Universidade do Estado do Rio de Janeiro Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais
Samba são pés que passam fecundando o chão... Madureira: sociabilidade e conflito em um subúrbio musical
Ana Paula Alves Ribeiro
Rio de Janeiro 2003
Ribeiro, Ana Paula Pereira da Gama Alves (14.01.77) Rio de Janeiro – UERJ, 2003. Dissertação: Mestrado em Ciências Sociais. UERJ I. Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ II. Sociabilidade - Conflito - Samba - Jongo – Madureira – Tráfico de drogas
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Resumo e abstract RIBEIRO, Ana Paula Pereira da Gama Alves. Samba são pés que passam fecundando o chão. Madureira: sociabilidade e conflito em um subúrbio musical. ORIENTADORAS: Alba Zaluar & Helena Lewin. Rio de Janeiro: UERJ/PPCIS, 2003. (Dissertação de Mestrado) PALAVRAS-CHAVE: Sociabilidade, Conflito, Samba, Jongo, Madureira, Tráfico de drogas. Essa dissertação pretendeu analisar a sociabilidade e os conflitos existentes nas redes sociais de Madureira, considerado pela pesquisa um bairro musical. Permeada de acordo e conflito, próprio das relações ambivalentes inscritas nas redes sociais, no bairro essa sociabilidade pela música se manifesta hoje nas quatro escolas de samba, nas rodas de samba, nos pagodes, nos bailes funk e de charme e em tradições como o jongo e o partido alto. A metodologia utilizada consistiu na observação participante, entrevistas com os principais atores, análises das histórias de vida gravadas, internet e na pesquisa em arquivos públicos e particulares. São esses pontos metodológicos que embasam o presente estudo das transformações na sociabilidade das redes dos ”bambas” de Madureira, relacionadas com a própria transformação do bairro.
RIBEIRO, Ana Paula Pereira da Gama Alves. Samba are the feet that pass by and fertilize the ground. Madureira: sociability and conflict in a musical suburban. Guiders: Alba Zaluar & Helena Lewin. Rio de Janeiro: UERJ/PPCIS, 2003. (Masters dissertation) KEY-WORKS: samba, jongo (a brazilian tipycal slavery dance and musical style), sociability, conflict, drug traffic This dissertation intends to analyse the sociability and the conflicts that happens in the social networks of Madureira, considered by this research as a musical neighborhood. Living of deals and conflicts, natural of these kind of relations in the social networks, in the neighborhood this music sociability happens to exist in the four Samba schools, on the samba circles, on the “pagodes”, at the funk and “charm” dance balls and in more tradition expressions as the “jongo” and the “partido alto”. The methodology used consisted in the participated observation, interviews with the principal actors, analysis of life stories recorded, internet and on the research in public and private archives. These are the methodological issues used in the present study of the transformation in the sociability of the “bambas” networks of Madureira, related with the transformation of the neighborhood itself.
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RESUMO E ABSTRACT
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AGRADECIMENTOS
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INTRODUÇÃO AFETIVA: O SAMBA E O JONGO
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CAPÍTULO I - MADUREIRA, UM SUBÚRBIO MUSICAL
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CAPÍTULO II- UMA REDE DE SOLIDARIEDADE E AMIZADE
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CAPÍTULO III - O JONGO NA SERRINHA
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CAPÍTULO IV - IMPÉRIO SERRANO, IMPÉRIO DO SAMBA
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CAPÍTULO V - E ONDE HOUVER TREVAS QUE SE FAÇA LUZ
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UMA POSSÍVEL CONCLUSÃO
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BIBLIOGRAFIA
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Para Fátima Regina, minha mãe Fernando, pequeno – grande irmão e Francisco, mais que um companheiro, um grande amigo Sem vocês não teria sentido.
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Agradecimentos Aos professores e funcionários do Programa de Pós – Graduação em Ciências Sociais / UERJ, pelo ambiente intelectual proporcionado. A CAPES, pela bolsa de mestrado concedida, que me permitiu realizar esse trabalho. Ao NUPEVI - PRONEX, que financiou a pesquisa. Aos Funcionários do Arquivo Nacional, do Instituto Nacional do Folclore e do Instituto Pereira Passos, muito solícitos e simpáticos com todas as minhas demandas. Giralda Seyferth, professora do Museu Nacional / UFRJ, que me “adotou” um semestre, pelo enriquecimento teórico e a avaliação da dissertação ao que agradeço muito. Não sei se seus questionamentos foram devidamente respondidos, mas com certeza foram valiosos. Aos amigos que fiz na UERJ e fora dela, pela torcida, solidariedade e carinho. Da equipe do Nupevi, descobri com Alexandre Meyer Alves de Lima, Eneida Maia, Luiz Fernando Almeida Pereira, Rodrigo de Araújo Monteiro e Simone Motta que podemos congregar amizade e companherismo, na pesquisa e na vida. Também fizeram ou fazem parte do Nupevi Cosme Elias, Fátima Regina Cecchetto, Jorge Luiz de Carvalho Nascimento, Liliane Souza e Silva, Maria Alice Rezende Gonçalves e Paulo Jorge Ribeiro, que deixaram minha vida mais especial e musical. Minha família, por acreditar que esse trabalho se realizaria. Meus tios Ana Maria e Murilo, muito importantes na minha formação. Anita, Necir, Cleide e Maria Regina, amigas fundamentais desde sempre. Aos meus entrevistados, pelo acolhimento e confiança. Rachel Valença, por sua generosidade. E a duas lutadoras, admiráveis e persistentes mulheres que foram minhas orientadoras. Com Helena Lewin, com quem tive a minha primeira experiência docente, tenho uma amizade preciosa e calorosa que me incita a aprender sempre e me ensina constantemente a viver com bom humor. Com Alba Zaluar, tenho uma amizade recheada de profundo carinho e respeito. É ela que me aponta desde 1996 “que sambas são pés que passam fecundando o chão” e o amor ao Rio de Janeiro. Agradeço especialmente o último ano, em que ela dosou o carinho, bronca, incentivo e pressão nos e-mails, reuniões de equipe e ligações para que eu terminasse as modificações e publicasse a dissertação.
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(...) A brisa traz a música Que na vida é sempre a luz mais forte E ilumina a gente além da morte (...) Vem a mim, ó música Vem secar do povo as lágrimas, Que todos já sofrem demais E ajuda o mundo a viver em paz ...1
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Súplica, de João Nogueira e Paulo César Pinheiro Ed. Warner Chappell - 70395810 7
Introdução afetiva: o samba e o jongo "Imagine-se entrando pela primeira vez na aldeia, sozinho ou acompanhado de seu guia branco. Alguns dos nativos se reúnem ao seu redor (...). Outros, os mais velhos e de maior dignidade, continuam sentados onde estão. Seu guia branco possui uma rotina própria para tratar os nativos; ele não compreende e nem se preocupa muito com a maneira como você, o etnógrafo, terá que se aproximar deles. A primeira visita o enche da esperança de que, ao voltar sozinho, as coisas lhe serão mais fáceis. Era isso, pelo menos, que eu esperava”. (Bronislaw Malinowski, 1973:23) “Imagine-se estacionando seu carro particular na rua de um bairro de pobres cujo nome permanecia nas manchetes dos jornais como um dos focos da violência urbana, um antro de marginais e de bandidos. Você não conhece ninguém que lhe possa indicar os caminhos e prestar-lhe as informações de que necessita para mover-se sem riscos desnecessários. Você não sabe muito bem onde procurar o que tem em mente. Conhece apenas um jovem que lhe foi apresentado por um amigo comum, o qual lhe recomendou cautela. E nada mais”. (Alba Zaluar, 1985:9)
Foi pensando na entrada de Malinowski nas Ilhas de Trobriand que voltei à Madureira. Não saí do país para fazer minha pesquisa e, a bem da verdade, voltei ao lugar onde fui criada para realizá-la. Não tive guia branco, tampouco meus entrevistados eram “nativos” para mim, também nativa. Mas compartilho com Malinowski a sensação de que as próximas idas ao campo precisam ser melhores que a primeira. Eu estava menos perdida que Alba Zaluar em sua primeira vez na Cidade de Deus. Conhecia o espaço – Madureira – e dominava alguns dos códigos locais. Eu tinha em mente o que e onde eu devia procurar, embora o ‘caminho das pedras’ me tenha sido dada por
um amigo muito especial da minha família. Mesmo assim,
compartilhava com os dois autores a sensação de solidão e desconcerto. Não consigo estabelecer de forma clara em que momento o tema do projeto, que finalmente realizei, começou a me envolver, mas o fato é que me apaixonei irremediavelmente por ele ao longo do trabalho de campo ... vamos por etapas. Em 1996, fui trabalhar com a professora Alba Zaluar, então no departamento de Ciências Sociais da UERJ, no projeto intitulado Justiça Criminal - estudo comparado
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dos crimes relativos às drogas. Foi o meu primeiro contato com pesquisa durante a graduação e me trouxe uma grande aproximação com a Antropologia Urbana e com aquilo que Roberto da Matta (1978) denominou “o transformar o familiar em exótico” e Gilberto Velho (1978) viria a chamar de a “observação dos nossos familiares”. No ano seguinte, a mesma professora passou a coordenar outro projeto: Redes de tráfico e estilos de consumo nos bairros cariocas de Copacabana, Madureira e Tijuca. A equipe era pequena naquele momento e, como a pesquisa estava começando, fiz os primeiros contatos em Madureira acompanhando uma rede de amigos ligada à minha família. Comecei a freqüentar as quadras das escolas de samba do bairro e a conversar com os moradores tentando entender qual era o tipo de interação criada pelo uso das drogas ilícitas (dentro dos espaços dedicados também ao lazer) e como os moradores reagiam ao tráfico (sempre armado e violento) no bairro. Tinha a sensação de bater contra uma barreira, visto que tratávamos de atividades ilegais que exigiam o segredo, ou o silêncio dos envolvidos. As pessoas eram sempre muito solícitas e simpáticas, achavam o trabalho bastante importante, mas tinham medo de falar sobre o tráfico de drogas e não somente as relações que porventura tivessem com traficantes e usuários, como também as relações de seus amigos, vizinhos ou parentes. O Nono Batalhão da Polícia Militar, responsável pelo policiamento na região, era conhecido por sua violência e comportamento ameaçador. Assim, por conta da violência presente no bairro, os moradores haviam mergulhado num silêncio profundo, que, se por um lado me irritava e impedia de compreender o que acontecia, por outro criava uma certa cumplicidade. Naquele momento, o relacionamento afetivo entre mim e as pessoas que eu procurava para entrevistar foi um fator que impossibilitou entrevistas gravadas, mas não a observação participante. Algumas dessas pessoas procuradas não compreendiam por que eu pesquisava um “assunto tão perigoso” e outras não conseguiam pensar em mim como uma pesquisadora iniciante, já que
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conheciam a minha família e a mim desde que eu era criança2. Foi apenas nesse meu re-conhecer do espaço que passei a me interessar pelo samba, acompanhando o Império Serrano e a Portela, as principais escolas de samba da região, indo a rodas de samba, a ensaios para o carnaval, a missas nas quadras e a procissões. Interesse pelo samba não só como gênero musical, pois já apreciava, mas como atividade que agrega pessoas de diferentes trajetórias, classes sociais e lugares com um único objetivo. E não é apenas o samba das rodas do bairro promovidas por tia Doca e tia Surica - pastoras integrantes da Velha Guarda da Portela - ou do samba de partido alto imortalizado por Candeia. E não tão-só o samba, dito “de raiz”, defendido e cantado por imperianos ilustres como Dona Ivone Lara e Roberto Ribeiro, compositor já falecido. O que passou a me interessar nesse momento foi como a sociabilidade em um bairro comercial e residencial passa em grande parte pela música, mais especificamente o samba. O
samba
como
elemento
de
sociabilidade
e
socialização
foram
temas
desenvolvidos anteriormente por Alba Zaluar (1998) e por Maria Alice Rezende Gonçalves (2002) mas pretendo desenvolver também nas figuras da tia e do tio, na construção do desfile da escola de samba, nas escolhas dos sambas-enredo e das fantasias para o próximo carnaval, na formação das alas, no dia-a-dia das escolas e no cotidiano dos moradores do bairro, levando em conta que Madureira é um dos maiores redutos de grandes sambistas, os “bambas” do Rio de Janeiro. Se, por um lado, o objetivo inicial da pesquisa “Redes de tráfico e estilos de uso de drogas ilegais em três bairros do Rio de Janeiro”, qual seja, estudar os estilos de uso e de tráfico na área, foi sempre difícil nesse primeiro ano, por outro, pude começar a estudar o enfraquecimento e esfacelamento de relações sociais e de associações vicinais, 2
Escolho essa forma de narração para especificar a dupla influência que o bairro exerce nesse trabalho, não apenas para a própria escolha do tema, como também para a metodologia apresentada. A escolha em fazer uma introdução afetiva ao bairro é para marcar esse espaço, em que tento dar conta da musicalidade do bairro e das minhas tentativas de naturalização do bairro, já que morei lá. 10
objetivo da segunda parte do projeto de pesquisa dos três bairros a partir de 2000. Durante a observação participante, o esfacelamento do tecido social foi confirmado como efeito da violência oriunda do tráfico de drogas que acabou por afetar profundamente a vida dos moradores do bairro, hipótese já presente em trabalhos anteriores (Zaluar, 1985, 1997, 1998; Alvito, 2001). Em contrapartida, compreendi que outras relações se fortalecem na dinâmica dos conflitos cotidianos que vão conformar a política local. Isso pode ser verificado a partir do ano seguinte, no qual, já familiarizada com a Escola de Samba e seus integrantes, pude recomeçar a pesquisa de forma mais eficaz. Iniciei meu trabalho de campo na Serrinha e no Morro do Sossego e pude desenvolver as hipóteses surgidas na observação inicial e entrevistar moradores e exmoradores do bairro. Assim, conheci líderes comunitários, presidentes de associações de moradores, militantes do samba do Império Serrano e da Portela e, finalmente, o jongo, ritmo de origem banto, que tem como base na cidade do Rio de Janeiro, o bairro de Madureira. Foi nessa etapa da pesquisa que pude delinear uma rede que acompanho até hoje de pessoas relacionadas ao jongo e ao samba no bairro. É bem verdade que até aquele momento, eu desconhecia a presença do Jongo da Serrinha no cenário cultural de Madureira. A bem da verdade, eu ignorava o próprio jongo. Fui apresentada ao ritmo pelo tambor e a voz de antigos moradores da Serrinha, ativos na ação cultural do local. Na mesma época, fui assistir a um show de jongo no bar “Tá na Rua”, na Lapa, mas em nenhum momento eu fiz a conexão que ligava o som dos tambores tocados na Lapa aos do Jongo da Serrinha e à história do bairro e da Escola de Samba Império Serrano. Só bem mais tarde percebi que faziam parte da mesma história. Ao longo do ano seguinte, 1999, fui me desvinculando lentamente de meus contatos iniciais à medida que meu interesse pelas formas de lazer do bairro se expandiu. O bairro passava naquele momento por uma situação muito especial: o
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G.R.E.S Império Serrano havia caído do grupo especial para o grupo A3, o G.R.E.S Portela, representada principalmente pela Velha Guarda da Portela, com seus shows e o relançamento de seus CDs, começava a ter seu trabalho reconhecido pelos meios de comunicação e havia ao menos dois grupos de jongo trabalhando no mesmo espaço, a Serrinha: um encerrando suas atividades no jongo e o outro em ascensão no espaço cultural do bairro.
Premissas do trabalho Quando entrei para o mestrado em 2000 tinha um objetivo bem amplo e inacessível: trabalhar com a transformação na socialização dos moradores de Madureira ao longo de todo século XX, analisando tanto os conflitos quanto a solidariedade existentes entre as três escolas de samba do bairro (que por si mesmas, e cada uma, já renderiam teses de doutorado), o conflito religioso apresentado em alguns locais do bairro entre os evangélicos e os praticantes das religiões afrobrasileiras, assim como a presença do jongo, gênero musical até então pouco estudado. Por fim, o pesado tráfico de drogas na região e outros elementos que tiveram efeitos inegáveis sobre as redes sociais existentes nas favelas e no asfalto. Um recorte amplo, regado a uma perspectiva interdisciplinar que acolhia a antropologia, a sociologia, a história e o urbanismo. Praticamente impossível. Além de o bairro ser muito grande, eu precisaria de uma vida para estudar tudo isso. Abandonado o objetivo inicial, precisava delimitar o espaço que seria estudado e a prioridade na pesquisa. Decidi estudar a região de Madureira denominada pelos mais velhos de Magno, o que inclui a área de Turiaçu e Vaz Lobo (os Morros da Serrinha, Sossego e São José das Pedras), além do Mercadão de Madureira. 3
Segundo a atual presidente do G.R.E.S. Império Serrano “o pior carnaval pra gente (do Império Serrano) foi o do Beto Carrero. Beto Carrero pior não, foi o melhor, mas foi o que levou o Império Serrano pro buraco. Que Beto Carrero colocou uma grana aqui dentro e infelizmente a grana desapareceu e todo mundo soube disso. Então empresário nenhum, tu já viu, depois dessa, ficou difícil” (para arrumar patrocínio externo que complementasse o dinheiro da Liga das Escolas de samba para montar o carnaval).
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Neste sentido, o próprio trabalho de campo e a aproximação que cheguei a ter com alguns entrevistados acabaram por nortear a pesquisa. Minha ligação com o bairro e com as pessoas, já que nasci lá e parte da minha família mora no local, foi fundamental na medida que serviam como termômetro para o que deveria dar ênfase naquele momento, ou esperar uma outra oportunidade para estudar. Tal como o samba Casa de bamba, de Martinho da Vila4, tive a oportunidade de (re) conhecer o universo tipicamente popular, cantado em prosa e verso: “as conversas, as intrigas, as comidas e até o sincretismo religioso” (AZÊDO, 1972).
Trabalho de Campo: “cheiros, cores, dores e amores”5 Gostaria de dizer, a princípio, que, em termos subjetivos, ora me sentia acolhida, ora me sentia tolhida. Acolhida, de alguma forma, por acompanhar as crenças de que o samba era algo mais que os conflitos internos à Escola de Samba, que merecia um investimento financeiro e subjetivo, por que fazia parte de nossa história em comum. Por gostar de acompanhar os ensaios e retornar somente de madrugada, por discutir a influência da política no samba e a própria política do samba. Por respeitar as crenças religiosas e nunca me fazer de especialista nelas, por que de fato não sou. Acolhida, principalmente por que não se furtavam a ensinar-me como era o cotidiano e as relações locais. Tolhida, por que trabalho de campo é sempre um jogo, onde ambas as partes devem reconhecer as regras e os limites do relacionamento. Neste sentido, quando perguntavam “Cadê o seu namorado, vai sentir ciúmes de você, sozinha no samba à noite...”, era a deixa para que eu entendesse que as esposas dos meus companheiros 4
Na minha casa todo mundo é ‘bamba’ / todo mundo bebe todo mundo samba / Na minha casa não tem bola pra vizinha / Não se fala do alheio nem se liga pra Candinha / Na minha casa ninguém liga pra intriga / todo mundo xinga, todo mundo briga / Macumba lá na minha casa / Tem galinha preta e azeite de dendê / Mas ladainha lá na minha casa / Tem reza bonitinha e canjiquinha pra comê / Se tem alguém aflito / Todo mundo chora, todo mundo sofre/ Mas logo se reza pra São Benedito / Pra Nossa Senhora e pra Santo Onofre / Mas se tem alguém cantando / Todo mundo canta, todo mundo dança / Todo mundo samba e ninguém se cansa / Pois a minha casa é casa de bamba. 5 Do texto de Roberto DaMatta, O ofício do etnólogo, ou como ter ‘Anthropological Blues’. 13
de samba talvez estivessem com ciúmes e que eu, mesmo tendo um papel definido no grupo, poderia ser a própria geradora dos conflitos, na medida que despertasse ciúmes por passar os finais de semana na companhia deles. Ora eles me lembravam que eu nasci em Madureira, ora faziam questão de apontar: mas você não é daqui, não lembra da nossa história ou não sabe. Pouco a pouco fui descobrindo que, neste jogo, o que não importa para mim, às vezes pesa para o grupo. Ser de Madureira e não da Serrinha assumia um peso e uma medida a cada fase do trabalho de campo. Ser de Madureira, mas não morar lá, também. Nestas horas eu me sentia um pouco como Anthony Seeger, em seu texto “Pesquisa de Campo: uma criança no mundo”: antiga imagem do antropólogo chegando com roupa em tons neutros, dominando pouco ou nada da língua do povo que vai estudar, não sabendo o que vai fazer quando a comida acabar, se será aceito pelo grupo e outros problemas que todo antropólogo passa, sendo por esta razão um texto extremamente didático. O próprio título sempre me pareceu ter duplo sentido: o primeiro é que o processo de pesquisar é uma gestação (podendo ter complicações ou não). Cada pesquisa acaba sendo um filho que nasce. Em segundo lugar por que um pesquisador ignorante sobre a sociedade que está sendo estudada, apesar de ser adulto, desconhece os conhecimentos fundamentais sobre aquela sociedade que vêm da primeira socialização. Embora criada em Madureira, eu precisava que meus informantes recriassem o mundo local, me informassem sobre suas vidas e me ensinassem como participar delas.
O bairro e adjacências: Ao me mostrar uma dimensão do bairro pelo ângulo da música, o grupo acabou por encaminhar a premissa desse trabalho, que musical.
é pensar Madureira como um bairro
Não assumo com essa afirmação postura um tanto essencialista, mas
constato que boa parcela da sociabilidade, com suas redes de reciprocidade,
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solidariedade e seus conflitos, desse bairro se dão em torno da música6.
Outros
bairros também compartilham (ou compartilharam) esta característica, como o Estácio7, a Tijuca ou Ipanema8, mas de fato, poucos a desenvolveram tanto quanto Madureira e adjacências.
Esta sociabilidade pela música se manifesta hoje nas
escolas e rodas de samba, em tradições como o jongo, nos pagodes, nos bailes funk e de charme, como também na presença do Movimento Hip-Hop, representado principalmente pelo escritório de Celso Athayde, que se localiza em Madureira9. Escolhi trabalhar com as transformações nas redes sociais e seus efeitos na sociabilidade dos moradores do bairro a partir desse ponto de vista, motivada pelas entrevistas em que os próprios moradores destacavam em seus discursos o papel social da música. Quais eram as transformações mais citadas? O esfacelamento das redes sociais pelas atividades dos traficantes de drogas na região, violentos e fortemente armados; as mudanças no samba, que inibiram uma maior participação dos moradores do morro; o papel exercido pelas organizações não governamentais, pelas associações vicinais e pelas instituições governamentais na formação das crianças e adolescentes da Serrinha e a importância por elas atribuída ao jongo. Essa importância se explica em parte porque, no momento da pesquisa de campo, o jongo aparecia predominantemente na área de Madureira e quando aparecia em outras
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Premissa que desenvolvo melhor no primeiro capítulo. Segundo Carlos Sandroni, o tipo mais recente de samba, surgido no Rio de Janeiro por volta da década de 20 no bairro Estácio de Sá “logo se difundiu, influenciando os compositores de outras áreas da cidade, generalizando-se e tornando-se um sinônimo de samba moderno, de samba tal qual o reconhecemos hoje em dia. A primazia do Estácio sobre outros redutos de samba é admitida por todos” (2001:131), de Cartola (da Mangueira) a Candeia (da Portela). 8 Segundo artigo de Joaquim Ferreira dos Santos, “Que turma maluca, a da Tijuca’, é a Tijuca que, contrariando os ipanemenses, se estabelece como ”berço musical do Rio”. Segundo o jornalista, entre outros aspectos, a Tijuca tem a maior concentração de escolas de samba da cidade (Império da Tijuca, Unidos da Tijuca e Salgueiro), o Movimento Artístico Universitário (MAU) começou no bairro assim como o Sinatra Farney Clube, dita célula inicial da Bossa Nova, além de, em diversas épocas, contar com moradores ilustres e musicais, como Erasmo e Roberto Carlos, Lamartine Babo, Ed Motta, Pedro Luís (do conjunto Pedro Luís e a Parede), Aldir Blanc e Moacyr Luz, tendo o último o título de embaixador informal da cidade, devido aos saraus que promove (ver Hugo Sukman, em Festa Carioca). Já Ipanema, reconhecidamente o berço da Bossa-Nova, teve sua musicalidade exposta por Ruy Castro nos livros Chega de Saudade e A onda que se ergueu no mar, ambos publicados pela editora Companhia das Letras. 9 Celso Athayde, idealizador do Prêmio Hutus de Hip-Hop. 7
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áreas da cidade, estava ligado aos moradores ou ex-moradores do bairro, o que também ajuda a entender o destaque que o jongo recebe nesta dissertação. É claro que a sociabilidade entre os moradores também se manifesta de outras formas, mas a música se destaca sobre outros elementos. Ao longo do tempo, somaram-se migrantes e descendentes à população inicialmente estabelecida na freguesia de Irajá.
Esses, ao chegarem ali,
confraternizam com a música e a dança, principalmente o samba e o jongo, ajudando a construir uma rede de solidariedade – o conceito de rede será discutido adiante -, a qual se ampliava unindo parentes, amigos e vizinhos e criando laços estreitos e duradouros. Como sabemos, nenhuma rede social se mantém sem conflito. O conflito para os entrevistados por vezes é entendido como violência, mas desenvolvo o conceito teórico de conflito como elemento fundamental para a sobrevivência da rede. Portanto, não devemos pensar que a harmonia prevaleça dentro dessa rede, o que seria uma armadilha a ser evitada. A sociabilidade guarda uma dinâmica própria que pode interferir nas relações dos membros de uma rede ou ser modificada por elementos externos a ela. Simmel percebe este conflito como um tipo de interação, com um caráter dual, isto é, o sujeito se constrói e constrói a sociedade em que vive de forma dualizada: Para esse autor o: “O conflito produz ou modifica grupos de interesse, uniões, organizações. Por outro lado, sob um ponto de vista comum, pode parecer paradoxal se alguém perguntar, desconsiderando qualquer fenômeno que resulte do conflito ou que o acompanhe, se ele em si mesmo, é uma forma de sociação” (1983: p.124)
Para Norbert Elias, isso é inerente às relações humanas, pois: “Sendo os seres humanos naturalmente diferentes entre si, eles necessariamente se relacionam uns com os outros de modo conflituoso. O conflito é inerente às relações sociais, isto é, humanas. ‘Conflitos são um aspecto da vida em conjunto dos homens uns com os outros’(ELIAS: 1989, p.226)”.
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A dissertação parte dessa perspectiva teórica. Se por um lado vemos a formação do bairro e a interação dos seus moradores pelo samba e pelo jongo, criando redes de reciprocidade positiva, e, conseqüentemente, indivíduos que criam laços sociais entre si ou relações com diferentes conteúdos nestas redes sociais; por outro, podemos observar a deterioração dos elos entre os moradores por fatores políticos, sentida nas associações de moradores, ou na mudança nas relações entre os moradores e destes com o bairro, causadas pelo tráfico de drogas. Esse conflito, ou tensão, como os moradores preferem dizer, não opõe de imediato os moradores. Não há solidariedade de um lado e conflito do outro. A solidariedade e a tensão (ou conflito) vão permear todas as esferas, do samba ao jongo, das associações de moradores, até, em alguns momentos, o tráfico de drogas. Verificamos, pois, a existência de redes sociais, formadas principalmente por antigos fundadores da Escola de Samba Império Serrano e seus descendentes - ainda moradores da Serrinha e imediações -, e suas percepções das transformações dos últimos trinta anos na sociabilidade dos moradores, centrando-nos na música e na cultura locais. Como a sociabilidade pode ser entendida como capacidade humana de estabelecer redes, nas quais as unidades de atividades individuais ou coletivas fazem circular as informações que exprimem “gostos, interesses, paixões, etc.”, a hipótese principal atribui essas transformações ao aumento da violência na região e aos avanços do tráfico de drogas que obrigaram não apenas a uma reestruturação local como exigiram a criação de estratégias de manutenção da rede social. Waizbort afirma que “Por social, Simmel entende que é o ‘todo’, mas precisamente um conjunto de relações. Este “todo” pode ser a sociedade, a família, os amigos, enfim, microcosmos que se relacionam e interagem. O indivíduo e a sociedade, assim como o próprio movimento da sociologia, não são estáticos. Todas as nossas relações estão em eterno processo: “ elas se fazem e se desfazem, se constroem e se destroem, se reconstroem, são e deixam de ser, podem se refazer ou não, se rearticular ou não.” (WAIZBORT, 1999: 92).
