Saberes e modos de fazer na confecção das fantasias dos bate-bolas

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Projeto Estudos comparados dos saberes e das artes nos circuitos da cultura popular Coordenação geral Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti (PPGSA/ IFCS/ UFRJ) Coordenadores de eixos temáticos Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti (PPGSA/ IFCS/ UFRJ) José Reginaldo Gonçalves (PPGSA /IFCS/ UFRJ) Elizabeth Costa (CNFCP/ IPHAN) Luiz Felipe Ferreira (PPGARTES/ UERJ) Ricardo Lima (CNFCP/ IPHAN) Seminário Circuitos da Cultura Popular (1 a 3 de setembro de 2010) Coordenação geral Núcleo de Estudos Ritual e Sociabilidades Urbanas (RISU) Departamento de Antropologia Cultural Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia Instituto de Filosofia e Ciências Sociais Universidade Federal do Rio de Janeiro Organização Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti ( PPGSA/ IFCS/ UFRJ) Renata de Sá Gonçalves( Departamento de Antropologia/ UFF) Assistente de Pesquisa Ricardo José Barbieri Programação visual Renata de Sá Gonçalves Participação Programa de Pós Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA/ IFCS/ UFRJ) Programa de Pós Graduação em Artes (PPGARTES/ UERJ) Setor de Pesquisas do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular (CNFCP/ IPHAN/ MinC) Apoio Edital Pró-Cultura CAPES/MinC

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Seminário Circuitos da Cultura Popular/ Maria Laura Cavalcanti, Renata de Sá Gonçalves (organizadoras). -- Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS, 2010. 586 p. Trabalhos apresentados no Seminário Circuitos da Cultura Popular realizado no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro no período de 1 a 3 de setembro de 2010. ISBN 978-85-87124-05-0 1. Arte. 2. Carnaval. 3. Cultura Popular 4. Cavalcanti, Maria Laura. 5. Gonçalves, Renata de Sá. I. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de Filosofia e Ciências Sociais. CDD : 394.25

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SABERES E MODOS DE FAZER NA CONFECÇÃO DAS FANTASIAS DOS BATE-BOLAS Aline Valadão Vieira Gualda Pereira – PPGArte/UERJ Turmas de bate-bola e tipos de fantasias Os bate-bolas são personagens carnavalescos muito comuns nas zonas norte e oeste da cidade do Rio de Janeiro. Eles fazem parte de uma manifestação relativamente antiga no Estado e têm o costume de andar em grupos, mais conhecidos, hoje, como turmas de bate-bolas. As fantasias de bate-bola vêm mantendo alguns parâmetros visuais ao longo do tempo e independentes da região em que ocorrem: bate-bolas ainda usam máscaras e trajam macacões amplos e coloridos, ricamente decorados com motivos variados, aos quais se sobrepõem vestes e se acoplam complementos temáticos. Apesar destas características mais constantes, a manifestação dos batebolas tem apresentado visualidades dinâmicas, marcadas principalmente pela incorporação de tendências variadas, captadas do meio social dos brincantes. As fantasias dos bate-bolas que se assemelham umas com as outras vão sendo identificadas como pertencentes a categorias de classificação cujos nomes são atribuídos pelos próprios integrantes das turmas, e que são chamadas, genericamente, de “estilos”. Os estilos não são categorias de classificação estáveis, principalmente em virtude da dinâmica que anima os modelos das fantasias95. Atualmente estamos presenciando o estabelecimento daqueles que parecem ser dois novos estilos de fantasia de bate-bola: o estilo “estampado” e o “geométrico” . Estas categorias recentes se pautam em diferentes 95

Podemos relacionar, para efeito ilustrativo, alguns estilos de fantasias de bate-bolas, mediante sua apresentação num recorte específico no tempo e no espaço.Entre 2006 e 2008, catalogamos os seguintes estilos de fantasia de bate-bola: estilo “bola e bandeira”, estilo “bicho e sombrinha”, estilo “Emília”, estilo “rastafári” e estilo “bujão”.

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padronagens que vêm sendo utilizadas nos tecidos com os quais se confeccionam os macacões (ou roupões) das fantasias. Serviremos-nos das características visuais das fantasias estampadas e geométricas e dos processos de trabalho daqueles que se empenham em produzi-las96. Através da abordagem do caráter híbrido e da complexidade visual dos objetos escolhidos, bem como dos saberes e modos de fazer envolvidos na sua confecção, estabeleceremos algumas considerações sobre a produção de sentidos para a manifestação dos bate-bolas da atualidade. Padrões decorativos nas fantasias de bate-bola: cores, formas e ritmo “Carnaval é a combinação de cores” (Marco Machado, o Pará – Turma U.R.)

