Textos da Iniciação Científica. N˚6
TEXTOS DA INICIAÇÃO CIENTÍFICA. N˚ 6 Orientação: Profª. Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti Departamento de Antropologia Cultural
“RECORDAR É VIVER?”. A AUTENTICIDADE NAS REEDIÇÕES DE SAMBAS E ENREDOS DE CARNAVAIS PASSADOS
Paulo Cordeiro Neto Março, 2005. paulo.neto31@uol.com.br
1
Textos da Iniciação Científica. N˚6
“Recordar é Viver?” A Autenticidade Nas Re-edições de Sambas e Enredos de Carnavais Passados Resumo: Este trabalho analisa a reedição de enredos e sambas no carnaval de 2004. A proposta de utilização de sambas do passado foi feita pela Liga Independente das Escolas de Samba, organizadora do desfile do grupo especial e quatro escolas a aceitaram: Portela, Império Serrano, Tradição e Viradouro. Objetivei levantar e analisar as razões dessa opção verificando como se deu em cada uma das agremiações, a busca pela forma “autêntica” que permeou a preparação desse desfile. Palavras-chave: carnaval carioca; reedição dos sambas enredos; ritual; tradição e autenticidade. Introdução Este trabalho foi motivado pelas reedições de sambas enredo no carnaval de 2004 por algumas escolas de samba do carnaval carioca. A opção por refazer temas e reutilizar os sambas foi uma proposta da Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro (LIESA) a fim de se comemorar seus vinte anos de criação e de construção do Sambódromo. A princípio, todas as escolas seriam convidadas a reeditar um de seus carnavais, porém por decisão das próprias agremiações a opção pelas reutilizações ficou a cargo de cada grêmio recreativo. Das quatorze escolas que integram o grupo especial, a dita elite das escolas de samba, apenas quatro escolas se propuseram a enfrentar o desafio de repetir grandes sucessos. O fato inédito na história dos desfiles das escolas de samba no Rio de Janeiro transformou o desfile de 2004 em um momento de grande curiosidade tanto para os sambistas quanto para os pesquisadores ligados à cultura popular. Um conjunto de questões organiza a investigação proposta. Pretendeu-se investigar as motivações que levaram a Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro, a partir de seu departamento cultural, a incentivar as agremiações na reutilização de sambas e enredos antigos, além dos objetivos de comemoração já mencionados. Procurei observar e analisar o discurso dos dirigentes da LIESA e das agremiações envolvidas nas reedições, pois em entrevistas feitas pela mídia impressa verifiquei a presença de idéias como “nostalgia”, “resgate de tempos áureos” ou “busca aos clássicos” na grande maioria das falas. Objetivei levantar e analisar, em cada agremiação, as razões da opção por um
2
Textos da Iniciação Científica. N˚6
determinado enredo e samba já apresentados. Após tal levantamento, foi necessário também comparar as motivações de cada escola de samba ao realizar a reedição, além de verificar como as escolas se propuseram a promover os desfiles. As escolas de samba que optaram por reviver sambas em seus desfiles foram: Portela (fundada em 11 de abril de 1926), Unidos do Viradouro (24 de junho de 1946), Império Serrano (23 de março de 1947) e Tradição (01 de outubro de 1984). Foram objetos de estudo todos os elementos que cercam as escolas citadas, no caso instituições como a LIESA, as próprias agremiações e seus componentes. A análise acerca das reedições dos temas e sambas antigos que foram realizadas no desfile de 2004 interessa às ciências sociais pois, a partir deste fato, poderemos levantar questões sobre valores como tradição, modernidade e, principalmente, verificar como a utilização desse recurso irá afetar os valores e estruturas existentes nos desfiles das escolas de samba cariocas. As manifestações populares são freqüentemente alvo do trabalho antropológico. Nestas manifestações, os grupos sociais envolvidos mostram seus valores e tradições. O carnaval carioca, por sua proximidade de nosso cotidiano e sua riqueza de ingredientes sociais, sempre me chamou atenção e despertou minha curiosidade. Venho trabalhando com carnaval carioca e as escolas de samba ao longo de minha graduação e da iniciação científica. O carnaval carioca pode ser visto como um rito de passagem extremamente importante para análise de tipos e características de nossa sociedade (DaMatta, 1979). A cordialidade, a malandragem, o jeito peculiar brasileiro de resolução de problemas estão contidos neste ambiente carnavalesco. O carnaval carioca é um tempo especial durante o qual a ordem é subvertida em nome da alegria de grande parte da população. Dentro das micro-estruturas existentes nas comunidades onde se encontram as escolas de samba podemos retirar exemplos de atitudes que se cristalizam no imaginário popular. Esta pesquisa tentará colaborar no entendimento da construção de visões da sociedade brasileira, em especial as características cariocas, a partir desta grande manifestação da cultura popular. Vários autores dentro da antropologia já argumentaram que o carnaval, em especial o carnaval carioca, é um dos elementos que contribuem na formação da identidade brasileira. Ao fazer o registro deste grupo através deste trabalho, pretendo retratar um ambiente onde valores são criados e reafirmados diariamente. A discussão da noção de autenticidade nas reedições apresentadas pelas escolas é outro fator interessante de debate. Ao refazerem certos temas, as escolas se põem em um