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Esse entendimento de Waizbort da obra de Simmel, também presente na idéia de configuração de Norbert Elias (2001) é aplicável ao que encontramos na Serrinha e em suas redes sociais. Conhecendo um pouco mais o samba e o jongo da região, podemos observar este ‘eterno processo’. Não há, nessas relações, lugar para fatos estabelecidos e imutáveis. Há uma constante transformação no jongo e no samba, seja como gênero musical, seja como referência para o carnaval carioca, assim como os próprios atores envolvidos e as posições políticas assumidas por eles. A primeira transformação (ou percepção da transformação) se verifica nas relações de um grupo de moradores com o G.R.E.S. Império Serrano e na maneira como esse grupo reage à postura da atual presidência e se considera excluído de uma instituição que seria deles por herança e capacidade. Também verificamos nesse período, a existência de pelo menos dois grupos trabalhando com o jongo no bairro, suas diferentes posições, discursos e formas de trabalho, e as transformações que isso causa nas relações do entorno. O segundo tipo de transformação – a influência do tráfico de drogas - é mais complicado, pois muitos se consideram especialistas no assunto, que está nos media diariamente e não permite isenção diante dele. Assim como em outros lugares, o tráfico de drogas modificou as relações pessoais, delimitou territórios e transformou a socialização dos jovens e adultos (ZALUAR, 1985; ALVITO, 2001). Podemos observar que, se antes o samba e o jongo eram elementos da sociabilidade local na Serrinha, hoje, de alguma forma, foram transformados em projetos sociais que suprem carências de determinadas localidades e, de maneira indireta, funcionam como impedimento à entrada dos mais jovens no tráfico de drogas. Essa estratégia é empregada, por exemplo, na Mangueira (GONÇALVES, 2002) e repetida, de maneira menos sistemática, na Serrinha10.
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O G.R.E.S. Estação Primeira de Mangueira acaba por se tornar parâmetro para outras escolas de samba não apenas pelo seu respeito aos fundadores da escola, aos baluartes e a velha-guarda, como também aos trabalhos desenvolvidos com sua comunidade e aos projetos 18
É preciso esclarecer que, apesar de traçar os conflitos e a solidariedade existente nessa rede, não se propõe aqui defender a existência uma inequívoca identidade dos moradores de Madureira, apenas por morarem nesse bairro.
A Metodologia Como dito acima, algumas questões da dissertação foram levantadas no projeto “Redes de tráfico” e aproveito aqui minhas observações e diários de campo antigos, nos quais pude perceber algumas mudanças no bairro e no cotidiano da rede. Também utilizo entrevistas feitas com a equipe de Madureira, com a autorização da coordenação do projeto e dos colegas. Voltei a campo em março de 2000, tentando estabelecer um novo vínculo com a mesma rede, deixando claro que o meu retorno ao bairro se dava então para a pesquisa da dissertação, quais eram os meus objetivos e algumas das minhas hipóteses. Após um afastamento de quatro meses, senti necessidade de retornar a campo, em outubro de 2001, e acompanhar a preparação do carnaval 2002. Acompanhei, mesmo à distância, em determinados momentos, as transformações sofridas pelas redes de jongo no Morro da Serrinha. A etnografia e o caderno de campo também se mostraram fundamentais nesse processo na medida em que eles refletem, não apenas a interação entre pesquisador e pesquisado, como as vozes da pesquisa, ora pano de fundo à realidade estudada, ora interlocução preciosa, tentando dar sentido ao que eu não conhecia e não percebia. Especificamente para a dissertação, utilizei entrevistas gravadas com um roteiro prévio, as histórias de vida dos moradores e o material registrado na observação participante. Documentos do arquivo sonoro do Museu da Imagem e do Som, e diversas entrevistas em jornais diários do Rio de Janeiro e de São Paulo. Para acompanhar as constantes mudanças, tive na Internet uma aliada, acompanhando notícias sobre samba e sobre jongo. A pesquisa foi realizada nas áreas já citadas
sociais desenvolvidos com o auxílio e contribuição de importantes parceiros, como a Xérox do Brasil. 19
durante os anos de 2000, 2001 e parte de 2002. A escola de samba Império Serrano foi incluída na pesquisa porque foi fundada na Serrinha e por que grande parte dos seus integrantes ainda é de moradores da localidade. O texto que apresento agora em livro é uma versão revisada e ampliada da dissertação11, defendida em abril de 2003 no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da UERJ. Nessa ampliação utilizei material recolhido ao longo do mesmo ano, como algumas entrevistas do projeto coordenado pela professora Alba Zaluar12. No capítulo I - Madureira, um subúrbio musical - procuro relacionar o território à produção cultural e musical do bairro e aos fenômenos históricos e sociais envolvidos. No capítulo II - Uma rede de solidariedade e amizade - estabeleço o conceito de rede utilizado e verifico seus limites e sua aplicação à compreensão dos grupos específicos encontrados no bairro em questão. Os capítulos III (Jongo na Serrinha) e IV (Império Serrano, Império do Samba) tratam, respectivamente, das redes específicas do jongo e do samba. Enquanto nas redes do jongo o conflito é estabelecido dentro do discurso implícito da tradição e da etnicidade, nas redes do samba o discurso recai sobre a marginalização do sambista, principalmente dos fundadores da escola de samba Império Serrano e de seus descendentes, por conta das transformações no carnaval e no papel do samba na sociedade em geral. O último capítulo – E onde houver trevas que se faça luz – discute a forma como o tráfico de drogas alterou as relações dentro das redes e como, de alguma forma, mesmo com os conflitos internos elas tentam se resguardar mantendo um distanciamento do crime e oferecendo à comunidade contribuições sociais.
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Título original: Samba são pés que passam fecundando o chão ... Madureira: Sociabilidade e conflito num subúrbio musical. 12 Projeto: Noções de masculinidade, nação e cidade no samba carioca. As entrevistas utilizadas foram realizadas por Cosme Elias e por mim, entre maio e novembro de 2003.
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CAPÍTULO I Madureira, um subúrbio musical “A história dos subúrbios cariocas é resultante dos esforços de pioneiros abnegados, na maioria das vezes incógnitos. Suas páginas mais se parecem com a letra de um samba inédito, escrita em papel de pão, esquecida no fundo de uma gaveta trancada (...)”. (João Batista Vargens e Carlos Monte, 2001: 19)
Madureira é um subúrbio musical. Nele habitam vários ritmos, principalmente os de origem africana. Quando se pensa em Madureira, geralmente o que vem a mente é a confusão, o calor, os camelôs, o Mercadão e principalmente, para quem gosta de música, as escolas e rodas de samba, os pagodes e os bailes. Durante o dia Madureira ferve. O comércio no bairro é um dos mais importantes do município, com uma das maiores arrecadações de ICMS da cidade do Rio de Janeiro. Na Estrada do Portela tem algumas galerias comerciais e um Shopping Center (Madureira Shopping Rio), além do comércio informal, que ganhou espaços delimitados nas ruas do bairro, mas que se espalha e aumenta, sendo chamado em alguns trechos de ‘Madureira Shopping Rua’, uma clara oposição ao shopping fechado. As marcas vendidas são as mesmas, mas o que reina nas ruas, além da informalidade do comércio são as falsificações dos produtos de grifes brasileiras, européias e norte-americanas, e Cds com preços abaixo do mercado. Quando a noite chega, traz consigo pessoas que trabalham na região e ainda os que moram ali e trabalham longe. São essas pessoas que interagem nas ruas do bairro, geralmente ao som da música. E é raro uma noite sem música no bairro. Em relação a esta música acompanhamos um movimento interessante. Mesmo que os estudos sobre o samba, tanto como gênero musical como manifestação popular apareçam gradualmente, é significativo que haja uma produção razoável sobre a musicalidade de Madureira. Centrados principalmente nos relatos biográficos e nas histórias das escolas de samba, estes estudos revelam de forma insuspeita o papel da sua população nesse processo. Tendo como parâmetro as pesquisas sobre Paulo da
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Portela, Silas de Oliveira, Candeia e Zé Kéti ou ainda os livros dedicados ao Império Serrano e a Portela, além do material disponível em sítios da Internet, foi possível tentar acompanhar a formação de Madureira e a importância da música na região. É importante não pensar Madureira como pólo musical homogêneo. Ao mencionar no início do texto a presença da música de descendência negra desde o século XIX em Madureira não estava falando somente em samba e jongo, mas em estilos musicais que, nos últimos 20 anos ganharam visibilidade do ponto de vista das relações estabelecidas entre os moradores do bairro, tais como o charme13, o funk14e o hip-hop15. Este não é o objeto da pesquisa, mas seria leviano ignorar o espaço que estes estilos (juvenis, também) ocupam hoje no bairro. Neste capítulo, uma pergunta será recorrente: é possível relacionar a história do povoamento do bairro, a origem dos seus primeiros habitantes com as manifestações musicais e o surgimento de melodias tão singulares como as dos compositores do Império Serrano e da Portela? Como explicar a morte e o renascimento do jongo no bairro, atualmente o principal, senão o único representante do ritmo no município do Rio de Janeiro?
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Mais sobre o Charme, em ‘Clube do charme: elegância, criatividade e suavidade’, de Fátima Regina Ceccheto, publicado em seu livro “Violência e estilos de masculinidade”, publicado pela editora FGV em 2004, nesta mesma coleção. 14 Funk - (1959) MÚS a partir da década de 1960, tipo de música americana de origem negra com ritmos sincopados e em compasso binário d GRAM empregado também apositivamente: música funk, bailes funk d ETIM ing. funk (1959) 'música que combina formas tradicionais de música negra, caracterizada por um ritmo forte e marcado'. Fonte: Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. d Com relação à pesquisas sobre Funk que se remetem ao subúrbio ver Hermano VIANNA, 1989 e Fátima CECCHETTO, 1997 e 2002. 15 Hip- Hop – Segundo o Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa (1983) hip-hop é movimento cultural da juventude pobre de algumas das grandes cidades norte-americanas que se manifesta de formas artísticas variadas (dança, rap, grafites etc.). No artigo de Hermano Vianna ‘Filosofia do Dub’, hip-hop aparece como ‘movimento cultural surgido em Nova York que ganhou popularidade nas décadas de 80 e 90. A expressão engloba algumas manifestações da cultura negra, como dança, grafite, técnica de discotecagem e rap. O início do movimento pode ser atribuído a Kool Herc, Grandmaster Flash, que começaram a explorar o uso de novas batidas dançantes na década de 70”. No mesmo artigo, a definição de rap aparece como “ estilo criado nos guetos de Nova York na metade dos anos 70 e popularizado na década seguinte. Nele, os vocais são declamados sobre uma batida simples, pré-gravada. Geralmente, os temas das músicas abordam as desigualdades sociais, a violência e a vida de minorias étnicas. O nome vem de "rhythm and poetry", o jeito de cantar falando”. Lembrando que o hip-hop tem se desenvolvido com ênfase em Madureira, palco de trabalho da CUFA (Central Única de Favelas) e sede do prêmio Hutus, de Hip Hop, ambos sob o comando do empresário e articulista do sitio Viva Favela, Celso Athayde. 22
Acredito que a origem dos primeiros habitantes do bairro está ligada, de forma irreversível, à produção cultural e musical desses moradores e de seus descendentes. Pensar as relações espaço /identidade (VELLOSO, 1990) ou espaço / construção e reprodução de relações sociais (LEWIN, 2002) será fundamental para observar a sociabilidade dos seus moradores, e a forma como circunscrevem o bairro de Madureira – um bairro de importância musical e política – dentro da cidade do Rio de Janeiro. Para analisar melhor estas trajetórias será necessário acompanhar um pouco da história do bairro, percorrendo o caminho que outros autores já fizeram, trabalhando sobretudo na perspectiva de Simmel que considera o “espaço (...) como uma das condições da sociedade pois a interação converte o espaço, antes vazio, em algo cheio de nós, já que faz possível a referida relação” (MORAES FILHO, 1983:24).16 Para acompanhar um pouco da história de Madureira, é preciso retomar em boa parte as transformações das freguesias do Rio de Janeiro em bairros, num percurso que irá dos séculos XVI ao XX.
1.1 - Começo de tudo, começo de mundo ... Ao que “concerne sua localização espacial, econômica e cultural, o Rio de Janeiro foi o mais importante protagonista no cenário geopolítico e administrativo do país, percorrendo uma trajetória sui generis, abrigando em seu interior quatro formatações de capitalidade: Capital Colônia, Capital Reino Unido, Capital Imperial e Capital Republicana” (LEWIN, 2002), em um período que abrangeu quase dois séculos, de 1793 – 196017. Isto significa, não apenas analisar a demarcação territorial de Madureira e unir a idéia de lugar (que passa a ser definido como macro-localização geográfica de um determinado território) e espaço (que se refere ao palco da
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“Espaço que Immanuel Kant define como a possibilidade de coexistência” (MORAES FILHO, 1983:24). 17 Antes disso o Rio de Janeiro dividia com Salvador a função de capital da colônia. Foram, no total, 320 anos. 23
história)18, mas principalmente localizar a produção deste espaço em um espaço maior, que o próprio Rio de Janeiro em plena ebulição. Deve-se primordialmente a Estácio de Sá, as primeiras outorgas de sesmarias19 rurais no Rio de Janeiro, ainda no ano de 1565 (confirmadas por Mem de Sá em 1567). A partir desse ano, há sucessivos registros de concessões de sesmarias para a instalação de engenhos de cana-de-açúcar que ocuparam lentamente essas terras, sempre fazendo o movimento do litoral para o interior. Em 164720, a freguesia21 de Nossa Senhora da Apresentação de Irajá foi criada a partir dos pedidos do padre Antônio Martins Loureiro e se constituiu fisicamente a partir da capela, ora elevada à paróquia, de Nossa Senhora da Apresentação, sediada hoje no bairro do Irajá. Durante algum tempo a freguesia do Irajá permaneceu como sendo a única unidade rural de todo território do Rio de Janeiro, constituindo-se assim o principal fornecedor de produtos agrícolas para toda cidade. Para se ter uma idéia, toda a região que conhecemos como subúrbios fizeram parte inicialmente da freguesia do 18
Helena Lewin, ao estabelecer as diferenças entre lugar e espaço, nos coloca ainda que o “espaço se exterioriza através do arranjo interativo de objetos distribuídos no território, não se configurando apenas como produtor das relações sociais, mas também responsável pela reprodução de tais relações.” Neste sentido, a idéia de lugar, muito mais complementaria a idéia de espaço que a contraporia, na perspectiva de que “o lugar é tanto mais condicionante da vida humana, quanto mais depende dele a sobrevivência do grupo” (LEWIN, 2002). 19 A instituição Sesmaria surgiu em Portugal, em princípio para oferecer aos camponeses pobres a oportunidade de disporem de pequenas extensões de terra para cultivo próprio. No Brasil, as sesmarias cobriam áreas extensas, e foram criadas para permitir que senhores abastados produzissem mercadorias que deveriam ser enviadas à metrópole para serem comercializadas no Velho Mundo gerando riqueza para o erário português. Para adquirir o direito às sesmarias, os candidatos deviam comprometer-se a morar nas propriedades por no mínimo três anos, não podendo transferi-las a terceiros, alem de provar que dispunham de recursos para explorá-las produtivamente e pagar os dízimos à Coroa e ao conselho da Câmara. Cf. R.M.Pechman, A gênese do mercado urbano de terras: a produção de moradias e a formação dos subúrbios no Rio de Janeiro. Dissertação submetida ao corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional da UFRJ como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre. Rio de Janeiro, 1985, p.60. 20 Noronha Santos estipula que a data de criação da freguesia de Irajá foi 1644. Utilizamos a data referente ao processo de criação da mesma freguesia. 21 Denominava-se freguesia cada parte em que se dividia a cidade. À medida que a cidade se expandia, novas freguesias, urbanas e rurais, foram sendo criadas a partir dos desmembramentos das existentes. Cabia ao Conselho da Câmara exercer o poder civil, ao passo que as atividades de catequese e de ensino ficavam a cargo da autoridade religiosa, responsável pela paróquia local. Com a Proclamação da República em 1889, as antigas freguesias passaram a chamar-se distritos municipais. Cf. Vargens, J.B & Monte, Carlos. A Velha Guarda da Portela. Rio de Janeiro: Editora Manati, 2001 – p. 37. 24
Irajá. A primeira modificação notável em seu território foi a desvinculação da circunscrição de Jacarepaguá (desvinculada em março de 1661). A segunda ocorreria em 1673, com a desvinculação de Campo Grande, seguida pela circunscrição de Inhaúma (em 1743) e do Engenho Velho (em 1795). A vida econômica das freguesias estava diretamente ligada à vida econômica do próprio Rio de Janeiro. Nesse período, suas propriedades territoriais eram muito extensas, dedicadas principalmente à plantação de cana e ao escoamento dos seus derivados, como a aguardente e o açúcar. Estes derivados eram escoados nas partes navegáveis da freguesia (principalmente a que se localizava próximo ao rio Meriti), indo direto ao porto do Rio de Janeiro para sua exportação. Na parte mais a oeste não havia muitas possibilidades de navegação, sendo o acesso restrito por terra. A característica mais importante a observar nessa freguesia é apontada por Vargens & Monte quando eles afirmam que: Embora a produção de açúcar fosse o objetivo principal dos engenhos cariocas, seus proprietários procuravam aumentar suas rendas dedicando-se também a outras culturas, voltadas ora para a exportação, ora para o consumo próprio e da população da cidade. Esses produtos variavam de um engenho para outro em função das características de cada propriedade, de sua localização e dos recursos naturais de que dispunha. Assim dedicavam-se às culturas de milho, arroz, feijão, mandioca, ao cultivo de frutas e hortaliças, e à criação em pequena escala de aves, suínos e gado de leite e de corte. Havias iniciativas industriais incipientes, muitas para atender às necessidades de cada propriedade. Encontravam-se serrarias, olarias, engenhos de farinha, carvoarias, fundições, fábricas de móveis, utensílios de barro e de palha (2001: 22)
Para
desempenhar
as
suas
funções,
os
senhores
da
terra
serviam-se
primordialmente do braço escravo, de início indígena e, depois, africano. Como na maior parte das vezes não dispunha de recursos suficientes para adquirir mão-de-obra necessária para lavrar as vastas extensões de suas propriedades, estabeleceu-se a prática de arrendar parte delas a terceiros. Em troca, os arrendatários se obrigavam a beneficiar, no engenho do proprietário arrendador, toda cana-de-açúcar por eles plantada. Vale ressaltar que, embora em menor quantidade, esses arrendatários também possuíam escravos para executar, junto com seus familiares, as tarefas
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exigidas (VARGENS & MONTE, 2001:22 e 23). Inclusos nesta população diversificada, os integrantes da Companhia de Jesus empreenderam outras formas de produção como algumas atividades industriais e criação de importantes rebanhos de gado, além de terem se destacado como educadores e serem procurados para formação de mão-de-obra especializada pelos donos de engenho. É importante ressaltar a presença dos jesuítas na freguesia de Irajá e adjacências, não apenas pela formação de mão-de-obra para os fazendeiros e arrendatários, como também pela especialização dos seus escravos em música, principalmente a erudita22. Neste período, a freguesia de Irajá já dispunha de aproximadamente 4 mil habitantes, distribuídos pelos 248 fogos23 existentes na região. Ao longo do século XVIII a freguesia foi se desenvolvendo e apareceram as primeiras vendas, que atendiam principalmente aos tropeiros que passavam por ali. Nessas vendas trabalhavam de forma mais ativa os antigos arrendatários das terras e escravos alforriados e seus descendentes. Ao pensar nas atividades econômicas exercidas na freguesia, precisamos ter em mente que estas atividades não estavam restritas a um pequeno território. Mesmo com alguns desmembramentos, em 1795 a freguesia do Irajá era constituída pelos 35 bairros do subúrbio que conhecemos hoje e mais outros três, destacando-se entre eles os atuais “Ricardo de Albuquerque, Anchieta, Pavuna, Acari, Jardim América, Parada de Lucas, Penha, Penha Circular, Cordovil, Brás de Pina, Vicente de Carvalho, Abolição, Pilares, Vaz Lobo, Magno, Turiaçu, Rocha Miranda, Honório Gurgel, Madureira, Oswaldo Cruz, Bento Ribeiro, Marechal Hermes e Campinho” (VARGENS & MONTE, 2001: 21)
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Com relação às atividades musicais estimuladas e ensinadas pelos jesuítas nas freguesias rurais, ver pesquisa em andamento de Antonio Carlos dos Santos, da UNESP, ‘Mulheres negras na música colonial, final do século XVIII e início do século XIX’. 23 Fogo era a designação do conjunto de habitações utilizadas pelo proprietário, sua família e seus agregados (VARGENS & MONTE, 2001). 26
1.2 - O século XIX As mudanças mais flagrantes na geografia e economia da cidade serão percebidas a partir do século XIX. Segundo Maurício Abreu, é a partir deste século que “a cidade passa a transformar radicalmente sua forma urbana e apresentar verdadeiramente uma estrutura espacial estratificada em termos de classes sociais” (ABREU, 1997:35). A tese de Abreu é que no decorrer do século XIX, a cidade se transformará tanto em relação ao seu conteúdo (político, social, econômico), como na sua aparência (urbanística). A vinda da família real vai inserir ao Rio de Janeiro uma classe que até o momento não existia. Vejamos. O Rio de Janeiro era uma cidade que até o século XIX foi praticamente negra, como afirmam diversos historiadores. Havia falta de mobilidade física entre os moradores, já que a ausência de transportes coletivos imperava e a necessidade em defender a cidade obrigava que todos morassem próximos. Abreu afirma ainda que a elite local se diferenciava dos outros moradores sobretudo pelo tipo de moradia, já que habitavam as mesmas regiões da cidade. As áreas mais próximas das freguesias urbanas começarão a se transformar lentamente, com o desmembramento de suas fazendas em chácaras, inicialmente reservadas aos finais de semana das classes dirigentes e que ao longo do século se transformaram em local de residência permanente, estimulando assim a criação de novas freguesias. Mas o Rio de Janeiro não se restringia apenas ao núcleo central. As freguesias rurais mantinham-se exclusivamente rurais na medida em que esta falta de mobilidade dos moradores da cidade contribuía para que permanecessem fornecendo gêneros alimentícios à corte apenas. Durante a primeira metade do século XIX a situação permaneceu praticamente inalterada. Isso por que a freguesia de Irajá estava situada praticamente no “coração” da cidade, assumindo posição estratégica já que a região tinha ligação por terra com o chamado sertão carioca e por terra e mar com o pequeno centro da cidade de então. Além das transformações na paisagem da cidade, observamos uma mudança na 27
mentalidade dos dirigentes dessa cidade e a necessidade de se implementar novas políticas que dessem conta dessa nova realidade. É neste mesmo período que a cidade passa a atrair os investimentos do capital internacional e grande parte do mesmo será utilizado no setor dos serviços públicos (transporte, esgoto, gás, etc.) em concessões obtidas diretamente do Estado. Esse período será considerado por alguns como de contradições, pois não se abandona a mão de obra escrava para inserir a lógica capitalista em nossa na economia local.
1.3 – A freguesia de Irajá no século XIX e sua transição para distrito municipal no século XX. Mesmo mantendo-se exclusivamente rural, a freguesia de Irajá passa a se transformar. O primeiro sinal desta transformação será principalmente a formação dos futuros bairros, criados nas imediações das linhas férreas que surgiram durante esse século e a configuração de outros a partir dos desmembramentos das antigas fazendas e engenhos de cana da região ou ainda como alguns autores lembram “a partir de meados do século XIX, o antigo celeiro agrícola transformou-se, predominantemente, em zona residencial de populações pobres” (VARGENS & MONTE: 2001: 27).
A formação de Madureira No início do século XIX começa-se a delinear a região onde se encontra o bairro de Madureira hoje. Durante os anos de 1818 e 1819, vamos acompanhar o processo de reapropriação de terras movido por dona Rosa Maria dos Santos, esposa e herdeira do Capitão Francisco Ignácio do Canto, proprietários da Fazenda do Campinho contra Lourenço Madureira. O acompanhamento do processo é significativo na medida que podemos observar os acordos envolvendo as terras e população da então freguesia de Irajá. Mais significativo ainda é formação do bairro a partir de três principais fazendas na região, que foram se fragmentando ao longo do século XIX.
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Acompanhar este processo é importante, na medida em que consta como o primeiro processo pela posse de terra no Rio de Janeiro. Lourenço Madureira diz ter adquirido um pedaço de terra de um negro forro chamado Luiz de Almeida com a anuência do senhor Francisco Canto, proprietário das ditas terras. O valor de arrendamento das mesmas era de doze mil e oitocentos réis em cada ano trabalhado, não podendo ultrapassar as benfeitorias o valor de vinte mil réis. A viúva, a senhora Rosa dos Santos pede o despejo de Lourenço Madureira, aproximadamente um mês após a morte do marido, alegando que: 1 – Lourenço Madureira não aceitou um novo acordo de arrendamento, que aumentava o valor para treze mil réis anuais; 2 – que o mesmo incitou os seus escravos com conselhos maldosos e que todos os escravos de trabalho fugiram; 3 – que o mesmo queria tomar tudo da sua família e ainda que 4 – descumpriu o acordo do valor máximo de benfeitorias, ultrapassando em muito o valor das benfeitorias feitas na terra. A referida senhora pede o despejo imediato, dando-lhe assim o valor de vinte mil reis de indenização, não aceitos pelo senhor Lourenço Madureira, que imediatamente entrou com um pedido de anulação de despejo, que não lhe foi concedido, já que foi comprovado que o mesmo não havia pago nos últimos três anos (Lourenço se defende dizendo que D. Rosa não quis receber o pagamento) e que não tinha o título legítimo de arrendamento ou venda, sendo considerado um intruso. O mais interessante deste processo, é que após a pendenga judicial, Dona Rosa, que não tem filhos, solicita um novo arrendamento para que Lourenço Madureira não seja expulso, permite que ele faça uma casa de palha perto da estrada, reconhece como melhorias a ampliação da casa e dos cômodos adquiridos pelo réu, além das cercas de espinho, plantações de arvoredos, construção de casas e abertura de uma venda na fazenda, permitindo assim a permanência de Lourenço em suas terras pelos mesmos doze mil e oitocentos réis iniciais. Com este acordo, o nome de Lourenço 29
Madureira24 passa à história, como aquele que primeiro se preocupou com o progresso e as benfeitorias no bairro, quando o mesmo ainda não era reconhecido como tal. As terras de Dona Rosa Maria eram de fato enormes (400 braças de frente por 1.200 de fundos entre o Engenho do Portela e o Engenho de Fora). Quando Dona Rosa falece em 1846, já havia dividido e doado grandes lotes da sua terra a amigos e parentes, entre os quais seu inventariante Domingos Lopes da Cunha (português) e Vitorino Simões, que teve sua filha Clara Simões casada posteriormente com o próprio Domingos. Podemos entender a partir destas doações de terra, como Madureira vai se formando. É dos desmembramentos das grandes propriedades que nascerão as chácaras, comuns no final do século XIX e início do século XX. O bairro que temos hoje era a Fazenda Campinho, somada à Fazenda Portela, que abrangiam os atuais bairros de Campinho25, Oswaldo Cruz26, Madureira27, Turiaçu e Vaz Lobo28, todos inclusos na Região Administrativa de Madureira.
Vale lembrar que durante este
período o nome Campinho já era a referência da região. E com o hábito de denominar os lugares pelo nome dos ocupantes (nas referências mais simples) acabou por fixar o nome como Madureira (ainda fazendo parte da freguesia de Irajá).
Desenvolvimento sobre os trilhos Um dos responsáveis pelo desenvolvimento das freguesias foi a instalação da linha de trem inaugurada em 1858. A Estrada de Ferro Central do Brasil, originalmente denominada Dom Pedro II, tinha como ponto de partida o centro da cidade do Rio de 24
Na imaginação popular, Lourenço Madureira foi expulso das terras e se torna referência no bairro por conta do processo de terras envolvendo seu nome e o da herdeira da Fazenda Campinho. Utilizo os dados do Processo n.º BI 16 54 (ano 1818-1819), localizado no Arquivo Nacional – Rio de Janeiro. 25 Onde se localiza a quadra do G.R.E.S. Tradição (dissidência do G.R.E.S. Portela, fundada em 1984). 26 Onde se localiza a quadra do G.R.E.S. Portela. 27 Onde se localiza a quadra do G.R.E.S. Império Serrano 28 Localização da Serrinha, que fica entre Madureira e Vaz Lobo. 1ª sede do G.R.E.S. Império Serrano, sede do G.R.E.S.M. Império do Futuro e do Centro Cultural Jongo da Serrinha. 30
Janeiro e estendia-se até a estação de Belém29, no interior na província. Ela possuía apenas seis paradas além das terminais: São Cristóvão, Engenho Novo, Cascadura, Sapopemba, Maxambomba e Queimados. As demais estações foram surgindo aos poucos sendo que as duas últimas a serem criadas no final do século XIX foram a Estação de Madureira30 (em 1890) e a Dona Clara31 (em 1891). O hábito de nomear os lugares pelo nome de seus residentes se faz notar no nome das duas últimas estações de trem. O trem é considerado, por Maurício Abreu, juntamente com os bondes, o vetor de expansão da cidade no século XIX. A partir de 1861, há uma ocupação acelerada das freguesias rurais atravessadas pela Estrada de Ferro Dom Pedro II. Isto por que: “o processo de ocupação dos subúrbios tornou, a princípio, uma forma tipicamente linear, localizando-se as casas ao longo da ferrovia e, com maior concentração, em torno das estações. Aos poucos, entretanto, ruas secundárias, perpendiculares à vida férrea, foram sendo abertas pelos proprietários de terras, ou por pequenas companhias loteadoras, dando início assim a um processo de crescimento radial que se intensificaria cada vez mais com o passar dos anos” (ABREU, 1997:50).
