Nascentes e tributários de um Rio musical - salve Estácio, Cidade Nova e a Praça Onze dos bambas! E

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Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Tecnologia e Ciências Instituto de Geografia

Michel Rosadas

Nascentes e tributários de um Rio musical - salve Estácio, Cidade Nova e a Praça Onze dos bambas! E a Vila de Noel “- Só quer mostrar que faz samba também -”

Rio de Janeiro 2009


Michel Rosadas

Nascentes e tributários de um Rio musical - salve Estácio, Cidade Nova e a Praça Onze dos bambas! E a Vila de Noel “- Só quer mostrar que faz samba também -”

Dissertação apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação em Geografia, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Área de Concentração: Gestão e Estruturação do Espaço Geográfico.

Orientador: Prof. Dr. João Baptista F. de Mello

Rio de Janeiro 2009


CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ / REDE SIRIUS / BIBLIOTECA CTC/C

R788

Rosadas, Michel Nascentes e tributários de um Rio musical – salve Estácio, Cidade Nova e a Praça Onze dos bambas! E a Vila de Noel “- só quer mostrar que faz samba também – “/ Michel Rosadas. – 2009. 161 f. : il. Orientador: Prof. Dr. João Baptista Ferreira de Mello. Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Geografia. 1. Samba – Rio de Janeiro (RJ) – Teses. 2. Identidade social – Rio de Janeiro (RJ) – Teses. 3. Geografia humana - Teses. I. Mello, João Baptista Ferreira de. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Geografia. III. Título.

CDU 911.3:78.067.26(815.3)

Autorizo , apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta tese.

____________________________________ Assinatura

___________ Data


Michel Rosadas

Nascentes e tributários de um Rio musical - salve Estácio, Cidade Nova e a Praça Onze dos bambas! E a Vila de Noel “- Só quer mostrar que faz samba também -”

Dissertação apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação em Geografia, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Área de Concentração: Gestão e Estruturação do Espaço Geográfico.

Aprovado em 31 de março de 2009. Banca Examinadora:

_______________________________________________ Prof. Dr. João Baptista F. de Mello – (Orientador) Instituto de Geografia da UERJ

______________________________________________ Prof. Dr. Zeny Rosendahl Instituto de Geografia da UERJ

______________________________________________ Prof. Dr. Miguel Angelo Ribeiro Instituto de Geografia da UERJ

______________________________________________ Profª. Drª. Ana Clara Torres Ribeiro Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional

Rio de Janeiro 2009


AGRADECIMENTOS

Todas as pessoas aqui citadas contribuíram direta ou indiretamente para o sucesso desta investigação geográfica. São familiares, professores, amigos e funcionários indispensáveis nesta caminhada: A minha mãe Neuza pelo amor e cuidado dispensados a mim em todos estes anos. A minha irmã Fabíola pelo exemplo de dedicação e companheirismo, além de me ajudar a conceber esta pesquisa. Ao meu orientador e amigo João Baptista Ferreira de Mello pela paciência e por colocar seu conhecimento a serviço deste trabalho. À professora Zeny Rosendahl pelo aprimoramento acadêmico proporcionado pelo NEPEC e por participar da banca de qualificação e avaliação. Ao professor Miguel Ângelo por acompanhar minha trajetória e pelos apontamentos feitos na banca de qualificação. À professora Ana Clara Torres Ribeiro por aceitar fazer parte da banca de avaliação mesmo com o tempo reduzido para a leitura deste estudo. A todos os professores do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em especial os professores Hélion Póvoa e Mônica que ministraram cursos excelentes. Aos meus padrinhos César e Fátima por estarem presentes nos momentos bons e ruins da minha vida. Aos meus tios Wilsinho e Marilena por terem proporcionado tantos verões inesquecíveis na infância e juventude, fundamentais para aguçar meu sentimento de família. A minha tia Silvinha pela presença e pelas aventuras “inesgotáveis” em Vila Isabel. - A minha avó Neusa e meu avô Sílvio por estarem compartilhando mais este momento comigo. Ao primo Daniel por me apresentar ao mundo do samba “ao vivo e a cores” e me ajudar a decifrar os seus códigos. Os meus primos Mariana, Elisa, Eduardo, Fernando e Pedro por estarem presentes como irmãos na minha vida. A amiga Eliza por me incentivar a ingressar neste Programa de PósGraduação e participar ativamente de várias fases desta pesquisa.


Aos meus amigos da Amil, em especial Renatinha e Dani, pelos favores e provas incontáveis de verdadeira amizade. Aos meus amigos César, Paulo, Raquel e, especialmente, Rogério por terem me ajudado durante esta caminhada. Ao amigo Victor e a Livraria Folha Seca por fornecerem livros importantes para esta dissertação. A todos os funcionários envolvidos nesta empreitada, dentre eles, a secretaria deste Programa de Pós-Graduação, da Biblioteca Nacional, Arquivo Geral da Cidade e os xerocopiadores que tornaram possível a apresentação deste trabalho.


RESUMO ROSADAS, Michel. Nascentes e tributários de um rio musical - salve Estácio, Cidade Nova e a Praça Onze dos bambas! E a Vila de Noel “- Só quer mostrar que faz samba também -”. 2009. 161 f. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Instituto de Geografia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.

A ciência positivista, embasada em pressupostos modernos, serviu de alicerce para a expansão e reprodução capitalista sobrevalorizando a razão em detrimento da sensibilidade. Na contramão de tal postura e defendendo o enfoque dos valores, relatos, experiências, bem como as mais diversas expressões culturais, a geografia humanística tem o papel de preencher esta lacuna deixada pelas perspectivas positivistas que não se atêm à subjetividade humana como um dos elementos de construção, entendimento e modificação do espaço geográfico. Assim sendo, este ramo da geografia pretende analisar a relação do homem com seu universo cotidiano de convivência, ou seja, seu lugar vivido. O campo da arte, como se sabe, abarca uma infinidade de traduções e reflexões a respeito dos sentimentos dos indivíduos e da coletividade. Isto posto, vale frisar, os artistas registram em suas obras suas experiências vividas, diretas ou indiretas, sobre espaços e lugares. Utilizando estes recursos, músicos reforçam os laços identitários e preservam a memória seletiva de um determinado grupo social ou deste ou aquele indivíduo. Analisando a evolução urbana do Rio de Janeiro, podemos conceber um Rio Musical, cujas “cabeceiras” são representados pelos bairros da Cidade Nova, a Praça Onze dos bambas e o Estácio de Sá. Neste sentido, Vila Isabel é um dos afluentes que recebe e elabora uma sequência de fluidez musical na urbe carioca. Buscando se inserir neste nicho, a presente investigação geográfica procura elucidar como questão central as fontes do samba e consequentemente um dos seus meandros ou braços do Rio musical, o bairro de Vila Isabel, ritmo este que projeta lugares vividos, simbólicos, concebidos e míticos. Neste compasso, ao mesmo tempo, a pesquisa preocupa-se em identificar como este gênero musical persiste em sua relevância em meio à dinâmica dos referidos domínios espaciais, com expressiva ressonância no Brasil e, evidentemente, na cidade do Rio de Janeiro, alcançando a música e os desfiles do chamado “maior espetáculo da Terra”, até mesmo outros continentes. Em suma, o Rio musical com vales, afluentes, meandros e cachoeiras deságuam em delta e se espraie além-mar. Palavras-chave: Samba. Rio de Janeiro. Geografia humanística. Vila Isabel.


ABSTRACT

The positivistic science, based on modern assumptions, served as the foundation for expanding and reproducing the capitalist overvalued reason over ensibilidade. Contrary to such a stance and defending the focus of values, stories and experiences as well as the most diverse cultural expressions, humanistic geography's role is to fill the gap left by the positivist outlook that does not stick to human subjectivity as an element of construction, understanding and modification of geographical space. Thus, this branch of geography seeks to analyze the relationship between man and his universe of daily living, ie their place lived. The field of art, as is known, covers a multitude of translations and reflections about the feelings of individuals and the community. That said, it is worth to note, the artists record their works in their experiences, direct or indirect, on spaces and places. Using these resources, musicians reinforce the ties of identity and preserve the selective memory of a particular social group or this or that individual. Analyzing the urban evolution of Rio de Janeiro, Rio can conceive a Musical, whose "headwaters" are represented by the neighborhoods of New Town Square Eleven of wobbly and Estacio de Sa. In this sense Vila Isabel is one of the tributaries that receives and produces a sequence of musical fluidity in the metropolis of Rio. Seeking to enter this niche, this research attempts to understand how geographic sources central issue of the samba and consequently one of its meanderings, or arms of the River Music, the neighborhood of Vila Isabel, who pace this design places lived, symbolic, designed and mythical. In this bar, at the same time, the research focuses on identifying how this genre of music exists in its relevance amid the dynamics of such spatial domains, with significant resonance in Brazil and, of course, in Rio de Janeiro, reaching music and the parades of the "greatest show on earth", even other continents. In short, the River Music with valleys, tributaries, meanders and waterfalls tumble in delta and spread out across the ocean. Keywords: Samba. Rio de Janeiro. Humanistic geography. Vila Isabel.


LISTA DAS CANÇÕES SELECIONADAS (De acordo com a aparição: Título, autores e ano de criação) - Nem a Lua, de Martinho da Vila, Charlote e Noca, 1984. - Flor dos Tempos, de Nei Lopes e Ruy Quaresma. 1984. - Não tem tradução, de Noel Rosa. 1933. - Samba de Fato, de Pixinguinha e Cícero de Almeida. 1932. - Pelo Telefone, de Donga e Mauro de Almeida. 1917. - O Marroeiro, de Catulo da Paixão Cearense e Inácio Raposo. - Roceiro, de Tia Ciata, Sinhô e Hilário Jovino. 1917. - Velho Estácio, de Cartola. 1937. - A primeira escola, de Pereira Mattos e Joel Almeida. 1942. - Na Pavuna, de Almirante e Candoca da Anunciação. 1929. - É Bom Parar, de Noel Rosa e Rubens Soares .1936. - O orvalho vem caindo, de Noel Rosa e Kid Pepe. 1933. - O que será de mim, de Ismael Silva e Nílton Bastos. 1931. - Lenço no pescoço, de Wilson Batista. 1933. - Ora vejam só, de Sinhô. 1927. - Escola de Malandro, de Noel Rosa, Ismael Silva e Orlando Luiz Machado. 1932. - Capricho de Rapaz Solteiro, de Noel Rosa. 1933. - Copacabana,de Braguinha. 1947. - Carinhoso, de Pixinguinha e Braguinha. 1917/1937. - Touradas em Madri, de Braguinha. 1938. - Balancê, de Braguinha. 1938. - Com que roupa?, de Noel Rosa. 1929. - São Coisas Nossas, de Noel Rosa. 1932. - Chão de Estrelas, de Orestes Barbosa e Sílvio Caldas. 1938. - Conversa de Botequim, de Noel Rosa e Vadico. 1935. - Eu vou pra Vila, de Noel Rosa. 1930. - Bom Elemento, de Noel Rosa e Quidinho da Aldeia Campista. 1930. - Feitiço da Vila, de Noel Rosa. 1934. - Conversa Fiada, de Wilson Batista. 1935. - Palpite Infeliz, de Noel Rosa. 1935. - Boa Noite, de Martinho da Vila. 1965. - A Voz do Violão, de Francisco Alves e Horácio Campos. 1928. - Renascer das Cinzas, de Martinho da Vila. 1974. - Vem pro Samba Meu Amor, de Diógenes. 1984 - Vila Isabel, de Dunga. 1957. - Quando o ensaio começar, de Zé Branco e Lolote. 1984. - Kizomba, festa da raça, de Luís Carlos da Vila, Rodolpho de Souza e Jonas Rodrigues. 1988. - Vila Isabel, de Bide e Marçal. 1952. - Garoa, de Bezerra da Silva. 1988. - Pé do Meu Samba, de Caetano Veloso. 2002. - Carnavália, de Marisa Monte, Arnaldo Antunes e Carlinhos Brown. 2001


MAPAS Mapa 1: Localização do bairro de Vila Isabel................................................. 06 Mapa 3.1: As calçadas musicais de Vila Isabel............................................ 133 FOTOGRAFIAS Foto 1: Bar Petisco da Vila............................................................................. 09 Foto 2: Mosteiro de Nossa Senhora da Conceição da Ajuda......................... 09 Foto 2.1: Cortiço no Rio de Janeiro................................................................ 36 Foto 2.2: Avenida Beira-Mar...................................................................,....... 43 Foto 2.3: Avenida Central (atual Rio Branco)................................................. 43 Foto 2.4: Palácio Monroe................................................................................ 44 Foto 2.5: Teatro Municipal do Rio de Janeiro................................................. 44 Foto 2.6: Quiosques foram removidos pela reforma Passos.......................... 48 Foto 2.7: Em destaque a residência da Tia Ciata........................................... 63 Foto 2.8: Praça Onze de Junho...................................................................... 63 Foto 2.9: Oito Batutas, grupo de choro que chegou a excursionar pela Europa. Donga e Pixinguinha eram as estrelas desta companhia................. 67 Foto 2.10: Ernesto dos Santos, o Donga........................................................ 75 Foto 2.11: Ismael Silva.................................................................................... 83 Foto 2.12: Francisco Alves.............................................................................. 83 Foto 2.13: Wilson Batista................................................................................ 92 Foto 3.1: O Boulevard Vinte e Oito de Setembro......................................... 103 Foto 3.2: Recanto do Trovador. Ao fundo, parte do morro do Macaco .......................................................................................................................107 Foto 3.3: Noel Rosa...................................................................................... 111 Foto 3.4: Garagem da Cia. Ferro-Carril de Vila Isabel. Hoje o terreno abriga a Sede do G.R.E.S. Unidos de Vila Isabel......................................... 119 Foto 3.5: Bar Parada Obrigatória. Localizado no cruzamento Boulevard Vinte e Oito de Setembro/ rua Souza Franco............................................... 119 Foto 3.6: Martinho da Vila............................................................................. 132 Foto 3.7: Trecho das calçadas musicais....................................................... 132 Foto 3.8: Desfile da Unidos de Vila Isabel em 1988..................................... 142 Foto 3.9: Novamente campeã em 2006........................................................ 142 Foto 3.10: Monumento em homenagem a Noel Rosa.................................. 148 Foto 3.11: Sede do G.R.E.S. Unidos de Vila Isabel...................................... 148 Foto 4: O alfaiate Euclides oferece seus serviços......................................... 153 Foto 5: O Vila Shopping................................................................................ 153 Foto 6: O prédio comercial Vila Trade Center............................................... 153 Foto 7: O açougue Feitiço da Vila................................................................. 153 FIGURAS Figura 2.1: Funções subalternas desempenhadas pelos negros: o vendedor de balas, o homem dos passarinhos e a negra lavadeira.............. 36 Figura 2.2: Pereira Passos embeleza a cidade do Rio de Janeiro................. 48 Figura 2.3: O cantador de modinhas.............................................................. 55 Figura 2.4: Cena de Gafieira........................................................................... 55 Figura 2.5: A dança do maxixe....................................................................... 55


Figura 2.6: Planta da casa da Tia Ciata......................................................... 67 Figura 2.7: Partitura de Pelo Telefone........................................................... 75 Figura 2.8: Representação do típico malandro.............................................. 92 Figura 3.1: Projeto de urbanização da Cia. Arquitetônica de Vila Isabel...... 103 Figura 3.2: O Barão de Drummond e suas contribuições: o bonde e o jogo do bicho........................................................................... 107 Figura 3.3: Almirante e o bando de tangarás............................................... 117 Figura 3.4: Caricatura de Noel feita por Nássara......................................... 117 Figura 3.5: O botequim................................................................................. 117 ESQUEMAS Esquema 3.1: O Ponto dos 100 Réis............................................................ 118


SUMÁRIO INTRODUÇÃO................................................................................................ 01 1

CONSOLIDAÇÃO DA GEOGRAFIA HUMANÍSTICA....................................14

1.1

A influência humanista em Geografia......................................................... 15

1.2

A Geografia Humanística e a crítica ao positivismo lógico...................... 17

1.3

Aportes filosóficos caros à Geografia Humanística.................................. 18

1.4

O conceito de lugar como palco privilegiado da experiência vivida....... 25

1.5

A relevância das fontes poéticas para a Geografia Humanística.............27

2

DA CIDADE NOVA AO ESTÁCIO: A CRIAÇÃO E RECRIAÇÃO DO SAMBA MODERNO.................................................................................................... 32

2.1

A influência dos baianos na comunidade negra do Rio de Janeiro do século XIX.................................................................................. 33

2.2

Transformações sócio-espaciais imputadas pela Reforma Passos.........37

2.3

Os Antecessores musicais do samba.........................................................49

2.4

O surgimento do samba moderno na Pequena África do Rio de Janeiro............................................................................................................58

2.5

O paradigma do Estácio............................................................................... 77

3

ACORDES E BATUQUES NA VILA DE DRUMMOND, NOEL, MARTINHO E ISABEL........................................................................................................... 95

3.1

A Vila de Drummond..................................................................................... 96

3.2

A Vila de Noel.............................................................................................. 108

3.3

A Vila de Martinho....................................................................................... 128

3.4

O Feitiço da Vila.......................................................................................... 143 CONSIDERAÇÕES FINAIS..........................................................................149 REFERÊNCIAS.............................................................................................156


INTRODUÇÃO Os lugares possuem traços individuais, culturais e físicos que os distinguem de outros. Neste sentido, os vários domínios espaciais da Terra possuem características, que combinadas ou isoladamente, atribuem um caráter próprio e único, impossibilitando desta forma a existência na superfície terrestre de dois ou mais lugares idênticos. Instrumentos geográficos, como os mapas, confirmam isto. A cultura, da mesma forma, assoma de maneira desconcertante. Os ritmos nascidos na cidade do Rio de Janeiro, neste nicho, conferiram identidade e o sentido de lugar a pontos diversos da urbe carioca. Nestas condições, desperta o interesse dos geógrafos o caráter múltiplo e exclusivo dos lugares. Contudo, incapacitados de abranger todas as variáveis que cercam um lugar, os estudiosos do espaço geográfico tendem a privilegiar determinadas propriedades que compõem o mosaico espacial, como a música. O campo da arte, como se sabe, envolve uma infinidade de traduções e reflexões a respeito dos sentimentos dos indivíduos e da coletividade. Isto posto, vale frisar, os artistas registram em suas obras as respectivas experiências vividas, diretas ou indiretas, sobre espaços e lugares. Neste momento se transformam em geógrafos informais, difundindo geografias distintas.

Enquadramos

nesta

categoria,

os

compositores

que,

com

extraordinária capacidade, narram e projetam geografias particulares e coletivas, hodiernas ou pretéritas (BUTTIMER, 1985b; MELLO, 1991). A música, na realidade, revela a paixão e os laços topofílicos com o lugar vivido como decorrência de uma conotação etnocêntrica, seja do ponto de vista positivo ou por uma postura esnobe, negativa, bem como exacerbação bairrista ou mesmo fervor patriótico (MELLO, 2000). O etnocentrismo na geografia


2 remonta ao lugar como o centro do mundo. Trata-se do egocentrismo particular ou coletivo. O “seu” lugar como base de bem querência ou o oposto e medida para sentimentos que afloram em expressões como “onde Judas perdeu as botas”, “mora mal”, “mora feio” ou “onde vento faz a curva” (Tuan, 1980; MELLO, 1991). Como aponta Ballesteros (1992), as manifestações artísticas, incluindo a música, abrem um amplo caminho de investigação em trabalhos geográficos. Sobre a importância da arte literária para a geografia, Tuan (1978), indica que a arte literária serve ao geógrafo de três modos principais. Como experimento de reflexão sobre os possíveis modos de experiência e relações humanas, ela fornece sugestões sobre o que um geógrafo pode procurar quando estuda, por exemplo, o espaço social. Como artefato, ela revela as percepções ambientais e os valores de uma cultura: e serve ao geógrafo, que é também um historiador das idéias. Finalmente, como uma ambiciosa tentativa de equilibrar o subjetivo e o objetivo ela é um modelo para a síntese geográfica; ... (p. 208).

A ciência positivista, embasada em pressupostos modernos, serviu de alicerce para a expansão e reprodução capitalista sobrevalorizando a razão em detrimento da sensibilidade. Segundo Haesbaert (1997) a modernidade cindiu a ciência (conhecimento objetivo; a busca da verdade) e a arte (aspectos subjetivos, emoções, vivências e valores estéticos). O autor destaca, outrossim, que a poesia, uma das formas de manifestação da arte, não teria validade no mundo moderno explorado pela academia. Assim, o geógrafo sublinha: a poesia é gratuita, “não tem finalidade”, sua utilidade é sua inutilidade: mostrar ao mundo da produção e do consumo sua contra face, oculta, sufocada – o mundo da imaginação e da sensibilidade, “incontrolável” mundo dos sentidos do qual a razão nunca vai tomar posse (p. 23).

Na contramão desta via e defendendo o enfoque dos valores, relatos, experiências, bem como as mais diversas expressões culturais, a geografia humanística tem o papel de preencher esta lacuna deixada pelos enfoques


3 positivistas e neopositivistas que não se atêm à subjetividade humana como um dos elementos de construção, entendimento e modificação do espaço geográfico. Esta vertente geográfica se estrutura como campo de investigação na década de 1970 visando romper com o racionalismo e com o cientificismo para ampliar a possibilidade de estudos voltados para os significados, as emoções e os sentimentos que os seres humanos atribuem a determinadas porções espaciais. A relação do homem com o espaço geográfico faz com que aquele produza e/ou reconheça formas espaciais como simbólicas e integrantes da sua identidade. Em outras palavras, todo indivíduo ou grupo social está assentado sobre uma base territorial. Ou mais do que esta diretriz no horizonte humanístico, em um mundo indissociável, introjetado e revestido de eventos, pessoas, itinerários, lutas, ambigüidades, envolvimentos, sonhos, desatinos, “canções que minha mãe me ensinou”, a própria base territorial e toda sorte de elementos permite à pessoa se sentir em casa, em seu lar/lugar ou, por outro lado, distanciada em meio a um estranhamento topofóbico (SCHUTZ, 1979; MELLO, 2005). Nas palavras de Buttimer (1985b), no momento que o homem confere significados a um domínio espacial, este deixa de ser um mero receptor de objetos físicos e eventos, metamorfoseando-se em um lugar vivido, um horizonte onde as pessoas são valorizadas e reconhecidas. Com base nos preceitos humanísticos será concebida outra definição que difere da concepção clássica de lugar. Esta será idealizada por meio do princípio fenomenológico de mundo vivido (lebenswelt), como acima exposto. De acordo com Buttimer (1985b), mundo vivido corresponde ao conjunto de fatos e acontecimentos que ocorre no cotidiano de cada pessoa, uma geografia,


4 por excelência, existencial. Desta maneira, o lugar diz respeito ao local do cotidiano a ser defendido, cercado de zelo onde o individuo e os grupos sociais se sentem seguros e familiarizados. Nestas condições, como nas palavras de Torres Ribeiro (1993) os lugares de pertencimento necessitam ser refeitos e expandidos diante do extraordinário nível atingido, nas culturas contemporâneas (...) com as suas qualidades de abrigo e de memória compartilhada (p. 157-158).

Assim temos o curso de um Rio musical que cresceu em simbologia e expressão a partir dos ritmos nascidos na Cidade Nova, na Praça Onze dos bambas, no Estácio com “afluentes” em bairros como Vila Isabel. O palco/cenário das músicas compostas com o intuito de engrandecer e promover Vila Isabel contribui para torná-lo em um local de máxima grandeza, ou seja, lar/lugar. Os bairros “cabeceiras” de um Rio musical estão situados no entorno da Área Central do Rio de Janeiro e “jorraram” nas notas e compassos do maxixe, do chorinho e do samba, a partir das últimas décadas do século XIX. São eles Cidade Nova, forjado sobre área de aterro arrasando pouco a pouco o Mangal de São Diogo, a Praça Onze, antológico berço do samba e o Estácio, mais exatamente o morro de São Carlos e a parte plana do bairro propriamente dito. Por outro lado, um pouco mais distante geográfica e economicamente ressona Vila Isabel, bairro situado na zona norte da cidade do Rio de Janeiro, compondo junto ao Grajaú, Andaraí e Maracanã a IX Região Administrativa Municipal, como define a Prefeitura. Demarcar os limites de Vila Isabel (mapa 1) não é uma das tarefas mais fáceis, pois cada agente social delimita o bairro de acordo com suas conveniências, princípios e ações. Exemplo disto são os Correios, as


5 companhias telefônicas e os moradores que estabelecem suas próprias formas de delimitação. Recorrendo à música popular brasileira encontramos obras que fazem alusão à posição geográfica de Vila Isabel. Na composição Nem a Lua (1984), Martinho da Vila e seus parceiros Charlote e Noca, localizam a unidade espacial enfatizada a partir dos bairros limítrofes e de um morro situado nas proximidades. Passou uma noite de samba em Vila Isabel Vila Isabel, Bem ali entre Maracanã, Grajaú e Salgueiro

O sambista fornece a direção do seu bairro querido, lugar das intermináveis noites de samba. Em outra esmerada canção, intitulada Flor dos Tempos (1984), os compositores Nei Lopes e Ruy Quaresma, com extrema luminosidade, reservam alguns versos à delimitação da porção espacial em tela usando como referência o morro do Salgueiro, o morro de Mangueira, o Maracanã e a Floresta do Andaraí. Trata-se, como veremos, de posicionar brilhantemente o bairro de Noel, Martinho, Drummond e Isabel. À minha direita raia um sol vermelho e branco À minha esquerda um verde e rosa vem dormir À minha frente ecoa um grito de gol Atrás de mim dorme a Floresta do Andaraí ...


6 Mapa 1: Localização do bairro de Vila Isabel


7 O compositor e escritor Aldir Blanc (1996), que passou a infância no bairro, contrariando os limites oficiais, afirma que mesmo residindo em outro lugar atualmente, nunca saíra de Vila Isabel. (...) no dia em que me mudei pra lá [aos quatro anos de idade], meu avô português me ensinou: - Se te perderes e alguém perguntar onde moras, tu dizes: “na rua dos Artistas, número 257, em Vila Isabel.” (...) eu nunca saí de Vila Isabel (...). A rua que eu moro hoje, na Muda, é um pedaço de Vila Isabel (p. 23).

Em outra passagem Blanc (1996) descreve como entende o bairro de Noel. Vila Isabel será eternamente a inocência, uni-duni-tê, bente-quebente-o-frade, trinta-e-um-de-janeiro-lá-vou-eu, firidô-sô-rei (...). Vila Isabel é a febre, a rua cheia durante os torós de verão, barquinhos de jornal atirados da janela, (...) os livros de Monteiro Lobato, (...) o galinheiro caindo aos pedaços, o rádio, o Balança... mas não cai! (...) Febre. Sem a menor intenção de fazer folclore, no exato momento em que escrevo estas mal-traçadas linhas, estou cheio de febre, o corpo assaltado por calafrios e tremores, talvez porque a alma esteja transida de saudade (p. 25/31).

E finalmente sentencia: Assim como, por abrir a camisa, não se vê o interior do meu peito, também não se verá lá dentro, nem na autópsia, como a tatuagem de um marinheiro de primeira viagem, meu coração pulsando e repetindo, apesar da flecha que o atravessa, as palavras em sangue: Vila Isabel (p. 57).

O autor metaforicamente aponta que as lembranças da infância, cujo cenário fora a unidade espacial em destaque, ficam registradas, influenciam seu modo de vida na fase adulta e reservam um carinho especial pelo lugar. Nesta galeria, Tuan (1983) aponta que tal efeito ocorre com os seres humanos, pois os acontecimentos simples podem com o tempo se transformar em um sentimento profundo pelo lugar. Aldir Blanc, com suas palavras, realça o seu sentimento topofílico pelo lugar, isto é, continua atado ao lugar por ele vivido ao longo da infância e juventude.


8 Os registros musicais e literários apresentados, anteriormente, têm a proficuidade de confirmar que, em determinadas situações, a delimitação oficial não é capaz de contemplar inteiramente a relação do homem com seu lugar vivido. Outros elementos, igualmente, demarcam os limites deste ou aquele perímetro espacial, tais como, status, renda, simbolismo que conduzem a uma bairrofilia ou bairrofobia. Nos dias de hoje, centralidades com diferentes funções fazem parte de Vila Isabel. Neste nicho, encontram-se o Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE), o Colégio João Alfredo, antigo instituto profissionalizante, o Petisco da Vila (foto 1), bar tradicional que conserva e rememora os dias de boemia, o Mosteiro de Nossa Senhora da Conceição da Ajuda (foto 2), claustro de fé desde a década de 1920, o Shopping Center Iguatemi, construído em área que anteriormente abrigava o complexo esportivo do América Futebol Clube, e mesmo o pulsante Grêmio Recreativo Escola de Samba Unidos de Vila Isabel dentre outros, estão inseridos na geografia do movimento (SANTOS; SILVEIRA, 2001) devido aos fluxos gerados por seus atrativos espaciais. A tradição inventada por Noel e consolidada por Martinho da Vila e pelo G.R.E.S. Unidos de Vila Isabel, através das composições em homenagem ao bairro, engendram a identidade de Vila Isabel. Corroborando o mencionado, Le Bossé (2004) salienta que os geógrafos se interessam pela identidade dos lugares e pelos papéis que estes desempenham na construção de consciências individuais e coletivas. Observam como as pessoas, sujeitos e agentes geográficos recebem e percebem, constroem e reivindicam identidades cristalizadas em suas representações e em suas interpretações dos lugares e das relações espaciais (p. 158).


9

Foto 1: Bar Petisco da Vila. Autor: Michel Rosadas, 2009.

Foto 2: Mosteiro de Nossa Senhora da Conceição da Ajuda Autor: Michel Rosadas, 2006.


10 Além disto, o autor relata que a geografia clássica já se ocupava do tema quando esta ressaltava “a dimensão psicológica da noção pela abordagem da personalidade ou do retrato das regiões e dos povos” (p. 164). Vidal de La Blache, por exemplo, evidenciava os traços integradores da personalidade francesa, tanto em termos das relações que os homens estabelecem com o seu meio ambiente (...), como em termos de associação e de integração das diversas entidades regionais no quadro nacional” (p. 164).