3
Textos da Iniciação Científica. N˚6
dilema: como dar uma nova interpretação ao tema reeditado já que é impossível a reprodução do carnaval original? Esta indagação nos permite pensar que a busca pela forma “autêntica” deve ter permeado a preparação desse desfile. Foram discutidos quais elementos a escola não poderia ter deixado de mostrar para não descaracterizar a idéia do desfile original e em que pontos a escola poderia ter aglutinado elementos novos à concepção do enredo reutilizado. A partir deste ponto, o trabalho busca entender o que é “tradicional” e “moderno” para o desfile das escolas de samba cariocas, principalmente no que diz respeito aos barracões, lugares onde são feitas as alegorias e fantasias das escolas (Cavalcanti, 1994). Há a dúvida sobre como adequar na atualidade os enredos que ocorreram em outras épocas onde era diferente a maneira de se conceber um desfile de escolas de samba. As idéias de plasticidade, ritmo e andamento agora precisariam se encaixar na forma atual de apresentação de uma agremiação na passarela do samba. Pergunta-se então como seria o “comportamento desejado” pela agremiação dos componentes ao entoarem sambas de outrora, consagrados pelo público, em um desfile atual. Trazer ao debate acadêmico a análise deste momento da história do carnaval carioca e o exame do significado das categorias acima mencionadas é também discutir a nossa sociedade e suas relações sociais. A proposta da LIESA e a reação das escolas de samba O órgão que organiza os desfiles das escolas de samba é a Liga Independente das Escolas de Samba, a LIESA, e desde sua criação, ela visa o crescimento e o ordenamento do desfile. Nos discursos observados pelos seus dirigentes, podemos observar uma associação de significados muito importante. A idéia do desfile das escolas de samba em si é automaticamente associada à idéia de espetáculo. Na historia do carnaval carioca, percebemos que o desfile ganhou muita visibilidade de público e mídia e passou a incorporar diversos elementos (Cavalcanti, op. cit.). A construção da passarela do samba contribuiu muito também para essa noção de espetáculo. Imbuída por esta noção, a LIESA propôs às escolas de samba integrantes do grupo especial que reeditassem seus principais sambas e enredos por motivo das comemorações dos 20 anos da instituição e construção do sambódromo. Na verdade, a idéia partiu do Presidente da Liga, Aílton Guimarães Jorge, o Capitão Guimarães, que, ao ver a apresentação de uma samba de “esquenta”, antes da escola de samba Em Cima da Hora,
4
Textos da Iniciação Científica. N˚6
quando ela entoava o famoso samba “Os Sertões” de 1976 1. Ele observou como as pessoas cantavam com entusiasmo o samba. “É como venho frisando: a Liga não faz desfile de Escola de Samba; ela produz espetáculo de Escola de Samba. Nós apresentamos o algo mais que os outros desfiles não têm”, disse o Capitão Guimarães, em entrevista a uma publicação da própria LIESA, ao se referir o carnaval de 2004. Quando perguntado sobre a experiência de reeditar sambas-enredos, ele comenta: “Na minha opinião, a idéia aprovou em cheio. Há quanto tempo não nos emocionávamos com os sambas enredos, como aconteceu neste ano (2004)? A última vez que eu vi o público se empolgar de ponta a ponta da passarela foi em 1993, com o Explode Coração, do Salgueiro”. Como podemos ver, a principal motivação da LIESA ao propor as reedições seria a de aumentar a interação entre o público e o desfile que, segundo eles, não seria mais a mesma de carnavais anteriores. A proposta não foi aceita de forma unânime pelas agremiações. Várias questões foram levadas em conta pelas escolas e, no final das contas, somente quatro agremiações foram em frente com a idéia de reeditar sambas. A idéia original era a de que todas as escolas participassem, mas como muitas reclamaram deixou-se essa proposta como opcional. Como foi dito na introdução, cada uma dessas quatro escolas tiveram motivações diferentes para fazer as releituras dos enredos e samba-enredos originários. Veremos a diante, analisando caso a caso, como se deu a construção de cada desfile e o processo anual de preparação do carnaval. Mas antes, vamos ver os aspectos comuns a essas escolas e como elas se comportaram a partir desta alteração na sua rotina anual de confecção do carnaval. Construindo as re-edições Após a confirmação da realização das reedições por Portela, Império Serrano, Viradouro e Tradição, foram observadas reações dentro dessas escolas de samba. Algumas dessas reações foram comuns a todas elas. A primeira grande diferença foi que, com o samba-enredo já escolhido, uma etapa anual importante no processo ritual de construção de um desfile (Cavalcanti, 1994) — a composição e a competição interna de sambasenredos — acabou. Essa etapa sempre movimenta a agremiação, ativa as relações sociais e é o primeiro momento de encontro dos sambistas depois de acabado o carnaval do ano anterior.
