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ÁQUILA • REVISTA INTERDISCIPLINAR UVA • RIO DE JANEIRO/2013 • ANO IV (N 8) 40-56
Os Acadêmicos do Salgueiro: Uma Academia de samba no bairro da Tijuca Os Acadêmicos do Salgueiro: A samba Academy in Tijuca • Artigo
• Guilherme José Motta Faria *
Resumo: As escolas de Samba, ao longo dos anos 1960, tornaram-se as protagonistas do período carnavalesco. Aparentemente deslocadas das questões sociais e políticas, as agremiações eram tratadas como forma de diversão ou como elementos folclóricos. Os enredos apresentados pareciam ser capítulos da História Oficial, exaltando os “heróis nacionais”. Apresentando personagens negros e mulatos, o GRES Acadêmicos do Salgueiro, escola de samba do bairro da Tijuca, zona norte do Rio de Janeiro, trouxe para a narrativa dos desfiles uma gama de novas representações, exaltando a origem africana e a discussão sobre a participação dos negros na formação cultural brasileira. Foi a partir do Salgueiro que a temática negra conquistou espaço, inserindo nos desfiles uma proposta engajada. A partir do sucesso da escola, os desfiles se tornaram grandes espetáculos, emissores de um novo olhar sobre a história do Brasil. Palavras-chave: escolas de samba; cultura afro-brasileira; engajamento político; revolução estética. Abstract: Through the decade of 1960, Samba schools became leading components of the carnival period. Apparently detached from social and political affairs, the groups were treated as leisure forms or folkloric elements. The themes that were displayed seemed like chapters from the Brazilian Official History, glorifying its “national heroes”. Presenting black and brown characters, GRES Acadêmicos do Salgueiro, a samba school from Tijuca neighborhood, in the North of Rio de Janeiro, brought a new set of representations to the narrative of the parades, exalting African origin and the debate about the role played by black people in the Guilherme José Motta Faria, Doutorando em História (UFF), Mestre em História (UERJ). Professor, Coordenador do Curso de Graduação em História na Universidade Veiga de Almeida (campus Cabo Frio).
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OS ACADÊMICOS DO SALGUEIRO: UMA ACADEMIA DE SAMBA NO BAIRRO DA TIJUCA
foundation of the Brazilian culture. Through Salgueiro, the afro-Brazilian theme conquered space, inserting a consciously political proposal in the parades. Since the school’s success, carnival parades became big spectacles, transmitting a different point of view over the history of Brazil. Keywords: samba schools; afro-Brazilian culture, political engagement; aesthetic revolution.
Introdução: Arte e Política na Academia do samba Os desfiles das Escolas de Samba foram se tornando, ao longo da segunda metade do século passado, espetáculos grandiosos, que despertavam o interesse de boa parte da população brasileira. Fatos curiosos, personagens e histórias embasavam cada enredo, possibilitando “passar em revista” os acontecimentos relevantes da vida política, social e artística como marcas identitárias da cultura brasileira. A trajetória das escolas de samba pode ser trabalhada em conexão com a história, pois seus enredos partem de narrativas históricas e as fontes de pesquisa, levantadas a partir da produção historiográfica sobre o assunto, garantiam o diálogo com a disciplina, como referencial da produção plástica das escolas. Ao mesmo tempo, as letras, a si nopse dos enredos, a materialização das idéias em alegorias e fantasias se tornam, a partir de sua publicização, discursos, elementos de cultura material que merecem ser metodologicamente analisados. A década de 1960 foi um momento riquíssimo de acontecimentos e debates, sobretudo por conta de um ambiente cultural extremamente revitalizado. Assim sendo, é um desafio intelectual
repassar as diversas abordagens historiográficas sobre o período em nosso país. Foi um momento intenso da vida política brasileira, em que, nos mais diversos segmentos culturais, os artistas eram convidados a dar suas contribuições estéticas e ideológicas na formação sociopolítica do povo brasileiro, externalizando anseios e problematizações. Mediados pela inter-relação de um Estado em transformação radical, desde os ventos finais do desenvolvimentismo do presidente Juscelino Kubistechk (1955-1960); da euforia e decepção do fenômeno Jânio Quadros (1960); das incertezas políticas do Governo de João Goulart (1960-1964); até o desfecho do Golpe militar (1964-1985), com seus generais-presidente, os anos 60 encarnaram, de maneira profunda, a busca por uma nova forma de fazer política, mantendo com o campo da cultura um diálogo fecundo. Dessa forma, durante o período, ocorreu extensa produção de bens culturais, que, com o imbricamento das questões políticas gerou vários desdobramentos nas nossas práticas culturais, ora de contestação, ora de enaltecimento de ideologias que se contrapunham no cotidiano. Era preciso ter opinião. As artes, de maneira geral, abriram caminhos para essas manifestações e para a
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formação constante de quadros políticos. A trajetória dos GRES Acadêmicos do Salgueiro está completamente ligada ao fenômeno das transformações estéticas e ideológicas no campo cultural. Segundo memorialistas e pesquisado res1, a escola, fazendo suas escolhas, se mostrou uma escola de samba “engajada”. Revolucionou os conceitos carnavalescos e, a partir de sua abordagem criativa nos enredos apresentados, abriu um novo campo de discussões acerca da História brasileira, estimulando uma postura crítica, principalmente em relação a sua “oficialização”. Essas práticas culturais, discutindo a questão racial, a valorização da ascendência africana e as reivindicações feministas — ressaltando mulheres mar cantes e, até aquele, momento pouco conhecidas na nossa cultura — foram registradas pelos estudiosos do carnaval como “ações pioneiras”. Por meio de sambas, fantasias e alegorias, apresentados em desfiles marcantes, amplamente registrados pela imprensa carioca, ajudaram a construir essa versão poderosa sobre a escola e o seu legado. Embalados no lema “Nem melhor nem pior, apenas uma escola diferen te2”, a escola do bairro da Tijuca trilhou um caminho diferencial, buscando pro blematizar as discussões de gênero, classe e cor, permitindo que outras vozes, até então abafadas no processo de repetição de uma História Oficial positivista, pudessem ser visibilizados. Sua conduta abriu espaço para que novos temas fossem apresentados, constituindo marcas incorporadas ao campo cultural e ao cotidiano das demais escolas de samba.
