comuns e ultrapassa a medida habitual é ex­ presso nos próprios ritos, nos cantos, nas flores, nas luzes, na palavra, no gesto tópico, na cerimônia especial para o dia. Não se consegue isto sem previsões e pre­ cauções. Uma festa é preparada e desejada. Aí se gasta e até se desperdiça em alguns instantes o que se prepa­ rou durante horas e dias. Reservam-se para a festa sím­ bolos especiais. Torna-se praticamente impossível dar realce à festa se em toda assembléia se usam os mesmos cantos, as mesmas vestes, as mesmas palavras do dia de festa. Depois que os cantos latinos foram abandonados, tem-se cometido geralmente o erro - e continua-se a cometê-lo' - de utilizar em todas as ocasiões os mesmos cantos em vernáculo. Assim se ouvirá "Deus de Amor" ou "O Senhor ressurgiu e ainda está conosco" nos casamentos, nos funerais, num domingo qualquer e. .. na missa da meia-noite. Como se pode assim simbolizar o Natal? Isto não é o desperdício da festa, mas o desperdício puro e simples. Arranjam-se por certo desculpas: a pobreza do repertório típico para as festas; a necessidade de usar todq domingo um certo número de cantos sem que se possa dar-se ao luxo de um "Glória" próprio para a noite de Natal. Fazendo isto, porém, privamo-nos da possibilidade de ter cantos de festa. Deve-se ter a cora. gem de economizar e reservar rigorosamente alguns cantos para o Advento ou a Quaresma se se deseja que estes conservem sua tonalidade. Quando só se canta uma vez por ano, na Quinta-feira Santa, no coração da eucaristia, "Na noite em que foi entregue", então, sim, este hino adquire um forte valor simbólico. Reflexões análogas poderiam ser feitas a propósito das imagens, estátuas, ícones. Se todos os domingos, têm-se sob os olhos as mesmas coisas, acabar-se-á até por não enxer­ 82

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gar a estátua da Virgem no dia da Assunção! Vale mais

a pena ter-se na igreja uma só imagem, simbólica para

a festa, do que manter um museu permanente,

O primeiro elemento da festa é a própria assem­

bléia. Quem diz festa refere-se a reunião extraordíná­

ria. Nada há de escandaloso em ver-se na igreja, nesses

dias, pessoas que não são vistas em outras ocasiões.

Sempre foi asim. Mas pode-se também favorecer a dén­

sidade da assembléia por uma política das celebrações.

Por exemplo, numa paróquia que tem várias missas

dominicais, dá-se prioridade e relevância a uma missa

para a qual, naquele dia, todos são convidados. E

pode-se até - embora ainda falte coragem para isto _

suprimir todas as outras missas.

Porventura algumas festas não deveriam ser a oca­

s.ão propícia para as grandes concentrações, ~'eunindo as

assembléias de uma cidade ou de um bairro num só

lugar? Este lugar pode ter valor simbólico como a cate­

dral, um local de peregrinação ou uma igreja particular­

mente bela, ou então ser escolhido um para cada oportu­

nidade e variar de uma vez para a outra dentro de uma zona pastoral. Tais concentrações podem dar uma ima­ gem mais eloqüente da Igreja em festa e manifestar a comunhão católica num grau em que a missa paroquial não consegue fazer. Eu me bati fortemente pelas assem­ bléias semanais d~ dimensão restrita, como condição para obter um certo estilo de reunião na fé. Mas não penso que este tipo único de assembléia possa bastar para fazer viver o mistério da Igreja em todas as suas dimensões. Já fiz alusão ao grande valor dos pequenos grupos em que o relacionamento entre os crentes pode atingir uma intensidade incomparável - embora fazen­ do notar que esses pequenos grupos sempre interessam apenas a uma minoria de cristãos. Acredito igualmente que as grandes concentrações de festa são insubstituí­ veis. Para alguns, são a única forma litúrgica que os toca. Para outros, são uma forma de receber algo mais. Para o conjunto, correspondem a um aspecto normal 83

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da sociedade eclesial, completando a assembléia ordi­ nária e eventualmente o pequeno grupo, evitando O fechar-se numa capela ou no meio de uma Igreja parti. cular. Eles são sinais de catolicidade. Uma política dos ritmos de celebração não há de parar nas festas e nos domingos ordinários. Para evi­ tar a sucessão de domingos destituídos de significação própria, pode ser bom estabelecer séries e utilizar veto­ res 1. ~ o caso do Advento que prepara o Natal e da Quaresma preparando a Páscoa. De passagem, podemos perguntar-nos se, neste último caso, o número de seis' domingos não é excessivo. ~ possível ter fôlego para tanto tempo e conseguir uma progressão que satisfaça? E. questão de vê-lo de acordo com as comunidades. Uma distribuição, por exemplo, por três semanas inten­ sivas, pode ser em alguns casos bem mais eficaz. Por que não organizar séries análogas na longa sucessão dos domingos dos tempos comuns? Alguns o fazem com suo cesso durante os meses de julho e agosto para assem­ bléias de férias (nos lugares em que estas ocorrem nesta época), com duas séries de três ou quatro domin­ gos. Penso na preparação da "festa de reabertura", no início do ano letivo, precedida de vários domingos orien­ tados em tal sentido. Para isto não é necessário trans­ tornar o Ordo Missae e o lecionário, Basta muitas vezes uma "entrada" colorida por um canto, um texto, um poema, uma imagem. .. que melhor se colocará em rele­ vo reduzindo os outros elementos do rito inicial do que acrescentando-os a eles. Poderá haver em seguida uma leitura apropriada, uma alusão expressiva nas preces, comunitárias, uma menção na oração eucarística e depois da comunhão. Trata-se menos aliás de explorar um. tema nocional do que de favorecer uma coerência sim­

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bolica. As conexões que dão sentido a elementos espar­ sos e que os fazem "tomar sabor" são freqüentes vezes mais inconscientes do que racionalizáveis. Em suma, trata-se de tornar possível num período linear a irrupção da novidade pascal manifestada pela economia dos sinais, desde o sinal humilde e perma­ nente da fé professada e do pão partilhado no dia-a-dia até o sinal maravilhoso e passageiro do nascimento, da Vida, do sopro do Espírito e da concentração de um povo imenso, na festa visível e invisível.

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1 Vetares no caso, usados figuradamente, significam espaços delimitados por raios que partem de um mesmo pólo ou ponto - o tema central de cada série, por exemplo -, dentro dos quais há margem para ampliar sempre mais a reflexão (N. do T.).

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7.

CLÉRIGOS DIRIGENTES E LEIGOS EXECUTANTES

Um atraso na Igreja - Alguns serviços rituais con­ fiados a leigos, a mulheres - Urgência de mudar a imagem da assembléia de Igreja - Um exemplo: o serviço da Palavra - Em direção a ministérios diversificados Desvirtuamento da imagem do 'padre - Assembléias Sf'T(l padres? - Diáconos? ­ Não apenas ministérios cultuais, mas serviços de Igreja.

Nunca se falou tanto no papel do leigo na Igreja, do leigo adulto, do leigo responsável e dos ministérios dos leigos. O certo, porém, é que se falaria menos se a coisa de fato existisse. Estamos bem longe da realidade. A direção da Igreja, e especialmente a administração da liturgia, permanece em larga escala nas mãos do clero, ou seja, é feita pelos padres. Do mesmo modo, fala-se hoje mais do que nunca da igualdade entre o homem e a mulher ou do minis­ tério .das mulheres. Mas o governo da Igreja continua resolutamente masculino, livre para aproveitar ampla­ mente, nas tarefas secundárias, da dedicação inesgotá­ vel das mulheres. Nesses dois pontos, a prática eclesial demonstra um certo atraso em relação à evolução social dos países ocidentais. E o que é mais surpreendente é que o Novo Testamento colocou em realce, muito além do que tudo o que já se havia realizado em qualquer sociedade, a dignidade do povo de Deus, - desse laos tou Theou de onde vem o nome de "leigo" -, a igualdade entre a

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mulher e o homem na filiação divina em Cristo, e todas as formas de responsabilidade como serviço. Será que dessa tríplice revolução social, nossas assembléias litúr­ gicas apresentam sinais evidentes? Alguns progressos por certo já ocorreram. As ima­ gens do bispo "príncipe da Igreja", ou a do pároco, mestre único e absoluto depois de Deus, em sua paró­ quia, estão em vias de regressão. As insígnias hierár­ quicas, comparáveis às promoções militares ou às con­ decorações honoríficas, para as quais o lugar preferido eram as cerimônias do culto, são concedidas com menos ostentação (se bem que em parte perdurem). Já vemos agora as mulheres dirigirem-se à estante para ler a Bíblia e ao altar para distribuir a comunhão (embora o decreto romano que o autoriza mantenha a cláusula: se não houver homens para fazê-lo). Esse estado de coisas evolui muito lentamente e cada passo adiante, em vez de ser considerado um progresso, é encarado oficialmente como uma concessão feita, a contragosto, a algum uso dos tempos. E, no entanto, com isto trata-se apenas de promover o que é bom. E que é que se considera bom? Proponhamo-nos algumas questões. Imaginemos que se esteja preparando a liturgia da próxima assembléia dominical. Será melhor que o padre decida sozinho os cantos, os textos e os ritos, redija sozi­ nho os avisos e as intenções das preces comunitárias, prepare sozinho a sua homilia? Ou será preferível que. os que irão celebrar juntos participem da preparação e até se responsabilizem pela parte que lhes cabe na celebração? Os padres mudam; as assembléias perma­ necem. A liturgia não é propriedade do padre, mas um "serviço do povo" (nos dois sentidos: serviço em favor do povo, de quem o próprio Deus se fez "servidor" em Jesus Cristo; e serviço de Deus pelo seu povo). Está-se de acordo, pelo menos assim o suponho, sobre o princípio. Na prática, porém, não se avança rapidamente nesse sentido. Progresso houve pela cons­

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tituição de equipes litúrgicas em que leigos participam da preparação e da realização das celebrações: anima­ dor, leitores, dirigente do coral, instrumentistas, inter­ vêm na escolha dos cantos e na orientação da liturgia. Por vezes, preparam as intenções da oração. Mais rara­ mente, alguns leigos participam da preparação da homi­ lia. Mas esta evolução choca-se contra uma dupla limi­ tação. Em primeiro lugar os leigos em questão são alguns indivíduos, os mais "sugados", os mais dedicados, os mais competentes. Eles se engajam totalmente. Como o padre, eles têm seus gostos, suas opiniões. Vistos do lado da assembléia, tornam-se novos "clérigos". E poderia ser de outra maneira, uma vez que se trata de serviços estabelecidos que exigem uma compe­ tência adequada? B detestável mandar qualquer um à estante para ler, sob pretexto de participação democrá­ tica, ou deixar vir ao microfone para animar o canto alguém pouco afinado e que gesticula inutilmente diante da assistência. A palavra de Deus ou O canto da assem­ bléia merecem ser confiados a quem possa fazê-lo de modo honesto e eficaz. Falar em público ou dirigir são coisas que se aprendem. Somente alguns membros da comunidade conseguirão sair-se bem. Sem dúvida que fazer ler uma mulher à estante ou dar a palavra a um leigo na homilia já têm valor como sinal, da mesma forma como o fato de atenuar uma separação por demais evidente entre o presbitério e a nave. Modificar assim a imagem de uma assembléia, até agora muito marcada de traços masculinos, clericais e hierárquicos, não deixa de ter suas conseqüências. Mas é preciso ir muito mais longe. Se há serviços especia­ lizados na assembléia (o padre "ordenado" que preside a eucaristia, o leitor, o comentador da Bíblia que pode apresentar uma exegese correta, os músicos), cada um, no entanto, aí está a serviço de todos e todos aí são responsáveis pelo significado da festa. Isto é mais difí­ cil e mais profundo do que o ter de prover aos serviços. 89


Os vários decênios de simples "assistência" à missa fizeram do povo cristão um público passivo. Mesmo quando os leigos reivindicam hoje em dia a responsa­ bilidade que lhes cabe, o direito que têm à palavra e sua condição de adultos na Igreja, mesmo quando alguns se propõem a "ajudar" ou a "aliviar" o padr~~ a tendência, de fato, é a de deixar sempre a este último'ias decisões e muitas vezes também a execução. "Nós não estamos por dentro - Não temos competência - Nosso tempo não dá". Tais objeções muitas vezes são válidas. Mas tam­ bém, não se trata antes de tudo, repetimo-lo, de serviços especializados que ficariam sempre confiados a pessoas capazes; o que se quer é chegar a um certo espírito e a, uma forma de relacionamento dentro da assembléia. Tomemos o caso, fundamental dentro Q,O culto cris­ tão, do serviço da Palavra. Para ele é preciso um .bom. leitor para dar à Escritura aquele cunho de palavra' viva. Será necessário um conhecedor da Bíblia, se o, texto lido precisar de explicações. Mas o serviço da; Palavra não pára aí. Ele é também - e voltaremos a isto - profecia, testemunho, exortação} encorajamento. A homilia do padre alcança isto em parte. Mas são Paulo vê as coisas de outra maneira quando escreve aos colos­ senses (3,16-17): "A Palavra de Cristo habite em vós ricamente: com toda sabedoria ensinai e admoestai uns aos outros (' advertências recíprocas') e, em ação de gra­ ças a Deus, entoem vossos corações salmos, hinos e cân­ ticos espirituais. E tudo o que fizerdes de palavra ou ação, fazei-o em nome do Senhor Jesus, por ele dando graças a Deus, o Pai". Todos nós, na assembléia dos crentes, temos de dar, testemunho da Palavra uns aos outros. e. preciso que se manifeste o que cada um compreende a respeito dela, o que crê, o que vive, o que espera. Não há Palavra de Deus - bíblica ou atual - a não ser com a resposta que os homens lhe dão, ou não lhe dão. O uso exclusivo do sermão incutiu nos fiéis a idéia de que a Palavra se escuta, como se escuta um curso bíblico, uma conferên­ 90

cia teológica, ou uma exortação piedosa. O canto coletivo corrige um pouco essa imagem. Mas, assim mesmo, ela fica incompleta. Meu irmão na fé tem algo a dizer-me sobre a Boa-nova, e eu} por minha vez, tenho também algo a anunciar-lhe. Um porque sofre pela sua fé e o outro porque está contente com ela; um porque é ins­ truído pelos livros, e o outro pela experiência que tem; um porque tem um olhar de criança, o outro porque experimentou a miséria do mundo. Juntos, na partilha da Palavra e do Pão, da oração e das decisões de vida evangélica, é que formamos a Igreja. Na assembléia} os problemas que envolvem a vida de uma comunidade que tenta ajustar-se concreta­ mente ao evangelho também têm o seu lugar: a preo­ cupação com os doentes (a quem membros da assem­ bléia irão levar a comunhão com um eco da palavra anunciada), pessoas sem trabalho, sem casa ou sem dinheiro; as posições políticas que os cristãos do lugar devem tomar diante de certas questões como um con­ flito social, o aborto, a ecologia ou a bomba atômica; os negócios que fazem parte da gestão da comunidade etc. e. claro que a voz do padre sozinha e apenas a res­ ponsabilidade dele não bastam para tudo isso. e. a mesma mudança de mentalidade - assembléias alcançando o senso de sua auto-responsabilidade e de sua autogestão, na comunhão com as outras assem­ bléias cristãs e sob a orientação episcopal - que pode­ ria colocar-nos no caminho de uma distribuição melhor dos ministérios e serviços na Igreja. Corno se sabe, é esta uma questão urgente para a vida das assembléias e das comunidades cristãs. Pouco a pouco, com o correr dos tempos, todos os ministérios se concentraram no papel do padre. A prin­ cípio, era um "ancião", um homem venerável (1Tm 5,17), escolhido na comunidade para assegurar-lhe a coesão, presidir a eucaristia, ser o sinal da comunhão com as outras Igrejas locais. Ao lado dele, havia os pregadores itinerantes do Evangelho e os diáconos para os diversos 91


serviços da comunidade, depois, mais tarde, inúmeras outras funções foram acrescentadas (ordens menores). Quando diversas dessas funções caíram em desuso, o padre ficou sendo ao mesmo tempo missionário, cate­ quista, liturgista, presidente da eucaristia, chefe da comunidade, administrador dos bens e das obras. Essa imagem comulativa acha-se hoje abalada. Honestamen­ te, muitos jovens, dispostos a consagrar-se ao serviço do Reino de Deus, não se sentem chamados para desempe­ nhar todos esses papéis de uma vez. Hesitam em in­ gressar nas fileiras de seminários que conduzem a esse tipo de presbiterato ideal e ligado ao "sistema" clerical sempre em vigor. Felizmente que há outras visões possíveis. A fim de que cada comunidade local possa manter os servi­ ços de que tem necessidade, é preciso procurar primeiro no seu próprio seio pessoas capazes de assumi-los. Em. nossa sociedade ocidental contemporânea não faltam cristãos capazes cujas possibilidades não são aproveita­ das. Já foi feito um grande esforço na catequese, COIl-' fiando-se parte deste ministério a leigos, pais e mães' de família, junto a crianças e adolescentes. Também já se encontra hoje um certo número de leigos formados em exegese, capazes de explicar a Escritura à assembléia. Mais facilmente ainda hão de encontrar-se leigos, tantô homens como mulheres, que se ocupem da orientação litúrgica, da gestão da comunidade, dos grupos de ora" ção etc. Enfim, o bispo poderia escolher, para presidir a eucaristia nas "subcomunídades" locais e nas assem­ bléias de tipo "dominical" de que falamos, um pai de família, que tenha educado bem seus filhos, como diz são Paulo, que goze da confiança de todos, e capaz de tornar-se o símbolo da unidade para a ordenação pres­ biteral. Além do mais, a questão da ordenação de mulhe­ res para certos ministérios até agora apenas conferidos a homens felizmente não está encerrada na Igreja. Não ignoro os esforços importantes que têm sido feitos atualmente em diversas dioceses para realizar as­