1
Dado extraído de uma notícia do jornal O Globo, de 30 de janeiro, 2003.
5
Textos da Iniciação Científica. N˚6
As escolas que optaram pela reedição tiveram esse problema logo de início na preparação de seus desfiles e enfrentaram uma grande reação negativa de um setor importantíssimo dentro das escolas de samba: A Ala de Compositores. Essa ala se mantém viva justamente na disputa e escolha de sambas enredo anuais. Com as reedições, a ala teve que buscar outras funções dentro das agremiações, muito a contragosto, mas isso foi necessário para não haver o desligamento absoluto da ala dos compositores da vida rotineira das agremiações. “Resgatar sambas antigos é uma solução para encobrir a realidade, não dá pra resolver querendo tapar o sol com a peneira!”. Esta é a opinião de Eugênio Leal, compositor e jornalista sobre as reedições. Para ele, é possível ainda se fazer sambas que tenham grande interação com o grande público e é inadmissível acreditar que isso só possa existir no passado e que a inventividade tenha se esgotado. Seria uma falta de visão geral dos dirigentes. Ainda segundo Eugênio, acabar com as disputas de samba enredo é acabar com a alma das escolas. Elas são de vital importância para a existência das agremiações. É neste momento que os compositores se afirmam, se encontram e estabelecem relações. É o “burburinho” da disputa que movimenta e integra os componentes em torno das escolas. Outra questão levantada foi a utilização de sambas antigos de uma escola de samba por outras escolas, como foi o caso da Unidos do Viradouro, que reutilizou um samba de 1975 da Unidos de São Carlos – atual Estácio de Sá,. Foi esse também o caso da Tradição, que reutilizou um samba de 1984 da escola com a qual ela rompeu em sua origem: a Portela. Temos um problema aí muito ressaltado pela mídia: o da identidade das escolas de samba. Onde ficaria esta identidade se uma escola utiliza para o seu desfile sambas enredo já utilizados por outras escolas? Mas veremos esta questão quando formos analisar mais detalhadamente cada escola. Um momento muito interessante no período pré-carnavalesco de 2004 foi o dos encontros realizados entre as escolas que optaram pela reedição. Esses encontros surgiram como alternativa para preencher o vácuo inicial causado pela ausência das disputas de samba-enredo. O primeiro encontro foi realizado pela Portela em sua quadra. Neste momento ficou combinado que cada uma das escolas iria realizar um encontro e receberia as co-irmãs que optaram por fazer a reedição. Os encontros atraíram um grande público e um antigo costume foi reavivado: a visita do pavilhão de outra agremiação à quadra da escola anfitriã. Esses ensaios conjuntos trouxeram uma questão interessante. Das quatro escolas de sambas que escolheram refazer carnavais antigos, três escolas são da região de Madureira:
6
Textos da Iniciação Científica. N˚6
Portela, Império Serrano e Tradição. Por estarem na mesma vizinhança, estas agremiações nutrem certas rixas entre elas e seus componentes. Esta competição entre elas contribui com muitos elementos de análise para a pesquisa. Há uma troca agonística entre essas escolas (Mauss, 1974). As categorias como identidade, autenticidade e tradição se evidenciaram nestes encontros em vários momentos. Os ensaios conjuntos começavam com a apresentação individual de cada escola na qual cada uma cantava seus sambas antigos famosos, com suas baterias e outros componentes das agremiações. Enquanto cada escola se apresentava, os torcedores se exibiam cantando com muito vigor os sambas entoados. A escola seguinte se preparava e procurava sempre fazer uma exibição mais eloqüente do que a agremiação anterior. Geralmente