No contexto cultural dos anos 60, o ambiente do carnaval carioca refletia também a circularidade cultural3, em que se buscava representar, na avenida, os novos símbolos de luta pela igualdade de direitos, ações afirmativas e reivindicações sociais. O Salgueiro, sujeito de seu tempo, com sua proposta temática, ajudou a iluminar as questões sociais de um grupo que se tornava heterogêneo, mas mantinha sua base comunitária formada em maioria por homens e mulheres, negros e mulatos. Questionando, a partir dos exemplos de Chica da Silva, Aleijadinho, Chico Rei, Zumbi dos Palmares, entre outros homenageados, refletia também a própria luta por parte dos sambistas pela garantia de sua ascensão social e sua ação, demarcando seu espaço, como cidadãos na sociedade brasileira. De fato, as narrativas dos memorialistas e pesquisadores, assim como as entrevistas dos membros da Velha Guarda e carnavalescos da escola4 ajudaram a “cristalizar verdades”, eclipsando vários personagens e outras agremiações que também dialogavam com essa estética. Não creio que a questão do pioneirismo, tantas vezes apontado pelos pesquisadores, seja exclusividade do Salgueiro. O processo histórico nos permite perceber que os fenômenos não nascem isolados e sim como momentos em que as ideias e práticas estão “circulando”. Com efeito, o Salgueiro pode não ter sido tão “pioneiro”5 como nos faz crer a bibliografia, mas, sem sombra de dúvidas, o grupo de artistas (eruditos e populares)6 que a agremiação reuniu em seu entorno, permitiu, na década de 1960,
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que se consolidassem as representações da cultura afro-brasileira, legitimando a manifestação escola de samba como um potente emissor, originado a partir dessa herança cultural. 1 - Engajados X Alienados – A função da cultura nos anos 1960 A virada da década de 1950/60 foi um momento de extrema relevância para a cultura brasileira. As manifestações artísticas se revelaram eixos potenciais na difusão de ideias e valores, que circulavam pelo mundo, refletindo em e sendo apropriados pelos segmentos culturais brasileiros. O período foi vi vido em um ritmo intenso e de grande efervescência, tanto estética, quanto ideológica. Nas diversas áreas, artistas e intelectuais utilizavam suas obras como veículos para disseminação de ideais de justiça, liberdade, cidadania, transformando seus conteúdos em discursos políticos e sociais. Reverberados nos meios de comunicação de massa, em representações que amplificavam o vigor dessas discussões, trouxeram em seu bojo o olhar e a voz das ruas, das passeatas e das conversas dos bares. Com a certeza de que essas manifestações artísticas e culturais desempenhavam um papel fundamental na formação dos indivíduos críticos da sociedade, foram sendo levantadas algumas questões teóricas e práticas, consideradas relevantes nesse intenso movimento: Como realizar obras de arte engajadas politicamente? Como discutir as grandes questões nacionais e levá-las ao povo? Como fazer com que o teatro, a música, o cinema, as artes plásticas,
a literatura se apropriassem dos anseios populares e refletissem, em obras de arte, a síntese desse desejo coletivo? Como transformar a realidade social e “tocar” corações e mentes de um povo alienado e terceiro mundista? A certeza que se parecia ter é que os artistas tinham uma missão, uma função social e parecia ser inadmissível não utilizar, como ferramentas, as diversas linguagens artísticas com o propósito de instruir politicamente o Povo. Essa tendência foi sintetizada na proposta da criação e produção dos CPCs da UNE7 que funcionaram como propulsores de obras de arte em que a mensagem política era mais importante do que a estética. O inverso seria considerado pecado capital, condenando o artista sem preocupações políticas a ser considerado um “alienado”. Se nos primeiros anos da década de 60, amparada por um forte apoio do Estado, prevaleceu essa idealização da função da arte, à medida que os anos iam se desenrolando os meios de comunicação de massas8 começavam a fazer a diferença. Dessa forma, outros discursos foram sendo absorvidos, contrapondo, de um lado, os tradicionalistas, “engajados” e, de outro lado, os modernos, conceituados de “alienados”. A grande tensão estava entre a obsessão do novo e a veneração às raízes da cultura brasileira. As disputas por esses legados invadiram todas as manifestações artísticas no período. Com isso, a grande discussão no campo da cultura foi sendo articulada nas funções da obra de arte e de sua utilização como instrumento político, como elemento crítico e reflexivo ou
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como produto dessa sociedade de consumo. A questão estética parecia superada pelos dois grupos. Era necessário, na visão engajada, que o artista cumprisse a sua função social se comunicando com o público através dos sentimentos e da construção de uma consciência. Por outro lado, também, pelo viés do sentimento e do divertimento, esperava-se atrair esse público para consumir essa arte, comprando os discos, lendo os li vros, assistindo aos filmes, novelas e programas de TV. 2 - As escolas de samba do Rio de Janeiro: entre o engajamento e alienação O carnaval carioca já desfrutava, nos anos 60, de prestígio e posição de destaque nos festejos de Momo, em âmbito nacional. Mesmo com a transferência da capital da República para Brasília, a primazia da Festa no Rio de Janeiro não foi ofuscada. As escolas de Samba, por conta de uma cobertura cada vez maior nos meios de comunicação9 e por uma clara aproximação com as classes médias da cidade, haviam se tornado, as protagonistas do período carnavalesco. Aparentemente deslocadas das questões sociais e políticas, durante muito tempo, as escolas de samba foram tratadas como diversão para as massas ou como manifestação da cultura popular e folclórica, conforme alguns intelectuais10. O desfile das escolas de samba deverá marcar, neste carnaval do IV Centenário, o ponto culminante da festa no que ela tem de espetáculo,
mas fixará, também, o instante histórico do início da sua rápida desagregação como fenômeno folclórico (TINHORÃO, 1965 apud COSTA, 1984).