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sembléías dominicais sem padres. Leigos da comunidade são preparados para assumir os serviços litúrgicos da Palavra, da oração, do canto, da comunhão. Não resta dúvida de que, nos lugares onde se realizam tais assem­ bléias, surge uma imagem totalmente diferente da assem­ bléia de Igreja porque esta assume efetivamente a res­ ponsabilidade de manter-se. Realizações como essas. po­ dem contribuir muito para preparar o futuro. Elas me parecem, porém, um paliativo, uma transição pedagó­ gica até que as mentalidades cheguem a ser mudadas. Elas não constituem "a" solução. Compreendo que, em alguns países recentemente evangelizados, nas comunida­ des locais sem padre, há necessidade de restringir-se às funções de "catequista" e a alguns serviços menores, por­ que parece prematuro aí ordenar padres ou mesmo diáconos. Mas em um grande número de comunidades encontrar-se-iam, se se quisesse, cristãos em condições de serem ordenados ao presbiterato e ao diaconato. Isto seria uma situação mais normal para a vida da Igreja. - Observação anexa: não há necessidade de que essas assembléias sem padres se restrinjam à realização dos ritos (parte mais fácil), mas que se ocupem tam­ bém de outras funções dentro da Igreja local. Acabo de falar dos diáconos. :e. de estarrecer que este ministério, tradicional na Igreja, revalorizado pelo Vaticano II, conferível desde agora a homens casados, tenha despertado tão pouco interesse em nossos países ocidentais. Vejo nisto várias razões. Primeiramente, como já o disse, apesar das declarações de intenções .e dos bons desejos, os leigos estão habituados a fazer tudo depender dos padres. Principalmente nos lugares onde o número de padres ainda é relativamente grande. Pelo menos suficientemente grande para impedir que as coi­ sas evoluam depressa. Depois, não se distingue bem qual seja papel deste personagem. "Um diácono para fazer o quê?" Enfim, não se percebe bem hoje em dia, quando uma função já tem quem a desempenhe, por que acrescentar a ela uma "ordenação". Ainda mais:

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tem-se receio de aumentar assim a ordem dos clérigos. _ Observo, de passagem, que o Concílio falou do papel atual dos diáconos, mas nada disse sobre as diaconisas, que no entanto existiram na Igreja. Eu ousaria dizer que não se reconhecerá a necessi­ dade dos diáconos enquanto não se houverem restabe­ lecido as verdadeiras comunidades cristãs. O diaconato se refere à vida da comunidade cristã. O padre é orde­ nado para ser o sinal do Cristo-cabeça (prae-esse) no corpo da Igreja - especialmente na eucaristia. O diá­ cono é ordenado para o "serviço". Seria até perigoso ordenar diáconos que, no estado atual de nossas assem­ bléias, sobretudo cultuais, só tivessem funções de or­ dem ritual. O papel do diácono visa antes de tudo 'à koinonia. Ele não é indispensável para a palavra e o rito. Mas, uma vez que ele exista, é evidente que aí encontrará algum papel. Esta última reflexão parece-me valer para a restau­ ração, qualquer que seja ela, dos ministérios leigos. Está bem que os leigos intervenham na celebração litúrgica para receber as pessoas, tirar esmola, fazer as leituras, levar as ofertas e dar a comunhão. Mas, quando não se percebe o laço que existe entre esses serviços rituais' e as outras funções da assembléia que são a circulação da palavra de fé e a ajuda fraterna, quando o cultual-é dissociado da evangelização de um lado, e da vida co­ mum do outro, então é de temer-se que os cristãos mais engajados desanimem no exercício de tais ministérios. Pois cada serviço diz respeito à Igreja total, toda' a vida da Igreja local e a Igreja católica inteira." Limitamo-nos ao quadro de assembléias-comunida­ des locais e serviços que lhes são indispensáveis. Mar esses ministérios locais devem evidentemente ser comple­ tados com ministérios de nível mais amplo, zona e dio­ cese. Mencionemos, 'em primeiro lugar, a vocação de evangelistas, inteiramente dedicados ao serviço do Evan­ gelho e da missão, celibatários ou não, dentro de UIÍla forma de vida religiosa ou não. Depois, o trabalho dos 94

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teólogos procurando tudo o que possa ajudar a trans­ missão da fé. Depois ainda, os que se ocupam da inicia­ ção cristã na medida em que este serviço ultrapassa as possibilidades das assembléias locais. Também aqueles que se dedicam às tarefas administrativas e aos serviços eclesiásticos de toda ordem. Atualmente, a maioria des­ sas tarefas são feitas pelos padres. Muitas dentre elas poderiam ser feitas por leigos. Freqüentes vezes, porém, são questões financeiras que impedem que elas sejam confiadas aos leigos (custo de urna formação séria; salá­ rios normais de chefes de família). Finalmente, há o papel unificador do bispo e de seus colaboradores (pres­ byterium ), imediatos ou regionais, na tarefa pastoral global. Neste nível, o serviço torna-se sinal sacramental do dom gratuito de Deus e da missão apostólica vinda do Cristo. Talvez venham a achar que nós nos afastamos da liturgia. Absolutamente. A liturgia está no coração da vida das assembléias-comunidades. Ora, a evolução desta encontra-se hoje bloqueada, num grande número dos pontos a que já acenamos ou de que falaremos, porque papéis que poderiam e deveriam ser desempenhados por membros da comunidade não o são. Muitas das nossas aspirações concernentes às assembléias e suas celebrações permanecerão vãs se o povo de Deus e seus pastores juntos não restabelecerem os gestos proféticos da diaconia e dos carismas na Igreja. Ouçamos novamente são Paulo: "Tendo, porém, dons diferentes, segundo a graça que nos foi dada, quem tem o dom da profecia, que o exerça segundo a propor­ ção da nossa fé; quem tem o dom do serviço, o exerça servindo; quem o do ensino, ensinando; quem o da exor­ tação, exortando. Aquele que distribui seus bens, que o faça com simplicidade; aquele que preside, com dili­ gência; aquele que exerce misericórdia, com alegria" (Rm 12,6-8).

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8.

PALAVRA E PALAVRAS

o uso generalizado da

língua vernácula - Traduções da Bíblia e orações litúrgicas - Efeito de inflação verbal - Predominância maciça da informação ­ Outras funções da palavra: contato, expressão, enga­ jamento, relato, poesia - Formas significativas re­ queridas - A homilia e seus sucedâneos - Uma palavra-ação.

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De um dia para o outro, a liturgia católica celebrada até então ofícialmente na única língua latina passou para uma língua viva. A língua vernácula. A língua de uso corrente em cada país ou região. E verdade que tinha havido uma preparação bastante longa. Os missais em vernáculo se tinham amplamente divulgado entre os fiéis durante meio século. Na própria celebração, havia­ "se procurado fazer tudo o que era possível dentro de uma lei rigorosa: leituras paralelas em latim e vernáculo, orações em negrito, explicações marginais. A mudança de língua constituiu o acontecimento mais espetacular e mais compacto da reforma litúrgica. Agora já é um fato consumado. . :e quase supérfluo justificar o que já está bem fun­ damentado. Quando se fala é para dizer algo a alguém. Transmitir a Boa-nova da salvação numa linguagem ín­ compreendida é uma contradição. Formular a oração da assembléia com palavras desprovidas de sentido para aqueles que as ouvem torna a palavra inútil. Mas, se o princípio só pode ser contestado por espíritos désgos­ tosos, a maneira como se procedeu e pela qual se usa agora a palavra não deixa de suscitar problemas. 7.

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97 amanhã da liturgia


Primeiro traduziram-se os textos existentes. Ouan­ do se trata da Bíblia, isto é necessário e normal. A Bíblia é uma palavra vinda de longe, de um outro tempo e de um outro meio. Ela chega até nós sob a forma de uma escritura, redigida em outras línguas e línguas do pas­ sado. Não é reinventada, ainda que se deva sempre rein­ terpretá-la. Para transmiti-la, é preciso traduzi-la. E traduzi-la conservando seu caráter de palavra de alhu­ res. Fazer crer que esta palavra passaria a ser imediata­ mente nossa e nascida em nosso tempo, seria esvaziá-la de seu valor histórico e daquilo mesmo que ela nos revela: Deus interveio realmente em nossa história humana. Este fato fundamenta minha fé na intervenção atual de Deus, Deve-se pois traduzir a Bíblia para que a compreendamos hoje, em nossa língua corrente e com nossas categorias de pensamento. Ao traduzi-la, porém, não conseguiríamos apagar todo o contexto sociohistó­ rico do texto sob pretexto de que ele é antigo, oriental.e campestre. Na liturgia cristã, a Bíblia é o único "livro".. A única Escritura. Os outros textos são a palavra viva da Igreja que responde à palavra reveladora com orações de súplica e louvor. Desta Palavra vinda de longe a Igreja se apropria, prolonga-a, comenta-a, atualíza-a, repete-a sob mil formas, em cada época e para cada lugar. Os livros litúrgicos não têm, pois, em absoluto a mesma disposição da Bíblia. Não se justifica que, para a oração da Igreja, devamo-nos contentar de tradu­ zir textos antigos escritos em latim. ~ hoje, em determi­ nado lugar, que determinados homens reunidos como Igreja rezam. A liturgia deve ser a oração deles. 1t necessário recordar isto para evitar mal-entendidos e para compreender o mal-estar que chegou a acarretar a tradução fiel de várias centenas de orações latinas an­ tigas. Dito isto, a operação tradução não é ilegítima. Pri­ meiro porque a Igreja tem uma "memória". Como para

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toda sociedade viva, seu presente é feito em parte de seu passado. Aprendemos a rezar através das orações dos que nos precederam. De outro lado, a Igreja é católica': cada época e cada cultura dão sua resposta à Palavra, enriquecem o diálogo Deus-homem, ampliam nossa lin­ guagem humana da oração. Por que então privarmo-nos disto? Mas a tradução tem seus limites. ~ absolutamente justo e necessário que nasçam nas assembléias litúrgi­ cas hinos e orações segundo a imagem da vida delas em Cristo, de acordo com a língua, os símbolos, as sensibi­ lidades e os modos de expressão que lhes são próprios. .De outra maneira a liturgia correria o risco de conservar uma fisionomia arcaica e estranha. Não exageremos os problemas surgidos nas celebra­ ções por causa das traduções. Elas não são culpadas de todos os malfeitos de que se quer responsabilizá-la. Há outros aspectos da palavra que me parecem hoje mais importantes. O primeiro que eu quereria lembrar é a inflação verbal que decorre de nossas celebrações atuais. Na liturgia em latim a quantidade de palavras não corria o risco de aborrecer senão aqueles que tivessem querido tomar consciência de cada uma delas - quando sabiam latim. Diversamente, era um material ritual, que criava uma permanência e uma atividade cultuais em que cada um inventava seus caminhos para Deus. A maior parte aliás era cantado ou entoado sob a forma de "cantilena", oferecendo assim outras possibilidades de expressão e de comunicação além do simples "sentido das palavras". A tradução integral dos textos litúrgicos em lingua­ gem compreensível e a maneira como eles se formaram oralmente modificaram totalmente o ethos da celebra­ ção. Do princípio ao fim, chegam-nos as palavras - mui­ tas vezes através dos alto-falantes que as impõem aos nos­ sos ouvidos - , a solicitar-nos sem interrupção o esforço de nOSSa inteligência. Postos de parte os períodos de silêncio, pouco importantes quanto à duração, e os mo­ 99


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mentos de cantos ou de música, cuja quantidade varia de uma assembléia para a outra, somos submetidos a uma carga contínua e muito densa "de informações": admoestações e introduções, leituras, orações, intenções de oração, sermão, longo monólogo da oração eucarística, Diante de uma tal avalancha de palavras, um espí­ rito de constituição normal não pode "seguir" - ainda mais se ele está pouco familiarizado. com a linguagem utilizada e com sua temática. Produz-se então um efeito de saturação. A pessoa acaba tentando defender-se da agressão das palavras. Alguns sentem a consciência pe­ sada por não conseguirem manter-se bastante atentos e receptivos. Os mais místicos lamentam que, sendo sua razão continuamente solicitada, reste tão pouco lugar para a oração e a contemplação na liturgia. Outros se queixam do latim e de seu "mistério", especialmente o silêncio do cânon: Estarão de todo errados? Alguns se refugiam no seu livro ou então se evadem. Há, portanto, uma questão da quantidade adequada, ideal, de textos e de palavras a serem utilizados na cele­ bração. Particularmente leituras e orações em geral são pronunciadas depressa demais. Homens de leitura, es­ quecemo-nos de que o ouvido que escuta é muito mais lento que o olho que lê. Homens de conversação pri­ vada, do telefone, do rádio e da televisão (que se dirige a indivíduos e não a grupos), temos pouca' experiência da palavra "pública". Enfim, para nós que estamos satu­ rados de palavras transmitidas pelos meios de comuni­ cação, a publicidade, a eletrônica e a imprensa, o poder da palavra está largamente desvalorizado. ' Porquanto, além da quantidade excessiva de palavras em nossas liturgias, existe um problema mais profundo: a atrofia das funções humanas da linguagem. O cidadão de meio burguês e de classe independente que freqüenta normalmente nossas igrejas é um homem que fala para comunicar noções e fatos. Ele controla a expressão de suas emoções e sentimentos. Não grita para expandir sua alegria e sua admiração através de exclamações nem 100

para descarregar sua cólera por meio de imprecações e pragas; não recita poesias (a não ser que leia alguma num livro), não cita provérbios, não pronuncia sentenças e dá poucas ordens. Talvez saiba, e assim mesmo ape­ nas em certas ocasiões, dizer palavras de amor, que no entanto transmitem muito mais do que o que está incluí­ do no seu conteúdo semântico: conversar com um amigo ou uma amiga, para não dizer nada, para "bater papo", para estar junto; contar belas histórias a seus filhos; can­ tarolar enquanto trabalha ou vai de um lugar para outro. Mas a proporção dessas diversas palavras-falantes é muito fraca em comparação com as palavras-faladas, úteis e' "razoáveis". Ora, a liturgia precisa de todas as funções da pala­ vra humana. '3la conhece a palavra de informação e a usa amplamente. Mas aí está apenas um aspecto da­ quilo que ela deve fazer surgir por meio do homem que fala. E esse nem mesmo é o aspecto mais importante. Em certas celebrações não se aprende nada de novo por­ que já se conhecem as leituras - por exemplo o evan­ gelho da Natividade - e a maioria das orações recitadas. Da mesma forma, quando se diz: "Senhor, tende piedade de nós!" ou "Glória a vós, Senhor!", não se ensina nada aos outros, nem a [ortiori a Deus!! ' A palavra tem também uma função de contato. Quando se diz: "Bom dia - Bom dia - Como vai você?", raramente se pensa no sentido de tais palavras. Mas é uma maneira de significar que o outro existe para mim e que eu existo para ele. A palavra estabelece a relação pes­ soal. Igualmente, quando o celebrante diz: "O Senhor esteja convosco" e que se responde: "Ele está no meio de nós", não há dúvida de que se pode refletir no sen­ tido profundo dessas palavras. O ato da palavra, porém, permanece válido mesmo sem isso: ele coloca a assem­ bléia em ato de celebração pela relação presidente-povo. Quando exclamo Kyrie eleison. ou alleluia, estou que­ rendo exprimir o meu ser de pecador que implora o per­ 101


dão, ou o meu ser de redimido que rende graças. Enten­ damo-nos bem: a expressão não consiste em traduzir em palavras um estado ou sentimento preexistente. Ela faz surgir, no mesmo grau ou até em grau maior, o que ex­ prime. l? ao bradar pelo "perdão" que eu me coloco como pecador diante de Deus salvador, que me reco­ nheço e me torno "sujeito" do perdão de Deus. Dá-se o mesmo com a ação de graças por meio de um alleluia. O historiador das religiões Van der Leeuw observa que o homem religioso nunca diz: "Basta de palavras: vamos aos atas", porque para ele a palavra é ato 1. Daí o uso da repetição das mesmas palavras na ora­ ção, da ladainha, no refrão do salmo de meditação. Do mesmo modo como os que se amam não se cansam de repetir "Pu te amo", porque sentem que assim intensí­ ficam sua relação de amor, quem reza não se cansa de dizer e tornar a dizer "Pai, se é possível ... escuta-me" ou de chamar por Deus com todos os nomes que signifí­ cam o que ele representa para aquele que se está diri­ gindo a ele: Bom, Forte, Altíssimo, Muito-Próximo, o Absolutamente Outro, Luz, Treva ... A palavra é também a maneira de influenciar O outro: "Eu te peço ... por favor", como é a maneira pela qual eu próprio me comprometo: "Eu creio em ti. Eu conto contigo". Não há nenhuma neutralidade objetiva na palavra litúrgica. Ela é sempre a minha história ­ e a dos outros - com Deus. E por isso que o "relato" na celebração é coisa total­ mente diversa da crônica de um fato passado ou o enun­ ciado de um mito sem valor. O relato da criação é o "mito" fundador do sentido do meu relacionamento com Deus. O relato da instituição da eucaristia é a palavra que dá sentido aos gestos do pão partilhado e do cálice oferecido. Nele se baseia meu relacionamento com Cristo morto e ressuscitado. 1 Cf. La religion dans son essence et ses maniiestations, Paris. 1948, p. 394.