Contudo

o

pensamento

lablachiano

estava

fortemente

associado

a

perspectivas naturalistas, nas quais não se privilegiava a discussão da irrupção da modernidade, sobretudo da vida urbana, em sociedades com traços tradicionais. Para Haesbaert (1999), a questão da identidade volta ao centro dos debates nas ciências sociais num mundo em crise de valores e de sentido como é o nosso. Trata-se não somente de defender um direito à diferença, cuja ênfase remonta aos movimentos ditos alternativos dos anos 60, mas também resistir ao sem-sentido de uma sociedade globalmente mercantilizada e onde tudo é passível de transformar-se em valor contábil, ou seja, onde a primazia das relações e dos valores sociais está vinculada à acumulação de capital. Paralelo a esta mercantilização, a identidade também pode ressurgir como uma forma, consciente ou não, de contraposição ao processo excludente engendrado pela globalização (p. 170).

Com base no exposto, podemos assinalar que o objetivo central desta investigação geográfica é analisar os elementos materiais e imateriais simbólicos surgidos a partir das harmonias, acordes e dissonâncias da música, particularmente o samba, este contribuindo para a modelagem e identidade de Vila Isabel. Assim sendo, ao abordarmos a geo-história que escoa por um curso fluvial de um Rio pleno de canções, nos deteremos no período que se estende das últimas décadas do século XIX, no Estácio, Cidade Nova e Praça Onze até os dias atuais em Vila Isabel. Justifica-se tal recorte temporal por este


11 abarcar a produção musical de relevância dos citados bairros. Para cumprir esta tarefa faremos uso de diversas melodias de compositores que demonstram a afeição destes em relação ao seu lugar vivido. Terá particular relevância também os geossímbolos (BONNEMAISON, 2002) capazes de distinguir a transcendência identitária do bairro, tais como as calçadas musicais, o monumento a Noel Rosa e a sede da Unidos de Vila Isabel. Neste instante, cabe ressaltar, que as canções selecionadas tem o valor de sugerir a ligação dos compositores de Vila Isabel com seu lugar vivido, ou ainda de ilustrar alguma passagem da pesquisa ou determinado contexto geo-histórico da música popular brasileira. A metodologia proposta baseia-se

em trabalhos de campo e

levantamento bibliográfico com vistas à elaboração desta pesquisa, bem como para a busca dos suportes conceituais que servirão de sustentáculo para o estudo em pauta. Observamos as simbólicas marcas da negritude em lugar outrora ocupado pela Pequena África do Rio de Janeiro (Terreirão do Samba, Passarela do Samba, Escola Tia Ciata) e, ao mesmo tempo, documentamos a organização espacial do cancioneiro contida nas calçadas musicais, uma vez que cada composição ocupa um quarteirão de acordo com a dimensão dos seus versos (ver mapa 3.1).

Além disto, acompanhamos os encontros da

Unidos de Vila Isabel, seus ensaios técnicos no Boulevard Vinte e Oito de Setembro e na “Sapucaí”, oficialmente Avenida Darcy Ribeiro, desde o início da investigação para entendermos melhor o universo desta escola de samba. Quanto às músicas, algumas foram recolhidas nas obras literárias relacionadas ao samba, ao Estácio, à Cidade Nova, à Praça Onze dos Bambas, à Vila Isabel e biografias de personagens importantes, como Noel Rosa, Martinho da Vila e


12 Almirante. Outras mais obtivemos na Biblioteca Nacional e em consulta a sítios especializados como o www.dicionariompb.com.br, de Ricardo Cravo Albin, patrocinado pela PUC-RJ/FAPERJ, afora, o www.cifraantiga.blogspot.com, entre outros. A dissertação se justifica por singrar através do curso de um Rio musical que merece ser estudado por este prisma por conta da riqueza de suas canções, renomados autores e mesmo artefatos que surgiram fruto da pujança de sua arte contribuindo para a organização do espaço, no que concerne a edificação de escola, “passarela do samba”, espaços privados e esculturas, ao lado de calçadas percorridas no balanço de suas partituras. Almejando o sucesso desta empreitada, decidiu-se por bem dividir a pesquisa em três segmentos distintos. O primeiro segmento se preocupa com os aspectos constituintes da consolidação da geografia humanista como subcampo autônomo de pesquisa. O capítulo se justifica pela necessidade de apresentação e aprofundamento das bases conceituais deste trabalho procurando enfatizar a relevância da corrente geográfica em destaque para o surgimento de estudos baseados em fontes poéticas, denominado por Wright (1947) como geografias informais. O segundo segmento aborda os aspectos sociais, históricos e musicais que permitiram a configuração do samba como gênero musical. Ao menos nos seus passos iniciais, suas melodias e cantos transmitem a realidade de um determinado grupo social, neste caso, a comunidade negra, seus princípios e sua visão de mundo. A última seção deste capítulo disserta sobre as modificações ocorridas com o samba pelos malandros do bairro do Estácio de


13 Sá cujo paradigma musical resultante se popularizará com a contribuição de Noel Rosa, dentre outros. O último segmento tem por finalidade revelar como a musicalidade de Vila Isabel forja a identidade do bairro. Para tanto faremos uma breve explanação histórico-geográfica realçando as ações do Barão de Drummond. Posteriormente, evidenciaremos as letras das canções de compositores renomados que exaltam a Vila, inseridas na conjuntura de suas criações, e a conseqüente

materialização

simbólica

da

identidade

por

conta

dos

geossímbolos, estes projetados pela memória seletiva de seus residentes e admiradores.


14

CAPÍTULO 1 – A CONSOLIDAÇÃO DA GEOGRAFIA HUMANÍSTICA A proliferação das idéias neopositivistas na década de 1950, sobretudo no mundo anglo-saxônico, fez com que a geografia clássica sofresse severas críticas epistemológicas e metodológicas. Mesmo os subcampos tradicionais, como a geografia histórica e a geografia cultural, que a princípio não foram influenciados diretamente pela geografia analítica, viram-se na obrigação de procurar novos caminhos e intercâmbios. O tema da percepção ambiental surge neste contexto como um dos vieses seguidos pelos geógrafos históricos e culturais que visavam a renovação das suas investigações. Derivado deste mote, se estrutura um novo campo de atuação: a Geografia Humanística. Esta rompe definitivamente com o neopositivismo ao desenvolver uma base filosófico-conceitual independente dos preceitos analíticos. Por

um

embasamento

teórico

independente

dos

pressupostos

racionalistas, a geografia humanística se apropriou de elementos advindos de diferentes aportes filosóficos, dentre eles a fenomenologia, o existencialismo, o idealismo e a hermenêutica. Com isto, a perspectiva em tela desejava retomar os aspectos subjetivos da vida humana em relação ao espaço geográfico. Com a revalorização dos elementos não mensuráveis do ser humano, a utilização de fontes artísticas, tais como a música, tornou-se uma das contribuições valiosas capazes de atestar a originalidade e a personalidade dos lugares. Desta maneira, o samba, maior expressão da cultura popular carioca, pode fornecer importantes subsídios aos trabalhos geográficos. Isto porque este gênero musical evidencia a complexidade dos universos vividos de um segmento da população da cidade do Rio de Janeiro.


15 1.1- A influência humanista em Geografia Geógrafos interessados em romper com o modelo pragmático da geografia neopositivista retomaram alguns pontos do pensamento humanista com o objetivo de alterar o curso da história do pensamento geográfico. Gomes (1996) destaca quatro características do humanismo adotadas pela Geografia. A primeira refere-se à necessidade de colocar o homem, novamente, como medida de todas as coisas, isto é, priorizando a visão antropocêntrica. Esta visão proporcionaria a incorporação da subjetividade humana como parte integrante das investigações. Em geografia, tal influência acarretaria uma definição de espacialidade que extrapolasse a objetivação da ciência racionalista. Em outros termos, o espaço, e suas propriedades, não deve ser resumido a medições numéricas. O segundo aspecto responde pela “posição epistemológica holística” (p. 311), alargando o conceito de indivíduo humano. O humanismo se opõe ao procedimento analítico por esta metodologia retirar de suas conclusões aspectos inerentes à condição humana. O fato de se estudar parcialmente os fenômenos impede a compreensão da totalidade fenomenológica. A terceira característica se atém a questão do homem como produtor de cultura. A cultura de um determinado indivíduo ou grupo social só pode ser interpretada a partir dos códigos que foram criados por este próprio grupo. A generalização, mister ao ato de teorização, faz com que parte dos contextos particulares não seja apreendida, parte esta que contém os elementos fundadores de uma cultura. Deste modo as abstrações explicativas lógicas acabam por reduzir a “importância dos verdadeiros artesãos da atividade humana, isto é, a cultura, os valores, as significações (p. 311).


16 O quarto ponto revela a importância do método hermenêutico. A hermenêutica é a arte da interpretação. O geógrafo tem o papel de interpretar por ser um observador privilegiado. A observação não deve servir apenas para a localização dos fenômenos, deve resgatar a intangibilidade dos fatos espaciais a partir de seus contextos próprios. Segundo Tuan (1985), a competência do humanista repousa na interpretação da experiência humana, em sua ambigüidade, ambivalência e complexidade. Em extensão, o geógrafo deve esclarecer o significado dos conceitos, dos símbolos e das aspirações mediante ao espaço e ao lugar. Podemos atestar ainda outras contribuições do aporte humanista para a geografia. Holzer (1992) aponta o levantamento de problemas filosóficos que estimularam a discussão da epistemologia da disciplina, a reabilitação da geografia clássica, por meio dos estudos da paisagem e da territorialidade, revivescimento da pesquisa etnográfica baseada em trabalhos de campo, aproximação da geografia com as artes e com outros campos científicos, entre eles a antropologia e a psicologia, proporcionando assim uma revisão das teorias tradicionais sobre a relação homem/ ambiente. Johnston (1986), ratificando o exposto, conclui que a geografia humanista possui uma epistemologia cujo conhecimento é obtido subjetivamente em um mundo de significados criados por indivíduos e cuja ontologia é a de que o que existe é o que as pessoas percebem como existente. Sua metodologia envolve a investigação objetiva desses mundos individuais e, em oposição às aproximações positivistas, enfatiza a individualidade e a subjetividade, e não a replicabilidade e a verdade (apud HOLZER, 1992, p. 320).


17 1.2- A Geografia Humanística e a crítica ao positivismo lógico O pensamento humanístico em geografia surge em contraponto à geografia neopositivista baseada em análises de dados que viriam a formular leis, métodos e sistemas universais aplicáveis a qualquer situação e localização da superfície terrestre. Uma das principais críticas ao positivismo lógico advém do fato de que as leis e os métodos elaborados nesta fase foram insuficientes para estudar os indivíduos e a condição humana (TUAN, 1985; BUTTIMER, 1992; MELLO, 1991, 2000). O caminho para o rompimento definitivo com o positivismo lógico seria a mudança nas bases epistemológicas e ontológicas recorrendo a filosofias humanistas como a fenomenologia, a hermenêutica, o existencialismo e o idealismo. Como conseqüência disto, temos uma mudança de ênfase da concepção de espaço, do absoluto ao relativo. O espaço absoluto existe em um sentido real, independente das conclusões de seus observadores. Já o espaço relativo só pode ser compreendido em termos de seus objetos e dos processos que o formam (UNWIN, 1995). O

papel

principal

da

geografia

humanística

na

produção

do

conhecimento científico está na relevância que o humanista dispensa a determinados materiais que o cientista preso em sua estrutura conceitual não poderá vislumbrar. Entre os aspectos ocultos à ciência tradicional encontramos a natureza e a gama de experiências, ambigüidades, significados, emoções, valores, símbolos e eventos derivados das intenções e das aspirações humanas (TUAN, 1985). Como pode ser entendido pelo breve comentário anterior, podemos identificar a geografia humanística como anticientifista, antipositivista e


18 antireducionista.

Podemos

afirmá-la

anticientificista

pois

se

opõe

a

sistematização do pensamento humano que exclui uma série de elementos que não podem ser identificados pelas leis científicas. Antipositivista já que acredita ser impossível medir o comportamento humano a partir de fórmulas matemáticas e, enfim, antireducionista por não crer na possibilidade que todas as atitudes humanas pertençam a racionalidade (BERTRAND, 1992). A geografia humanista significa, então, a inclusão dos valores, significações e simbolismos para compreender a forma como o homem se move. Entender que a sua conduta espacial não é abstrata, e sim, filosófica, vivida e pessoal, ou mesmo de grupo ou intersubjetiva. O geógrafo humanista, neste sentido, deve estar afinado com as vozes do cientista e do filósofo para não ignorar qualquer evidência que possa lançar luz nas complexas relações do homem com sua terra (BUTTIMER, 1985b; TUAN, 1985).

1.3. Aportes filosóficos caros à Geografia Humanística A década de setenta do último século revelou diversas correntes e tendências no universo da ciência geográfica que tinha como aglutinador a crítica aos preceitos do positivismo lógico. A geografia humanística, fez parte deste coro, não se limitando apenas a enumerar críticas, mas também oferecendo soluções reveladoras do retorno do homem ao centro dos estudos geográficos. Para tal, a perspectiva em tela se apropriou de elementos pertencentes

a

diversos

aportes

filosóficos

distintos,

dentre

eles

a

fenomenologia, o existencialismo, o idealismo e a hermenêutica, para formar um novo arcabouço filosófico-conceitual capaz de preencher as lacunas deixadas pela herança racionalista. Nesta conjuntura, cabe ressalvar que,


19 apesar da distinção dos aportes mencionados, estes podem ser agrupados por uma característica comum, a preocupação com o homem enquanto indivíduo e com a subjetividade das relações humanas com a sociedade e a natureza (HOLZER, 1992). O primeiro aporte filosófico aqui descortinado será a fenomenologia. Esta escolha não é feita ao acaso. A fenomenologia, baseada em Husserl e Schutz, terá a primazia no interesse de geógrafos envolvidos com a crítica aos pilares do positivismo lógico e a valorização do mundo vivido (BALLESTEROS, 1992; UNWIN, 1995). Os

primeiros

trabalhos

geográficos

alicerçados

nos

preceitos

fenomenológicos foram publicados no Canadá no início da década de 1970 por autores como Yi-Fu Tuan e Edward Relph, ambos da Universidade de Toronto (HOLZER, 1997a). O interesse por esta corrente filosófica ocorreu inicialmente pelo seu discurso altamente crítico à visão limitada e parcial dos estudos racionalistas. Consoante a fenomenologia, a ciência cartesiana promove uma matematização da natureza e a ruptura entre o mundo da ciência e o mundo da vida. O projeto fenomenológico prevê a reaproximação da ciência e da vida humana através da interpretação das experiências ante-predicativas, ou seja, desprovidas de preconceitos e pré-julgamentos (HOLZER, 1997b). Nestes termos, Buttimer (1985b) comunga com esta idéia ao afirmar ser necessário esforçar-se “para retirar as camadas sucessivas de um julgamento a priori e transcender todas as pré-concepções a fim de se chegar a uma consciência da essência pura” (p. 169).


20 Outra crítica aos procedimentos científicos convencionais ocorre em relação ao modo como o investigador apreende o seu objeto. No modo científico, o sujeito pode se envolver tanto com seu objeto que acaba por negligenciar a si próprio e suas perspectivas. A noção fenomenológica de intencionalidade propõe que cada indivíduo representa o foco do seu próprio mundo, isto é, deve se reconhecer como um sujeito intencional, que usa palavras com significação intencional para expor suas intuições comunicáveis. Assim Buttimer (1985b) define a fenomenologia como “um modo filosófico de reflexão a respeito da experiência consciente e uma tentativa para explicar isso em termos de significado e significância” (p. 170). O método fenomenológico contribui para uma radical mudança de perspectiva nos domínios da produção da ciência geográfica. O espaço geográfico deixa de ser representacional, um mero receptor de objetos físicos e eventos para assumir a configuração de espaço vivido. Em outros termos, um conjunto contínuo dinâmico no qual o experimentador vive, desloca-se e busca significados. Conseqüentemente, um horizonte vivido onde as coisas e as pessoas possuem valor (BUTTIMER, 1985b). Um aspecto essencial da fenomenologia consiste em evitar a distinção entre os modos subjetivos e objetivos do conhecimento. Tradicionalmente, o positivismo lógico provocou uma cisão entre ambos. Para promover um fim a este dualismo, a fenomenologia sugere o conceito de intersubjetividade. O modo subjetivo concentra-se nas proposições individuais, enquanto o modo objetivo se baseia na formulação de leis universais devidamente comprovadas. Já o modo intersubjetivo permite relacionar pessoas individuais e a subjetividade do seu mundo. Holzer (1997b) indica que a intersubjetividade


21 acontece quando o corpo como elemento móvel coloca-se em contato exterior, comunicando-se com outros homens e descobrindo situações diversas. A contribuição da fenomenologia para a geografia humanística pauta-se no esforço de superar as barreiras impostas pela herança positivista que insiste em separar a mente e o ser, o intelectual e o moral, a verdade e a bondade, em nossos mundos vividos. Assim sendo, o método fenomenológico autoriza o geógrafo a compreender a dinâmica do mundo vivido a partir das dimensões pessoais e coletivas da experiência humana (BUTTIMER, 1985b). A filosofia existencialista também compõe o quadro de referências teóricas da geografia humanística. Este aporte resulta parcialmente da fenomenologia de Husserl. A diferença básica entre as duas vertentes filosóficas remete-se a questão da essência, a fenomenologia salienta que a atribuição de significados deriva da existência da consciência, enquanto para os existencialistas a materialidade do ser antecede a essência. Em outras palavras, a existência precede a essência, ou seja, “o homem vem primeiro de tudo que existe, encontra a si próprio e define-se mais tarde, livre e responsável para fazer o que bem entender” (MELLO, 1991, p. 40). Buttimer (1974), também dissertando sobre a questão, assinala que ambos não separam os valores dos fatos, porém a fenomenologia enfatiza os problemas do conhecimento e do significado, enquanto o existencialismo enfatiza a conduta de vida (genre de vie). A crítica ao positivismo lógico também faz parte do discurso dos existencialistas. Estes rechaçam a possibilidade de se estabelecer uma ciência social

baseada

na fundamentação

de

regras

que

comportamento humano como pretendem os positivistas.

possam

reger o


22 A perspectiva existencialista acredita na valoração de símbolos particulares do homem. “O homem singular vale mais que a espécie” (MELLO, 1991, p. 39). Por isso o método existencial não formula leis empíricas e universais. São os símbolos particulares que conduzirão à constituição de símbolos coletivos. Esta preocupação existencialista com situações particulares dos seres humanos e por sua individualidade, fizeram com que os geógrafos enxergassem neste ramo da filosofia uma direção para os estudos humanistas (UNWIN, 1995). Enquanto a fenomenologia e o existencialismo centram a realidade no ser, a visão idealista constrói a realidade através da mente humana. O interesse pelo idealismo em geografia começa com um grupo de geógrafos históricos do Canadá, tais como Guelke (1985). Conforme este autor, o ser humano é uma entidade física, psicológica e racional. O geógrafo idealista está preocupado com os aspectos racionais da existência humana, os sentimentos só os interessam quando estão relacionados aos pensamentos racionais e às ações humanas, logo a relevância do físico e psicológico dos homens se restringe aos fenômenos ligados ao pensamento humano. São as idéias teoréticas que permitem ao indivíduo criar significados para os fenômenos do mundo externo. Neste sentido entendemos “teoria” como uma idéia ou sistemas de idéias que possibilitam ao ser humano fazer conexões entre os fenômenos do mundo externo. A religião, a ideologia e o mito são exemplos de teoria. O nosso conhecimento teorético do mundo é constantemente ampliado desde que nascemos. O ponto de vista do ser humano é formado pela herança das tradições de sua sociedade e das experiências vivenciadas. Os fenômenos


23 externos ganham assim significados diferenciados para cada um, o que não impede o consenso, sobre determinados temas, entre os seres humanos. Como menciona Guelke (1985), “os simples objetos da experiência tornam-se, de modo crescente, dotados de significado social, econômico e político” (p. 198-199). O mundo, desta forma, é interpretado a partir da construção teorética do indivíduo. As ações dos seres humanos, na verdade, traduzem a natureza teorética de cada ser. A atuação de toda pessoa no mundo sempre estará em consonância com sua compreensão sobre ele. Esta afirmação reserva grande importância para os geógrafos pois os homens atuam sobre o espaço geográfico a partir de suas ações. Por conta disso o investigador não utiliza suas próprias teorias porque está interessado nas teorias que se manifestam por conta das ações do indivíduo ou grupo social investigado. Assim cabe destacar que a contribuição do idealismo à geografia humanista se detém na investigação dos pensamentos racionais que levam um indivíduo ou grupo social a praticar ações que influenciam diretamente na dinâmica do seu lugar vivido. A hermenêutica é o quarto e último aporte filosófico que merece nossa atenção. A palavra hermenêutica deriva da mitologia grega de Hermes, deus da comunicação, encarregado de trazer mensagens do Olimpo. Posteriormente, esta tradição será incorporada pelos rabinos talmúdicos especialistas em interpretação de textos sagrados. Wilhelm Dilthey (1833-1911), filósofo alemão, é um dos principais autores que se dedicaram à hermenêutica, inclusive inspirando outro filósofo alemão, Edmund Husserl (1859-1938) (MELLO, 1991).


24 Inicialmente este ramo filosófico desempenhava o papel de tradução e decodificação dos textos bíblicos, porém a partir do século XIX revelou-se como uma importante alternativa às ciências empírico-analíticas. Isto ocorre pois

as

ciências

sociais

positivistas

buscam

explicar

os fenômenos

investigados, ao passo que a hermenêutica empenha-se em compreendê-los. Embasado na idéia de que existe uma diferença crucial entre objetos que se podem compreender e aqueles que só podem ser estudados externamente, Dilthey propõe uma cisão entre ciências naturais e ciências culturais. Esta concepção está diretamente influenciada pela ideologia alemã hegeliana em que apenas os objetos potenciais de nosso entendimento são aqueles de expressão do espírito universal. Assim, as ciências culturais caracterizam-se por colocar o sujeito em contato com o objeto através da experiência sem restrições (UNWIN, 1995). Considerar a experiência externa da realidade frente a simples objetivização do positivismo demonstra a diferença das concepções de ciência. A hermenêutica supõe uma compreensão por parte do ser vivo enquanto que o positivismo lógico se ocupa de explicar a realidade como tal independente da influência interpretativa do indivíduo. Diversos

autores

que

trabalham

diretamente

com

a

geografia

humanística utilizam o método hermenêutico com a justificativa de que este contribui para a interpretação e decodificação de componentes que caracterizam a relação de indivíduos ou grupos sociais com os seus espaços vividos. As quatro correntes filosóficas apresentadas possuem semelhanças entre si e características comuns que foram aproveitadas pela geografia


25 humanística. O traço primordial destas correntes perpassa pela valorização do indivíduo, e conseqüentemente, a aceitação da existência e predomínio dos aspectos subjetivos. Em todas estas linhas filosóficas o indivíduo e a subjetividade delimitam um campo de investigação, ou seja, uma visão de mundo centrada no pensamento e no conhecimento, referente ao sujeito. A concernente relevância do sujeito implica um ponto de vista antropocêntrico que muito se aproxima do humanismo em sua concepção clássica: a do ser humano que estima sua existência em detrimento dos objetos que o cerca (HOLZER, 1992).

1.4- O conceito de lugar como palco privilegiado da experiência vivida As referências filosóficas utilizadas pelos humanistas para compor um novo panorama da ciência geográfica necessitava de uma categoria espacial que pudesse corresponder adequadamente às características subjetivas e antropocêntricas de seus estudos. Nesta conjuntura, a escolha do conceito de Lugar ocorre por este apresentar-se intrinsecamente ligado à dinâmica do cotidiano e do espaço vivido. No interior do coletivo humanista, o referido conceito foi produzido com base nos princípios fenomenológicos referentes à noção de mundo vivido (Lebenswelt) e de ser-no-mundo. Buttimer (1985b) define a noção de mundo vivido como conjunto de fatos e valores que constitui a experiência cotidiana de cada pessoa. Já a idéia de ser-no-mundo, deriva do princípio fenomenológico de intencionalidade, que prega o fim da dicotomia sujeito-objeto para o alcance de uma experiência total (MELLO, 1991; HOLZER, 1997a).


26 Fundamentado nestes princípios fenomenológicos torna-se evidente que os conceitos de espaço e lugar são construídos a partir da experiência. Experiência, neste contexto, pode ser caracterizada como “as diferentes maneiras através das quais uma pessoa conhece e constrói a realidade” (TUAN, 1983, p. 9). Desta forma, experienciar significa aprender, conhecendo e construindo a realidade através do sentimento e do pensamento. O ato de locomover-se faz o indivíduo experienciar diretamente o espaço e seus atributos. O movimento e o dinamismo proporcionados pelo deslocamento denotam ao espaço uma sensação de liberdade. Utilizando outras palavras, o espaço implica movimento, liberdade e descoberta através da experiência. Da mesma forma que o mesmo simboliza abertura e liberdade, também expressa exposição e vulnerabilidade. “Ser aberto e livre é estar exposto e vulnerável” (TUAN, 1983, p. 61). Neste turbilhão, o lugar caracterizase como espaço fechado e, portanto, seguro. Em relação ao espaço, o lugar materializa-se como um centro calmo de valores estabelecidos. A transformação do espaço em lugar acontece à medida que aquele alcança definição e significado. A significação e o reconhecimento do lugar ocorrem quando realizamos uma pausa no movimento. A pausa permite que uma localidade se torne um centro de reconhecido préstimo, ou seja, enquanto o espaço expressa sua liberdade através do movimento, o lugar representa a interrupção, a diferenciação de uma determinada área em relação ao restante da superfície terrestre. Assim, o conceito de lugar apresenta-se como uma localidade distinta e recortada pelos sentimentos, valores e idéias atribuídas pelo indivíduo que o transforma em um lar, ou lugar íntimo. Contribuindo com o citado, Tuan (1983) decodifica o lar como uma complexa rede de significados e


27 emoções que se traduzem em laços que unem os homens ao seu ambiente de proteção e convivência. Mello (2000), também apoiado em Tuan (1985), alerta que os lugares humanos variam grandemente quanto à escala. A casa, o bairro, a cidade, a nação e até mesmo o planeta Terra pode vir a ser conceituado como lugar pelos valores emblemáticos atribuídos pela experiência direta ou através do meio simbólico da arte, da educação, da política e das preocupações ecológicas. A partir do sentido que o conceito de lugar adquire na corrente humanista, podemos resumir a geografia humanística como a ciência do mundo vivido, um mundo traduzido por um tipo de superfície topológica estruturada por pontos específicos, cada um dos quais marcados pela intenção humana, pelo valor e pela memória. O conceito de lugar, desprestigiado pelo neopositivismo, coopera para a revalorização dos estudos locais, assim como os regionais, com o enfoque voltado para a experiência cotidiana de indivíduos ou grupos/classes sociais (BALLESTEROS, 1992).

1.5- A relevância das fontes poéticas para a Geografia Humanística Com a revalorização dos aspectos humanos promovida pela geografia humanística podemos atestar uma retomada da utilização de fontes literárias e outras formas de arte nas investigações geográficas. O coletivo humanista buscava, desta maneira, conciliar os aspectos objetivos e subjetivos da complexidade humana em relação ao ambiente para a compreensão plena da realidade. Contudo, vale salientar, que o emprego de fontes poéticas em trabalhos geográficos ocorre desde a consolidação da geografia como disciplina. Brosseau (2007a) indica que o interesse pela poesia e pela literatura


28 de ficção podem ser encontrados nos escritos de Vidal de la Blache ainda no início do último século, porém sem a ambição de promover “a literatura como um novo campo de pesquisa para a geografia, e sim de testemunhos que conseguiram despertar este tipo de interesse” (p. 18). O estabelecimento da pertinência destas fontes para a geografia ocorrerá posteriormente, em estudos como o de Wright (1947). Nesta produção acadêmica, o autor menciona que a subjetividade tem o propósito de realçar os sentidos, originando clareza ao texto e dotando a geografia de um traço artístico. Assim sendo, Wright propõe que os geógrafos não devam fazer uso apenas da sua imaginação geográfica, mas utilizar também a de outros que o fazem com sensibilidade. Estes outros compõem, segundo o autor, a geografia informal de contribuições não científicas (livros, ficção, pinturas) e as concepções geograficamente subjetivas do mundo presentes na mente das pessoas comuns. Dardel (1990 [1952]) comunga com tais idéias ao apontar que a geografia exige uma atitude que alia o rigor da ciência a observação pessoal e poética, aquilo que denominou geograficidade. O autor enquadra a geografia como instância entre o conhecimento e a existência, já que o mundo científico oscila entre um pensamento ancorado na realidade concreta (local e momentâneo) e outro ancorado no real (abstrato e universal), o que o faz concluir que a ciência não se alimenta somente da realidade, mas também da possibilidade (HOLZER, 2001). Apesar destas contribuições anteriores, somente com o estabelecimento da geografia humanística na década de 1970, que a poesia e a arte servirão de fonte preciosa, capaz de avaliar a originalidade e a personalidade dos lugares (sense of place), evocando de maneira direta a fenomenologia (BROSSEAU,


29 2007a). Neste sentido, Brosseau (2007a), citando Pocock (1984), confirma o exposto ao apontar que tanto a literatura quanto as artes são muito úteis para o geógrafo humanista, como fontes de informação e para melhor compreensão do desenvolvimento ou da aparição de nossa sensibilidade no que diz respeito ao meio ambiente; além disso, elas nos ajudam a colocar ou a confirmar nossas hipóteses de pesquisa (p. 140).