De fato, nas propostas de enredo e nos sambas, até a década de 60, as agremiações pareciam ser um espaço para repetição e manutenção da História Oficial. A escolha desses personagens e fatos, com uma narrativa consagrada pela historiografia, eternizada nos livros didáticos, tornavam as agremiações respeitadas pelo Estado e por suas comunidades de origem, pois o que elas apresentavam “estava escrito nos livros”, sendo, portanto, a pura “verdade”. Entretanto, as inquietações começavam a aflorar. Em 1953, a união de escolas de samba do Morro do Salgueiro11 fez surgir a GRES Acadêmicos do Salgueiro, escola que trouxe mudanças radicais nos desfiles, objeto central deste trabalho. Diferente do que a maior parte da historiografia sobre o tema propõe, a obrigatoriedade dos temas nacionais não foi uma imposição do DIP12, durante o Estado Novo, e sim uma prerrogativa das próprias agremiações, nos primeiros anos de desfiles nos anos 30. Esse fato ocorreu por conta do desejo de buscar uma diferenciação em relação aos Ranchos (AUGRAS, 1998), estrelas maiores da Festa Momesca no início do século XX, que utilizavam narrativas operísticas e da História Mundial como motivos de seus préstitos. Observando a relação de enredos das principais escolas de samba da cidade do Rio de Janeiro nos anos 1950, podemos ter um indício do que era apresentado nos desfiles. O tom ufanista e laudatório
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encontrou nesse período seu momento de maior vigor. A Estação Primeira de Mangueira, por exemplo, levou para a avenida: Gonçalves Dias (52 e 58); Unidade Nacional e o Progresso da Nação (51,53 e 57); Getúlio Vargas (56); cantou o Plano Salte13(50); e o Rio Antigo (54). A GRES Portela apresentou Riquezas do Brasil (50 e 56); A Volta do Filho Pródigo (51) homenageando Getúlio Vargas; Brasil de Ontem, As seis datas magnas e Vultos e efemérides do Brasil (52, 53 e 58); os Legados de D.João VI (57); os 400 anos de São Paulo (54). O Império Serrano apresentou: Antônio Castro Alves (48); Exaltação à Tiradentes (49); Batalha Naval do Riachuelo (50); 61 Anos de República (51); Homenagem à Medicina, O Último Baile da Côrte Imperial e O Guarani (52, 53 e 54); Exaltação à Duque de Caxias (55); uma homenagem a Raposo Tavares em O Caçador de Esmeraldas (56); Exaltação à Dom João VI (57); e Exaltação à Bárbara Heliodora (58). A escola de samba Beija-Flor de Nilópolis, contemporânea de fundação do Salgueiro, não era uma das escolas de ponta naquele momento. Entretanto, também seguia o modelo clássico dos enredos: O Caçador de Esmeraldas (54); Páginas de Ouro da Nossa História (55); O Gaúcho(56); Riquezas Áureas do Brasil (57); Tomada de Monte Castelo(58). Desde a sua fundação14, o Salgueiro buscou ir um pouco além nas temáticas escolhidas. Ainda se apresentavam muito presas ao contexto geral das demais escolas, mas já era possível perceber a tentativa de uma novidade. Em Romaria à Bahia (54), a religiosidade, timidamente, se apresentava. Epopeia
do Samba (55) homenageou Pedro Ernesto Batista15. Aproveitaram o samba para criar uma narrativa de união e protagonismo entre as comunidades formadoras do espetáculo: A epopéia do samba chegou/Foi em nossa antiga Praça Onze que os sambistas de fibra lutaram pra vencer/uniram Salgueiro, Mangueira, Portela, Favela, Estácio de Sá/ resol veram resistir até a vitória chegar 16. Brasil Fonte das Artes (56) ficou híbrida, entre a exaltação e novos dados para discussão: És Brasil fonte das artes/ cheio de riquezas mil/ e os nossos selvagens já se faziam notar/ depois veio a civilização/ as academias dando nova formação à filosofia rudimentar 17 . O Salgueiro, segundo o pesquisador Haroldo Costa (1984: 27), foi a primeira escola a fazer enredos que colocassem os negros em destaque e não na figuração. Navio Negreiro(57) foi esse primeiro marco de um desfile “engajado”. Outro dado importante é que, até então, as fantasias eram confeccionadas por membros da própria comunidade e, nesse ano, a parte plástica de algumas agremiações passou a ser executada por agentes culturais de outras manifestações18. Essa aproximação abriu espaço para que artistas com formação acadêmica passassem a participar da produção dos desfiles e, na década seguinte, esse processo se consolidou, na figura do “carnavalesco” 19. A ansiedade por uma vitória foi o motivo da tentativa dos dirigentes da escola em se encaixarem na tendência reinante. O enredo Exaltação aos Fuzi leiros Navais (58), de fato, era inusitado como tema, mas bastante tradicional, retratando a corporação militar. A es-