A visualidade das fantasias de bate-bola costuma ser marcada pelas cores e formas em profusão. Mas ao que parece, nem sempre estes dois elementos estiveram dispostos de forma ritmada. No final dos anos 1920, o traje do clóvis97 era descrito como um apanhado disforme de tecidos coloridos: Vejo-o sempre sentado à soleira de pedra da sua casinha, a costurar uns pannos de cores vivas, sem fórma definida. E emquanto os seus dedos grossos mal se ageitam com as agulhas, vae assobiando motivos de musicas que nunca ouvi, mas todas ellas com um requinte profundamente carnavalesco. Aquele homem forte e espadaúdo a costurar, os seus assobios, a as permanência alli, dias inteiros – tudo isso me enche de uma curiosidade incontida. E hoje, tarde da noite, quando a estalagem já se recolhia às alcovas quentes e abafadas, a Méloca que chegava do serão na fabrica parou à porta de sua casinha. - Que é isto, João? - Não fala, mulé dos meu sonho. É a phantasia de “clóvis”. (JACINTHO, 1928, p.38)

Através da análise de registros escritos e fotográficos produzidos entre as décadas de 1970 e 1980 (ZALUAR, 1978; FRADE, 1979; GONZALES, 96

Tais processos estão sendo investigados para a realização de uma pesquisa que está em andamento, e que servirá de base para a formulação da monografia do curso de Especialização em Técnicas de Representação Gráfica, cujo título provisório é “A geometria dos bate-bolas: uma abordagem etnomatemática”. Este trabalho está sendo desenvolvido na EBA – UFRJ e conta com a orientação da Profª. Drª. Maria Helena Wyllie Lacerda Rodrigues. 97 Os termos “clóvis” e “bate-bola” são sinônimos.

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1989), nota-se existir um predomínio das fantasias listradas (ver figuras 1 e 2), indicando que a composição com listras pode ter sido o primeiro padrão ritmado de disposição de cores a caracterizar a visualidade dos bate-bolas.

Figura 1 - Capa do documentário “O clóvis vem aí” (1976), de Aloyzio Zaluar (disponível em http://bate-bolas.blogspot.com/)

Figura 2 – Exemplo de “fantasia de duas bandas” (disponível em http://oglobo.globo.com/blogs/naperiferia/)

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Parece-nos que a inserção das listras pode ter estado vinculada ao caráter gregário da brincadeira, pois estes padrões constituiriam uma referência visual imediata, através da qual seria possível se estabelecer relações de identidade entre os fantasiados de diferentes grupos. A este respeito, sabe-se que os bate-bolas dos anos 1970 a 1980 costumavam chamar uns aos outros de “parentes”, quando trajavam fantasias com listras nas mesmas sequências de cor. Até hoje as sequências de cores têm papel fundamental no processo de idealização das fantasias. Muitos líderes de turma afirmam que escolher a sequência de cores das fantasias do grupo é o primeiro passo a ser tomado rumo à produção do próximo carnaval. Entretanto, as formas coloridas podem não se restringir às tiras que formavam listras, e os ritmos de repetição dos padrões não são, necessariamente, tão simples quanto eram antes. Em face da enorme variedade fantasias de bate-bola que circulam nos carnavais de rua do Rio de Janeiro atualmente, encontram-se tipos de fantasias muito distintos. Vemos fantasiados usando modelos que buscam se assemelhar aos bate-bolas ditos “antigos” ou “tradicionais”, agora chamados de “killing” (ver figura 3).

Figura 3 – Bate-bolas “killing” na Cinelândia, no carnaval de 2010 (acervo da autora)