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Todas essas funções humanas da palavra tornaram­ -se manifestas mediante a forma especial contida na sua enunciação. Há um tom e uma estilística da ordem dada (breve e imperativo) ou do pedido (respeitoso e insis­ tente). Há o grito de admiração. Há a sentença que sintetiza em poucas palavras um tesouro de sabedoria. Há, enfim e principalmente, todas as formas da lingua­ gem poética, descontínua, figurada, rimada, toante. No caso, a própria forma torna-se mensagem. Qualquer oportunidade. de restabelecer na liturgia as diversas funções da linguagem fica perdida se não se aceita dar-lhe uma forma significativa. Um salmo que não é dito como um poema já não é mais um salmo, mas um texto qualquer, obscuro e insípido. Um alleluia ou um Amém que não são "aclamados" passam a ser um mero tartamudear coletivo. um prefácio, que não seja uma proclamação alta e lírica, já não é mais "eucarístí­ fícante". Em contrapartida, quando a palavra reencontra seus valores ativos, afetivos, expressivos, imaginativos, cria. tivos de sentido e de engajamento, desde o murmúrio meditativo até o canto pleno, então se descomprime o tecido nocional informativo; abre-se um espaço para o coração e para os gemidos inefáveis do Espírito. As próprias palavras retomam força e sabor. Entre os atos de palavra da celebração, pensa-se necessariamente na homilia. No desenrolar-se da missa, é um "fardo" importante. Geralmente é mais longo do que qualquer outro elemento da missa, canto ou oração mais longo mesmo que a oração eucarística. Esse tipo de palavra é interessante porque introduz na assem­ bléia a palavra "direta" ......:: no sentido em que esta pala­ vra lhe é dirigida formalmente, enquanto que o resto das orações, cantos e leituras são palavras indiretas, diri­ gidas a Deus ou a outros. Esse momento da palavra deveria ser mais fácil. Ora, pelo contrário, o mais das vezes ele parece mais ou menos aceitável e é, de fato, apenas mais ou menos recebido. 103


Homilia, em seu sentido primitivo, significava "en­ tretenimento familiar". Confessemos que dela raramente conseguimos ter essa impressão. Primeiro, porque, na maioria das vezes, é um só que fala. Este faz mais uma conferência, ou dá uma aula magistral. Depois, porque o tom e o estilo são em geral os de um ensinamento ou, pelo menos, de uma reflexão de tipo intelectual. :E. claro que a tarefa catequética (instruir e moralizar) deve ser cumprida. A questão aqui não se refere à necessidade de catequizar, mas à oportunidade de servir-se daquele momento da celebração litúrgica para a catequese, como é o caso na eucaristia dominical. Embora a homilia não possa dispensar-se de expli­ car o sentido de uma leitura bíblica ou de um mistério da vida do Cristo, e não deva passar por cima das conse­ qüências morais do evangelho anunciado, não é nisto que está seu "ponto alto". A primeira função da homi­ lia é a "profecia", no sentido do Novo Testamento, isto é, a proclamação da atualidade da intervenção de Deus em Jesus Cristo: "Hoje isto chega para mim, para ti, para nós". Sua forma privilegiada é o testemunho, isto é, o ato daquele que se engaja através de sua palavra e persevera no seu compromisso. Deus nos fala aqui atra­ vés da resposta da fé que os crentes dão ao apelo de Cristo tal como o entenderam, compreenderam e vive­ ram. Esta palavra é ao mesmo tempo um exemplo e um encorajamento transmitidos à assembléia. Nada impede que essa profecia seja um relato, uma parábola, uma meditação, um poema ou uma canção. Se o padre que preside fica como o "moderador" dessas intervenções, elas podem provir de vozes diver­ sas. As pessoas se cansam de" ouvir sempre a mesma testemunha. Será que cada um não tem o seu testemu­ nho a dar a fim de que todos percebam melhor o imenso trabalho da Palavra que cura, liberta e transforma este mundo? Já fiz várias vezes alusão à importância da "cir­ culação" da Palavra na assembléia, à sua necessidade e às condições para o seu funcionamento. O momento da 104

homilia, como entretenimento mútuo, envolve também práticas que atualmente são procuradas, como a partilha da palavra em pequenos grupos, intervenções preparadas pelos membros da assembléia, recursos audiovisuais. Em outro capítulo, voltarei a falar sobre algumas leis da comunicação de tipo oral - de agora em diante restabelecida na liturgia - e sobre a relação entre uma palavra viva e uma formulação fixa ou improvisada. A propósito do simbolismo, insistirei sobre a importância da forma em qualquer produção que se queira que seja significativa. Parece-me que basta, para concluir este capítulo, recordar que para nós, cristãos, a palavra não é um conjunto de letras ou sons com um sentido. Ela é, antes de tudo, uma pessoa, pela comunicação viva de Deus em Jesus Cristo. Depois, ela é uma r:;ão: o ato pelo qual a Igreja confessa a sua fé, se compromete com seu Salvador, anuncia a salvação que se realiza e comunga com aquele a quem louva. Pois, pelo Verbo, "oferecemos continuamente um sacrifício de louvor a Deus, isto é,. o fruto dos lábios que confessam o seu nome" (Hb 13,15).

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9.

MÚSICA E CANTO

Ponto quente da reforma - Mudança de repertório - Do ritual à estética - Música sacra - Práticas cultivadas e práticas populares - O fenômeno de assembléias que cantam - Defasagem entre imagens recebidas e práticas atuais - Exemplo: os cantos da missa, Ordinário e Próprio - Os doze cantos do Ordo M'ssae - Reconsideração da função dos can­ tos - Beleza e celebração - Três serviços: um ins­ trumento de celebração; para fazer a festa; para fazer entender o inaudito - E amanhã?

Tanto quanto o latim, na mudança litúrgica contem­ porânea, a música apresentou-se como um ponto quen­ te. Em outras épocas da história da Igreja, houve divi­ sões por causa da data da Páscoa ou por causa do pão ázimo. Hoje em dia, há grupos que se reúnem para can­ tar o gregoriano; surgem divergências a propósito do uso do violão ou de outros instrumentos; periodicamente, a imprensa volta a comentar a degradação da arte musi­ cal no culto católico. Corno sempre, nesses casos de efervescência de or­ dem sociocultural corno também religiosa, o que se diz .abertamente deixa ver apenas muito parcialmente as questões reais. Poderia causar-nos espanto o fato de que' a música se revista assim de urna tal importância, uma vez que o culto cristão pode ser inteiramente celebrado (Palavra anunciada, oração, Refeição do Senhor, batis­ mo) sem canto nem música. Do mesmo modo corno poderíamos sorrir diante das batalhas travadas em torno do latim, já que o Evangelho deve ser pregado em todas 107


as línguas e que cada pessoa sempre se dirigiu a Deus primeiro com uma oração em sua língua materna. Mas seria esquecer que a "manifestação" faz parte do próprio ser do homem individual e social. A maneira como o homem se veste, fala, se comporta, canta ou não canta, é aquele que especial que o constitui, fazendo com que ele seja o que é para si e para os outros - e para Deus quando se trata do culto. Para perceber melhor o problema atual que envolve o canto e a música nas celebrações litúrgicas, são neces­ sárias algumas observações e a recordação de alguns pontos. Em poucos anos, o repertório do canto ritual encon­ trou-se quase completamente mudado. O corpo de melo­ dias tradicionais ou canônicas, lentamente acumuladas no decorrer dos séculos e condensadas no Graduale ro­ manum, viu-se de repente sem utilidade com a adoção das línguas modernas na liturgia católica. Os "Desclée 800" jazem nos mostruários das sacristias ou se acumu­ lam perto das consolas do órgão. Os inúmeros "ordiná­ rios" de missa a várias vozes, que constituíam o fundo do repertório dos corais, estão esquecidos. Ainda se ouve, aqui ou ali, na França por exemplo, a Missa de Angelis ou o Credo III. Os jovens, porém, já não o~ sabem mais. Excetuados raros mosteiros e algumas as­ sembléias seletivas, a grande maioria dos cantos utiliza" cios hoje é constituída por peças em língua vernácula de origem recente. . Essa mudança de repertório, rápida e maciça, pro­ duziu-se sobre um fundo de evoluções mais lentas e mais profundas que afetaram o canto litúrgico. De prin­ cípio, houve o que se poderia chamar de uma passagem do "ritual" para o "estético". Desde sempre, a prática musical cultual gozava de um estatuto ritual. Até a época moderna distinguiam-se o cantus ecclesiasticus (rito) e a ars musica (arte). O pri­ meiro fazia parte das cerimônias. Salmodiar, cantar um Kyrie ou um Alleluia, tocar um carrilhão não eram con­ 108

siderados um exercício de arte musical, mas uma prática ritual. Isto continuará assim, mesmo depois de começar o desenvolvimento da música no Ocidente, da polifonia e das "missas em música" e vieram enriquecer as cerimô­ nias com todos os recursos da cultura ambiente. No entanto, a promoção da subjetividade moderna valorizou cada vez mais o aspecto estético da arte. Es­ pera-se, daqui para frente, que a música da Igreja pro­ duza efeitos de arte. Sua prática caberá, pois, a artistas, enquanto que, antes, dela se encarregavam os clérigos (clero e cantores). A restauração do canto gregoriano, no fim do século XIX, foi feita dentro desse contexto. Todo o canto da Igreja passa então a ser considerado como "música". :Ê julgado de acordo com normas esté­ ticas que, dentro da cultura re-ebída, caracterizam o exercício do que é designado como arte musical. :Ê neste sentido que são Pio X declara em 1903 que o canto litúr­ gico deve ser uma "arte verdadeira". Esta concepção estética da música da Igreja foi imposta nas classes cultas e por estas. Ela ainda era uma concepção geral quando chegou a mudança do repertório. Ela nos per­ mite compreender algumas distorções atuais, sobre as quais voltaremos a falar. A passagem do ritual para a estética segundo a sub­ jetividade moderna acentuou-se com uma evolução na noção de música sacra. A música sacra não teve, duran­ te muito tempo, outras características além da de ser a usada pela Igreja no seu culto. Sua linguagem, seus estilos, suas técnicas podiam ser as mesmas que as da sociedade (as mesmas de um motete ou de um madrígal de Palestrina, de uma cantata litúrgica ou profana de J. S. Bach). Seu uso ritual era o bastante para caracteri­ zá-la. Com o processo de secularização da sociedade, a arte da Igreja começou a buscar sua originalidade e reivín­ dicou para si uma estética própria. Pelos fins do século XIX, surge uma música sacra que é "grave", inspirada em modelos arcaicos (música gregoriana e palestriniana) 109


como "sagrada" era também a arquitetura neo-romana ou neogótica diante da arquitetura moderna profana. São Pio X logo canonizará essa concepção da sensibi­ lidade religiosa dos fiéis. Quando nascerem, depois da última guerra mundial, os primeiros repertórios de can­ tos franceses destinados a uso litúrgico, estes ainda serão neomodais, neofolclóricos, neoclássicos. E continuam assim em grande parte. Quando depois de 1966 aparecem nas igrejas os prí­ meiros cantos ditos "ritmados", imitando, não mais mo­ delos arcaicos, mas os da variedade contemporânea e do jazz americano, clamar-se-á ao mesmo tempo contra a decadência estética e a dessacralização, o que não im­ pediu a difusão desses gêneros, graças aos meios de comunicação, dentro de UM grande número de assem­ bléias. Mas, em tudo isso, onde está então a verdadeira música de nosso tempo, a única que interessa aos músi­ cos e aos melomaníacos eruditos de hoje? - Tirando a música de órgão contemporânea, executada em algumas igrejas, a música verdadeira é uma grande ausente. Há aí uma anomalia evidente. Foi dito e repetido que, se a Igreja se tivesse dirigido, na sua reforma litúrgica, a "grandes músicos", não se teria chegado onde se chegou. Qual! É simplificar muito a problemática. O princípio de que a Igreja deve exprimir-se hoje musicalmente com a língua musical de nosso tempo parece firmar-se por si mesmo. "Acaso não se constroem as igrejas, hoje, com os meios da arquitetura moderna? Resta, porém, saber., de um lado, qual é a "língua musical de nosso tempo", e, de outro, se o ponto de vista dos compositores contem­ porâneos é compatível com as exigências internas da celebração litúrgica atual. A reforma litúrgica foi feita sob o signo da partici­ pação ativa dos fiéis na ação ritual e, portanto, no can­ to. Se se trata não somente de escutar, mas de tomar parte no canto como ator e executante, segue-se que a música deve ser "praticável" pela média dos fiéis reuni­ 110

dos. Qual é hoje, por exemplo, a prática musical possí­ vel ao conjunto de todos os franceses? Quase nada a não ser o clássico maior e menor, esta "língua materna mu­ sicaI dos ocidentais", com algumas extensões modais, herdadas do gregoriano ou do folclore, ou adaptadas pela canção de variedade (blue·note; menor melódico). Esta é a prática popular e, forçoso é reconhecê-lo, a "língua musical de hoje" da grande maioria de brasileiros, fran­ ceses e outros que, em vez de ouvir a música de seu povo prefere a estrangeira. Todo o resto provém da prática cultivada e sábia de uma minoria. Consiste em obras mais ou menos realizáveis pelos corais e instrumentistas comuns, mais ou menos audíveis pelo público de nossas liturgias. Aqui são os limites culturais que definem o horizonte da música ritual. Numa situação assim desarticulada, ritual, cul­ tural e musicamente, a coisa mais espantosa é que as assembléias cantem! Porque elas cantam mesmo. E muito mais do que há um quarto de século atrás. Naquele tempo, a grande maioria das missas celebradas no domingo, sobretudo nas cidades, eram "baixas", isto é, sem cantos. Na missa cantada, que era única, os can­ tos geralmente eram sustentados pelos cantores ou, às vezes, por um coral. O movimento gregoriano tinha toda. via conseguido, a custo de esforços corajosos e tenazes, fazer algumas assembléias participarem dos cantos do Ordinário. Mas o fenômeno nunca se generalizou de ma. neira durável. Mais tarde apareceram as "missas lidas

com cantos em vernáculo". Mas, salvo vestígios locais

de antigos cantos populares (como as missas de Du

Mont na França), o povo cantava pouco na missa. Hoje, .a proporção está invertida. Na maioria das missas do domingo, canta-se. Principalmente nas cidades, onde é mais fácil encontrar animadores. E trata-se essencial­ mente de cantos de assembléia. Quando se reflete sobre isto, nota-se que há aí um fenômeno de todo surpreendente do ponto de vista sociológico. Essa mudança não é um produto da cultura 111


ambiente, mas da ideologia da renovação litúrgica: tiA forma ideal da participação comunitária à celebração é o canto". Quando, há vinte e cinco anos atrás, eu expu­ nha essa tese, ouvia dizerem-me: "Como é que você quer que cantem na liturgia pessoas que não cantam mais na sua vida de todos os dias? Isto jamais poderá ser para elas um meio de expressão verdadeira de sua oração, se primeiro não for para elas um fato cultural vivo. Ora o burguês não canta; ele vai à ópera ou ao concerto, Ou então escuta rádio. O operário não canta mais no traba­ lho. O folclore de nossos camponeses morreu. Cantar em nossas igrejas só pode ser um uso formal e um ver­ niz. Em suma, um ritualismo amais". No entanto, puseram-se a cantar nas igrejas. A ídeo­ logía dos liturgistas por certo que não teria sido sufi­ ciente para isso se uma certa descobreta experimental do valor do canto para rezar em comum não tivesse alimen­ tado essa corrente, como se vê à medida que o movi­ mento caminha. Eu não penso, aliás, que a renovação. contemporânea da canção profana tenha contribuído muito para isso. Esta produção, a contemporânea, é por natureza o resultado de intérpretes solistas que se ouvem; Ela não constitui uma prática de canto coletivo. Eu diria o mesmo da renovação, embora significativa na França, do canto coral, que só pôde atingir diretamente uma minoria. Mas eu atribuiria uma certa influência sociológica ao derretimento atual, na sociedade, dos modos de expressão em geral, bem como à generalização dos meios de comunicação sonoros industriais (discos, televisão, cinema, rádio, instrumentos de música de fácil manejo e de baixo preço). No entanto, a meu ver, o fenô­ meno atual do canto das assembléias litúrgicas conti­ nua a ser algo de original. Ele é um produto da vitali­ dade das assembléias celebrantes, ou pelo menos dos que as animam com seu consentimento. Se essa análise, embora exposta bem sumariamente, parecer exata, não há por que se espantar de que a prá­ tica atual do canto nas igrejas se encontre em ruptura

com diversas posições recebidas de natureza social e reli­

giosa: imagem tradicional da música sacra, normas cul­

turais do belo e da arte musical, correntes atuais da

música contemporânea. Em contrapartida, ela talvez não

deixe de estar em relação com uma evolução da socieda­

de em que o indivíduo procura novos meios de expres­

são e de comunicação, em que a própria arte retoma

funções esquecidas, em que a oração regenera condutas

corporais e psicossomáticas atrofiadas. Penso de modo

especial, para a música, nesses laboratórios experimen­

tais em que o "fazer" reassume a importância sobre a

obra feita, em que se revivem o jogo e a criação coletiva,

em que não se visa mais a um "público" e menos ainda

aos críticos de arte, mas ao existir-musicalmente com

outros. Esta busca átinge de várias maneiras o que

jamais deveria ter deixado de ser a música cultual.