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tratégia da escola consistia na incorporação de táticas consagradas pelas demais agremiações, na esperança de conquistar um título. No ano seguinte, com o enredo Viagens pitorescas do Brasil 20, uma homenagem ao pintor francês Jean Baptiste Debret21, a escola apresentou em seu desfile, quadros e aquarelas do pintor, de forma teatralizada. A vida cotidiana dos escravos pelas ruas do Rio de Janeiro era o tema principal de suas telas e o desfile, segundo memorialistas e acadêmicos22, se tornou “seminal” das novidades temáticas e estéticas que as escolas de samba passaram a protagonizar. Enquanto as demais escolas desfilavam seus temas rotineiros23, a escolha do Salgueiro pre nunciava um caráter diferente, pois, do acervo de Debret, as obras que se tornaram mais relevantes foram as aquarelas sobre a vida dos escravos. Dessa feita, a homenagem da agremiação seria ao segmento social de negros anônimos do século XIX24. As inovações, vistas com desconfiança pelas rivais, com o tempo passaram a ser apropriadas pela cultura das escolas de samba. Neste desfile foi apontado pelo memorialista Sergio Cabral outro “pioneirismo”. A escola aboliu o uso das cordas laterais que distanciavam o público de suas apresentações. Com essa ação, o Salgueiro ampliava o contato com os espectadores, aproximando o público de seu enredo. A primeira quizumba do Nelson foi comunicar ao Miécio Tati, Diretor de Certames, que o Salgueiro não desfilaria dentro da corda, como era determinado pelo regulamen-
to, mesmo que isto lhe valesse a desclassificação. Até então, as escolas passavam confinadas dentro do espaço limitado por uma corda que ia se mantendo esticada graças a abnegados voluntários que terminavam o desfile com as mãos e a cintura em carne-viva. Nelson era de opinião que estava na hora de acabar com aquela coisa primitiva, já que o policiamento ostensivo se encarregava de manter a pista livre para as evoluções. Quando o Salgueiro surgiu na Avenida Rio Branco, sem corda, sem carros alegóricos, com os seus componentes cantando, sambando e trazendo na cabeça e nas mãos adereços que ondulavam no ritmo, foi uma surpresa. E o samba era gritado a plenos pulmões pela ala dos compositores (CABRAL, 1996, p.88)
Na bibliografia sobre as escolas de samba25, ganhou grande destaque um encontro acontecido nesse ano, que se tornou fundamental para os novos rumos do espetáculo. Fazendo parte do júri, Fernando Pamplona26 ficou impressionado com o desfile do Salgueiro e, convidado por Nelson de Andrade, aceitou ser o “carnavalesco”, criando o enredo no ano seguinte. Com a parceria estabelecida, Pamplona, na visão dos memorialistas, se tornou a principal figura de um processo de transformação estética e ideológica dos desfiles. Levou para o Salgueiro um grupo de profissionais, companheiros de profissão da Escola Nacional de Belas Artes e do setor de cenografia do Teatro Municipal. Esse elenco de artistas plásticos, com formação erudita e desejo de tra-
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balhar na órbita da cultura popular contribuiu para a redefinição do conceito de escola de samba27. A sequência de enredos desenvolvidos por esse grupo, com a temática negra e a revitalização da nossa história, por meio de encenações inovadoras, trouxe à tona personagens marginalizados ou totalmente desconhecidos pela ótica da história oficial, dos livros didáticos. Dessa forma, o universo das escolas de samba passava também a ser palco de propostas que revelavam um engajamento político e cultural. Refletia sobre seu passado e ressaltava, em seus enredos, personagens populares, homens e mulheres, negros, mulatos, pobres. O Salgueiro, com sua postura, inseria nos desfiles uma postura militante. 3 - Os Acadêmicos do Salgueiro: uma escola de samba “engajada” De fato, essa busca pela diferença foi uma das características fundamentais da escola de samba do bairro da Tijuca, sobretudo, quando ela se tornou a plataforma de lançamento de histórias pouco conhecidas pelo público em geral. Ressaltando personagens em sua maioria negros e mulatos, acrescentou à linguagem visual/discursiva dos desfiles toda uma gama de representações que exaltavam a origem africana desses personagens, assim como a ancestralidade que a própria festa carnavalesca representava. Dessa forma, o Salgueiro trouxe para o centro das discussões as temáticas etnográficas, raciais e o debate sobre a participação dos negros na formação sócio-cultural do Brasil. A sequência de
desfiles entre 1959 e 1971 revelou esse fulgor de criatividade, de descobertas e de militância. Retrataram a cultura negra, com suas peculiaridades, suas mazelas e suas alegrias amplificadas nos sambas e nos desfiles realizados pela escola. Com efeito, as apresentações da agremiação deram grande visibilidade às questões de raça e gênero, discutidas em todo mundo e, segundo a bi bliografia especializada, foi a partir do Salgueiro que essas temáticas entraram no rol dos enredos possíveis, conforme comenta Walnice Nogueira Galvão: A idéia de Fernando Pamplona para o primeiro desfile que dirigiu, em 1960, foi a seu modo uma novidade: ele sugeriu o enredo “Quilombo dos Palmares”. Jamais anteriormente uma escola tinha homenageado um herói negro, dando preferência a personagens brancas da história oficial. Daí em diante, as escolas passariam a buscar em figuras africanas ou afrobrasileiras a inspiração para seus enredos, o que até então nunca ocorrera. [...] O fenômeno data dessa mudança formal do desfile – começando com o enredo Debret, em 1959, e continuando com o de Chica da Silva, em 1963, ambos do Salgueiro” (GALVÃO, 2009, p.47).