A rica contribuição da literatura aos estudos humanistas em geografia não afasta alguns percalços que podem advir da articulação entre a linguagem científica e a linguagem poética. Brosseau (2007b) avisa que a geografia e a literatura não são vasos comunicantes, a linguagem do romance não pode ser utilizada pelas ciências humanas sem deformação ou simplificação. Desse modo devemos estabelecer um padrão dialógico entre ambos para reconhecer o outro enquanto outro, isto é, na recusa de transformá-lo em objeto. No interior desta relação o outro deve permanecer como sujeito. A música, assim como outras manifestações artísticas, possui o poder e a capacidade de conferir valor e significado a determinados lugares. Através de suas composições, músicos conseguem transmitir uma série de mensagens que traduzem sua sensibilidade e percepção da realidade que o cerca. Sobre isto, Ress (1978) afirma que os artistas assim o fazem por não separar o ambiente perceptivo do ambiente conceitual, ou seja, estes diferenciam o espaço físico, do lugar com o qual se identificam espiritualmente. Em outros termos, os poetas enriquecem algumas extensões geográficas com seus sentimentos, convertendo desse modo espaço em lugar. Holzer (1992), com base em Meinig (1971), corroborando tal assertiva, depõe que a imaginação é responsável pela aproximação do artista com o sabor pleno do lugar. Ocupando posição de destaque no interior da música popular brasileira, o samba tem desde a sua gênese uma rica contribuição a outorgar aos estudos


30 geográficos. Isto ocorre por este ter sido forjado por negros habitantes da zona periférica do centro da cidade do Rio de Janeiro nas primeiras décadas do século XX, que evidenciavam seu cotidiano e visão de mundo através de suas composições. Sobre isto Sodré (1998) afirma que as letras do samba tradicional contêm um discurso transitivo. Neste caso, o texto verbal das composições não se restringe a falar sobre a existência social (discurso intransitivo). Pelo contrário, fala a existência, na medida em que a linguagem aparece como um meio de trabalho direto. Nas letras de samba de gente como Wilson Batista e Geraldo Pereira (dois dos mais importantes sambistas dos anos 40) e outros de idêntica posição cultural, o que se diz é o que se vive, o que se faz. Não se entenda com isto que haja uma correspondência biunívoca entre o sentido do texto e as ações na vida real, mas que as palavras têm no samba tradicional uma operacionalidade com relação ao mundo, seja na insinuação de uma filosofia da prática cotidiana, seja no comentário social, seja na exaltação de fatos imaginários, porém inteligíveis no universo do autor e do ouvinte (p. 45).

Devido a esta transitividade discursiva, a letra de samba ressalta os aspectos verdadeiros do português falado pelos brasileiros, geralmente negligenciados pelo texto escrito produzido pelas instituições oficiais. Em outra passagem Sodré (1998) sentencia que a transitividade se afirma na capacidade da canção negra de celebrar os sentimentos vividos, as convicções, as emoções, os sofrimentos reais de amplos setores do povo, sem qualquer distanciamento intelectualista. Nesse tipo de letra, não há categorização nem análise (p. 45-46).

Visando ilustrar esta assertiva, podemos salientar a canção Não tem tradução (1933), de Noel Rosa, que alude a origem popular do samba. Senão vejamos: Essa gente hoje em dia Que tem a mania Da exibição Não se lembra que o samba Não tem tradução No idioma francês. Tudo aquilo que o malandro pronuncia,


31 Com voz macia, É brasileiro, já passou de português.

De acordo com os argumentos apresentados, constatamos que a música popular brasileira se configura em um privilegiado campo de análise para a geografia humanística, subcampo este que considera os aspectos subjetivos e antropocêntricos dos diversos grupamentos humanos como parte indispensável de suas investigações. No capítulo que se segue procuraremos revelar as condições histórico-geográficas que possibilitaram o surgimento do samba e como este gênero musical identifica e particulariza, pelo menos nos seus passos iniciais, um determinado grupo social.


32

CAPÍTULO 2 - DA CIDADE NOVA AO ESTÁCIO: A CRIAÇÃO E RECRIAÇÃO DO SAMBA MODERNO O samba surge como gênero musical no seio da comunidade negra e baiana na segunda década do século XX. Contudo, os fenômenos históricogeográficos que permitem o nascimento da maior expressão cultural brasileira têm seu início ainda no século XIX com a chegada constante de negros egressos da África, assim como de outras partes do país, ao Rio de Janeiro. Por conta disto, faz-se pertinente evidenciar os aspectos político-econômicos que resultaram na convergência de escravos para a então capital colonial do Reino, e posteriormente, imperial. No início do século XX, a Reforma Passos transformará sensivelmente a dinâmica da então capital federal visando a inserção do Brasil no circuito capitalista internacional. Tal reforma terá impacto sobre todos os estratos sociais da população carioca. O nascente espaço empresarial do Rio de Janeiro deslocará parte expressiva da comunidade negra para os subúrbios, para as favelas e para a área periférica do centro da cidade. Em um destes bairros periféricos, a Cidade Nova, vai proporcionar os elementos necessários para o surgimento do samba moderno. Veremos como o samba resulta de uma série de influências musicais, muitas delas, ainda do século XIX. A recriação do samba ocorrerá no fim da década de 1920 com os malandros do Estácio. Estes, incluídos em outro contexto social, promoverão mudanças melódicas e temáticas capazes de fundar um estilo novo. O samba do Estácio será então consagrado como o “verdadeiro samba”, inspirando todos os renomados compositores das gerações seguintes.


33 2.1- A influência dos baianos na comunidade negra do Rio de Janeiro do século XIX

Em meados do século XVIII, o Rio de Janeiro tornara-se um importante porto negreiro, quando chegam em terras cariocas cerca de dois milhões de escravos destinados ao trabalho na atividade mineradora. No século posterior, com o desembarque da Família Real no Brasil (1808) e o desenvolvimento da cultura cafeeira no sudeste, mantém-se o fluxo escravagista para a capital colonial. Muitos destes vinham do nordeste, sobretudo da Bahia, por conta do declínio acentuado da lavoura canavieira e a, conseqüente, liberalização de mão-de-obra escrava (LESSA, 2000). Com a expansão da produção cafeeira, observamos o declínio da escravatura urbana no Rio de Janeiro devido à transferência maciça de negros para as lavouras no vale do Paraíba e interior paulista (MOURA, 1995; LESSA, 2000). A população negra voltaria a crescer somente na metade do mesmo século em meio a proibição do tráfico negreiro (1851), que origina um intenso fluxo interprovincial de escravos, a decadência do café no vale do Paraíba e a constante chegada de baianos ávidos por novas oportunidades na capital do Império. Porém, somente após a abolição da escravatura (1888) que a cidade irá testemunhar uma massiva migração de negros recém-alforriados. Segundo Lessa (2000), a cidade era um ponto natural de atração de libertos. Com a atividade dos “capitães-de-mato” e o arbítrio dos grandes proprietários de terra, o interior brasileiro representava um risco iminente de reescravização. A inserção do negro no mercado de trabalho no Rio de Janeiro irá se revelar dramática pela escassa oferta de serviços com remuneração regular. Aliados a isto, o desconhecimento da linguagem proletária, os preconceitos


34 raciais, a competição de imigrantes, principalmente portugueses e italianos, e os conseqüentes impedimentos de concorrer pelas vagas na indústria, no comércio, no funcionalismo e nas obras públicas, fazem com que muitos sobrevivam de expedientes e das inúmeras formas de subemprego que margeiam as ocupações regulares. Desta forma a população pobre e livre buscará as brechas de sobrevivência no emprego doméstico qualificado, assim como prestando serviços para as famílias e para a logística urbana, como artesãos e ambulantes. Sobre isto, Moura (1995) aponta que as atividades reservadas a esta população restringiam-se a funções não ligadas à estrutura capitalista moderna (figura 2.1). Pedreiros, ferradores, alfaiates, sapateiros, barbeiros, ferreiros, marceneiros, lustradores, tecelões, pintores de parede ou tabuletas, torneadores, estofadores, serradores, tintureiros, costureiras, bordadeiras, lavadeiras, doceiras, arrumadeiras, artesãos, vendedores ambulantes de seu próprio trabalho ou de quinquilharias, de roletes de cana, bilhetes, refrescos, livretos (...), o faz-tudo, crianças com balas, biscoitos, se defendendo e ajudando as pequenas unidades familiares (p. 68).

Este

contexto

histórico

plasma

um

padrão

de

sobrevivência

culturalmente individualista em que homens livres e pobres competem entre si na esfera de produção. Entretanto, por conta da sua cidadania precária e incompleta, as famílias menos favorecidas desenvolvem sistemas de organização, gestão e cooperação nas zonas de moradia (LESSA, 2000). Exemplo contundente da formação destas redes de solidariedade na comunidade negra é a Pequena África do Rio de Janeiro. Esta porção espacial, que se estendia da zona do cais do porto até a Cidade Nova, conectado e integrado por cortiços degradados, forjou um padrão de cooperação e convivência capaz de construir códigos e laços identitários. Especialmente para a família negra, que fora totalmente desestruturada no período escravagista, os


35 elos de cooperação estabelecidos seriam fundamentais para abrandar o penoso período de adaptação na capital brasileira. Através do depoimento a seguir, Moura (1995) reforça o narrado. Tinha na pedra do Sal, lá na Saúde, ali que era uma casa de baianos e africanos, quando chegavam da África ou da Bahia. Da casa deles se via o navio, aí já se tinha o sinal de que vinha chegando gente lá. (...) A casa era no morro, era de um africano, ela chamava Tia Dadá e ele Tio Ossum, eles davam agasalho, davam tudo até a pessoa se aprumar. (...) ... a baianada veio de qualquer maneira, a gente veio com a nossa roupa de pobre, e cada um juntou sua trouxa: “vamos embora para o Rio porque lá no Rio a gente vai ganhar dinheiro, lá vai ser um lugar muito bom (Depoimento de Carmem Teixeira da Conceição) (p. 43).

Neste sentido, a Pequena África assume uma expressão como lar/lugar baseada na reunião de indivíduos provenientes das classes sociais mais baixas que formam redes de solidariedade, onde “as tradições dos negros teriam liderança e dariam coesão e coerência” (MOURA, 1995, p. 87). A concentração de homens livres e pobres numa determinada extensão da cidade justifica-se pela indispensabilidade de moradia na vizinhança do mercado de trabalho. Este fato produz a peculiaridade da configuração geográfico-social do centro da cidade do Rio de Janeiro, em que presenciamos a consagração do quarto de cortiço como unidade habitacional característica dos mais humildes. Chalhoub (1996) afirma que tais modalidades de moradia se popularizaram em meados do século XIX com a chegada de imigrantes portugueses e o afluxo dos negros libertos de todo o país. Sobre estas construções, Moura (1995) depõe (foto 2.1) Eram cortiços de construção ligeira, instalados no fundo de antigas construções, ou velhas casas senhoriais divididas em pequenos apartamentos, sem áreas de ventilação ou cozinha, casas de cômodos improvisadas em antigos prédios em decadência onde eram apertados novos moradores pressionados pela carência de moradia barata por que passava a cidade, aproveitada pelos proprietários e investidores imobiliários (p. 50).


36

Figura 2.1: Funções subalternas desempenhadas pelos negros: o vendedor de balas, o homem dos passarinhos e a negra lavadeira. Fonte: MOURA, 1995.

Foto 2.1: Cortiço no Rio de Janeiro. Fonte: MOURA, 1995.


37 A partir do descrito, Lessa (2000) alerta que o encortiçamento de várias localidades do Centro não ocorre por acaso. Existe um ciclo de formação: o pobre precisa estar próximo do mercado de subsistência, além da questão do fornecimento de água. As classes mais abastadas se afastam receosas da proliferação

de

doenças

e

dos

maus

hábitos

dos

mais

pobres.

Conseqüentemente, suas residências sofrem grande desvalorização o que as convertem em cortiços. O grupo baiano, em seus cortiços, construiu o espaço afro-brasileiro melhor estruturado da capital. Estes se concentraram no bairro da Saúde, mais precisamente nas vizinhanças da Pedra do Sal (atual morro da Conceição), ponto inicial da Pequena África. Os homens desempenhavam funções nas estivas devido a constante necessidade de trabalhadores braçais. Pela experiência em tarefas urbanas adquirida ainda em Salvador, os baianos rapidamente assumiram a liderança da comunidade negra na cidade. Muitos de seus membros exerceram notável influência no candomblé, nas irmandades, juntas de alforrias ou grupos festeiros. A reforma Passos, na aurora do século vinte, vai transformar a vida destas pessoas significativamente. Mesmo sendo expulsas de suas antigas habitações, consideradas impróprias para a nova visão cosmopolita das elites, os negros baianos vão se reunir em outra parte da cidade que testemunhará o nascimento do samba como gênero musical.

2.2- Transformações sócio-espaciais imputadas pela Reforma Passos. A cidade do Rio de Janeiro, então Distrito Federal da República dos Estados Unidos do Brasil, passaria no alvorecer do século XX por uma série de


38 transformações urbanísticas com o intuito de adequar sua forma urbana às necessidades reais de produção, reprodução e acumulação de capital. Sobre isto, Abreu (2006) destaca que a inserção brasileira nos circuitos do capitalismo internacional exigia um rearranjo sócio-espacial, devendo iniciar-se pelo espaço urbano de sua capital, de acordo com o novo momento de organização social. Desde os tempos da Proclamação da República (1889), o marechal Floriano Peixoto desejava, como ato simbólico de afirmação republicana, a construção de uma nova capital no Brasil central, desligando-se por conseguinte do passado imperial brasileiro. Também podemos entender o anseio de criar uma capital asséptica e hierarquizada que urbanisticamente marcasse os claros limites de separação da massa trabalhadora desqualificada, o que acabou sendo possível graças a sucessivas reformas urbanas e mais distantemente no tempo na futurista, colossal e segregacionista Brasília (1960). Impossibilitado completamente pelos recursos técnicos, restaria a mensagem republicana de que o Brasil deveria ser construído a partir de um marco zero. A República Velha, devidamente balizada pelo pacto oligárquico que comandaria o país nos próximos anos, necessitava de um projeto-símbolo que pudesse fazer jus à recente bandeira que ostentava os dizeres positivistas “Ordem

e

Progresso”.

Segundo

os

republicanos,

a

longevidade

do

escravagismo, findado apenas no último quartel do século XIX, a opção pela monarquia após a independência, caminho somente trilhado pelos brasileiros em toda a América, e a ausência de traços democráticos gerada pela centralização imperial, condenaram o Brasil a um imenso atraso histórico. Isto acarretava nas lideranças nacionais, certo complexo de inferioridade (LESSA,


39 2000). Sobre o exposto, Lopes (1992) argumenta que a estratégia básica do colonialismo é destruir a auto-estima do colonizado, incutindo nele um complexo de inferioridade, restando ao oprimido reproduzir o modelo ditado pelo opressor. Não é obra do acaso que a reforma empreendida no Rio de Janeiro no início do século XX teria como diretriz as transformações urbanísticas de Paris executadas pelo Barão de Haussmann na segunda metade do século XIX. O ingresso brasileiro na modernização seria construído com o progresso, sob o comando da Razão e da Ciência. A porta de entrada da modernidade brasileira seria o Rio, desde que modificado radicalmente nos seus aspectos físicos, urbanísticos e arquitetônicos. Nas palavras do presidente Rodrigues Alves (1902-1906) “Aos interesses da imigração, dos quais depende em máxima parte o nosso desenvolvimento econômico, prende-se a necessidade de saneamento desta capital. (...) A capital da República não pode continuar sendo apontada como sede de vida difícil, quando tem fartos elementos para constituir o mais notável centro de atração de braços, de atividades e de capitais nesta parte do mundo” (apud LESSA, 2000, p. 191/192).

Podemos reconhecer no discurso presidencial a clara preocupação com a mudança de imagem da cidade, o que não obrigatoriamente estaria vinculada a melhoria de vida da população. Desta forma, mudar a imagem da cidade significava sepultar a fama mundial do Rio de Janeiro de cidade pestilenta. A higiene oficial seria, deste modo, a matriz da regulação urbana. Desde meados do século anterior que médicos higienistas preconizavam o aterramento dos pântanos, o desmonte de morros e alterações substantivas das condições assépticas das habitações insalubres. De acordo com este discurso, a desordem urbana, além de causar degeneração física, contribuía


40 decisivamente para a degradação moral das classes populares. Por este motivo, Rodrigues Alves apoiou diretamente a campanha sanitarista de Oswaldo Cruz em comunhão com a modernização traçada para a cidade do Rio de Janeiro (BENCHIMOL, 1993; LESSA, 2000; ABREU, 2006). A transformação urbana em curso objetivava diluir as contradições entre o que era a capital federal e o que pretendia ser. A cidade precisava representar um espaço que simbolizasse concretamente a relevância do país como principal produtor de café do mundo e que expressasse os anseios e ambições cosmopolitas das elites econômica e política brasileiras (ABREU, 2006). Assim sendo, o crescimento da cidade em direção à zona sul pelas classes mais privilegiadas, a sofisticação tecnológica do bonde elétrico – dinamizando as áreas urbanizadas – e o prestígio crescente do Rio de Janeiro no cenário internacional não condiziam com a estrutura organizacional colonial, com ruas estreitas e imundas, que concentravam tanto atividades oficiais e nobres quanto carroças, animais e cortiços. Um dos responsáveis pelo antigo plano (1875) da Comissão de Melhoramentos do Rio de Janeiro, Francisco Pereira Passos foi escolhido pelo presidente Rodrigues Alves para o cargo de Prefeito do Distrito Federal. Em apenas quatro anos (1903-1906), o Prefeito Passos modernizou o porto, com recursos do Governo Federal, reestruturou a malha urbana e promoveu o embelezamento da cidade provocando mudanças significativas nas atividades econômicas desenvolvidas e no cotidiano de todas as classes sociais da população carioca (BENCHIMOL, 1993; LESSA, 2000; ABREU, 2006). O anacronismo do porto do Rio de Janeiro, que remontava o período colonial, não fazia jus à centralidade logística nacional exercida pela cidade. A


41 hegemonia portuária e do comércio atacadista, o predomínio das linhas de navegação da costa brasileira e das ferrovias para o interior mineiro, além de possuir o melhor suprimento de energia elétrica do país, qualificavam o Rio como a localização natural das atividades industriais. Neste cenário, a modernização portuária tornou-se um dos pilares desta reforma. A construção do novo porto prolongou-se da ponta do Arsenal, próximo das instalações da Marinha até a projeção da rua São Cristóvão. A obra finalizava-se na saída do canal do Mangue. Equipado com 90 guindastes, 18 armazéns internos, 96 externos, com 25 metros de plataforma e de 10 metros de profundidade, o Rio alcançou, após a inauguração, o décimo quinto lugar em movimentação de cargas, perdendo nas Américas apenas para Nova Iorque e Buenos Aires (LESSA, 2000). A malha viária da área central foi inteiramente reformulada para organizar as atividades econômicas desempenhadas e facilitar o deslocamento de pessoas. Conectou-se a Lapa com o Estácio através da abertura dos logradouros Salvador de Sá, Mem de Sá e Frei Caneca. Uma série de obras promoveu o alargamento das principais artérias do centro da cidade, entre elas Estácio de Sá, Frei Caneca, Uruguaiana, Carioca e Visconde de Rio Branco. Abreu (2006) alerta que as demolições provenientes dos alargamentos e da abertura de novas vias excediam a necessidade das obras. O objetivo da Prefeitura era equipar os terrenos ao redor destas vias com funções urbanas nobres. A construção da Avenida Beira-Mar (foto 2.2), que articula a antiga praia de Santa Luzia passando pela Praia do Flamengo, chegando até a Praia de Botafogo com término no Pavilhão do Mourisco, beneficia as classes mais


42 abastadas da cidade, que neste período, procuravam bairros da zona sul como novo local de moradia. Pereira Passos se preocupou, sobretudo, com o embelezamento do núcleo urbano. A Praça XV, o Largo da Glória, o Largo do Machado, a Praça Onze de Junho, o Passeio Público e a Praça Tiradentes tiveram seus jardins aprimorados ou receberam estátuas pomposas. O grande projeto desta série de intervenções, contudo, foi a construção da gigantesca Avenida Central (foto 2.3). Para a sua execução foram demolidos cerca de setecentos prédios ocupados sobretudo pela população proletária e pelo pequeno comércio. A nova avenida articulara-se, pela Praça Mauá, com a avenida Rodrigues Alves, construída no mesmo período sobre o mar aterrado e paralela ao porto modernizado. Na outra extremidade se conecta à avenida Beira-Mar. Em seu quadrilátero final a República Velha concentrou prédios públicos que marcariam simbolicamente o novo século na cidade e que apagaria enfim o passado colonial e imperial. São eles, o Palácio Monroe (foto 2.4), posteriormente demolido, o edifício do Supremo Tribunal Federal, o Museu Nacional de Belas Artes, Teatro Municipal (foto 2.5) e a Biblioteca Nacional. Aglutinam-se rapidamente neste marcante logradouro atividades condizentes com o seu valor imobiliário, como sofisticadas lojas comerciais, cinemas, rede de hotéis, clubes e grandes companhias (BENCHIMOL, 1993; LESSA, 2000; ABREU, 2006).


43

Foto 2.2: Avenida Beira-Mar. Fonte: www.ofca.com.br.

Foto 2.3: Avenida Central (atual Rio Branco) Fonte: www.almacarioca.com.br.


44

Foto 2.4: Palรกcio Monroe Fonte: www.senado.gov.br/historia/imagens/monroe_est.jpg.

Foto 2.5: Teatro Municipal do Rio de Janeiro Fonte: zenello.files.wordpress.com.


45 As habitações coletivas, também chamadas de cortiços, não foram alvo da reforma urbana em destaque apenas para a abertura ou alargamento de vias de circulação. A questão higiênica preocupava as autoridades públicas desde os tempos imperiais em razão das epidemias que assolavam a cidade periodicamente. Desta maneira, a questão da insalubridade foi vinculada diretamente à pobreza. Um problema que em princípio era considerado das classes de rendas inferiores ganhou contornos de interesse público. As medidas impeditivas contra os cortiços começam em 1876 com a proibição deste tipo de moradia na freguesia do Livramento, e em 1892 na freguesia de Santo Antônio. Um ano após, o prefeito Barata Ribeiro removeu a maior casa de cômodos da cidade e seus tenebrosos adendos habitados por mais de duas mil pessoas e conhecido popularmente como Cabeça de Porco. Já em 1899 os cortiços são desautorizados em toda a orla marítima (ABREU, 2006). As graves crises epidêmicas de febre amarela entre 1889 e 1891 fazem com que o serviço de Saneamento testemunhe os primeiros debates sobre a questão sanitária. Em 1900 um decreto público proíbe a manutenção das habitações populares (cortiços) por “serem consideradas prejudiciais à saúde pública, incidindo, portanto, nos preceitos sanitários (...)” (MOURA, 1995, p. 53). Os cortiços e as casas de cômodo não eram apenas locais de moradia para as classes populares, mas, também, pequenas unidades produtivas que serviam de sustento para uma parte significativa de seus moradores. As lavadeiras, costureiras, doceiras e confeiteiras utilizavam este espaço para a realização dos seus trabalhos. O arrasamento dos cortiços nas áreas


46 estratégicas do Rio de Janeiro além de expulsar os pobres para locais indefinidos, também desarticulou estas unidades produtivas. A intervenção cirúrgica de Pereira Passos intensificou e consagrou este processo, que ultrapassa os limites de uma mera reforma urbana. Existe um esforço oficial de esconder a população pobre, ou seja, promover um saneamento social segregando sócio-espacialmente os menos favorecidos. Pode ser citado como exemplo do relatado, o surgimento de uma vasta legislação que demanda documentos comprobatórios, atestados de visitas dos fiscais e regras de salubridade, formando um arcabouço burocrático que atinge as profissões autônomas e do pequeno comércio (MOURA, 1995). Nestas circunstâncias, Lessa (2000) salienta a proibição de ambulantes e vendedores de bilhetes de loteria, bem como a remoção de quiosques (foto 2.6) visando impedir a aglomeração inconveniente nas calçadas novas e limpas. Isto posto, o renomado economista sublinha: O circuito visível do carioca neoparisiense seria: trabalho-calçadabulevar-residência; dispensaria na rua qualquer contato visual com o pobre. Os contatos seriam realizados no interior da residência, com os empregados domésticos, ou no portão secundário com os fornecedores e prestadores de serviços (p. 198).

A modernização do porto afetou diretamente a colônia de negros baianos no bairro da Saúde. Com a destruição de antigas casas próximas ao cais, inclusive para a construção da avenida Rodrigues Alves, muitos negros sobem a antiga rua do Sabão, que começava no porto e se estendia até o Campo de Santana, alcançando a Cidade Nova. Neste local os baianos espacialmente segregados vão se reagrupar, apinhando e dividindo o espaço com os antigos moradores. A Praça Onze de Junho e as ruas do seu entorno,


47 como Visconde de Itaúna, Senador Eusébio, Santana e Marquês de Pombal serão as escolhidas (MOURA, 1995). As medidas adotadas pela Reforma Passos tentaram reproduzir, no Rio de Janeiro, o modelo de segmentação social característica da maioria das metrópoles. Foram desalojadas, sem nenhuma alternativa respaldada pelo Estado, entre 14 e 20 mil pessoas. Inumar os cortiços e expulsar os pobres da área central para os subúrbios através dos trens eram os objetivos primordiais. Apesar do comprovado adensamento dos subúrbios no período (ABREU, 2006), muitos procuraram a periferia do centro, como a comunidade negra baiana, e outros ainda improvisaram uma nova forma de habitação, as favelas. Tal procedimento se devia à proximidade do trabalho formal ou informal, mormente na Área Central e o valor extorsivo do veículo bonde até então. Resumidamente, Abreu (2006) aponta três aspectos relevantes da reforma Passos (figura 2.2). Em primeiro lugar, esta intervenção urbanística exemplifica como novos momentos da organização social, no caso a inserção do país nos circuitos da economia mundial, determinam novas funções às cidades, muitas delas somente possíveis com a eliminação de formas antigas e antitéticas ao novo momento. Em segundo lugar, representa a atuação maciça do Estado sobre o espaço urbano da capital, reorganizando-a sob bases ideológicas e econômicas modernas, que repelem a presença dos pobres na área mais valorizada da cidade. E, finalmente, este período serve de exemplo para evidenciar que a tentativa de resolver determinadas contradições do espaço geográfico origina outras incoerências para nova organização social. A ocupação dos morros e o adensamento dos bairros periféricos da área central são exemplos marcantes das contradições geradas pela reforma.


48

ABREU P. 66.

Foto 2.6: Quiosques foram removidos pela reforma Passos. Fonte: MOURA, 1995.

Figura 2.2: Pereira Passos embeleza a cidade do Rio de Janeiro. Fonte: ABREU, 2006.


49 2.3- Os Antecessores musicais do samba Antes de acompanharmos o processo de construção do samba como gênero musical, arquitetado pela comunidade baiana nos arredores da Praça Onze, nos deteremos neste momento a investigar o panorama musical da cidade do Rio de Janeiro no século XIX e início do século XX. Desta maneira, este segmento pretende demonstrar como os estilos musicais populares anteriores ao samba foram fundamentais para o surgimento deste. O período colonial brasileiro possuía uma produção musical restrita ao hinário religioso católico e aos toques e marchas militares. Os escravos nacionalizavam as músicas africanas, contudo totalmente separados da elite branca. Somente nas primeiras décadas do século XIX, com a popularização do lundu, assistiremos a aceitação social por parte das elites de uma representação direta do universo afro-brasileiro. As primeiras menções à dança do lundu são encontradas em documentos históricos registrados por volta de 1780. Sandroni (2001), respaldado por outros autores, afirma que o lundu trata-se de uma dança afronegra trazida pelos escravos bantos vindos da Angola e do Congo. Esta dança era desempenhada pelos escravos com o objetivo de manter seu equilíbrio emocional diante de sua condição. A historiografia da música popular brasileira credita ao padre mulato Domingos Caldas Barbosa a difusão da modinha e do lundu-canção em Portugal, ainda no século XVIII, como gêneros musicais autenticamente brasileiros (TINHORÃO,1988; SODRÉ, 1998; VIANNA, 2004). Desconstruindo tal teoria, Sandroni (2001) assinala que a existência de modinha e lundu, como gêneros de canção, no Brasil do século XVIII não está documentada. Já em


50 Lisboa, existe farta documentação da modinha no final do mesmo século. Além disso, há testemunhos da ocorrência de dois tipos de modinhas em Portugal: as portuguesas e as brasileiras. Estas últimas não foram introduzidas por Caldas Barbosa, porém tiveram nele seu mais célebre representante. De maneira geral, as modinhas correspondem ao tipo idílico da poesia popular portuguesa característica do século XVIII, centrado nos assuntos do amor e nas desventuras ocasionadas por este sentimento (figura 2.3). Ela emprega referências arcádicas derivadas das árias italianas. A sua variante brasileira apresenta, no entanto, composições mais diversificadas. Para alguns, estas soavam joviais e sensuais. Todavia, para outros, a sensualidade contida nas canções tangia grosseira e vulgar. Melodicamente, a modinha brasileira diferencia-se da portuguesa pela sistematização das síncopes. Estas, nas palavras de Sodré (1998), constituem a ausência no compasso de marcação de um tempo (fraco) que repercute noutro mais forte. Esta ausência marca as manifestações musicais africanas e, conseqüentemente, as afro-brasileiras. Neste sentido, a modinha sincopada é diretamente associada com o Brasil, com o negro e com o popular. Com o passar dos anos, este gênero musical irá conceber o lundu-canção. A figura sincopada é de fato identificada com as tradições dos negros do Novo Mundo; as síncopes seriam traços rítmicos característicos da música popular e folclórica brasileira (SANDRONI, 2001, p. 47).

O surgimento do lundu-canção ocorrerá com o início da impressão musical no Brasil em 1834. Além da marcação sincopada e da alusão aberta ou velada do universo afro-brasileiro, o lundu é desprovido das lamúrias, dengos e sintonias sentimentais presentes nas modinhas. Pelo contrário, este gênero musical assumirá a comicidade como sua maior característica.


51 Esta comicidade, contida nos lundus, será responsável pela aceitação desta música afro-brasileira pelas classes dominantes. O lundu (...) é a primeira forma musical afro-negra que se dissemina por todas as classes brasileiras e se torna música “nacional”. É a porta aberta da sincopação característica (...) É a porta enfrestada do texto cantando sexualmente os amores desonestos [entre senhores e escravos], as mésalliances, e se especializa na louvação sobretudo da mulata (ANDRADE, 1944 apud SANDRONI, 2001, P. 53).