Um importante efeito de "distância", observável na prática atual, refere-se à imagem ritual tradicional da "missa cantada", com os cantos fixos do Ordinário (Ky­ rie, Glória etc.), os cantos variáveis do Próprio (Intróito, Gradual etc.), e os cantos do celebrante e dos ministros (diálogo, prefácio etc.). Neste ponto como em outros, a reforma do Vaticano II reconduziu os antigos modelos procurando adaptá-los à sua visão. Primeiro, ela conser­ vou todos os momentos de canto' existentes' enquanto ritos constitutivos, mas também com o desejo de salva­ guardar o "tesouro da música sacra" (gregoriano e poli­ fonia clássica). Depois, completoua série com a aclama­ ção da anamnese, a oração universal, a recitação entoada da parte central da anáfora, eventualmente um hino depois da comunhão. Ela tornou um pouco mais flexível o sistema antigo, permitindo cantar ou recitar certos textos, consentindo que se omitissem peças que não fossem cantadas (Intróito, aleluia, ofertório, comunhão), tornando possível a integração do Kyrie ao ato peni­ tencial. De fato, o modelo anterior da missa latina cantada foi de tal forma modificado que já não existe mais. A

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amanhã da liturgia

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maioria das partes "entoadas" foram abandonadas, espe­ cialmente o canto das leituras e das orações. À imagem sacraI da recitação estilizada, prefere-se um modo de dizer que assegure primeiro a comunicação do conteúdo do texto. Para os diálogos como "O Senhor esteja con­ vosco", e as aclamações como "Amém, Aleluia, Louvor a vós,' Senhor", hesita-se entre o canto e a simples pala­ vra. Mas, como não se consegue fazer reviver o clamor nem a verdadeira proclamação, o canto fica por demais convencional e a palavra simples demasiado pobre. Para os cantos propriamente ditos, a oscilação não. é menor, O antiphonarium missae dava para as peças do próprio um texto latino ne varietur 1 e uma música "con­ sagrada" (o gregoriano). 'I'inha-se assim o domingo Gauâete ou Reminiscere, cada um deles marcado por seu intróito. Hoje, procuram-se em cada missa, no re­ pertório dos cantos existentes, as peças que são utilizá­ veis para tal assembléia. O aspecto repetitivo do rito cantado e a carga emocional cumulativa de um canto ligado a uma festa ji não têm mais lugar. Restam os cantos fixos. Insistindo na função própria de cada canto: no desenrolai-se dos ritos, a reforma justamente quebrou a imagem de um "ordinário" unificado com sua consis-. tência musical própria (a "missa" como gênero musi­ cal). A autenticidade .dos ritos ganhou com isto. Mas o.' modelo musical fundamental da "missa", que marcou to-' da uma época da liturgia e da história da arte, que che­ gou mesmo a influenciar retrospectivamente a constítuí­ ção do Kyriale vatícano gregoriano no início do século, que ainda produziu dezenas de "missas em francês" se" gundo o Vaticano II, está definitivamente ultrapassado (no sentido de que só poderá ser reproduzido artificial" mente).. . Apesar de tantas rachaduras e fendas, um edifício ideal continua a ser-nos proposto: uma missa Incluindo

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Ne varietur é o termo. estabelecido para indicar o que ::Ifl II não pode ser mudado ou alterado (do latim: "que não deve ser variado"). (N. do T.). 1

114

doze peças de canto, sem contar os diálogos e as acla­ mações breves. Pode-se efetivamente executar esse pro­ grama musical. Poucas assembléias fazem-no integral­ mente. Mas, quando se faz, qual é o resultado? Supo­ nhamos que a missa dure uma hora. Subtraíamos o tem­ po das leituras, da homilia, das orações propriamente ditas e dos silêncios, calculado em 35 minutos, resta uma ~édia de 2 minutos para cada canto. Eis o que suscita nao poucos problemas. Um canto breve pode certamente representar um mo­ mento intenso, por exe:nnplo, na aclamação da anamnese. Mas será que, s'e acumularmos muitos cantos breves, es­ tes poderão ter duração suficiente' para estabelecer um verdadeiro período musical, para impregnar os ouvintes, para dar à assembléia a oportunidade de participar ativa­ mente desse papel coJetivo, para alcançar os efeitos próprios da música: dar realce às palavras, tocar o cora­ ção, fazer abrir-se ao mistério, significar a festa e a gra­ tuidade? Acaso deste IlJodo não nos instalamos num sistema de consumo em que, cada domingo, usamos um grande número de cantos. necessariamente em parte os mesmos, que acabam perdendo todo o seu sabor ­ supondo evidentemente que eles o tenham? Não nos ar­ riscamos a provocar assim um cansaço e a ter de dar razão aos que acham "que há mesmo cantos de' mais na missa", excesso de palavras, de atívísmo ritual e, ao contrário, tempo de menos para a contemplação e o silêncio? Finalmente, corno poderá ser possível reunir . tantos retalhos disparatados a fim de produzir os gran­ des ritmos de uma. celebração que caminha, progrfde e deixa seus sulcos, se continuamente se tem de parar e retomar a caminhada? -' Isso nos leva a questionar-nos sobre a noção de fun­ ção, que tem sido uma das chaves da reforma litúrgica em matéria de rito e de cantos. Para cada rito foi pro­ posta a questão fundamental: Que efeito se tem em mira ao propor tal sinal? Por exemplo, será que o canto de entrada é feito para acompanhar com música a en­ 115


trada do celebrante (o órgão poderia bastar), para pro­ por um texto-chave da missado dia (poder-sé-ia anun­ ciá-Io oralmente ou escrevê-lo num cartaz), para colocar a assembléia em ato de celebração? Ou ainda, será que o Kyrie é uma invocação ao Cristo Senhor, um puro laus canora, urna ladainha de súplica, um ato penitencial? E assim por diante. Não se podia deixar de mencionar uma tal crítica. Mas procedeu-se de uma maneira sobre­ tudo perspicaz procurando sucessivamente a função de cada canto. Tem-se refletido pouco sobre os encadea­ mentos e as funções globais. Por exemplo, será que tive. mos bastante cuidado de procurar saber se, para urna "abertura", seria mais sígnífícativo haver três cantos (Intrõlto, Kyríe, Glória ) ou somente um? Se a unidade da oração eucarística como louvor surgiria através dos quatro momentos breves de canto (diálogo inicial, Sano' tus, Anamnese, doxclogia) separados por longos monó­ logos? Em matéria de significado, o sentido depende primeiro da totalidade e não de cada elemento. PoI' outro Iade, examínaram-se as funções manifes­ tas, explícitas, propositais. Questionaram-se pouco sobre as funções latentes, escondidas, difusas, que muitas vezes são predominantes. Quando entro numa igreja no mo­ mento do canto de entrada, que é que me toca ou desgosta? Muitas outras coisas entram em jogo além da melodia e do texto cantados: a aura e as condições acústicas, a disposição dos que cantam, o entusiasmo ou a frieza de sua participação, o estilo da execução, viva ou morosa, a duração do canto. Em outras palavrasva funcionalidade ritual não pode ser encarada unicamente a partir do rito bruto (o significante). Ela implica tam­ bém e sobretudo seus destinatários, a sensibilidade .de­ les, a cultura, as disposições, as reaçõesconscientes ·e inconscientes que eles têm. Não basta que o salmo seja de forma "responsorial" para que ele tenha efetiva­ mente "resposta" da assembléia à Palavra. 1/1 '-1 A propósito das funções manifestas ou latentes do canto litúrgico, eu queria recordar uma distorção a que iI!

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alguns fiéis se mostram sensíveis e que envolve tanto a assembléia que canta como o valor estético desse canto. "Ou bem ou mal, canta-se. Antes mal do que bem! Isto não fica nada bonito. Além do mais, o que nos dão para cantar é feio. No tempo do gregoriano, a coisa era bem diversa!" . Eu gostaria de prosseguir com algumas dessas ob­ servações ainda. Primeiro, idealiza-se facilmente o pas­ sado, e tem-se uma memória fraca. Se tivéssemos gra­ vações de missas de trinta anos atrás, constataríamos, sem dúvida; que de fato o gregoriano é belo, mas o que se fazia era, o mais comumente, feio, por vezes atroz para um músico. Mas, naquele. momento, aquilo fazia parte dos ritos... Hoje, confesso que fico muito mais admirado com a ausência de senso. critico por parte do conjunto dos fiéis, aliás muitas vezes cultos, com relação ao que cantam nas igrejas, do que com a objeção antes mencionada, proveniente quer de alguns raros músicos, quer de indivíduos antes conservadores do que meloma­ níacos. Os gostos ou os desgostos declarados em relação à matéria provêm de muitas outras coisas, bem diferen­ tes do exame objetivo do que é cantado. O contexto em que o canto é desenvolvido (liturgia que induz à 'oração ou que aborrece; participação entusiasta ou constran­ gida) freqüentemente influencia mais a percepção do que a própria obra. Aliás, tirando o caso de um. solista ou de um coral que se escuta, não existem, num verda­ deiro canto de assembléia, ouvintes propriamente ditos, mas apenas participantes (quer eles próprios cantem.ou não). Quando se é realmente "parte integrante", torna­ -se impossível isolar, num canto, o resultado sonoro da ação global em que se está inserido. "A estéttca'tde um canto litúrgico não é apenas a de um texto com sua música, mas a de toda a celebração em que o canto intervém. Assim acontece inúmeras vezes que um canto muito simples possa ser julgado sem valor na partitura e, no entanto, contribuir maravilhosamente para elevar a qualidade da oração e a estética da celebração, enquan­ 117


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to que uma peça de grande arte, demasiacio difícil ou inadequada, só serve para desfigurá-la. Positivamente, de que estética se fala. então na liturgia? Em outras pala. vras, que valor se dá ao que é manifestado (as realidades da fé) e ao que o manifesta ? Não penso que se possa avançar muito apenas com a reivindicação de que é preciso "rezar diante da beleza". O sucesso desse slogan. que Camille Bellaígue teria reco­ lhido dos lábios do papa Pio X. tem como único equiva­ lente o seu. próprio equívoco. Ele continua desviando músicos e melomaníacos. Eu quereria propor uma apro­ ximação totalmente diferente, sugerindo os valores que, a meu ver, a música e o canto colocam a serviço da cele­ bração - disposto a me afastar, ao fazer isso, de algu­ mas imagens comumente recebidas e que se referem à arte, ao belo e à música. O primeiro serviço que a música e o canto prestam à liturgia é o -de fornecer-lhe um "instrumento de cele­ bração". Quando uma assembléia deve entrar como tal, com sua voz, em ato de celebração, são-lhe necessárias condutas orais: palavras, ritmos, sons. Por exemplo, quando se trata de ratificar com um Amém significativo a oração que foi dita em nome dela. Duas notas (ou mesmo uma só) e um ritmo elementar são suficientes para isto. Será a arte? a música? o Belo? Não sei. O fato, porém, é que essa alguma coisa suscita algo de essencial que não existiria de outra maneira. Será preci­ so, para encontrar tal forma, contratar um "grande mú­ sico"? Seria o mesmo que ir perguntar a um grande escritor como responder "sim" ou "não" a um pedido de casamento! Ou então, num nível mais elevado, tra­ ta-se de cantar um hino. Aí intervêm. certamente a arte do poeta que escreve as estrofes e a arte do músico que prepara a melodia. Porém, antes de ser uma "obra" lite­ rária ou musical, o hino é radicalmente um instrumento coletivo de oração. Isto quer dizer que ela pode ficar "aquém" das categorias de estilo que a inseririam numa época, numa Escola, ou numa corrente estética deter­ 118

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minadas. O que seria um "defeito" para uma antologia da literatura ou para um concerto não o é absoluta­ mente para uma ação litúrgica. No entanto, na liturgia não se fica nesse nível opera­ tório elementar - embora ele permaneça sempre o mais essencial na salmodía, nas aclamações ou nas orações simples como o Pai-nosso. Recorre-se à música também para significar a festa. No caso, espera-se dela uma certa suntuosidade, com melodias que cantam, com har­ monias que comovem, com ritmos que arrebatam, e com número de decibéis proporcionado' ao quadro. Isto não se faz de cada vez e durante todo o tempo. Mas em certos dias e em certos momentos. Uma melodia monótona e melosa decepcionaria. Há então necessida­ de de polifonia s, de instrumentos, de obras um pouco mais amplas. As pessoas gostariam também de "nelas se reencontrarem", isto é, ouvirem de novo músicas conhecidas, símbolos da festa, como o foram outrora, em gêneros diferentes, o Exultet da Páscoa ou o "Nas­ ceu-nos hoje um Menino, um filho nos foi dado" do Natal. O que se espera é perceber facilmente a relação entre a música e a festa; do contrário, fica-se decepcionado. Esta música de uma "festa para todo mundo" por certo não será extraída de repertórios .que alguns achariam arcaicos e outros, muito avançados. Vão então predo­ minar a música de origem clássica e a de origem român­ tica (veja-se, por exemplo, o que é pedido para os casa­ mentos) e - como as épocas em questão não produ­ ziram composições litúrgicas em vernáculo - criações atuais neoclássicas e neo-românticas, mais ou menos marcadas pelo estilo variado contemporâneo. Se o serviço prestado pela música à liturgia parasse aí - e muitas vezes pára mesmo - , as queixas dos verdadeiros artistas ou a saudade do melhor canto gre­ goriano experimentada pelas almas contemplativas se­ riam justificados! Mas eu estou muito intimamente 119


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convencido de que a música pode trazer à celebração algo mais que lhe é bem peculiar. Do mesmo modo que os ícones devem fazer contemplar o invisível, a música deve fazer ouvir o inaudito. Vejo duas maneiras, entre I,I' outras, de atingir esta finalidade. A primeira reside em sinais sonoros ainda não l·1 ouvidos, que provocam admiração, e nos desviam do I i

familiar ou do acadêmico, projetando-nos para novos

espaços espirituais. Não seria este um dos privilégios

da música contemporânea? Evidentemente não se há de

esperar que esses sinais sejam produzidos pela assem­

bléia como tal, mas nela e para ela por indivíduos que q tenham o talento de reproduzi-las, ou até o carisma de ,­ inventá-las. Mas será que sabemos preparar o lugar para tais talentos e tais carismas? ,! 1. O segundo caminho, com que sonho, seria esta mú­ sica, não necessariamente inaudita em sua linguagem nem difícil demais de ser interpretada, porém de tal forma transparente naquilo que ela celebra que se tor­ naria uma fonte Inesgotável de oração, de sentido e de sentimentos. Um símbolo, muito simples, quase puro e nu, como a água do batísmo, a chama do círio, o pão partido. Uma música, que não é cheia de si mesma, mas portadora de silêncio e de adoração, como a Virgem Mãe o foi da única Palavra. Muitas vezes ouço perguntar: "Para quê se orienta a música litúrgica? Vai-se continuar com o neotonal eo neomodal? Será que vamos ser submergidos pela vaga atual do gênero de variedade ou pela canção popular? Tem-se alguma esperança de uma integração da música contemporânea?" Outras tantas perguntas para as quais não tenho resposta. Em contrapartida, alguns pontos 1 interessantes para o futuro parecem-me poder ser ante­ I: i ~: I cipados. Na celebração, a música dependerá da evolução das assembléias celebrantes. Já se vê que os pequenos gru­ pos cantam pouco. Preferem ouvir um disco ou um ,I deles que canta ao som do violão. Por outro lado, as ;T. I

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grandes assembléias de festa não podem passar sem música e canto. E aliás muitas vezes para elas que a música e o canto são feitos. Quanto às assembléias dominicais ordinárias, é difícil predizer o que será delas amanhã. Desde já, porém, poderíamos dar atenção a várias coisas. . Antes de tudo, ao primado .da execução e do estilo sobre o repertório. A liturgia é uma ação simbólica operatória, não a representação de uma obra feita. A maneira de fazer e a significação de uma prática têm aí mafs importância que os próprios objetos. Isto é ain­ da mais verdadeiro a respeito da música que dos textos e dos gestos. Nós nos batemos muito pelas obras, pela linguagem e, em geral, pelos "códigos", mas não nos ba­ temos bastante pela pertinência de uma realização, pelo gesto musical como manifestação do que está para acon­ tecer, como fisionomia do invisível. Temo, além do mais, que se ceda a um excessivo "acúmulo" de cantos na liturgia, e isto sob dois pontos de vista. Primeiramente, talvez se queira "fazer demais" no sentido de que, desde que se abre a boca, é preciso que se o faça de maneira musical, festiva, alegre, entu­ siasmante. .. O resultado é muitas vezes esgotante e pretensioso. Como não se pode manter um tal projeto do­ ze vezes na missa e em todas as missas, como não se tem coragem de fazê-lo verdadeiramente com simplicidade e como não se pode fazê-lo positivamente de modo rico e belo, acaba-se numa seqüência de cantos que parecem a um tempo pobres e complicados. Quem, portanto, terá a coragem de fazer, sem envergonhar-se, de forma real­ mente simples, sem querer rivalizar nem com o concer­ to, nem com a canção da moda acompanhada de or­ questra? Isto não exclui, como já o dissemos, que um coral ou um instrumentista façam ouvir em certos mo­ mentos produções de arte mais elaboradas. Sob outro ponto de vista, canta-se demais, no sen­ tido de que há uma quantidade de pequenos trechos de cantos insignificantes e que não são verdadeiros momen­ 121


tos de cantos nos quais duração e intensidade se acham mutuamente implicadas. Eu vivi celebrações da missa em que, em lugar dos doze cantos previstos, havia ao todo quatro: um de abertura introduzindo amplamente a assemhléia na ação simbólica comum; um salmo, anamn ese viva da Palavra anunciada; uma oração euca­ rística realizando a unidade num imenso canto de louvor - ponto alto da missa - o memorial da refeição do S-enhor e de seu sacrifício pascal; enfim, um hino de ação de graças depois da comunhão. Poucas missas me pareceram tão "cantantes", tão meditativas e doxológi­ caso Também aí quem ousaria fazer menos para signifi­ car mais? Enfim, seria preciso libertar-se de uma concepção por demais estreita da música que nos limita a um campo restrito de produções sonoras, cultualmente ho­ mologadas. Há uma infinidade de brados, de aclama­ ções, de proclamações, de entonações, de plurimelodias, com seus instrumentos e seus ruídos, que a liturgia aco­ lheria e adotaria - práticas que outras culturas fre­ qüentes vezes conheceram - e que nós não utilizamos. Considero positiva a contribuição da eletrônica, que tor­ na possível o emprego de vários "tons" de voz, graças ao microfone, à amplificação de instrumentos que, de outra forma, não seriam ouvidos, como o violão, o alaúde, o cravo, a cítara ... e a produção de sons originais. Esta­ mos bem longe de já ter tirado de tudo ,isto todo o partido possível. Não se deveria esquecer, porém, que a voz e O corpo humano continuam a ser os meios privilegiados da expressão e da comunicação sonora e rítmica (de que faz parte a dança). O que fazemos em nossas liturgias ainda é bastante elem-entar, talvez até primitivo e vulgar. Para sair disto, são necessárias téc­ nicas: mas estas sozinhas não são suficientes. l! preciso, primeiro, a 'lida intensa de um espírito dentro de um corpo e de pessoas de fé que celebrem juntas. Este capítulo é, sem dúvida, o mais longo do livro. E, assim mesmo, quanta coisa ainda fica por ser ditai 122

A razão disto não é que o canto e a música tenham ocupado mais lugar no meu trabalho passado do que outros aspectos da liturgia. O fato é que este aspecto faz emergir, por si só oe de maneira apta a servir de exemplo, quase todos os problemas que a celebração, corno agir coletivo simbólico, suscita hoje. ~ o que sempre tem sido passível de maior evolução na história passada dos ritos. Tal aspecto bem poderia ser amanhã a pedra de toque de nossa capacidade de re-criar uma liturgia viva e signifiçatíva,

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S1MBOLOS QUE SIMBOLIZEM I

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Objeções correntes - A liturgia, atividade simbó­ lica - Simplificações abusivas: fazer do símbolo uma coisa - confundir sinal com símbolo redu­ zi-lo ao conhecimento - O sentido simbólico que existe em todo homem - Importância da cultura - Valor da opacidade simbólica - Importância da forma símboli-ante - Desritualização? - Poder de sugestão do gesto ritual - Uma corrente a ser afastada.