Fernando Pamplona foi, para a grande maioria dos pesquisadores, a figura que propiciou o encontro entre a cultura erudita e a popular no ambiente das escolas de samba. Propondo temas “engajados”, o artista foi realizando uma verdadeira “catequese” junto aos moradores do morro, para que aceitassem vestir fantasias de tribos africanas em
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substituição das tradicionais vestimentas de nobres com suas perucas, sapatos e casacas 28. Mas o pioneirismo tem o seu preço: Fernando Pamplona e sua equipe encontraram algumas dificuldades para convencer os integrantes do Salgueiro de que o enredo em ho menagem a Zumbi dos Palmares, para ser bem-sucedido, teria de apresentar um grande número de componentes com a pobre fantasia de escravos. Era uma idéia que contra-riava uma velha tradição, não só das escolas de samba como das manifestações folclóricas de origem negra, pois era através delas que os negros realizavam, pelo menos na indumentária, o sonho de se apresentar como reis, rainhas, duques etc. Enfim, o velho sonho que se acabava na quartafeira, como tantas vezes foi escrito. Afinal, o povo das escolas de samba, desempregado ou mal pago em seus empregos, já era escravo o ano inteiro. Por que ser escravo também no carnaval? [...] O fato é que Fernando Pamplona e sua equipe convenceram os sambistas de que todo sacrifício seria uma contribuição pessoal para alcançar o que todos sonhavam: a vitória da Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro (CABRAL, 2004, p.180)
O início dessa trajetória foi turbulento, como narrou o memorialista Sergio Cabral, mas os resultados e, sobretudo, a repercussão que os desfiles do Salgueiro foram atingindo, permitiram que a comunidade do morro e os simpatizantes da classe média carioca
se achegassem cada vez mais à agremiação. O primeiro enredo proposto por Pamplona foi paradigmático em relação ao trabalho que ele liderou na escola, escolhendo exaltar a figura de Zumbi dos Palmares com o enredo Quilombo dos Palmares (COSTA, 1984, p.82). O trabalho foi realizado em parceria com Arlindo Rodrigues, Nilton de Sá e com o casal Nery, que havia permanecido na escola. O resultado final pendia para o primeiro título do Salgueiro, mas uma grande confusão foi formada, comandada pelo presidente da Portela, Natal, e as cinco primeiras colocadas29 foram consideradas campeãs. Com Vida e obra de Aleijadinho(61), Xica da Silva(63) e Chico Rei(64) o Salgueiro, segundo a narrativa dos memorialistas, “revolucionou” os desfiles das escolas de samba. Segundo os pesquisadores, trazendo para o centro do evento a cultura brasileira em estado bruto, com personagens quase desconhecidos do grande público, que encarnavam de forma profunda a brasilidade de negros e mulatos. Aliada às questões temáticas, a utilização de outros materiais também trouxe um vigor renovado ao espetáculo (FERREIRA, 1999). Interessante notar que, mesmo não estando à frente da escola nos desfiles de 1962 e 1963, parte dos memorialistas e pesquisadores30 da história das escolas de samba apontam Fernando Pamplona como idealizador dos enredos. A sua postura militante e engajada, com histórico no TEN31, amigo do folclorista Edison Carneiro, da bailarina Mercedes Batista e dos fundadores da Cia de Dança Brasiliana, entre outros artistas com engajamento político/cultural, destacou
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Pamplona como o mentor do processo criativo da escola, mesmo que nesse biênio sua participação tenha sido mais afetiva do que efetiva. Contando em seus enredos histórias de vida em que a superação era uma das maiores virtudes, a ação afirmativa do Salgueiro deu início a um processo de oxigenação das ideias no carnaval , por meio da circularidade cultural, pois, a partir dos seus desfiles, fez circular, por diversas camadas sociais personagens, suas idéias e práticas culturais. De fato, pesquisando os periódicos da época32 percebi que não só o público que assistia aos desfiles e as comunidades parti cipantes se apropriaram destes temas. A partir do interesse dos meios de comunicação de massas (jornais, as emissoras de rádio, as revistas de grande circulação e as iniciantes emissoras de tv), novas classes sociais, assim como as demais manifestações artísticas33, passaram a se interessar pelo espetáculo das escolas e pelos personagens retratados. Outro fato relevante é que as próprias escolas de samba, a partir da abertura temática do Salgueiro, passaram a tratar também de temas relacionados às questões das condições sociais dos negros, desde a ancestralidade africana e do tempo da escravidão até o advento do samba com a proliferação dos subúrbios e favelas na cidade do Rio de Janeiro. História do Carnaval Carioca(65), uma homenagem a pesquisadora Eneida de Moraes34, abriu outra série de abordagens que colocavam a cidade e o carnaval carioca como personagens principais da trama escolhida. O enfoque do Salgueiro reforçou o caráter das escolas com suas raízes africanas,
tanto na questão rítmica, quanto no gingado corporal, que o samba-enredo ia estabelecendo. Os amores célebres do Brasil(66) e Histórias da Liberdade no Brasil(67), trouxeram à cena abordagens críticas da história do Brasil. O primeiro enredo estruturou sua narrativa no lado exótico dos romances, no que eles tinham de transgressão35. O segundo enredo, mesmo de forma indireta, apresentava uma mensagem contra a opressão que se vivia naquele momento. Segundo Fernando Pamplona (MOURA, 1985, p.15), várias vezes os ensaios foram interrompidos com corte da energia elétrica. Também havia a presença de policiais pertencentes ao DOPS36, que acompanhavam os ensaios para apontar qualquer tipo de conotação política na preparação do carnaval da escola. Era, de fato, uma demonstração de coragem por parte da agremiação, escolher o tema liberdade num momento crítico da nossa história política, em que o aparato militar montou um rígido esquema de repressão aos opositores ao regime, identificados, ou melhor, genericamente chamados de “comunistas”, procurando fechar todos os meios de comunicação para não informarem sobre as arbitrariedades cometidas pelos militares no poder. Com Dona Beja – a Feiticeira de Araxá(68), a agremiação, segundo Haroldo Costa, novamente marcou sua trajetória de originalidade destacando uma personagem também desconhecida do grande público37. Se Ana Jacinta não se inseria no rol dos personagens negros, uma marca já consolidada naquele momento pela escola, a sua menção pode
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ser incluída no rol das personalidades femininas exaltadas pela agremiação. A citação do memorialista Haroldo Costa demarca essa construção narrativa su blinhando o pioneirismo da escola e sua opção pelos personagens pouco conhecidos da história brasileira. Seguindo a linha de enredos sobre personagens da história popular do Brasil, aquelas que não cons tam dos livros didáticos e não são reconhecidas pelo “país de cima” (...) o Salgueiro decidiu apresentar Dona Beja, a feiticeira de Araxá, baseado no livro do mesmo título de Thomas Leonardos, na ocasião presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, desenvolvido por Fernando Pamplona, com figurinos de Arlindo Rodrigues e Marie Louise Nery (COSTA, 1984, p.174).