a escola anfitriã da festa abria as apresentações. Quando festa foi no Império Serrano, entretanto, a escola fechou as apresentações dando um toque de “Grand Finale”. O público foi ao delírio ao som de “Aquarela Brasileira”. Um momento interessante destes encontros foi a harmonia entre essas escolas de samba . Apesar das rixas observadas, o clima era sempre extremamente festivo. Havia momentos nestas reuniões em que as baterias se misturavam, isto é, elementos de diferentes agremiações tocavam juntos. Não era raro observar componentes que desfilavam em mais de uma escola das escolas reunidas. Apesar de torcer por uma delas, os componentes podiam desfilar nas co-irmãs. A rivalidade só apareceria no dia do desfile mesmo e na hora da apuração das notas do júri. As escolas sempre trocam vários elementos entre si. Estes encontros nos ajudam a entender mais um pouco sobre elas e razão de suas escolhas e foram muito proveitosos neste sentido de análise. “Nessa avenida colorida...” a Portela revive seu carnaval Um das escolas de samba mais antigas do Rio de Janeiro, a Portela optou por refazer o enredo de 1970, quando venceu sozinha, pela última vez, o desfile. A decisão partiu do presidente da escola, Carlos Teixeira Martins, o famoso bicheiro Carlinhos Maracanã. Esse enredo— “As lendas e os mistérios da Amazônia”, tema do desfile original de 1970 — além de ter sido um enredo vitorioso marcaria dois momentos para a escola: seu presidente logo depois do carnaval de 2003 decidiu sair do cargo que ocupava a 32 anos e promover uma eleição, tentando também trazer de volta pessoas importantes para escola. Logo de início, podemos observar que a idéia de resgate de uma tradição estava presente na opção pela reedição. A diretoria da escola acreditava que refazer o carnaval de 1970 traria de volta à Portela seus momentos de glórias e vitórias.
7
Textos da Iniciação Científica. N˚6
A Portela é maior ganhadora de títulos no carnaval carioca com 21 campeonatos, porém depois da vitória de 1970, a vitória de 1984 foi apenas relativa. Naquele ano de inauguração da Passarela do Samba na vida da cidade (Cavalcanti, 1994), a organização dos desfiles conferiu título de campeã para os dois dias (domingo e segunda-feira de carnaval) de desfile das grandes escolas e propôs um desfile no sábado seguinte (que, logo depois, transformou-se no atual desfile das campeãs) então denominado de “supercampeonato”. Ora, nesse desfile de sábado, a Portela perdeu para a Mangueira. Enfim, a escola nutria muito a idéia de tradição entre seus componentes. A reedição do enredo de 1970 passou a ser um projeto da diretoria da escola para trazer de volta o “orgulho portelense”. A primeira mudança observada foi no canto da escola. Com o samba já conhecido pelos componentes, o canto parecia mais forte e entoado com mais vivacidade pelos portelenses. Este foi um ingrediente ímpar na preparação deste carnaval pela Portela. Dessa forma, a escola não perdeu com a ausência de movimento que poderia ocorrer sem a disputa de sambas. Os compositores encararam como uma homenagem à sua ala a utilização de um samba antigo, segundo as palavras de Monarco, representante da ala e da velha guarda. Uma série de eventos foi feita para movimentar a quadra. A volta do pagode da família portelense foi um exemplo e atraiu muitos componentes para quadra que se divertiram ao som da velha guarda e pela saborosa feijoada servida. “O desafio de reeditar um enredo consagrado foi superado”. Estas foram as palavras ditas pelo carnavalesco Jorge Freitas após o desfile. A preocupação da escola, segundo ele, foi a de preparar um desfile dentro dos padrões apresentados pelas escolas de samba, mas que contribuísse