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E nos deparamos com modelos que vêm traduzindo as mais novas idéias de inovação e criatividade no universo dos bate-bolas. Dentre estas, destacamos aquelas que vêm sendo chamadas de “estampadas” e de “geométricas”. Nestas, os padrões decorativos são obtidos, respectivamente, por meio da impressão de estampas de motivos temáticos ou pela montagem de composições geométricas relativamente complexas, constituídas pelo recorte e costura de pedaços coloridos de tecido em formatos variados. Para fazer estes dois tipos de fantasia, os confeccionistas precisam articular conhecimentos e técnicas diferentes dos que são costumeiramente empregados na produção das fantasias listradas. A seguir falaremos um pouco mais sobre cada um desses dois processos. Estampados e geométricos: mix de saberes e modos de fazer Estampados: Não tivemos acesso a registros seguros que informassem sobre a introdução das estampas nas fantasias de bate-bolas. Porém há rumores de que elas teriam tomado os tecidos das fantasias no esforço de certos brincantes de reconquistarem a simpatia dos moradores da região de Marechal Hermes e adjacências, em época em que fantasiar-se de bate-bola seria, nestas localidades, ação associada à marginalidade e à violência. Na ocasião, as turmas teriam investido na adoção de estampas de conteúdo lúdico e caráter dócil, apropriadas principalmente das histórias infantis e dos desenhos animados. Há que se considerar a possível existência prévia de profissionais da estamparia entre os brincantes, como justificativa para a escolha desta solução, e não de outras quaisquer, para o problema da baixa popularidade da manifestação. Atualmente, a estamparia vem sendo aproveitada para otimizar a produção das fantasias das turmas mais numerosas, para se alcançar um elevado nível de qualidade no acabamento das peças e para conferir ao visual dos grupos a homogeneidade que reforça sua identidade coletiva.

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O uso de estampas tem, portanto, relação com o tamanho das turmas de bate-bolas, com a preocupação estética98 e com o pertencimento grupal. E requer que haja, entre os confeccionistas de fantasias, pessoas com habilidades específicas para produzi-las. Atualmente há muitos membros de turma se profissionalizando em estamparia. Muitos disponibilizam seus serviços para outros grupos, além do seu próprio. O primeiro passo para a estamparia das peças de tecido é a escolha dos motivos

gráficos

temáticos.

Escolhidos

os

motivos,

parte-se

para

a

personalização da figura e pela sua arte-finalização. Há confeccionistas que realizam estas etapas do processo utilizando apenas desenho manual, mas há aqueles que contam com o auxílio do computador e de recursos de computação gráfica. Finalmente, opta-se pela técnica de estamparia a ser empregada. A técnica da serigrafia tem sido utilizada para a obtenção de estampas localizadas e de estamparia “quadro-a-quadro” (falsa estampa corrida). Esta técnica consiste na decomposição da figura a ser estampada em quadros de cor. Para cada quadro de cor, produz-se uma tela de seda com partes permeáveis e

impermeáveis, fixada a uma moldura rígida. Sobre a tela é

colocada uma determinada cor de tinta, que será espalhada com o auxílio de um rodo. Ao ser movida sobre a extensão da tela, a tinta passa pelas áreas permeáveis, imprimindo no tecido as partes da imagem que devem ser preenchidas com uma mesma cor. A estampa estará concluída quando todas as cores forem impressas, sobrepondo-se. Nas figuras 4, 5 e 6 temos, respectivamente, fotografia de um dos momentos no processo de estampa por meio de serigrafia, fotografia de recortes de tecido já estampados e fotografia de uma fantasia estampada, depois de pronta. 98

Há concursos que premiam as turmas de bate-bolas que apresentam as mais belas fantasias, em várias localidades do Rio de Janeiro. O maior e mais conhecido é o Concurso Folião Original, modalidade Clóvis, que ocorre na Cinelândia, anualmente, às terças-feiras de carnaval. Estes concursos dão sentido ao desejo dos grupos de apresentarem fantasias cada vez mais bonitas e bem feitas.

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Figura 4 – Estampa sendo produzida no barracão do Grupo Enigma (Fotografia de Leandro Oliveira)

Figura 5 – Cortes de tecido estampados por serigrafia (Fotografia de Leandro Oliveira)

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Figura 6 – Macacão da fantasia do Grupo Enigma, 2009 (Fotografia de Leandro Oliveira)

Através do emprego da serigrafia é possível obter diferentes efeitos de estampa. Esses efeitos dependem dos tipos de tinta a serem utilizados (há tintas luminosas, metalizadas, fluorescentes, fosforecentes, entre outras). Pode-se também adicionar material brilhante à tinta de forma a obter efeito gliterado (como o que é visto na figura 7).

Figura 7 – Detalhe do macacão da fantasia da Turma da Praça, 2010 (Extraído de fotografia de Regina Neves)

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Como alternativa a utilização do gliter misturado à tinta no momento da estamparia – método mais rápido e mais barato de gliteração, alguns confeccionistas utilizam o que chamam de processo manual. O processo manual de gliteração consiste em estampar por meio de serigrafia apenas os contornos do motivo gráfico. As cores do interior são preenchidas manualmente com tinta e cola, espalhadas com utensílios improvisados (como palitos de churrasco e similares, de formato pontiagudo) sobre as quais se polvilha o gliter. De acordo com Leandro Oliveira, líder do Grupo Enigma e confeccionista de fantasias, através do processo manual obtém-se melhor resultado estético. As estampas das fantasias de bate-bola também podem ser obtidas por meio da técnica do transfer. Por meio dela pode-se produzir efeitos interessantes, como a aplicação do foil e a estampa com qualidade fotográfica (ver figura 8). O foil é um material reluzente, comumente utilizado nos uniformes profissionais de garis e guardas de trânsito, como uma forma de proteção, pois ao serem iluminadas por focos de luz, como os dos faróis dos carros, as vestes com foil ganham destaque. O foil é conhecido popularmente como “olho de gato” (ver figura 9).