Com efeito, tanto em Xica da Silva, quanto na homenagem a Eneida ou em Amores célebres dando bastante ênfase e espaço para as figuras femininas dos casais famosos, estava se tornando outra tradição do Salgueiro dar destaque às mulheres que encarnavam em si o ideal de liberdade e de autonomia. Podia-se dizer que essas escolhas temáticas eram, de certa forma, uma adesão da agremiação ao movimento feminista que tomava corpo, com grande intensidade, em todo o mundo. O “pioneirismo” temático já havia sido comentado por Haroldo Costa: [...] O que não se discute, porém, é que o Salgueiro levou fé, ousando apresentar pela primeira vez uma mulher como enredo de escola
de samba. A partir daí, Chica da Silva foi revelada ao Brasil, transformando-se em figura próxima e cultuada, heroína da história escrita à margem (id, p.125)
No ano seguinte, o Salgueiro, aparentemente, faria uma “involução”, pois o enredo escolhido Bahia de Todos os Deuses permitiria à escola fazer uma homenagem a um dos estados brasileiros mais representados nos desfiles da nossa festa carnavalesca. Entretanto, por conta dos maus resultados obtidos pelas agremiações que escolhiam o tema, gerou-se a crença de que essa opção daria “azar”. Mesmo sendo forte a superstição, o Salgueiro conseguiu o contrário, pois, a escola se tornou campeã. Esse feito tornou-se possível por conta da abordagem bastante original, transcendendo as representações da cultura e do povo da Bahia e investindo, também, nas representações das divindades presentes no candomblé. Havia certo pudor ou temor de ir contra a estética estabelecida na festa, que, mesmo sendo pagã, revelava traços de uma cultura católica. Essas imagens do culto religioso sincrético, realizado na Bahia e apropriado pelos grupos, a princípio negros, que de lá partiram, eram vistas pela primeira vez no desfile das escolas de samba. Foi um ato de coragem mesclar as igrejas católicas e os orixás do candomblé durante a apresentação. O título conquistado ajudou a quebrar a idéia pré-concebida da mandinga ou azar. Com efeito, nos anos seguintes, outras agremiações retrataram a Bahia, com seu misticismo cultural, em seus desfiles.
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A cidade do Rio de Janeiro foi tema do enredo de 1970, em que também o carnaval em seus primórdios ganhava destaque. Com Praça Onze, Carioca da Gema, o Salgueiro fazia uma dupla homenagem, tanto para a cidade quanto para as escolas de samba. O reduto da Tia Ciata era cantado em verso e prosa, oferecendo ao público e aos sambistas em geral uma versão do nascedouro do samba e das agremiações. O Salgueiro, desta forma, criava uma genealogia para as escolas e para o próprio ritmo do samba estimulado pela turma do Estácio de Sá, liderados por Ismael Silva, Bide e outros sambistas que criaram a síncope característica das escolas de samba. O enredo da escola no carnaval de 1971, Festa para um Rei Negro encerrou esse período de “engajamento e militância” da agremiação. É interessante notar que esse desfile fechou um ciclo de propostas temáticas que se tornaram recorrentes na história das escolas de samba. Partindo de uma narrativa que parecia gravitar entre o real e o ficcional, a história do rei que recebia a visita de uma corte especial, vinda diretamente da África, abriu caminho para alguns outros enredos que transitavam por essa esfera discursiva. Dessa forma, a escola coroou seus personagens e a sua comunidade por aceitar o desafio e comprar a briga estética e ideológica proposta pelos artistas que estavam criando os desfiles da agre-
miação. Nessa apresentação, os trajes africanos que foram utilizados eram, em sua maioria, trajes de uma nobreza africana. A auto-estima e a ação afirmativa geravam o desejo da comunidade do morro do Salgueiro de se exibir com as fantasias afro, numa linhagem da nobreza do continente africano. Essa nova postura foi conseguida ao longo de dez anos, com muitas conversas, alguns títulos e desfiles sempre marcantes da agremiação na década de 1960. Nessa altura, já participavam do barracão da escola, junto a Fernando Pamplona e Arlindo Rodrigues, os artistas Maria Augusta, Joãozinho Trinta, Rosa Maga lhães, Laíla, Max Lopes e outros que seriam os principais carnavalescos nos anos seguintes. O carnaval carioca e, especificamente, as escolas de samba, a partir da visibilidade alcançada pelas agremia ções e em especial o GRES Acadêmicos do Salgueiro, demarcaram um novo patamar para as agremiações dentro do panorama cultural brasileiro. A contribuição da escola transcendeu a questão plástica e estética, abrindo novos caminhos para a discussão de temas até então “marginalizados” pela história. Situada no bairro da Tijuca, repleta de Universidades, academias do saber, o Salgueiro fez juz ao seu nome e, de fato, como uma academia, colaborou de maneira efetiva na circulação de novos saberes, a partir de seus desfiles, seus sambas e seus enredos.