Mas o aumento populacional do subúrbio e seu desenvolvimento como conseqüência da implantação da linha férrea não é um dado isolado. Já no final do século XIX, a equação trem + subúrbio + população de baixa renda, passaram a se contrapor com a associação bonde + zona sul + estilo de vida “moderno”, isso por que as autoridades competentes privilegiaram a urbanização e o saneamento do centro do Rio de Janeiro e dos bairros adjacentes (próximos à praia), situação que se consolida no governo Pereira Passos. Apesar de toda reforma urbanística no Rio de Janeiro e o investimento do capital internacional nessas reformas, pouco ou nada foi feito nas antigas freguesias rurais. Por outro lado, a reforma desapropriou um grande contingente de operários, que não puderam manter o pagamento dos altos aluguéis (devido a pouca oferta de imóveis 29
Estação de Belém, Sapopemba, Maxambomba hoje são respectivamente Japeri, Deodoro e Nova Iguaçu. 30 Homenagem a Lourenço Madureira. 31 Homenagem a Dona Clara [Simões], esposa de Domingos Lopes. 31
disponíveis) e tiveram entre as alternativas (ou faltas de alternativa) as mudanças para os cortiços, dividindo suas casas com outras famílias, (por vezes numerosas), ou mudando para os bairros mais afastados do centro da cidade, inclusive Madureira. Pela mesma razão, mudaram ainda também os funcionários públicos, militares, pequenos comerciantes, não somente expulsos do centro da cidade pelos preços de imóveis como pela busca de melhor qualidade de vida para sua família, passando então a adquirir as chácaras no subúrbio. E neste período que emerge uma “elite militar” moradora desses locais. Interessa-nos observar principalmente dois pontos: com a implantação das Estações de Madureira e Dona Clara, o atual bairro foi dividido em três partes ou lados, como alguns preferem. Dona Clara, Portela e Magno. Dona Clara localiza-se hoje, onde antes era a sede da Fazenda do Campinho. Era por ali que passava a via de acesso centro – sertão: a Real Estrada de Santa Cruz. Atualmente por esta parte do bairro (Rua Domingos Lopes principalmente) que dá acesso a Zona Oeste, principalmente Jacarepaguá e Barra da Tijuca. Portela é a área compreendida entre as duas linhas férreas. O mais interessante para o trabalho então, passa a ser a estação de Magno. Inaugurada em 1898, fazendo parte do trecho da Estrada de Ferro Melhoramentos do Brasil, foi incorporada a Estrada de Ferro Dom Pedro II em 1903. tinha uma localização estratégica, daí a sua importância, pois se situava no encontro das estradas Marechal Rangel e do Portela, uma procedente do celeiro de Inhaúma e outra de Irajá. Por conta da sua localização seu nome inicial era Inharajá. Mudou-se o nome posteriormente para Magno em homenagem a Alfredo Magno de Carvalho, engenheiro da equipe de Paulo de Frontin. É por este trecho que hoje se chega a Turiaçu e Vaz Lobo, onde se localizam atualmente os morros de São José das Pedras, Serrinha e Sossego.
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Madureira como subúrbio32 Segundo Fernandes (1996), “O sentido essencial, original e geral da categoria subúrbio reside no fato de representar um espaço geográfico situado à margem, nas bordas, na periferia localizada extra-muros da cidade. Um espaço produzido junto a cidade e tão antigo quanto ela, mas que, por sua localização geográfica, tipo e forma de uso, não se confunde nem com a paisagem nem com o espaço considerado urbano. Outra característica presente na categoria subúrbio é ser um espaço subordinado à cidade, em termos jurídicos, políticos, econômicos e culturais, embora isto nem sempre possa ser traduzido por desprestígio social, como vimos em Roma (...) ou no emblemático subúrbio americano moderno” (P. 30 e 31)
Este autor defende a existência de um significado particular da palavra subúrbio no vocabulário corrente no Rio de Janeiro, pois os mesmos não se assemelham aos subúrbios existentes nos EUA e na Europa, onde “tanto os trens quanto os subúrbios estarem associados às classes médias e altas, assim como seus territórios se localizarem fora do território central da cidade” (p.30).
Quais seriam essas
especificidades que nos leva a ter um conceito carioca de subúrbio ? Nosso conceito é fruto da história, pois até o final do século XIX a palavra subúrbio ainda era empregada para se referir às áreas periféricas da cidade, não possuindo um sentido social pejorativo, nem ao menos significava a ‘falta de cultura’ ou de sofisticação, como apontou Morris (apud Fernandes, p.2). São Cristóvão, Botafogo, Glória, Engenho Velhos são alguns exemplos dos antigos subúrbios. Após as reformas urbanísticas no início do século XX, subúrbio passa a compreender, quase que obrigatoriamente, os bairros ferroviários e populares do Rio de Janeiro. Soares (1958), em quem Fernandes se inspira, entende que a palavra subúrbio assumiu este significado quando passou a ser definida pelas seguintes características: 32
A produção sobre o subúrbio carioca é riquíssima, passando pela literatura de Lima Barreto, os filmes de Nelson Pereira dos Santos (‘Rio Zona Norte’, ‘Rio 40 graus’, ‘Meu cumpadre Zé Kéti’), as músicas e os livros de Nei Lopes (ELIAS, 2002). Na produção antropológica, as representações que os moradores de Copacabana fazem do subúrbio estão em Utopia urbana, de Gilberto Velho; como os estilos de vida suburbano podem ser encontrados nas pesquisas de Karina Kushnir, Hermano Vianna, dentre outras. 33
1 – O trem como meio de transporte; 2 – predomínio da população menos favorecida; 3 – dependência e relações íntimas e freqüentes com o centro da cidade. Sendo assim, podemos considerar que a emergência do conceito carioca de subúrbio coincide com “o desenvolvimento de uma ideologia do habitat no Rio de Janeiro (FERNANDES, 1996:3), tal como Abreu também apresenta.
1.4 – A transição do século XIX para o XX: relações musical e culturalmente convergentes Madureira, a humilde estação da Central, inaugurada em 1890, alcançou em 32 anos um avanço formidável. Vale mais que muitas cidades do interior do país. Desde 1918 que se transformou no aprazível subúrbio (...) conta animadíssimo comércio, cafés e confeitarias , lojas de moda, armarinhos, mercado, ostentando algum luxo em 4 ou 5 casas principais. O progresso alcançado nestes últimos anos tem sido vertiginosos.Basta observar-se à hora da chegada dos trens dos subúrbios expressos a massa de povo que circula na passagem elevada sobre o leito na Central (...) para se ter uma idéia do crescimento de sua população e de grande parte de Irajá, que se serve de trens (NORONHA SANTOS, p.81)
Desde o início do seu povoamento a grande presença de negros na freguesia do Irajá e suas relações com os proprietários de terra estiveram bem marcadas, ora de forma mais delimitada, ora de forma mais fluida. Podemos dizer que, na observação da formação histórica de Madureira, havia áreas de negociação bastante claras em relação aos negros forros e escravos e os proprietários de terra, forma esta que não se diferenciava muito do resto da metrópole. A presença e importância da mão-deobra negra são inegáveis para o desenvolvimento dos subúrbios e serve para explicitar de que forma estes bairros chegaram a ser o que são hoje. Não apenas nas lavouras, onde sua força de trabalho era fundamental e reunia escravos, forros e portugueses no desenvolvimento comercial e no suprimento dos gêneros alimentícios para toda cidade, mas também a presença de negros nos movimentos abolicionistas a presença de negros é de relativa significativa importância em Madureira. Algumas terras, como as pertencentes à Dona Carolina Machado, presenciaram a
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alforria de todos os seus escravos antes de 1888, influenciada por José do Patrocínio e festejada por negros e brancos abolicionistas, em uma festa de cunho claramente político33. O bairro apresentará como moradores, descendentes de escravos empregados no Cais do Porto, Central do Brasil, atividades militares ou o funcionalismo público de um modo geral. Esta inserção profissional sugere a existência de áreas de negociação entre os negros e brancos, tanto ricos como pobres e como estas áreas foram importantes para a formação do bairro e a permanência da sua heterogeneidade. Quando lembramos das tradições musicais nesse bairro, imediatamente pensamos não apenas na identidade étnica dos seus moradores, mas principalmente na preservação de sua identidade cultural. Por que? Madureira sempre fez parte de uma freguesia rural até a transição para subúrbio urbanizado. Antes do século XIX e suas migrações a população negra na região que viria ser Madureira já era bastante adensada. Os ritmos musicais representados por 33
Em seu o livro As Camélias do Leblon, Eduardo Silva estabelece as relações entre a corte no Rio de Janeiro no final do século XIX e o apoio, mesmo que implícito, dos imperadores e do Brasil em relação a abolição da escravatura. De que forma o apoio aos negros escravizados quase se torna moda na corte, envolvendo a sociedade local, a nobreza, intelectuais e políticos e principalmente, o estabelecimento de quilombos abolicionistas, um "novo modelo de resistência (...) com lideranças muito bem conhecidas, cidadãos prestantes, com documentação civil em dia e, principalmente, muito bem articulados politicamente. Não mais os grandes guerreiros do modelo anterior, mas um novo tipo de liderança, ma espécie de instancia de intermediação entre comunidade de fugitivos e a sociedade envolvente" (p. 11). Todos esses quilombos abolicionistas, mesmo protegidos, foram cercados diversas vezes pela polícia escravista, a polícia negreira, por fazendeiros que, empobrecidos, gostariam de obter mão-deobra barata. O autor ainda esclarece "que não se pense, contudo, que o quilombo abolicionista representa uma atitude menos guerreira, ou menos ativa, por parte do povo negro. Ao contrário, sem a adesão franca dos escravos, manifestada por meio das fugas em massa, o projeto abolicionista não teria a menor chance de êxito. No fundo, para o agente principal dessa história, o negro escravo, a opção de fuga e formação de quilombos continuava a ser uma opção guerreira" (p.33). Não existia somente o Quilombo do Leblon, mas ainda outros espalhados no espaço do Rio de Janeiro, vide os quilombos de São Cristóvão e de Jacarepaguá, como existia também um quilombo em Santos, São Paulo. Não há evidencias de quilombos abolicionistas em Madureira, mas parece que o hábito em se festejar o abolicionismo em festa como "batalha de flores", estava em toda cidade. Inclusive com a participação de José Carlos do Patrocínio, descrito por Eduardo Silva, como um membro da elite negra, que "deixou-se impressionar tão profundamente por essas batalhas de flores e simbolismos quilombolas, que rompeu com seus antigos aliados republicanos e passou a apoiar abertamente a princesa Isabel", "a meiga mãe dos cativos" (p.36).
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afro-descendentes são importantes na medida em que acompanham esta transição ao longo do século XIX e XX. Estes ritmos não foram preservados de uma forma pura, forma esta que não acredito existir. E como não poderia ser diferente, o destino do bairro sempre esteve atrelado às resoluções do centro da cidade. A partir das influências dos salões e sobrados somados às experiências da escravidão e à memória de sua filiação negra começaram a aparecer “refrãos alegres e lamentosos, sob diferentes formas, nos calangos34, nos cateretês35 e nas chulas36”, incorporando definitivamente “a cantiga negra do povo da roça às nossas manifestações musicais” (VARGENS & MONTE, 2001:31). Tal como aconteceu nos Estados Unidos pós-abolição com o blues e jazz nas áreas de colonização francesa e de influência do ritmo habanera (Hobsbawn, apud Zaluar, 1998: 283)37. Mas já vimos que o período pós-abolição não foi de tranqüilidade. Tanto Velloso (1990) quanto Rolnik (1989) afirmam que não existia espaço para a “Pequena África”, 34
Calango – Segundo Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa s.m. (1689 cf. FQCeilão) 9 ETN DNÇ RJ MG dança popular, próxima do coco nordestino, executada por pares que dão passos, volteios e requebros que lembram o samba urbano original 10 ETN MÚS B N.E. tipo de canto popular, responsorial d ETIM quimb. kalanga 'lagarto'; quanto às acepções de cantoria e dança, fica dúvida, segundo Nei Lopes: seriam elas assim chamadas em alusão ao movimento do réptil, ou o nome viria do hauçá kalango 'tambor feito de madeira ou de cabaça'?. Segundo Dicionário Cravo Albim de Música Popular Brasileira, calango seria uma ‘dança típica do norte de Minas Gerais e também do Rio de Janeiro. É dançada por pares e com passos muitos simples em ritmo 2/4. No calango cantado temos o improviso do solista e repetição do refrão por parte do coro. Também aparece na forma de desafio entre dois cantadores. O instrumento tradicional de acompanhamento é a sanfona de oito baixos. Um de seus principais divulgadores na virada do século XX para o século XXI é Téo Azevedo, mineiro conhecido como o cantador de Alto Belo, que em 2000 lançou o CD "Forró, calango e blues", onde aparecem as composições "Calango do pé de bode", "Calango fandango" e "Cutuca no calango", todos de sua autoria’. 35 1 Cateretê - Segundo Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa s.m. (1899 cf. CF ) DNÇ ETN B dança rural muito difundida em que os participantes formam duas filas, uma de homens e outra de mulheres e, ao som de música, sapateiam e batem palmas; catira. Para o Dicionário Cravo Albim de Música Popular Brasileira o cateretê ‘também chamada Catira, é uma dança indígena brasileira encontrada em São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás. Arthur Ramos afirma que o cateretê se estende por vários Estados do Nordeste e Cenicchiaro estende a área do cateretê também aos Estados do Amazonas e Pará. Há registros dessa dança na África, que Mário de Andrade considera "ser torna viagem de portugas e negros", pois já no século XVII se indicava o degredo para Angola de gente de São Paulo. Segundo opinião corrente, a dança é de origem ameríndia, tendo sido aproveitada pelo padre Anchieta (1534-1597) nas festas católicas da catequese’. 36 Chulas – Conforme consta no Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa.s.f. (1899 1 cf. CF ) 3 DNÇ MÚS dança popular do Norte de Portugal, de andamento vagaroso, com canto acompanhado por rabecas, violas, guitarras e percussão 4 MÚS B N.E. canto seresteiro ou de salão 5 DNÇ MÚS RS dança agitada de homens, acompanhada de canto, e que consta de sapateado e evoluções ao redor de uma lança fincada no chão.
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na “Europa Possível” do prefeito Pereira Passos (1904). Se no texto de Rolnik, a autora constrói esta impossibilidade dentro da perspectiva de que as intervenções do poder público no espaço afetam em muito os negros habitantes desses locais, e que a outra face desta intervenção seria distanciando deliberadamente as populações negras e pobres, deliberadamente dos centros urbanos, Velloso trabalha com este dado efeito da reforma de uma forma um modo mais sutil. O espaço, para Velloso, se configura-se não apenas no sentido territorial, mas na construção de culturas e práticas sociais bem definidas. Ao se criar uma base baiana e negra nas proximidades do centro do Rio de Janeiro, com a junção do trabalho e do lazer, da musicalidade e da religiosidade, quebra-se a estrutura espaço /tempo do capital -industrial, cria-se uma outra rede de solidariedade e sociabilidade que centraliza as já existentes nos subúrbios habitados pelos negros cariocas poucas vezes analisadas pela história, além de circunscrever um espaço perto do coração econômico e político da cidade do Rio de Janeiro, então capital federal. Neste sentido, o afastamento da população pobre e negra do centro da cidade e a (re) estruturação de sua rede pode ser entendida como ponto de partida para tais transformações. O primeiro aspecto que deve ser analisado é que estes espaços não se fragmentaram sem resistência (ver Revolta da Vacina), e que a mesma também era negra. As elites ignoravam a existência de uma “rede forte e informal de lealdade”, que unia as classes populares de vários bairros em momentos decisivos, assim como também pressupunham que estas mesmas classes não tinham potencial organizativo, simplesmente por destoar dos padrões associativos da época. Esse potencial organizativo era ignorado, pois foi construído fora da esfera do Estado, com a criação de ranchos, terreiros e cordões38, apesar de aceito e incorporado posteriormente pelo mesmo Estado e pelas elites nas festas populares que predominam no Rio de Janeiro.
38
Zaluar (1985) explora este ponto ao estudar um bloco de carnaval em Cidade de Deus, apontando os fortes vínculos associativos na vizinhança. 37
O samba já havia vencido o Zé Pereira (VALENÇA, 1996 e 2003). O segundo aspecto dessas transformações, é que mesmo após a saída da maioria da população negra destes espaços (Pedra do Sal, Saúde, Praça XI), os mesmo continuam sendo conhecidos por sua inscrição cultural negra. O palco do Terreirão do samba, onde no século XIX ficava a “Pequena África” na praça XI, se chama João da Baiana e a escola pública, Tia Ciata, o que também revela a hegemonia baiana no pensamento sobre a história do samba no Rio de Janeiro. Dentro desta perspectiva, podemos pensar também no deslocamento espacial. Se o
espaço
se
desloca
geograficamente,
os
seus
habitantes
o
transportam
simbolicamente para onde vão. “Isso tem a ver com a própria ‘cultura de Arkhé’, para a qual o espaço fundiário adquire outra conotação. Mais forte do que a territorialidade física, é a energia que dela emana (axé) capaz de unir e irmanar os seus membros” (SODRÉ, 1988; VELLOSO, 1990). Quais são os movimentos? África – Brasil, Salvador – Saúde – Cidade Nova, Minas Gerais – Rio de Janeiro, Valença – Serrinha, enfim são várias as possibilidades de relações e construções de símbolos. É importante observar, porém, que os espaços negros nunca foram exclusivos. Desde a escravidão, a pobreza igualava, ou ao menos misturava, negros e brancos e talvez por isso nos impossibilite em falar “da” identidade negra, como única, pura e homogênea. Dentro desses movimentos (e culturas) a presença do português, do imigrante europeu e, na segunda metade do século XX, do migrante nordestino sempre foi uma constante nestas inter-relações. Por conta disso, repito, pensamos é preciso pensar em construção de espaço e identidade, mas não podemos pensar nos termos de entidades inclusivas e fechadas: “a comunidade”, “a cultura” ou “a identidade”. Trata-se mais de arranjos múltiplos e cambiantes, como num caleidoscópio (Zaluar, 1985) ou em configurações (Elias, 2001) Como Velloso (1988) afirma, ao contrapor a idéia de Olavo Bilac – o reforço das linhas divisórias entre a ‘cidade ideal’ (centro-sul) e a ‘cidade real’ (Saúde, Gamboa, subúrbios) – e Lima Barreto, que discorda efusivamente dessa polarização, “não há 38
uma expressão cultural típica de um bairro e também não se pode falar em uma etnia localizada” no Rio de Janeiro pois a exemplo da Cidade Nova , “é mais uma gafe das nossas elites intelectuais que a caracterizam como sendo habitada pelos negros. Na realidade, esse bairro é ocupado por todos aqueles elementos que foram marginalizados política e economicamente, como imigrantes portugueses, italianos e seus descendentes” (p.50). Madureira não se diferencia muito nesse aspecto.
d O século XX se apresenta diferente para o bairro. Com o desenvolvimento das linhas de trem e a chegada dos caminhões, o mercado madureirense não desloca tanto seus produtos para a Praça XV, mantendo-os assim no bairro em um Mercado criado por volta de 1914-15. Em 1926 torna-se um distrito municipal, desvinculando suas arrecadações e impostos de Irajá e Campinho. Neste momento, Madureira já é considerada um subúrbio, não no sentido aplicado pela Escola de Chicago, mas antes um conceito que guarda proporções bem cariocas.
Madureira hoje Alô Madureira Vou cantar pra enfeitar Coisas simples do meu verso Pois só o simples é belo E o belo simples será Madureira (João Nogueira)
A Região Administrativa de Madureira39, segundo os dados do IBGE/ IPP conta com uma área total de 30,783 Km² e uma população em números aproximados de 362.442 habitantes.
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Desse total, 47% são de jovens entre 0 e 29 anos de idade
(170688), dos quais 23% são crianças e pré-adolescentes entre 0 e 14 anos, tendo o 39
A Região Administrativa de Madureira compreende os bairro de : Madureira, Honório Gurgel, Rocha Miranda, Turiaçu, Vaz Lobo, Engenheiro Leal, Cavalcanti, Quintino Bocaiúva, Cascadura, Campinho, Osvaldo Cruz, Bento Ribeiro e Marechal Hermes. 40 Dados do 1996, publicados pela Prefeitura do Rio de Janeiro, Instituto Pereira Passos. 39
bairro quatro vezes mais pessoas nesta última faixa de idade (83 263) do que a região administrativa de Copacabana (20391). A população adulta corresponde a cerca de 40% do total e as pessoas de 60 anos e mais, 13%. Madureira tem, relativamente aos dois outros bairros, o maior contingente em números absolutos e relativos de crianças e jovens e o menor de idosos. Esse fato sem dúvida nenhuma contribui para que o bairro seja aquele que apresenta as mais altas incidências de crimes violentos, especialmente o homicídio, que envolvem como autores e vítimas, os jovens. Como já foi dito na Introdução, é também o bairro com o perfil de distribuição de renda mais pobre, o oposto de Copacabana. Tanto a R.A quanto o bairro de Madureira apresentam, nos extremos, o oposto da distribuição de renda de Copacabana: 40% e 37% dos domicílios abaixo da linha da pobreza, 5,4% e 7,5% nas faixas mais altas de renda respectivamente. A desigualdade dentro de Madureira é a menor entre os três bairros estudados na pesquisa “Redes de tráfico de drogas e estilos de consumo em três bairros do Rio de Janeiro: Tijuca, Madureira e Copacabana”41 e há poucos ricos convivendo com pobres. Entre os chefes de família que têm de 1 a 3 anos de escolaridade, Madureira, como era de se esperar exibe o percentual mais alto (16,12%), também o dobro de Copacabana. Com 4 a 7 anos de escolaridade estão 33,3% dos chefes de família em Madureira. Ou seja, sem completar o primeiro grau estão 45,4% dos chefes de Madureira, o dobro do percentual encontrado na Tijuca e quase o triplo de Copacabana. Não surpreendentemente, a R.A. de Madureira, que perdeu 3% de sua população entre 1991 e 1996, tem o maior número de favelados entre as três -- 41977 pessoas – que aumentaram quase 9% entre 1991 e 1996. São 11.101 domicílios nas dezenas de favelas da região, ou seja, cerca de 4 pessoas por domicílio, o dobro da média de habitantes por domicílio em Copacabana. Essa população vivendo em favelas representam 11,6% do total da região em 1996, o que contribui para os dados
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Os dados aqui citados foram levantados por Alba Zaluar e fazem parte do relatório de pesquisa redigido por ela (2000). 40
sobre pobreza, baixa escolaridade e desemprego. Por outro lado, é, entre os três bairros estudados, o que possui mais escolas da rede pública do município (63), com poucas pré-escolas (8). Tem também o maior número de estabelecimentos e leitos hospitalares, como pode ser visto na tabela da Introdução. Não há, portanto, a propalada falta do Estado, mas uma presença precária em qualidade dos serviços prestados, especialmente para aqueles que são os agentes e alvos preferenciais dos crimes violentos: os homens jovens, sobretudo os que moram nas favelas. Outros estabelecimentos públicos ligados ao lazer e à cultura, tais como cinemas e teatros (8), museus (2), são em muito menor número relativo ao contingente populacional do que os outros bairros. Esse é mais um fator negativo para a ocupação dos jovens nas horas fora da escola em locais que contam a presença de adultos, especialmente se levarmos em conta que, ao contrário de Copacabana, que conta com a praia, e Tijuca, que conta com o maior parque florestal urbano da cidade, Madureira não tem recursos naturais que possam ser usados no lazer dos jovens e dos adultos simultaneamente. Provavelmente, também, a escola não tem sido competente para mantê-los em atividades extra-escolares, dar-lhes uma educação de qualidade e formar identidades positivas com a instituição e seus responsáveis. Em compensação, o bairro é um dos pólos comerciais mais importantes da cidade que apresenta a maior arrecadação de ICMS dos três bairros (cerca de R$ 51 milhões) e a maior receita total do Comércio (63 milhões de reais), a segunda da indústria (52 milhões de reais). Por isso mesmo, é estranho que uma das regiões administrativas que mais contribui para a riqueza do município tenha 40% de seus moradores vivendo abaixo da linha da pobreza e que jovens favelados entrevistados se queixem tanto do desemprego. Como vimos, além de ser um bairro movimentado do ponto de vista comercial e industrial, tem forte tradição nas manifestações da cultura popular, especialmente no samba. Há um grande número de favelas antigas existentes na Região de Madureira e três escolas de samba do grupo especial (Império Serrano, Portela e Tradição) lá se 41
encontram. Essas escolas realizam um movimento constante em termos de lazer que envolve sua população durante o ano todo em bingos, pagodes, rodas de samba, feijoadas, procissões etc. Na época do verão, com a proximidade do Carnaval, os ensaios nas escolas de samba são freqüentes, o que aumenta ainda mais as opções de lazer. O que há de mais especial nisso é que as escolas de samba proporcionaram uma socialização inicial dos jovens da região nada desprezível, visto que conseguem reunir várias gerações de sambistas e de moradores de diversas localidades. Durante a pesquisa, o bairro de Madureira foi apontado como o mais movimentado em termos de lazer no subúrbio do Rio Janeiro. Consegue-se encontrar pessoas de variadas regiões dos subúrbios carioca em eventos como festas, ensaios de escolas de samba, bailes funk e bailes charme. Durante os períodos festivos é possível perceber uma super lotação do comércio e o aumento de pequenos furtos e roubos nas ruas de Madureira. Outra época muito movimentada é durante os preparativos para o carnaval. Isso pode ser um indicativo da sazonalidade de certos crimes na região.
d Acompanhando o movimento ocorrido no Centro do Rio de Janeiro desde o início do século, surgem as primeiras favelas do bairro, em que seus principais moradores serão as populações empurradas do centro e os migrantes do Norte Fluminense e Minas Gerais. É nessa população que encontraremos posteriormente o jongo e o samba, com a fundação das escolas de samba Portela e Império Serrano: “Os subúrbios e a zona rural cariocas tiveram sua ocupação determinada, principalmente, pela antiga Estrada de Ferro de D. Pedro II, inaugurada em 1858, pela Estrada de Ferro Leopoldina (1886) e pelo bonde (1911). Desses, de grande importância para a economia da cidade e para o samba, foi a freguesia (depois distrito) de Irajá. Nesse distrito de Irajá, incluídos aí Rio das Pedras (depois Oswaldo Cruz), Sapê (depois Rocha Miranda) e o morro da Serrinha (entre Madureira, Vaz Lobo e Vicente de Carvalho), mais os morros da Congonha e da Tamarineira, o século XX, recém-chegado, encontrou gente vinda não só dos logradouros mais valorizados do centro da cidade, expulsos de lá com as reformas de Pereira Passos, como também gente chegada diretamente das fazendas decadentes dos estados do Rio, São
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Paulo e Minas Gerais. E aí seriam criadas, entre outras, as escolas de samba Portela (seu núcleo fundador é de 1926) e Império Serrano (1947)”. (Nei Lopes, 2003:43 e 44)
Esta perspectiva ficará mais clara na medida em que trabalharmos melhor os significados da formação de redes sociais em Madureira e de que forma as mesmas se mantêm e são referências para a cultura local.
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CAPÍTULO II Uma rede de solidariedade e amizade “Vamos começar pela Serrinha, uma comunidade situada numa encosta do morro do Dendê que, junto com o morro da Congonha, forma o vale que liga os subúrbios de Madureira e Vaz Lobo. A Serrinha fica num morro, mas não era uma favela e, segundo Vasconcellos (1991: 25), teve origem num dos muitos loteamentos da Companhia de Colonização Agrícola, de propriedade do Visconde de Morais, que desde o princípio do século XX converteu em áreas urbanas imensas áreas do subúrbio carioca ocupadas por chácaras e fazendas (Gerson:1965; Ribeiro:1983). Mas se a Serrinha não era uma favela, também não era um bairro, sendo na realidade uma das periferias mais pobres do subúrbio de Madureira” (Nelson da Nobrega Fernandes, 2001:59)
João Máximo, em seu perfil de Paulinho da Viola, afirma que “quem diz que o samba nasceu na Bahia, ou é baiano, ou mal informado, quando não as duas coisas”. Ele propõe, em contrapartida, que “o samba é natural aqui do Rio de Janeiro (...) e pode ter sementes ou até mesmo raízes na Bahia, mas foi na velha capital da República do primeiro quarto do século XX que ganhou forma, e numa palavra, floresceu” (2002:13). Sandroni distinguirá, em uma perspectiva rítmica, dois tipos de sambas distintos: o que propicia a gravação de ‘Pelo Telefone’, por Donga, saído dos quintais das tias baianas e o samba do Estácio, que surge a partir dos anos 20 e vai servir de inspiração e parâmetro sonoro para várias escolas de samba criadas a partir dessa data. Naquele período, década de 20, já havia moradores em Madureira e adjacências, principalmente por conta das transformações do século XIX. A população estabelecida nessa região após 1888, como Oswaldo Cruz e Serrinha, veio predominantemente do Vale do Paraíba, do Norte Fluminense, de Minas Gerais, São Paulo e, em menor grau, do Maranhão e da Bahia. Vieram também aqueles expulsos de locais mais valorizados da cidade do Rio de Janeiro pelas reformas urbanas do início do século XX ou emigrantes das áreas rurais do próprio Estado, além dos que, saídos dos morros de Santo Antonio, Castelo, São Carlos e Mangueira, buscavam os baixos aluguéis e a proximidade de amigos e parentes já instalados ali.