para a emoção do momento. A emoção deveria ser o destaque do desfile da Portela. Jorge Freitas diz que cumpriu seu papel ao fazer alegorias coloridas e criativas que representassem bem “As lendas e os mistérios da Amazônia”, tema do desfile original de 1970. Para ele, a escola passou rica, bonita e cantando feliz o samba. Com relação ao desfile original, o enredo incluiu quatro novas lendas. O carnavalesco explicou que utilizou muita criatividade e contou com a ajuda dos artistas da festa de Parintins para dar movimento aos carros, já que o enredo era sobre as lendas amazônicas. Não eram necessários recursos mirabolantes e futuristas para recontar esta história, o importante era trazer a emoção e o orgulho portelense novamente à tona. Outros elementos foram utilizados pela Portela para dar esse sentido de resgate de tradição ao desfile. O idealizador do enredo original, Clóvis Bornay, ajudou na releitura. Ele estava afastado da escola desde o desfile original e ficou muito feliz em participar deste momento histórico para a Portela. Assim como Clóvis Bornay, outras figuras importantes
8
Textos da Iniciação Científica. N˚6
foram chamadas para trazer essa “aura gloriosa” ao desfile reeditado como Dona Dodô, antiga porta bandeira da escola; e Paulinho da Viola, compositor e ilustre componente da escola. As idéias de autenticidade e volta ao passado estavam presentes a todo instante e sempre conectadas a uma idéia de sinceridade e entrega daquelas pessoas que participavam do momento (Gonçalves, 1996). Havia uma preocupação de mostrar como “era a Portela realmente”. A escola não conseguiu o campeonato, ficando na sétima colocação, mas esta reedição, segundo a diretoria da escola, trouxe de volta o orgulho de ser Portela. “Vejam... Essa maravilha de cenário!”. A Reedição no Império Serrano. Quando foi proposta a idéia da reedição, Neide Coimbra, presidente do Império Serrano, não teve dúvidas em aderir. Segundo ela, o Império, pelo seu conjunto de excelentes sambas, não poderia perder a oportunidade. Desde então ela encarou um bom problema: Dentre tantos sambas bons, qual seria o escolhido para a releitura? Por preferência pessoal da presidente, foi escolhido um samba antológico de Silas de Oliveira, o compositor mais famoso da escola e com vários sambas gravados dentro da música popular brasileira, “Aquarela Brasileira” de 1964. O Império contou com a ajuda da pesquisadora Rachel Valença que é também a curadora da página eletrônica da escola, além de ritmista da bateria. Para ela, a reedição, assim como no caso da Portela, teve uma função de resgate cultural contrapondo-se ao momento vivido pela escola. Paira entre os componentes uma idéia de passado a se orgulhar. A opção de realizar a reedição de “Aquarela Brasileira” também levou em conta a atualidade do tema: as belezas e costumes das regiões brasileiras. Para Rachel Valença, a possibilidade de cantar este samba novamente reaviva o ânimo imperiano. Não pela falta de bons sambas nos quarenta anos então passados desde “Aquarela Brasileira”, mas este samba teria, para ela, o poder de devolver ao imperiano a autoconfiança, aquele orgulho que se origina na certeza íntima de que só o pavilhão verde-branco faz sentido. Orgulho este que, para ela, andava meio combalido. A reedição traz ao componente do Império um “moral alto”, não por apenas cantar uma obra-prima, mas se reportar a um outro tempo em que as dificuldades eram enfrentadas de um outro jeito, com mais fraternidade, mais união, mais idealismo e disposição. Em sua visão, talvez fosse isso o que o Império Serrano precisava para resgatar e reviver seus momentos de glória: Orgulho, auto-estima e fé em suas capacidades.