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NOTAS (1) Essa narrativa, elegendo o Salgueiro como motor da renovação estética e ideológica no carnaval carioca pode ser encontrada em: ARAÚJO, Hiram. Carnaval – Seis mil anos de História. 2. ed. Rio: Gryphus, 2003; AUGRAS, Monique. O Brasil do Samba-Enredo. – 1.ed. Rio de Janeiro:FGV, 1998; CABRAL, Sérgio. As escolas de samba do Rio de Janeiro. 2.ed. Rio de Janeiro: Lumiar, 2004; COSTA, Haroldo. Salgueiro: Academia do Samba. Rio de Janeiro: Record, 1984; COSTA, Haroldo. Salgueiro 50 anos de glórias. Rio de Janeiro: Record, 2003; FARIAS, Edson. O desfile e a Cidade. O carnaval espetáculo carioca. 1.ed. Rio de Janeiro: e-papers, 2005; MOURA, Roberto. Carnaval da Redentora a Praça do Apocalipse. Rio: Jorge Zahar, 1985; SANTOS, Nilton. A Arte do efêmero : carnavalescos e mediação cultural no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Apicuri, 2009; entre outros.
cias. Alguns autores que trabalharam com esse conceito: GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes. O cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo, Cia das Letras,1987; BURKE, Peter. Variedades da História Cultural. Rio: Civilização Brasileira, 2002; CHARTIER, Roger. A história cultural; entre práticas e representações. 2. Ed. Lisboa: Difel, 1990.
(2) A criação do lema da escola é atribuído a Nelson de Andrade, presidente e principal mentor da agremia ção no período de 1957-1961). Essa afirmativa encontramos em CABRAL, Sérgio. As escolas de samba do Rio de Janeiro. 2.ed. Rio de Janeiro: Lumiar, 2004; COSTA, Haroldo. Salgueiro: Academia do Samba. Rio de Janeiro: Record, 1984;
(5) A questão central da minha pesquisa é apresentar os vários grupos culturais que atuavam naquele momento histórico (1950-60) que estavam discutindo a temática cultural afro-brasi leira e as quuestões relativas a raça e identidade. Alguns enredos tido como pioneiros, como Aleijadinho (61), Chica da Silva (59)e Dona Beija (66) foram apresentados anteriormente ou contemporâneos aos desfiles do Salgueiro, por agremiações do Rio e de São Paulo. O dado interessante é que esses outros desfiles foram “esquecidos” pela biblio grafia sobre carnaval.
(3) O conceito de circularidade cultural pressupõe que as ideias, práticas e valores circulam entre as camadas sociais diversas, sendo representadas a partir de suas vivências e experiên-
(4) Na minha pesquisa sobre o Salgueiro, nos anos 1960, parte da Tese de Doutorado em História (UFF) entrevistei Djalma Sabiá, Fernando Pamplona, Maria Augusta Rodrigues, Dona Caboclinha, Haydè Blandina, Jorge Bombeiro, Renato Lage, entre outros. Componentes históricos da escola, corroboraram com a narrativa, centrada no pioneirismo salgueirense e sua importância no cenário carnavalesco da cidade do Rio de Janeiro.
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(6) Artistas plásticos, compositores, passistas, bailarinos, coreógrafos, ritmistas, entre outros. (7) Centros Populares de Cultura que a União Nacional dos Estudantes organizavam. Esses Centros tinham como função levar a produção artística até as áreas da s periferias e pelo interior do país. (8) As emissoras de TV, as estações de Rádio, a Indústria fonográfica, as revistas e jornais. (9) No início da década, a Tv Continental exibiu flashs do desfile principal das escolas de samba. No final dos anos 1970, a Rede Globo passaria a transmitir na íntegra o desfile. Durante a década de 80, até sua extinção, a Rede Manchete rivalizou com a Globo pela melhor cobertura do evento. (10) O etnólogo Édison Carneiro, por exemplo, ao final do 1º Congresso Nacional do Samba, no Rio, em 1962, foi incumbido de redigir a Carta do Samba, um documento preservacionista dos fundamentos do gênero e que foi publicado pelo antigo MEC através da Campanha de Defesa do Folclore. (11) Localizado na Tijuca, importante bairro de classe média da zona norte da cidade do Rio de Janeiro. No bairro, outras escolas também foram criadas e participam atualmente do carnaval carioca como a Unidos da Tijuca (Morro do Borel) e Império da Tijuca (Morro da Formiga). (12) Departamento de Imprensa e Propaganda.
(13) Programa de governo do General Eurico Gaspar Dutra, que consistia no investimento prioritário nas áreas de Saúde, Alimentação, Transporte e Energia.). (14) Fundada em 1953, a partir de uma fusão entre duas escolas de pequeno porte do Morro do Salgueiro, a GRES Azul e Branco e a GRES Depois eu Digo. (15) Pedro Ernesto Baptista foi, prefeito da cidade do Rio de Janeiro, então Distrito Federal, por dois períodos, entre 30/9/1931 a 2/10/1934 e 7/4/1935 a 4/4/1936. Foi consi derado um dos maiores benfeitores das Escolas de samba, intervindo para a oficialização do desfile das agremia ções. Alcançou grande popularidade e respeito dos sambistas. Foi preso, sob acusação de ser comunista. (16) Samba de Bala, Duduca e José Ernesto Aguiar in. COSTA, Haroldo. Salgueiro 50 anos de Glória. São Paulo: Ed. Record, 2003, p.23. (17) Samba enredo de 1955, dos compositores Djalma Sabiá, Éden Silva (Caxiné) e Nilo Moreira in COSTA, Haroldo. Salgueiro 50 anos de Glória. São Paulo: Ed. Record, 2003, p.27. (18) O Salgueiro, a Portela e a Mangueira receberam colaborações de artistas ligados ao Teatro de Revista. (19) Os ranchos já haviam experi mentado esta aproximação, mas com as escolas de samba, esse processo se tornou possível na década de 1960, com uma tendência recorrente da subs-
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tituição da idealização dos enredos pelos artistas com formação erudita, em detrimento dos artistas populares, oriundos da própria comunidade. (20) O trabalho foi liderado em sua produção pelo casal de artistas plásticos Dirceu Nery (pernambucano) e Marie Louise Nery (suíça), quem se conheceram na Europa e viviam no Brasil desde meados dos anos 1950. (21) Pintor francês, membro da Missão Artística Francesa, que desembarcou no Brasil nos últimos anos da estadia de D. João VI. (22) Essa visão narrativa é recorrente nos pesquisadores Haroldo Costa, Sergio Cabral, Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti, Nilton Santos, Monique Augras, em obras já citadas anteriormente. Outros pesquisadores seguem a mesma linha narrativa: GALVÃO, Walnice Nogueira. Ao som do samba: Uma leitura do Carnaval carioca. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2009, FARIAS, Edson. O desfile e a Cidade. O carnaval espetáculo carioca. 1.ed. Rio de Janeiro: e-papers, 2005, FERREIRA, Felipe. O marquês e o jegue: estudo da fantasia para escolas de samba. 1.ed. Rio: Altos da Glória, 1999, entre outros. (23) Mangueira: Brasil através dos Tempos; Portela: Brasil Pantheon de Glórias; Império Serrano: O Brasil Holandês; Vila Isabel: Saldanha da Gama; Mocidade Independente de Padre Miguel: Os três Vultos que ficaram na História; Das escolas pesquisadas, somente a Beija Flor e a União da Ilha escolheram temas contemporâneos, também ufanistas: Copa do Mundo e Paisagens da Ilha.