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Como foi visto no primeiro capítulo, essas transformações ocorrem não apenas devido aos deslocamentos populacionais do período pós-abolição, como também devido às reformas urbanas realizadas por Pereira Passos, principalmente, quando o deslocamento passou a se dar em direção aos subúrbios, com maior acesso proporcionado pelas linhas férreas. Se os motivos primários de ocupação de Madureira e adjacências, e conseqüentemente a Serrinha, eram os baixos aluguéis e a disponibilidade de casas para alugar, não podemos negligenciar a atração que parentes, amigos e antigos vizinhos já morando nas imediações do morro exerciam. Essa possibilidade de contar com ajuda e amizade nos primeiros tempos de adaptação a seu novo ambiente provavelmente pesou na decisão dos seus futuros moradores, pois a solidariedade existente nessas relações amenizava o cotidiano. Na verdade, o apoio possível dentro de uma rede estabelecida é fundamental para se compreender a migração no país e a mudança dentro da cidade. Não era uma vida fácil. Batalhava-se pela sobrevivência em diversas profissões. Alguns eram professores, como o professor Assumpção, outros trabalhavam em hospitais, no cais do porto, com políticos ou então na Central do Brasil. Militares e funcionários públicos também habitavam aquelas paragens. Tanto na literatura existente (VALENÇA & VALENÇA: 1981; SILVA & OLIVEIRA FILHO: 1981; VASCONCELLOS: 1991) quanto nas entrevistas, fica claro que em sua formação a Serrinha criou uma espécie de relação familiar extensa, para além dos laços óbvios de consangüinidade. Os amigos, os vizinhos e os parentes formavam uma só grande família, fosse pelas atividades profissionais, fosse pelo lazer. Alguns homens trabalhavam no Cais do Porto, como estivadores e arrumadores, formavam sindicatos próprios e mantinham atividades nesses sindicatos que cruzavam, em alguns casos, com as próprias atividades na escola de samba. Reuniam-se, homens e mulheres, para festas de casamento ou batizado,
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aniversários ou gurufins42. Juntos estavam também nas festas religiosas, nas ladainhas, devoções de santos, procissões, nos carnavais, piqueniques ou qualquer motivo que consolidassem a amizade e os descansassem nos dias de folga. As atividades dos sindicatos profissionais, como a antiga Resistência, cantada no samba do Império Serrano de 2001 ou na própria escola, desde a escolha do figurino até a montagem da ala para o carnaval fortaleciam os laços de parentesco, compadrio, amizade, em alguns casos estabelecidos de faro quando membros das diversas famílias que habitavam o morro, e por que não o bairro, casavam entre si. Segundo Nei Lopes, “Principalmente nas décadas de 1950 e 1960, o mundo do samba se organizava como um universo à parte, com regras, usos e costumes bastante peculiares. Nesse universo, as escolas, surgidas em geral de núcleos familiares que as mantinham e dirigiam, eram as células principais. Por esse tempo, alegorias, fantasias, bandeiras e até boa parte dos instrumentos eram de fabricação doméstica; o que realmente contava era a participação comunitária. Diretores faziam ‘vaquinha’ para financiar o carnaval de sua escola até a liberação da verba oficial; instrumentos eram tomados de empréstimo a outras agremiações e mesmo a estabelecimentos de ensino vizinhos; programações eram adiadas em respeito ao luto de famílias ou pessoas ligadas à agremiação ou à comunidade; da mesma forma que a alegria e a sociabilidade desse universo eram expressas em visitas, congraçamentos de todo tipo e acima de tudo, muita festa. Os locais dessas festas eram as gafieiras, clubes, praias e até navios. E o formato delas variava desde o baile e o piquenique na ilha de Paquetá, passando pelas ‘monumentais’ passeatas de automóveis, pelos passeios marítimos na baía, a bordo do famoso navio Mocanguê, pelas festas juninas à caipira, pelos torneios de partido-alto e pelos batizados de alas” (LOPES, 2003:61).
Os conflitos existiam, é claro, mas havia mediadores eficazes entre os mais velhos (no morro e em idade) e os com ascendência religiosa e moral, fossem mães e pais de santo, como a Vovó Maria Joana, mãe de mestre Darcy, fosse o velho professor Assumpção, dono de colégio e protestante, pai de Silas de Oliveira. 42
Gurufim é comumente conhecido como velório de pobre, pois reúne na casa do morto, não na capela do cemitério, a família, os vizinhos, os amigos, todos reunidos para comer, beber e contar histórias sobre o falecido ou falecida. Pode ocorrer, durante a madrugada, jogos para distrair as pessoas, músicas e comida. O gurufim pode misturar aspectos sagrados e profanos ainda demonstra de forma bem definida, a formação da rede social do morto e sua família. Há relatos que dizem que o gurufim não é uma cerimônia de tristeza e sim de alegria, pois é uma oportunidade de compartilhar a história de um determinado grupo social.
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Esse período (o passado) é reconstruído nas entrevistas de maneira quase idílica, seja quanto à própria situação da Serrinha e seu entorno, seja quanto às relações cotidianas ali estabelecidas. É o passado idealizado como projeção da insatisfação do presente e o projeto de futuro desejado. Dona Ana, antiga moradora, nos conta como foi a chegada de sua família a Serrinha. Sua família já era moradora da freguesia de Irajá e sua ida para o distrito de Madureira se deu por motivos afetivos, acompanhar a avó, que foi para perto dos parentes quando ficou viúva: Minha vida é o seguinte: minha mãe é nascida em Osvaldo Cruz e meu pai em Ricardo de Albuquerque. Com a morte do meu avô em 20, minha avó veio para Madureira. Então meus primos, tudo é Madureira. A família é enorme. E aí, quando meu pai casou, foi morar na rua Doutor Joviniano ... morei em algumas ruas em Madureira em casa alugada. Morei na rua Portela, Conselheiro Galvão e depois meu pai comprou um terreno e construiu ...
Outros vieram com amigos e vizinhos para o morro, estreitando laços e consolidando a solidariedade existente no grupo nas mais variadas maneiras. Marília Barboza da Silva e Arthur Oliveira Filho, em seu livro sobre Silas de Oliveira, caracterizam bem as transformações ocorridas nas primeiras décadas do século XX com a chegada dos seus novos moradores: Madureira naquele momento já seria uma espécie de capital do subúrbio, apesar de ser considerada atrasada em relação a outros bairros, ‘a roça’, como se dizia. De fato, Madureira só despontaria como pólo comercial ao longo dos anos 40 e 50. Na palavra dos entrevistados:
“A (rua) Leopoldino de Oliveira era terra batida, eu já estava bem crescidinha quando mudaram ... a (rua) Conselheiro Galvão também ... barro com sol e com chuva. A conselheiro Galvão era assim. Luz não tinha ali. Só foi ter quando eu já estava bem crescidinha. Ônibus é novo. No meu tempo não havia ônibus...” (Sra. Ana, nascida em 1927)
“Teve diversas mudanças como novas moradias, novos moradores, antigamente as casas eram pobrezinhas e aí com a evolução ... as ruas eram sem asfalto, sem iluminação,
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problema de água e com o tempo foi se modernizando e foi mudando ... Isso foi quando? Em quarenta e pouco, quarenta e nove, cinqüenta ... aí veio progredindo na rua onde eu morava, a rua em que eu nasci e fui criado ... isso não foi no centro de Madureira não, onde eu nasci. De 48 pra cá foi evoluindo, água canalizada, luz ... “ (Sr. Francisco, nascido em 1938)
Segundo os relatos e a própria literatura existente, o modo de vida do bairro e da Serrinha era muito diferente da vida em outras partes da cidade. Há mesmo uma construção, como vimos no capítulo anterior, que opõe o ambiente no entorno das linhas de trem suburbanas ao ambiente se desenvolveu ao longo da orla da Zona Sul. As diferenças de modos de vida ficam ainda mais explícitas nas situações de nascimento e de morte, e na diversão e comensalidade dos atores envolvidos (SILVA & OLIVEIRA FILHO, 1981). Como explicação possível Claudia Rezende nos diz que:
“na teoria social, a noção de sociabilidade se refere geralmente a situações lúdicas em que há congraçamento e confraternização entre as pessoas. Ariès (1981) circunscreve neste termo as visitas, encontros e festas que envolvem trocas afetivas e comunicações sociais para além do círculo familiar. Música e dança são elementos comuns, e a comensalidade figura quase obrigatoriamente nos momentos sociáveis” (REZENDE, 2001: 167)
O enterro de pobre era o gurufim, no qual se comia e bebia muito, lembrando as coisas boas da vida do morto. O enterro de Paulo da Portela foi assim. A fartura da comida e da bebida, tão generosa para acolher aqueles pertencentes à família extensa, era obrigatória nos jongos, pagodes, piqueniques e festas do morro. Fosse macarronada, rabada, mocotó, sopa de ervilha e feijoada, era a comida que ajudava a agregar os amigos e parentes. Era também a comida que ajudava a agüentar a folia dos blocos, quando o carnaval chegava, como afirma tia Vani (nascida em 1940 e moradora da Serrinha), “Minha avó preparava toda comida para nos dar energia no carnaval: era macarrão, feijão, galinhada, toda família reunida, brincando o carnaval”. Nas confraternizações que acontecem no Império Serrano, comida e música ainda
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são elementos que agregam os moradores. Após a procissão de São Jorge, padroeiro do Império Serrano, a maioria retorna à quadra, para jantar e se divertir com os amigos. Assim, notamos a nítida formação de redes sociais, segundo o modelo proposto por Elizabeth Both, no qual as redes se caracterizariam por uma maior convivência intrincada de parentes, amigos e vizinhos, formando assim uma rede de solidariedade coesa, na qual os papéis conjugais estavam definidos, em maior ou menor grau, de modo segregado, ou seja, esposas e maridos tinham atividades claramente definidas e separadas. Às mulheres cabia a socialização das crianças e a cozinha; aos homens as atividades públicas. No entanto, havia mulheres compositoras e todos, homens e mulheres, participavam das festas que antecediam o carnaval e do desfile. Na escola, suas redes sociais se fundiam, pois cada membro criava laços com membros de outras redes por diversos motivos. E, era, principalmente, a existência dessa rede que favorecia o apoio mútuo e a interação, além da formação de uma família extensa e do compartilhamento de códigos sociais, políticos e culturais43. Na Serrinha formou-se inegavelmente uma rede social, e que tendo se espalhado por outros bairros da cidade, não se esgota. Um dos principais motivos é que os descendentes dos primeiros moradores estão vivos e moram lá. Outro fator que fortalece a manutenção da rede social é a relação comum da Escola de Samba Império Serrano com a própria transformação do morro ao longo do tempo e com o papel social e cultural dos atores envolvidos.
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Não podemos, no entanto, falar de formações de rede social dessa espécie, em relação ao Funk e Hip-Hop. Estilos juvenis existentes em Madureira, suas redes não são formadas com base familiar, como as do samba e do jongo, tampouco se verifica uma tradição, ou herança musical passada dentro da família. Num morro onde há uma longa história de cooperação e ajuda mútua dentro do jongo e do samba, a presença do baile funk, elemento externo a essa cultura, se torna por vezes também um gerador de conflitos, e esses mobilizam a comunidade para minimizar sua influência em jovens e adolescentes em determinados momentos por que, especificamente na Serrinha, mas não apenas, os bailes ficaram conhecidos pela participação dos membros do tráfico de drogas local .
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2.1 - Como entender as redes: dois caminhos propostos O primeiro caminho proposto é de Elizabeth Both, estabelecido no clássico Família e Rede Social. No livro, a autora estabelece uma distinção de como seria as redes familiares formadas por famílias de baixa renda, com baixa formação profissional, com maior dependência da rede familiar e com papel conjugal bastante marcado em contraste com famílias com uma qualificação profissional mais alta, nas quais os papéis conjugais não sejam tão definidos e a participação em outras redes esteja garantida. Segundo Max Gluckman, o que Elizabeth Both fez foi:
“nos dar uma pista para a compreensão de toda esta segregação de papéis [em família]. Poderíamos supor que as famílias em todas as sociedades tribais eram os centros de redes de malha estreita: elas viviam cercadas pelos parentes de ambos os conjugues e estes parentes eram, portanto, vizinhos, amigos e companheiros de trabalho. O efeito disto era, por exemplo, separar os conjugues e diferenciar claramente seus papéis. Como coloquei em um ensaio que Both cita logo ao começo de seu novo capítulo, haviam sido criados ”afastamentos de família”, conflitos inerentes de crença, lealdade, fidelidade e valor, que impediam que a família nuclear viesse a ganhar adesão total de seus membros, uma vez que estes eram compelidos a manter adesões com os grupos mais amplos ou com agrupamentos de parentes, que constituíam os grupos funcionais políticos e econômicos da sociedade” (GLUCKMAN, 1970; BOTH, 1976)
O texto de Jean Baechler corrobora esse conceito ao resenhar a bibliografia sobre as diferenças entre socialização, sociação e sociabilidade, se referindo a técnica para se descobrir ou interpretar uma rede social. Ele considera que “Houve quem observasse, muito justamente, que a rigor, a expressão ‘rede’ designaria o conjunto de laços estabelecidos entre pessoas, e não, como se impôs pelo uso corrente, ‘o conjunto das pessoas com as quais o indivíduo interrogado está em contato” (HÉRAN, 1988:14, apud BAECHLER, 1996:78)
Isso confirma a própria percepção da formação do que se habituou chamar de rede social, dentro da própria Serrinha e no Império Serrano.
Quanto aos meus
entrevistados, não segui a rede de contatos de cada um, mas sim, procurei conversar e entrevistar pessoas que tivessem uma ligação estabelecida e fortalecida anteriormente, sempre por indicação do entrevistado anterior. Assim, não só a
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entrevista estabeleceu uma “consideração” entre as partes, como, de cara, vinculou as vivências em comum. Esses vínculos e vivências vieram a reforçar o discurso, fosse sobre o jongo, fosse sobre o samba.
Estabeleceu-se a rede de entrevistados por dois caminhos
convergentes. O primeiro, de iniciativa da pesquisadora, que era o de pedir indicações e possíveis contatos do entrevistado. O outro, mais arriscado, partia da própria entrevista, no momento em que o informante se sentisse à vontade para oferecer alguém (parente, vizinho ou amigo) que validasse seu discurso, fosse em uma conversa informal, fosse em outras entrevistas. Digo que é mais arriscado, pois em um dado momento da pesquisa entendi que, se não estivesse preparada para as armadilhas do método, reforçaria um mesmo discurso, já que: “Uma sugestão de Alain Degenne (Degenne, 1983) que parece fecunda seria no sentido de focalizar os estudos sobre as redes não de indivíduos enquanto objeto, mas de grupos considerados como atores coletivos, procurando determinar não apenas quais associações que, numa determinada área, desenvolvem relação entre si, mas sobretudo quais seus membros pertencem a várias dentre elas e asseguram a continuidade e a realidade da rede” (BAECHLER, 1996: 78).
Assim, após delimitar a rede, procurei observar como esses grupos se constituíam e verifiquei que as pessoas faziam parte de diversos contextos culturais e políticos locais, ao mesmo tempo, criando assim interseções ou cross cutting ties, conceito de Gluckman que explica onde, como e por que conflitos encontram formas de negociação não violentas. Mas era impossível que todos fizessem parte de todas as redes, que transitassem pelas redes (pois o que se cria são laços sociais fortalecidos entre as redes) ou que dominassem os códigos de policiais e traficantes, elementos exteriores que não fazem parte das referências das manifestações da cultura afrobrasileira no bairro.
2.2 - A Rede A rede sobre a qual estou trabalhando se constitui, em sua maioria, de pessoas que moram ou moraram em Madureira por mais de 20 anos. Ela é composta por
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Imperianos, descendentes dos fundadores (moradores ou não da Serrinha, onde a Escola de Samba foi fundada) e por pessoas relacionadas a alguma das redes de jongo da região. A maioria dos entrevistados é negra, freqüenta cultos afro-brasileiros ou católicos e têm mais de vinte e cinco anos de idade. Conversei tanto com homens quanto com mulheres. Apesar da variedade de origens, a maioria descende de fluminenses, mineiros e baianos, que no início do século XX migraram para o Rio de Janeiro. Mesmo lembrando seus ascendentes, todos se consideram cariocas. Como já dito anteriormente, a relação entre as pessoas da rede se dá na medida em que são parentes, vizinhos, primeiros de 1º e 2º grau, colegas de trabalho, amigos de infância, se exercem alguma atividade na escola de samba ou se está ligado a algum grupo de jongo. Nesse sentido, pensar o conceito de rede é tentar compreender um conceito que se disseminou tanto, que, é necessário distinguir entre o conceito de rede social que estou trabalhando e a existência na prática de outros tipos de “redes” de samba e jongo no Rio de Janeiro, como é no sentido trabalhado por alguns críticos e especialistas. Sobre a primeira, João Pimentel definiu muito bem que “O samba é uma grande aldeia onde convivem, harmoniosamente, muitas tribos. Se por um lado há um grupo ligado pelos mesmos interesses musicais – apaixonados pelo partido alto de Aniceto, pela síncope de Geraldo Pereira, pelo breque de Moreira da Silva e Jorge Veiga e pelo cronista Noel – por outro não há um caráter excludente. A turma que freqüenta o samba não está nem aí para a roupa que o cidadão está usando, se o malandro diz no pé ou não, se ele é branco ou negro, da Zona Sul ou da Zona Norte”. “Existem sim, universos diferentes dentro do samba. Uma roda de subúrbio, seja no quintal da Surica ou no pagode da Doca, possui uma característica natural de respeito do tipo ‘quem sabe canta, quem não sabe bate palma’. Já as casas de samba na Lapa e no Centro - nunca houve tantas e tão variadas – são responsáveis pela formação de um novo público e pelo surgimento de uma nova e talentosa geração de músicos e cantores do samba” (Pimentel, 2003)
Existem, dentro do samba, universos distintos que incluem o samba como gênero musical, o mercado fonográfico, os grêmios recreativos e a própria sociabilidade, conceitualizada por Simmel, como formas de manutenção de cultura. 52
Quanto à Rede de Memória Jongo e Caxambu44, formada por jongueiros e pesquisadores do jongo e dos territórios jongueiros, ela abrange todo Estado do Rio de Janeiro e é responsável por encontros e seminários, mantendo viva a tradição do jongo. Os registros fonográfico, fotográfico e videográfico são feitos de forma permanente nessas comunidades, no que a Serrinha também se inclui assim como centro das atividades, incluindo tendo um encontro anual de todas as comunidades que fazem parte da rede de jongo e caxambu (SIMONARD, 2002). Interessante, é observar que, ao falar das redes e dos vínculos que essas redes criam, nós se possamos falar de algumas famílias que estão ligadas ao samba e ao jongo de Madureira por diversos motivos.
As famílias Costa, Santos, Oliveira e
Cardoso são as que aparecem com freqüência nas entrevistas. Sobre a família Monteiro, tradicional no Jongo da Serrinha, se falará no capítulo específico sobre o tema. Costa - Filho de João Batista da Costa e Cecília Maria da Costa, o mineiro Alfredo Costa, de profissão guarda-freios, era responsável pelo bloco Cabelo de Mana, freqüentado também pelos Oliveira e por outros moradores. Sua esposa, dona Araci Costa (dona Iaiá), era tia da esposa de Antonio dos Santos, o mestre Fuleiro, e casou seu filho Oscar da Costa com a prima dele, Ivone Lara, posteriormente conhecida como Dona Ivone Lara, reforçando de forma definitiva os laços que uniam as famílias. O Sr. Alfredo Costa e seu bloco Cabelo de Mana estão na origem da Escola de Samba Prazer da Serrinha, que segundo consta, deve ter sido fundada no final dos anos 20, já que em 30 marcava presença no Carnaval do Rio de Janeiro. Santos - Paulino dos Santos e Teresa Benta dos Santos, chegados a Serrinha em 44
Segundo o sítio Rede de Memória Jongo – Caxambu (Em http://www.eefd.ufrj.br/redejongo) “A rede de memória do jongo e caxambu foi criada com o objetivo de pesquisar, registrar, divulgar e buscar apoio para os grupos de jongo existentes no Brasil. Uma das suas ações é a organização dos encontros anuais ... Fazem parte da Rede: Associação da Comunidade Negra de Remanescentes de Quilombo da Fazenda São José da Serra, o Centro Cultural Jongo da Serrinha, o Grupo de Consciência Negra Ylá DU DU / Angra dos Reis, a Prefeitura da cidade de Valença/RJ (Secretaria de Cultura) e a Universidade Federal Fluminense (Faculdade de Educação / Curso de Interiorização de Matemática em Santo Antonio de Pádua)”.
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1926, pais de Antonio dos Santos, nascido em 1911. Teresa Benta dos Santos, jongueira, morreu com mais de 100 anos, dançava o jongo com vovó Maria Joana. Antonio dos Santos é mestre Fuleiro, carioca, um dos fundadores do Império Serrano, e Cidadão do Samba 1974. Oliveira - Francisco Zacarias de Oliveira, Funcionário da Companhia de Limpeza Urbana, chegou por volta de 1920. Era casado com Etelvina Severa de Oliveira, com quem teve 10 filhos. Organizou e dirigiu quatro blocos, criando seus filhos em um ambiente festivo. Morreu em 1929, legando o gosto pelo samba e pelo jongo como herança aos seus filhos. A família Oliveira tinha grande influência na Serrinha. Francisco Zacarias de Oliveira, o patriarca, um espírito festeiro, teve um papel de destaque na Serrinha como líder comunitário e organizador de blocos carnavalescos. Seus blocos, ‘Primeiro de nós’, ‘Dois Jacarés’, ‘Três Jacarés’ e ‘Bloco da Lua’, estiveram na base da fundação do Império Serrano. Ao morrer, em 1929, seus filhos perpetuarão seu trabalho e sua paixão pelas festas. São seus filhos que, em 1947, juntamente com vizinhos e amigos, fundam o G.R.E.S. Império Serrano, de uma dissidência da escola liderada pelo Sr. Alfredo Costa, a Prazer da Serrinha. Seus filhos, Sebastião Molequinho e Eulália do Nascimento, são ainda uma referência de destaque no carnaval do Império Serrano, apesar de não fazerem parte da política da Escola de Samba há muitos anos. Foi a casa de Molequinho a primeira sede da escola Império Serrano. Seu irmão, João Gradim foi o primeiro presidente da mesma Escola de Samba. Sua irmã, Maria da Glória, é tia Maria, do atual grupo Jongo da Serrinha.
Eulália, também fundadora do Império Serrano, casou-se com
Nascimento, que era jongueiro (e posteriormente, uma filha de ambos casou com o filho de mano Elói, Hélio). Cardoso - A família Cardoso saiu da Mangueira para a Serrinha em 1926, deixando para trás 14 tendinhas no morro de Santo Antonio. Tiveram 14 filhos e todos 54
estudaram, uma questão que o pai, seu Augusto, fazia. Seu Augusto trabalhava na Central do Brasil e era casado com dona Juci, que trabalhava em hospital. Entre seus filhos estão profissionais da música, Arandir (Careca, passista e militante de escola de samba e um dos fundadores da Escola de Samba Mirim Império do Futuro), Iraci (antiga filha de santo de vovó Maria Joana e mãe de Valdemir, também militante de escola de samba e um dos fundadores da Escola de samba Mirim Império do Futuro). Apesar da importância dessas famílias, a rede que estou trabalhando não se insere nos circuitos (ou redes mais amplas), que, como disse, podem ser considerados referenciais, em alguns casos pouco tem passado por elas. Quanto ao jongo, não fazem parte da rede por que não são considerados autênticos jongueiros pelo outro grupo existente na comunidade e principalmente por questões políticas. É por esta via que o conflito entre os grupos se estabelece, como veremos no capítulo III. Em relação à Escola de Samba Império Serrano, os fundadores e seus descendentes começaram a perder espaço ainda na década de 70 e a participação deles no circuito musical carioca se restringiu por conta das diversas atividades profissionais exercidas por eles, tema do capítulo IV.
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CAPÍTULO III O Jongo na Serrinha "O jongo é tradição muito antiga, e naquele tempo, logo que a princesa Isabel libertou os escravos, o preto fundou o jongo, né. Naquele tempo os brancos freqüentavam, mas os negros não gostavam muito. Gostavam dos pretos, dos morenos, morenos bem pardos, bem tostados, né... Hoje é diferente. Hoje tudo dança, dança preto, dança branco, dança moreno, dança qualquer um. Mas naquele tempo não era assim não, segundo a escola que tive do meu pai, que foi da escravidão, né? Então, tem um ponto de jongo que eu canto pro jongueiro e pergunto pra ele: o que é o jongo? E o jongueiro não sabe responder o que é jongo. Agora, pro jongueiro tirar mesmo o ponto, para dizer tirei o ponto, ele precisa responder pra mim, na cantoria, na hora do jongo: ‘jongo pra quem sabe, é jongo, pra quem não sabe, não é nada’. É isso ..." 45 Depoimento do Sr. João
Os debates atuais sobre o samba e suas raízes no Rio de Janeiro seguem dois caminhos paralelos, porém não excludentes: o primeiro privilegia a construção da produção musical carioca, tendo uma delimitação espacial – bairro ou cidade – trabalhando principalmente com sua origem, interação social e profissionalização através da música (ZALUAR, 1998; SANDRONI, 2001; VELLOSO, 1988 e 1990; FERNANDES, 2002).
O segundo retoma a relação entre o indivíduo e sua rede
social, um ‘encontro’ entre pessoas da mesma classe ou de classes sociais distintas (VIANNA, 1995; GARDEL,1996), falando portanto, da produção musical daquele grupo específico, através das biografias e trajetórias sociais dessas pessoas que resultaram em transformações culturais importantes mais variadas (ELIAS, 2002; COUTINHO, 2002; VALENÇA & VALENÇA, 1983; SILVA & OLIVEIRA FILHO, 1983; SILVA & SANTOS, 1981). No segundo capítulo, procurei, após caracterizar Madureira como um subúrbio musical, explicitando quais características do subúrbio e as origens de sua musicalidade, estabelecer o que entendo por redes sociais e como as mesmas se organizaram em Madureira, tendo como fio condutor o jongo e o samba da Serrinha. Analisaremos nesse capítulo as relações perpassadas pelo jongo, ritmo e dança de 45
Do documentário O Povo Brasileiro. Realizado pela TV Cultura em 1995. Direção e Roteiro de Regina M. Ferreira. 56
origem africana, praticada no Brasil desde o período escravagista, a princípio por “pretos, morenos, morenos bem pardos, bem tostados”, depois por “qualquer um”. Segundo os dados existentes no sítio da Rede de Memória Jongo – Caxambu, o jongo está presente somente em algumas comunidades da região sudeste. Existe , como territórios jongueiros, os Núcleos do Morro do Carmo e Bracuí (Angra dos Reis RJ), Barra do Piraí – RJ, Campelo (Bom Jesus de Itabapoana - RJ), Guaratinguetá – SP, Miracema – RJ, Pinheral – RJ, Santo Antonio de Pádua – RJ, São José da Serra (Valença - RJ), além da própria Serrinha. Estabeleço neste capítulo a existência hoje de ao menos três redes de jongo na Serrinha, oriundas dos antigos jongueiros do morro que, com o renascimento do jongo, a partir dos anos 60, estarão, de certa forma, conectadas aos ensinamentos e a referência de vovó Maria Joana, mãe de mestre Darcy. Como o jongo supõe, pela sua origem, uma relação entre produção musical e etnicidade e pela como existência de um discurso de ancestralidade angolana, é necessário começar pelos autores que pesquisaram, de primeira, os bantos e suas diferenças com os nagôs, pois será esta a base de alguns estudos apresentados por pesquisadores do folclore brasileiro. Dentro da mesma perspectiva, se faz presente uma discussão sobre os vários significados do jongo e de como eles, implicitamente, acabam por repetir em alguns casos, os discursos acadêmicos publicados e lidos pelos jongueiros46. Em recente texto sobre Cultura Brasileira, Ruben Oliven nos diz que, se “o tema Cultura Brasileira e identidade nacional é uma constante no Brasil, ele necessita de intelectuais que o formulem. Uma vez desenvolvidas, as diferentes formulações sobre o tema freqüentemente acabam se transformando em senso comum. É difícil determinar como se dá exatamente esse processo. Podemos imaginar um intelectual que escreve um livro, que é lido por um jornalista, que divulga as idéias centrais da obra, que acabam aparecendo no discurso de um político, que é noticiado em um jornal e etc. Para dar um exemplo: as idéias de Gilberto Freyre sobre a ‘democracia 46
Podemos lembrar também do uso do livro de Juana Elbein dos Santos por iniciados no candomblé e a repetição do discurso já publicado em pesquisas na área. O mesmo acontece com a produção de Pierre Verger (ver Beatriz Góis Dantas). 57
racial brasileira’ são senso comum entre amplas parcelas de nossa população, sem que a maior parte delas tenha lido Casa Grande e Senzala. Se esse é um exemplo de uma expressão cultural de origem erudita que aos poucos vai se popularizando, muitas vezes a circulação de idéias se dá num sentido inverso, isto é, de baixo para cima, num processo em que representações que têm origem na cultura popular recebem uma formulação mais elaborada e acabam entrando num circuito erudito. O papel dos intelectuais também é fundamental nesse processo de apropriação de manifestações que têm origem nas classes populares e sua subseqüente transformação em símbolos de identidade nacional. O importante a ressaltar é a interação entre cultura erudita e cultura popular e a circulação de idéias (Oliven, 1989)” (OLIVEN, 2002:15 e 16)
Nesse processo têm sido fundamentais não só os integrantes da Rede de Memória Jongo – Caxambu, como também professores e alunos de história, ciências sociais, música e educação física, principalmente, que tem se dedicado a pesquisar o jongo no Rio de Janeiro, como também a conhecer, ouvir, tocar e dançar o jongo, empreendimento iniciado por Mestre Darcy. A presença dos três grupos praticantes de jongo, seus trabalhos desenvolvidos e os conflitos intra e extra grupos é o foco principal deste capítulo, partindo do princípio que estes conflitos passam pelo que pretende ser o Jongo da Serrinha, mesmo que de maneira imperceptível, como referência para toda a cidade e o que cada grupo entende, ou entendeu, como tradição afro-brasileira.