Anteriormente,

a

sociedade

brasileira

oferecia

grande

resistência

às

manifestações artísticas do negro, fazendo com que estas permanecessem totalmente segregadas das manifestações culturais dos brancos. O lundu vence a impermeabilidade da sociedade branca por apresentar o universo negro em uma roupagem cômica, ou seja, encobrindo o árduo cotidiano do trabalho escravo ao exibí-lo como um ser que dança e faz rir seus senhores. Senão vejamos: Chegar aos pés de Iaiá Ouvir chamar preguiçoso Levar um bofetãozinho É bem bom, é bem gostoso (Caldas Barbosa, Viola de Lereno, vol. II apud Sandroni, 2001, p. 45)

Menina, o que você tem Que comigo se enfadou Será porque seu negrinho A seus pés não se curvou? (DODERER, 1984 apud Sandroni, 2001, p. 51)

Iaiá não mate seu negro Que bem caro lhe custou Ele veste camisa gomada Meia lavada, chapéu de castor. (Anônimo apud LOPES, 1992, p. 45).


52 Os lundus também aludiam ao amor. Entretanto com uma conotação mais sexual do que romântica. O sentimentalismo cedia lugar ao humor de duplo sentido: O diabo desta chave Que sempre me anda torta Por mais jeitos que lhe dê Nunca posso abrir a porta Tome lá esta chave, Endireite sinhá... Você é quem sabe O jeito que lhe dá. (Anônimo apud LOPES, 1992, p. 43).

Esta noite, oh céus, que dita, Com meu benzinho sonhei... Eu passava pela rua, Ela chamou-me, eu entrei... Deu-me um certo guisadinho Que comi muito e gostei Do ardor das pimentinhas Nunca mais me esquecerei. (DODERER, 1984 apud SANDRONI, 2001, p. 52)

A exaltação à mulata, também, se fazia presente, sempre com tom cômico e expressando sensualidade: A renda da tua saia Vale bem cinco mil réis... Arrasta, mulata, a saia, Que eu te dou cinco... e são dez! Isto é bom... isto é bom... Isto é bom que dói! Levante a saia, mulata, Não deixe a renda arrastar; Que a renda custa dinheiro, Dinheiro custa a ganhar. (Anônimo apud LOPES, 1992, p. 44).


53 Podemos perceber que Caldas Barbosa, através das suas modinhas brasileiras, colaborou com o surgimento do lundu-canção, cujas primeiras partituras remontam a 1834. No final do século, o lundu assumiria a forma de cançoneta cômica no teatro de revista, perdendo seus status de música tipicamente nacional para o maxixe. O maxixe surge como dança popular urbana na segunda metade do século XIX no Rio de Janeiro. Seu advento ocorre no bairro da Cidade Nova, em 1872, o bairro mais populoso da cidade e que funcionava como fronteira entre o Rio de Janeiro civilizado e o subalterno. Seus bares e gafieiras (figura 2.4) serão palcos privilegiados de encontros musicais, onde surgirão novos gêneros, inicialmente marginalizados pela hipocrisia e moralismo das elites porém que iriam contagiar toda a cidade por sua nascente e pulsante vida noturna. O maxixe seria um destes produtos (MOURA, 1995). Há grande diferença entre a organização global da dança do lundu e do maxixe. No primeiro, todos os participantes, incluindo os músicos, formam uma roda e desempenham papel ativo, com palmas e cantos, enquanto a dança propriamente dita desenvolve-se por um par de cada vez. No segundo, todos os pares dançam ao mesmo tempo, a música é externa à dança, executada por uma banda. Neste ambiente, os dançarinos não cantam pois a maior parte do repertório é instrumental. Logo, a roda é substituída pelo salão de baile (SANDRONI, 2001). A dessemelhança marcante, contudo, dos dois gêneros musicais em tela diz respeito à disposição do par: o maxixe é uma dança de par enlaçado (figura 2.5), o lundu de par separado. As danças de par enlaçado surgiram no Brasil na década de 1840, com a chegada da valsa e da polca vindas da Europa.


54 Como novidades européias, foram adotadas rapidamente pelas famílias abastadas das grandes cidades, no interior, entretanto, obteve pouca adesão. O maxixe figurou como a primeira dança de par enlaçado popular que fez sucesso no país. Isto ocorre quando o povo, influenciado pela popularização da polca, passa a dançar o lundu de forma enlaçada. Assim sendo, percebemos que o maxixe descende diretamente do lundu. O maxixe... deriva-se do lundu... .Os foliões, [adotaram o lundu] dançando-o porém com uma liberdade muito maior de movimentos, a fim de que os pares, inteiramente unidos, pudessem dar maior expansão ao seu sensualismo (SANDRONI, 2001 p. 66).

A influência da polca ocorre justamente por esta ser uma dança de par enlaçado que obtém popularidade quando lançada pelas companhias teatrais da Praça Tiradentes e suas partituras são comercializadas nas lojas de música do Centro. Sua semelhança na divisão rítmica com o lundu permite uma fusão nacional e sugere uma forma de dançar que teria desdobramento no maxixe. O surgimento da designação polca-lundu em partituras para piano editadas a partir de 1865 confirma o exposto. O primeiro maxixe com a designação de gênero musical ocorre somente em 1897. Até então, a dança do maxixe acontecia ao som de músicas que ainda se chamavam polcas, lundus, tangos e todas as combinações destes nomes. Enfim, tudo que fosse escrito em compasso binário e estimulasse o requebrado dos dançarinos através do sincopado. Neste momento, vale ressaltar, que o tango mencionado acima se aplica, no século XIX, às manifestações afro-americanas. Na região platina, em Cuba e no México, o termo designava baile de negros, lugar onde se realizavam estes bailes e ao som do qual dançavam. No Brasil, o termo assumiu a mesma conotação dos vizinhos latino-americanos (SANDRONI, 2001).


55

Figura 2.5: A danรงa do maxixe. Fonte: www.geocities.com.

Figura 2.3: O cantador de modinhas. Fonte: MOURA, 1995.

Figura 2.4: Cena de Gafieira. Fonte: www.rio.rj.gov.br/rio_memorial.


56 Apesar dos estigmas e das proibições que sofre constantemente em nome da moral pública, o maxixe conquistará gradualmente a cidade. Após o sucesso do bailarino Duque em Paris, sofisticando seus passos elaborados e sensuais, tal gênero musical será consagrado como parte da cultura nacional (MOURA, 1995). E, assim ocorrerá, até ser definitivamente destronado pelo samba, gênero este inicialmente influenciado pelo maxixe. Mesmo se constituindo como gênero musical somente na segunda década do século XX, o termo samba já havia sido documentado no Brasil na primeira metade do século XIX. De acordo com a Enciclopédia da Música Brasileira,

tal

verbete

remete

ao

universo

afro-americano,

derivado

especificamente do quimbundo “semba”, que significa “umbigada”. A umbigada está registrada tanto no Brasil quanto na África como um gesto coreográfico em torno do qual se organizam algumas danças africanas (SODRÉ, 1998). Estas consistiam no seguinte: todos os participantes formam uma roda. Um deles se destaca e vai para o centro, onde dança individualmente até escolher um participante do sexo oposto para substituí-lo (os dois podem executar uma coreografia – de par separado – antes que o primeiro se reintegre ao círculo). Todos os participantes batem palmas e repetem um curto refrão, em resposta ao canto improvisado de um solista. O acompanhamento instrumental é assegurado por membranofones como o pandeiro, idiofones como o prato-e-faca e mais raramente por cordofones, em especial a viola. A umbigada é o gesto pelo qual um dançarino designa aquele que irá substituí-lo (SANDRONI, 2001, p. 85).

Sobre a associação entre dança e música nas manifestações negras, Sodré (1998) destaca que a música sincopada africana desencadeia a movimentação corporal, ou seja, a dança. Logo uma está diretamente associada à outra. De fato, tanto no jazz quanto no samba, atua de modo especial a síncopa, incitando o ouvinte a preencher o tempo vazio com a marcação corporal – palmas, meneios, balanços, dança. É o corpo que também falta – no apelo da síncopa. Sua força magnética, compulsiva mesmo, vem do impulso (provocado pelo vazio rítmico) de se completar a ausência do tempo com a dinâmica do movimento no espaço (p. 11).


57 A palavra batuque também era utilizada no Brasil para apontar genericamente os festejos africanos. Sandroni (2001), apoiando-se nas palavras de Tinhorão (1972), transcreve um registro impresso da palavra batuque no Brasil do século XVIII. Podemos perceber nesta transcrição a conotação depreciativa que o termo em destaque assume: “Não parece ser muito acerto em política o tolerar que pelas ruas e terreiros da cidade façam multidões de negros de um e outro sexo os seus batuques bárbaros a toque de muitos e horrorosos atabaques, dançando desonestamente e cantando canções gentílicas” (p. 85).

A primeira menção da palavra samba ocorre no jornal pernambucano O Carapuceiro, de tom satírico, em 1838. O autor frei Miguel do Sacramento Lopes Gama, afirma jocosamente que o “samba de almocreves” é tão agradável quanto a Semoranis, a Gaza-ladra, o Tancredi etc. de Rossini (SANDRONI, 2001, p. 86). Quatro anos mais tarde, o mesmo frei escrevera novamente para o jornal sobre o samba: Aqui pelo nosso mato Qu´estava então mui tatamba Não se sabia outra coisa Senão a dança do samba (CABRAL, 1996, p. 19). A referida quadrinha qualifica a “dança do samba” como diversão popular rural. Em outras palavras, o samba representaria o atraso rural do interior do país. Alguns outros escritores do período identificavam o samba como função dos negros e mestiços das províncias do nordeste do país, especialmente da Bahia. O termo em voga começa a ser identificado no Rio de Janeiro, a partir da década de 1870. Gradativamente tal verbete começa a se dissociar do seu significado original, ou seja, como algo dos negros, da Bahia ou da roça. Este substituirá os vocábulos “tango” e “maxixe” como sinônimos de canção popular.


58 Assim sendo, a aceitação do samba cresce em duas direções sincrônicas, folclórica e popular. Na primeira substitui o verbete “batuque” e, na segunda, o maxixe e o tango. No alvorecer do século XX, as festas das tias baianas irão transformar o samba em uma reunião de caráter íntimo, com comida, bebida, música e dança, cujos integrantes compartilharão valores e visões de mundo.

2.4- O surgimento do samba moderno na Pequena África do Rio de Janeiro A modernização da cidade implementada pelas reformas urbanísticas do prefeito Pereira Passos faz com que grande contingente de negros baianos migrasse para a Cidade Nova. Este bairro, cujo nome faz referência a uma nova área de ocupação periférica ao centro, por conta de diversos aterros sobre o Mangal de São Diogo, tem origem na chegada da Família Real ao Brasil (1808). Para facilitar os deslocamentos de D. João VI por terra em direção a Quinta de São Cristóvão foi estimulada a ocupação através do aterro chamado Aterro do Rei. Este processo teve continuidade com o Barão de Mauá em 1860, que aterrou o saco de São Diogo até a ponte dos marinheiros. Com o adensamento das classes populares nesta porção espacial, as elites iniciam seu processo de transferência para a zona sul da cidade, acarretando o encortiçamento das suas antigas moradias (LESSA, 2000). Convém destacar, que além dos baianos, outros grupos sociais também ocuparam as ruas da Cidade Nova, entre eles portugueses, espanhóis, africanos, judeus e italianos. A interpenetração de afro-brasileiros com migrantes inter-regionais e estrangeiros, promovida pela inserção precária da população livre e pobre à produção, ao consumo e a cidadania, fecunda uma série de regras paralelas e


59 sincretismos. Desta forma, estes indivíduos de diferentes raças e culturas colaboram para a formação de uma protocultura popular carioca resultante desta intensa experiência sócio-cultural, mesmo que subalternizada e quase omitida pelos meios de comunicação da época. Aliás, a dita submissão origina redes cruzadas de solidariedade fundamentais para a preservação das estratégias de sobrevivência (MOURA, 1995; LESSA, 2000). No interior do universo da cultura popular, síntese de variados códigos culturais, os negros assumem o comando da articulação política e social através da influência dos centros religiosos e das organizações festeiras. Os grandes esteios da comunidade negra eram as tias baianas, responsáveis pela nova geração que já nascia carioca, pelas frentes de trabalho comunal e pela religião. Sobre isto Moura (1995) declara: É fácil perceber a centralidade dessas mulheres conterrâneas, mantenedoras das festas realizadas em homenagem aos santos que depois se profanizavam em encontros de música e conversa, onde se expandia a afetividade do corpo, atualizando o prazer e a funcionalidade da coesão (p. 93).

Desta maneira, essas negras, que ganham respeito por suas posições centrais no terreiro e por sua participação ativa nas atividades de grupo, garantem a permanência das tradições africanas. Tia Perciliana do Santo Amaro, mãe de João Machado Guedes (João da Baiana), Tia Bebiana, Tia Perpétua, Tia Veridiana, Tia Amélia, mãe de Ernesto dos Santos (Donga), Sadata da Pedra do Sal, Tia Gracinda e Tia Mônica são algumas das responsáveis pela manutenção e recriação das manifestações afro-brasileiras (MOURA, 1995). Dentre todas as lideranças negras que exercem influência sobre a comunidade, a mais citada e reconhecida por estudiosos e depoentes desta época responde pelo nome de Hilária Batista de Almeida, conhecida como Tia


60 Ciata. Nascida em Salvador em 1854, no dia de Santo Hilário, é feita no santo ainda adolescente. Chega ao Rio de Janeiro, em 1876, junto com sua filha Isabel, fruto de uma paixão ainda na Bahia. Dona de um espírito forte, grande talento para liderança e sólidos conhecimentos religiosos e culinários, Ciata começa a trabalhar em casa e vender doces e salgados na rua, primeiro na Sete de Setembro depois na Carioca, invariavelmente paramentada com roupas típicas de baiana (MOURA, 1995). O seu segundo casamento, com João Batista da Silva, não rendeu à Tia Ciata apenas quinze filhos, mas também o apadrinhamento necessário para as festas em sua casa. Isso se explica porque seu marido trabalhava no gabinete do chefe de polícia, de modo que o mesmo evitava as batidas policiais, constantes na época. Buci Moreira, grande sambista e neto da baiana, conta que o emprego do avô foi conseguido porque Ciata curou o Presidente da República Wenceslau Brás de uma infecção na perna. Como retribuição, aproveitando os conhecimentos adquiridos por João Batista em seus estudos inconclusos na Escola de Medicina na Bahia, o Presidente indicou seu nome para um posto de baixo escalão na Chefatura de polícia (MOURA, 1995). Esta cobertura social proporcionada pelo ofício de seu marido revelou-se decisiva para a realização dos acontecimentos históricos que iriam se suceder na residência da baiana. Em entrevista a Cabral (1996), Donga relata em 1963, que o samba era proibido e a perseguição contra as manifestações negras (musicais e religiosas) no Rio de Janeiro das primeiras décadas do século XX era algo inacreditável. “O fulano da polícia pegava o outro tocando violão, este sujeito estava perdido. Perdido! Pior que comunista, muito pior. (...) Não era brincadeira, não. (...) O delegado te botava lá umas 24 horas” (p. 27).


61 As

famosas

festas

da

Tia

Ciata

eram

desdobramentos

das

comemorações religiosas nos dias dos orixás. Após a cerimônia religiosa, que era precedida da missa cristã assistida na igreja, a festa tinha início. Neste quadro, as festas populares podem ser definidas como manifestações culturais transitórias ou efêmeras, na medida em que tendo duração de horas, dias ou semanas, fornecem uma nova função às formas espaciais disponíveis para sua realização (MAIA, 1999). Assim sendo, a casa da Tia Ciata (foto 2.7), localizada na rua Visconde de Itaúna, se configura em uma centralidade cultural (MELLO, 2002a), por ser um local de afirmação da cultura negra onde os envolvidos interagem em uma rede de significados e simbolismo (SCHUTZ, 1979). Estas celebrações culturais na casa da baiana Hilária reuniam principalmente negros, baianos ou não, estivadores, artesãos, funcionários públicos, policiais, brancos de baixa renda e indivíduos de classe média atraídos pelo exotismo e “feitiçaria” africanos. Além de abrigar festas que chegavam a se estender por dias ininterruptos, a residência da negra Ciata era ponto obrigatório dos desfiles dos blocos e ranchos do pequeno carnaval da Praça Onze. No século XVIII, a Praça Onze de Junho, era chamado Rossio Pequeno, um local descampado, próximo aos mangues, que servia como receptor de lixo da população. Por conta do crescimento da Cidade Nova, a praça é urbanizada em 1846 e recebe este nome em homenagem ao dia da batalha do Riachuelo, na Guerra do Paraguai (1865) (foto 2.8). Veltman (1998), investigando a presença judaica nas proximidades da Praça Onze, assim a definiu: A praça, em si, pode ser imaginada como um quadrilátero. As duas principais ruas, paralelas, eram a Senador Eusébio e a Visconde de Itaúna. Do lado do Canal do Mangue, as duas ruas seguiam até a


62 ponte dos Marinheiros. Perpendiculares, eram as ruas Marquês de Sapucaí, Marquês de Pombal, Santana e General Caldwell. Paralelas à Visconde de Itaúna, as ruas Benedito Hipólito e Júlio do Carmo. Atrás da Senador Eusébio, a General Pedra. Do outro lado do jardim da praça, tudo terminava no Campo de Santana, a Praça da República (p. 11-12).

No século vinte, segundo Cabral (1996), o pequeno carnaval era constituído por agrupamentos carnavalescos, como cordões, ranchos e blocos, dos mais pobres da cidade. A plenitude do carnaval, no entanto, acontecia na Avenida Central com o corso e grandes sociedades formadas de brancos da classe média e aristocracia. Mais precisamente, estas sociedades tratavam-se de clubes que realizavam desfiles com carros alegóricos à moda européia. Dentre os maiores clubes tínhamos os Democráticos – agremiação que resistiu ao tempo e funciona até os dias de hoje com intensa programação, na rua do Riachuelo, na Lapa boêmia dos sambas e outros ritmos –, Tenentes do Diabo e os Fenianos, criados ainda no século XIX. Os terreiros de candomblé e as festas profanas que ocorriam após o culto desempenhavam ainda um papel social de relevância. Eles substituíam o núcleo familiar, desestruturado por completo pelo sistema escravagista. Estes terreiros eram redutos onde o negro poderia ter sua identidade sem as cobranças da sociedade branca e cristã ou da força policial. Sodré (1998) reverencia o papel das instituições religiosas negras capazes de substituir a estrutura familiar na transmissão dos padrões culturais e formas de sociabilidade da comunidade negra.


63

Foto 2.7: Em destaque a residência da Tia Ciata. Fonte: www.clicrbs.com.br

Foto 2.8: Praça Onze de Junho. Fonte: www.almacarioca.com.br.


64 Na época do carnaval, Tia Ciata se envolvia com os afazeres do rancho de sua família, o “Rosa Branca” e seu sujo “Macaco é outro”. Os ranchos eram blocos organizados em forma processional que percorria uma determinada extensão. Já se utilizavam os instrumentos de corda, como violões e bandolins, acompanhados de instrumentos de sopro, como flautas e trombetas, alinhados harmonicamente aos tamborins, chocalhos e castanholas, compondo desta maneira um ritmo marcado, estilizando e abrandando a vigorosa coreografia do batuque. O primeiro rancho, chamado Rei de Ouro, foi fundado por Hilário Jovino, outro negro com muita influência na comunidade pela sua força espiritual e religiosa. As escolas de samba herdaram dos ranchos a organização processual, a disposição em alas, obediência temática, os elementos alegóricos, o abre-alas e elementos como a porta-estandarte, depois porta-bandeira, e o mestre-sala. Ao lado disso, os sujos eram blocos sem organização que saíam às ruas arremedando os outros de maneira satírica, desengonçada e brincalhona (GOLDWASSER, 1975; MOURA, 1995). Confirmando sua relevância para a comunidade, a casa de Hilária Batista, tornou-se um dos pontos principais do itinerário dos cortejos. Os ranchos passavam debaixo de sua janela e eram saudados pela baiana tipicamente vestida (MOURA, 1995). Além de centralidade cultural, ponto de encontro dos negros irmanados, terreiro de candomblé e culto aos orixás, e palco de intermináveis festas, a residência da baiana Tia Ciata iria, segundo cronistas e pesquisadores, testemunhar o nascimento do samba moderno. O entendimento espacial da residência da famosa baiana cumpre papel de grande valor para entendermos o contexto sócio-histórico da criação do samba como gênero musical.


65 A casa em questão era bem grande, depois de uma ampla sala de visitas, a habitação se alongava para o fundo, num corredor opaco que se enfileiravam três quartos espaçosos intervalados por uma pequena área que recebia luz através de uma clarabóia. No final, uma sala de refeições, a cozinha e a despensa. Atrás da casa, um quintal com um centro de terra batida para as danças e um barracão de madeira onde ficavam organizadas ritualisticamente as representações do culto (figura 2.6). As festas eram estruturadas de acordo com os cômodos da morada. Alguns depoentes destes acontecimentos festeiros declaram isto em seus testemunhos. João da Baiana descreve: “a festa era assim: baile na sala de visitas, samba de partido-alto nos fundos da casa e batucada no terreiro” (MOURA, 1995, p. 83). O gênio Pixinguinha, honra e glória da música popular brasileira, outro freqüentador, confirma: “numa festa de preto havia o baile mais civilizado na sala de visitas, o samba nas salas do fundo e a batucada no terreiro” (MOURA, 1995, p. 83). O mesmo relata Donga “as baianas davam a festa com as seguintes características: tinha samba na casa de fulana, então tinha choro também. No fundo tinha também batucada” (As vozes desassombradas do Museu, p. 77). Aqui, cabe ressaltar, que o samba descrito pelos freqüentadores ilustres tem a conotação de festa popular, onde dança, música, comida, bebida e convivência não podem ser concebidos separadamente (MOURA, 1995). A oposição entre baile e samba, separados pela sala de visitas e a sala de jantar (ou sala de fundos), indica a diferença cultural expressa através da dança, ou seja, com o par enlaçado ou separado respectivamente. O baile referia-se aos encontros de choro. Inicialmente, o termo choro designava um agrupamento instrumental surgido na segunda metade do século XIX,


66 contemporaneamente à dança do maxixe. Sua formação compunha flauta, cavaquinho e violão e seu repertório inicial, danças de proveniência européia como a polca, o schottish, a valsa e algumas outras. Destarte, o choro acompanhou a adoção das camadas populares pelas danças de par enlaçado. Posteriormente, a palavra choro iria denotar as composições tocadas por estes grupos (foto 2.9) (SANDRONI, 2001). O termo batucada, também presente nas festas das tias baianas, sinaliza um jogo de perícia corporal derivada da capoeira, muito popular no Rio de Janeiro. Também pode ser considerada variante do samba-de-umbigada, pois consistia numa roda, com os usuais cantos responsoriais e palmas dos participantes, em que a pernada substituía a umbigada, golpe que visava derrubar o parceiro. A componente violenta justifica sua localização fora da casa, no terreiro (SANDRONI, 2001). Já a expressão samba de partido-alto apresenta duas formas fundamentais. Nesta conjuntura, a expressão partidoalto enfatiza o caráter autêntico e tradicional do samba. Em outras palavras, o samba praticado por um partido, união de homens que comungam das mesmas idéias, que se presume alto, de elite. Nos dias atuais o partido-alto assumiu novas características, Lopes (1992) indica que o partido-alto atualmente caracteriza-se como uma espécie de samba cantado em forma de desafio por dois ou mais contendores e que se compõe uma parte coral (refrão ou “primeira”) e uma parte solada com versos improvisados ou do repertório tradicional, os quais podem ou não se referir ao assunto do refrão (p. 51).


67

Figura 2.6: Planta da casa da Tia Ciata. Fonte: MOURA, 1995.

Foto 2.9: Oito Batutas, grupo de choro que chegou a excursionar pela Europa. Donga e Pixinguinha eram as estrelas desta companhia. Fonte: www.vermutecomamendoim.com.


68 A sala de visita e a sala de jantar também separam espacialmente o baile e o samba no contexto da festa. A música era oferecida de acordo com o grau de formalidade e intimidade dos participantes. Na sala de visita, o status respeitável correspondia à dança de par enlaçado e a música dos choros, baseado nos gêneros de proveniência européia, como a valsa e a polca por exemplo. Utilizando outros termos, uma festa de maior civilidade. Nos quartos, ou na sala de jantar, funcionava uma ambiente de maior intimidade onde prevaleciam divertimentos de tipo afro-brasileiros (SANDRONI, 2001). Nas palavras de Sodré (1998), a casa da tia Ciata continha os elementos ideologicamente necessários ao contato com a sociedade global: “responsabilidade” pequeno-burguesa dos donos (o marido era profissional liberal e a esposa, uma mulata bonita e de porte gracioso); os bailes na frente da casa (já que ali se executavam músicas e danças mais conhecidas, mais “respeitáveis”), os sambas (onde atuava a elite negra da ginga e do sapateado) nos fundos; também nos fundos, a batucada – terreno próprio dos negros mais velhos, onde se fazia presente o elemento religioso – bem protegida por seus “biombos culturais” da sala de visitas (...). Na batucada, só se destacavam os bambas da perna veloz e do corpo sutil (p. 15).

Tais biombos demarcavam a fronteira entre a formalidade das festas civilizadas e a informalidade das manifestações negras. Entretanto, cabe ressaltar, que alguns membros da elite branca cruzavam a fronteira para participar das rodas de samba. A composição de Pixinguinha e Cícero de Almeida intitulada Samba de Fato (1932) indica: Samba de partido-alto Só vai cabrocha que samba de fato Só vai mulato filho de bahiana E gente rica de Copacabana Dotô formado com anel de ouro, branca cheirosa de cabelo louro (Apud MOURA, 2004, p. 60) A partir desta letra podemos sublinhar que o samba de partido-alto não era para todos, mas, sim, somente para a elite dos bambas, devidamente experimentados pela sua habilidade e familiaridade, como a “cabrocha que


69 samba de fato” ou o “mulato filho de bahiana”. Os espectadores brancos são admitidos como membros da elite, aqueles com poder econômico e prestígio. Os testemunhos das festas da Tia Ciata confirmam a utilização da palavra samba com dois sentidos distintos. No sentido amplo e genérico, samba significava a própria festa. No interior da festa, tal vocábulo designava um dos divertimentos afro-brasileiros presentes, ou seja, o samba-de-umbigada ou partido-alto. Este era praticado na sala de jantar, em forma de roda, onde os envolvidos possuíam um grau maior de intimidade. Sobre o exposto, Moura (2004), apoiado nas palavras de Pereira (1995), ilustra que o ambiente da casa da Tia Ciata influenciou bares, fundos de quintais, quadras de escolas de samba e ruas. A roda de samba pode ser caracterizada portanto como um ritual de encontro, momento de reforço de laços de identidade e de reciprocidade, encontro de iguais e, ao mesmo tempo, lócus de trocas com outros grupos sociais. (...) Ao lado da música e da conversa, dois outros elementos são fundamentais para o desenrolar do pagode: a bebida (freqüentemente a cerveja, alguma cachaça, uma batida de limão) e algo para comer (seja uma sopa – de entulho, de lentilha, de ervilha – seja um prato mais forte ou mesmo uma refeição – uma peixada, uma macarronada, um mocotó) (p. 35).

A recorrente exaltação ao samba pelos sambistas parece advir do espírito ritualístico e festeiro destes encontros. A roda não se forma apenas para cantar samba mas também para compartilhar idéias e sentimentos intrínsecos às canções, além de servir como meio de comunicação. Desta forma, estes laços identitários fazem da roda de samba um fato social total por caracterizar “simultaneamente

dimensões

religiosas,

econômicas,

políticas,

morais,

estéticas e ideológicas” (MOURA, 2004, p. 51). O samba moderno ensaiará seus primeiros passos neste ambiente musical previamente averiguado. A história do primeiro samba de grande sucesso começa em 1913, com a militância do diretor do semanário A Noite,


70 Irineu Marinho, contra os jogos de azar que se proliferavam por toda a cidade. Segundo o jornal, o responsável por esse panorama era o condescendente chefe de polícia Belisário Távora. Com o intuito de satirizar a situação, os jornalistas de A Noite, Eustáquio Alves Castelar e Orestes Barbosa decidiram por instalar uma roleta de papelão em pleno largo da Carioca com uma placa que anunciava: “Jogo franco – Roleta com 32 números – Só ganha freguês”. Obviamente, a ação repressiva da polícia não tardou a ocorrer. Porém não o suficiente para evitar que o jornal, no dia seguinte, anunciasse em primeira página: “O jogo é franco/uma roleta em pleno largo da Carioca” (MOURA, 1995). Este episódio convém para ilustrar como as classes populares da época, excluídas de qualquer debate ou decisão política, reagiam a acontecimentos como este. Na maioria das vezes, músicas eram compostas ironizando a situação. A música Pelo Telefone surge justamente desta polêmica envolvendo a complacência policial e o jornal moralista. Segundo Moura (1995) o tema em voga, assim como outros, teria se desenvolvido na casa de Tia Ciata, freqüentada por grandes bambas do samba como Ernesto dos Santos, o Donga (1889 - 1974) (foto 2.10) , Hilário Jovino Ferreira (1850 - 1933), João Machado Guedes, o João da Baiana (1887 - 1973), José Barbosa da Silva, o Sinhô (1888 - 1930), Heitor dos Prazeres (1898-1966) e outros. Os versos, sujeitos a improvisações, eram cantados a esmo nas rodas até 1916. No fim deste ano, Donga conceberia uma versão final da música apoiado na letra de Mauro de Almeida, conhecido como o carnavalesco Peru dos Pés Frios. Nascia desta maneira o grande sucesso Pelo Telefone. A música de Donga e Mário de Almeida foi apresentada, ao grande público, na fase que antecede o carnaval pelas bandas militares que tocavam


71 aos domingos em vários pontos da cidade, como na Quinta da Boa Vista, Praça Saenz Peña, no jardim da Glória e do Pavilhão Mourisco. A letra ousada que ironizava a força policial se tornou o grande sucesso do carnaval de 1917. Senão vejamos: O chefe de polícia Pelo telefone Mandou avisar Que na carioca Tem uma roleta Para se jogar... Ai, ai, ai O chefe gosta da roleta, Ó maninha, Ai, ai, ai, Ninguém mais fica forreta É maninha. Chefe Aurelino, Sinhô, sinhô É bom menino Sinhô, sinhô De todo jeito, Sinhô, sinhô O bacará Sinhô, sinhô O pinguelim, Sinhô, sinhô Tudo é assim.