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"Não é de admirar que os símbolos de nossa liturgia sejam impermeáveis aos nossos contemporâneos. Quase todos são tirados do mundo da natureza, enquanto que vivemos num mundo industrializado, centralizado no homem e na máquina. Eles provêm, além do mais, de culturas muito afastadas das nossas: cultura semita da bíblia, cultura greco-romana da bacia mediterrânea; cul­

tura da corte franco-germânica etc. Já é mais do que tempo de dotar a liturgia de símbolos modernos, se qui.

sermos que ela possa ser inteligível ainda em nossos

dias".

Acabo de resumir e parafrasear opiniões que ouço e leio já de vinte anos para cá. Elas mostram duas coisas. Em primeiro lugar, que o papel dos símbolos é reconhecidamente importante na liturgia. Em segun­ do lugar, que o funcionamento do simbolismo é em geral mal percebido e que, de bom grado, preferimos neste terreno proposições bastante simplistas. Como a liturgia visa a realidades da fé, que ultra­ passam a experiência imediata, ela se desenvolve inteira-

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mente no domínio dos sinais e dos símbolos, como "sacramentos" e como "mistérios". Quer dizer que nada

existe aí invisivelmente que não seja manifestado; inver­

samente também, aí nada se manifesta (em princípio)

que não envolva as realidades da fé. Por outro lado,

nenhum homem entra em relação imediata com Deus.

Como diz o Pseudo-Dio nísio, sua luz divina sempre se

refrata através dos véus do mundo que é o nosso (nosso

corpo; o mundo natural; nossas culturas). Ainda! a ati­

vidade ritual não visa a efeitos puramente "mundanos"

(deste mundo), mas à vinda do Reino. Assim, na litur­

gia, não se come apenas para alimentar o corpo; não se

canta somente por causa da música: não se fala s6 para

ensinar e aprender; não se reza apenas para reequilibrar

o psiquismo. A liturgia é uma atividade de tipo para­ bólico (que nos coloca ao lado) ou metafórico (que nos transporta para além do conteúdo), alegórica (que fala de outra coisa) e simbólica (que. reúne e estabelece relações ). Uma operação assim tão complexa é difícil de deli­ mitar-se. O risco é sempre o de, nela, simplificar de tal forma a teoria que a aplicação desta acaba tornan­ do-se falsa. Vejamos alguns exemplos disto tomados de discussões correntes. sobre a Iíturgia. Fala-se dos "símbolos" como se fossem coisas: o símbolo da luz, da água, do pão. - Não se pode evitar de todo essa linguagem simplificadora, que tem como fundamento o fato de que há sempre, no primeiro plano, um objeto sensível "significante". Mas não se deve ser ingênuo. O símbolo nunca é uma coisa; é uma operação humana. Na realidade, pode produzir-se para o homem a propósito da luz, da água ou do 'pão, o simbolismo da iluminação, da imersão, da nutrição ou do repouso par­ tilhado. Se, portanto, se constata (?) que a simbolização não se produz, o problema não ficará resolvido mudan­ do-se a "corsa" que costuma simbolizar, por exemplo, substituindo os círios pelos refletores elétricos, ou as pias batismais por uma banheira, ou a hóstia por uma 126

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bolacha. Não há objetos que sejam simbólicos por si mesmos. Eles podem apenas tornarem-se simbolizantes, quer através de uma situação em que eles passam a ter sentido para mim, quer graças a um determinado meio cultural onde eles são tomados como tais por um grupo. Por conseguinte, ninguém pode gabar-se de criar símbo­ los pela manipulação de objetos. A única coisa que se pode fazer consiste em favorecer procedimentos que tenham chance de tornar-se simbolizantes. Confunde-se sinal com símbolo e nivela-se este com aquele. Na operação sinal, há um significante que in­ duz a um significado e vice-versa, O caso típico é o da linguagem comum usada na comunicação. Se eu leio ou ouço a palavra "cavalo", penso logo no animal desig­ nado por este nome; se eu vejo o a-iimal, penso em "ca­ valo". Acontece o mesmo com sinais matemáticos como +, -, =. Há um binômio reversível: mensagem-signi­ ficado. O ideal para o sinal de comunicação é que ele não seja equívoco: que a mensagem produza o significado desejado, e não um outro. Não se dá o mesmo na operação simbólica. Quando vejo um lago, posso sentir medo .de cair nele e de me afogar, ou então ter vontade de mergulhar nele para tomar banho, ou até as duas coisas ao mesmo tempo. O lago pode fazer-me pensar em frescor, tranqüilidade, vida (a dos peixes e das plantas), ou destruição (se houver ruptura de barragem) e uma infinidade de outras coisas. Um objeto simbolizante pode levar a toda espécie de outras realidades, que, por seu turno, são muitas vezes simbólicas. Assim a reversibilidade do binômío mensagem-significado nunca está garantida. Se .penso em vida ou morte, não penso necessariamente em água, mas talvez em um animal, em flores... uma das conseqüências consiste em ser impossível prever rigorosamente ou programar os efeitos do sentido de uma operação simbólica. Assim, cada domingo posso participar da refeição do Senhor e encontrar sempre no­ vos sentidos na partilha do pão ou no "Isto é o meu cor­ 127


po". Estes sentidos novos estão em parte em função de meu desejo, de minhas experiências de vida, do meu grau de conhecimento, de minha situação. Mas não é certo - nem indispensável - que cada domingo, ao comun­ gar, eu pense em "vida eterna". "ressurreição" ou "uni­ dade" do Corpo de Cristo. Ê pois ilusório crer que se possa explicar "a" signi­ ficação de um símbolo. Rigorosamente, ele não significa nada. Ele não é como uma palavra cujo sentido se pro­ cura num dicionário. Ê uma fonte inesgotável de senti­ dos sempre possíveis e novos. ~. esta a sua riqueza. E a oportunidade oferecida à fé do crente na celebração litúrgica. Conseqüência conexa: o dirigente dos ritos não pode pretender produzir tal efeito com determinado sentido por meio de tal símbolo. Se não obtém aquilo a que visava, a falta não é necessariamente do rito ­ que sem dúvida produz outros efeitos que ele ignora e que talvez sejam mais interessantes para esta ou aque­ la pessoa, do que os que ele queria obter. Uma terceira posição freqüente consiste em situar o simbolismo na ordem do conhecimento. Mas a litur­ gia. como toda atividade simbólica, não é unicamente noétíca, mas também pragmática. Ela não é apenas uma - logia (como a teologia), é também e bem mais uma - urgia (como a dramaturgia ). O símbolo (e O sacra­ menta) manifesta e opera ao mesmo tempo. Ele pro­ duz sentido e também sentimento. Ele faz o homem voltar-se para si mesmo. para seu desejo e sua liberdade. Convida-o a tomar posição. Esta ordem do fazer é ainda mais importante no símbolo do que a do conhecer, so­ bretudo no que diz respeito à fé. É um grave erro julgar o impacto de um símbolo pelo que dele se compreendeu nocionalmente e, ainda pior, pelo que se possa dizer a respeito dele verbalmen­ te. Foi assim que se despojou a liturgia de muitos sím­ bolos julgados inexplicáveis, incompreensíveis aos nos­ sos contemporâneos, donde se deduz que eles não esta­ vam mortos. Constatei muitas vezes, por exemplo, o

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apreço dos fiéis pelo incensar do altar no início da missa. Perguntei-lhes que sentido tinha isto para eles. "Não sei". respondiam. Eu insistia mostrando que se tratava de um uso oriental, ausente de nossa cultura; que, aliás, muitas vezes ninguém sente nada, pelo con­ trário o odor acre de nossos incensos importados cau­ sam enjôo a algumas pessoas (até aos cantores) ... "Talvez, mas assim mesmo fica bem". Evidentemente que, se me perguntassem por que tal página de Bach me toca. que poderia eu responder, a não ser fazer conside­ rações sobre a escrita musical ou sobre o estilo, que não são nem a causa, nem a explicação para o que eu sinto? Porque a relação entre a mensagem e a minha reação não é a mesma que existe entre "causa e efeito". O mecanismo aí é infinitamente mais complexo e mais rico, porque ele é criador. Paro por aqui com essas análises, pois que meu propósito não é elaborar uma teoria do simbolismo, mas passar a algumas reflexões mais engajadas na prática litúrgica. . Primeiro, é falso afirmar que nossos contemporâ­ neos são inacessíveis ao mundo dos símbolos porque seu espírito não funciona senão ao nível da lógica nocio­ nal. da linguagem técnica e do comportamento utilitá­ tio ou moral. ];: verdade que Freqüentes vezes seu dis­ curso consciente só utiliza de maneira habitual essa for­ ma de registro. Mas a observação mais exata sobre seu comportamento mostra que a vida simbólica desempe­ nha sempre em sua existência um papel considerável, embora na maioria das vezes subconsciente. Quem ama não o faz sem simbolizar o objeto de seu desejo. Usa, por exemplo, uma porção de nomes carinhosos ("meu amor", "querído Ca)", "meu, tesouro"), que estabelecem uma relação especial. Ou ainda, ninguém é inventor e criador sem projetar simbolicamente o que quer desco­ brir ou criar. Acontece, porém, que quando se vem à liturgia sem desejos nem temores, sem projeto nem fome, o provável é que os ritos nada simbolizem e per­ 129

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amanhã da liturgia


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rnaneçam "objetos" indiferentes Oll curiosos. Por outro lado, se não se tem, dentre os meios de expressão e comunicação, nenhuma prática de linguagem poética, de arte, de música, do gesto simbólico, corre-se o risco de sentir-se na liturgia como num país estranho cuja língua e cujos costumes fossem desconhecidos. Não se pode, de fato, em matéria de simbolismo, esquecer a importância dos fatores culturais. Aquele que entrasse numa igreja e ouvisse: "Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo", sem saber nad-a do con­ texto bíblico e cristão desta frase, provavelmente ficaria sem condições de perceber-lhe o sentido e de situar-se diante de uma tal proposição. Seria falso, entretanto, afirmar que para ele "Isso não quer dizer nada" _ expressão muitas vezes ouvida e que revela até que ponto os que a "Usam ignoram a psicologia. Porque nino guém recebe um estímulo sem que este provoque uma reação. Quem ouve a frase citada pode perfeitamente "simbolizar" partindo do vocábulo "cordeiro". Note. mos, de passagem, que não é em absoluto necessário que este homem para isso tenha visto um carneiro em carne e osso. Ele pode pensar, por exemplo "manso como um cordeiro" (metáfora de uso cultural mais do que resultado de uma experiência empírica). Mas ele poderá, por si mesmo, pensar no Cordeiro vencedor de que falam Daniel e o Apocalipse, imagem ausente de nossa cultura. Ele não poderá, se ignora o episódio de João Batista mostrando Jesus, relacionar essa frase com o Cristo, que só lhe dá sentido para os cristãos. Um ,fiel de cultura média talvez pense "naquele que foi condu­ zido ao matadouro. como um cordeiro" porque guar­ dou o fato na sua bagagem bíblica, porém não no Cor­ deiro vencedor porque ignora este sentido. Isso não seria uma razão suficiente para suprimir-se a frase. Primeiro, porque lembranças iconográficas podem relacionar com esta frase certas imagens do Cordeiro vencedor. Depois e sobretudo, porque a presença da "figura inexplicada" é a própria condição da simbolização. 130

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Se nós só quiséssemos conservar na liturgia pala. vras e gestos cujos sentidos já foram perfeitamente al­ cançados, explicitados, percebidos, e diante dos quais já tomamos claramente posição, toda função simbólica e ritual tornar-se-ia vã. É o que pensam aqueles para os quais os sinais são meramente um revestimento sensí­ vel facultativo, quiçá incómodo, de noções claras, objeto unicamente da fé. Assim sendo, o sacramento não teria mais sua razão de ser, porque, no caso, já haveríamos chegado ao fim da história. A questão, porém, não é assim. As figuras e os símbolos estão sempre aí para dar sentido ao que a vida não pára de produzir em novidade para a nossa fé. Eles constituem sempre o sentido a ser encontrado, o risco que se tem de correr, a promessa a ser mantida, a aliança a restabelecer-se. Deixemos, pois, lugar, em nossas liturgias explica­ tivas e moralizantes, às figuras cuja própria opacidade constitui a nossa chance, às metáforas que nos desviam do caminho comum e nos conduzem para outras para­ gens (para onde entãoP), à poesia que "não quer dizer nada" mas que nos faz pensar, imaginar (o quê então?), à música que não é um discurso mas um toque íntimo (de quem então?), ao gesto que engaja (a que, e em relação a quem?). É assim, e somente assim, que vamos ao encontro dAquele-que-vem como novidade absoluta, Aquele que jamais poderemos encerrar dentro de uma ideologia, nem possuir por meio de um código moral. Depois de ter insistido sobre o fato de que a coisa" simbolizante não é "causa" de um significado que ela pode ter ou não ter (porque seus efeitos dependem do homem, de seu desejo, de sua cultura e de sua liberda­ de), é preciso agora insistir sobre o aspecto inverso: a forma é determinante no ato de simbolização. Não há poesia sem poética; não há música sem manipulação intencional dos sons; não há rito sem ruptura do com­ portamento puramente ordinário ou utilitário. Isto que se observa no ponto de partida do processo de simboli­ zação sempre .se manifesta no nível da forma. Pela sua II

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aparência "deslocada", esta se torna. ela própria, indu­ tora de sentido. Daí tiro duas conclusões. Primeiro, não se conseguirá nunca uma liturgia sim­ bolizante enquanto não se cuidar das formas. Se aqui­ lo a que se visa é unicamente o ser claro e cornpreensí­ vel nas palavras (função explicativa e comunicativa da linguagem). apenas operatório e prático nos gestos e no comportamento (hóstias em rodelas semelhantes, indus­ trialmente preparadas com antecedência), meramente eficaz: na participação ao canto (sempre melodias fáceis, 'que todos podem aprender imediatamente), e assim por diante, oferecem-se menos oportunidades à simboliza­ ção; e o que é pior: cortam-se até as possibilidades que ela tenha. Em muitas canções antigas. há, ao mesmo tempo, o verso que não se compreende. a nota difícil. o ponto em que o ritmo regular é quebrado. Por que será que estas canções foram justamente conservadas de preferência a outras? A reação contra o cerimonialís­ mo hierático ou grandiloqüente de uma liturgia "sole­ ne",o desejo de só ter sinais "autênticos"(?), a vontade do Concílio de tornar os ritos compreensíveis, a resis­ tência de uma certa mentalidade contemporânea à deli­ cadeza dos símbolos e da poesia. ("Isto não é sério"; "não é lógico"), e outras coisas ainda acarretaram uma onda de esvaziamento, de desgaste, de despojamento e até de "desrítualização". Chegou-se então a preferir a mesa de cozinha para a eucaristia, o copo saído do armário, o vinho tinto e um pedaço de pão.. Mas talvez não se tenha refletido que, se este comportamento pare­ cia por vezes mais significativo aos que o adotavam, era em parte porque se apresentava corno "ruptura" com um ritualismo que se tornara demasiado familiar e insigni­ fícante - ou seja, que este anti-ritualismo voltava a ser altamente ritual e que esta aparente dessacralização vinha despertar o sagrado próprio da fé. Um tal efeito, porém, de ruptura-surpresa gasta-se depressa. Dentro de pouco tempo, nos grupos em questão, vêem-se reaparecer uma toalha, algumas flores, uma bela taça ... 132