Figura 8 – Fantasia da Turma Nova Geração, utilizando estampa com qualidade fotográfica, 2010 (Fotografia do acervo da autora)

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Figura 9 – Macacão estampado com foil, 2006 (Fotografia do acervo da autora)

Geométricos: A geometria presente na visualidade das fantasias dos bate-bolas é constituída pela combinação estratégica de formas, cores e ritmos de repetição. A introdução de composições geométricas complexas nos padrões decorativos das fantasias de bate-bolas é relativamente recente. Pelo que temos percebido, trata-se de um costume iniciado de forma discreta há aproximadamente 5 anos, que vem ganhando espaço. A geometrização, antes restrita

às luvas, meias e capuzes das

máscaras, tem sido adotada por um número crescente de turmas, e atualmente tem sido usada para compor os macacões dos fantasiados. Os padrões geométricos têm sido utilizados como alternativas das turmas do estilo “Bola e Bandeira” às listras, tidas como tradicionais nos seus trajes. Ao utilizarem estes padrões, os grupos dizem manifestar seu potencial criativo de forma mais ampla e livre, e afirmam obter resultados visuais únicos. É o que a turma UR (União de Realendo) explicita na trecho da música a seguir:

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A U.R. é o poder / A U.R.. é o poder / Quem não acreditava (vai!) / Olha nós aê / A família tá unida / O roupão já tá bolado / Uma metade de vermelho/ E outro quadriculado / Bate-bola diferente / Pronto pra zoar na pista / Não parece com ninguém / Não é estampado / Não tem listra (...) (Rap da U.R., 2010, disponível em http://www.youtube.com/watch?v=rN9ozuYv4jY)

A elaboração das composições geométricas dos macacões vem sendo idealizada por confeccionistas hábeis no desenho geométrico. Há membros dos grupos de bate-bolas cuja habilidade é proveniente da confecção de pipas e balões. Outros utilizam-se dos conhecimentos formais de geometria, adquiridos no ensino escolar regular e trabalham com instrumentos de medição. E há ainda os que se utilizam de computação gráfica para fazerem os desenhos. Depois de feito, o projeto geométrico é repassado para costureiros especializados em fantasias de bate-bola. Há aqueles que anunciam seus serviços dizendo-se, inclusive, serem especialistas nas fantasias geométricas (ver figura 10).

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Figura 10 – Trecho da divulgação dos serviços prestados pela 2D Estamparia (Disponível em http://www.orkut.com.br/Main#Profile.aspx?origin=is&uid=11921160449849618770)

O primeiro passo na elaboração de um projeto geométrico é a adoção de um tema. A partir do tema, são escolhidas as cores. Delas, parte-se para o desenho propriamente dito. O desenhista costuma elaborar o esboço colorido da composição no formato de faixa, em tamanho reduzido. Após tê-la definido, experimenta ampliá-la para o tamanho natural, utilizando recorte e colagem para obter a organização desejada, com as formas geométricas que escolheu. Finalmente, os moldes em tamanho natural são cortados em diferentes tecidos e montados com costura. As composições podem ser arrematadas com a aplicação de viés em torno de certas formas geométricas. A seguir, nas figuras 11, 12 e 13 temos exemplos de fantasias de batebola com padrão geométrico complexo.

Figura 11 – Exemplo de macacão geométrico, 2009 (Fotografia do acervo da autora)

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Figura 12 – Fantasia da Turma do Descontrole, 2010 (Fotografia do acervo da autora)

Figura 13 – Fantasia com padrão geométrico complexo, 2010 (Fotografia de Leandro Oliveira)