9
Textos da Iniciação Científica. N˚6
Perguntei a Rachel Valença sobre como a escola fez para reverter a quebra do calendário normal causada pela ausência da disputa de sambas enredo. Ela me respondeu que este foi um grande problema para escola, pois pouco foi feito para preencher este vácuo. Os compositores não foram unânimes na aceitação da releitura e na utilização do samba, mas acabaram por encarar o fato como uma homenagem e reverência ao componente mais importante da ala: Silas de Oliveira. A receita financeira da escola ficou muito enfraquecida sem a disputa de samba, mas houve uma compensação mais perto do carnaval com a super lotação nos ensaios. Para ela, houve uma quebra no ritmo natural da escola, isto é, o rito anual da escola foi abalado pela parcial ausência de atividades na quadra. Somente no encontro das escolas que optaram pela reedição, ela sentiu a vibração dos componentes que andavam meio afastados durante grande parte do período précarnavalesco. As visitas das bandeiras das co-irmãs estimularam a disputa e a rivalidade entre elas. Um momento relevante na preparação do carnaval imperiano foi a disputa pelo poder na escola, o que acabou prejudicando na confecção do carnaval. Segundo Rachel, a reedição acirrou os problemas internos da escola, pois todos queriam participar daquele momento dentro da agremiação, mas devido problemas políticos isso não era possível. Então grupos da escola se alternaram no poder a fim de estar à frente daquele momento especial. Esta alternância prejudicou muito a organização do carnaval do Império Serrano, principalmente na questão financeira envolvida no recebimento dos recursos institucionais. No final, a presidente Neide Coimbra permaneceu no cargo e permitiu que os grupos rivais participassem do carnaval imperiano solucionando parcialmente o problema. A reedição colocou o Império Serrano novamente no foco das atenções do público no carnaval. O desfile foi o reflexo de todo período pré-carnavalesco. Apesar dos problemas decorrentes da disputa no poder que ficou aparente no “visual” da escola, o Império Serrano fez seus componentes e o público cantarem fortemente seu samba. Segundo os comentaristas de diversas mídias, foi uma catarse. “Um episódio relicário”, como descreveu parodiando o samba, Aloy Jupiara, jornalista do jornal O Globo, no dia 25 de fevereiro de 2004. Com um “visual” simples, mas com a emoção à flor da pele devido em grande parte ao apelo do samba, o Império Serrano arrancou gritos de “É campeã” no final de seu desfile. Segundo ainda Rachel Valença, o desfile trouxe a possibilidade, um pouco esquecida na forma de carnaval atual, da festa acima da idéia de competição e espetáculo, como é pregado pela LIESA. O Império fez um desfile que tinha compromisso com seus componentes principalmente e não com somente com o resultado ou com uma obrigação
10
Textos da Iniciação Científica. N˚6
de proporcionar um espetáculo visual ao público. Foi um espetáculo sim, mas de samba sobretudo, diz Rachel. Foi uma vitória da tradição imperiana. Apesar disso, o resultado não foi dos melhores. A escola ficou na nona posição. Como podemos observar vários conceitos estiveram presente, tanto na Portela quanto no Império Serrano. No caso dessas escolas, as idéias de glória e tradição estão a todo instante sendo colocadas e reafirmadas. A proposta da reedição foi usada como artifício para estas escolas demarcarem sua identidade em relação às demais agremiações. É através do rito carnavalesco que elas se reafirmam e se modelam (DaMatta, 1973). Vejamos agora os casos de Tradição e Unidos do Viradouro. Em busca de uma identidade (ou não?): Tradição e Viradouro Dentro da proposta da reedição, Tradição e Unidos do Viradouro se depararam com um dilema: As duas escolas são relativamente recentes e não teriam sambas conhecidos anteriores a 1984. Para as escolas nessa situação, a LIESA permitiria a reutilização de sambas de outras escolas, caso estas últimas permitissem. À primeira vista estaria resolvido o impasse, porém logo um outro problema se configuraria: Como ficaria a identidade da escola ao reutilizar o samba famoso de outra agremiação? Mesmo assim, as duas escolas optaram por reeditar. A Viradouro foi pedir o samba “Círio de Nazaré”, de 1975, à antiga Unidos de São Carlos (atual Estácio de Sá). Já a Tradição voltou-se para suas raízes dissidentes, pedindo à Portela para utilizar o samba “Contos de Areia”, de 1984. O debate entre os componentes das duas escolas foi intenso. Como trazer ao ambiente da escola um samba cantado por outra agremiação? Este foi um processo com muitos debates e experiências ímpares. “Tradição e Portela fazem as pazes”
2
e “Dissidência da Portela vive crise de
identidade” 3 foram as manchetes dos jornais criticando a reedição feita pela Tradição. A história da agremiação pode nos fazer entender um pouco a escolha da escola. A Tradição surgiu de uma disputa política na Portela justamente em 1984, após o carnaval cujo enredo era “Contos de Areia”. O diretor de carnaval era Nésio Nascimento, filho do lendário Natal da Portela, um dos homenageados pelo enredo de então. Nésio foi um dos responsáveis da organização deste enredo, mas discordou das decisões de Carlinhos Maracanã, presidente da Portela, em relação à escola e à expulsão de alas comerciais. Resolveu então constituir uma nova Portela que estaria fundamentada nas tradições da 2 3
Manchete de reportagem da página eletrônica do provedor Terra, de 23 de fevereiro de 2004. Manchete de reportagem do jornal O Globo, de 25 de fevereiro de 2004.