A alusão ao telefone, contida na composição, também faz referência a um incidente proveniente da campanha contra a propagação da jogatina, ocorrido em 1916. O Chefe de Polícia, cargo ocupado desta vez por Aurelino Leal, visando coibir tal prática, envia ao delegado do distrito um ofício ordenando-lhe apreender todos os objetos da jogatina nos clubes refinados da cidade. Entretanto, a ordem continha uma recomendação incomum: “antes porém de se lhe oficiar, comunique-se-lhe esta minha recomendação pelo telefone oficial” (SANDRONI, 2001, p.121). Ora, o texto assim redigido


72 apresenta uma conotação dúbia. O Chefe de Polícia ordenava a comunicação imediata com o delegado do distrito para agilizar as providências, ou será que sugeria comunicar previamente os diretores dos clubes a fim de evitar constrangimentos e apreensões? Pelo passado complacente da polícia carioca, o povo consagrou a segunda hipótese. A composição Pelo Telefone resulta, portanto, de dois acontecimentos separados por três anos, mas que demonstram a condescendência da força policial com os jogos de azar. A sátira materializa o pensamento popular sobre a polícia: mudam-se os chefes da corporação. Entretanto a tolerância com as camadas sociais mais elevadas continua a mesma. A despeito da consagração popular, a letra do referido samba não poderia ser gravada desta forma. Registrar uma composição achincalhando a força

policial

estaria

fora

de

cogitação.

Por

motivos

muito

menos

representativos a instituição retratada já oprimia as classes populares. Por isso, o jornalista Mauro de Almeida, inovador e parceiro de Donga, registra a música na Biblioteca Nacional com outra letra (figura 2.7). Abaixo a letra autocensurada, mas igualmente plena de ginga, rodeios e improvisos: O chefe da folia Pelo telefone Manda avisar, Que com alegria, Não se questione, Para se brincar. Ai, ai, ai É deixar as mágoas pra trás Ô rapaz Ai, ai,ai Fica triste se és capaz E verás (bis) Tomara que tu apanhes Pra não tornar a fazer isso


73 Tirar amores dos outros Depois fazer seu feitiço Ai, se a rolinha Sinhô, sinhô Se embaraçou Sinhô, sinhô É que a avezinha Sinhô, sinhô Nunca sambou Sinhô, sinhô Porque este samba Sinhô, sinhô De arrepiar Sinhô, sinhô Põe perna bamba Sinhô, sinhô Mas faz gozar. O Peru me disse Se o Morcego visse Eu fazer tolice Que eu então saísse Dessa esquisitice De disse-não-disse Ai, ai, ai Aí está o canto ideal, Triunfal Ai, ai, ai Viva o nosso carnaval Sem rival (bis) Se quem tira amor dos outros Por Deus fosse castigado O mundo estava vazio E o inferno, habitado Queres ou não Sinhô, sinhô Ir por cordão Sinhô, sinhô É ser folião Sinhô, sinhô De coração Sinhô, sinhô Por que este samba


74 Sinhô, sinhô De arrepiar Sinhô, sinhô Põe perna bamba Sinhô, sinhô Mas faz gozar Quem for de bom gosto Mostre-se disposto Não procure encosto Tenha o riso posto Faça alegre o rosto Nada de desgosto Ai, ai, ai Dança o samba com valor, Meu amor! Ai, ai, ai Pois que dança não tem dor, Nem calor (bis) Como podemos notar, o chefe da polícia cede lugar ao chefe da folia, o incidente da jogatina desaparece e surge uma homenagem ao carnaval. Os carnavalescos Morcego e Peru – o co-autor Mauro de Almeida -, também estão presentes. Finalmente, tanto uma versão quanto a outra incorpora o refrão de uma canção folclórica nordestina chamada O marroeiro, escrita por Catulo da Paixão Cearense e Inácio Raposo. Abaixo o refrão original: Olha a rolinha, Sinhô, sinhô Mimosa flor, Sinhô, sinhô Presa no laço, Sinhô, sinhô Do meu avô. Além do sucesso estrondoso que alcançou Pelo telefone, esta canção pode ser considerada o primeiro samba moderno pois altera o andamento regular do samba de partido, incorporando a divisão característica do maxixe... (...). O ritmo incorporado daria a justa medida da novidade, justapondo o ainda não digerido ao já conhecido, junção possível pela origem comum dos dois gêneros, e mesmo prenunciando a duradoura chegada do novo dono do corpo (MOURA, 1995, p. 123).


75

Foto 2.10: Ernesto dos Santos, o Donga. Fonte: www.reporterdiario.com.br.

Figura 2.7: Partitura de Pelo Telefone. Fonte: www.vivercidades.org.br.


76 O grande êxito da composição atribuída a Donga faz com que os outros participantes da casa da Tia Ciata, e a própria, sintam-se traídos pelo compositor e seu parceiro que nunca foram explicar o fato de terem registrado a música em seus nomes. Como resposta, os renegados compositores resolvem compor uma nova letra intitulada Roceiro. Eis a letra: Pelo telefone A minha boa gente Mandou avisar Que o meu bom arranjo Era oferecido Pra se cantar Ai, ai, ai Leve a mão na consciência Ai, ai, ai Meu bem Ai, ai, ai Mas porque tanta presença Meu Bem? Ó que caradura De dizer nas rodas Que esse arranjo é teu! É do bom Hilário E da velha Ciata Que o Sinhô escreveu. Tomara que tu apanhes Para não tornar a fazer isso, Escrever o que é dos outros Sem olhar o compromisso.

Polêmicas à parte, Donga presta um grande serviço à popularização do samba ao extrapolar o gênero musical dos guetos da comunidade negra. Em outras palavras, o grande sambista em tela transforma o samba folclórico, sujeito a improvisações e com autoria anônima em um gênero de canção popular, com gravação, letra fixa e autoria comprovada. Esta transformação passa por uma adequação aos meios de divulgação, como criar a partitura para


77 piano, o arranjo para a banda, a letra impressa, a gravação em disco e o registro na Biblioteca Nacional. A parceria com um jornalista branco, figura de destaque do Clube dos Democráticos, também colaborou para a veiculação e o sucesso da composição. Nas décadas posteriores o samba iria desprender-se da Cidade Nova para ganhar novos contornos com os malandros do bairro do Estácio de Sá.

2.5- O paradigma do Estácio Toda a área compreendida entre o mangue de São Diogo e os morros de Santos Rodrigues e de São Carlos recebia o nome de Estácio de Sá, toponímia em homenagem ao nobre português que fundara a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro em 1565. Ponto de encontro, noitadas de partidoalto, violão, palma-de-mão, cantoria improvisada, brigas e criação de sambas eram características intrínsecas ao Largo do Estácio no final dos anos 1920 (LOPES, 1992). Os compositores que ali habitavam, Ismael Silva (1905-1978), Alcebíades Barcelos, o Bide (1902-1975), Nílton Bastos (1899-1931), Edgar Marcelino dos Passos (1900-1931), Osvaldo Vasques, o Baiaco (1903-1935), Sílvio Fernandes, o Brancura (1908-1935) e outros, foram responsáveis pela recriação do samba moderno. O samba produzido pelos malandros do Estácio influenciará os compositores de outras áreas da cidade, como Oswaldo Cruz e Madureira, que iriam conceber a Portela e o Império Serrano, bem como a Mangueira e também Vila Isabel. A composição de Cartola, Velho Estácio ratifica tal assertiva: Muito velho, pobre velho, Vem subindo a ladeira Com a bengala na mão É o velho, velho Estácio


78 Vem visitar a Mangueira E trazer recordação Professor, chegaste a tempo Pra dizer neste momento Como podemos vencer Me sinto mais animado A Mangueira a seus cuidados Vai à cidade descer (SANDRONI, 2001, p. 132).

Em outra composição, chamada A primeira escola (1942), os autores Pereira Mattos e Joel Almeida reverenciam a primazia do Estácio: A primeira escola de samba surgiu no Estácio de Sá Eu digo isso e posso provar (...) Depois surgiu a Favela, Mangueira e mais tarde a Portela E ainda faltam muitas outras Que peço desculpas por não falar A não ser a Vila Isabel em homenagem ao saudoso Noel.

Além de saudar o Estácio, os autores citam outros locais tradicionais do samba, inclusive Vila Isabel que estará elencada, neste caso, pela obra e vida de Noel Rosa. O reconhecimento da importância do Estácio para o samba carioca também aparece no testemunho de um portelense: A Portela agradece ao pessoal do Estácio. Minha tia Benedita, que morava na rua Maia Lacerda, trazia o pessoal do Estácio para cá. Tomavam o trem em Lauro Muller. Eles ensinavam a gente. Ficavam uma semana na casa do meu pai. (Nozinho, filho de Napoleão e irmão de Natal da Portela) (MOURA, 2004, p. 63-64).

Com a transformação do samba em música carnavalesca, os sambas com traços do maxixe, como os da Cidade Nova, não correspondiam ao novo contexto coreográfico. Em outros termos, não havia mais roda de samba, e sim bloco, um grupamento humano que se desloca pela rua, no qual todos dançam ao mesmo tempo. O estilo antigo, de Donga e Sinhô, até então intitulado “Rei do Samba”, ainda estava completamente ligado à roda para ser utilizado plenamente no desfile. Sobre isto, Ismael Silva (foto 2.11) comenta:


79 Quando comecei, o samba não dava para os agrupamentos carnavalescos andarem nas ruas, conforme a gente vê hoje em dia. O estilo não dava para andar. Comecei a notar que havia essa coisa. O samba era assim: tan tantan tan tantan. Não dava. Como é que um bloco ia andar na rua assim? Aí, a gente começou a fazer um samba assim: bum bum paticumbumprugurundum... (CABRAL, 1996, p.242).

Para alcançar uma musicalidade diversa, se fez necessário uma adequação dos instrumentos musicais para os blocos carnavalescos. Enquanto o acompanhamento rítmico característico do estilo antigo era formado por pandeiro, prato-e-faca e palmas, o estilo novo inventou outros instrumentos mais apropriados à sua realidade. O samba do Estácio comportava surdo, cuíca e tamborim. Os três foram concebidos no próprio bairro, o surdo e o tamborim por obra de Alcebíades Barcelos, o Bide, posteriormente consagrado como compositor e como um dos maiores ritmistas da história do samba. Já a invenção da cuíca, credita-se a João Mina, veterano sambista que participou com seu invento da primeira gravação em disco contendo tais instrumentos. Cabe ressaltar que a canção gravada foi Na Pavuna (1929), de Almirante e Candoca da Anunciação, gravado pelo Bando dos Tangarás, grupo de músicos de Vila Isabel do qual faziam parte o próprio Almirante, Carlos Alberto Ferreira Braga, o Braguinha e Noel Rosa (CABRAL, 1996). Analisando as composições do estilo novo e do estilo antigo percebemos uma clara distinção. Todavia, definir qual paradigma representa o verdadeiro samba torna-se mais complexo. Sobre a suposta evolução do samba, o compositor Sinhô responde ao Diário Carioca em 1930: A evolução do samba? Com franqueza, não sei se o que ora se observa devemos chamar de evolução. Repare bem as músicas deste ano. Os seus autores, querendo introduzir-lhes novidades, ou embelezá-las, fogem por completo do ritmo do samba. O samba, meu caro amigo, tem a sua toada e não se pode fugir dela. Os modernistas, porém, escrevem umas coisas muito parecidas com marcha e dizem que é samba (CABRAL, 1996, p. 36).


80 Em outra situação, em fins da década de 1960, Donga e Ismael Silva respondem a Sérgio Cabral a mesma pergunta: qual é o verdadeiro samba? DONGA – Ué, o samba é isso há muito tempo: “O chefe da polícia/ Pelo telefone/ mandou avisar/ Que na Carioca/ Tem uma roleta para se jogar”. ISMAEL SILVA – Isto é maxixe. DONGA – Então o que é samba? ISMAEL SILVA – “Se você jurar/ Que me tem amor/ Eu posso me regenerar/ Mas se é/ Para fingir, mulher/ A orgia assim não vou deixar”. DONGA – Isto não é samba, é marcha (CABRAL, 1996, p. 37).

Vários estudiosos e conhecedores do assunto apresentam suas versões sobre as diferenças entre os estilos e conclusões sobre o verdadeiro samba. Máximo e Didier (1990), por exemplo, acreditam que a diferença entre os estilos reside na instrumentação. Enquanto os ritmistas da Cidade Nova eram músicos gabaritados de piano, flauta, clarineta, cordas e metais, no Estácio, “salvo por um ou outro violão ou cavaquinho em mãos desajeitadas, tudo é tamborim, surdo, cuíca e pandeiro” (p. 118). A explicação carece de consistência, pois do universo da Tia Ciata, apenas Pixinguinha poderia ser enquadrado como músico gabaritado, versado em teoria musical, maestro e arranjador. Da mesma opinião compartilham Silva e Oliveira Filho (2003) e Moura (2004). Neste estudo, todavia, compactuaremos com as idéias de Sandroni (2001). O autor aponta que existe um processo de inovação estética e, também, a passagem entre os domínios do folclore e do popular. As diferentes categorias que, num dado momento, a sociedade divide seu universo musical, se influenciam mutuamente, num processo contínuo de repercussões recíprocas e seleção de elementos. E elas se transformam não apenas devido a essa influência mútua, mas também devido a sua dinâmica própria, baseada na criatividade dos músicos, e além disso em fatores musicais e extramusicais de toda ordem (p. 141/142).


81 Assim, podemos ratificar que se estabeleceu uma relação de influência recíproca entre os dois universos a ponto de impedir qualquer separação hermética de ambos. O samba, portanto, nasce na Cidade Nova e sofre alterações posteriores pelos sambistas do Estácio por razões que extrapolam o universo musical, dentro de um contexto geo-histórico-social mais amplo. Se o estilo antigo esteve sempre associado às festas na casa das tias baianas, o estilo novo se propagava nos blocos e nos botequins. As famosas “batalhas de confetes”, festa popular que reunia diversos blocos carnavalescos, era utilizada pelos compositores para testar a popularidade de suas novas composições. Máximo e Didier (1990) narram uma destas batalhas ocorrida na rua Dona Zulmira, situada no bairro do Maracanã, em que o cantor Francisco Alves (foto 2.12) consagra mais uma composição de co-autoria de Noel Rosa, intitulada É Bom Parar (1936). Vem gente de todo o Rio para participar do desfile de carros abertos, sob chuvas de confete e serpentina. Os blocos passam, cada qual com suas baianas e ritmistas. Compositores – os melhores da cidade – aparecem para cantar seus sambas e marchas, ou para ouvir o que os outros fizeram. São mesmo festas gloriosas, animadas a chope, os barris dispostos em pontos estratégicos. (...) Quantas pessoas participam? Impossível calcular. São milhares, muitos milhares que cobrem as calçadas de um lado e de outro, enquanto os automóveis passam. (...) Naquela noite, porém, quando o carro dirigido por Catumby [motorista contratado pelo cantor] apontou no começo da rua Dona Zulmira, Chico com aquele vozeirão, ajudado pelo coro dos outros três [Rubens Soares – um dos autores da canção, Evaldo Ruy e o próprio Catumby], (...) o povo foi tomado de assalto. Todo mundo cantou o novo samba, de fato irresistível (p. 411).

Como vimos, os blocos são antecessores das escolas de samba. A expressão “Escola de Samba” foi cunhada no próprio Estácio. Existia na rua Joaquim Palhares, localizada neste bairro, uma Escola Normal, antiga Escola Normal da Corte, ulteriormente transferida para a rua Mariz e Barros com o nome de Instituto de Educação. Se esta escola formava docentes, o bloco carnavalesco Deixa Falar formava professores em samba, já que os sambistas fundadores


82 do bloco, como Ismael Silva, se consideravam os grandes mestres do estilo novo. Sobre este fato, Ismael Silva comenta: Em frente fica a Escola Normal, não é? Pois aqui a gente também ensina. Só que se ensina samba. Logo, também somos professores (MOURA, 2004, p. 115).

Apesar da Deixa Falar ser considerada tradicionalmente a primeira escola de samba, esta nunca se apresentou com tal denominação, mas como bloco, e se extinguindo em 1933 como rancho (GOLDWASSER, 1975). Cabral (1996) lembra que, neste período, o rancho ocupava a posição de liderança na hierarquia do carnaval popular, isto pela maior disciplina e ostentação dos seus desfiles. Angenor de Oliveira, o Cartola (1908-1980), fundador e grande sambista da Estação Primeira de Mangueira, diferenciava rancho e escola de samba deste modo: As escolas de samba são a continuação dos ranchos. Os ranchos eram do ritmo mais moderado, a escola de samba, com o ritmo mais alterado. Os ranchos traziam, vamos dizer, traziam uma orquestra: traziam surdo, cavaquinho, violão. As escolas de samba então surgiram com violão, cavaquinho, pandeiro, tamborim, com ritmo um pouco mais acelerado. E, nesse ritmo um pouco mais acelerado, então, vinham as pastoras, imitando como eram os ranchos. Porque os ranchos eram de sandálias e castanholas. É! Castanholas! Foram abolidas as castanholas dos ranchos, mas a sandália valia, prevalecia! Então: aboliram as castanholas, tiraram os instrumentos de sopro que tinham os ranchos. Ficaram só: tamborim, pandeiro, cavaquinho, violão, bandolim e sandálias, isso era escola de samba, e um ritmo um pouco mais alterado (GOLDWASSER, 1975, p. 21-22).

O botequim, para o sambista daqueles dias, funcionava como local da diversão e do trabalho. Isto porque estes estabelecimentos abrigavam os encontros festeiros e serviam de referência para os eventuais interessados em suas composições poderem encontrá-los. Noel Rosa, personagem vívido deste contexto, era um grande freqüentador dos botequins de Vila Isabel e da Lapa.


83

Foto 2.11: Ismael Silva. Fonte: www.castingblack.com.br.

Foto 2.12: Francisco Alves. Fonte: www.radicalclaret.com.br


84 Compunha, fazia refeições, encontrava mulheres, parceiros de música e cantores ávidos por novas canções, tendo Francisco Alves como o mais assíduo intérprete do poeta. Assim sendo, podemos notar que os blocos e botequins

possuem

uma

característica

comum,

são

públicos,

menos

reservados socialmente do que a casa da Tia Ciata. Na sala de jantar da negra baiana, apenas alguns brancos previamente escolhidos poderiam circular. Entretanto, nos ambientes citados anteriormente a circulação e admissão era praticamente livre. Pessoas de várias profissões, raças, classes sociais poderiam se encontrar. Isto faz com que o estilo novo tenha um raio de ação e circulação muito mais vasto do que o estilo antigo (SANDRONI, 2001). Outro elemento fundamental para a popularização do paradigma do Estácio foi a difusão do rádio. As primeiras transmissões no Brasil ocorrem nas comemorações do centenário da Independência em 1922. No ano seguinte, a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, a primeira estação de rádio brasileira, inicia suas atividades. As rádios comerciais Mayrink Veiga e Educadora são inauguradas em 1926 e 1927, respectivamente. Contudo, somente após a Revolução de 1930, conduzindo Getúlio Vargas ao poder, os programas de grande audiência surgiram. O pioneiro neste estilo foi o Programa do Casé, no qual Noel Rosa alcançou posição destacada como contra-regra e cantor. Este programa era transmitido a partir do Rio de Janeiro para todo o Brasil. Os revolucionários de 1930 irão utilizar este veículo de comunicação como um dos balizadores da sua campanha de integração nacional. Sobre isto, Vianna (2004) afirma que foi através do rádio nos anos 1930 que o samba carioca começou a dominar o carnaval brasileiro tornando-se símbolo de nacionalidade. Os outros gêneros produzidos no Brasil passariam a ser considerados regionais.


85 O projeto de unificação precisava de um gênero musical capaz de traduzir um sentimento nacional. Baseado nas idéias do antropólogo Gilberto Freyre, de que o mestiço brasileiro representava a síntese da influência européia, indígena e africana, logo a maior expressão da brasilidade, o Governo Vargas irá promover o samba à música nacional brasileira por excelência, justamente por este simbolizar uma criação tipicamente mestiça, uma espécie de “sinfonia das três raças”. Isto faz com que as composições derivadas do estilo novo tenham um espaço representativo nas rádios nacionais daqueles dias. Paralelamente à popularização do rádio, o mercado fonográfico brasileiro crescia em ritmo assustador, com o advento da gravação elétrica e a instalação de gravadoras por todo o país. Até 1928 existia apenas uma gravadora no Brasil, a Casa Edison, de propriedade da empresa Odeon. Neste ano são inauguradas a Parlophon, também da Odeon, e a Columbia. Em 1929 surgem a Brunswick e a RCA, todas sediadas no Rio de Janeiro e recrutando novos músicos para seus elencos. O trabalho dos músicos nas gravadoras contribui para o samba carioca se definir como gênero musical (VIANNA, 2004). O rádio e as gravações em disco sepultam o samba folclórico dos tempos da Tia Ciata. Até a gravação de Pelo Telefone, os sambas eram cantados com um estribilho (refrão) seguido de improvisos, ou seja, as composições não tinham uma letra fixa. Não existia, conseqüentemente, a preocupação com a autoria das músicas. Inclusive na década de 1920, atribuiuse a Sinhô a frase “samba é como passarinho, é de quem pegar” (MOURA, 1995; SANDRONI, 2001). O fato é que se cantavam, na cidade, inúmeros refrãos

anônimos,

sem

ninguém

conhecer

seus

verdadeiros

autores


86 (SANDRONI, 2001). Valendo-se do ensejo, Máximo e Didier (1990) reproduzem uma entrevista de Noel Rosa concedida em 1935 ao jornal O debate: “Ninguém sabe como o samba nasceu. Ele foi um dia descoberto na rua e aperfeiçoado. Hoje, tem escola. Criadores de estilo. J.B. Silva, o célebre Sinhô, foi um deles. Sinhô foi ao morro, captou vários estribilhos de samba e os estilizou com grande sucesso” (p. 357).

O estilo novo, inserido em um contexto histórico-social ímpar, será responsável pela consolidação do samba como música popular. Esta trazia consigo a fixidez das composições onde o improviso tinha cada vez menos espaço. Nasce disto, a necessidade da segunda parte da letra, ou seja, a música tinha que ser composta de maneira completa, estribilho e outras “segundas partes”. Esta cumpre em relação ao estribilho a mesma função de oposição que era ocupada pelos improvisos: é cantada por um solista e não pelo coro, com uma letra que varia enquanto a do estribilho é por definição constante (razão pela qual se fala freqüentemente de “segundas partes”, no plural); além disso, cada segunda parte só é cantada uma vez, enquanto o estribilho é sempre repetido (SANDRONI, 2001, p. 153).

Neste caso, Pelo Telefone serve como exemplo. Os sambas das tias baianas eram demasiadamente curtos para serem gravados, daí a necessidade desta canção ser composta por quatro partes com pouca ou nenhuma relação entre si. O próprio estribilho da canção supracitada foi extraído de outra composição. Abordando a questão, Heitor dos Prazeres afirma: “A princípio, as letras eram muito curtas ou, então, um aglomerado de pequenos motivos” (SODRÉ, 1998, p. 86). Assim entendemos que a reunião de motivos curtos e sem grande preocupação de coerência ocorre pelo caráter folclórico que se encontrava o samba naquela conjuntura. A divisão do samba como ora se verificou possibilita o surgimento das parcerias de compositores, onde um dos parceiros faz o estribilho e o outro a


87 segunda parte. Junto a isto se desenvolveu também a comercialização de sambas. Cantores renomados do período, como Francisco Alves e Mário Reis – este um refinado morador do Copacabana Palace, por décadas –, compravam sambas de compositores, inclusive do Estácio. A compra poderia ser feita dos direitos autorais, ou seja, o nome do autor constaria no disco e na partitura, ou até mesmo a compra do reconhecimento da autoria, neste caso o comprador se tornaria o compositor oficial da canção negando por conseguinte os direitos do verdadeiro autor. Máximo e Didier (1990) apontam que Noel Rosa estabeleceu uma relação comercial formal com Francisco Alves. O famoso cantor, também negociante de automóveis usados, vendeu um dos seus exemplares ao poeta em troca dos direitos autorais de suas futuras composições. Noel se tornara um compositor exclusivo, assim como muitos outros, de Francisco Alves. Em outro plano, os autores relatam a extorsão de parceria sofrida por Noel. Na obra O orvalho vem caindo (1933), o boxeador aposentado José Gelsomino, conhecido como Kid Pepe, desejoso em obter sucesso na música popular, torna-se parceiro do poeta através de ameaças. Nas palavras dos autores, “(...) na criação deste esplêndido samba, Noel entrou com música e letra. Kid Pepe, com os músculos” (p. 273). Mesmo adquirindo as melhores composições, Francisco Alves não recebeu o rótulo de oportunista ou aproveitador por parte dos seus “parceiros”. Em entrevista a Cabral (1996), Buci Moreira, neto da Tia Ciata e compositor do Estácio, definiu o cantor deste jeito: Francisco Alves foi sócio do Deixa Falar. Ele tinha situação privilegiada, mas gostava de farra. Subia qualquer morro atrás de um samba bonito. Diziam que ele estava comprando samba, mas não era nada disso, não. Ele dava uma propina ao autor para segurar o samba. Você vê como essa gente é ingrata. Ainda falam mal do rapaz (p. 254).


88 Outros compositores relatam, igualmente, com naturalidade a comercialização de sambas. De acordo com o exposto, Sandroni (2001) ressalta que o papel desempenhado pelos cantores praticantes deste comércio condiz com as editoras musicais atuais: “possibilitam que as músicas se tornem conhecidas em troca de parte dos direitos autorais” (p. 149). Todavia, Sodré (1998) examina este momento como a gênese de “um processo de expropriação do samba (mercadológica, industrial) enquanto instrumento de expressão popular de matrizes negras” (p. 50). Contudo o autor pondera que essa expropriação não pode ser vista, paranoicamente, como um roubo deliberado, a “corrupção cultural” dos valores de uma classe por outra, mas como a própria lógica de um processo produtivo que deu lugar à constituição de uma classe média com tal poder aquisitivo que tornou possível uma indústria fonográfica com bases altamente rentáveis (p. 50).

Apoiado nas idéias do sociólogo francês Georges Friedman, o autor conclui que o samba da Cidade Nova e do Estácio correspondem, respectivamente, ao meio natural e ao meio técnico do samba. No primeiro, não se observa uma separação radical das instâncias da produção e do consumo, admitindo desta forma a intervenção de novos elementos e improvisos no circuito da festa. A produção e o consumo de música ocorrem em ritmo vagaroso. Entretanto, no segundo, notamos uma estrutura capitalista arquitetada para a produção e o consumo imediatos. Dito de outra forma, este sistema comporta uma temporalidade com lógica própria pautada na sucessiva oferta de novidades aos seus consumidores. Por conta disto, ao invés de se viver no samba passou-se a viver de samba. Pelos

elementos

apresentados,

podemos

perceber

diferenças

conceituais entre o estilo antigo da Cidade Nova e o estilo novo do Estácio. O samba das tias baianas era folclórico, marcado pela situação festeira da roda


89 de samba e as improvisações seguidas de um estribilho, muitas vezes de autores anônimos. O samba dos malandros do Estácio corresponde a um contexto profissional, portanto, popular, com autonomia em relação às pessoas que o criam, ou seja, viabilizando sua comercialização. Esta independência elimina o espaço aberto da improvisação, já que as canções têm letra e música previamente determinadas visando sua publicação e gravação. O estilo novo também foi responsável pelo nascimento de um típico personagem carioca: o malandro (figura 2.8). O malandro e o mundo da malandragem são temas recorrentes das composições daqueles dias. Definido pela sua aversão ao trabalho regular, vive da jogatina, explorando mulheres que o sustentam e dos golpes que aplicam nos desavisados. Apesar da figura do malandro ter surgido neste momento, o tema da vadiagem já estava presente desde o século XIX, aparecendo inclusive em lundus. Grupo de pessoas que se sustentam à custa dos outros, caminhando sobre a linha tênue que separa a esperteza da criminalidade, não é uma exclusividade carioca, nem mesmo brasileira. Sandroni (2001) aponta, como exemplo, o milonguero portenho, o negro curro cubano ou o guapo andaluz como representações que compartilham características de rejeição ao trabalho, de delinqüência e ética particular. Porém, a identidade do malandro carioca nasce em fusão com o novo samba criado a partir dos fins da década de 1920. Com as sucessivas menções das peripécias do malandro em vários sambas, o mesmo popularizase a ponto de torná-lo quase sinônimo de sambista. Externamente ao mundo do samba, sambista é malandro e malandro é sambista. O anúncio da competição oficial das escolas de samba feito em 1932 pelo jornal Mundo Sportivo confirma a assertiva anterior:


90 (...) os príncipes da melodia do malandro, as “altas patentes” do samba concorrerão ao grande campeonato. (...) O público que conhece o malandro pelo disco ainda não sentiu, talvez, o sabor que tem a melodia na boca do próprio malandro (apud SANDRONI, 2001, p. 159).

Algumas canções servem de exemplo para ilustrar como a malandragem, e seus princípios, fazem parte da literatura musical do estilo novo. A composição O que será de mim (1931), composta por Ismael Silva e Nílton Bastos,

e

adquirida

por

Francisco

Alves,

demonstra

justamente

a

incompatibilidade entre a malandragem e o trabalho. Senão vejamos: Se eu precisar algum dia De ir pro batente Não sei o que será Pois vivo na malandragem E vida melhor não há

Em outra canção, Wilson Batista (foto 2.13) faz uma bela descrição do sambista-malandro dos anos 1930. Veremos a seguir a letra de Lenço no pescoço (1933) cuja gravação antológica do “caboclinho querido” tornou-se um marco no universo da música popular brasileira: Meu chapéu do lado Tamanco arrastando Lenço no pescoço Navalha no bolso Eu passo gingando Provoco e desafio Eu tenho orgulho Em ser tão vadio Sei que eles falam Deste meu proceder Eu vejo quem trabalha Andar no miserê Eu sou vadio Porque tive inclinação Eu me lembro, era criança Tirava samba-canção.