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E, no entanto, nessas liturgias de grupo, as pessoas se encontram na maioria das vezes num contexto em que urna fé, já bastante motivada, não tem necessidade de que seja significado, de modo bem fundamentado, o sagrado da ação comum. Numa assembléia "pública" ao contrário, onde a interação que favorece a interpre­ tação simbolizante é bem menos rígida, é mais necessá­ rio que as formas, pela sua própria "distância", atraiam para além de sua aparência. ~ assim que se justificam formas de altar \que não '5e restrinjam unicamente a mesas de sala de refeição - salvo o caso de a própria beleza da mesa convidar a um ultrapassar-se. E assim que se compreende a veste litúrgica do padre, que é também alguém além dele mesmo. Mas, em tudo isto, não há absolutamente nenhuma regra a priori. Há so­ mente uma margem de plausibilidade: a deficiência da familiaridade, que torna pouco provável a operação sim­ bólica, porque se fica imerso na experiência imediata; um excesso de hieratismo e esoterismo que desencora­ ja a buscado sentido e o engajamento profundo. A mar­ gem varia evidentemente com os níveis de cultura, os grupos reunidos, o grau de festa ou de rotina da cele­ bração . . Se a forma constitui sugestão oferecida à simboli­ zação, convém dar-lhe um crédito de confiança, mesmo quando de inicio parece surtir pouco efeito. Aqui, falo sobretudo dos elementos constitutivos dos sacramentos e da liturgia. Na época em que foi reintroduzida a comunhão freqüente, primeiro fora da missa e depois na missa, esta era vista muito pouco como uma refeição, gesto que, no entanto, é o símbolo fundamental esco­ lhido por Jesus para a eucaristia. O simbolismo fazia­ se de outro modo: presença real; alimento (individual) para a vida divina; sacrifício expiatório. Mas quando começaram as eucaristias "domésticas" de pequenos grupos, a 'partilha do pão e a taça comum encontraram de novo por si .mesmas.. sentidos profundos. Os parti­ cipantes dão testemunho disto, mesmo quando têm dífí­ 133


culdade para verbalizar seus efeitos. Quer dizer que o próprio ato da refeição ritual (a semelhança com uma simples refeição entre amigos, até mesmo festiva, fica evidente) ressaltou os efeitos do sentido que dezenas de assistências à missa não tinham conseguido demons­ trar. Eu disse anteriormente que algo de análogo acon­ teceu com o canto das assembléias litúrgicas. Penso que possa ocorrer o mesmo com o gesto da imersão, sím­ bolo fundamental do batísmo , Uma tese de sociologia religiosa, apresentada em Louvaina mostrou que hoje os sentidos do batismo que chegam a ser percebidos passam quase todos ao largo do símbolo do banho: pecado ori­ ginal apagado, filiação divina ou inserção na Igrej a sur­ gem ideologicamente. No máximo, é mencionada a ima­ gem da água que "lava" o pecado, Mesmo a morte-res­ surreição em Cristo é uma doutrina aprendida e em que se crê, porém sem" liame direto com o gesto sacra­ mentaI. Como admirar-se disto, uma vez que se julga suficiente derramar algumas gotas de água sobre a cabe­ ça do batizando ~ E, se se adotasse a forma "batismo" (mergulho), o ato de imersão-emersão, com tudo o que nele existe de estranho como comportamento público, a nudez ritual que supõe, a própria opacidade da "figura" que sugere o sentido e o engajamento? Poderia aconte­ cer que a mudança de prática acarrete uma mudança de simbolismo. Então a chave.paulina do sepultamento e da ressurreição pascal de Jesus seria procurada para dar sentido ao gesto. Mas nós temos medo do insólito. Será porque ele pode representar uma via de mistificação? Por certo. No entanto, pode ser também um caminho de fé mística. Dar crédito ao rito como possibilidade oferecida de simbolização (efeitos de sentido e tomadas de posição livres dentro da fé) é uma condição sine qua non para o futuro da liturgia. ~ verdade que se trata de pedir uma coisa difícil, e aos pastores e fiéis. Toda a reforma litúr­ gica teve como eixo a participação ativa e consciente, isto é, a inteligibilidade dos ritos e os frutos que se 134

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tem consciência de tirar daí. Os pastores têm pois a preocupação de sempre verificar se o que é dito ou feito tem realmente um "passado", se foi efetivamente comu­ nicado e recebido. Os fiéis, por sua vez, não se sentem à vontade quando não "compreendem" e vêem-se incli­ nados a preferir os ritos cujos efeitos podem avaliar conscientemente. Ora, que pastor pode prever os desen­ volvimentos simbólicos de um rito - por exemplo, quando ele lê um poema ou quando parte o pão? Quem é que, com absoluta clareza ,de consciência, sabe o que se passa com ele na fé, por exemplo, quando comunga ou quando canta? A liturgia é sempre um risco que se corre. O rito verdadeiro cria um espaço vazio, uma dis­ tância dentro da qual o Outro pode chegar. Infelizmen­ te, porém, tome-se correr o risco de uma leitura bíblic« considerada difícil ou de um gesto insólito como o beijo da paz. Supondo que não haja falta de consciência ou preguiça, tomemos como exemplo a participação ao mesmo cálice na eucaristia: será suportável ainda por muito tempo ouvir em cada missa o Senhor dizer-nos "Tomai e bebei dele todos" e não se fazer isto? Encontrar "novos símbolos"? .Procurar símbolos "modernos"? Talvez. Mas onde estarão eles? E quem os os mantém guardados? Não seria antes o caso de valo­ rizar, dando-lhes todas as oportunidades possíveis, essas realidades humanas que Jesus e a Igreja tomaram de nossa espessura corporal e psíquica, da natureza e da cultura indissoluvelmente, a fim de que significassem Deus vindo fazer aliança com o homem? Esses sinais e sacramentos, como eles constroem uma história, a nossa história, nunca deixarão de desdobrar os seus sentidos em outros sempre novos, em todos os tempos, em todos os lugares, em todas as culturas, em todas as situações individuais ou coletivas, à luz do sinal de Jonas, única chave simbólica dada aos homens em Cristo morto e ressuscitado, até que ele venha.

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ESPONTANEIDADE -

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Uma reivindicação atual de querer viver - Da ver­ dadeira espontaneidade - que é coisa rara - e arriscada - Rito e espontaneidade - "Celebrar a vida", Que vida? - Da experiência imediata à rela­ ção slmbólico-sacramental - A criatividade e a no­ vidade significada - Exemplos: as orações da missa - a. oração eucarística - Redescobrir a comuni­ cação oral e suas .eís - A noção de modelo e seu uso - O papel da cultura comum na comuni­ cação - Numa cultura diversificada, as assembléias têm de procurar modelos próprios.

Espontaneidade, criatividade, autenticidade, expres­ são, comunicação, festa. .. Há todo um vocabulário da renovação da liturgia enquanto celebração (este último substantivo dele faz parte também), todo um conjunto de palavras cuja força de evocação parece tanto maior quanto mais flexível é o seu campo semântico. "Sorte de umconceito ou conceito de sorte?", perguntava-se D. Hameline a ,propósito da criatividade (La Maison-Dieu, 111). Sinais de um momento da evolução da "liturgia, ou sinais mais amplos de uma sociedade que revê seus com­ portamentos? Este vocabulário é bastante semelhante ao de maio de 68. Ninguém duvida que ele seja revela­ dor de valores humanos entrevistos e desejados. O fato de isto emergir ao mesmo tempo na sociedade e na assembléia cristã prova que não se trata somente de formas rituais mas que o homem aí se acha envolvido. Eis o que merece uma certa atenção. g inútil refazer o processo do grau de rigor paralí­ sante a que havia chegado a liturgia romana às vésperas 137


do Vaticano n. Eu também aprendi a celebrar a missa (em 1951), queimando as pestanas com todo o afinco para chegar a recitar as orações e, quando eu me incli­ nava diante do altar escorava-me, sobre o seu bordo com o côncavo formado pela retração do dedo mínimo sob o anular ... Haviam-me ensinado também que em liturgia tudo o que não estava prescrito (escrito no Iívro) era proibido. Eu não julgava que isso me impedisse de rezar. Qualquer gesto humano, forma e sentido, apren­ dem-se; e a liberdade interior não se conquista a não ser vencendo o que exteriormente causa constrangimen­ to. Mas meu corpo teria podido oferecer-me outras vias de acesso à oração que, naquele tempo, eu não podia supor nem descobrir. Ensinavam-nos também a celebrar sem que a pessoa pudesse ocupar-se com qualquer outra coisa. Ora, era a época das primeiras "missas pelo aves­ so", como dizia Paul Claudel (altares voltados para o povo), e das missas dialogadas. Como celebrar sem levar em consideração os fiéis? Como cumprimentar realmente a assembléia com mãos que davam a impres­ são de tocar acordeão? Tudo isso parece agora já muito distante. Recor­ dá-lo, porém, permite compreender melhor como pa­ dres e fiéis de uma certa idade estavam mal prepara­ dos para usar repentinamente da liberdade oferecida. E será que os mais jovens estariam melhor preparados para isso? Porque o problema não consiste em não fazer como antes, mas em chegar a uma expressão verdadeira do mistério vivido, de corpo e alma na liturgia. Desejar isto não basta para alcançá-lo. Procurar na celebração um comportamento indi­ vidual e coletivo espontâneo é coisa boa e justa. A ver­ dadeira espontaneidade é este engajamento de todo o ser que exprime livremente, através de seu comporta­ mento atual, sua verdade profunda - e que a descobre hic et nunc manifestando-a. Uma tal consonância é coisa rara. São momentos de graça. A maioria das vezes experimentamos um desejo obscuro que não encontra 138

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sua expressão adequada. Devemos então recorrer a condutas de expressão já conhecidas que vão em busca de uma verdade desaparecida. Pretender ser sempre espontâneo seria ilusório. Esta ilusão se esconde em muitas liturgias que, por princípio, querem ser espontâneas. Como os textos e os ritos propostos não exprimem exatamente aquilo que se sente e se crê viver, as pessoas se entregam à improvi­ sação verbal e gestual. Que se passa neste caso? Só se manifestam as expressões imediatamente disponíveis no seu conteúdo e na sua forma. Ora, salvo momentos de graça, o imediatamente disponível se revela habitual­ mente pobre e superficial. A oração improvisada recai nos mesmos chavões, nas mesmas idéias, sob formas verbais, banais e vulgares. A melodia ímpro-risada reto­ ma os mesmos contornos conhecidos e fica em torno disto. O gesto improvisado é pouco caracterizado, ao sabor da emoção do momento e da forma familiar. A verdade que se exprime assim permanece uma verdade superficial; corre o risco, tanto como na expressão insti­ tuída, de ser uma verdade de fachada. Por outro lado, quando se tem de passar da expressão individual ­ onde se pode alcançar sucesso - à expressão coletiva, este tipo de espontaneidade é cheio de perigo. Como improvisar em conjunto tim canto, um texto, uma subs­ tituição? De qualquer maneira, é preciso que uma con­ duta "modelo" seja proposta e que um jogo coletivo seja feito. Ora, é de todo impossível haver jogo sem regra de jogo. Donde vem a fraqueza de uma espontaneidade que crê exprimir a verdade do momento só porque deixa expandir-se o que lhe ocorre? Não vem da ausência de desejo de ser verdadeiro, mas da carência de meios dis­ poníveis para expressar-se. A verdadeira espontaneidade é a que interiorizou, durante longo tempo, suas condutas de expressão. É a do pianista que, durante horas, dias, meses, estudou uma sonata de Mozart até identificar-se com seu modelo. Feito isto, ele poderá interpretá-la 139


como se ela realmente tivesse nascido dele. E a con­ duta de quem reza e que, tendo tantas vezes recitado e meditado um salmo, neste descobrirá um dia a expressão - e o acontecimento - de seu ser profundo. O rito instituído pode parecer opor-se à esponta­ neidade imediata, que pretende criar, de um momento para outro e livremente as formas de sua expressão, Mas ele não se opõe à espontaneidade profunda. Pelo con­ trário, é ele que dá verdadeiramente oportunidade de chegar-se àquilo que ainda não foi manifestado. O. rito impõe um trabalho a ser feito consigo mesmo. Pri­ meiro, ele nos conduz para alhures, como que para fora de nós, para em seguida reconduzir-nos melhor a nós mesmos. Ele nos afasta do eu-eu, para dar oportunidade ao "eu" que não conhecíamos e que ainda não existia. À tentação do espontaneísrno alia-se a tendência atual de um verísmo que só admite na celebração litúr­ gica a expressão do que já foi vivido, compreendido e experimentado pelos membros da assembléia. Isto se formula muitas vezes assim: liA liturgia deve celebrar a vida". Fórmula ambígua. Sua exatidão depende do seno tido que se dá à palavra "vida". Se a vida em questão se. reduz ao que já foi experimentado p-elos indivíduos; ou às realidades e aos projetos de que eles têm consciên- . cia, se a celebração visa a simbolizar isto com exclusão do resto porque sua expressão seria inautêntica, então a liturgia consiste em celebrar-se a si mesma. Faz-se festa numa "revisão". No caso, trata-se do oposto da liturgia que manifesta o que deve vir, o que ainda não somos mas que estamos chamados a ser, um povo imen­ so - aí incluídos todos. os outros que não são os nossos - de homens que esperam a sua libertação. O que está para vir é mais autêntico do que o que já se acha realí­ zado. Neste sentido, o rito simbólico, que antecipa o que deve vir, é rnais verdadeiro que a experiência. Pode­ -se e deve-se dizer que a liturgia celebra a vida, o homem que vive, mas a vida que Deus nos oferece em Jesus Cristo, e o homem que vive em plenitude este dom. 140

Por certo que é preciso ser pedagogo. A vida mística em Cristo que os sacramentos supõem e a fé escatoló­ gica sob o véu dos sinais, tal como a liturgia as propõe, são o fruto de uma lenta conquista. A experiência reli­ giosa imediata está mais próxima de nossos contempo­ râneos do que o mecanismo simbólico do rito. A expe­ riência religiosa volta-se primeiro para o que foi com­ preendido, sentido e realizado na celebração, depois para o que dela decorre concretamente na vida e que é observável. e no nível da experiência que se falará de liturgias "bem sucedidas" (participação, ambiência, en­ tusiasmo, beleza), ou, ao contrário, de liturgias frustra­ das. Os adolescentes e muitos adultos têm necessidade desse aspecto experimental da liturgia. Aí eles se "reen­ contram". Com c rito, é preciso aceitar perder-se. J! preciso correr o risco da aventura da fé, em nome de uma esperança. A celebração como agir simbólico deve, pois, abrir para si um caminho que se situe entre uma pura expe­ riência religiosa (pré-litúrgica) e uma proposição uni­ camente cerimonial de "figuras" rituais que não teria impacto sobre a assembléia. Aqui intervém um aspecto da prática litúrgica que fica implicado quando se fala em "criatividade". Não discuto este neologismo. Penso compreender o seguinte: a vida nunca se repete exata­ mente. Cria suas formas de acordo com modelos que lhe são interiores, e adapta-os continuamente. Se a litur­ gia é Uma vida, deve comportar-se como tal e ajustar continuamente suas formas celebrantes. Mesmo se o rito é dado e instituído, ele é como o modelo interior de um gesto significante cuja forma está sempre a ser reinven­ tada e modulada..Mesmo se o rito é por natureza "repe­ titivo", ele jamais é repetição pura. No nível das reali­ dades da fé, a liturgia é sempre novidade, nova aliança, renovação pascal. No nível da apresentação dos sinais, porventura algo desta novidade não deve também mani­ festar-se? Novidade do ser e novidade do aparecer não são absolutamente separáveis. 141


o campo de aplicação desse princípio abrange toda a liturgia. Está na base da reforma do Vaticano II que quis, como diz a Constituição sobre a Liturgia, "adaptar melhor às necessidades de nossa época as das instituí­ ções que estão sujeitas às mudanças" (Const. Lit. 1). A ela interessa a imensa questão da relação culto-cultu­ ra, que surge atualmente em todos os países do mundo. Mas interessa-se também pelo detalhe do funcionamento dos ritos. Abordarei esta realidade, quase quotidiana; partindo de um exemplo :preciso: as orações que o cele­ brante faz em nome da assembléia. Tomemos as três orações da missa e a oração euca­ rística. Outrora ditas em latim, em voz alta ou baixa, funcionavam como figura ritual de "orações públicas feitas a Deus", sem ligação imediata entre sua enuncia­ ção pelo padre e· a percepção do seu conteúdo pelos fiéis. Com a tradução delas, e eventualmente o uso de alto-falantes, tais orações reencontraram sua natureza de palavras dirigidas a Deus, mas ditas de maneira que a assembléia as entenda e a elas se associe. Que práticas são utilizadas para isto pelos celebrantes? Uns lêem pura e simplesmente no livro as traduções oficiais. Outros se servem desses textos, dando-lhes, porém, um retoque. Outros ainda se servem de orações diferentes, que procuram nos livros ou que eles próprios escrevem. Outros finalmente improvisam. Do ponto de vista dos fiéis que escutam, as dife­ renças percebidas não são comumente as que acabamos de citar: texto oficial ou não oficial, texto utilizado lite­ ralmente ou modificado. A comunicação oral de então por diante restabelecida na liturgia, depois de mais de mil anos de língua morta e de reinado do "livro", faz surgirem dois aspectos importantes: o que os fiéis pre­ vêem ou não prevêem; o caráter dominante que assume a oração como leitura de um texto existente ou como ação atual de oração comum. No caso das orações, os participantes ouvem um texto que geralmente não conhecem com antecedência, 142

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nem no conteúdo, nem na formulação - exceto se leram ou o lêem no missal dos fiéis, o que é raro. Portanto, a eles não importa que o texto seja ou não oficial, modi­ ficado ou não. Isto é com o padre. Pelo contrário, eles, os fiéis, são sensíveis a três coisas. Em primeiro lugar, ao tom de quem fala: ou ele lê abertamente um texto que não é seu, ou então expri­ me-se de tal forma que se veja que ele está inventando no momento a oração. A primeira maneira de fazer cria uma distância entre o celebrante e os ouvintes. Enquanto que esta "distância" é justificável no caso de uma leitura bíblica (mesmo lida com entusiasmo), pois corresponde à verdade das coisas, é, no entanto, lamen­ tável numa oração que visa a ser realmente a oração da Igreja reunida aqui e agora. '\ segunda maneira de fazer a oração é possível se se partir de um texto escrito, retocado ou improvisado, e se aquele que fala o assume e o profere com verdade. Aqui, a manifestação da novi­ dade (criatividade) reside menos na formulação do que no ato de proferir. Os ouvintes são igualmente sensíveis a uma segunda coisa: às condutas verbais e aos esquemas mentais pro­ venientes da palavra, em outras palavras, ao "modelo oral" utilizado. Só há comunicação possível se o recep­ tor domina as categorias de linguagem que o emissor utiliza. Todos os contistas conhecem isto por instinto e as literaturas de estilo oral mostram-no; há procedi­ mentos que, na realidade, são modelos que asseguram a comunicação. A oração romana tinha inventado a estru­ ' que ... , f azel. agora que... por tura: "Deus .. " vos Cristo". Esta estrutura que vem da Bíblia e que cor­ responde ao esquema habitual de nossas súplicas: "Já que vós. .. concedei-nos ... " pode ainda funcionar. Mas, se a oração é dita em vernáculo, é preciso renunciar à fraseologia da sintaxe latina. g necessário encontrar procedimentos sintáticos que sejam familiares aos ouvin­ tes, do contrário os fiéis não os acompanharão. Mesmo quando a oração é totalmente improvisada, não se podem 143