11
Textos da Iniciação Científica. N˚6
agremiação. Fundou então a Portela Tradição, tendo na figura de Natal e de seu filho Nésio os baluartes da continuidade dos fundamentos portelenses. Começou então entre as duas agremiações uma disputa judicial pelo nome e pelos símbolos, principalmente a águia. O grupo de Carlinhos Maracanã sai vitorioso e detentor do nome Portela e de seus símbolos. Cabe então a Nésio e às alas expulsas da Portela a fundação de uma nova escola: a Tradição, em 1o de outubro de 1984. Desde essa data a luta por valores dentro da Portela é acirrada. Quando Nésio optou por reeditar justamente esse samba, toda essa história voltou ao debate e à memória. Hoje em dia, Portela e Tradição são escolas distintas apesar da origem comum. Até a notícia de que as escolas estariam se juntando novamente foi divulgada. Mas tudo não passou de boato e a Portela permitiu que a Tradição utilizasse seu samba “Contos de Areia”. Mesmo assim pareceu estranho, pois o samba exalta os valores e glórias portelenses como seus campeonatos e baluartes como a cantora Clara Nunes e Paulo Benjamin de Oliveira, fundador da escola. Sem falar da figura de Natal, que é comum a história das duas escolas. Mas como a dissidente Tradição cantaria e exaltaria sua eventual rival-mãe Portela? Esse caso foi no mínimo curioso de ser observado e analisado. Novamente podemos aplicar o conceito de troca agonística de Marcel Mauss (1974). Apesar das duas escolas estarem a todo instante rivalizando, há uma troca constante nos conceitos e valores existentes nas relações entre os integrantes das duas escolas. Elas acabam por se complementar e se entender a partir deste conflito. A reedição da Tradição tornou se num momento especial no qual todos os componentes, dissidentes ou não, se colocaram em uma mesma perspectiva, reafirmando a ordem da estrutura (Turner, 1974). Mesmo que haja portelenses descontentes com a utilização do samba pela dissidente Tradição, não há como negar que as duas escolas compartilham valores, reafirmando suas semelhanças e diferenças no ato do desfile realizado com base na idéia de reedição. Já no caso da Viradouro, não há uma conexão clara com a reedição do enredo “Círio de Nazaré” que se possa indicar diretamente. Não encontrei durante a pesquisa uma justificativa concreta para a escolha deste samba para releitura da Viradouro. Mas foram observadas duas figuras representativas da escola que podem nos ajudar a compreender esta opção da agremiação: O puxador Dominguinhos do Estácio e o mestre de bateria Ciça. Os dois componentes desfilaram no desfile original e são oriundos da Unidos de São Carlos, hoje Estácio de Sá. Dominguinhos é devoto fervoroso da Virgem de Nazaré e foi um dos incentivadores da reedição. Mas o caso da Viradouro foi muito conturbado, pois o
12
Textos da Iniciação Científica. N˚6
enredo inicial seria sobre o estado do Pará, visando um possível patrocínio; e foi iniciado um processo de disputa de samba enredo. Um pouco depois do início da disputa, o concurso foi cancelado e o presidente Monassa anunciou que a escola iria reeditar o samba “Círio de Nazaré”. O calendário da escola foi bruscamente interrompido e os compositores ameaçaram tomar uma atitude de protesto, pois já tinham investido na disputa. O presidente organizou um disputa de samba exaltação e assim se amenizou a situação. Os componentes não se manifestaram aparentemente. O carnavalesco Mauro Quintaes refez a organização de seu desfile, o que gerou também desgastes com a diretoria da escola. Apesar desta confusão a respeito das identidades, as duas escolas seguiram, sem muitas alterações, a preparação de seus desfiles. A preocupação com o andamento do samba e da bateria esteve presente em todas as escolas que optaram pela reedição, mas os mestres Ciça da Viradouro e Dacopê da Tradição ficaram mais preocupados em não deturpar demais o ritmo original das escolas dos sambas utilizados. Os dois mestres desfilaram nos desfiles originais, mas mesmo assim procuraram colocar num andamento atual com criatividade. Ciça optou por reduzir o ritmo normal da bateria para se encaixar no samba. Já Dacopê procurou manter o ritmo, pois ele considera o samba “Contos de Areia” já bem adequado aos padrões atuais. Mas os dois mestres concordam em reduzir o número de ritmistas a fim de dar mais consistência ao ritmo do desfile. Os desfiles de Tradição e Viradouro também foram imbuídos de emoção, mas acabaram sofrendo com o mau tempo e a chuva. Os sambas foram os grandes responsáveis pela emoção suscitada, mas o resultado das duas escolas ficou aquém das expectativas. A Tradição se classificou na décima segunda colocação, e a Unidos do Viradouro obteve a quarta colocação. Valeu a pena ver de novo? A reação do público não deixou dúvidas. Os sambas antigos levados para a passarela do samba foram muito cantados e surtiram o efeito de comunicação desejado, porém o resultado das escolas que fizeram a releitura não alterou muito aquele dos outros anos sem reedição. Segundo a mídia impressa, seria mesmo lógico que, tecnicamente, essas escolas obtivessem boas notas em quesitos como samba enredo, evolução e harmonia, mas que continuassem suscetíveis a problemas comuns a qualquer escola.