3.1 – Dança de intenção religiosa fetichista? Os poucos trabalhos sobre Jongo começam a ser divulgados a partir da década de 40 e concentravam-se na questão folclore; em muitos casos, esses estudos baseavam-se em observações de apenas uma noite.
As pesquisas nesta área
aparecem sob o enfoque folclórico da dança e da música e freqüentemente como prova de sobrevivência africana, especificamente banto. Entre os estudos sobre o jongo, podemos destacar os de Alceu Maynard e Maria de Lourdes Borges Ribeiro, esta última pesquisadora do Museu do Folclore Édison Carneiro, que fez um trabalho bastante apurado sobre o tema entre a década de 60 e o retomou na década de 80. Os trabalhos traçavam a origem do jongo e dos seus jongueiros, os locais onde se 58
praticava, as profissões dessas pessoas, as músicas, e as regiões do Brasil onde ele existia. Concentravam-se em São Paulo e, em menor escala, em Minas Gerais ou no interior do Rio de Janeiro, ignorando, sistematicamente a existência do jongo nos morros da Serrinha , da Mangueira e do Salgueiro. Essa literatura sobre o Jongo insistia que: 1 – Era uma das ricas heranças da cultura negra em nosso folclore; 2 – Era praticada na região sudeste do país, principalmente “na franja paulista, fluminense e capixaba (...) entrando também na zona da mata mineira” (MAYNARD ARAÚJO, 1964), sendo que a área principal da prática do jongo era a região cafeicultora; 3 – Que o jongo sobreviveu em poucos lugares do Brasil, principalmente naqueles de maior densidade da população negra escrava; 4 – É oriundo de Angola; 5 – Tem função recreativa para habitantes de núcleos rurais ou agrupamentos urbanóides; 6 – Os instrumentos são de percussão, mais adequados, segundo eles, à música primitiva. Como percebemos, os estudos sobre o jongo ainda estavam impregnados, mesmo que de forma sutil, com um modo de pensar o negro bem característico de décadas anteriores, classificando danças e ritmos de origem africana, mas de invenção brasileira (não há relato de jongo, por exemplo, em Angola), como fetichistas, primitivos, sobreviventes, rurais e atrasados. São exemplos disso as obras que apontavam as diferenças entre bantos e sudaneses e discutiam a distribuição desses grupos negros pelo Brasil. Algumas questões relevantes foram levantadas por Silvio Romero e Nina Rodrigues. Primeiro, trouxeram à discussão a existência de diferentes nações africanas trazidas para o Brasil pelo tráfico negreiro e suas distintas contribuições. Feito isto, classificaram os negros numa linha evolucionista segundo religião, língua, e caráter. Suas afirmações, 59
ainda que bastante discutíveis, ainda hoje continuam a permear certos estudos das culturas afro-brasileiras. Não que tenham sido os únicos, mas é penoso considerar a permanência em estudos modernos das afirmações de Silvio Romero sobre os negros bantos, pensados como “gente ainda no período do fetichismo, brutais, submissos, robustos, os mais próprios para os árduos trabalhos da nossa lavoura rudimentar” (ROMERO, 1949: 74) ou a de Nina Rodrigues defendendo a “preeminência intelectual e social (que) coube sem contestação aos negros sudaneses” (RODRIGUES, 1977:36). Não é a função deste trabalho defender a cultura herdada dos negros bantos, mas é preciso, mesmo em num primeiro momento, demonstrar como estas idéias continuam repercutindo em trabalhos atuais de forma pouco apurada. Um dos exemplos está na biografia de Paulo da Portela, datada de 1983, em que seus autores afirmam claramente que o sucesso da escola de samba Portela se deve em grande parte aos seus fundadores serem negros de origem sudanesa, vindos da Bahia, superiores aos negros bantos (1983). Outro exemplo está no corpo deste texto como citação do Dicionário Cravo Albim da MPB, disponível no sítio da Biblioteca Nacional, definindo Jongo como “dança afro-brasileira, originária de Angola, inicialmente de intenção religiosa fetichista” como pensaram Nina Rodrigues e, posteriormente, Arthur Ramos. Em obras posteriores, ao falar das sobrevivências religiosas dos negros no Brasil, Nina Rodrigues retomará alguns pontos: acredita que “de todas as instituições africanas, foram as práticas religiosas de seu fetichismo as que melhor se conservaram no Brasil” (RODRIGUES, 1977: 214). Ou seja, isto é, ao falar das sobrevivências africanas no Brasil o que é imediatamente lembrado é o fetichismo, que não é “nada” ou apenas mais um sistema de classificação social através de emblemas, segundo Lévi-Strauss, da religião afro-brasileira, indistintamente a umbanda e o candomblé. O segundo ponto é o fato dele ter errado em relação à superioridade numérica dos negros sudaneses, nagôs e iorubas no Brasil em relação aos bantos. Os bantos estão em maioria (SLENES, 1999), mas, para este autor, a 60
pobreza mítica banto é reconhecida por todos. Arthur Ramos continuará esse debate. Ele deixa claro que as afirmações de Nina Rodrigues em relação à inferioridade de algumas raças, seja a degenerescência do mestiço, sejam os problemas de determinadas religiões africanas, não têm lugar no debate científico de seu tempo, mas que a teoria do pensamento pré-lógico e a psicanálise servirão de “fecunda orientação metodológica” (RAMOS, 2001) para a re interpretação
dos rituais e processos de magia, dos fenômenos de possessão
fetichista, do sincretismo religioso e de um estudo mais profundo dos mitos negros. Poucos serão os trabalhos sobre o jongo em que se discutirá a herança da cultura africana sem se expor as diferenças entre os bantos e os nagôs e os aspectos religiosos fetichistas dessa manifestação dos primeiros. Um detalhe curioso é que dentre os pesquisadores nascidos no Rio de Janeiro, ou que trabalhavam aqui, nenhum fez observações no próprio município, não havendo, como já afirmei, relatos daquela época sobre as festas de jongo na Serrinha. Os registros que temos hoje são as entrevistas feitas com antigos jongueiros ou com os filhos destes para o Museu da Imagem e do Som, ou no acervo de pesquisadores da MPB, fruto de pesquisas próprias. Estas pesquisas ganharão um novo perfil a partir da década de 80. Sobre a Serrinha temos dois livros: Serra, Serrinha, Serrano - o Império do samba, de
Rachel e
Suetônio Valença e Silas de Oliveira – do jongo ao samba-enredo, de Marília Trindade Barboza e Arthur de Oliveira Filho. Quer seja a história do Império Serrano e seus fundadores e componentes, quer seja a biografia de Silas de Oliveira e sua rede musical, estes autores abriram espaço para a discussão do jongo na Serrinha e da importância do mesmo para a manutenção da solidariedade e união entre os moradores47.
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Com a criação e o crescente desenvolvimento e fortalecimento das ações do Centro Cultural Jongo da Serrinha e do Grupo Cultural Jongo da Serrinha, meios de comunicação (como rádios, jornais e sítios) assim como a própria escola de samba Império Serrano têm dado apoio 61
De produção mais recente, temos um artigo de Maria Laura Viveiros de Castro, O jongo e a macumba em Quissamã, no qual a autora discute a herança banto sobre esses ritmos no interior do estado do Rio de Janeiro; a tese de Alejandro Ulloa, em que o autor confunde samba, pagode, jongo e macumba, e por fim o livro de Edir Gandra, Jongo da Serrinha – do terreiro aos palcos, que é atualmente o único livro sobre as apresentações de um grupo de jongo na Serrinha, na área de etnomusicologia, além do próprio Cd – livro Jongo da Serrinha, produzido pelo Centro Cultural de mesmo nome, em 2002.
3.2 - Os significados do jongo São vários os significados do jongo. Forma de sociabilidade em evidência desde as décadas de 60/70, ele tem apaixonado muitos admiradores da cultura popular. Presente na origem da G.R.E.S. Império Serrano, como também nas atividades da Escola de Samba Mirim Império do Futuro, esses significados variam conforme a percepção e a inserção dos interessados, dentro do que se considera jongo no Rio de Janeiro. A base dessa definição será praticamente a mesma: dança de origem banto48, dançada executada na região sudeste (Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Espírito Santo), principalmente nas regiões cafeeira e açucareira. No Dicionário Cravo Albim de Música Popular Brasileira (como também nos textos de Maria de Lourdes Ribeiro e Alceu Maynard) o jongo se configura como “Dança afro-brasileira, originária de Angola, inicialmente de intenção religiosa fetichista. Hoje perdeu quase totalmente o caráter esotérico, transformando-se numa dança de simples a estas iniciativas e assumindo uma vinculação histórica entre o jongo feito na Serrinha e o samba do Império, além de relacionar importantes personagens para os dois grupos. 48 Segundo MUKUNA, Banto é o “conjunto das tribos que ocupavam o antigo Reino do congo no início das atividades escravocratas no século XVI. Isto é, as tribos que ocupavam o vale do rio Zaire e particularmente a zona que definimos como ‘zona de interação cultural’ estendida por ambos os lados da fronteira Zaire – Angola” (MUKUNA, s/d:11, apud GANDRA, 1995:41). Mukuna ainda afirma que é preciso tomar cuidado quanto a procedência do escravo, pois a mesma era incerta já que ele assumia o nome de região em que era vendido (Mukuna, s/d:45, apud GANDRA, 1995:41) 62
divertimento. Muitos autores a consideram uma variedade do samba, encontrada nos estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Espírito Santo. O jongo é uma dança do tipo geral batuque angolês, com coreografia de roda, seja de solista ou par ao centro ou em movimento circular, de homens e mulheres indistintamente (...) Não se admite no jongo a umbigada tradicional, considerada pelos jongueiros falta de respeito, substituída por uma elegante reverência à distância. O canto é repetido sobre um texto em verso tirado por um dançador e repetido, em forma de antífona. Esse texto, chamado ponto, é cantado várias vezes e pode conter um enigma. Em tal caso, é repetido até que alguém o "desamarre", isto é, decifre o significado oculto. A existência de textos de sentido simbólico, que dá às palavras uma semântica peculiar aos jongueiros, parece ter tido origem durante a escravidão, quando os negros necessitavam transmitir informações indecifráveis pelos senhores “. Dicionário Cravo Albim da MBP, verbete Jongo.
Para Candeia, fundador do G.R.E.S. Quilombo, e Isnard ”O jongo é considerado uma dança folclórica com fundamentos místicos, isto pela sua vinculação com o ritual da linha das almas, devia-se pedir licença para iniciar o jongo ou saudações aos tambores ‘Bendito louvado seja’. O jongo é o antecessor do partido alto” (CANDEIA & ISNARD:1978:6)
O jongo, dentro dessas perspectivas, não só seria parte da sociabilidade dos jongueiros, com os temas representando o cotidiano, como estaria na base do samba e do samba de partido alto. Como fazia parte do cotidiano, não havia indumentária própria para a dança, as roupas seriam as do dia-a-dia e seus pés poderiam estar descalços.
Eram necessários de dois a três tambores (tambu, caxambu,
candongueiro), feitos de “troncos de árvore escavados, cuja boca é coberta com couro de animais” (RIBEIRO, 1984), produzidos de forma artesanal. Para muitos o jongo era místico ou esotérico, característica reforçada por conta das diversas lendas existentes sobre o jongo e das características presentes em relação ao fetichismo banto: “Jongo não é macumba mas tem semelhança com a linha das almas e seu lado místico; como diz a lenda, jongueiros antigos, à meia-noite, ao som dos tambores, fincavam uma faca numa bananeira; essa, por sua vez, germinava e frutificava, dava um vinho que era servido a todos na roda” . (SANTOS LINO, 2002:9) “Segundo alguns remanescentes jongueiros em Oswaldo Cruz e bairros vizinhos, o jongo era formado por grupos de
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negros considerados feiticeiros de olhos hipnóticos sobre as demais pessoas. Cantavam puxando o ponto. Seu canto obedecia a uma narrativa de um fato qualquer, corriqueiro, ou ainda um desafio ou crítica em determinadas ocasiões, amedrontavam tanto que levavam as pessoas ao êxtase chegando ao desmaio”. (CANDEIA & ISNARD:1978:6)
Não apenas essas falas reforçavam a ligação jongo – religião afro-brasileira. Gandra (1995) afirma que, antes da profissionalização do jongo, com o grupo Bassam, o jongo da Serrinha incluía o oferecimento dos tambores à entidades, o oferecimento de comidas às próprias entidades, a exclusividade dos tambores que só poderiam ser tocados no jongo, a ocorrência de casos de magia durante a dança, o uso de rosários no pescoço, a fé que possuíam na eficácia o rito, o culto às almas e o aspecto ‘secreto’, particular dos rituais praticados. Em contrapartida, após sua profissionalização, deixou-se de oferecer os tambores e comidas às entidades, os tambores foram dissociados, agora se batia jongo, ou se utilizava o tambor nos cultos de Umbanda. A ocorrência de possessões durante a dança, o uso de guias no pescoço, demonstra tão somente a ligação do grupo Bassam com sua religião, a Umbanda. A fé que possuíam na eficácia do rito, o culto às almas e o aspecto ‘secreto’ dos rituais praticados permaneceram inalterados após a sua profissionalização, pois os integrantes continuavam acreditando no ritual da umbanda.
3.3 - O Jongo na Serrinha O morro da Serrinha se localiza no subúrbio de Madureira, mais especificamente entre Vaz Lobo e Madureira e tem seu início na avenida Edgar Romero. O morro teve sua ocupação onde era o fundo de uma chácara, ainda no século XIX. Não era um morro grande até as obras do projeto favela-bairro ampliarem seus domínios, em 1996. Dentre os morros existentes no bairro, é um dos mais antigos, constando suas primeiras ocupações do início do século XX. Os jongueiros começaram a chegar a Madureira por volta de 1920. Fluminenses e Mineiros que saíram do seu estado de origem após 1888, ou filhos de mineiros,
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alguns, antes de irem para a Serrinha, moraram algum tempo na Mangueira, mantendo posteriormente o contato com outras redes existentes além do seu espaço. A essa leva inicial pertenciam principalmente as famílias Santos, Oliveira, Monteiro e Cardoso. Festeiros, participavam ativamente do jongo na Serrinha, sendo alguns desses anfitriões também, fundadores do G.R.E.S. Império Serrano. Uma questão relevante é que quase todos os primeiros moradores da Serrinha vieram de Minas Gerais, Norte Fluminense ou Vale do Paraíba, conheciam o jongo, gostavam de cantar e participar da dança. Tinham posições políticas firmes, muitos com participações em lutas de suas afiliações trabalhistas. Muitos deles trabalhavam no Cais do Porto, na Central do Brasil ou exerciam cargos públicos49. Amigos e compadres, para eles o jongo, além da confraternização, também tinha um aspecto religioso. Como já foi afirmado, o jongo, apesar do seu elemento místico, não pode ser confundido com religião, mas, durante muito tempo na Serrinha, a umbanda e o catolicismo permearam essas relações. Vários jongueiros, não apenas na Serrinha como nas imediações50, eram pais ou mães de santo, jongueiros religiosos, que dedicavam seus jongos a um determinado santo, ou só davam jongos em dias de santos que fossem especiais para determinada família, sendo feriado ou não. Por exemplo, no dia de São José o jongo era oferecido pelo Nascimento da Eulália, no dia de São Lázaro, pela vovó Maria Joana e assim havia uma visitação mútua aos jongos existentes. E como o jongo era considerado uma coisa de irmãos, de amigos, nunca havia dois jongos no mesmo dia, reforçando os vínculos religiosos e os laços sociais. Outro aspecto é que o mesmo só era dançado após a meia-noite e terminava com o
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Saiu da Serrinha um dos primeiros presidentes do Sindicato dos Arrumadores do Rio de Janeiro, a antiga Resistência. Elói Antero Dias, esse presidente também conhecido como Mano Elói, também teve papel importante na formação do G.R.E.S. Império Serrano e na formação da sua bateria. Matrícula de filiação datada de 1910, ver registros do Sindicato dos Arrumadores do Rio de Janeiro. 50 O Jongo era praticado em Madureira, de uma forma mais geral, e na Serrinha em particular. Há relatos (VALENÇA, 1983) de jongos em outros bairros como Turiaçu, Morro do Salgueiro e Jacarepaguá e ainda a interação entre os vários jongos. 65
nascer do sol, costume quase que extinto após a profissionalização mais recente. Uma outra característica desse mesmo jongo é que havia uma idéia corrente de respeito aos mais velhos. Era interdito o acesso aos jovens e crianças dentro das rodas do jongo e eram poucos os jovens que podiam jongar. Alguns explicam esta interdição pelos aspectos religiosos do jongo. Havia, ainda, um grande respeito desses jovens pelos mais velhos e fica assim demonstrado pelas lembranças de Careca: “Os primeiros jongos que existiram na minha memória foram os da casa da Dona Líbia, que fazia uma grande festa na rua Itaúba, atual Mano Décio da Viola, uma festa fortíssima. Seu Nascimento da dona Eulália também era jongueiro. Foi na casa de dona Marta que vi Manoel Bam-Bam-Bam envolvido num fato curiosíssimo. De camisa de seda e calça branca, estava com Mano Eloi que tocava um tambor, seu Aniceto no outro e o jovem Cosmelindo fazendo um jongo. O também jovem Luis da Nega chegou com um bom pedaço de pau batendo um tambor e incomodando os companheiros. Mano Elói pediu para que ele parasse duas vezes com o batuque, sendo apenas atendido na segunda vez. Luis foi para um canto fumar e não percebeu quando Manoel Bam-Bam-Bam, dançando o jongo, deu uma pirueta tendo sua mão acertado o rosto do Luís. O cigarro caiu longe, Manoel continuou dançando e somente as três pessoas que estavam próximas perceberam. Menor não podia fumar, principalmente na frente dos mais velhos e Luis já havia desrespeitado os jongueiros duas vezes. A curiosidade está no fato de Manoel Bam-Bam-Bam ser avô de Luis da Nega”. (Depoimento de Careca para o Museu da Imagem e do Som).
Essas situações eram muito bem definidas para os moradores a sua relação com os mais velhos. Na Serrinha, até nas brigas entre os jovens e nas relações com o tráfico de drogas os mais velhos tem importante papel de mediação, por conta do respeito imposto pelas histórias dos mais velhos . Havia uma noção muito clara de respeito e este deveria ser seguido. Era interdito aos mais novos participarem de algumas festividades ou mesmo a sua presença em todo evento social. No jongo isso ficava mais nítido por conta do seu aspecto religioso. É uma afirmação corrente, que, além do respeito aos mais velhos, havia espaços em que os jovens pouco ou nada podiam opinar. Tanto no Império Serrano quanto no jongo, o acesso era restrito aos mais jovens. Muitos acabaram se desinteressando dos
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assuntos do bairro, da sua história familiar e talvez, mais especificamente, a cultura da Serrinha. São dois fatores distintos, que estão se cruzando todo tempo: o primeiro é o respeito aos mais velhos e como isto influencia a vida dos mais jovens da comunidade. O segundo é como, ao impedir o acesso dos mais jovens, pois a administração da escola de samba seria ‘assunto para os adultos’, como o jongo também tinha uma característica de interdição aos mais jovens. Não se tem detalhes da interdição, se era apenas religiosa ou com até que idade eles estavam impedidos de jongar, mas é provável que após o casamento, independente da idade, o casal já seria considerado adulto. O fato é que esses homens e mulheres acabaram por desinteressar alguns destes jovens do que acontecia ao redor: --do jongo à escola de samba, --mesmo que tenham convivido com eles durante toda sua vida. São esses jovens que, de certa maneira, quase 30 anos depois voltam a se preocupar com sua própria cultura. E em que momento o jongo na Serrinha começou a ser modificado? Para alguns moradores o quase desaparecimento do jongo se dá na medida em que as pessoas que tinham a memória do jongo foram morrendo e estes jovens se desinteressando. É nesse momento que o morro foi ficando mais “desconhecido”, tanto por conta do crescimento do subúrbio e da urbanização e suas conseqüentes modificações, quanto pelas posteriores migrações, principalmente a de nordestinos. Como alguns afirmam, as pessoas não eram mais tão amigas e solidárias quanto nas décadas anteriores. Como é uma dança que exige rapidez na versificação e na resolução dos desafios cantados, o jongo não deve ser praticado por apenas duas ou três pessoas. Se de um lado, o conhecimento dos tambores utilizados no jongo (tambu, caxambu e candongueiro) pôde ser transmitido51, o mesmo não ocorreu com a dança e os pontos, tendo sido retomada a transmissão após a profissionalização do jongo, empreendida pela família Monteiro, a partir da década de 60.
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É curioso observar que este conhecimento tenha sido conservado na Serrinha, já que em alguns lugares onde se dança jongo, acabou-se por perder um tambor. 67
A família Monteiro A família Monteiro era formada por Sr. Pedro e Sra. Maria Joana, mais conhecida como vovó Maria Joana e seus filhos, dentre os quais, Darcy e Eva. Chegaram por volta de 1929 / 1930. Nascida em 1902 em Valença, estado do Rio de Janeiro, Maria Joana Monteiro – a vovó Maria Joana - aprendeu a dançar o jongo na fazenda onde nasceu. Aos 12 anos de idade, já havia perdido seus pais e padrinhos e trabalhava como ama-seca em Cascadura, próximo a Madureira. Casou-se aos 14 anos com Pedro Francisco Monteiro (que era carregador do Lloyd Brasileiro), indo morar por 12 anos no Morro da Mangueira. Com ele teve 14 filhos; desses Darcy chegou a alcançar este século e Eva Emely viveu até meados dos anos 90. A primeira vez que Maria Joana dançou o jongo foi na casa de Antenor na Serrinha, e não parou mais. Desenvolveu sua mediunidade aos 27 anos num centro em Madureira, passando a ser, posteriormente, mãe de santo. Após a morte do primeiro marido não trabalhou mais fora de casa. Casou-se novamente, enviuvou sete anos depois e abriu a Tenda Espírita Cabana de Xangô, espaço que servia de casa e local para os rituais religiosos. Fez muitos filhos de santo e mantinha intensa atividade tanto na Escola de Samba Império Serrano, quanto no jongo, tendo ensinado a dança a mais de trezentas pessoas, pois achava que o jongo não deveria morrer. Ter criado seus filhos no jongo contribuiu muito para a manutenção do ritmo, já que o aprenderam ainda na infância e conservaram o costume na família depois de adultos. Eva manteve as mesmas atividades da mãe, tanto as religiosas quanto às carnavalescas, e foi presidente de uma ala no Império Serrano.
Trabalhava
intensamente no período que ia de novembro a março, por conta dos calendários religiosos e festivos. Darcy era compositor, jongueiro e percussionista. Músico profissional, percussionista desde os 16 anos de idade, foi um dos fundadores do Império Serrano e, mais tarde, ao lado de Candeia, Nei Lopes e Wilson Moreira, entre outros, fundou o Grêmio Recreativo e Artes Negras Quilombo. Foi como profissional
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da percussão que Darcy viu a possibilidade de se formar um grupo profissional de jongo. Em meados da década de 60, Silveira Sampaio - com quem trabalhava em shows - pediu que Darcy tocasse o jongo, ritmo que ele sabia que o percussionista conhecia e dominava. Nessa ocasião, Darcy cria o grupo Bassam, profissionalizando definitivamente o jongo, para poder levar a música e a dança a um público maior. Do grupo original faziam parte Darcy Monteiro, sua mãe vovó Maria Joana, sua esposa Eunice, seu filho Darcy Antonio, sua irmã Eva e sua sobrinha Dely. Algumas vezes, componentes da família Cardoso e outros moradores da Serrinha participavam do espetáculo. Com a profissionalização, o jongo toma nova forma. Negociado como show, o jongo perde a restrição de ser tocado da meia-noite ao amanhecer, o horário passa a depender da vontade do contratante e da disponibilidade do grupo. Em escolas, universidades e outros locais poderia ser apresentado pela manhã ou à tarde. Se o espetáculo fosse à noite, o grupo se apresentava por último, tentando entrar no palco perto da meia-noite, horário original do jongo na Serrinha. O repertório também sofre modificação. Este não era mais espontâneo, guardava uma certa restrição para a apresentação em shows e a adaptação ao horário limitado. Parte do grupo tocava os tambores e parte dançava. A partir da profissionalização, o Jongo passou a perder o contato com a Serrinha e com seu público original. O público que passou a apreciá-lo era composto de estudantes, professores e turistas, com exceções para algumas apresentações no Terreiro de Umbanda de sua mãe.
3.4 - Darcy do Jongo “Sou sensível aos valores da tradição, mas os arroubos experimentais me seduzem como as sereias aos antigos marinheiros”. Gilberto Freyre
Darcy passa a ser conhecido como Mestre Darcy do Jongo e para o público externo o grupo Bassam se apresenta como o Jongo da Serrinha. Havia também uma grande
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preocupação com o didatismo nas apresentações, implicando ensinar as origens do jongo no início de cada apresentação, traçar sua trajetória como ritmo negro e criar vínculos com a questão étnica, como uma resistência ou um exercício de memória da história dos negros no Brasil. Darcy posiciona o jongo como uma reação à invasão da música estrangeira.52 e ressaltava o caráter interativo dessa música, o que lembrava a tradição na Serrinha O grupo se apresentava com freqüência e mantinha sua formação original até 1986, quando morre Vovó Maria Joana. A partir daí, o que interessa nisso para nosso estudo é discernir entre: 1 – o que é conflito familiar e como isso influencia na transmissão do jongo; e 2 – qual é o conflito advindo da própria transmissão. Ao falar do rompimento com Darcy e o grupo Bassam, Careca afirma que: Os jongos tradicionais eram os de dona Eulália, no dia de são José; dona Líbia, no dia de são Pedro e dona Marta, no dia de são Lázaro. Algumas destas pessoas forma morrendo e o jongo foi com elas (incluindo Vovó Maria Joana que faleceu em 1986 e excetuando dona Eulália). O jongo renasceu com Vovó Maria Joana, Vovó Thereza e Darcy, que não era do jongo, era ligado ao samba e a orquestra brasileira de pandeiristas. Darcy lê música e é um grande pandeirista. Para não deixar o jongo morrer, chamou parte da família Cardoso dos Santos para gravar um disco de jongo, que não deu em nada, mas ficou no registro. Depois de anos a família saiu do grupo e fundou o Grêmio Recreativo Escola de Samba e Cultura Império do Futuro. Com a gente vieram a Aparecida e o Cizinho, que tocava tambor no grupo do Darcy. (Depoimento de Careca, Museu da Imagem e do Som)
Quando a família Cardoso dos Santos rompe com o grupo Bassam, o faz profissionalmente. Com a experiência adquirida no samba, eles fundam o Grêmio Recreativo e Cultural Escola de Samba Império do Futuro, em 1983, tendo Darcy participado de sua fundação. O objetivo era tirar as crianças da ociosidade num lugar que começava a ficar
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Comentava sempre sua indignação com alguns parentes e vizinhos, que no auge do movimento da soul music no Rio de Janeiro , escutavam James Brown, mas desconheciam o samba e o jongo do morro. 70
violento com o início das disputas armadas pelo tráfico de drogas. É Aparecida quem conta a história da Escola de Samba Mirim, após o rompimento: AP: Explique os projetos com as crianças ... A: O negócio era o seguinte, foi tudo ao mesmo tempo, eles (a família Cardoso dos Santos) fundaram a Associação de Moradores da Serrinha e ao mesmo tempo começaram a arrebanhar as crianças do local. Na época elas eram arredias, nada conseguia trazer as crianças, entendeu? AP: Por que? A: Porque eles tinham outros interesses, não sei, tinham outros interesses, aí o Valdemir junto com o Careca, olha a cabeça deles dois, eles bolaram o seguinte ‘A gente tem que fazer um tipo de apelo incisivo para estas crianças’. Que tipo de apelo foi esse? Através de comida. Então saiam por aí, pedindo nos comércios, nos mercados de Madureira da vida, e outras lojas, todo tipo de fruta... AP: As crianças eram muito carentes? A: Justamente. Cachorro-quente e um monte de coisas, e ainda me lembro bem que eles se reuniam ali, não ali aquele Pena Vermelha, na época era logo Pena Vermelha, agora é Minasgás. Era ali a reunião, aí começaram a rebanhar as crianças e eles daí começaram a rastrear as aptidões de cada um, entendeu, um grupinho dava para cantar, outro grupinho dizia samba no pé, outro grupinho era bom no tarol, e assim foi se formando a Escolinha, depois o quê que aconteceu, já tinha um certo contingente, aí começou assim a tomar corpo, tomar corpo, e aí tá essa coisa bonita que é hoje, mil e duzentas crianças, né, que passam na avenida Marquês de Sapucaí (...).