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dispensar modelos formais. Aqui pois, trata-se menos de significar a atualidade do que de evi tar o prender-se a formas, arcaicas ou esotéricas (há orações modernas muito rebuscadas e demasiado literárias que 'não soam bem). Enfim, os ouvintes são sensíveis ao conteúdo e às conotações das palavras que o exprimem. É certo que as redações propositadamente abstratas e intemporais de muitas orações romanas, até bastante belas (do tipo "já que a vossa graça é a nossa única esperança, guar­ dai-nos sob vossa constante proteção"), têm menos opor­ tunidade de terem repercussão na assembléia do que formulações cheias de imagens, mais próximas da vida concreta e também da atualidade, O que é indubitável aqui é que uma invenção r-a formulação - aliás sem­ pre relativa - pode ajudar a compreender corno a ora­ ção fica sendo assim realmente a da assembléia, aqui e agora. O caso da oração eucarística é bastante diferente porque se trata de uma oração fixa, no sentido de que uma parte do conteúdo não varia e que os fiéis já conhe­ cem as suas fórmulas.. que' são pouco numerosas. Eles ficam, portanto, na expectativa de um certo desenro­ lar-se geral através de palavras já conhecidas. Dentre os celebrantes, há os que lêem. O resultado é ainda mais doloroso do que nas orações, onde pelo menos se conta com a novidade de um conteúdo que varia. Fórmulas conhecidas em tom convencional, eis o que não contri­ bui em absoluto para tornar a oração atual e vivenciada. Para escapar a este inconveniente, alguns utilizam orações totalmente diferentes. Mas a vantagem não é automática. Primeiro, novamente no caso, seria preciso não dar a impressão de que são "lidas". Depois quando o celebrante se afasta demais dos modelos conhecidos; corre o risco de não deixar o ouvinte usufruir do benefí­ cio decorrente de condutas adquiridas, que facilitam a comunicação e favorecem a própria oração. 144

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A solução acaso não nos vma daqueles que, antes da era do texto escrito, entregavam-se à oração pública conforme as leis vivas da comunicação oral? Facilmente diz-se que os celebrantes dos primeiros séculos da Igre­ ja "improvisavam". Este termo, porém, corre o perigo de dar-nos uma imagem falsa da realidade se a encara­ mos como uma invenção imediata e total do fundo e da forma. Na realidade, o que se fazia era pôr para fun­ cionar modelos recebidos sobre determinados temas tradicionais. É exatamente o que supõe Hipólito de Roma ao propor (século III) sua anáfora, que constitui agora a nossa oração eucarística II. Compreendi me­ lhor em que podia consistir isto quando li, da pena de K. Hruby, as regras da oração sínagogal '. No momento do S'rémoné Esré (longas orações incluindo 18 ir-tenções. análogas à nossa oração universal) devia-se primeiro fazer uns momentos de silêncio, durante os. quais vos fiéis faziam, no seu íntimo, essas orações. Isto supunha urna formulação tradicional conhecida de todos. Durante esse tempo, quem ia pronunciar a oração perguntava-se a si mesmo como iria formulá-la. Era-lhe absolutamente proibido lê-la. Devia sempre repeti-la, dizê-la mais de uma vez. Não podia incluir nada que estivesse fora das 18 intenções previstas. Mas ele preparava a sua forma verbal. Essa maneira de agir, ao mesmo tempo que é fiel a "tradição", preocupa-se com o favorecer, de cada vez, a oração atual dos que escutam. Pessoalmente, não en­ contrei nada de melhor. Dentro do quadro das orações recebidas (as que faziam parte de um desenvolvimento conhecido), apoiando-se em fórmulas tradicionais (que permanecem como pontos de referência firmes e cujas frases podem sempre produzir sentidos novos), variam-se 1 Cf. HRUBY, K., "L'action de grãces dans la liturgie [uive" in Borra, B., WEBBS, D., COOUIN, R.-G. et al., Eucharistles d'Orient et d'Occident, Cerf (col, "Lex Orandi", 46), t. I, Paris, 1970, p. 44ss.

145 10 . O amanhã da liturgia


aqui e ali certas formulações, pelo emprego de equiva­ lências verbais, por uma recordação sóbria da Palavra anunciada antes da missa, por uma evocação discreta da situação da assembléia. Assim a palavra volta a ser viva, a comunicação com a assembléia se restabelece, a ora­ ção torna-se atual. Assim fazendo, não se inventou uma "nova oração eucarística", mas celebrou-se hoje, para aquela assembléia, a eucaristia da Igreja. Eu me estendi muito expondo esse exemplo, para mostrar que entre um fíxísmo ritual. e a criatividade absoluta das formas - dois extremos entre ()S quais vêem-se hoje oscilar tantas celebrações - existem cami­ nhos ao mesmo tempo tradicionais e vivos, leves e se­ guros. Há tanta coisa elementar para nós reaprender­ I1")S a fim de podermos ser simples e verda,' eírosl Para praticar a liturgia de maneira autêntica e cheia de vida, é preciso ainda que todos os triunfos não estejam nas mãos dos agentes da celebração. Seus meios pessoais de expressão e de comunicação são muitas vezes bastante limitados. Ainda mais: uma ação simbó­ lica coletiva supõe que os cristãos reunidos disponham de um mínimo de meios de expressão que lhes sejam comuns. De onde haveriam de tirá-los se não de sua hu­ manidade social e da cultura que os configurou? Em tempos e lugares em que a sociedade gozava de uma cultura bastante homogênea, a Igreja, pôde, como algo de muito espontâneo, utilizar na sua liturgia tudo o que ela achava disponível e compatível como culto cris­ tão: formas poéticas e musicais, demonstrações de res­ peito, sinais da festa etc. (Isto é verdade pelo menos na Igreja proxime-ortental e, para a Igreja ocidental, até uma certa época. A partir do século XVII, nos países de missão, não se aplicou mais esse princípio - como o testemunha a triste "questão dos ritos" no Extremo­ -Oriente). Hoje, porém, a coisa não é assim tão fácil no nosso mundo ocidental contemporâneo onde as for­ mas folclóricas estão mortas e as culturas abaladas. Em 146

muitas de nossas assembléias, fica difícil dizer qual a cultura comum aos fiéis. Podem-se ainda distinguir cer­ tas linguagens e códigos comuns que permitem falar, cantar, desenhar (dançar não, alto lál ), Mas que sig­ nificados e que valores estamos assim veiculando? Que tipo de música, de pintura, de poesia, convém utilizar na liturgia? O dos meios de comunicação em moda? O de uma elite de artistas de vanguarda? O de uma tradi­ ção eclesiástica que se tornou arcaica? Recentemente ainda, quando se tratava de celebrar a missa, tudo era dado com antecedência, OU quase: códigos, mensagens, contexto de interpretação. Quase que só a situação e os agentes é que mudavam. Hoje, cada celebração torna-se problemática. Seu sucesso (vi­ sível) depende para uiua grande parte da perspicácia, da competência e dos carismas de um celebrante ou de uma equipe animadora. É forçoso hoje em dia, nas assembléias celebrantes que estas dêem a si mesmas - e umas às outras por intercâmbio e osmose - o equivalente a uma cultura comum (ou antes a uma "subcultura", isto é, a cultura própria de um grupo dentro de uma área cultural mais larga). Há na liturgia realidades que devem ser signifi­ cadas, para as quais não encontramos significantes ade­ quados na cultura profana: palavras, atitudes de ora­ ção, maneira de falar ou de cantar. Quando os modelos antigos da celebração não funcionam mais, é necessário criar novos, sem esperança o mais das vezes de encon­ trar equivalentes na vida social secularizada. Deverão por acaso os cristãos reunidos em assem­ bléia, aceitar a perspectiva de manter distância em rela­ ção ao meio ambiente? Isto parece contrariar completa­ mente uma corrente missionária que, para melhor tes­ temunhar a presença da Igreja no mundo, quer identi­ ficar-se com o comportamento de todo o mundo. Como já o dizia Aristóteles no século II: "Os cristãos não se distinguem na sociedade por uma maneira especial de 147


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viv-er". Mas uma coisa é a vida quotidiana de um cris­ tão no mundo, e outra coisa é a assembléia dos cristãos entre si, justamente onde eles celebram o que lhes é peculiar: sua esperança no Reino, que vem do Espírito que renova a face da terra. Eu penso que isto não seja possível sem uma certa separação. Se o que nos é revelado é "outro", sua manifestação será marcada por esta alteridade. Não que devamos ter ritos esotéricos. Pelo contrário, nada há de mais comum do que os significantes do culto cristão: água, pão, óleo, palavras simples, cantos fáceis, gestos verdadeiramente humanos, como o inclinar-se, o estender a mão, comer e beber. Santo Agostinho dizia que o culto cristão, diver­ samente dos cultos pagãos, complicados e incompreen­ síveis, tem apenas poucos sinais (sacramenta), simples, acessíveis a todos e transparentes. Cada vez que a Ii tur­ gia se afastou deste ideal, nada ganhou com isto. Ela continua ainda - mesmo depois da reforma do Vaticano II - acentuadamente complicada, prolixa, difícil. Mas não é nos seus significantes, no seu vocabulário e nos seus gestos, que a liturgia se torna distante. e na ma­ neira de fazer. É no seu estilo. Pois estou convencido de que existe um estilo cris­ tão de celebração. Uma maneira de festejar o Deus de Jesus Cristo no Espírito Santo. Não entendo aqui o termo estilo no sentido de condutas objetivas, como houve o estilo romano ou o estilo barroco, mas no sen­ tido de que "o estilo é o homem". O estilo litúrgico-cris­ tão é o homem pascal no Cristo. Santo Agostinho o caracterizava com uma palavra difícil de traduzir: "cas­ titas". A um tempo reservada e transparente, feita de respeito e simplicidade, de alegria confiante, tudo o. que encontro num capitel de Autun, em uma melodia grego­ dana, na oração de são Francisco, em alguns coros mo­ násticos que salmodíam, em certos fiéis que levam ao altar o pão e o vinho. A tradição,. com raízes bíblicas, utilizou uma outra palavra que não se ousa mais empregar: a unção. Qual­ 148

quer que seja o termo, acho que ele sugere o que seria a. verdadeira espontaneidade cristã do crente que celebra: uma expressão impregnada do Espírito de liberdade e de amor; um corpo onde já transparece a luz e a cari­ dade de Cristo ressuscitado; um povo já salvo em espe­ rança, que pode seguir o Cordeiro por toda parte onde .01.. . .

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149


12.

TRANSPARÊNCIA EVANGBLICA

Uma situação milenar de riqueza e de poder na Igreja marcou a sua liturgia - Duas tendências pas­ torais: ruptura e continuidade - Uma liturgia ainda demasiado elitista - Exemplos: a vigília pascal; a missa - Distinguir os sinais evangélicos fundamen­ tais - sem dessímbolízá-Ios - A liturgia, serva do Reino que vem - O que é sem valor torna-se -~m preço.

"Vede, pois, quem sois, irmãos, vós que recebestes o chamado de Deus; não há entre vós muitos sábios segundo a carne, nem muitos poderosos, nem muitos de família prestigiosa. Mas o que é loucura no mundo, Deus o escolheu para confundir o que é forte" (1Cor 1,26-27). Era assim que Paulo via a comunidade de Co­ rinto e com ela se regozijava. Depois desse tempo, a Igreja ocidental conheceu mais de um milênio de poder e de prestígio. Poder político que se impunha aos Estados; poder intelectual de suas escolas, de seus teólogos e de seus filósofos; poder de mecenato para os artistas, arquitetos, pintores, esculto­ res, músicos; poder financeiro de propriedade de béns: poder social do clero etc. Desta situação histórica ­ que não se pode julgar sem situá-la em seu contexto sociorrelígioso - as cerimônias litúrgicas receberam as marcas: as insígnias dos bispos e do clero, o cerimonial da corte, os monumentos mais eminentes da cidade onde floresciam todas as artes, o magistério ex-cathedra, as pompas fúnebres ou matrimoniais, fornecem disto alguns exemplos. 151


Na. sociedade atual, secularizada e de cultura pós­ -cristã, a realidade Igreja-mundo tornou-se uma das mais complexas mesmo buscando, como no Vaticano lI, sua face evangélica, a Igreja continua tributária de um pe­ sado passado cultural e sociológico que obscurece seu sinal. O mesmo acontece ainda no domínio da vida ritual, sacramental e litúrgica. Que fazer para que o batismo não seja apenas, como o é ainda para um grande número de pessoas, um rito de integração social, e torná-lo um sina! de entrada na Igreja de Jesus Cristo, morto e ressuscitado? -Oue fazer para que a primeira comúnhão seja o ápice da iniciação cristã e não somente a festa familiar por ocasião de um rito de passagem da infância à adolescência, que encerra o curso de catecismo e muitas vezes mes..no a prática religiosa? E para que o casamento não seja mera solenidade religiosa de uma celebração humana (ainda que sagrada), mas passe a ser de fato o sinal da união de Cristo com a Igreja? Duas tendências pastorais se defrontam atualmente - como sempre - com relação a essas graves questões que colocam em jogo tanto o aparecer quanto o ser da Igreja. A primeira delas, mais radicalizante, reivindica a pureza dos sinais da fé e chama a atenção para as exigências evangélicas dos mesmos. Conclui que seria preferível haver menos batismos, primeiras comunhões (ou comunhões solenes) e casamentos, para dar lugar a gestos mais significativos e tentativas mais verdadei­ ras. Somente mediante tal condição, a Igreja encon­ traria de novo sua face evangélica e seu papel específico definido pelo Vaticano II: "ser de fato o sacramento, isto é, ao mesmo tempo o sinal ~ o meio da união ínti­ ma com Deus e da unidade de todo o gênero humano" 1. A segunda tendência é mais sensível aos valores que vêm sempre misturados com. a busca dos sacra­ 1 CONciLIO VATICANO II, Constituição dogmática Lumen Gen­ D. 1.

tium,

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mentos, busca que se apresenta comumente ambígua. Opor religião à fé, como já se tem feito, ou sagrado profano a sagrado cristão caracteriza a ideologia. Des­ valorizar o primeiro termo para melhor valorizar o se­ gundo é uma ilusão. :e. até um erro pedagógico. Pois em todo homem há um homo religiosus e um sentido natural do sagrado que constituem uma preparação evan­ gélica. Desprezá-los é desprezar o homem. E se, num país como a França por exemplo, a Igreja católica chega a ser quase z. única instância religiosa de fácil acesso para honrar esta tentativa de busca do divino, por que haveria ela de recusar fazer, neste caso, o que reconhece ser legítimo quando se trata de religiões não cristãs? 2 Observemos que esta segunda tendência não justifica que, para tanto, se proceda à simples recondução da prática sacramental atuaI. De qualquer modo, uma mudança se impõem, feita de ruptura e de continuidade. A primeira tendência coloca O acento sobre a ruptura, e a segunda sobre a continuidade. Uma oscilação análoga pode ser observada na prá­ tica ordinária da liturgia. De um lado, sente-se a neces­ sidade de se desembaraçar de um estilo de celebração que atordoa pelo excesso de riquezas, quer herdadas dos séculos anteriores ou importadas "do século". Pre­ ferir-se-ia que os ritos cristãos recuperassem a "castitas" de que falava Agostinho. Fizemo-lo notar, de passagem, ao falar dos lugares de culto, do cerimonial, da música, de certas "visões do mundo" que são por vezes reflexos das orações em tais estilos ou do seu modo de pensar. A transparência dos sinais, para a fé como para a arte, dependem de sua economia. Inversamente, não se pode esquecer que os sinais são para o homem, para todos os homens. Eles visam a ajudar a sua fé. E preciso, portanto, estar atento, ao que possa tocá-los. Crentes esclarecidos, motivados e 2 Cf, CoNCÍLIO VATICANO II, Constituição dogmática Lumen

Gentium, n. 16.