13
Textos da Iniciação Científica. N˚6
O principal problema das reedições apontado pelos sambistas é não incentivo à novidade no que diz respeito à criação de enredos e sambas inéditos. Nessa ótica, acaba-se restringindo o carnaval a resgatar obras antológicas e não se dá chance à novidade que movimenta o carnaval e seus componentes. A competição entre as escolas fica prejudicada, ainda segundo os sambistas, pois algumas escolas podem entrar na disputa com certa vantagem. Para Fábio Pavão, componente da Portela em 2004, as escolas não podem esquecer o passado, mas precisam olhar para o futuro. Por outro lado, como já relatado anteriormente, as reedições ativaram conceitos, valores e tradições em todos os componentes. O carnaval carioca ganhou muito com esse debate e observou momentos incomparáveis. A cultura popular tem, em sentido cósmico, o potencial de renovação simbólica dos grupos que participaram deste momento especial (Bakthin, 1987). Foi o que aconteceu com a realização das reedições. O debate sobre a utilização das reedições continua dentro do carnaval carioca. Creio que este artifício foi válido do ponto de vista analítico. Espero poder continuar este estudo em uma outra oportunidade e também espero que este estudo seja útil para quem for analisar este momento tão rico dentro do mundo das escolas de samba do Rio de Janeiro. O rito do carnaval carioca ainda nos reserva muitos aspectos a serem observados por todos que gostam e se interessam por este universo integrado a nossa sociedade e nosso cotidiano. Tenho a certeza e a felicidade de poder deixar isto registrado neste trabalho. BIBLIOGRAFIA BAKTHIN, Mikhail. 1987. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. São Paulo: Ed. Hucitec. BURKE, Peter. 1989. Cultura popular na Idade Moderna. São Paulo: Companhia das Letras. CABRAL, Sérgio. 1996. As Escolas de Samba do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Lumiar Editora. CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro. 1994. Carnaval carioca: dos bastidores ao desfile. Rio de Janeiro: Funarte/ UFRJ. _________. 1999. O rito e o tempo: ensaios sobre o carnaval. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. _________. 2002. “Espetacularidade, significado e mediação: as alegorias no carnaval carioca”. In: Cadernos de Antropologia e Imagem. n. º 13 – 02. Rio de Janeiro: UERJ.
14
Textos da Iniciação Científica. N˚6
_________. 2001. “Cultura e saber do povo: uma perspectiva antropológica”. In: Patrimônio Imaterial. nº 147. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. DAMATTA. 1978. “Apresentação”. In: VAN GENNEP, A. Os ritos de passagem. Petrópolis: Vozes. _________. 1973. “O carnaval como rito de passagem”. In: Ensaios de antropologia estrutural. Petrópolis: Vozes. _________. 1979. Carnaval, malandros e heróis. Rio de Janeiro: Zahar. _________. 1987. Relativizando – Uma introdução à antropologia social. Rio de Janeiro: Rocco. GONÇALVES, José Reginaldo Santos. 1996. A Retórica da Perda – Os discursos do patrimônio cultural no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ. LIESA. Revista Ensaio Geral. 2003. ano VIII. nº 09, 10, 11 e 12. Rio de Janeiro: Íris Editora. MAUSS, Marcel. 1974. “Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas”. In: Sociologia e Antropologia. São Paulo: EPU/EDUSP. TURNER, Victor. 1974. O Processo Ritual. Petrópolis: Vozes.
15