No final da década de 80, o grupo Bassam praticamente está desfeito. Eva falece em 1989. Mestre Darcy, que sempre investira nas aulas que dava sobre jongo, passa a priorizar suas oficinas, visando a um público universitário, bastante interessado na transmissão do jongo e na preservação da sua memória. Esse grupo contrastaria com alguns moradores da Serrinha e de outros morros, que, ao longo das décadas de 80 e 90 estavam muito mais interessados em outros ritmos e gêneros musicais do que exatamente no jongo. Assim, Mestre Darcy investe no público do circuito Lapa – Santa Teresa – Zona Sul, continuando suas oficinas de percussão em centros culturais e ONGs e, principalmente, criando discípulos entre esses estudantes, apresentando-se com um novo grupo e com a sua nova esposa, dona Sú. Nesse mesmo período, ex-alunos, alguns amigos e familiares de Darcy acabam por
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fundar o Centro Cultural Jongo da Serrinha53, também uma Organização Não Governamental atuando em Madureira, com sede na Serrinha, com o objetivo de trabalhar a cultura negra com as crianças do local. Dentro dessa ONG funcionam hoje dois projetos distintos: a escola de jongo da Serrinha e o Grupo Cultural Jongo da Serrinha, que se apresenta regularmente.
3.5 - Como este conflito foi estabelecido através das suas diferenças? Se a música no jongo tem o papel específico de animar a dança, o canto, “chamado ponto, tem papel importante no desafio versificado, isto é, desafio à capacidade do outro em decifrar a linguagem metafórica dos versos, linguagem essa própria dos jongueiros, cuja melodia e letra são improvisadas ou fazem parte da tradição oral” (GANDRA, 1995). Esse mesmo ponto, segundo alguns jongueiros da Serrinha pode se chamar toada. São vários os tipos de ponto. Os de visaria ou bizarria tem a função de contar os fatos cotidianos, as relações de amizade, além de ter um sentido recreativo ou religioso. É este ponto que é cantado para louvar entidades, pedir licença e encerrar o jongo, como uma despedida. Pode ser dividido em saudação, visaria ou bizarria (que alegra a dança) ou despedida. Os pontos de demanda, gromenta ou gurumenta são os de desafio. Dividem-se em demanda ou porfia, que são pontos de desafios aos jongueiros no decifrar das letras metafóricas, com respostas improvisadas na hora. Encante é para a magia e gurumenta ou gromenta são pontos para briga, no sentido caso de haver conflitos
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Segundo seu coordenador,“o Centro Cultural Jongo da Serrinha que abriga a Escola de Jongo, com aulas abertas diárias de jongo, samba afro-primitivo, capoeira angola e maculelê e estamos trabalhando para transformar a Serrinha num ponto de turismo étnico. Suas ladeiras e ruas contam a história da cultura popular carioca. A Escola de Jongo trabalha atualmente com 120 jovens da Serrinha e 250 de outras cinco comunidades do Rio de Janeiro. O grupo está em fase de captação de recursos para criação do Centro de Memória da Serrinha, um museu dinâmico no morro da Serrinha, que disponibilizará aos moradores e visitantes todo o acervo produzido sobre o JONGO, a Escola de Samba Império Serrano e cultura afro em geral”. IN: Agenda Samba-Choro, arquivo capturado no dia 23 de dezembro de 2001.
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entre os jongueiros. A gromenta era a hora do conflito no jongo. Sem violência física, o conflito era instaurado na versificação. Se houvesse alguma coisa a ser resolvida entre alguns dos jongueiros era resolvido ali, em meio ao jongo. A gromenta passa a se modificar a partir das décadas de 60 - 70. Como alguns afirmam, “o jongo estava morrendo, foi o Darcy que pegou o jongo e fez nascer ele de novo”. É foi a partir deste “nascer de novo” que os conflitos se reinstalam.
3.5- 1 - A instauração do conflito Num primeiro momento temos a família Monteiro (década de 60 até início de 90) que: 1 – Acreditava que o jongo precisava ser transmitido para não morrer; essa transmissão se dava em espetáculos públicos, em aulas ministradas por Darcy e em programas de televisão (principalmente na TVE – Tevê Educativa), para todos, indistintamente. 2 - O jongo atual guardava semelhança rítmica com aquele praticado no início do século XX por antigos jongueiros. 3 – Como a prática religiosa de cada membro do grupo não estava desvinculada das rodas de jongo, podendo levar a confusão jongo = macumba (sendo umbanda ou candomblé). Quando Darcy se afasta da Serrinha, a transmissão desloca-se cada vez mais para a Lapa, Santa Teresa (onde Darcy já dava suas aulas há muitos anos) e a Zona Sul. Seu público é sobretudo universitário, de classe média e branco, o que provoca críticas por estar “modificando” o jongo54. Introduz então instrumentos harmônicos e de sopro no jongo, criando ainda mais conflitos com os tradicionalistas. Na opinião de Darcy
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A crítica veio principalmente de outros fundadores da Escola de Samba Quilombo, que organizaram um núcleo de resistência cultural negra. 73
“É importante manter a tradição da dança da umbigada e do ritmo marcado pelos três tambores (candongueiro, caxambu e tambu) . Mas não vejo mal algum em incluir instrumentos harmônicos nas apresentações. A cultura não é estática — disse Darcy. — O público universitário só contribui (...) O folclore como peça de museu não está com nada. A cultura tem que se transformar para sobreviver, sem perder a identidade” Entrevista concedida por Darcy do Jongo, em dezembro de 2001, ao jornal O Globo.
Com a fundação da escola de samba Império do Futuro nos anos oitenta e, do projeto Recriar na década de noventa pela família Cardoso, criam-se aulas de jongo para as crianças da Serrinha, administradas em oficinas. É um jongo mais lúdico, adaptado para as crianças. Lembra muito pouco o antigo grupo Bassam, como afirma Aparecida: “Agora temos um projeto, mas antes era assim, feito com suor, no tapa. Por exemplo, a gente tinha que bater de porta em porta, ‘Por favor, ajuda, é uma entidade sem fins lucrativos...’, agora o Império do Futuro, mais precisamente dois anos e meio atrás é que o Império do Futuro começou a gerar filhos. O Projeto Recriar, é um filhote do Império do Futuro... AP: Conta um pouco do Projeto Recriar ... A: O Projeto Recriar é, tem como objetivo ocupar o máximo as crianças, como é objetivo também do Grêmio Recreativo Cultural Escola de Samba Mirim Império do Futuro, ocupar ao máximo a cabecinha, as mãos, à mente das crianças, para que elas não sejam adotadas para fins escusos, então o Projeto Recriar do Império do Futuro ele tem técnica de arame (...) a oficina de artesanato, que a professora é a Dona Marlene. Outro filhote do Império do Futuro é o Projeto Tocando a Vida, que revelou a genialidade de uma criança, que é sobrinho-neto do grande poeta do samba-enredo Silas de Oliveira, o Fofão (...) AP: Agora, como é que o jongo se insere nisso tudo? A: Porque um dos objetivos do Grêmio Recreativo Cultural Escola de Samba Mirim Império do Futuro, é preservar, perpetuar a cultura local, as manifestações vamos dizer assim culturais da localidade, que são samba e o jongo. O jongo já ensinado pelos nossos ancestrais, Vovó Maria Joana, já falecida, o Sr. Antero, Vó Olívia, Sr. Antenor, jongueiros antigos, aí que acontece? Tia Ira, dança divinamente o jongo, Tia Ira já passou para quem? Valdemir, que é um exímio percussionista, não só do jongo mas de outros ritmos, já Valdemir já tem a felicidade de ver, a glória de ver o garotinho dele tocando divinamente, o tambor de jongo e não é para qualquer um, é difícil e assim um vai passando para outro, estão aí nossas crianças que dançam um jongo maravilhoso, não é aquela coisa tradicional, que é jongo dos antigos, que você sabe que aquilo tudo é preceito, tinha que fazer firmeza, aquela coisa toda ... As crianças já apresentam um jongo 74
folclórico, mais folclórico, mais descansadinho, a gente tem recurso do tapeado, ... esquerda, calcanhar e ponticumpati‘, a gente costuma ensaiar assim, que é nada mais nada menos do que isso aqui (mostra fazendo batuque de jongo), isso é uma descansadinha, porque o jongo dos velhos, Nossa Senhora, deixa a gente sem fôlego!”
É uma família que têm claro que o bairro é muito visado para ações governamentais (sejam projetos da prefeitura ou do governo do Estado), não confiam facilmente em pesquisadores e agentes comunitários, já que, para eles, todos querem usar a população como objeto, mas não teriam vínculos de fato com a comunidade. A esses que são estranhos, que vêm de fora e trazem algum projeto para a comunidade, eles chamam de “colonizador”55. Em 1999, o projeto Recriar perdeu financiamento do BID e acabou aos poucos por falta de recursos, mantendo ainda as atividades da escola de samba mirim. Hoje se apresentam apenas para os amigos e com um grupo formado pela família. É possível notaras diferenças de discursos entre os dois grupos, o formado por Darcy após a sua saída do grupo Bassam e a do Projeto ReCriar: Para Darcy, o jongo precisava ser transformado para não morrer, criando, um interesse contínuo em seus alunos, trabalhando inclusive, com fusões harmônicas, que dessem conta destas transformações. Praticante de Umbanda, benzia o tambor não só pelo ritual, mas por que de fato acreditava. Para o projeto ReCriar, o jongo precisava ser ensinado às crianças, pois seriam elas que preservariam o jongo no futuro. Era importante dar a estas crianças, aulas de história sobre a presença dos negros no Brasil, para que elas soubessem quem foram seus antepassados e de que processo elas faziam parte. Também seria importante estimular o orgulho étnico destas crianças via história oral, reforçando a sensação de pertencimento ao grupo e ao lugar, via samba e jongo, como se pertencessem à mesma história e fizessem parte a mesma família.
Jongavam apenas com os
instrumentos de percussão. Por conta da religião dominante na família dos 55
Referência à escravidão. Colocam que não têm obrigação em ajudar quem quer explorá-los. Seja com material, entrevistas, fotos, apresentações, etc. 75
coordenadores do projeto, a Umbanda, os mesmos demonstravam ter não só uma posição muito afirmativa em relação à sua negritude, como um grande respeito e responsabilidade para com seus ancestrais. Com o Centro Cultural Jongo da Serrinha e os descendentes de Mestre Darcy estas diferenças são um pouco mais delicadas. O CCJS foi fundado por Marcos André, branco56, em parceria com antigos integrantes do grupo Bassam, incluindo o filho e a sobrinha de Darcy, sendo ele que administra a agenda de shows e oficinas, além das aulas no Centro Cultural. Para alguns o coordenador não teria a tradição necessária57, conhecimento suficiente para transmitir o jongo e a cultura negra, principalmente por não ser negro, uma postura racial exclusivista e de identidade étnica com fronteiras claras e intransponíveis, o que não corresponde à presença ativa da mistura racial e do hibridismo cultural existentes no Brasil. Nota-se ainda nesse discurso, uma certa desconfiança ao novo, e às novas dinâmicas culturais dentro do morro. Os dois grupos apresentam, de certa forma, o mesmo grau de consideração pela comunidade externa, pois ambos tem seus trabalhos reconhecidos, os Cardoso por serem fundadores da Escola de Samba Mirim e, os Fundadores do Centro Cultural Jongo da Serrinha por sua ativa participação na Rede de resgate ao Jongo, no tombamento do jongo como patrimônio imaterial pelo IPHAN e a sua profunda inserção na comunidade, apesar do pouco tempo de existência que o mesmo tem. Neste sentido, a aceitação de Darcy (antes de sua morte) e sua família no que diz respeito à presença e a excelente atuação de Marcos André no Centro Cultural, acaba por legitimar o seu trabalho frente à comunidade da Serrinha e os jongueiros. 56
Detalhe que faz toda diferença para alguns. A acusação: ‘não tem tradição’, se remete, neste caso, a não ter nascido na Serrinha, ou em Madureira, ter conhecido o jongo fora do morro e coordenar um Centro Cultural de Jongo, sem ser negro, o que muitos consideram uma invasão. Quanto ao termo tradição, designa “ao mesmo tempo, um legado cultural ou, se preferirmos, um objeto, o produto da atividade humana, e a sua reprodução ou transmissão no tempo: o processo subjetivo através do qual esse produto é socialmente elaborado” Granja Coutinho (2001). Neste caso, Marcos André recebe esta tradição, ao ser legitimado por Darcy e sua família, da mesma forma que a família Cardoso, não sendo jongueira em sua origem e não sendo parente consangüíneo da família Monteiro, herdaram parte desta tradição. 57
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A posição do CCJS fica clara na fala de Marcos André: Ele [Darcy] era o jongo. Ele vinha de uma dinastia de jongueiros. Ele se sentia no direito de fazer o que ele quisesse. Hoje, respeitamos várias coisas que ele criou: continuamos com o cavaquinho e o violão, as crianças, coreografias e os pout-pourris. Outras nós retiramos, pois acreditamos que foi um processo de desespero por não ter conseguido uma política pública de apoio e um reconhecimento da cidade. Ele queria agradar muito à mídia, à platéia e começou a introduzir elementos que nós aqui da Serrinha não concordávamos, como fazer uso de teclado e guitarra. Achávamos que feria a sonoridade e até fechava as portas para o público que estava interessado justamente na tradição como fonte de pesquisa. Então preferimos manter a música dentro da tradição, mesmo porque temos tido sucesso com isso. Temos sido convidados para muitas apresentações e ele, no fim da vida, começava a sofrer uma falta de convites e teve a sua carreira desregrada por causa desse caminho. Inclusive ele nem trabalhava mais com a gente. Ele trabalhava com jovens universitários. Criava grupos de jongo e, em seis meses aqueles alunos universitários já faziam apresentações de jongo. Era muito interessante pois ele estava abrindo novas fronteiras, mas ficava esquisito porque o jongo é muito complexo. Não é uma coisa que se aprende de uma hora para outra e isso era um ponto que havia discordância dele com o grupo da Serrinha, pois ele estava querendo colocar esses estudantes, que não se encontravam prontos para uma apresentação, dentro do 58 grupo."
d José Jorge de Carvalho (2000), ao fazer um panorama dos primórdios do samba, estará pensando basicamente em três filiações rítmicas de origem negra, até chegar ao samba: são os vissungos, congos ou congados e os jongos. O primeiro seria o mais antigo gênero de música brasileira que trabalha com o registro histórico. Ele é o canto de trabalho dos escravos e nele cristaliza-se não apenas a experiência da escravidão na região de mineração em Minas Gerais, como se sintetiza toda uma resistência à escravidão. Cantado à capela e com tambor, os vissungos se assemelham as ladainhas (que existiram em Madureira até o final da década de 60) e a algumas particularidades da umbanda, já que, no seu canto, uma parte se faz em português e a outra em banto, buscando assim o resguardo de uma parte da 58
Entrevista concedida à Simone Saviolo, José Henrique de Oliveira e Manoel Batista. Batuque na cozinha do Municipal. 77
transmissão59. Os congos ou congados foram o modo como os escravos reconstituíram a cultura afro-brasileira dentro da hegemonia do catolicismo. Estas áreas de negociação na cultura e religião de Madureira são muito especiais na medida que permitem o crescimento do bairro a partir dos fortalecimentos dos laços de amizade e parentesco. A afirmação de José Jorge de Carvalho de que “ser católico dentro das tradições negras é possível” fica mais visível ainda quando o assunto é o jongo, o ritmo que fica no limite entre o sagrado e o profano. Se para José Jorge de Carvalho estes ritmos são negros na sua origem e manutenção, para Myrian Sepúlveda, em seu texto O batuque negro das Escolas de Samba, vai defender que especificamente os moradores da Serrinha não têm percepção de cor nos seus discursos pois, quando se fala de suas origens, eles remetem-se somente à fundação da escola de samba Império Serrano. Em relação ao Jongo na Serrinha, isso não se justifica porque: 1 – a ligação de todos os grupos remete a um passado único: os antepassados negros e a escravidão no Brasil; 2 – os componentes de ambos os grupos são reconhecidos como profissionais do jongo e por conta de seu trabalho pesquisam sobre a vida dos negros no Brasil, a história e produção musical de bantos e nagôs (cuja diferença de batida – percussão – é fundamental para a compreensão das diferenças rítmicas, dentro do jongo e fora dele); 3 – todos, ao apresentar o jongo, se remetem à ancestralidade africana ou afrobrasileira, criando assim, alguns conflitos entre os grupos que hoje trabalham com o jongo, oriundos da Serrinha. Como todo conflito, guarda duas dimensões, uma positiva e uma negativa: se por um lado há, um cuidado maior no discurso dos grupos e nos objetivos a serem 59
Fenômeno semelhante aconteceu nos Estados Unidos, nos primórdios do Jazz em Nova Orleans, que será uma mescla de música erudita de base européia, urbana com as works songs, canções de trabalho dos antigos escravos no meio rural (ver mais em Muggiati, 1983). 78
trabalhados por conta da ‘não’ hegemonia dentro do espaço, que significa na prática, na pesquisa constante, na manutenção de acervo e na ampliação dos projetos sociais mantidos para as crianças60, além de um maior conhecimento do jongo na Serrinha, não apenas como ritmo e dança de origem africana, mas uma produção específica do espaço social carioca que foi de Madureira para o resto da cidade e que permitiu que grupos tão distintos florescessem no mesmo local. A dimensão negativa é o afrouxamento das redes sociais, que se formaram primeiro – as famílias extensas, por conta da tensão política existente no processo de tradição. O pensarmos o conflito na Serrinha em termos de diferenças nos discursos sobre etnicidade o mesmo permanece, mas poderá vir a se diluir na medida em que há, tanto no samba, transformado em elemento da Identidade Nacional, quanto no jongo, muito mais vinculado nos seus primórdios, às religiões afro-brasileiras, algo semelhante ao que aconteceu com a capoeira. Sônia Travassos afirma em relação à capoeira que, “negros de todas as cores, dependendo do contexto, podem se dizer atavicamente ligados a uma ancestralidade negra africana. Assim, indivíduos comumente considerados brancos podem, em nome de uma nacionalidade brasileira comum, por exemplo, construir uma forte identificação étnica negra” (TRAVASSOS, 1999:74), que é de fato o que tem acontecido, não apenas com o jongo, mais conhecido através do trabalho do CCJS e da Rede de Memória Jongo – Caxambu, mas sobretudo com o samba carioca. Essa possibilidade existe por causa do hibridismo cultural e da mistura racial, marcas das relações raciais no Brasil61 ou pelo conceito de identidade sugerido por F. Barth, que não é “atemporal e imutável em seus traços culturais (crenças, valores, símbolos, ritos, regras de conduta, etc) transmitidos pelo grupo. Ela resulta da ação e
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Há, tanto no projeto ReCriar (extinto em 1999), como no Centro Cultural Jongo da Serrinha, uma preocupação de manter atividades que dêem conta da dissolução da rede social por conta do tráfico violento de drogas, como veremos no capítulo V. 61 Ver mais Carlos Sandroni (2001) e Alba Zaluar (1998) 79
reação entre esses grupos e os outros, num tipo de jogo que não pára de se alterar” (SCHWARCZ, 1999:295)
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, principalmente por conta não só das formações e
reorganizações que acontecem dentro das redes sociais, como também pela paixão e respeito que os integrantes das diversas redes têm pelo jongo e a qualidade e viabilidade do trabalho desenvolvido com crianças e adolescentes assistidos pelos diversos projetos.
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Segundo SCHWARCZ (1999) sobre a faceta política da identidade “F. Barth adicionou às explicações biológicas e culturais um elemento mais propriamente social: a identidade era entendida, a partir da noção de ‘grupos de relação’, como uma forma de organização social, em populações cujos membros se identificam e são identificados como tal. Partindo de relações correntes na literatura antropológica, o autor notou que se designava o termo ‘grupo étnico’ para uma população que : ‘1 – se perpetua biologicamente em grande escala; 2 – tem em comum valores culturais e uma unidade cultural manifesta; 3 – constituem um espaço de comunicação e interação; 4 – cujos membros se identificam ou são identificados pelos outros constituindo uma categoria que pode se distinguir das outras da mesma ordem’. Com efeito, tendo por base uma definição ideal / típica, Barth questionava a primazia dada a cultura, insistia na relevância da identificação do próprio grupo e na seleção de traços culturais” (p.294 e 295). 80
CAPÍTULO IV Império Serrano, Império do Samba “O samba é a nossa verdade, nossa particularidade, nossa medalha de ouro, nosso baluarte, nosso estandarte brasileiro”. (Seu Jorge) “Hoje tudo é samba/ O momento é carnaval / Sonho que nesse ano se refaz / Na passarela geral / Chegou a hora de se dar a Madureira / Uma justa homenagem / Onde o progresso se firmou / Criando uma grande cidade / Que de repente se tornou / A capital do subúrbio da central / Fala Madureira / Quero ouvir a sua voz no samba / Através de seus sambistas tradicionais / Velhos campeões de muitos carnavais / Esta homenagem é de Vaz Lobo / Que também é bamba / À merecida Madureira / Eterna Capital do Samba (Madureira, Eterna Capital do Samba, samba-enredo da Escola de Samba União de Vaz Lobo, 1972)
As epígrafes escolhidas estão centradas na idéia que o samba, mais que identidade nacional brasileira, se apresenta como profissão de fé, escolha racional e por vezes passional, modo de viver, arte e vida. A frase do compositor e intérprete Seu Jorge, presente na abertura de seu sítio na internet63 representa a escolha musical de muitos compositores e intérpretes, brasileiros e estrangeiros, apaixonados por um ritmo que representa perfeitamente o Brasil e com muita propriedade o Rio de Janeiro. A do samba ‘Madureira, eterna capital do samba’, representa as premissas desse trabalho, que tem considerado a musicalidade do bairro de Madureira como fundamental para a manutenção da rede social.
Eterna capital do samba, em
Madureira esse movimento é bem visível. A existência de três escolas de samba do Grupo especial, (Portela, Império Serrano e Tradição), uma do Grupo E (União de Vaz Lobo), uma escola de samba mirim (Império do Futuro) além da existência do carnaval de rua demonstra com facilidade a existência e importância dessas redes existentes. O G.R.E.S Portela, fundada em 1931 em Oswaldo Cruz, teve desde sua formação alguns dos mais importantes poetas do samba. Pela escola já passaram Paulo da Portela, Candeia, Paulinho da Viola, João Nogueira e temos, desde a década de 70, a
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http://www.uol.com.br/seujorge 81
primeira Velha Guarda organizada com este nome a reunir a nata de cantores e compositores da escola. A Velha Guarda da Portela é hoje uma referência para o samba carioca e brasileiro, ainda que não tenha influência política direta sobre a própria Escola. O G.R.E.S. Tradição, localizada em Campinho, é uma dissidência da Portela, fundada pelos filhos do presidente Natalino do Nascimento, Natal da Portela, em 1984, após desentendimentos internos da diretoria da escola, da qual Nésio Nascimento fazia parte e Carlinhos Maracanã, então presidente portelense, que permanece no cargo até hoje. O G.R.E.S. União de Vaz Lobo, fundada em 1930 legou à região compositores, passistas e admiradores do samba em geral, tendo seus enredos homenageado diversas vezes Madureira, a Portela e o Império Serrano. E é sobre o Império Serrano que esse capítulo trata mais especificamente. Fundado em 1947, com suas cores verde e branco, tem como berço o morro da Serrinha (entre Madureira e Vaz Lobo) e resultou da união das antigas Unidos da Tamarineira, Prazer da Serrinha e Unidos da Congonha. Discutiremos aqui as tensões existentes dentro do Grêmio Recreativo Escola de Samba Império Serrano, uma das mais antigas e tradicionais do Rio de Janeiro, principalmente, as relacionada às várias administrações da Escola de Samba, objeto de muitas críticas, inclusive dos próprios componentes da escola.
Para tanto,
percorreremos a ligação entre o samba e o samba presente nas escolas de samba, a tensão entre ‘tradição’ e ‘modernidade’ no carnaval carioca, definido o papel do jogo de bicho, da Liga Independente das Escolas de Samba e as adequações que os desfiles das escolas sofreram após a construção da Passarela do Samba Darcy Ribeiro – o Sambódromo. Nesse caminho, o Império Serrano precisa resolver suas próprias demandas e conciliar os conflitos internos para continuar fazendo parte do grupo especial e não perder sua história, enquanto escola de samba.
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4.1 - O Samba e o samba das escolas de samba ”Samba, gênero matriz da música popular brasileira e sua corrente principal” (LOPES, 2003:11).
Quando pensamos no samba, fazemos pelo menos duas associações. A primeira caracteriza o samba como gênero musical, matriz da nossa música popular brasileira, tendo variações ao longo do tempo, como o samba de breque, o samba-canção, samba-choro, samba-enredo, sambandido, etc (LOPES, 2003)64. Assim, ele se traduz desde as famosas rodas de samba65 até a presença marcante dos ‘generais’, como bem (auto) definiu Zeca Pagodinho, o intérprete que tem uma carreira sólida, faz shows freqüentes no Brasil e no exterior e que trás consigo não só um público fiel, mas músicos que o acompanham há anos, compositores que dependem do seu trabalho para o próprio sustento e de uma grande infra-estrutura. Referia-se também a si mesmo, conhecido no mundo do samba por gravar os sambistas ditos esquecidos, os que não têm nome na praça, os que estão começando, os que buscam uma oportunidade de iniciar a carreira de profissional. A segunda se refere à presença das escolas de samba. Criadas principalmente em comunidades e bairros pobres, por uma população majoritariamente negra, as escolas de samba passaram em sua história por diversas transformações musicais, políticas e estéticas, que se tornaram mais visíveis a partir entre as décadas de 60 e 80, sendo que essas transformações marcaram a própria forma de construção dessa festa popular. A primeira escola, surgida no bairro Estácio de Sá, entre as décadas de 20 e
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Para mais formas de samba e seus significados, ver em Lopes, 2003:16-22. Segundo Roberto Moura “embora seja um ritual, com suas práticas consagradas pelo uso, cada roda de samba é única e impossível de repetir. Semanalmente, dezenas delas ocorrem no Rio de Janeiro e outras cidades brasileiras, obedecendo a uma estrutura padrão, com regras e modelos sempre muito claros para seus participantes (...) é a roda que gera o samba, não o samba que gera a roda; da Tia Ciata ao Cacique de Ramos, a roda é a ambiência sonora que permite o aparecimento e, posteriormente, o desenvolvimento do samba. Relendo a nossa bibliografia musical, percebe-se com clareza esse dado histórico omitido, de tão óbvio: a roda precede o samba e é a sua matriz física. Ao formar a roda, no fundo do quintal, ainda sem saber que tipo de música sairia dali, o negro brasileiro estava no espaço da sua intimidade. Ao criar a escola de samba, transpôs para lá o mesmo convívio caseiro. Sentia-se em casa. Até que a escola cresceu demais. Virou rua - e o sambista voltou para a roda - isto é, voltou para casa”. 65
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30, tem como forma musical própria e específica, o samba -enredo. Foi no Estácio, onde vivia e criava Ismael Silva, que o ritmo característico do samba carioca foi criado (Sandroni, 2001). No início, não havia tanta divisão já que a escola era dos sambistas. Hoje ainda há grupos, é claro, que transitam por esses dois universos do samba, mantendo uma produção musical consistente e constante, que tanto podem concorrer com um samba-enredo numa escola de samba, como interpretam, em shows e cds suas composições ou as cedem para que um outro intérprete, de grande visibilidade ou não, a grave. E sim, podemos considerar, gostando ou não, que o grande palco das escolas de samba hoje, a oportunidade de se apresentar em um grande espetáculo, no caso das escolas do grupo especial, é o carnaval, apesar de opiniões contrárias, como a de Nei Lopes, considerando que as escolas de samba tem dado “grandes 66
sinais de esgotamento” (LOPES, 2003:12) .