(24) Com esse desfile a escola obteve o vice-campeonato, posição inédita na sua então, breve história. (25) Esse destaque é recorrente nos memorialistas Sergio Cabral, Haroldo Costa e nos demais pesquisadores já citados. (26) Professor da Escola Nacional de Belas Artes e cenógrafo do Teatro Municipal do Rio de Janeiro. (27) Esse grupo reunia, sob a liderança de Fernando Pamplona e Arlindo Rodrigues os jovens Maria Augusta, Joãosinho Trinta, Rosa Magalhães, Lícia Lacerda, dentre outros. (28) Essa versão se tornou um cânone na narrativa de Sergio Cabral. Em Haroldo Costa também aparece, um pouco relativizada. Muitos pesquisadores seguiram a mesma narrativa. (29) Foram declaradas campeãs a GRES Portela, GRES Salgueiro, GRES Estação Primeira de Mangueira, GRES Império Serrano e GRES Unidos da Capela. (30) Encontrei essa posição na entrevista realizada com Hiram Araújo e nos textos dos pesquisadores e acadêmicos já citados em nota anterior. (31) Teatro Experimental do Negro, fundado pelo militante Abdias do Nascimento, na década de 1940. (32) A pesquisa realizada teve como base o acervo do Jornal do Brasil e parte do acervo do Jornal Última Hora, no período de 1959-1971. (33) Peças teatrais, filmes, artes plásticas, moda, música popular, literatura se apropriaram dos temas abordados pelo
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Salgueiro, como Zumbi, Xica da Silva, Dona Beja, Chico Rei, entre ou-tros. (34) Jornalista e ativista cultural, autora do livro História do Carnaval Carioca, considerado um clássico na bibliografia sobre o tema. (35) Os romances cantados foram: o Imperador D. Pedro I e a Marquesa de Santos, Peri e Ceci, Dirceu e Marília, Castro Alves e Eugênia, Moema e Paraguaçu por Caramuru. (36) Departamento de Ordem Política Social, orgão responsável pela repressão ao comunismo.
(37) Em pesquisa na imprensa do período, no acervo do JB, verifiquei que duas agremiações apresentaram o enredo sobre Dona Beija no carnaval de 1966. As escolas Aprendizes da Gávea, apresentou o enredo A Vida em Flor de D. Beja e a Independentes do Leblon , desfilou com D. Beja, a Feiticeira de Araxá. Com efeito nenhuma das duas escolas alcançou boa colocação, mas é um dado interessante verificar que não uma, mas duas escolas trouxeram esse enredo, que até então, pelo que pude constatar nesta pesquisa, não havia sido apresentado.
Referências ARAÚJO, Hiram. Carnaval – Seis mil anos de História. 2. ed. Rio: Gryphus, 2003.
CHARTIER, Roger. A história cultural; entre práticas e representações. 2. Ed. Lisboa: Difel, 1990.
__________ e JÓRIO, Amaury. Natal, o Homem de um braço só.1. ed. Rio: Guavira, 1975.
COSTA, Haroldo. Salgueiro: Academia do Samba. Rio de Janeiro: Record, 1984.
AUGRAS, Monique. O Brasil do Samba-Enredo. – 1.ed. Rio de Janeiro:FGV, 1998.
______________. Salgueiro 50 anos de glórias. Rio de Janeiro: Record, 2003.
BURKE, Peter. Variedades da História Cultural. Rio: Civilização Brasileira, 2002 CABRAL, Sérgio. As escolas de samba do Rio de Janeiro. 2.ed. Rio de Janeiro: Lumiar, 2004.
FARIAS, Edson. O desfile e a Cidade. O carnaval espetáculo carioca. 1.ed. Rio de Janeiro: e-papers, 2005. FERNANDES, Nelson da Nóbrega. Escolas de Samba: sujeitos celebrantes e objetos celebrados. 1. ed. Rio: SCDGDIC – Arquivo Geral da Cidade – RJ, 2001.
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FERREIRA, Felipe. O marquês e o jegue: estudo da fantasia para escolas de samba. 1.ed. Rio: Altos da Glória, 1999. FREIXO, Adriano de e MUNTEAL FILHO, Oswaldo (orgs). A Ditadura em Debate: Estado e Sociedade nos anos do autoritarismo. Rio de janeiro: Contraponto, 2005. GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes. O cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo, Cia das Letras,1987. RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da tv. São Paulo: Record, 2000.
MOURA, Roberto. Carnaval da Redentora a Praça do Apocalipse. Rio: Jorge Zahar, 1985. SANTOS, Nilton. A Arte do efêmero: carnavalescos e mediação cultural no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Apicuri, 2009. SKIDMORE, Thomas. Brasil, de Castelo a Tancredo. 1. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. THOMPSON, E. P. Costumes em comum. Estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. ZAPPA, Regina e SOTO, Ernesto. 1968 Eles só queriam mudar o mundo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.