91 Primeiramente, o autor descreve as características de um verdadeiro malandro ou vadio. Chapéu inclinado, tamanco arrastando, lenço, navalha e postura peculiar. Posteriormente justifica a aversão ao trabalho pelo pouco rendimento e benefícios alcançados pelos trabalhadores regulares em seus ofícios. Finalmente associa claramente a malandragem ao samba. Utilizando outros termos, saber tirar samba-canção é um dos pré-requisitos do verdadeiro malandro. Sinhô, grande compositor que transitou do estilo antigo ao estilo novo, também compôs um samba com esta temática. A canção Ora vejam só foi o grande sucesso do carnaval de 1927 na voz de Mário Reis. Vejamos o estribilho: Ora vejam só A mulher que eu arranjei Ela me faz carinhos até demais Chorando, ela me pede: “Meu benzinho, Deixa a malandragem se és capaz”. O malandro rompia com as normas sociais, não trabalhava e nem constituía família. Deixar a malandragem significava se enquadrar nos padrões estabelecidos pela sociedade. Aos olhos da amada, o samba, a orgia e a vadiagem deveriam ser substituídos pela família e pelo trabalho. Noel

Rosa

também

exaltou

os

desconcertantes

preceitos

da

malandragem em seus versos. A negação ao trabalho está registrada em Escola de Malandro (1932), parceria com Ismael Silva e Orlando Luiz Machado.


92

Foto 2.13: Wilson Batista. Fonte: www.inpbnet.com.br.

Figura 2.8: Representação do típico malandro. Fonte: www.sitedepoesias.com.br.


93 Eis um trecho da composição: Oi, enquanto existir o samba Não quero mais trabalhar A comida vem do céu Jesus Cristo manda dar! Tomo vinho, tomo leite, Tomo a grana da mulher, Tomo bonde, automóvel, Só não tomo Itararé.1

Mais uma vez o malandro renega a labuta para abraçar o samba. Em outra composição, o poeta revela a incompatibilidade do casamento com a malandragem, a começar pelo título da canção, Capricho de Rapaz Solteiro (1933). Vejamos um fragmento: (...) Quem vive sambando Leva a vida para o lado que quer. De fome não se morre Neste Rio de Janeiro. Ser malandro é um capricho de rapaz solteiro. A mulher é um achado Que nos perde e nos atrasa. Não há malandro casado Pois malandro não se casa.

Apesar da admiração de Noel Rosa pela conduta dos malandros, este nunca adotou para si a doutrina da malandragem. Seu comportamento o enquadrava na categoria dos boêmios, aqueles que amam a noite e seus mistérios. Casouse inclusive, fez sambas para muitos, mas jamais extorquiu samba de ninguém. Seu sustento não procedia das atividades informais ou das mulheres, e sim do trabalho de compositor e cantor. Ribeiro (1995), fazendo uso das palavras de Galvão (1982), lembra que Noel se aproxima, por conta de sua biografia e de sua obra, dos deserdados da cidade, sem absorver, no entanto, o perfil do 1 Alusão a um episódio de conflito iminente que não se concretizou ocorrido no município de Itararé, localizado no sul do estado de São Paulo, durante a Revolução de 1930 (MÁXIMO E DIDIER, 1990).


94 malandro. Ao mesmo tempo “não se enquadra na pasmaceira virtuosa de sua própria classe” (p.10). E, assim decreta: “boêmio, antes de mais nada, é pequeno-burguês branco de Vila Isabel” (p. 10). O rádio, as gravadoras, os músicos e arranjadores, os diretores artísticos, o público consumidor de discos e partituras, os blocos e botequins contribuíram significativamente para consagrar o paradigma do Estácio como o verdadeiro samba, mais do que isso, como a principal expressão musical do país. É sob este arquétipo que a identidade de Vila Isabel, como local do samba e da boemia, vai ser alicerçada pela geração de Noel Rosa, que viveu e participou intensamente da construção do estilo novo. O próximo capítulo se deterá a descortinar pormenorizadamente os elementos materiais e imateriais que justificam a inclusão do bairro em tela como um dos redutos do samba carioca.


95

CAPÍTULO 3 - ACORDES E BATUQUES NA VILA DE DRUMMOND, NOEL, MARTINHO E ISABEL A

organização

espacial

proposta

pelo

Barão

de

Drummond

transformou Vila Isabel no primeiro bairro planejado do Rio de Janeiro. Além desta herança, que repercute sobre o cotidiano dos residentes e freqüentadores até os dias atuais, outras ações foram desempenhadas pelo Barão neste período. A Companhia Ferro-Carril de Vila Isabel e o Jardim Zoológico tinham por objetivo atrair um maior contingente populacional para esta área da zona norte da cidade. A tradição imperial do bairro seria substituída anos depois por uma classe média, plena de comerciantes, industriais e pela geração musical de Noel Rosa (BORGES, 1987; DAMATTA; SOÁREZ, 1999; ABREU, 2006). A biografia do Poeta da Vila serviu para alterar o conteúdo e o imaginário social de Vila Isabel. A partir de suas composições, a Vila passou a ser vista como um lugar produtor de autênticos sambistas e boêmios. Haesbaert (1999), ao debater o tema, assevera que uma identidade individual pode se tornar fundamental na formação de uma identidade social bem mais ampla. A geração de Noel Rosa funda, portanto, a identidade do bairro em tela como lugar genuíno do samba carioca. Os exemplos são diversos, mas alguns nomes pontificaram, a partir dos anos trinta, junto a Noel, como o gênio Braguinha autor de sambas antológicos como Copacabana (1947), “a princesinha do mar”, o choro Carinhoso (1917/1937), ao lado do talentoso Pixinguinha e marchinhas imorredouras como Touradas em Madri (1938) e Balancê (1938). Através destes compositores brancos e de classe média, que


96 assinam discos, neste momento, a perseguição ao samba e outros ritmos nacionais tende a diminuir. A identidade do bairro se consolida com a inauguração e as atividades do G.R.E.S. Unidos de Vila Isabel, assim como de seu membro ilustre Martinho da Vila, que como Noel, dedica parte de sua obra a louvar seu lugar vivido. Através

da

memória

seletiva,

são

construídos

geossímbolos

(BONNEMAISON, 2002) como as calçadas musicais, o monumento a Noel Rosa e a quadra da agremiação isabelina que materializam a identidade social de Vila Isabel tornando, para um determinado grupo social, esta porção espacial em um lugar de expressiva carga simbólica.

3.1- A Vila de Drummond O bairro de Vila Isabel, e seus circunvizinhos, Andaraí e Grajaú, ocupam uma área anteriormente pertencente à Fazenda do Macaco. As terras concernentes a este perímetro eram limitadas pelo rio Joana, pelo caminho do Cabuçu (atual rua Barão do Bom Retiro) e pela Serra do Engenho Novo. Os proprietários eram os padres jesuítas que arrendavam parte dos terrenos aos interessados em desenvolver atividades agrícolas (cana-de-açúcar, mandioca, milho e árvores frutíferas). Com a expulsão da Ordem dos Jesuítas, determinada pelo Marquês de Pombal em 1760, a Coroa Portuguesa confiscou e incorporou os bens da Companhia de Jesus, através das Cartas Régias de 25 de fevereiro e 5 de março de 1761 (BORGES, 1987).


97 Após o ocorrido, algumas chácaras e sítios da Fazenda foram a leilão, não atraindo muitos compradores por causa das imperfeições no loteamento e do seu custo elevado. Neste sentido, de 1761 até a chegada da Família Real ao Brasil (1808), a Fazenda do Macaco ficou praticamente abandonada, servindo apenas à caminhada de aventureiros e coleta de frutas. Mais adiante, com a independência do Brasil (1822), a fazenda foi incorporada às posses do Império e, neste contexto, após o casamento de D. Pedro I com Amélia de Leuchtenberg, a Fazenda do Macaco tornou-se um dos inúmeros presentes de núpcias à Imperatriz (GERSON, 2000). Amélia encantou-se de tal maneira com o lugar, que mandou construir em 1830 uma bela morada conhecida como a casa da Duquesa de Bragança. A viagem de D. Pedro I e família para a Europa selou um novo período de desamparo. Além do descaso imperial, o local não despertara interesse comercial devido a dificuldades de acesso e alagamentos constantes inutilizando, por conseguinte, as culturas de plantas baixas (ARAGÃO, 1997). A macadamização da rua São Francisco Xavier, facilitando o trânsito, e a retificação do rio Joana, reduzindo as enchentes em 1856, estimularam a ocupação na área, registrando a partir de então inúmeras construções. Em 1870, por iniciativa própria, o Major E. de Moshek decide por fazer o levantamento cartográfico da área, diagnosticando que do caminho do Macaco – atual Boulevard Vinte e Oito de Setembro –, principal acesso da Fazenda, iniciavam algumas sendas. A que começava na rua São Francisco Xavier e terminava na altura do Corpo de Bombeiros, hoje é a rua Oito de Dezembro. Os três primeiros logradouros iniciando do lado direito do caminho do Macaco são, respectivamente, as ruas Jorge Rudge, Duque de Caxias e


98 Visconde de Abaeté. Do lado esquerdo havia duas pequenas entradas: a primeira, antes dos terrenos dos Rudge, transformou-se, alguns anos depois, na rua Felipe Camarão e a segunda, após aqueles ditos terrenos, foi alargada e denominada rua Rufino de Almeida (atualmente rua Pereira Nunes). Paralelamente à rua do Macaco corria um outro caminho muito extenso, que começava na margem esquerda do rio Joana (onde este se dobrava para alcançar a atual rua Professor Manuel de Abreu) e que veio a ser conhecido como rua Teodoro da Silva, hoje, uma das principais vias do bairro (BORGES, 1987). O interesse de fato por esses terrenos começou com um homem de negócios chamado João Batista Vianna Drummond (1825-1897) em 1869. O futuro Barão de Drummond – título concedido em 1888 – nasceu em Itabira do Mato Dentro (MG). Chegou ao Rio de Janeiro ainda muito moço financiado pelo seu pai, um tradicional fazendeiro mineiro. Trabalhou inicialmente com a venda de artigos importados. Porém a especulação financeira na Bolsa de Valores do Rio de Janeiro permitiu a multiplicação de suas posses. Posteriormente casou-se com a filha de um influente banqueiro à época. Passou a integrar, desta maneira, a seleta elite sócio-econômica da cidade, sendo inclusive convidado pelo Barão de Mauá para ser diretor da Companhia que fundaria a Estrada de Ferro D. Pedro II (DAMATTA; SOÁREZ, 1999). Quando se interessa, visionariamente, pela Fazenda do Macaco é um homem de negócios conhecido e respeitado. O proprietário da Firma Bancária Vianna Drummond e Cia. vislumbrou a possibilidade de progresso através do monopólio comercial da Fazenda e


99 procurou, em 1871, o Ministro do Império e amigo pessoal João Alfredo Correa de Oliveira, com quem expôs suas idéias e pretensões. A aquisição da Fazenda do Macaco aconteceu no dia 3 de janeiro de 1872. A primeira providência de Vianna Drummond como proprietário da fazenda foi criar uma empresa especializada em terraplenagem, voltada para a urbanização e delimitação dos lotes. Essa empresa denominou-se Companhia Arquitetônica de Vila Isabel, a primeira companhia do gênero no Brasil. Neste turbilhão, escolheu-se esta toponímia para o bairro planejado com o intuito de homenagear a Princesa Isabel por sua grande participação na aprovação e assinatura da Lei do Ventre Livre (1871). O professor e engenheiro Francisco Bitencourt da Silva, Diretor do Liceu de Artes e Ofício, em seguida Gerente Geral da Companhia, encarregou-se da elaboração do projeto (figura 3.1). O planejamento inicial tinha como prioridades o alargamento e retificação de caminhos préexistentes, transformando-os em ruas, bem como a abertura de novos logradouros e a criação de uma suntuosa praça no final do caminho do Macaco. Deste modo, a organização espacial proposta incluía treze ruas que partiriam perpendicularmente de uma larga avenida, arborizada ao centro, similar aos boulevares franceses, terminando na praça supracitada. A Companhia Arquitetônica sugeriu as seguintes toponímias para as vias de circulação do projeto: Boulevard Vinte e Oito de Setembro (Caminho do Macaco), em reverência ao dia da assinatura da Lei do Ventre Livre. Na mesma trilha, a Praça Sete de Março (atual praça Barão de Drummond), batizada em alusão ao dia de instalação do gabinete do Visconde de Rio Branco, grande entusiasta da mesma lei. A lista prossegue com as ruas:


100 Teodoro da Silva, Torres Homem, Souza Franco, Teixeira Júnior, Conselheiro Nabuco, Conselheiro Otaviano, Andaraí Grande, Visconde de Abaeté, Visconde de São Vicente, Conselheiro Paranaguá, Duque de Caxias e Nova Andaraí Grande. Desta maneira, como se pode observar, os nomes dos logradouros homenageiam políticos influentes e simpáticos à causa abolicionista. Baseado nos princípios da reforma de Paris empreendida pelo Barão de Haussman, entre 1851 e 1870, o Barão de Drummond concebe um bairro em congruência com o projeto modernista no qual, anos mais tarde, Brasília se tornaria o paradigma. Nas palavras de DaMatta e Soárez (1999) tanto na Vila Isabel de Drummond quanto na Brasília de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, as ruas perdem sua função de encontro, negócio, ócio e sociabilidade difusa e se transformam em via de acesso, passagem ou escoamento. A grande mudança da cidade tradicional para a “cidade modernista” fala – entre outras coisas – da transformação da rua de espaço simbólico (quando a rua era simultaneamente meio e fim), em espaço racional (quando ela é reduzida apenas a um meio de escoamento de veículos e pessoas) (p. 61).

Sobre a discussão, utilizando livremente as palavras de Tuan (1980;1983) para um outro contexto o pensador afirma que o ambiente construído define as funções sociais e suas relações. Como sabemos, o planejamento espacial faria parte de um esforço oficial, no início do século seguinte, para transformar o Rio de Janeiro em uma Paris dos trópicos (LESSA, 2000; ABREU, 2006). Em virtude do sucesso de outro empreendimento de Vianna Drummond, a Companhia Ferro-Carril de Vila Isabel, um novo projeto foi organizado em 1878 contendo onze novos logradouros, tais como: parte da Rua Barão do Bom Retiro (antigo Caminho do Cabuçu), a Visconde de Santa Isabel, que abrigou o antigo Jardim Zoológico (até então Caminho do


101 Goiabal), Conselheiro Sinimbu, a Petrocochino, a Bezerra de Menezes, a Barão de São Francisco, a Afonso Celso (atual Luís Barbosa), a Viana Drummond, a Conselheiro Autran, a Conselheiro Zacarias e a João Alfredo. Ulteriormente, o capital imobiliário tratou de incorporar outras ruas à Vila Isabel em detrimento de bairros considerados menos atrativos das proximidades, como o Andaraí e a Aldeia Campista. O Rio de Janeiro teve o privilégio de ser a primeira cidade da América do Sul a observar a circulação de bondes. A primeira concessão deste serviço, ainda com tração animal, foi outorgada à Botanical Garden Railroad Company (posteriormente Companhia Ferro Carril do Jardim Botânico) que, em 1868, inaugurou uma linha conectando a rua Gonçalves Dias, localizada no centro da cidade, ao Largo do Machado, na zona sul da cidade. Esta ligação pretendia servir à freguesia da Glória, por ora uma importante área residencial das classes mais favorecidas (LESSA, 2000; ABREU, 2006). O sucesso da Companhia Jardim Botânico contribuiu para o surgimento de empresas do mesmo ramo, atuantes em diversas partes da cidade. Em 1870 a Rio de Janeiro Street Railway Company (posteriormente Companhia São Cristóvão) inicia suas atividades servindo aos bairros de São Cristóvão, Andaraí Pequeno (Tijuca), Saúde, Santo Cristo, Gamboa, Caju, Catumbi e Rio Comprido. Neste ponto, vale ressaltar, a popularização da palavra bonde associada a este meio de transporte decorrendo dos cupons (bonds) que a empresa concessionária vendia ao público para contornar o problema de troco (ABREU, 2006). Neste cenário, Drummond entendeu que tal atividade valorizaria seus lotes além da possibilidade de transportar um maior número de pessoas para


102 Vila Isabel e adjacências. Planejou-se para este fim a Companhia Ferro-Carril de Vila Isabel, em 1871/72 com os sócios Barão de Santa Isabel (mais tarde Visconde), Charles B. Greenough e Teodore O. Smith. Sua inauguração tardou por conta das grandes obras de aterro e construção da ponte na área do Mangal de São Diogo, atual Cidade Nova, junto à foz do rio Comprido (ABREU, 2006). Em 29 de novembro de 1873, o trecho principal da linha, contendo sete quilômetros de extensão, estabeleceu a conexão de Vila Isabel com a área central da cidade. Neste instante, cabe ressalvar, no Boulevard Vinte e Oito de Setembro instalaram-se os trilhos lateralmente com o intento de preservar o jardim central muito vistoso e florido na época (foto 3.1). Lessa (2000) cita que o bonde estimulou a circulação pela cidade. Progressivamente suas facilidades modificaram os hábitos de lazer. O uso de espaços públicos – Floresta da Tijuca, a Quinta da Boa Vista, as ilhas (Paquetá, principalmente), as praias – converteu estes lugares em áreas de diversão. Ao mesmo tempo a população rica acostumava-se a comer fora de casa e freqüentar confeitarias (p. 144).

O autor ainda propõe uma comparação entre a paixão popular européia, sobretudo dos latinos, pela bicicleta com a paixão do carioca pelos bondes. A bicicleta permitiu ao citadino europeu deslocar-se com facilidade pela cidade. O bonde fez o mesmo pelo carioca. Abrigado das intempéries e livre da sujeira urbana, “o passageiro do bonde conquistava a cidade” (p. 145).


103 FOTO 28 ANTIGA

Figura 3.1: Projeto de urbanização da Cia. Arquitetônica de Vila Isabel. Fonte: BORGES, 1987.

Foto 3.1: O Boulevard Vinte e Oito de Setembro. Fonte: www.flickr.com/cariocadagema.


104 Dois anos após a inauguração da linha principal, a Cia. Ferro-Carril de Vila Isabel implantou duas linhas complementares, uma que se estendia até o Engenho Novo e outra que tinha como destino o Andaraí Grande (hoje compondo os bairros Andaraí e Grajaú). A emissão de ações ao portador transformou a pequena sociedade em uma grande empresa de capital aberto. No decorrer do tempo e já nos idos de 1885, a Assembléia Geral dos Acionistas, avaliou várias sugestões a fim de trazer um contingente maior de pessoas para o bairro de Vila Isabel, aumentando conseqüentemente o número de passageiros. Nesta reunião, Vianna Drummond teve a idéia de criar um Jardim Zoológico. Pretendendo levar adiante seu propósito, o empreendedor em questão enviou uma proposta à Ilustríssima Câmara, proferindo que o Zoológico seria tão aperfeiçoado quanto os demais outros países; que a fauna e a flora seriam rigorosamente classificadas de acordo com a moderna ciência; que os alunos de quaisquer cursos teriam acesso gratuito (...) e que o Zoológico promoveria exposições anuais de animais, para estimular o amor a natureza (BORGES, 1987, p.51-56).

Com o clima de euforia que cercava a idéia, Vianna Drummond obteve isenções de impostos municipais e de direitos aduaneiros para a importação de animais e plantas. A abertura do empreendimento sucedeu-se em 1888 após o término de inúmeras obras internas e externas ao Jardim. Com a Proclamação da República (1889), o Barão de Drummond, pertencente a uma classe social ligada ao antigo regime imperial deixa de ser apadrinhado por um novo governo que se recusa a prestigiar ou patrocinar um estabelecimento que se reportava ao quadro político anterior. Com isto houve o corte imediato das isenções municipais em 1890. A situação do Jardim se complicou, a ponto de comprometer a conservação do local e a


105 alimentação dos animais. Como solução do problema, Drummond idealiza uma espécie de sorteio, baseado no “jogo das flores”, inventado e realizado pelo mexicano Manuel Ismael Zevada na Rua do Ouvidor, core da área central do Rio de Janeiro daqueles dias, onde bilhetes eram numerados de 1 a 25 e cada número correspondia a uma flor. Vianna Drummond adaptou esse jogo à sua realidade, numerando da mesma forma 25 animais, dentre eles domésticos ou selvagens, corriqueiros ou exóticos. A organização original perdura até os dias atuais no Brasil, salvo algumas exceções promovidas por especificidades locais (DAMATTA; SOÁREZ, 1999). Nascia naquele momento o “jogo do bicho”, legalizado em 13 de outubro de 1890, com a intenção de tornar o Jardim Zoológico da cidade um dos melhores do mundo (GERSON, 2000). Rapidamente, o jogo do bicho popularizou-se em toda a cidade. O alastramento da jogatina passou a preocupar as autoridades, até que o Procurador dos Feitos da Fazenda Municipal, Dr. Frederico de Almeida Rego, emitiu parecer sobre a situação do Jardim Zoológico, em 07 de fevereiro de 1895, declarando que o contrato entre a municipalidade e a concessionária não estava sendo cumprido e que as atividades nele desenvolvidas, restringiam-se aos jogos que tinham sido permitidos e que se transformaram em ““loterias de bichos” (...). Não é mais um Jardim Zoológico, e sim mais um ponto de reunião para o jogo a céu aberto” (BORGES, 1987, p. 65). Diante de forte argumento, o prefeito Francisco Furquim Werneck julgou por bem rescindir o Termo Aditivo que permitira jogos no Jardim em 10 de abril de 1895. Esta data marca o início da ilegalidade do jogo do bicho, mas não o seu fim.


106 O antigo Jardim Zoológico funcionou em Vila Isabel durante 57 anos, especificamente até 30 de setembro de 1940, quando sua área passou aos cuidados da União Federal. Nove anos mais tarde, ocorre a transferência de suas terras à administração municipal sendo reaberto ao público no dia 16 de outubro de 1967 com a toponímia de Recanto do Trovador (foto 3.2). Hodiernamente, as comunidades do Pau da Bandeira e do Macaco, utilizam o parque como lazer e via de acesso às suas moradias (ROSADAS, 2006). No último quarto do século XIX percebemos que o capital imobiliário tornara-se um sujeito ativo na valorização de prédios urbanos no Rio de Janeiro. A Vila Isabel do Barão de Drummond é um exemplo disto. A associação loteamento/bonde revela uma complexa operação integrada de valorização imobiliária (ABREU, 2006). O loteamento da Fazenda do Macaco aconteceu simultaneamente com a instalação das linhas da Companhia Ferro-Carril Vila Isabel. Visando incrementar ainda mais a ocupação do bairro,

Vianna

Drummond

fundou

o

Jardim

Zoológico

(1888)

e,

posteriormente, criou o jogo do bicho (1890) (figura 3.2). Nas palavras de Lessa (2000), a concessão de linhas de transportes, a transformação de terra periférica em residencial pela outorga da linha, a definição do logradouro, a esquematização e realização de melhoramentos (principalmente a aproximação de água), o licenciamento da obra etc. são operações que exigem e constroem uma aliança sistêmica entre o circuito imobiliário e o poder local. Emerge com nitidez no Rio, no último quartel do século XIX, esta articulação indispensável para o entendimento da dinâmica da cidade (p.147).

A Vila de Drummond deixou marcas espaciais indeléveis que contribuem para a dinâmica do bairro em tela até o presente momento. No entanto, nas primeiras décadas do século XX Vila Isabel passará por transformações que trarão novas formas, funções e melodias às suas ruas, praças e avenidas.


107

Foto 3.2: Recanto do Trovador. Ao fundo, parte do morro do Macaco. Autor: Michel Rosadas, 2006.

Figura 3.2: O Barão de Drummond e suas contribuições: o bonde e o jogo do bicho. Fonte: ABREU, 2006.


108 3.2- A Vila de Noel A Vila Isabel das quatro primeiras décadas do século XX abriga uma população diversificada. Ainda possui traços do modo de vida idealizado pelo Barão de Drummond, como a presença das famílias tradicionais. No entanto, nesta conjuntura, o universo de habitantes não se limita ao grupo de classe média. Máximo e Didier (1990) classificam os moradores em três grupamentos distintos: os institucionais, os marginais e os demais. Os primeiros representam as lideranças sociais que gozam de grande prestígio na comunidade. O médico, muitos deles que não cobram consultas aos mais pobres e, por isto, são vistos como mistos de heróis e sacerdotes. As professoras, – dentre elas a mãe de Noel, Dona Martha –, que ensinam as primeiras letras e, também, não cobram de quem não pode pagar. Finalmente, os padres, que alimentam o espírito e aconselham os mais aflitos. Os marginais são tolerados, embora não aceitos, pela ampla classe média pequeno-burguesa preocupada com a ascensão social e com as inúmeras regras de postura e convivência. Estes farão parte do convívio de Noel, o malandro, o bicheiro, os que habitam os morros próximos, o seresteiro, o sinuqueiro, o carteador, o desempregado convicto, bêbados, mendigos, proxenetas e valentões. Os demais completam o colorido cenário isabelino. Estudantes, aposentados debruçados nas janelas, donas de casa, e aqueles que desempenham funções subalternas, motorneiros e condutores, leiteiros, padeiros, garis, entregadores, carteiros e motoristas de táxi. Paralelamente, crianças brincando nas ruas e nos terrenos baldios, o guarda noturno e os galãs de porta de confeitaria também se encaixam neste grupo.


109 Alguns outros transitam pelo bairro esporadicamente, entre os quais: as baianas e seus tabuleiros, amoladores de faca, sorveteiros, baleiros, vendedores ambulantes e os prestamistas. Estes últimos ofereciam mercadorias em domicílio e disponibilizavam empréstimos para saldar as dívidas dos clientes. Sobre as múltiplas faces que coexistem pelas ruas do Boulevard, transversais e paralelas, os autores sublinham a localização geográfica como razão para o fenômeno. Vila Isabel está cercada por bairros heterogêneos. (...) a Tijuca de ricos e remediados, estes sonhando em ser como aqueles e fazendo desse sonho a sua divisa; o Andaraí de contornos proletários, meia dúzia de fábricas empregando quase um quinto da população; o Engenho Novo de ares provincianos, cadeiras de vime pelas calçadas nas tardes de domingo, gente debruçada na janela para ver o trem passar, pessoas que se cumprimentam sem se conhecerem; o Maracanã de famílias conservadoras, que só daqui a algum tempo se permitirão, nas batalhas de confete da rua Dona Zulmira e redondezas, umas tantas liberações; o Grajaú ainda meio deserto, recém-loteado, de moradores poucos e indefinidos; os Morros da Mangueira e dos Macacos, de multidões pobres que se debatem contra a miséria sem perder o orgulho e a esperança – Vila Isabel acaba tendo um pouco de cada um (p. 39).

Neste bairro múltiplo, microcosmo da cidade do Rio de Janeiro, nasce Noel de Medeiros Rosa em 11 de dezembro de 1910 (foto 3.3). Desde garoto Noel se revela atento e observador. Interessa-se pelas pessoas de maneira geral, independente do proceder ou da classe social. Em entrevista ao jornal Diário Carioca em 1936, comentaria: Quando penso no Boulevard, nas ruas pacatas que guardam os meus melhores segredos, nas esquinas prediletas para as reuniões da turma, que aprendeu a fazer samba vendo sambar o arvoredo, o meu coração, incuravelmente sentimental, bate descompassado como um tamborim tocado por estrangeiro. E eu vou alongando o pensamento e vou pensando que a cidade inteira é Vila Isabel... (MÁXIMO; DIDIER, 1990, p. 38).

Ao deixar a infância, Noel se tornará um poeta-cronista, daqueles que fazem da sua obra uma tradução do cotidiano. Sobre o exposto, Sodré (1998)


110 aponta que nos versos de Sinhô já estava fixada uma das características do samba carioca: a letra como crônica do Rio de Janeiro e da vida nacional. Noel, seu herdeiro natural, manteve no novo gênero musical as crônicas poéticas da cidade. Mudanças no modo de vida urbano, sátiras, comentários políticos, incidentes cotidianos e notícias de grande repercussão são encontrados em sua produção musical. Neste contexto, vale frisar, que o Poeta da Vila se enquadra perfeitamente na categoria utilizada por João do Rio ([1908] 2007) para aqueles que estudam a psicologia das ruas, o flâneur. Nas palavras do autor, para entender tal coreografia não basta gozar-lhe as delícias como se goza o calor do sol e o lirismo do luar. É preciso ter espírito vagabundo, cheio de curiosidades malsãs e os nervos com um perpétuo desejo incompreensível, é preciso ser aquele que chamamos flâneur e praticar o mais interessante dos esportes – a arte de flanar. (...) Flanar! Aí está um verbo universal sem entrada nos dicionários, que não pertence a nenhuma língua! (...) Flanar é ser vagabundo e refletir, é ser basbaque e comentar, ter o vírus da observação ligado ao da vadiagem. Flanar é ir por aí, de manhã, de dia, à noite, meter-se nas rodas da populaça, admirar o menino da gaitinha ali à esquina, seguir nas praças os ajustamentos defronte das lanternas mágicas, conversar com os cantores de modinha das alfurjas da Saúde, depois de ter ouvido os dilettanti de casaca aplaudirem o maior tenor do Lírico numa ópera velha e má; é ver os bonecos pintados a giz nos muros das casas, após ter acompanhado um pintor afamado até sua grande tela paga pelo Estado; (...). Flanar é a distinção do perambular com inteligência. Nada como o inútil para ser artístico (p. 17/18).

Podemos perceber nas palavras do autor uma geografia do movimento (SANTOS; SILVEIRA, 2001) plena de interações espaciais. Estas podem apresentar maior ou menor intensidade, variar segundo a freqüência da ocorrência e conforme a distância e direção, caracterizando-se por diversos propósitos e se realiza através de diversos meios e velocidade (CORRÊA, 1997, p. 279).


111

Foto 3.3: Noel Rosa. Fonte: MÁXIMO; DIDIER, 1990.