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Fantasia de bate-bola: objeto cultural atualizado Temos associado as diferentes visualidades das fantasias dos batebolas contemporâneos às adesões e recusas materiais e simbólicas oriundas das negociações entre o universo particular da manifestação e o universo contextual maior no qual os agentes culturais, responsáveis pela sua realização, se encontram inseridos. Destas negociações surgem objetos híbridos nos aspectos material e simbólico. Como destaca Peter Burke, “em nosso mundo nenhuma cultura é uma ilha” e, nesse sentido, “todas as formas culturais são mais ou menos híbridas” (BURKE, 2006, p. 101-102), entretanto no caso das fantasias de batebolas o hibridismo cultural se mostra de maneira explícita e inequívoca. Ao definirem os projetos das fantasias, percebemos que os grupos mantêm os elementos que consideram tradicionais, sem os quais, na sua compreensão, o personagem bate-bola ficaria descaracterizado. E incluem outros, que entendem serem inovadores, originais, criativos, com os quais acreditam que garantirão visibilidade e reconhecimento. Notamos que as ideias sobre a tradição da manifestação variam em torno dos padrões da brincadeira descritos nos registros produzidos entre os anos 1970 e 1980, que se referiam aos clóvis da zona oeste da cidade do Rio de Janeiro. E temos visto que a inserção de novidades tem sido marcantemente atrelada tanto ao universo da cultura de massa quanto às atividades cotidianas dos fantasiados. Trata-se, então, de uma manifestação cultural popular que, como tal, é estabelecida através da articulação de elementos globais e locais dosados em maior ou menor intensidade, enxergados sob óticas próprias e que estão relacionados a discursos sobre tradição e modernidade (BENNET, 1998; FISKE, 2005; HALL, 2005). Esta situação se torna evidente nos casos dos novos estilos de fantasias de bate-bola analisados: se é costume notar motivos gráficos nesses trajes desde muito tempo, o que se faz é buscar outras formas de produzi-los; formas estas que promovam a habilidade e o talento dos produtores de então. Se há uma espécie de tendência de utilização de composição geométrica nas

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fantasias, aí estão elas, agora elaboradas conforme a perícia dos novos criadores, apoiados pelos aparatos tecnológicos modernos. Diante deste quadro de dinamismo, hibridismo e tensão simbólica, entendemos que a idéia de tradição continua a permear os discursos culturais populares, ao contrário do que se poderia argumentar. Entretanto, trata-se de um conceito flexível de tradição, como o que Stuart Hall nos apresenta: A tradição é um elemento vital da cultura, mas ela tem pouco a ver com a mera persistência das formas culturais. (...) Os elementos da tradição podem ser reorganizados para se articular a diferentes práticas e posições e adquirir um novo significado e relevância. (HALL, 2003: p. 243)

Neste sentido, as atuais fantasias de bate-bola vem sendo produzidas não com base em saberes e modos de fazer cristalizados pela lentidão e pela fixidez, mas por meio de práticas particularizadas através das quais os agentes culturais se manifestam. Manifestam-se porque não são meros repetidores de fórmulas consolidadas, mas justamente por se posicionarem criticamente diante delas, refazendo-as, modificando-as ou substituindo-as (PEREIRA & FERREIRA, 2009). As fantasias de bate-bolas são boas para se pensar sobre as novas compreensões da Cultura porque são objetos que se atualizam e, sobretudo, porque fazem com que pensemos sobre seus produtores como sendo os agentes destas atualizações, em situação de protagonismo cultural. E de quem seria, se não dos bate-bolas, o poder sobre a definição da sua manifestação? Referências bibliográficas BENNET, Tony. Popular culture and the “turn to Gramsci”. In: STOREY, John (org.). Cultural theory and popular culture: a reader. Essex: Pearson Education Limited, 1998, 217-24. BURKE, Peter. Hibridismo cultural. Săo Leopoldo: Editora Unisinos, 2006. FISKE, John. Understanding popular culture. London and New York: Routledge, 2005. FRADE, Cáscia. Folclore brasileiro: Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Funarte, 1979.

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FROTA, Lélia Coelho. Pequeno dicionário da arte do povo brasileiro: século XX. Rio de Janeiro: Editora Aeroplano, 2005. GONZALES, Lélia. Festas populares no Brasil. Rio de Janeiro: Index, 1989. GUIMARAENS, Dinah. Máscaras e fantasias de carnaval. Rio de Janeiro: Funarte, 1992. HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediaçőes culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003. __________A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2005. JACINTHO. O Clovis. Revista Fon Fon. Rio de Janeiro, 11/02/1928, p. 58. PEREIRA, Aline V; V; G. & FERREIRA, Felipe. Turmas de bate-bolas do carnaval contemporâneo do Rio de Janeiro: diversidade e dinâmica. Revista Visualidades, V. 7, n. 2 Jul, p.45-67 – Dez / 2009. ZALUAR, Alba. O clóvis ou a criatividade popular num carnaval massificado. Cadernos CERU, n.11, 1a. série, setembro de 1978: 50-62.

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