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153 11 . O amanhã da liturgia


preparados, podem contentar-se com poucos sinais, de­ purados. mas evocadores da história bíblica e eclesial. Entretanto, a maíoria dos praticantes tem necessidade de ser encaminhada para a Palavra e o sacramento pelos sinais que falam de modo mais imediato e que são bas­ tante numerosos e variados: ambiência sagrada do lugar do culto, da música, das luzes; da beleza das formas, das pinturas, das flores, dos cantos; palavras cheias de calor - em uma palavra, por uma certa riqueza ritual. Não se trata de escolher, ao celebrar a liturgia, e'TJ.­ tre o elitismo e a demagogia. :e. preciso antes procurar, levando em conta as assembléias, o que eu chamaria de uma transparência evangélica. E esta é de outra ordem. A pastoral francesi. dos últimos decênios, que reve­ lou tanta vitalidade em inúmeros domínios (ação cató­ lica, catequese, renovação bíblica, movimento litúrgico, missão operária, reflexão teológica ... ), não conseguiu escapar de um certo elitismo devido aos seus componen­ tes clericais e intelectuais, culturais e sociais. No que diz respeito unicamente ao domínio da litur­ gia, o movimento pré-conciliar, visando a participação do povo, encontrou seus agentes mais convictos e mais eficientes numa minoria esclarecida: historiadores, teó­ logos, biblistas, pastores conscientes da importância do empreendimento. Ele atingiu, graças a alguns padres decididos e a um número muito pequeno de leigos, uma certa quantidade de paróquias, através de uma intensa catequese litúrgica e bíblica, de ensaios de canto com as assembléias e de algumas adaptações cerimoniais. En­ controu eco entre fiéis sensíveis aos valores da fé e da oração que lhes estavam sendo propostas. Mas ele não veio da base. Quando o Vaticano II quis a reforma litúr­ gica, ainda que em certos países o terreno tenha sido preparado antes, ela foi feita de cima. Sendo assim, quase que não se vê possibilidade de que as coisas pu­ dessem ter evoluído de outra maneira. Antes do Concí­ lio, eram necessários pioneiros. E, para que a reforma 154

conciliar se operasse em todos os países, era preciso impô-Ia. O empreendimento, entretanto, permanece marca­ do pelas suas origens. O exemplo da vigília pascal é bastante esclarecedor. Enquanto ela ainda era celebra­ da na manhã do sábado santo, como um vestígio desfi­ gurado de antigas práticas que se haviam tornado estra­ nhas para o povo cristão, historiadores liturgistas recor­ daram que se tratava de uma vigília noturna, da "mãe de todas as vigílias", da festa por excelência dos cristãos, do tempo privilegiado para os batismos. Então, alguns grupos proféticos de crentes esclarecidos, apoiando-se na arqueologia, restauraram a vigília. Incentivada pela corrente da renovação litúrgica, bíblica e teológica ­ Louis Bouyer publica em 1945 Le Mystere pascal -, a idéia progride. Algumas paróquias, ao relento, celebram a vigília como "paraliturgia", até que Pio XII, antes mesmo do Vaticano II, restabelece a noite pascal em 1951. A reforma conciliar valoriza esta conquista. Mas que conquista ao certo? Vinte anos de prática da Vigília pascal não conse­ guiram fazer desta a assembléia festiva por excelência do povo cristão. Nela a participação é muito variável con­ forme os lugares: às vezes bastante intensa, outras, limi­ tadíssima. De qualquer maneira, ela atinge apenas uma elite de crentes. A maioria "faz a sua páscoa" em outra missa. Como celebração, sua organização continua difí­ cil. Se o rito inicial da bênção do fogo encontrou relati­ vamente boa acolhida, o que vem em seguida é mais problemático: uma porção de leituras e de cânticos bíblicos que se procura abreviar tanto quanto possível; uma festa batismal, onde só se batiza ocasionalmente (sobretudo crianças); uma eucaristia igual às outras. Quase ninguém se arrisca a fazer a vigília noturna e a eucaristia pascal de fato ao romper da aurora. E, no entanto, todos os sinais propostos são de grande valor, altamente tradicionais, bíblicos e sacra­ mentais. Em si, não são mais difíceis do que outros ­ 155


os da sexta-feira santa, por exemplo. Donde vem então o insucesso? Entre outras causas - como, por exemplo, o deslocamento de algumas assembléias em conseqüên­ cia das ferias de Páscoa (ou da Semana Santa, .. ), de que já falamos anteriormente - parece que a falta. de transparência dos sinais provém do caráter de prática elaborada, talvez mesmo elitista.e arqueologicizante dessa restauração. Os sinais maiores: luz, anúncio pascal, ba­ nho batísmal e refeição festiva, não me parecem estar em jogo. Mas o aspecto geral da celebração e a utiliza. ção de cada um dos elementos, é que sim. Uma vez que se trata da maior festa cristã, onde está a ruptura _ "o excesso" - que deve marcá-la, se as pessoas se contentam com uma simples missa (somente um pouco mais longa na sua parte inicial), cele' 'rada ao cair da tarde ou um pouco depois? Onde está então a vigília noturna na espera da ressurreição? E isto numa época em que pessoas jovens - e menos jovens não hesitam em passar uma boa parte da noite em festas com ami­ gos? Quem contestaria o mesmo em relação à missa de meía-noi te de Natal - que não mais teria sentido se não fosse celebrada à meia-noite? A eucaristia festiva não estaria em condições de recordar os ágapes frater­ nos, na alegria' do Cristo ressuscitado? Não é o dia por excelência em que a Palavra bíblica deveria ser parti­ lhada, meditada em silêncio, novamente cantada sob to­ das as formas possíveis, ilustrada com imagens simbó­ licas? O dia em que todos deveriam beber do mesmo cálice? E justamente do anúncio pascal que vem a festa. Mas a sua celebração não pode vir unicamente do livro que contém as orações e os ritos. Ela deve vir sobretudo da assembléia que acolhe a Boa-nova do Cristo ressuscitado. Até hoje, nossas assembléias ainda não tiveram sua festa verdadeira. Mantidas as justas proporções, reflexões análogas poderiam ser feitas a propósito da missa dominical. Sua dinâmica evangélica não está em parte prejudicada por um excesso de sinais? Algumas pessoas, por ocasião de

eucaristias domésticas, descobriram a força renovadora dos sinais mais essenciais do culto cristão, tomados em sua forma elementar: uma Palavra que questiona, uma oração que exprime a esperança do grupo, uma comu­ nhão recebida do Pão repartido. Urna única leitura bí­ blica, algumas intercessões, poucos cantos ou mesmo nenhum, uma refeição na maior simplicidade e a oração ele ação de graças, eis o suficiente. Por que, na assem­ bléia dominical, os mesmos sinais ficam tão empalide­ cidos e diluídos, quando deveriam aí encontrar um relevo maior? Postos de lado os efeitos peculiares aos pequenos grupos (relações interpessoais, simplicidade do funcio­ namento ritual, ausência de papéis formais - salvo o do padre - , forte coesão entre os membros) que .não se podem encontrar como tais numa assembléia aberta, tem-se o direito de perguntar se um ritual por demais carregado não acaba ocultando o que deveria revelar. Por exemplo, a série bíblica: Antigo Testamento ­ Salmo - Epístola - Evangelho. que deveria manifes­ tar a espessura histórica da revelação, tanto em sua uni­ dade como em sua variedade, constitui de fato um ali­ mento de fácil digestão? Se estas leituras ainda não são familiares à assembléia descem como uma onda de frases que se escoam, sem que a espada de dois gumes da Palavra de Deus venha questionar-lhe a medula dos ossos. Os gestos tão simples do Senhor, que benzeu o pão rendendo graças, que o partiu e o deu - quer dizer II aquilo" que se deve "fazer em sua memória" - não são envolvidos numa série de ações demasiado comple­ xas? Particularmente, a oração de ação de graças não teria maior relevo se não fosse imediatamente precedida e seguida de uma série de outras orações, veneráveis por certo, mas menos essenciais? A abertura da celebra­ ção não é demasiadamente compacta e formal, com três cantos distintos e duas orações diferentes? Tudo o que separa a oração eucarística da comunhão (exceto o Pai-nosso) não vem afogar a fração e enfraquecer o con­ 157

156


víte para comer e beber? Em suma, não há cantos demais, orações demais, espalhadas aqui e ali, que freiam os grandes movimentos de uma palavra dada e realizada, de um pão e de um cálice oferecidos e recebidos? Longe de mim pleitear uma indigência de sinais. A finalidade, pelo contrário, é a de tomá-lelsel mais sig­ nificativos possível. Mas como? Eu vejo as coisas da maneira seguinte. Os sinais evangélicos fundamentais - da palavra anunciada, do pedido simples e confiante, do pão e do cálice partilhados na ação de graças em no­ me de Jesus - foram pouco a PelUCO revestidos, dentro de outros contextos sociorreligiosos e culturais, de diver­ sos sinais anexos, destinados a dar realce aos primeiros. Operação normal e até indispensável. Não que a massa e o número dos símbolos tornem estes mais simbolizan­ tes, mas é, graças à multiplicidade das relações que di.. versas ordens simbólicas mantêm entre si, que eles pro­ duzem sentidos novos, Entretanto, os sinais anexos, mais vistosos e transitórios, têm sempre tendência, na história dos ritos, a encobrir os sinais fundamentais, mais humildes e mais estáveis. Os que vieram depoís: acabaram por velar aqueles que deveriam ilustrar. As.. sim, o silêncio sagrado do cânon sobrepujou a anamnese do mistério pascal, como a adoração da presença real no momento da grande elevação, a oferta sacrifical ao Pai. Retificou-se isto. Mas foi suficiente? A oração eucarística não se apresenta bem mais como um monó.. logo do padre, do que como um louvor alto e forte de toda a assembléia ao Pai? Muitas vezes não se tem de esperar pelo momento da comunhão da missa 'para aper­ ceber-se de que o sinal é uma refeição? Se se quer que os sinais máximos do culto cristão recuperem todas as . suas oportunidades, que eles voltem a ser enriquecidos daquilo que os tornaria hoje sugestivos, seria necessário ter a coragem de liberá-los do que deturpa seus signi­ ficados. A reforma do Vaticano II propôs-se esta meta e em parte realizou-a. Era-lhe, porém, mais fácil podar os elementos essenciais do que restituir-lhes a forma 158

viva. Isto só pode ser feito pelas assembléias concre­ tas, dentro de uma cultura especificada por uma língua, uma música e comportamentos corporais: ritos da cor­ tesia, do respeito, da festa, da oração, da refeição, do vestuário. A reforma neste ponto prendeu-se ao que a tradição transmitia de modo aceitável, aliás valorizado pela cultura religiosa das últimas gerações. Mas qual é a transparência evangélica desses tesouros eucológi­ cos, musicais ou rituais do passado, para nossas assem­ bléias de hoje? Impressionados pelo fato de que a liturgia, mesmo traduzida e restaurada, constituía uma representação, ou mais ou menos isto, para muitos fiéis de boa von­ tade, alguns pastores se vêm esforçando para exprimi-la de maneira mais imediata e mais simples: linguagem corrente, até familiar, nas advertências e em algumas orações; música de todo mundo e de todos os dias nos cantos; redução máxima do cerimonial (vestes, procis­ sões ou deslocamentos, gestos da oração), iluminação elétrica industrial comum; objetos rituais estandardiza­ dos. Em resumo, tudo o que possa parecer esotérico é afastado. Conserva-se, no entanto, a Escritura. Quan­ do se pode, porém, usam-se traduções simplificadas. Fazendo isso, será que se consegue uma transparên­ cia maior dos sinais? Pode-se obter assim uma celebra­ ção mais fácil de ser compreendida, uma participação imediata mais intensa, uma ambiência mais familiar. Mas pode-se também chegar a uma liturgia vulgar, uni­ dimensional, privada da mulriplicídade de sentidos dos símbolos, e na qual, positivamente, nada mais serve de sinal porque este, aliás, já deixou de existir. A assem­ bléia acaba por projetar sobre si mesma a sua própria imagem. Nas orações, por exemplo, observei muitas vezes que a linguagem rapidamente se tornava intelec­ tual, reflexiva ou moralizante, por-que se achava despro­ vida de imagens. Ora, como se pode, sem imagens, pas­ sar do visível ao invisível, a não ser de maneira abstra­ ta? Como, se tudo é apresentado pronto, sugerir outra 159


'coisa~

Nos ritos, o cerimonial que se queria evitar é substi iuído pela execução opaca de algumas operações materiais, que se tornaram até incômodas, Por fim, as pessoas chegam a perguntar-se por que há um cálice e o pão, uma vez: que já lhes foi dito em que deviam acre­ ditar e o que tinham de fazer como cristãs. Essas litur­ gias. fortemente conscíentizadas, permanecem em geral pouco imaginativas e pouco inventivas do ponto de vista da celebração. Elas temem a utopia, a alienação escato­ logicizante, o descomprornissamento ritualista. Será que não nos estamos encaminhando para uma gnose em que o sacramento nada mais fará do que ilustrar um conheci­

mento e um comportamento moral?

A transparência dos sinais desaparece igualmente quando o vidro é exageradamente colorido ou quando, por t""'ás dele, não há um mundo luminoso para ..::ontem­ plar-se , Nos dois casos, é preciso admitir que nós esta­ mos do lado escuro - a obscuridade da fé. Os sinais não existem para refletir a nossa própria luz. Também, eles não são por si mesmos fonte de luz. Refratam, através de nossa espessura corporal e mundana, uma luz vinda de alhures. Não se deixam ver. Eles deixam ver. Aí estão para que nossos olhos se abram para outra coisa. Os fitos também não são "aquilo que se deve cumprir em relação a Deus". Eles devolvem ao homem a sua liberdade. Chamam-nos para outras coisas: para morrer e para ressuscitar em Cristo; para passar com ele ao Pai. Podemos perguntar-nos se a liturgia de hoje não está mais preocupada consigo mesma do que com o Reino que ela anuncia - como alguns de nossos contem­ porâneos, tão ansiosos de encontrar a sua identidade que se esquecem de vivê-Ia. Disseram que a Igreja atual estava também preocupada consigo mesma, com sua "vi­ sibilidade", com sua "imagem marcante", com a face que ela oferece ao mundo descrente. Ela deveria preo­ cupar-se sobretudo com o seu "Senhor", com o procla­ mar alto e forte a sua Palavra, com o estabelecer os 160

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sinais da sua ressurreição, com o mostrar a caridade de­ seu Espírito - exatamente da maneira como ele pró­ prio, neste mundo, nada mais fez do que "encaminhar" para o Pai. Com muito mais razão, a liturgia, que se dirige aos que crêem e aos que buscam a fé, deveria estar preocupada com aquele cujo mistério vivo ela cele­ bra: seu Evangelho libertador, que "foi pregado não somente com palavras, mas com grande eficácia no Es­ pírito Santo e com toda a convicção" (lTs 1,5); seus gestos salvadores, que perdoam e que restituem a vida; seu amor derramado em nossos corações pelo Espírito. Como Jesus, a liturgia também é um "enviar" (missa = missa em latim), passagem (páscoa ), doação ao Pai. Seria preciso que ouvíssemos continuamente as vi­ gorosas palavras do prc feta Joel : "Detesto e desprezo vossas festas, não sinto nenhum prazer com vossas assembléias. Quando fazeis subir a mim holocaustos e oferendas, eu não os acho agradáveis. Vossos sacrifícios de animais gordos, eu nem os olho. Afastai de mim o ruído de vossos cânticos; Não quero ouvir a música de vossas harpas. Mas que a retidão brote como uma fonte, a justiça como uma torrente inesgotável" (II 5,21-24). Jesus não atenuou essa mensagem, mas retomou-a com toda a sua força: "Ide.i poís, e aprendei o que sig­ nifica: M isericórdiaé que eu quero, e não sacrifício" (Mt 9,13). E são Paulo poderá caracterizar assim o único e verdadeiro culto cristão: "Exorto-vos, portanto, irmãos, pela misericórdia de Deus, a que ofereçais vossos corpos como hóstia viva, santa e agradável a Deus: este é o vosso culto espiritual" (Rm 12,1). 161


liturgia permanecerá crucificada como o Senhor, cuj a glorfa ela celebra. Vãs são as solenidades, vazias as palavras, a musica é tempo perdido, a oração inútil e os ritos mentirosos, se a justiça e a misericórdia não os transfiguram. Mas, quando o desejo do homem encontra o Espí­ rito de Deus ..e se deixa transformar por este, tudo se torna para ele de um preço inestimável:

1NDICE

À

a água que o faz reviver, "o vinho que alegra o coração humano, para que tenha óleo com que fazer brilhar o seu rosto, e o alimento que sustenta a força dos mortais" (Sl 104,15), desde o "isto", que é seu Corpo e a Nova Aliança em seu Sangue, até o a mais simples palavra que une no amor. Sempre haverá quem diga da liturgia o que Judas dizia da unção de Betânia: "A troco do que esse desper­ dício? Pois isso poderia ser vendido bem. caro e distri­ buído aos pobres" (Mt 26,8-9). Mas haverá sempre al­ guém que responda com Davi, repreendido por sua mu­ lher por ter saltado de alegria diante da arca e ter-se exposto ao ridículo: "Quero alegrar-me diante do Senhor" (28m 6,21).

162

Pág.

5 Apresentação à edição brasileira 11 Prefácio 1. Ontem, hoje, amanhã 13 2. Inflação - desvalorização 25 33 3 _ Igrejas grandes demais 4. Assembléias de fisionomia incerta 45 5. Comunidades impossíveis de serem encon­ 59 tradas 75 6. Clarões num céu cinzento 87 7. Clérigos dirigentes e leigos executantes 97 8. Palavra e palavras 9. Música e canto 107 125 10. Símbolos que simbolizem 137 11. Espontaneidade - criatividade 151 12. Transparência evangélica


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dO,s qUfI se reúnem para ·ce/fibrar.

OuaI é9 () fCJtulo d83 8$3f1mbléias litú;9;clIsi'

Sere qUlI flI83 não fistão ccmpI'omstidas

per uma s,j,ifl de obstlJculos?

au~ r;lIminhas S8 padtN8t1 temer? O e« Ge/inea/J, S.J., oferecB, /JÓ pfessn tfl fI/Jsai", o flu-to dfl trinta anos dfl trabslha '.'de refJsxs'o a serviço do moviment« IItúlglco; antes, durflnte e dep.;Js do C;()nclllo. Prf1ferind" a ,pr,tic8 fi 8 cri'fltivldsdtJ ii teoria, preocupado com as estruturas " IIS formas, por'm bem mais C"JIJ os homens,

com a fé que tlm

e com a orflção 8 que S" entregam,

8borda quest6es atua/s,

dlf$ mais radicais mais candentes,

com uma grands liberdade dtJ flsplrito,

uma imaginação corajosa fi um s,Jlido bom-senso.

Trete-se de um ltvro que compfomets, .

II ,

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convence e constrói. '

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