112 Utilizando seu entendimento apurado de flâneur, Noel comporá seu primeiro samba, intitulado Com que roupa? (1929). Os versos da canção reportam a um panorama de pobreza e miséria que se alastra pelo país. Com a quebra da Bolsa de Valores de Nova Iorque, a situação tende a piorar. Eis a letra: Agora eu vou mudar minha conduta Eu vou pra luta, Pois eu quero me aprumar. Vou tratar você com força bruta Pra poder me reabilitar Pois essa vida não está sopa, E eu pergunto: com que roupa? Com que roupa eu vou Pro samba que você me convidou? Com que roupa eu vou Pro samba que você me convidou? Agora eu não ando mais fagueiro Pois o dinheiro Não é fácil de ganhar Mesmo eu sendo um cabra trapaceiro Não consigo ter nem pra gastar, Eu já corri de vento em popa Mas agora com que roupa? Eu hoje estou pulando como sapo Pra ver se escapo Desta praga de urubu. Já estou coberto de farrapo, Eu vou acabar ficando nu, Meu terno já virou estopa E eu não sei mais com que roupa

O samba de grande sucesso traz consigo a singularidade carioca de tratar com humor os assuntos mais sérios. Assim sendo, cabe ressaltar que, naqueles dias, “com que roupa?” era uma expressão popular que significava “de que modo?”, “com que dinheiro?” (MÁXIMO; DIDIER, 1990).


113 Assistindo ao primeiro filme sonoro nacional, Coisas Nossas, o poeta se indaga sobre o que é verdadeiramente brasileiro. Observando as ruas do bairro, Noel compõe São Coisas Nossas (1932). Uma crônica que reflete a dinâmica urbana do Rio da década de 1930. A seguir a letra: Queria ser pandeiro Pra sentir o dia inteiro A tua mão na minha pele a batucar Saudade do violão e da palhoça, Coisa nossa, coisa nossa. O samba, a prontidão e outras bossas, São nossas coisas, são coisas nossas! Malandro que não bebe, Que não come, que não abandona o samba Pois o samba mata a fome, Morena bem bonita lá da roça, Coisa nossa, coisa nossa. Baleiro, jornaleiro, Motorneiro, condutor e passageiro, Prestamista e vigarista E o bonde que parece uma carroça Coisa nossa, muito nossa! Menina que namora Na esquina e no portão Rapaz casado com dez filhos, sem tostão, Se o pai descobre o truque dá uma coça. Coisa nossa, muito nossa!

O autor exalta o samba com um dos elementos tipicamente brasileiros entre outras bossas. “Bossa” na linguagem do poeta quer dizer jeito para fazer as coisas, aptidão, queda. O malandro que se nega a trabalhar, tema corrente do estilo novo, os bondes envelhecidos, como os da Cia. Ferro-Carril de Vila Isabel além de outras situações cotidianas do bairro e da cidade também estão relatados.


114 As canções evidenciadas anteriormente cumprem o papel de salientar a importância da geografia informal (WRIGHT, 1947) para as investigações geográficas. O artista, no caso Noel Rosa, compõe ao experienciar (TUAN, 1983) as interações espaciais (CORRÊA, 1997) e as coreografias do cotidiano através do seu corpo. Sobre isto, Seamon (1980) afirma que através do sujeito-corpo, a pessoa se localiza em relação aos objetos, lugares e ambientes familiares que, em suma, constituem o seu mundo geográfico cotidiano. Seja qual for o contexto histórico e cultural, particular a base de sua experiência geográfica é o extrato corporal pré-reflexivo de sua vida – seu espaço corporalmente vivido incorpora pequenos gestos como caminhar, virar, alcançar, e os padrões ampliados do ballet-corporal e da rotina têmporoespacial (p. 151).

De acordo com as idéias de Ribeiro (1995) tais composições também se prestam a demonstrar como Noel Rosa se aproxima das idéias modernistas. Segundo a autora, o movimento modernista iniciado na década de 1920 procurava alargar o conceito de literatura ao discutir o cotidiano e descobrir a poesia nos fatos. O despojamento da linguagem vinha acompanhado do tratamento cômico-sério da vida contemporânea do tempo presente. Nesta linha de raciocínio, simplicidade, humor e presentidade estariam registrados na obra de modernistas como Manuel Bandeira, Oswald e Mário de Andrade. Noel desenvolve uma linguagem impregnada e estruturada pelos elementos do mundo burguês com que se depara na sua experiência, ao mesmo tempo se contrapõe a ela, tanto na vida – colocando-se de fora -, quanto na arte – fazendo uso da ironia e da paródia. É desta forma que se projeta, ainda que de maneira intuitiva, sua faceta modernista, mostrando pontos de convergência, quanto a conciliação que promove entre a arte e a vida e quanto ao aspecto da inovação formal, com Oswald de Andrade. Pois também para Noel “a poesia existe nos fatos”, principalmente nos que ocorrem no seu cotidiano boêmio (p. 259260).


115 Noel Rosa era o maior talento musical de Vila Isabel, porém não o único. Pelo contrário, a Vila, neste período, era um verdadeiro celeiro de músicos. O produtor de rádio e compositor Haroldo Barbosa, confirmando o exposto, comparou a musicalidade de Vila Isabel dos fins da década de 1920 e do início dos anos 1930 com a Ipanema dos anos 1960. Corroborando a idéia, Cabral (2005) o definiu como “um bairro muito alegre, ocupado por uma classe média emergente, e que, de fato viria a produzir alguns dos artistas mais famosos do Rádio e da música popular” (p. 35). O início da carreira artística de Noel, confirmando o conteúdo das linhas anteriores, será em um conjunto musical formado por jovens de classe média do bairro, chamado Bando de Tangarás (figura 3.3). Este, contando com a participação de remanescentes do grupo Flor do Tempo, assim foi denominado em alusão aos pássaros que sempre em grupo de cinco dançam festivamente em forma de roda. Para elucidar o mencionado, faz-se pertinente enfatizar, que faziam parte deste conjunto Henrique Foréis Domingues, o Almirante e Carlos Alberto Ferreira Braga, o Braguinha, neste dias ainda João de Barro1. Outros renomados artistas também eram vizinhos de Noel, como o cantor Francisco Alves, naquele tempo o principal intérprete da música popular brasileira, Lamartine Babo, morador da rua Conde de Bonfim, na Tijuca, mas intenso freqüentador dos cafés isabelinos, Antônio Nássara (figura 3.4), caricaturista e compositor, Orestes Barbosa, jornalista influente e também compositor, por exemplo da obra-prima Chão de Estrelas (1938),

1

Braguinha adotou este pseudônimo para preservar seu anonimato. A carreira de músico não era bem vista pelas famílias tradicionais. Seu pai, Jerônimo José Ferreira Braga Netto, era diretor da Fábrica Confiança Industrial, localizada em Vila Isabel e uma das mais importantes do Brasil.


116 entre outros. Tantos interessados em música que, “por algum tempo, toda vez que um novo nome surgir, no disco ou no rádio, haverá quem pergunte: É de Vila Isabel?” (MÁXIMO; DIDIER, 1990, p. 143). Realmente muitos rapazes tocavam e improvisavam versos pelas esquinas e botequins (figura 3.5) de Vila Isabel. Não apenas sambas, mas, partidos, choros, músicas regionais, valsas, em suma, música popular de qualidade. Esquinas e botequins formavam o cruzamento do Boulevard Vinte e Oito de Setembro com a rua Souza Franco, conhecido como Ponto dos 100 Réis (esquema 3.1), o centro comercial, de circulação e de encontros do bairro. Esta toponímia se refere ao fato deste local abrigar a “mudança de seção” dos bondes (foto 3.4). A partir daquele ponto são cobrados mais cem réis de cada passageiro. Os bondes provenientes do Lins de Vasconcelos e do Engenho Novo paravam em frente à agência da Caixa Econômica (foto 3.5). Os que percorriam o caminho oposto, ou seja, procedentes do centro da cidade, o realizavam em frente ao Café Rio Clube. Completava-se o cruzamento com o Café de Vila Isabel e a Confeitaria Ventura. Todos os grupos pertencentes da comunidade isabelina, se encontravam neste local. Máximo e Didier (1990) indicam que no Ponto de 100 Réis reúne-se toda sorte de gente, jovens e velhos, operários de fábrica e desocupados, doutores e oportunistas, chefes de família e estudantes, policiais e sambistas. Os botequins e as esquinas são entidades integradoras, em torno das quais se conhecem, se aproximam, conversam, trocam idéias e até ficam amigas as criaturas mais diversas, de níveis sociais tão distintos que muito provavelmente, não houvesse os botequins e as esquinas, seus caminhos jamais se cruzariam (p. 95).

Logo, o Ponto dos 100 Réis cumpre o papel de centralidade comercial e social pois este emite e atrai fluxos que participam diretamente da dinâmica espacial do bairro e da cidade a qual está inserida (MELLO, 2002a).


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Figura 3.4: Caricatura de Noel feita por Nássara. Fonte: MÁXIMO; DIDIER, 1990.

Figura 3.5: O botequim. Fonte: MÁXIMO; DIDIER, 1990.

Figura 3.3: Almirante e o bando de tangarás. Fonte: MÁXIMO; DIDIER, 1990.


118 Esquema 3.1: O Ponto dos 100 Réis.


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PARADA OBRIGATร RIA

Foto 3.4: Garagem da Cia. Ferro-Carril de Vila Isabel. Hoje o terreno abriga a Sede do G.R.E.S. Unidos de Vila Isabel. Fonte: www.luiz.deluca.none.br.

Foto 3.5: Bar Parada Obrigatรณria. Localizado no cruzamento Boulevard Vinte e Oito de Setembro/ rua Souza Franco. Autor: Michel Rosadas, 2009.


120 Em uma destas esquinas, mais precisamente no Café de Vila Isabel, os músicos locais terão abrigo e poderão compor, tocar e cantar sempre. Este estabelecimento vai testemunhar o nascimento de várias composições de Noel, freqüentador assíduo do botequim do Carvalho, como era conhecido o Café. Tal era o papel do botequim, que o poeta comporá em parceria com Oswaldo Gogliano, o Vadico, uma música retratando seu intenso movimento. Nas linhas seguintes a letra de Conversa de Botequim (1935): Seu garçom, faça o favor De me trazer depressa Uma boa média que não seja requentada, Um pão bem quente com manteiga à beça, Um guardanapo E um copo d´água bem gelada. Feche a porta da direita Com muito cuidado

Que não estou disposto A ficar exposto ao sol. Vá perguntar ao seu freguês ao lado Qual foi o resultado do futebol. Se você ficar limpando a mesa, Não me levanto nem pago a despesa. Vá pedir ao seu patrão Uma caneta, um tinteiro Um envelope e um cartão. Não se esqueça de me dar palitos E um cigarro pra espantar mosquitos. Vá dizer ao charuteiro Que me empreste umas revistas Um isqueiro e um cinzeiro. Telefone ao menos uma vez Para 34-4333 E ordene ao seu Osório Que me mande um guarda-chuva Aqui pro nosso escritório. Seu garçom me empreste algum dinheiro Que eu deixei o meu com o bicheiro, Vá dizer ao seu gerente Que pendure essa despesa No cabide ali em frente.


121 A situação enfoca o cliente folgado desejando do estabelecimento todos os tipos de serviços. O autor resume em um único freguês diversos freqüentadores dos cafés cariocas. Isto se explica porque neste cenário, o botequim cumpre uma função integradora, que mais favores prestam aos homens do bairro. Vendendo refeições fiado, emprestando dinheiro, fixando em suas paredes anúncios manuscritos pedindo ou oferecendo empregos, pondo seu telefone à disposição dos que não o têm (...), oferecendo suas mesas para quem quer que seja, o botequim realmente serve e integra a comunidade. Para os fregueses assíduos, homens como o Carvalho e o Martinez [proprietário do Café Rio Clube] jamais dizem “não posso”. Eles sempre podem. Qualquer coisa, desde pregar mentiras salvadoras (à namorada, à mulher, ao credor ou à polícia) até dar e receber mensagens, funcionar como eficiente agência de recados (MÁXIMO; DIDIER, 1990, p. 98).

As singularidades de Vila Isabel tornarão esta porção espacial um lugar único, pleno de afeto e familiaridade para Noel Rosa. Andando por outros bairros, seja em apresentações, festas ou encontros de qualquer natureza, o poeta sentirá os efeitos causados pela distância do seu lugar natal. Para Noel, nenhum local tem a bossa e a qualidade musical da Vila. Seguindo este caminho, Tuan (1980) expressa que no transcurso do tempo as pessoas investem parte de sua vida emocional em seu lar e, em outra escala, em seu bairro. Sair da própria casa ou do bairro “é ser despido de um invólucro, que devido a sua familiaridade protege o ser humano das perplexidades do mundo exterior” (p. 114). A composição Eu vou pra Vila (1930) relata este sentimento: Não tenho medo de bamba Na roda do samba Eu sou bacharel (Sou bacharel) Andando pela batucada Onde eu vi gente levada Foi lá em Vila Isabel


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Na Pavuna tem turuna Na Gamboa gente boa Eu vou pra Vila Aonde o samba é da coroa. Já saí de Piedade Já mudei de Cascadura Eu vou pra Vila Pois quem é bom não se mistura Quando eu me formei no samba Recebi uma medalha Eu vou pra Vila Pro samba do chapéu de palha A polícia em toda a zona Proibiu a batucada Eu vou pra Vila Onde a polícia é camarada.

Esta canção é a primeira que o autor fará exaltando seu bairro. Conterá os aspectos musicais que distinguem a Vila de outros domínios do Rio de Janeiro. Nos últimos versos, Noel comenta, em um dos primeiros registros da música brasileira, a perseguição policial aos sambistas. Como relatam Máximo e Didier (1990), Vila Isabel estava desembaraçada destes incômodos. Alegria lembra mais uma vez a passagem vivida por ele e Noel numa de suas serenatas. Os dois cantavam sob janela de uma casa de vila na rua Maxwell quando viram parar, lá na entrada, o carro da polícia. Alegria engoliu seco, o violão de Noel emudeceu (...). Os dois seresteiros continuaram calados, imóveis, esperando pelo pior. − Escute aqui − disse o comissário para Alegria. − Pois não, seu doutor. − Vocês conhecem Última Lágrima? Noel Rosa e Alegria se entreolharam. Não conheciam, não. − Aquela valsa do Cândido das Neves. − Ah! − exclamou Alegria aliviado. − O doutor deve estar falando de Íntima Lágrima. − Sim, esta mesma. − Conhecemos sim, seu comissário. − Então vamos lá. Cantem. Mas depressa. Tenho ronda pra fazer. E Alegria, Noel ao violão, cantou: (...) Não, a polícia da Vila nunca foi de perseguir seresteiro (p. 147).


123 Em outra composição, Noel Rosa revelará seus laços topofílicos com seu bairro de nascimento. Topofilia, nas palavras de Tuan (1980), diz respeito a um neologismo útil em sentido amplo para enfocar manifestações específicas do amor humano por um lugar. Ou seja a filiação, a querência de uma pessoa ou grupo pelo seu universo vivido. Bom Elemento (1930) nasce de uma parceria com Euclydes Silveira, o Quidinho da Aldeia Campista. Igualmente a Noel, Quidinho tem contato íntimo com os negros do morro do Salgueiro e da Mangueira, se apropriando inclusive dos seus termos e expressões. Apesar do talento, será um dos vizinhos do poeta que não atingirá o sucesso. Entrei no samba, Os malandros perguntaram Se eu era bamba No bater do tamborim E o batuque Eles logo improvisaram Eu dei a cadência assim: Meu bem, o valor dá-se a quem tem A Vila e a Aldeia não perdem pra ninguém (O que é que tem?) Meu bem, o valor dá-se a quem tem A Vila e a Aldeia não perdem pra ninguém Com violência Enfrentei a batucada, A harmonia Do meu simples instrumento Fez toda a turma Ficar muito admirada Porque sou bom elemento.

Como pode ser visto, os autores juntam-se para enaltecer seus bairros e atestar que são bambas do samba. Apesar de bons elementos, portanto distantes da malandragem, estes são verdadeiros sambistas. Cabe citar, neste instante, que a Aldeia Campista já não existe como bairro, sendo hoje


124 parte de Vila Isabel. Por conseguinte, se Quidinho nascesse nos dias atuais seria mais um talento musical do bairro de Noel. Mais a seguir, em 1934 Lela Casatle, moça de Vila Isabel, é eleita Rainha da Primavera e passa a ser conhecida em toda a cidade. Fotos suas são estampadas nas revistas e nos jornais. Compositores inspiram-se nesta rainha da beleza. A comunidade isabelina sente orgulho do acontecimento que eleva o bairro. Aproveitando a oportunidade para homenagear Lela, Noel Rosa produzirá, com melodia de Vadico, a maior declaração de amor a sua terra natal. Nascia Feitiço da Vila: Quem nasce lá na Vila Nem sequer vacila Ao abraçar o samba Que faz dançar os galhos Do arvoredo E faz a lua nascer mais cedo. Lá em Vila Isabel Quem é bacharel Não tem medo de bamba. São Paulo dá café Minas dá leite E a Vila Isabel dá samba. A Vila tem Um feitiço sem farofa Sem vela e sem vintém Que nos faz bem. Tendo nome de princesa Transformou o samba Num feitiço decente Que prende a gente. O sol na Vila é triste Samba não assiste Porque a gente implora: Sol, pelo amor de Deus, Não venha agora Que as morenas vão logo embora. Eu sei tudo que faço, Sei por onde passo, Paixão não me aniquila. Mas tenho que dizer:


125 Modéstia à parte, Meus senhores, eu sou da Vila! Na primeira estrofe o poeta evidencia que o bacharel, símbolo da cultura branca e letrada, e o bamba, fruto da mestiçagem carioca, transformam a Vila em um lugar de encontro e confraternização entre ambos através do samba. O próprio Noel estampa a personificação deste encontro. Logo em seguida, o samba é qualificado como mais um produto nacional, este com origem em Vila Isabel, somando-se a outros, a saber, o leite e o café advindos de Minas Gerais e São Paulo respectivamente. Mais do que isso, Noel coloca no mesmo patamar escalar e de riqueza unidades da Federação com o seu bairro vivido, ou seu lugar por excelência (MELLO, 1991). Desta forma, o autor sutilmente elege este gênero musical como um misto entre os radicais, café (preto) e o leite (branco) (SANDRONI, 2001), ou seja, o samba como uma manifestação popular tipicamente mestiça. Legitimando o referido, Sodré (1998) destaca que a simples situação de classe ou de cor não basta para explicar o fenômeno do samba. Trata-se, na verdade, de uma posição cultural, de um lugar em que se inscreve o compositor, não por decisão puramente racional ou doutrinária, mas por um impulso especial de sentido, cujo pólo de irradiação se encontra na transitividade cultural das classes economicamente subalternas (p. 45).

No estribilho da mesma canção, Noel enfatiza que o samba da Vila tem feitiço, porém decente (“sem farofa, sem vela e sem vintém”). O termo sugerido denota aceitação social, o aval da Princesa (“tendo nome de princesa, transformou o samba num feitiço decente que prende a gente”) confirmando a pertinência de se ouvir e/ou cantar samba independente da classe social (SANDRONI, 2001). O último verso da obra tem um valor


126 especial para esta investigação geográfica pois é a partir dela que a identidade de Vila Isabel vai ser construída em torno do samba e da boemia. “Ser da Vila” confirmará desde então a procedência genuína de um sambista. Segundo Carney (2007) isto ocorre porque a música reflete e influencia as imagens que as pessoas possuem dos lugares e a forma como estas imagens mudam expressivamente as atitudes das pessoas com os lugares. Em outras palavras, ao ouvir determinadas músicas, indivíduos associam um estilo de música a um lugar, neste caso, o samba à Vila Isabel. Tuan (1983) ao abordar a questão alerta que muitos lugares, significantes para certos grupos ou indivíduos, têm pouca notoriedade visual, restando apenas o conhecimento emocional. Deste modo uma função da arte literária e/ou musical, é permitir a visibilidade de experiências íntimas, inclusive às de lugar. Neste quadro, Noel o faz através de suas canções. A última homenagem prestada por Noel à Vila Isabel deriva de uma polêmica musical com Wilson Baptista. Conforme Máximo e Didier (1990) explicam, Wilson conquistou uma mulher pretendida por Noel. Inconformado, o Poeta da Vila inicia a disputa ao arremedar o samba, listado no segundo capítulo, Lenço no Pescoço. Wilson, prosseguindo com a peleja, compõe Conversa Fiada (1935): É conversa fiada Dizerem que o samba Na Vila tem feitiço, Eu fui ver para crer E não vi nada disso. A Vila é tranqüila Porém eu vos digo: cuidado! Antes de irem dormir, Dêem duas voltas no cadeado. Eu fui na Vila ver o arvoredo se mexer E conhecer o berço dos folgados


127 A lua nessa noite demorou tanto Me assassinaram um samba Veio daí o meu pranto.

Ouvindo publicamente um compositor espinafrar a Vila, Noel decreta o fim da polêmica com Palpite Infeliz (1935). Quem é você que não sabe o que diz? Meu Deus do Céu, que palpite infeliz! Salve Estácio, Salgueiro, Mangueira, Oswaldo Cruz e Matriz Que sempre souberam muito bem Que a Vila não que abafar ninguém, Só quer mostrar que faz samba também. Fazer poema lá na Vila é um brinquedo, Ao som do samba dança até o arvoredo. Eu já chamei você pra ver, Você não viu porque não quis Quem é você que não sabe o que diz? A Vila é uma cidade independente Que tira samba mas não quer tirar patente. Pra que ligar a quem sabe Aonde tem o seu nariz? Quem é você que não sabe o que diz?

Obra-prima da música carioca, além de defender elegantemente o seu lugar natal, a canção promove a confraternização do mundo do samba ao situar a Vila no mesmo patamar do Estácio de Sá, Salgueiro, Mangueira, Oswaldo Cruz e Matriz. Ao compor músicas em homenagem a Vila Isabel, Noel Rosa 2 registrou a riqueza das suas experiências vividas em relação ao seu lugar íntimo. A música, neste sentido, cumpre o papel de aguçar a paixão e o orgulho pelo lugar vivido (TUAN, 1983; MELLO, 2000).

2

Noel Rosa faleceu no dia 04 de maio de 1937 vítima da tuberculose, com apenas 26 anos de idade. Compôs sozinho ou em parceria 259 canções (MÁXIMO; DIDIER, 1990).


128 Os laços identitários do bairro com o samba se fortalecerão anos mais tarde com a fundação do Grêmio Recreativo Escola de Samba Unidos de Vila Isabel e com Martinho da Vila.

3.3- A Vila de Martinho Nos anos de 1940 a Vila ganhará novos acordes e batuques com a fundação de uma escola de samba. A autoria da façanha deve-se a Antônio Fernandes da Silveira, o Seu China, apelido cunhado pelo fato de ter os olhos apertados, à moda oriental. Seu China, que residira anteriormente no morro do Salgueiro, ao mudar-se para o morro dos Macacos encontrou um bloco chamado Acadêmicos da Vila cujas cores eram vermelho e branco. Este se notabilizava pela maneira organizada como desfilava, sendo a maioria dos seus componentes moradores do morro do Pau da Bandeira. A partir do desfile do Acadêmicos da Vila no carnaval de 1946, com seus componentes fantasiados e isolados por uma corda conforme uma mini escola de samba, que Seu China conceberá a idéia de criar uma agremiação carnavalesca no bairro (MARTINHO DA VILA, 1999). Logo após o carnaval, ocorreu a articulação entre Seu China e membros do bloco de sua inspiração, Acadêmicos da Vila. As cores azul e branco batizaram a escola em homenagem ao fundador, pertencente no passado à Escola Azul e Branco do Salgueiro. Integrantes do bloco de Dona Maria Tataia, conhecido por ter entre os seus principais instrumentos pistons, trombones e clarinetes, colaboraram também com a iniciativa. Como resultado do esforço conjunto, fora institucionalizado no dia 04 de abril de 1946 o Grêmio Recreativo Escola de Samba Unidos de Vila Isabel.


129 Os primeiros ensaios da debutante escola de samba realizavam-se na rua Senador Nabuco 248 casa 03 (localizada no Caminho Central, que permite o acesso ao morro dos Macacos), mais precisamente no quintal do fundador. Seu China, Antônio Fernandes da Silveira, faleceu em 1966, com 76 anos de idade. Na década de 1960, a Unidos de Vila Isabel vai passar por uma série de transformações com a assunção de um novo grupo de gerenciadores. Neste contexto chega à Vila um compositor cuja história sempre estará ligada a esta agremiação. A figura proeminente em foco é Martinho José Ferreira (foto 3.6) nascido no dia 12 de fevereiro de 1938 em Duas Barras, interior do estado do Rio de Janeiro. Quatro anos depois, sua família mudou-se para a Favela da Boca do Mato, localizada na serra dos Pretos Forros, elevação esta que permeia os bairros cariocas do Méier, Engenho de Dentro e Lins de Vasconcelos. Aos 13 anos Martinho já integrava a escola de samba Aprendizes da Boca do Mato. Seis anos mais tarde comporia seu primeiro samba-enredo (MARTINHO DA VILA, 1999). No carnaval de 1965 a Vila Isabel adquire o direito de desfilar entre as grandes escolas ao obter a segunda colocação no grupo de acesso. A agremiação comandada pelo banqueiro de bicho Waldemir Garcia, o Miro, decidiu convidar pessoas de outras escolas capazes de manter a Vila no grupo de elite do carnaval carioca. Inicialmente Martinho foi convidado pelo ex-presidente Davi Corrêa para atuar na diretoria, na função de secretário, e para organizar a ala dos compositores. Não aceitou o primeiro cargo, mas assumiu o segundo compromisso. Como rito de passagem, o recém-chegado precisou fazer um samba sobre a Vila Isabel. Boa Noite (1965) é a primeira


130 obra de Martinho para sua nova escola e este surge reverenciando ou mesmo saudando o seu lugar vivido, a “... terra de Noel...”: Boa noite, Vila Isabel Quero brincar o carnaval Na terra de Noel Boa noite, diretor de bateria Quero contar com sua marcação Boa noite, sambistas e compositores Presidentes e diretores Pra Vila eu trago toda a minha inspiração Quero acertar com o diretor de harmonia E as pastoras o tom da minha melodia Aaaaaaaaa Óóóóóóóóó Ôôôôôôôôô Laralá, larará, la ra ra Passistas, mestres-sala, ritmistas Quero ver samba feito com animação Eu quero ver as alas reunidas Baianas brilhando no carnaval Eu quero ver a Vila destemida Fazendo evolução monumental

O samba focaliza o momento em que a Unidos de Vila Isabel está pronta para adentrar a avenida. Também notamos a referência a Noel com o intento de demonstrar que o bairro tem um ícone de reconhecido prestígio no mundo do samba. Após o batismo, Martinho tornara-se da Vila adicionando ao seu nome a toponímia do seu universo vivido. O ano de 1965 não marcou apenas a escola mas também todo o bairro. A cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro completava seu quarto Centenário de fundação. Um ano antes, o governador do então Estado da Guanabara, Carlos Lacerda, determinou que as calçadas do Boulevard Vinte e Oito de Setembro fossem pavimentadas com pedras portuguesas. Aproveitando a ocasião comemorativa, o arquiteto Orlando Madalena,


131 membro do Lions Club de Vila Isabel, expôs à diretoria sua intenção de decorar as calçadas com partituras musicais de Noel Rosa. A instituição consultada aprovou a idéia. Todavia condenou o bairrismo da proposta, sugerindo a escolha de canções brasileiras consagradas. Com o aval do governador, o arquiteto designou Almirante, grande conhecedor da música brasileira e, neste período, popular locutor de rádio, para executar a seleção. O tamanho dos quarteirões embasou a distribuição das partituras. Para separar as composições foram desenhados violões e cavaquinhos pelo arquiteto Hugo Ribeiro. Em 28 de agosto de 1964, o primeiro trecho contendo a canção A Voz do Violão (1928), de Francisco Alves e Horácio Campos, foi inaugurado. Reconhecendo o simbolismo e o valor patrimonial das calçadas musicais (foto 3.7), a Assembléia Legislativa do Município do Rio de Janeiro julgou pertinente tombá-las por uma iniciativa da Ucovi (União dos Comerciantes de Vila Isabel) em 1999. De acordo com Wagner (1979), na experiência repetida, as pedras portuguesas alinhadas reproduzindo notas musicais transformam-se em “veículos de significado” (p. 20). Contudo, nos lembra o autor, estas não são marcas ou signos em si, só o são por atribuição de um indivíduo ou grupo social. A respeito disto Mello (2003) comenta que “esta questão de posse, defesa e significado remontam à noção fenomenológica de mundo vivido (...), consoante a alma dos lugares” (p. 65).


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Foto 3.6: Martinho da Vila Fonte: www.cifrantiga.blogspot.com.

Foto 3.7: Trecho das calรงadas musicais. Autor: Michel Rosadas, 2006.


133 Mapa 3.1: As calรงadas musicais de Vila Isabel.


134 “Carnaval de Ilusões”, enredo da Unidos de Vila Isabel de 1967, revolucionaria os desfiles de todas as escolas. Até então os desfiles possuíam motes didáticos, ligados a História do Brasil. A idéia da Vila era fantasiar no sentido de sonho da palavra e um pouco de teatralização, pois escola de samba é o maior teatro ambulante, onde todos os componentes são atores em desfile. (...) transformar todos os participantes em crianças, uma criança que ouviu estórias infantis, leu contos de fadas e sonhou com todos aqueles personagens de leitura desfilando num carnaval de ilusão (MARTINHO DA VILA, 1999, p. 145).