1.1 – O Carnaval Carioca Mundialmente conhecido e objeto de diversas pesquisas, músicas e filmes, o carnaval carioca já assumiu diversas formas até os dias atuais (VALENÇA, 1996 e 2003; CUNHA, 2001), modificando-se, sobretudo, no que se refere à interação entre os diversos atores e aos papéis assumidos pelas camadas populares no seu processo. Nos últimos vinte anos, adquiriu também grande importância turística e econômica. Os estudos acadêmicos deste fenômeno popular, cultural, turístico e empresarial concentraram-se na festa, no rito e nas formas de sociabilidade, apesar de também existirem pesquisas importantíssimas sobre as transformações rítmicas e melódicas 66
Perguntado recentemente por Cléber Eduardo (Revista Época) sobre seu livro ‘Tem mais samba, das raízes à eletrônica’, Tárik de Souza não apenas concorda com o jornalista, de que o samba sobrevive aos hibridismos e dos hibridismos, como afirma que “o samba sempre se adaptou e se transformou. Entre os anos 30 e os 50, foi hegemônico e mandou mesmo. Todos os grandes cantores gravaram samba, Carmen Miranda, Francisco Alves, Sílvio Caldas, Orlando Silva. Na década de 50, começou a influência americana, até chegar à bossa nova. O momento mais crítico foi com o pagode de butique, porque os pagodeiros são gente do povo, mas misturam samba com rock de segunda categoria. E eles vieram depois de um ótimo momento do pagode autêntico nos anos 80, com as boas vendas de Zeca Pagodinho”.
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dos grupos sociais defensores, apaixonados e construtores do samba (SANDRONI, 2001), além dos envolvidos no próprio fazer de uma escola de samba. Não é raro percebermos que as escolas de samba estão passando por modificações intensas e as mesmas não são de hoje. Tanto o livro ‘Ecos da Folia’, de Maria Clementina Cunha, quanto o livro ‘Carnaval – Para tudo se acabar na quartafeira’, de Rachel Valença, acompanham a história do carnaval carioca até a afirmação, no século XX, das escolas de samba no Rio de Janeiro como peça fundamental da nossa cultura nacional. Em ‘Ecos da Folia’, a autora afirma que a questão da tradição, a busca do purismo e a ameaça de que "o carnaval estaria acabando", paira desde o século XIX com o declínio do entrudo e das grandes sociedades dando espaço ao surgimento dos ranchos e blocos e de uma maior participação popular no carnaval. Assim como Rachel Valença (1996, 2003) analisa as transformações pelas quais o carnaval carioca passou, mostrando não apenas o movimento ‘aumento-retração’ da participação do povo ao longo de sua história, como a tensão entre o que se chama de ‘tradição’ e ‘modernidade’ não é uma discussão atual. Se observarmos que as transformações são constantes na história do carnaval, a relação/tensão entre ‘tradição’ e ‘modernidade’ são mais visíveis quando tratamos das escolas de samba e seus desfiles no carnaval67. Para Miriam Santos, “A imprensa tem mostrado reiteradamente o conflito existente entre ‘tradição’ e ‘modernidade’ nas escolas de samba, conflito que também está presente nos debates, bastante passionais, entre participantes das escolas. De modo geral, associa-se a tradição à manutenção de padrões do passado, ao samba de raiz, à fidelidade à escola e aos membros da Velha Guarda. Em contraposição, os modernos argumentam que as escolas devem adaptar-se aos novos tempos, atualizando ritmos, temas e rituais, importando técnicas e contratando profissionais capazes de tornar a linguagem das escolas aberta às novas tendências e aos novos mercados. Esse debate entre tradição e modernidade 67
Para uma discussão mais aprofundada sobre as escolas de samba e suas inovações ao longo de sua história, ver Cavalcanti (1995), Zaluar (1997), Santos (1998), Lopes (2003), Gonçalves (2003). 85
tem múltiplos significados, e, para muitos dos que participavam dos desfiles das escolas, a oposição valorativa entre esses dois termos simplesmente não existe. As escolas estão hoje mais bonitas e mais ricas, e o passado é passado. Se há alguma nostalgia de outros carnavais, há também muita admiração pelos atuais” (SANTOS, 1998: 118).
Como já observamos no segundo capítulo, se anteriormente o enredo era escolhido por membros da comissão de carnaval, formada pelos associados da escola e seu desfile, em todas as etapas, era cuidado por seus membros, a não profissionalização dessa fase anterior se encerra gradualmente em três momentos: primeiro com a entrada dos investimentos dos banqueiros do jogo do bicho, depois com a criação da Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro (Liesa), que passou a cuidar dos desfiles, vendas de ingresso, repasse de verba do grupo especial, ao desligarem-se da Associação das Escolas de Samba da Cidade do Rio de Janeiro, sendo que essa passou a cuidar particularmente dos grupos A, B, C, D e E68. A construção da Passarela do Samba Darcy Ribeiro – o Sambódromo, em 1984, vem a coroar esse processo69. Nesse sentido a própria discussão sobre a ‘tradição’ e a ‘modernidade’ não se restringe aos componentes das escolas de samba, mas perpassa os estudos dos especialistas em samba e carnaval. Para alguns, a presença do jogo do bicho aliada à fundação da Liesa, seguida pela construção do Sambódromo, visto juntos ou separados, pode se tornar um fator positivo para o carnaval, visto que ele só teria sobrevivido, por que se tornou espetáculo. Contrariamente, para autores como o compositor, intérprete e teórico da MPB, Nei Lopes, isso seria extremamente negativo. Ao falar da trajetória das escolas
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Ver mais em Lopes, 2003:75. "No início do século XX, o impacto da reforma urbana do prefeito Pereira Passos implode a festa no Centro: empurradas para a periferia, as comunidades perdem sua referência de folia e as grandes sociedades entram em decadência. Um decreto do prefeito Pedro Ernesto, em 1932, inaugura o desfile das escolas - em mais uma tentativa de ganhar o respeito e vencer o preconceito. O desfile passaria pela Praça 11, pela Candelária e pela avenida Rio Branco antes de passar pela avenida Marquês de Sapucaí, onde foi erguido, em 1984, o Sambódromo, que decretou o fim da indústria do monta-desmonta de arquibancadas mas confinou o espetáculo a um espaço que não tem para onde crescer". (Renato Fagundes, Jornal O Globo on line, Especial Carnaval, de 3 de dezembro de 2001). 69
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de samba ele pondera que “essas transformações constantes pelas quais as escolas de samba têm passado desde os anos 70 contribuem, primeiro, para torná-las mais visíveis e aceitas, depois ‘admiradas e paternalizadas’ e, finalmente, cortejadas pela sociedade, afetando de certa forma as suas redes sociais” (LOPES, 1981). Ainda para Lopes, do ponto de vista artístico, a produção das escolas passou de manifestação folclórica, de arte popular, a arte para consumo de massas. E, assim, seus criadores e produtores originais perderam o controle, o poder sobre os meios de produção do samba” (LOPES, 2003:64).
1.1.a – A relação do Jogo do bicho com o carnaval carioca: A adoção das escolas de samba pelos banqueiros do jogo de bicho é o primeiro marco para uma transformação que culminará com a maior reformulação já vista no carnaval carioca. Não há, dentre os registros, uma data precisa para a associação dos banqueiros do jogo do bicho. Maria Laura Cavalcanti aponta para a importante observação de Maria Isaura Pereira de Queiroz para o fato da associação dos bicheiros com a escola de samba constituir-se num fenômeno específico da cidade do Rio de Janeiro.
Segundo
Cavalcanti “A observação é importante e permite perceber que o jogo do bicho sobrepõe-se às escolas de samba: a relação entre eles é histórica mas não necessária. Um pode existir sem o outro. No resto do Brasil, e mesmo no Rio de Janeiro, há escolas que sobrevivem sem o jogo do bicho. Entretanto, é preciso lembrar que as grandes escolas de samba do Rio de Janeiro constituíram-se em modelo para aquelas dos demais estados do país, e influenciaram decisivamente toda a organização do carnaval da cidade” (1995:39)
Machado e Chinelli (1993) afirmam que não há exatamente um registro de quando, como indivíduos, os bicheiros passaram a ingressar no mundo do samba, porém os autores acreditam “que foi na década de 60 que a ‘patronagem’, que progressivamente marcou a relação dos banqueiros com as escolas de samba, vem a se transformar no modo de articulação entre as duas organizações, deixando de ser uma 87
atividade ‘privada’ de homens que enriquecem cada vez mais com seu ‘trabalho’ e se interessam por atividades dele distintas. Atualmente esse mesmo modelo de relacionamento apresentase de forma muito mais racionalizada, caracterizada por uma certa ‘despersonalização’. A figura do ‘patrono’ ainda é central e dominante, tanto no que diz respeito às escolas quanto, mais genericamente, ao território de atuação do banqueiro. Porém, particularmente no que diz respeito às escolas de samba, a patronagem passa a ser exercida cada vez mais através de uma vasta gama de atividades assistenciais institucionalmente organizadas que só mantém um vínculo indireto com os patronos” (1993:43)
Para Alba Zaluar “Como os desfiles precisavam de patrocinadores e como, em conseqüência da profissionalização de outros componentes da escola, esta tendesse a se tornar empresa geradora de dinheiro, embora legalmente registrada como grêmio recreativo de associação com os bicheiros da cidade. Estava aberta a porta para tornar as escolas de samba instrumentos de prestígio social e de investimento político dos bicheiros e outros personagens do mundo do crime no Rio de Janeiro. A vinculação dos bicheiros com o tráfico de drogas já constou do processo criminal contra eles ao fim do qual foram condenados e presos no início dos anos 90. Mas as evidências disso são contestadas até hoje. Ainda mais veementemente rejeitada é a participação de traficantes na direção das escolas, embora haja inequívocos indícios de que ensaios e desfiles são ocasiões hoje propícias para a venda das drogas legais e ilegais a freqüentadores de todas as classes” (ZALUAR, 1998: 289-290).
Com a entrada do jogo do bicho nas escolas de samba, as mesmas tornam-se capazes de investir tanto em uma transformação visual (estética) - como alegorias e adereços -, quanto no espetáculo. Com poucas exceções, os banqueiros entendiam de negócios, não de carnaval. Óbvio então, que o carnaval se tornasse um espetáculo, uma festa com lucros para todos os envolvidos, desde o carnavalesco, inovação que veio substituir a organização comunitária no fazer carnaval, até os intérpretes nos desfiles. Eles confiaram o crescimento das escolas nas mãos dos que entendiam do assunto, profissionalizando o que era antes trabalho voluntário e comunitário. Com exceção de Natal da Portela, considerado quase unanimemente no meio do samba como alguém dedicado e apaixonado a escola de samba e ao bairro, vários banqueiros de bicho, vulgo, bicheiros, acabaram por patrocinar as escolas, às vezes quase sem ligação com suas comunidades de origem.
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Segundo Miriam Santos “os bicheiros estabeleceram relações de fidelidade e compromisso para com as populações adotadas. A receita do sucesso por eles empregada nas escolas de samba foi investimento, organização e modernização. A partir do investimento de grandes quantias na apresentação das escolas como grande espetáculo, a estética desses desfiles ficou nas mãos de seus produtores e não mais do público consumidor, podendo os novos patronos substituir a versão nacionalista dos desfiles por uma nova versão modernizante que agradasse aos novos componentes das escolas, agora já maciçamente oriundos dos subúrbios da cidade. Os desfiles foram organizados de modo a cumprirem todos os quesitos da ‘tradição’ pelos quais eram julgados, não ficando mais as escolas na dependência de terem ou não em sua comunidade um mestre-sala ou uma porta-bandeira ‘nota 10’. Rompendo com a norma de que somente laços familiares e de contigüidade autorizavam os vínculos com as escolas, passou-se a contratar elementos da ‘tradição’. (SANTOS, 1998: 134).
Em seu livro – Carnaval Carioca, dos bastidores ao desfile, Maria Laura Cavalcanti acompanha de forma perspicaz esse processo, que seu deu não apenas com a Mocidade Independente de Padre Miguel, seu objeto de pesquisa, mas com outras tantas que, ao longo da história das escolas de samba cariocas, não se comparavam as quatro escolas de samba principais de outras eras: Mangueira, Portela, Salgueiro e Império Serrano. Sobre a entrada de Castor de Andrade e sua equipe na Mocidade Independente de Padre Miguel, e como conseqüência da mudança no carnaval como um todo e do crescimento da escola no seu enfrentamento com as grandes, há um trecho no livro de Cavalcanti que ilustra perfeitamente o sentido positivo que muitos componentes de escolas de samba dão à presença de banqueiros na administração, direta ou indireta: “Antes era raiz, não aceitava ninguém de fora. Nem carnavalesco tinha. Era dali mesmo, o pessoal da comunidade (...) para nós sermos grandes, o nosso primeiro passo foi contratar um carnavalesco. Pegar o know-how dele. Pegar um bom destaque, um bom passista. Precisava coordenar isso tudo. (...) Era preciso pegar bons atores amadores que só dependiam de direção e a direção veio perfeita. A escola cresceu”. A Mocidade passou então a competir efetivamente pelo carnaval da cidade. “A coisa evoluiu da seguinte forma: esquecemos que existia Unidos [de Padre Miguel]. Tinha quatro grandes na época: Império Serrano, Salgueiro, Portela e Mangueira que disputavam o título. Nós resolvemos encarar as
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quatro. A Unidos não acompanhou esse processo. Ta lá embaixo com a mesma mentalidade” (1995:35)
Hoje, além da Mocidade Independente, escolas como Beija-Flor de Nilópolis, Imperatriz Leopoldinense e mais recentemente Viradouro e Grande Rio, tem se destacado pela sua inserção na ‘modernidade’ do carnaval carioca, que por vezes é expressa na seguinte máxima: “Tem que ter dinheiro no carnaval. As escolas que não aceitaram isso, que não se modernizaram, ficaram de fora” (CAVALCANTI, 1995:36). Essa observação é fundamental para a pesquisa, na medida que o Império Serrano não tem um patrono, e sobrevive da verba recebida da Liesa e de sua bilheteria. Em entrevista recente ao sítio do Império Serrano, sua presidente Neide Coimbra, ao responder a pergunta de um internauta sobre os principais problemas enfrentados, ela responde que eram as dívidas. “Eu peguei a escola falida, sem nada, nem cadeiras a escola tinha. E o principal problema que eu estou tendo, atualmente, também é o problema de dinheiro porque nós não temos patrocínio. É uma escola que não tem patrocínio, então nós fazemos o carnaval com o dinheiro que nós arrecadamos da Liesa, porque a nossa bilheteria não dá pra competir, por exemplo, com o Salgueiro. O Salgueiro atualmente é a escola que mais pessoas tem nos ensaios, nos pagodes! O Salgueiro às vezes arrecada numa bilheteria dez mil reais, é muito dinheiro. O Império Serrano para arrecadar dois mil é um sacrifício, porque nós temos muitos sócios. A nossa comunidade é muito grande e nós distribuímos muitas permanentes, então fica difícil. A parte difícil é a parte financeira da escola. Porque nossa comunidade não pode se comparar com a comunidade do Salgueiro, é uma comunidade mais pobre. O Império Serrano é uma escola que é de parentes. Você começa a procurar: fulano é neto de cicrano, é sobrinho de cicrano, meu pai foi grande benemérito, meu avô foi fundador, e aí vai entrando, quando você vê a quadra está cheia e a bilheteria nada”.
Essa característica do Império Serrano, identificada como escola profundamente ligada a sua comunidade, que não tem ligações com os bicheiros, e que pelo seu estatuto não pode ter, acaba por reforçar a diferença entre escolas que se adaptaram ao novo carnaval feito no Rio de Janeiro, com mais verbas, patrocínios e patronos, estabelecidas como espetáculos, e aquelas que não tem tanto dinheiro, que as faça acompanhar os novos ritmos dessa folia. Essa afirmação por vezes parece ingênua, já 90
que propõe uma divisão entre as Superescolas de samba S.A e aquelas que só trazem gente bamba, sem escondê-los. Fato é que os quesitos propostos no julgamento dos desfiles impõem não apenas uma técnica apurada na construção dos carros alegóricos, por exemplo, como também dá importância a fantasias e adereços, quesitos que, se a escola não tiver bem calçada financeiramente, pode colocar o carnaval a perder pela ‘pobreza’ demonstrada na avenida. Outro que percebe a importância positiva dos banqueiros é o pesquisador Hiram Araújo, já que para o mesmo "os banqueiros do jogo do bicho são responsáveis por um dos momentos de transição mais importantes desta história. A partir dos anos 70, quando eles se tornaram mecenas das escolas, o rumo dos desfiles foi inteiramente transformado”. E prossegue: “eles já foram ouvidos sobre os mais diversos assuntos, mas nunca deram depoimentos sobre o Carnaval. E o que eles têm a dizer é fundamental". (Jornal O Globo on line, Especial Carnaval, de 3 de dezembro de 2001). Hoje, apesar do reconhecimento como tradicional das outras escolas citadas, apenas a Mangueira (que assim como o Império Serrano não tem banqueiro), mesmo bastante criticada por alguns setores especializados, conseguiu um lugar equilibrado não apenas no ranking da Liga, como também conquistou o seu espaço no Rio de Janeiro ao inovar, buscando apoio externo para suas atividades carnavalescas e sociais, sem deixar de lado sua memória e tradição, como fazem questão de lembrar não apenas seus componentes, mas muitos compositores e intérpretes de samba, que não fazem parte dessa escola.
1.1.b - Sambódromo: A Passarela do samba faz 20 anos “O desenvolvimento célere da comercialização e a expansão da base social produzira, ao longo dos anos uma clara diferenciação entre as escolas de samba. No início da década de 1980, destaca-se com nitidez em seu conjunto o grupo das ‘grandes’ escolas, nas quais esses processos amplos ocorreram de forma mais acabada, estabelecendo simultaneamente um padrão almejado de desenvolvimento para todas as demais. A construção de Passarela do samba em 1984 coroou essa evolução, e representou o reconhecimento e a extraordinária ampliação do potencial econômico dos desfiles. Nesse local fixo e planejado, desfilam desde então os três primeiros grupos 91
da hierarquia carnavalesca” (CAVALCANTI, 1995:27-28)
Passarela do Samba Professor Darcy Ribeiro – Sambódromo, Rua Marquês de Sapucaí, s/n º - Praça Onze - Cidade Nova. Projetada pelo arquiteto Oscar Niemeyer e construída em apenas 4 meses, de 1983 para 1984, na gestão de Leonel Brizola, “a passarela dispõe de lugares para uma platéia de 59.092 pessoas. Monumentalmente, essa estrutura arquitetônica (que ocupa 85.000 metros quadrados) configura um teatro aberto que, ao mesmo tempo em que se destina uma rua da cidade para um uso peculiar, mantém com o espaço da rua uma relação de decidida continuidade” (CAVALCANTI, 1995:29). Essa relação de continuidade com a rua se dá não apenas no sentido apresentado por DaMatta, como na relação com o próprio espaço do Rio de Janeiro.
O
Sambódromo estabelece não apenas uma nova estrutura, física e permanente, para o carnaval, como cria de forma efetiva, um novo tipo de carnaval, que tem como grande estrela o Grupo Especial. Este desfila nos dias mais nobres, domingo e segunda-feira, tem seu ingresso vendido por um preço maior, cobertura televisiva exclusiva realizada e comentada pela Rede Globo, além de um imenso grupo composto por ‘celebridades’ instantâneas ou não, que, se não estão desfilando, estão nos camarotes (alguns patrocinados por cervejarias) assistindo. São, ainda para essas mesmas pessoas, o ingresso mais disputado, já que a presença no Sambódromo nesses dias pode alavancar sua carreira. São essas escolas que atraem a maior parte do público, incluindo os turistas, têm verba maior da Liesa (Liga independente das escolas de samba) e da prefeitura, além de, em vários casos, contar com patrocínios ligados ao enredo anual para seus desfiles. No resto do ano, o Sambódromo não funciona apenas pela demanda do samba e já está ligado aos grandes eventos da cidade, incluindo shows de rock e música evangélica, por exemplo.
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1.1.c - Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro (Liesa) “Julho de 1984... Preocupados com os rumos que o desfile das Escolas de Samba seguia, dirigentes de dez das principais agremiações do Rio de Janeiro decidiram se unir e projetar o que pensavam ser o melhor para a festa - e, conseqüentemente, para o próprio Carnaval carioca. Hoje, quase vinte anos mais tarde, quem acompanha o dia a dia da maior festa popular do mundo pode ver o quanto estavam certos aqueles dirigentes. Acadêmicos do Salgueiro, Beija-Flor de Nilópolis, Caprichosos de Pilares, Estação Primeira de Mangueira, Imperatriz Leopoldinense, Império Serrano, Mocidade Independente de Padre Miguel, Portela, União da Ilha e Unidos de Vila Isabel, fundadoras da Liga Independente das Escolas de Samba, mexeram com a estrutura do Carnaval - e para melhor. Listar todas as conquistas ao longo dessas duas décadas não seria tarefa fácil. Nem vale a pena, aqui, fazê-lo. Falam mais alto os fatos. Hoje, as Escolas de Samba que participam do desfile do Grupo Especial têm condições de oferecer um belo espetáculo a quem comparece à Marquês de Sapucaí. Com a coordenação da Liga e o apoio de diversos parceiros, em especial da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, que ao ver a seriedade com que o trabalho é feito jamais nos negou seu aval, a cada ano buscamos melhorar o que, por muitos, já está muito bom. Mas o objetivo de há vinte anos permanece: evoluir, sempre, para oferecer a cariocas e turistas o que eles procuram quando nos visitam - um espetáculo de qualidade e a cada ano mais agradável”.
Esse texto consta no sítio da Liesa e é fundamental para que entendamos não só as pesquisas como as de Machado & Chinelli (1993), Cavalcanti (1995) e Santos (1998), como o discurso de alguns entrevistados. Estes podem dar uma visão positiva, como os compositores de samba-enredo, que foram beneficiados com a uniformização do carnaval - as regras estabelecidas na competição - desde a entrada na ala dos compositores, passando pela escolha do samba-enredo, que vai representar a escola de samba na avenida - o que inclui direitos autorais, percentagem calculada pelas vezes em que seu samba toca nas rádios, que aumentam muito visto que a gravadora é de propriedade da LIESA. Esse movimento de vendas do CD e de cobrança de direitos autorais toda vez que o samba é tocado em alguma rádio ou casa noturna, se estende até a vitória da escola no desfile, o que trará mais lucros ao conjunto de compositores. No entanto, muitos compositores apontam o aspecto negativo dessa
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industrialização do samba enredo:
cada vez mais apenas um grupo reduzido de
sambistas se beneficia, pelo simples fato de que ganhar um samba-enredo tem um alto custo em produção e propaganda dentro da escola. Na mesma linha, as inovações sugeridas pela Liesa incluiriam dois fatores principais: “As escolas passaram a ter participação efetiva na venda dos ingressos e os compositores dos sambas exibidos na Passarela do Samba foram reconhecidos, através de contratos específicos para a gravação e edição de suas obras. Outra grande revolução nos desfiles foi o rigor com o horário e o tempo de duração. Depois da criação da LIESA, o público deixou de ser castigado com apresentações que não tinham hora para começar e podiam se arrastar até o início da tarde do dia seguinte”.
Há também outras interpretações negativas, apresentada por componentes de escolas de samba e de outros grupos, em que se rejeita o desfile-espetáculo ou o samba ópera para turistas.
4.2 – Serrinha: é o Império do Samba chegando “Lugares de jongo como a Serrinha geraram blocos que estão entre os primeiros que se transformaram em escolas de samba, entre 1928 e 1932. Eram blocos que envolviam as famílias do lugar, sendo formados, com as exceções devidas, pelos mesmos que davam o jongo”. Nelson Nóbrega Fernandes, 2002: 63.
Como vimos anteriormente, duas escolas de samba de Madureira tinham poder e visibilidade nos antigos carnavais, Portela e Império Serrano. O bairro no geral e a Serrinha em particular eram participantes integrais no carnaval carioca. Seus moradores, considerados festeiros, sempre tiveram alguma ligação com os blocos de carnaval e os ranchos, que serviam como elemento de sociabilidade entre os moradores. Não se pode dizer que na Serrinha quem jongava, necessariamente, sambava. O que havia era moradores profundamente envolvidos com os blocos, cordões e ranchos do morro, preocupados com os carnavais de Madureira e aqueles envolvidos com a 94
organização dos jongos. Havia ainda uma interseção dessas redes, composta por pessoas que jongavam e tinham um profundo vínculo e compromisso com o carnaval local.
É o caso principalmente das famílias Oliveira e Costa, cujas histórias se
misturam com a própria história do morro, quando o tema é o Carnaval Carioca.
2.1 - O rompimento: uma nova escola de samba Segundo a literatura existente, para entrar na Escola de Samba Prazer da Serrinha, era preciso passar pelo crivo de Alfredo Costa, o dono da escola, e, por vezes, também do mestre-sala. Dirigindo a escola de modo autocrático, Alfredo Costa só delegava poder à própria família, isto é, dona Iaiá – que era uma personalidade do samba no morro da Serrinha – e a seus irmãos Chico, Teodomiro e Delfino. Durante anos, ser contra Alfredo Costa significou ter que abandonar a escola, pois a identidade de um e de outra eram indissociáveis e a Prazer da Serrinha era controlada como uma concessão ou bem familiar; mas no início dos anos 40 já era manifesta a insatisfação com o modo como a escola era dirigida. De 1944 a 1946, o conflito se instalou dentro da Escola. O centralismo de Alfredo Costa fez que os moradores da Serrinha perdessem dois carnavais, um, destruído por membros da escola indignados com os seus desmandos, outro, o de 1946, perdido pela teimosia do Sr. Costa. Todas as tentativas de emancipação foram dominadas e contornadas por Alfredo Costa. Chegaram a pedir que ele saísse da diretoria da escola e que a escolha fosse dada aos moradores. Contudo, a alegação do Sr. Alfredo Costa era que, se houvesse um rompimento formal dos descontentes, as associações carnavalescas se enfraqueceriam dentro do morro, e isso era algo que ninguém queria. No carnaval de 1946, apesar de todos os esforços, Alfredo Costa viu seu carnaval dividido – uma parte dos foliões foi para Vaz Lobo, enquanto outros o seguiram para o centro da cidade, como era de praxe. Durante o resto do ano, houve a articulação dos moradores, organizados pela família Oliveira, para fundarem uma nova escola de 95
samba. O peso de Elói Antero Dias, Mano Elói, fundador de várias escolas de samba, capoeirista, praticante de religião afro-brasileira, líder no Cais do Porto e sogro de João de Oliveira, o João Gradim teve um peso fundamental na fundação dessa nova escola. Prometeram a João Gradim a bateria da escola de samba Deixa Malhar (que era da Tijuca e estava em vias de extinção àquele momento) se fundasse uma escola de samba com a sua família, que se opunha a Alfredo Costa. Passado o carnaval de 1947, no dia 23 de março, fundou-se no alto da Serrinha a Escola de Samba Império Serrano, que teve como primeiro presidente João Gradim, cuja sede ficava na casa de seu irmão, Sebastião de Oliveira, o Molequinho. Na análise de Miriam Sepúlveda dos Santos (1998), ao romper com o Prazer da Serrinha, não se rompeu com a tradição e sim com Alfredo Costa que era obedecido como ‘dono’. Ao se criar o Império Serrano, como uma escola com ‘quadro social legalizado”, uma “associação na qual os sócios mandassem”, o Império Serrano inovou tanto em relação aos desfiles tradicionais de Portela e Mangueira, como criando também uma nova tradição na constituição do Império Serrano.
2.2 - As mudanças “O samba é a mais expressiva linguagem musical do povo carioca. Hoje enriquece os donos do mercado musical, enquanto as escolas de samba são utilizadas pelo seu potencial turístico, sugadas pelo que oferecem de supérfluos e desprezadas pelo fundamental. Há tantos interesses em torno do samba e das escolas de samba que fica muito difícil saber onde é a fronteira entre a manifestação espontânea do povo e a ganância”. (Sérgio Cabral, 1979: VII, apud, CANDEIA & ISNARD: 1978).