Além do enredo, a Vila rompeu também com o pragmatismo das agremiações que se apresentavam contendo unicamente as suas respectivas cores. Ainda que mantendo a base branca e azul, as fantasias continham vermelho, prata e ouro. Embora portadora de sólidas inovações a Vila figurou entre as favoritas mas não venceu. Sete anos depois, a Vila aprendeu da pior forma que nem todas as inovações trazem benefícios imediatos para a agremiação. O enredo de 1974 contava a história da tribo dos Carajás. O samba de Martinho da Vila sobre o tema fora considerado subversivo pela censura política. Com isto, a escola viu-se obrigada a modificar o samba assim como o andamento do enredo. O resultado na passarela foi desastroso. Protagonista da situação, Martinho compôs um samba louvando o bairro e afirmando o soerguimento da escola (MARTINHO DA VILA, 1999). Do fato resultou Renascer das Cinzas: Vamos renascer das cinzas Plantar de novo o arvoredo Bom calor nas mãos unidas Na cabeça um grande enredo Ala dos compositores Mandando um samba no terreiro Cabrocha sambando Cuíca roncando,


135 Viola e pandeiro No meio da quadra Pela madrugada Um senhor partideiro Sambar na avenida de azul e branco é o nosso papel Mostrando pro povo que o berço do samba É em Vila Isabel

O arvoredo que balançava vividamente nos tempos de Noel será replantado. Os componentes da escola novamente farão seu papel para mostrar “que o berço do samba é em Vila Isabel”. A menção ao “azul e branco” vale para destacar a importância das cores para uma agremiação carnavalesca. O geógrafo Lowenthal (1985), abordando o assunto, ressalva que são atribuídos valores para as cores, bem como para as formas, fazendo com que grupos sociais se identifiquem através delas. Apesar de não ter nascido ou crescido em Vila Isabel, Martinho por meio da escola de samba, transformou o bairro em seu lugar vivido. Tuan (1983), após refletir sobre quanto tempo demora para se conhecer uma unidade espacial, afirma que “sentir” um lugar demanda tempo. (...) se faz de experiências, em sua maior parte fugazes e pouco dramáticas, repetidas dia após dia e através dos anos. É uma mistura singular de vistas, sons e cheiros, uma harmonia ímpar de ritmos naturais e artificiais, como a hora do sol nascer e se pôr, de trabalhar e brincar. (...) Com o tempo nos familiarizamos com o lugar, o que quer dizer que cada vez mais o consideramos conhecido (p. 203).

Dez anos depois de Renascer das Cinzas, o compositor dedicou um trabalho completo ao seu espaço vivido. Holzer (1992), com base nas idéias de Frémont (1978), aponta que o espaço vivido é uma experiência contínua, egocêntrica e social. Um espaço de movimento e um espaço-tempo vivido, uma categoria que não se reduz ao espaço cartesiano ou Euclidiano, mas se refere ao afetivo, ao mágico, ao imaginário (p. 440).


136 Algumas músicas desta produção, singelamente intitulada “Martinho da Vila Isabel”, merecem destaque especial por revelar em seus versos afirmações de amor e familiaridade pelo bairro de Noel. Na obra Vem pro Samba Meu Amor (1984), o compositor do bairro Diógenes registra o legado do Poeta da Vila como o idealizador do verdadeiro samba: Vem pro samba, vem sambar Vem pro samba meu amor Que o samba na Vila tem muito mais sabor O nosso samba é malemolência Nossas cabrochas olha o passo, veja a cadência Os ritmistas são caprichosos e não saem do tom O samba é belo, o samba é doce, o samba é bom O nosso samba não se aprende no colégio É privilégio que Noel Rosa nos deixou Mas se você nunca foi a um samba na Vila Então esteja certa que também nunca sambou Mas vem pro samba vem sambar Vem, vem pro samba meu amor Que o samba na Vila tem muito mais sabor

O autor comenta a qualidade dos componentes da Unidos de Vila Isabel e encerram a letra enaltecendo o samba diferenciado da Vila, que “tem muito mais sabor”. Na canção Vila Isabel (1957), de Valdemar de Abreu, o Dunga, membro da ala de compositores da agremiação homônima, novamente o bairro é identificado como “berço de poetas imortais” cujos “sambas têm magia”. A fidelidade e o amor pelo lugar vivido também aparecem através dos versos “serei eternamente o teu cantor, canto e canto de alegria o teu louvor”. Noel, o mais representativo sambista isabelino, mais uma vez é honrado numa música com o nome do bairro. Vila Isabel És manchete de revistas e jornais


137 És um berço de poetas imortais Mundo inteiro te conhece e não te esquece Vila Isabel És manchete em revistas e jornais És um berço de poetas imortais Mundo inteiro te conhece e não esquece Vila Isabel Para o artista és um tema ideal Tens arte e poesia Teus sambas têm magia Tu és a imagem pura do carnaval Vila Isabel Serei eternamente o teu cantor Canto e canto de alegria o teu louvor Fevereiro a fevereiro com meu pandeiro Vila Isabel De pastoras tão bonitas, meu senhor Tu és um festival de luz e cores Inspirando amor O sereno está caindo Em toda Vila Isabel É o céu que está chorando Com saudade de Noel Vila Isabel, Vila Isabel Serei eternamente teu cantor Canto e canto de alegria em teu louvor Fevereiro a fevereiro com meu pandeiro Vila Isabel Das pastoras tão bonitas meu senhor Tu és um festival de luz e cores Inspirando amor

Assim como Noel Rosa registrou as interações espaciais (CORRÊA, 1997) ou o balé do lugar (SEAMON, 1980) de sua época em São Coisas Nossas (1932), Martinho repete o feito quando interpreta Flor dos Tempos (1984), canção de Ruy Quaresma e Nei Lopes. Abaixo o segmento que confirma a idéia: Vila lá vou eu Camisa aberta, ventre livre, chinelo nos pés Da Barão de São Francisco, tomo um chopp no Petisco Faço uma fé no Cem Réis Vila, Vila eu vou


138 Por entre as notas das calçadas musicais Vou seguindo as partituras De tão sábias criaturas Que fizeram sambas imortais A letra sugere que o movimento descrito remete a uma pessoa familiarizada com o bairro, tanto pelos locais que freqüenta (“tomo um chopp no Petisco, faço uma fé no Cem Réis”) quanto pelas vestes informais (“camisa aberta, ventre livre, chinelo nos pés”). Nos últimos versos, os autores dedicam-se a homenagear as calçadas musicais, que abrigam obras de “tão sábias criaturas que fizeram sambas imortais.” Martinho da Vila volta a se aproximar da obra de Noel com a canção Quando o ensaio começar (1984), de Zé Branco e Lolote. Conforme o poeta em Eu vou pra Vila (1930), o sambista caminha por diversos locais da cidade, mas retorna ao “samba vibrante” do seu lugar íntimo, ou lar: Quando o ensaio começar, Quando o ensaio começar, eu vou te levar na Vila pra ver Vais ouvir um samba diferente E sambar com muita gente Isso é que nos dá prazer Eu fui lá na Mangueira, gostei No Império Serrano também Eu fui na Portela e o samba estava pra lá de bom Num domingo de folga que eu tive Eu subi fui a Padre Miguel Mas voltei radiante pro samba vibrante de Vila Isabel

No ritmo do samba coloquemos em pauta uma outra página relevante da história, da política e da geografia do país. Cem anos da abolição da escravatura no Brasil se completariam em 1988. Como vimos anteriormente, o bairro de Vila Isabel tem um passado abolicionista a começar pelo nome, passando pelos seus personagens, como o Barão de Drummond e seus


139 colaboradores e, posteriormente, a ligação da Vila com a cultura negra, através do samba, pela genialidade de Noel Rosa e o talento de Martinho da Vila. Naquele ano três escolas de samba escolheram a Abolição da Escravatura como enredo, inclusive a Unidos de Vila Isabel. Martinho da Vila idealizou “Kizomba, festa da raça” (foto 3.8). Cabe ressaltar que o termo kizomba significa encontro, festa de confraternização, como esclarece o próprio autor. O mesmo relata a apreensão e a emoção dos momentos que antecederam o desfile da agremiação. No histórico carnaval do centenário, a Unidos de Vila Isabel foi a escola de samba que se apresentou com o maior contingente de negros em desfile. Até nos carros alegóricos, lugar de rico ou de mulher pelada, havia negros também, mas os brancos estavam lá, perfeitamente integrados, curtindo uma legal, felizes, emocionados e conscientes de que não estavam simplesmente se exibindo. Sabiam que participavam de um acontecimento importante.(...) 3 Paulo Brazão , o grande fundador, foi colocado num digníssimo trono, como um Soba, o Grande Chefe. A Presidente Lícia Maria Maciel Caniné, a Ruça, estava com os nervos à flor da pele e não conseguia falar. Passou a bola para o autor intelectual do enredo, Martinho da Vila: − Alô, Vila Isabel! Cada um de nós a partir de agora é um Zumbi, é alegre. Zumbi canta. Zumbi dança. Valeu, Zumbi? − Valeu. − Mais forte, gente. Valeu, Zumbi? − Valeeeu. − Axé pra todo mundo! − Axé. A um sinal do Jaiminho, o diretor de harmonia manda atacar. Claudinho Jorge marca no violão. O pandeiro do Paulinho da Aba e a cuíca do Ovídio firmam o ritmo. Três mil e quinhentos componentes estão ofegantes. O cavaquinho do Wanderson chora e o puxador Gera ataca o forte samba de Luís Carlos [da Vila], do Rodolfo e do Jonas: “Valeu Zumbi! O grito forte dos Palmares Que correu terras, céus e mares Influenciando a abolição Zumbi valeu! Hoje a Vila é Kizomba É batuque, canto e dança Jongo e maracatu Vem menininha pra dançar o caxambu Ôô, ôô, Nega Mina 3

Primeiro Diretor-Geral da Agremiação. Em 1948 teve o privilégio de ser eleito CidadãoSamba do Rio de Janeiro pela antiga União Geral das Escolas de Samba.


140 Anastácia não se deixou escravizar Ôô, ôô Clementina O pagode é o partido popular O sacerdote ergue a taça Convocando toda a massa Neste enredo que congraça Gente de todas as raças Numa mesma emoção Esta Kizomba é nossa Constituição Que magia! Reza, ajeum e Orixás Tem a força da cultura Tem a arte e a bravura E um bom jogo de cintura Faz valer seus ideais E a beleza pura dos seus rituais Vem a Lua de Luanda Para iluminar a rua Nossa sede é nossa sede De que o apartheid se destrua Valeu” Mestre Mug, o diretor de bateria, ergue os braços. O apito estrila e a bateria arrebenta com seus surdos, reco-recos, agogôs, taróis, caixas, repiques, pandeiros, centradores, cuícas e tamborins. São 320 ritmistas tocando loucamente. Os corações vêm à boca e todo mundo entra em transe. É a Vila Isabel na passarela. É a Kizomba no carnaval (VILA, 1999, p. 111, 113 e 114).

Em momentos como este a Unidos de Vila Isabel funciona como elemento difusor de organização do espaço. Segundo Oliveira (1978) a difusão espacial caracteriza-se por uma aceitação no tempo de alguma idéia ou prática por indivíduos ou grupos ligados a uma estrutura social inserida em um sistema de valores ou cultura. A referida agremiação projeta sua imagem através dos seus ensaios e desfiles. Mesmo sem luxo e sem patrono, alguém que viabilize o desfile financeiramente, o G.R.E.S. Unidos de Vila Isabel sagrou-se campeão do carnaval de 1988. A letra do samba e sua melodia fazem jus à data comemorativa. Vencer o campeonato em um ano tão especial e por uma escola com escassos recursos foi realmente extraordinário para o bairro e para todos os envolvidos neste êxito. Sem quadra, na época, a festa da


141 vitória ocorreu nas ruas do bairro. Até os dias atuais o samba-enredo da Vila é um dos símbolos de resistência da cultura negra sendo cultuado e cantado em carnavais e festividades oportunas, como o Dia da Consciência Negra (20 de novembro). Após dezoito anos de espera a Unidos de Vila Isabel alcançou seu segundo triunfo. A sede, situada no Boulevard Vinte e Oito de Setembro, único logradouro da urbe carioca com tal distinção, abrigou a festa de comemoração do título no grupo especial das escolas de samba do Rio de Janeiro cujo enredo intitulara-se “Soy loco por ti, América - a vila canta a latinidade” (foto 3.9). Por todos os motivos que cercam uma conquista, esta tem um sabor especial, pois neste carnaval completaram-se sessenta anos da fundação da agremiação. Isto posto, pode-se destacar a extraordinária centralidade conferida à sua quadra em momentos como o acima referido.


142

Foto 3.8: Desfile da Unidos de Vila Isabel em 1988. Fonte: www.cifraantiga.blogspot.com.

Foto 3.9: Novamente campeĂŁ em 2006. Fonte: www.gresunidosdevilaisabel.com.br.


143 3.4 - O Feitiço da Vila As sucessivas transformações tecnológicas e econômicas dos últimos tempos acarretaram uma redefinição do que entendemos por comunidade e lugar. Buttimer (1985a), debatendo o assunto, aponta que uma comunidade não deve ser analisada exclusivamente como um grupo social que enfrenta unido algum desafio comum ou que compartilha recursos limitados. Hodiernamente, geógrafos interessados na questão devem se debruçar sobre “as conseqüências psicológicas e emocionais de genre de vie fragmentados, justapostos no espaço físico porém estranhos no espaço social” (p. 239). Em outros termos, a autora justifica que, nas sociedades complexas, vários grupos sociais heterogêneos ocupam, muitas vezes, a mesma porção espacial sem comungar de princípios e valores coletivos. Neste panorama, elementos culturais como a música, podem servir para distinguir lugares uns dos outros. Nesta perspectiva Moura (2004) trata da questão dos usos e funções da música em uma determinada sociedade. Embasado em Merriam (1964), o autor assevera que as letras de música produzem “funções particulares para a sociedade na medida em que elas sempre expressam valores” (p. 53). Em outro segmento, o autor conclui que a música, então, promove um ponto de agrupamento em torno do qual os membros de uma determinada sociedade reforçam os compromissos que requerem a cooperação e coordenação do grupo (p. 102).

Carney (2007), geógrafo estudioso da influência da música sobre os lugares, contribui com o tema em foco ao salientar que a referência a um lugar no título ou letra de uma canção acende uma memória sobre ele, mas com o tempo os próprios sons musicais podem evocar um sentido de lugar de uma maneira que


144 talvez só seja igualada, em um nível pessoal, pelos aromas especiais da cozinha ou a visão da casa da vovó (p. 146).

Os sambas de Noel Rosa e Martinho da Vila, inseridos neste trabalho, tanto pelos títulos quanto pelos teores, exemplificam a citação anterior. Através destes, identifica-se o bairro como lugar único por ser um genuíno produtor de samba e de todas as variantes que cercam este gênero musical, como a roda, a boemia e a partilha de uma visão de mundo comum. Assim podemos associar a unidade espacial em destaque e um gênero musical. Nesta circunstância o samba, “pode funcionar como uma fonte de identidade geográfica, (...) bem como uma ajuda para favorecer um sentido de orgulho pelo lugar e um sentimento de ligação com ele” (CARNEY, 2007, p. 147). A identidade social fornece substância e atribui significados a objetos ou pessoas de acordo com os critérios estabelecidos. A identificação remete a dois processos distintos e complementares. De um lado, a identificação consiste, em um sentido lógico transitivo, em designar e nomear qualquer coisa ou qualquer um, e depois em caracterizar sua singularidade. De outro lado, em um sentido intransitivo e por vezes reflexivo, e entendendo a identidade como similaridade, a identificação consiste em se assemelhar a qualquer coisa ou a qualquer um e se traduz, principalmente, tanto para o indivíduo como para o grupo, por um sentimento de pertencimento comum, de partilha e de coesão sociais (LE BOSSÉ, 2004, p. 161).

Haesbaert (1999) concorda com o autor ao defender que identificar, na esfera humano-social, significa identificar-se, em um processo reflexivo. Ao mesmo tempo, identificar-se é sempre uma ação de identificar-se com, o que se traduz em um processo relacional, dialógico, inserido numa relação social. Desta maneira a identidade é formada tanto pelo pertencimento quanto pela exclusão, aproximando-se destarte tanto daquilo que leva em consideração como daquilo que negligencia.


145 Consideramos como o suporte essencial da identidade social, o lugar. Este, conforme Tuan (1983), é um centro de valores estabelecidos pela subjetividade dos indivíduos e dos grupos. Devido a estabilidade e à permanência, a unicidade e a especificidade, o lugar adquire um foco identitário independente da escala, desde o lar até o território nacional ou o próprio planeta (MELLO, 2000; LE BOSSÉ, 2004). Assim sendo, os grupos sociais ao afirmarem e reivindicarem sua identidade cultural e política em relação ao seu lugar forjam uma territorialidade simbólica. Para Haesbaert (1999), uma identidade territorial. De acordo com o autor isto ocorre quando uma identidade social define-se fundamentalmente através do território, ou seja, dentro de uma relação de apropriação que se dá tanto no campo das idéias quanto no da realidade concreta, o espaço geográfico constituindo assim parte fundamental dos processos de identificação social (p. 172).

Convém lembrar que na definição de território caracterizada pelo autor, a dimensão simbólica, promovida pelas identidades, se sobrepõe à dimensão mais concreta, como do domínio político que faz uso de fronteiras territoriais para o exercício do poder. Bonnemaison (2002), caminhando na mesma direção, evidencia que o território se constrói como sistema e como símbolo. Um sistema porque ele se organiza e se hierarquiza para responder às necessidades e funções assumidas pelo grupo que o constitui. Um símbolo porque ele se forma em torno de pólos geográficos representantes dos valores políticos e religiosos que comandam sua visão de mundo (p. 106).

Sobre o exposto, Claval (1999) certifica que os seres humanos necessitam de uma base territorial que desempenhe o papel de refúgio e de um espaço onde se sintam protegidos, conhecidos e reconhecidos. A mesma idéia tem sido perseguida pelos adeptos da ala humanística recorrendo ao conceito lugar advindo da noção fenomenológica do mundo vivido.


146 Apesar da importância do valor ritual e simbólico, o território identitário também é palco de práticas ativas e atuais pelas quais se afirmam e vivem as identidades. Neste sentido, devemos debater a noção de símbolo para entendermos a relação entre identidade social e território (HAESBAERT, 1999; LE BOSSÉ, 2004). Em consonância com Tuan (1980; 1983), um símbolo representa uma parte que tem o poder de sugerir um todo. Em outras palavras, o símbolo nasce da necessidade de se ter objetos tangíveis nos quais se possa apoiar o sentimento de identidade, tais artefatos transcendem suas condições e passam, então, a ser símbolos de querência/afetividade ou de rejeição (MELLO, 2003). Para Bonnemaison (2002), símbolos espaciais são geossímbolos. Um geossímbolo pode ser definido como um lugar, um itinerário, uma extensão que, por razões religiosas, políticas e culturais, aos olhos de certas pessoas e grupos étnicos assume uma dimensão simbólica que os fortalece em sua identidade (p. 109).

Discutindo o tema, Corrêa (2005) qualifica os símbolos espaciais como formas simbólicas espaciais. Estas são ditas espaciais quando constituídas por fixos e fluxos, “isto é, por localizações e itinerários, apresentando, portanto, os atributos primeiros da espacialidade” (p. 3). Dentre inúmeras atribuições,

as

formas

simbólicas

espaciais

“constituem

importantes

elementos no processo de criação e manutenção da identidade, seja étnica, racial, social, religiosa ou nacional, seja ainda a identidade de um lugar” (p. 6). Para um determinado grupo social, particularmente compositores, músicos, intérpretes, poetas, sambistas anônimos, residentes ou amantes de Vila Isabel, o bairro assume uma identidade territorial costurada pelos geossímbolos ou pelas formas espaciais simbólicas presentes em seus


147 domínios. O monumento de Noel Rosa (foto 3.10), posicionado na praça Maracanã, recepcionando quem chega à Vila, a edificação das calçadas musicais e seu posterior tombamento, exibindo o forte apelo musical, e a própria sede da Unidos de Vila Isabel (foto 3.11), inaugurada em 2004 e localizada

no

Boulevard

Vinte

e

Oito

de

Setembro

representam

espacialmente neste simbólico lugar a identidade da porção espacial em evidência. A construção destes geossímbolos reforça a identidade social de Vila Isabel iniciada pela biografia de Noel Rosa e seus contemporâneos na década de 1930 e consolidada pela obra de Martinho da Vila e, ainda, pelos desfiles da agremiação local, que difunde e fortalece os laços identitários da Vila anualmente no carnaval carioca, no chamado “maior espetáculo da Terra”, evento este de grande repercussão nacional e internacional. Halbwachs (1990) confirma o narrado ao afirmar que memória coletiva – dita pela maioria de pesquisadores como seletiva – tem seu ponto de apoio sobre as imagens espaciais. Com isto, não há memória seletiva que se perpetue ausente de um quadro espacial. Tuan (1980), compartilhando a idéia, constata que a consciência do passado é um elemento importante no amor pelo lugar. Logo, os geossímbolos relacionados são o reflexo dos significados emitidos pela memória seletiva do bairro que identifica e particulariza a Vila como local do samba e da boemia carioca. Martinho da Vila (1999) ilustra a passagem ao descrever como fato único a comemoração da conquista de 1988. Na história das vitórias nunca houve uma comemoração como a nossa. A 28 de Setembro ficou toda ocupada, lotada, cheia, transbordando de gente de toda a cidade. Parecia que o Rio todo foi pra Vila Isabel e se bebeu a noite inteira sem confusão nenhuma no meio de uma zorra da porra. (...) A Vila era como um país que


148 ganhou a guerra. Era o 14 de julho na França, o 11 de novembro em Angola, o outubro de 1917 na Rússia, o dia dos cravos vermelhos de Portugal, ou o Brasil no tricampeonato de 70 (p. 247).

Foto 3.10: Monumento em homenagem a Noel Rosa. Autor: Michel Rosadas, 2006.

Foto 3.11: Sede do G.R.E.S. Unidos de Vila Isabel. Autor: Michel Rosadas, 2009.


149

CONSIDERAÇÕES FINAIS Em reação a influência das correntes neopositivistas, geógrafos interessados em resgatar os aspectos subjetivos da complexidade humana decidiram procurar caminhos independentes, trilhados inclusive pelos domínios de outras ciências, como a antropologia, a psicologia e a filosofia, tendo em vista que não existe o instituto da patente intelectual e as ciências se interpenetram. Deste esforço, surge na década de 1970 a geografia humanística, que almeja, sobretudo, priorizar a visão antropocêntrica, na qual o homem é a medida de todas as coisas. Isto permitiu que as manifestações artísticas cujo valor não se estipula por leis, métodos e sistemas analíticos pudessem servir de fonte valiosa para os estudos geográficos. A música é uma destas manifestações que tem a capacidade de traduzir sentimentos e olhares dos compositores sobre determinados pontos do espaço geográfico. Como exemplo do exposto, temos a comunidade negra residente na área periférica do centro da cidade do Rio de Janeiro, nas últimas décadas do século retrasado, que expunha, entre outros enfoques, seu cotidiano e suas idéias sobre os rumos da cidade e do país através das suas composições. Por sua vez, Pelo Telefone (1917), considerado por autores e estudiosos do assunto como o primeiro samba gravado, justifica a idéia das linhas anteriores ao abordar um tema em ebulição naqueles dias, a proliferação dos jogos de azar. Apesar de conservar o temário de suas composições, o gênero musical em evidência passou por uma série de transformações rítmicas e melódicas na década de 1930 com os sambistas do bairro do Estácio de Sá. Os malandros do Estácio inventaram novos instrumentos e foram responsáveis pela criação


150 da primeira escola de samba, a Deixa Falar. Neste cenário, um indivíduo branco e de classe média se destaca ao compor diversas canções em sintonia perfeita com o Estácio e com os sambistas do morro. Estamos falando de Noel Rosa. Até Noel figurar nos círculos da música popular brasileira, Vila Isabel era considerado um bairro fabril e de classe média, embora portador de um passado imperial, planejado com largas ruas e avenidas, herança do Barão de Drummond. No entanto, o Poeta da Vila, junto a uma geração privilegiada de músicos, compositores e intérpretes, fizeram de Vila Isabel o lugar do samba de qualidade e das incontáveis noites de boemia. Por meio das suas composições e de sua biografia, Noel, mesmo sem esta intenção, engendra a identidade do bairro. Na década seguinte ao falecimento de Noel Rosa (1937), Seu China e alguns colaboradores fundam o G.R.E.S. Unidos de Vila Isabel. Esta agremiação

perpetua

o

legado

do

poeta,

difundindo

e

divulgando

espacialmente o bairro em tela nos desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro. Tempos depois, um talentoso compositor cantará a Vila, com tanto ardor, que seu nome artístico conterá a toponímia do bairro: Martinho da Vila. Com a contribuição musical de Noel, Martinho e da agremiação carnavalesca local, a Vila de Drummond e Isabel, será marcada como uma das localidades que se caracteriza por produzir o genuíno samba carioca. Assim sendo, a memória seletiva de residentes e admiradores alicerçam a construção de geossímbolos (BONNEMAISON, 2002) ou formas simbólicas espaciais (CORRÊA, 2005) aptas a alçar o sentimento e a convicção da Vila como um lugar especial do samba.

Estes símbolos são as calçadas musicais,


151 arquitetadas em meio às homenagens ao quarto centenário da cidade (1965), bem como o monumento a Noel Rosa, saudando aqueles que chegam à Vila pela sua entrada principal, ou seja, pelo Boulevard Vinte e Oito de Setembro, e a sede da Unidos de Vila Isabel, recinto inaugurado em 2004. Neste instante, vale ressaltar, que costurada pelos geossímbolos, a unidade espacial em destaque assume uma identidade de lar/lugar, ao menos para este ou aquele indivíduo ou para um determinado grupo social. O feitiço da vila não inebriou apenas os compositores locais, mas também músicos de outros lugares que cultuam o bairro de Noel em suas obras. Na canção Vila Isabel (1952), Bide e Marçal ao reverenciar o poeta homenageiam a Vila: Ó Vila teu poeta nos contou Os teus segredos ao som do samba Viu sambar teus arvoredos Mostrou em versos Uma sincera amizade Levou seu nome no peito para a eternidade A ele rezamos um preito de saudade

Em outra composição, o sambista Bezerra da Silva (1988) se rende aos encantos e a musicalidade da Vila. A seguir, um trecho de Garoa: Vila Isabel! Vila Isabel, não chove à toa, Chuva forte lá na vila é garoa! Mas lá não pode chover Porque o samba está lá É um pagode na praça É outro no Boulevard No terreirinho também Tem gente a batucar E no jardim, muito bem, Tem sempre gente a cantar, olha aí


152 Nomes consagrados da MPB (música popular brasileira), incluíram do mesmo modo Vila Isabel em canções que falam do samba carioca. É o que faz Caetano Veloso em Pé do Meu Samba (2002): Você é a canção que consigo Escrever afinal Você é o Buraco Quente A Casa da Mãe Joana É a Vila Isabel, Você é o Largo do Estácio, Curva de Copacabana Tudo que o Rio me deu!

Em Carnavália (2001), os tribalistas Marisa Monte, Arnaldo Antunes e Carlinhos Brown repetem o feito ao incluir a Unidos de Vila Isabel em sua letra: Vamos pra avenida, desfilar a vida, carnavalizar Na Portela tem, Mocidade, Imperatriz No Império tem, uma Vila tão feliz Beija Flor, meu bem, a porta-bandeira Na Mangueira tem morena da Tradição As menções à musicalidade da Vila extrapolam as canções e os fixos de relevância alcançando até as casas comerciais do bairro que fazem uso desta identidade para nomear e/ou criar as logo-marcas dos seus estabelecimentos (fotos 4, 5, 6 e 7).


153

Foto 4: O alfaiate Euclides oferece seus serviços. Autor: Michel Rosadas, 2009.

Foto 5: O Vila Shopping. Autor: Michel Rosadas, 2009.

Foto 6: O prédio comercial Vila Trade Center. Autor: Michel Rosadas, 2009.

Foto 7: O açougue Feitiço da Vila. Autor: Michel Rosadas, 2009.


154 As marcas da negritude persistem em lugares anteriormente ocupados pela chamada “Pequena África do Rio de Janeiro” (MOURA, 1995), fontes de sabedoria, malemolência e improvisos. Hoje sobre um passado glorioso estão assentados no mesmo ponto no qual se encontrava a casa da Tia Ciata, uma escola com o seu nome. Quer dizer, embora no passado o samba, o chorinho e o candomblé tenham sido reprimidos, tempos estes ganham simbolicamente status na figura da negra supracitada com um educandário em sua honra. O Terreirão do Samba e a Passarela do Samba estão, igualmente, localizados em um chão pleno de simbolismo e da riqueza ancestral de uma cultura que continua viva e pulsante. Ou seja, nem as reformas urbanas para a abertura da Avenida Presidente Vargas, nem a chamada destruição dos chamados “bairros que estão no meio do caminho” (ABREU, 2006) conseguiram arrasar o curso inicial de um rio que persiste em meio a “represas”/ obstáculos/ destruições impostos por este ou aquele governo. Mais do que isso, a Praça Onze continua sendo cantada e mesmo exaltada nos sambas enredos e, portanto, recriada nos carnavais, ainda que pulverizada em sua forma material. Mas seja como for, permitindo o retorno ou o (re)ingresso de diversas gerações ao berço do samba (MELLO, 2002b). Os acordes, batuques, sons e cânticos contribuíram para a construção das identidades dos bairros do Estácio, Cidade Nova, da mitológica Praça Onze e da Vila de Noel e Martinho. Esta investigação geográfica descortinou elementos culturais e artísticos que podem ser utilizados junto à geografia acadêmica aliando os preceitos filosóficos aos meandros dos universos vividos. Neste curso de um caudaloso Rio musical, os minadouros Cidade Nova, Estácio e Praça Onze influenciaram e verteram suas águas e talentos para


155 uma Vila Isabel receptora de criatividade e elaboradora de uma seqüência de fluidez musical na urbe carioca. Inicialmente em um Rio de proibições, gingas, festas e vanguarda confluíram o maxixe e o chorinho na Cidade Nova e, um pouco mais tarde, os batuques e o samba na Praça Onze e no Estácio. Neste vale convergiram os bambas como Pixinguinha, Donga, Sinhô, Ismael Silva e João da Bahiana, a reverência às tias, sobretudo, Ciata e, em Vila Isabel, entre outros, Noel, Martinho e a campeã de carnavais a Unidos de Vila Isabel. Por seu turno, Noel ganhou escultura e passou a ser nome de túnel, tal a sua importância no campo das artes e por propagar, décadas após sua morte, o seu universo vivido. Gerações contemporâneas ou pretéritas costumam se remeter à “Vila de Noel”. Ao lado disso, Martinho da Vila, em 1987, no Festival da Canção Francesa, realizado no extinto Hotel Nacional do Rio de Janeiro, foi apresentado “como filho de Noel Rosa com a Mãe África” (MELLO, 1991). Seus livros e sua música ecoam, entre outros países, em Angola e na França. Em suma, o Rio musical com vales, meandros e cachoeiras deságua em delta e se espraie além-mar.


156

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