Se a fundação do Império Serrano consegue diluir parte de um conflito instalado entre as famílias mais antigas, as sucessivas vitórias que o Império Serrano começa a ter a partir daí estabelecem uma competição imprevista, a que oporá o Império Serrano à Portela, dois “berços do samba” de Madureira. A disputa entre as duas escolas segue durante toda década de 50 e visava 96
legitimar a superioridade de uma das escolas de samba e suas tradições. O problema é que, como já visto no capítulo II, as redes sociais estabelecidas não se davam somente por meio do samba e do jongo, mas antes, havia laços familiares fortemente estabelecidos, entre os componentes do Império Serrano e Portela. Pedro Paulo Malta, em seu texto “Rivais sim, inimigas não”, nos fala da rivalidade existente entre as escolas de samba Império Serrano e Portela, uma competição que não se limitava aos desfiles, mas chegava a violentas brigas nas ruas de Madureira. Inimigas elas não poderiam ser, pois havia laços familiares que as uniam em festas e confraternizações, apesar das diferenças associativas; quer dizer, numa mesma família poderia haver imperianos e portelenses70. Nas décadas de 60 e 70, houve uma mudança significativa na construção do carnaval, que obrigou as escolas a também mudarem sua forma.
Quando lemos
sobre estas transformações, o que deixam claro alguns autores (LOPES, 1981, CANDEIA & ISNARD, 1978) é o esfacelamento das relações dentro da escola de samba, causadas pelo poder adquirido por pessoas de fora e a exploração do potencial turístico do desfile de carnaval que acabou transformando as escolas em empresas (Machado e Chinelli, 1993)71. O próprio Império Serrano, sofrendo as pressões das transformações, adotou a partir do início da década de 70, carnavais e samba-enredos menos parecidos com o 70
Como o caso de Tia Doca, pastora da Velha Guarda da Portela, cuja mãe era portabandeira do Prazer da Serrinha e que viu ser fundado em 1947, o Império Serrano. Apesar de tudo seu grande amor é a Portela onde “já fez de tudo na escola: puxou corda (antigamente as escolas eram limitadas por cordões, como os blocos baianos de hoje em dia), foi da ala dos compositores, foi diretora da ala das baianas e integrante da diretoria. ‘Só não carreguei tijolo nem joguei bola com o Paulo da Portela. De resto, fiz de tudo para ajudar a minha escola’, diz”. Em Tempero do Samba, de Giselle Netto. Arquivo capturado no dia 24 de fevereiro de 2004, no sítio http://www.belezapura.org.br. 71 A respeitabilidade do Império hoje, em grande parte se dá pela recuperação da tradição. É como se fosse necessário fazer algo semelhante ao ocorrido no jongo, ‘ressuscitar o samba’ de Madureira. Apesar de a quadra se chamar Elói Antero Dias, em homenagem a Mano Elói, desde o início dos anos 70, a escola pouco tem valorizado seus fundadores. SILVA & OLIVEIRA FILHO (1983), traduzem isso muito bem na biografia de Silas de Oliveira. Mostra todo o processo de marginalização que o compositor de samba enredo passou dentro do Império Serrano e sua desvalorização progressiva, o que abriria espaço para sambas mais de acordo com as transformações rítmicas exigidas. Silas morreu em 1972, doente e entristecido com a escola que ajudou a fundar.
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passado e que já demonstraria como o carnaval se estruturaria a partir daí.
O
resultado imediato foi a marginalização crescente de autores de samba-enredo como Silas de Oliveira e Mano Décio da Viola dentro da própria escola, já que seus sambas não mais se enquadravam na lógica do desfiles. Em outras escolas, os elementos desagregadores da comunidade local foram o novo papel do carnavalesco e a escolha de presidentes da escola de samba de fora da comunidade, alguns sem nenhum vínculo com os fundadores ou com a comunidade – o que tem acontecido há pelo menos trinta anos. A balança do poder pendeu para eles e
enfraqueceu a posição dos fundadores e freqüentadores de
primeira hora dentro das escolas. A tradição ou raiz dentro das escolas vem, portanto, tanto do conhecimento de como se faz samba como do espírito comunitário e das famílias fundadoras dentro das escolas de samba. Shirley, líder comunitária, perguntada sobre a permanência das redes sociais e familiares dentro do Império Serrano, afirma que “Acharam que isso tinha que acabar. No momento que acharam que isso tinha que acabar, a escola de uma certa maneira também perdeu aquele QI que ela tinha. Porque o Império Serrano podia estar por baixo, mas todo mundo adorava o Império Serrano. Achava que o Império Serrano tinha tradição. Mas eles acham que quem vive de raiz é batata. Meio atrasado, porque hoje você aprende que já veio de uma tradição muito grande, apenas esta é aprimorada. E a história deve ser respeitada”.
Ela fala a partir da sua experiência na Escola e de antiga moradora da Serrinha. Já esteve em alguns comitês organizativos da escola de samba e saiu, pois não tinha autonomia nem se sentia respeitada. O conceito chave talvez seja inovação, não modernidade. É muito claro, que, politicamente, há uma tensão quase insolúvel entre o que deve ser feito para manter os padrões do passado e principalmente a fidelidade aos membros mais antigos da escola, assim como seus fundadores e Velha Guarda. O que se tenta, na medida do possível, é uma adequação, em determinadas escolas (principalmente as mais antigas), em preservar sua história, sua memória, suas referências, sem ficar 98
necessariamente presa ao passado.
As escolas do grupo especial estão sujeitas
necessariamente às regras da LIESA, e seus critérios. Em alguns casos de administração interna, também sujeitas à administração dos banqueiros do jogo do bicho. Para manter sua posição no grupo especial, há de se fazer uma adequação. Há escolas de samba, que prezam o espetáculo, estando em perfeita sintonia com a modernidade (como diria Miriam Santos, em ritmos, temas e rituais). Beija-Flor de Nilópolis e Mocidade Independente de Padre Miguel cresceram assim. Em contrapartida, temos escolas de samba como a Mangueira, que têm conseguido, apesar de todas as tensões entre tradição e modernidade, dosar e equilibrar o lugar de cada conceito apresentado, não apenas em seus desfiles, como no cotidiano da escola. Império Serrano, porém, está
começando a se organizar
internamente, tentando superar as diferenças internas, para que possa continuar a competir,
e despontar no grupo especial como escola de samba que preza sua
comunidade, sua história e sua memória, mas que está disposta, se possível, a se estruturar financeiramente para poder se adequar esteticamente. A composição da escola Império Serrano é hoje bem heterogênea, já que agrega profissionais liberais, pequenos e médios comerciantes do bairro, líderes comunitários e antigos moradores. Mesmo com essa aparente integração, o que se constata são presidentes, com pouco ou nenhum vínculo com a Serrinha e seus moradores, com o Império Serrano e com equipe própria, gerenciando a verba da liga das escolas de samba, sem dar autonomia aos poucos integrantes antigos da escola, ocasionando mais afastamentos. É preciso lembrar que entre 1960 e 1980, a presença dos fundadores foi diminuindo gradualmente na escola, por morte, envelhecimento ou por problemas políticos internos à associação, e a escola, apesar de sua tradição de grandes desfiles e fantasias, de ter tido alguns dos mais belos samba-enredos e grandes compositores, não consegue acompanhar as mudanças impostas pela lógica dos mercados – o fonográfico, o estético e o turístico – o que não apenas a descaracteriza, como 99
compromete até a sua própria sobrevivência. Este processo de adequação ou inadequação às normas vigentes do carnaval carioca acaba gerando, em última instância, conflitos quanto à política e administração dentro do Império Serrano e enfraquece a sua rede social original, de moradores do morro da Serrinha, como vimos nos capítulos anteriores. Se os conflitos no jongo passam pela manutenção dessa manifestação cultural como elemento de uma suposta identidade negra, por uma luta para afirmar o que é o jongo autêntico72 e quais são os legítimos representantes dessa autenticidade, podemos concluir que no samba o enfoque é bem diferente. As más colocações que o Império Serrano tem recebido nos últimos anos deixam seus integrantes insatisfeitos e estes relacionam seus insucessos a uma má administração da escola desde que conseguiu seu último campeonato no grupo A, atual grupo especial, há 20 anos (1983). Esse processo esteve em curso até 2001, quando Neide Coimbra, vice-presidente da administração anterior, chega à presidência da escola e inicia um lento resgate dos ‘bambas’ imperianos.
A sua
equipe faz retornar à escola pessoas afastadas há anos, aparentando, ao menos, a reunião e o fortalecimento de antigas redes já desfeitas.
2.3 - A primeira presidente: Neide Dominicini Coimbra73 “Até que cheguei ao posto que eu estou, né? Já fui destaque da escola, no ano do ‘Iemanjá’, eu fui a figura principal do enredo fui aquela Iemanjá, saiu em todas as revistas, aquilo tudo, então agora, por ironia do destino, num cargo que eu nunca almejei, nunca tinha vontade de ser, eu queria sempre estar trabalhando por fora”.
72
Jongo só de negros, para negros ou de e para todos que com ele se identifiquem? Utilizei aqui não apenas a entrevista que fizemos [Cosme Elias e eu] como também entrevista feita com a presidente Neide Coimbra, realizada na sala da presidência, no Império Serrano, no dia 28 de agosto de 2003, quinta-feira, das 20:30h às 21:30h, por Rachel Valença, Luciano Vargem, Carlos Pereira e Nilton Fernandes, a partir de perguntas enviadas ao site do Império Serrano. Conforme observação “a gravação em fita cassete desta entrevista está em poder do GRES Império Serrano e do acervo do site. A transcrição é de Nilton Fernandes e a edição do material foi feita por Rachel Valença. Todos os Direitos Reservados - Copyright © 2003 - G.R.E.S. Império Serrano”. 73
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A primeira mulher a assumir a presidência da Escola de Samba Império Serrano tem, desde que se lembra, sua presença vinculada à escola. Filha de um estivador mineiro com uma italiana, ou como prefere, ‘da tradicional família dos estivadores’, já que a maior parte dos fundadores do Império Serrano é do Cais do Porto, começou a freqüentar a escola de samba cedo, indo escondida à antiga quadra da escola e depois, descoberta por um amigo de seu pai, não pôde mais se esconder. No Império Serrano ela já exerceu diversas atividades. Segundo a própria Neide, “Eu entrei na escola e logo com três meses eu entrei num concurso de Miss Elegância, Miss Simpatia e Miss Escurinha. E eu ganhei o concurso de Miss Elegância, então eu fui logo convidada pelo Ernesto Nascimento, que foi carnavalesco da escola há três anos, três anos seguidos, passados. Ele foi o autor do enredo do “Betinho”, e o Ernesto me vendo trabalhar , me convidou para trabalhar na diretoria, daí pra cá eu comecei trabalhando na diretoria da escola, esse tempo todo, só não trabalhei na gestão de um presidente que eu não gostaria de citar o nome, então foi a única gestão que eu não trabalhei. O resto eu trabalhei com todos eles. Olha que eu já fui diretora de carnaval, já fui vice presidente social, já tomei conta de ala de passista, ala de criança, ala de baiana, já fui vice-presidente do conselho deliberativo da escola e já fui assessora geral do presidente Jamil Salomão Maruf. E vários presidentes também, eu assessorava, é geral, já fui do departamento feminino também, já fui vice-presidente, tudo isso”.
Sua ida para a presidência se deve a insistência de vários componentes, e a partir de sua escolha que seus problemas começam a aparecer. Sua presença na escola é considerada ilegítima, já que para alguns, ela teria fraudado as eleições, ou antes, que ela não poderia concorrer já que era vice-presidente do mandato anterior, como fica claro nesse trecho da entrevista: “Vários componentes chegaram, ‘tem que ser você, tem que ser você’, e por um desafio também de um ex-presidente, dizer depois de eu ter colocado ele aqui dentro para ele ser presidente, que ele não era conhecido, né, depois de eu trabalhar na campanha dele e ele entrar para ser presidente e ele falar que eu não tinha competência para ser presidente. Então eu resolvi, eu disse, se ele se candidatar eu faço questão de me candidatar com ele, mas eu não gostaria que tivesse outra chapa, só nós dois. E parece que papai do céu disse amém e nós nos candidatamos, foi a chapa dele e a minha. E eu venci, ele teve 82 votos e eu 136. Entrei em 99, agosto de 1999, passei por várias liminares, por que eu sou a primeira mulher presidente do Império Serrano. No Império Serrano, desde 1947, só homem na frente da presidência, eu sou a primeira mulher, então os machões não aceitam isso, né,
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então eles começaram com liminares em cima de liminares. Eu peguei a escola no grupo A, consegui colocar a escola no grupo especial e nós estamos até hoje no grupo especial. Graças a Deus, vocês podem ver, o Império voltou a ter credibilidade, que o Império estava desacreditado, hoje em dia vocês ouvem falar muito mais no Império Serrano. Não é um trabalho de Neide Dominicini Coimbra, é um trabalho de uma equipe, é uma equipe e nós estamos aqui com vontade de vencer. Por isso nós passamos ... a qualquer momento que você chegar aqui, você vai encontrar gente na escola, coisa que antigamente não acontecia. Você chegava aqui, não tinha um diretor, não tinha ninguém para lhe dar uma informação. E hoje em dia você chega e você vai encontrar. Nós trabalhamos com um grupo de senhoras, que tem sempre aqui, que são do departamento social, do departamento feminino, então elas têm escala, cada dia elas estão aqui. Nós também temos diretores que são aposentados, que podem ficar aqui durante o dia todo para dar informações para isso, para quilo. E nisso nós estamos construindo o Império forte, que é nosso objetivo. Eu tirei a minha, eu fui reeleita agora de novo por aclamação, em maio de 2003, 2002, teve nova eleição e eu fui aclamada, então eu já estou no meu segundo mandato”.
Perguntada recentemente sobre as possibilidades para a próxima eleição Neide expressou um desejo e uma preocupação: quanto ao primeiro, de pessoas jovens, que vem enchendo as quadras, pudessem ocupar um espaço na escola, pois o que ela vê é uma capacidade de trabalho grande assim como sua preocupação é com a própria ‘continuidade’ de seu trabalho, se podemos dizer assim. Ela não poderá se candidatar na próxima eleição e está preocupada com a reestruturação do Império Serrano após a sua saída e a possibilidade de seus aliados montarem uma chapa para as eleições. Como as duas gestões de Neide foram marcadas por liminares judiciais, tanto para tirá-la do cargo, quanto, por parte do jurídico do Império Serrano, para mantê-la no cargo, perguntamos qual seria o real motivo para querer que ela estivesse longe da presidência. Quanto as liminares: “Eles estão sempre entrando. Alega que, olha, a primeira vez que eles alegaram foi por eu ter sido vice-presidente de um presidente. Esse presidente que concorreu comigo eu era a vice-presidente dele e que ele não prestou conta, que eu não podia, eu não poderia me candidatar certo? Isso aí é certo? É certo. Só que três meses antes eu tinha entregue uma carta ao Conselho deliberativo, que tinha me afastado. Quando chegou a hora dele prestar conta, que ele não prestou, eu falei ‘tô fora’, então eu saí com tempo hábil de eu me candidatar e então é por isso que vai minar ... vai, eles entram, eu vou lá e derrubo, entendeu?”
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Então como se candidata a presidente do Império Serrano? Você tendo cinco anos de associado, você sendo sócio, você faz a sua chapa. Você tem que ter um conselho, entendeu? Esse conselho são de 138 pessoas, entre beneméritos, grandes beneméritos, fundadores e sócios. Você tem que ter esse conselho, não pode ter nome repetido nas chapas, por exemplo, se tem o nome dela na sua chapa, não pode constar o nome dela na minha. Você tem que ter pessoas diferentes, as pessoas têm que optar por um presidente só, não pode estar no conselho de todas as chapas. Que é um conselho deliberativo que é formado, dali sai o conselho deliberativo, conselho fiscal, entendeu? Então o que é eleito aqui é o Conselho Deliberativo e o Conselho fiscal e dali sai o presidente ... mas quando se faz a campanha, já se sabe quem é o candidato a ser o presidente administrativo da escola.
Apesar das tensões presentes na gestão de Neide Coimbra, há um esforço mútuo de imperianos tentando (re) valorizar a escola, tendência que se faz presente em várias outras associações. A iniciativa de Rachel Valença e outros colaboradores em criar um sítio na Internet para o Império Serrano, com destaque para o registro de seus fundadores, de samba-enredos, da história, das ligações com o jongo e etc74. E como afirmei, o processo de esquecimento gradativo da história da escola dentro do Império Serrano não começou ontem, mas vem de muitos anos atrás. Recuperar a memória é importante para traçar as escolhas no presente e no futuro. Não é olhar para trás apenas, mas renovar sem esquecer a tradição (Gonçalves, 2003). Os entrevistados referem-se constantemente à Escola de Samba Mangueira, sua filiação à tradição e o culto aos baluartes. A percepção é que o Império voltará a ser respeitado e classificado como uma escola de samba grande, se recuperar a memória do passado de glória e valorizar os fundadores ainda vivos e seus descendentes, demonstrando o quão tradicional é a Escola. Em entrevista recente, Sebastião Molequinho (fundador e ex-presidente em 1959 e 1969/70) confirma esse processo. Segundo Pedro Paulo Malta (2003) “Nem o título de presidente de honra do Império, concedido em 1978, nem mesmo seu nome pintado na parede da quadra na Avenida Ministro Edgard Romero parecem resgatar a alegria dos velhos tempos. ’De que adianta meu nome estar pintado lá se não sou valorizado? É uma homenagem que não tem 74
Império Serrano www.imperioserrano.com 103
qualquer valor’, lamenta o baluarte imperiano. “Se eu for à quadra e me sentar num canto, ninguém da escola vem falar comigo. Se eu estiver com vontade de tomar um guaraná, não me oferecem. Basta ver como eu fico quando vou lá”.
Esta entrevista deixa claro que as mudanças na esfera da comercialização e investimento, que profissionalizou várias atividades antes compartilhadas pelos componentes, resultou na perda de prestígio para os bambas ou baluartes que participavam da escola durante o ano todo, produzindo sambas de terreiro ou sambas canções, participando das festividades e, depois, dos preparativos para o desfile de Carnaval. Sem tantas funções, os bambas lamentam mais do que não ter a devida retribuição pelo que doaram no passado de glória da escola, a perda da possibilidade de continuar doando e recebendo as honrarias devidas a um grande doador (Mauss, 1974).
4.3 - Os fundadores & seus descendentes. Quando iniciei o trabalho de campo, estava-se (re) estabelecendo a rede social. Sentindo-se de fora da escola de samba, alguns descendentes dos fundadores se rearticularam para tentar ocupar um espaço dentro da instituição que eles consideravam ser deles por direito. Faziam parte de diversas redes sociais dentro e fora da Serrinha e foi uma memória em comum – a posição soberana que o Império Serrano ocupara em antigos carnavais – o que fez com que eles se mobilizassem. Como está implícito no próprio conceito de redes, alguns desses integrantes transitam entre o samba e o jongo, fazendo parte da rede formada pelos integrantes da escola de samba mirim Império do Futuro75.
75
Considerando a Escola de samba mirim Império do Futuro como uma Inovação na tradição, a mesma foi fundada na década de 80, por ela já passaram vários ritmistas, que agora se apresentam em shows e que estão na escola de samba Império Serrano. Como escola de samba mirim, o Império do Futuro era e ainda é gerido em grande parte por recursos familiares e com os recursos da liga das escolas de samba mirim na época do carnaval. Segundo Valdemir dos Santos Lino, “o Império do futuro, há dezessete anos desenvolve um trabalho sério na comunidade, voltado para crianças e adolescentes do bairro, hoje está muito preocupado com o cenário da infância brasileira e de toda sua emblemática: prostituição infantil, exploração dessa mão-de-obra, falta de bom atendimento hospitalar, crianças de rua, evasão escolar e aliciamento de menores pelo tráfico de drogas” (SANTOS LINO, 2001). Sua 104
Nascidos na Serrinha estiveram muitos anos em contato com o samba e com o carnaval do Império Serrano. Esse grupo, formado por um dos filhos de Mano Décio, um neto de Augusto Cardoso, em ex-mestre sala da escola, um ex-ritmista e mais dois moradores, foi apoiado pelos comerciantes do morro e das imediações juntamente com o filho de Silas de Oliveira, e um dos netos de dona Eulália, presidente da associação dos moradores naquele momento. A estratégia desse grupo era marcar uma presença contínua dentro da escola de samba, numa época que em eles tivessem maior visibilidade: a escolha do samba-enredo. O samba foi composto por esse grupo e se referia ao enredo de 2002 da escola de samba, Ariano Suassuna. Alguns haviam concorrido com outros sambas-enredo e perdido, como era o caso do filho de Mano Décio, outros estavam apenas iniciando. A presença e o apoio do filho de Silas de Oliveira retomaria - via seus descendentes uma parceria interrompida, política que fosse, entre os grandes compositores do Império Serrano, Silas de Oliveira e Mano Décio da Viola76. A
criação
de
um
samba-enredo
se
faz,
majoritariamente,
em
parceria
(CAVALCANTI, 1995). A existência da parceria endossa um bom samba-enredo, no qual, geralmente um faz a melodia, outro faz a letra, ambos detendo os direitos autorais. Segundo Cavalcanti “a dinâmica da formação de parceria era a seguinte: ‘tem você que faz o samba, o fulano faz a letra, o sicrano que tem dinheiro, mais o beltrano que é amigo da diretoria, então eles põem todo mundo como parceiro’” (op cit: 95). Nessa perspectiva, para se ganhar a disputa pelo samba-enredo é preciso coordenar vários elementos: a gravação e a divulgação do samba, a propaganda preocupação é justificada. Nascido na Serrinha, sobrinho de Careca, fundou com outros membros da família Cardoso, principalmente Careca e Priminho, e por Darcy do Jongo a primeira Escola de Samba Mirim a se ter notícias, e pode presenciar parte das transformações pelas quais o samba o jongo passou nos últimos trinta anos, sendo, juntamente com sua família, personagem de destaque nesse processo. 76 Além do desprestígio dentro do Império Serrano, havia uma alegação para a não permanência deste grupo (os fundadores e posteriormente seus descendentes) na escola. Se a escola perde sua formação original a partir da década de 70, seria impossível, na ótica deles, permanecerem ligados à política institucional, pois eram muito jovens naquele momento, e aos jovens não era dado o poder de decisão. 105
boca-a-boca, o auxílio à torcida e isso significa gastos com a letra dos samba, com o ônibus que levará a torcida até a quadra enquanto o samba estiver concorrendo e pelo menos o pagamento da alimentação e da bebida, que em algum momento significa cerveja. Portanto, como podemos observar, custa caro fazer o samba emplacar e ser o samba-enredo do ano da escola. Da mesma forma que Cavalcanti afirmou haver uma sobreposição das redes do jogo do bicho com as redes de tráfico na Mocidade Independente, influenciando a escolha de samba-enredo, seja pela política da escola, seja pelo dinheiro do tráfico, no Império acontece um fenômeno semelhante que implanta conflitos entre os concorrentes, maior que a própria competição pela escolha do samba-enredo: a acusação de que alguns compositores se associam ao tráfico de drogas para ter maior chance de ganhar a disputa. Não é uma mera reclamação. A acusação de que o compositor leva para dentro da escola o tráfico de drogas ao se associar a ele para levar o samba-enredo é muito grave. Mas por vezes ele se associa aos traficantes, até mesmo sem saber, ao contratar a torcida que irá até a quadra defender seu samba. São nessas horas que se cria uma diferenciação clara entre quem assume o discurso ‘não faço trato com o tráfico, nem para ganhar o carnaval’ e quem negocia ou aparenta negociar, ou acabam sendo associados, mesmo sem querer. Como hoje a escolha do samba para o desfile envolve ganhar os direitos autorais do cd produzido com todos os sambas das demais escolas, com a possibilidade do compositor ganhar cerca de cem mil reais e como o próprio desfile é atividade empresarial, envolvendo milhões de reais, a disputa tornou-se mais acirrada e exige gastos com torcida, conquista da bateria para tocar bem o samba e até a simpatia dos jurados. Pensando nisso, os preparativos do carnaval de 2001 foram marcados por esta tensão. De um lado havia a absoluta certeza de que o samba estava lindo e ganhava a
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quadra77. Havia uma boa produção musical do samba, realizada por um jovem músico da Serrinha e seu intérprete era Marquinhos Satã. Por outro, um outro grupo (com algumas alterações de componentes ao longo dos anos) vinha ganhando os sambas há três anos e tinha o apoio, ainda que não declarado de alguns membros da diretoria e da escola. Foram utilizados na divulgação prospectos com a letra do samba, a imagem dos compositores e o local de origem, Serrinha; foi organizado um espetáculo, no dia Nacional do Samba (2 de dezembro) na rua Silas de Oliveira, com a presença de dona Ivone Lara, Marquinhos Satã e as crianças da escola de samba mirim, Império do Futuro. Tentou-se ainda fazer seminários com especialistas em samba, carnaval e samba-enredo dentro da Serrinha, o que acabou não acontecendo por conta dos compromissos assumidos na divulgação do samba-enredo. Era de fato, um risco. Eles lançaram mão da imagem de descendentes dos fundadores para legitimar a presença na escola, concorrendo com um samba e marcando território na festa do dia Nacional do samba78. Para efeitos de escolha de samba na quadra, o deles não passou da semifinal. O samba-enredo do carnaval 2002 seria o da autoria do outro grupo, como eles já desconfiavam. Em momento nenhum afirmaram, ‘foi roubo’.
Para eles era pouco importante, já que os
compositores vitoriosos tinham mais visibilidade que eles, mesmo que famílias dos não fossem referências da escola de samba. Os anos seguintes deveriam ser de mais trabalho para se legitimar a ‘tradição’ dentro da escola. Mas esta é uma história para outros carnavais.
d Imperador Silas: Sábado de madrugada, uma cena emocionou a quadra do Império Serrano, em Madureira. Faltou luz e, no escuro, por uns 40 minutos, o povão, 77
Significa fazer sucesso quando nas eliminatórias de samba-enredo. O já tradicional trem do samba sai no dia 2 de dezembro aproximadamente às 18h, da estação Central do Brasil rumo a Osvaldo Cruz, local onde foi fundada o G.R.E.S. Portela. Ao marcar um show para este dia, eles tentam consolidar a Serrinha como outro lugar possível de se comemorar esse dia, já que não há festividades agendadas na quadra do Império Serrano. 78
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espontaneamente, ficou cantando o samba “Aquarela brasileira”, de Silas de Oliveira, obra-prima que a escola vai reeditar na Sapucaí este ano. Coluna Alcelmo Góis, Jornal O Globo - segunda-feira, 26 de janeiro de 2004.
Por quais tensões passa o Império Serrano? Em primeiro lugar sua posição no grupo especial, já que desde o início da década de 90, a escola de samba tornou-se o que se chama de iô-iô, quer dizer, escola sobe e desce. Se em um ano ela está no grupo especial, no seguinte pode estar na grupo A. Em segundo lugar, o Império enfrentou a perda de prestígio que mantinha suas quadras cheias e a presença de patrocinadores em potencial para o desfile e em terceiro lugar, mas não menos importante, os sucessivos problemas relacionados à presidência da escola de samba e os inúmeros mandatos impeditivos, expedidos por aqueles que não achavam a presidência daquele momento, legítima. Os conflitos dentro da escola de samba, pouco passam pela questão da etnicidade, como no caso do jongo. O que está em jogo para ambas as redes é a retomada da soberania do Império Serrano no carnaval carioca, ou como alguns preferem, da tradição. O grupo de moradores da Serrinha que se intitula descentes dos fundadores da escola concebe a sua tradição (HOBSBAWN, 1998) de forma que dê conta da manutenção da escola de samba como referência para o carnaval do Rio de Janeiro. Seu discurso é semelhante ao de CANDEIA & ISNARD (1978) e LOPES (1981), que defendem uma presença dos fundadores e seus descendentes e autonomia no gerenciamento da escola, e que se reveja claramente as fronteiras entre a manifestação espontânea do povo e a ganância dos seus dirigentes (como afirma a epígrafe indignada de Sérgio Cabral), com interesses outros, não apenas as escolas de samba. A outra reativa os contatos com antigos participantes e colaboradores e chega à presidência, apesar das lutas internas pelo poder. Tem mantido o Império no grupo
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especial e espera que ele se fortaleça. Pesava contra ela a aparente pouca ligação com sua comunidade original e a pouca atenção à preservação da memória da escola de samba. Com a reedição do samba Aquarela do Brasil, de Silas de Oliveira, no carnaval de 2004, é muito possível que esse quadro tenha se revertido. Segundo as notícias veiculadas pré-carnaval, havia uma re-descoberta do Império Serrano pelos moradores da cidade, aliado ao fato de sua entrada para os ensaios ser barata. Sua quadra ficou lotada, como não ficava há duas décadas. E com as liminares que afastaram a presidente da escola temporariamente, seus integrantes se uniram e a apoiaram, fazendo com que o carnaval não apenas saísse, mas encantasse quem desfilou e assistiu, pela força demonstrada pelos imperianos.
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CAPÍTULO V E onde houver trevas que se faça luz “O processo civilizador retrocedeu, tornando preferenciais ou habituais os comportamentos violentos nos conflitos dentro da classe social, da família, da vizinhança. A fragmentação das organizações vicinais e familiares facilitou o domínio dos grupos de traficantes no poder local, que, por sua vez, aprofundou a ruptura dos laços sociais no interior da família e entre a famílias na vizinhança, acentuando o isolamento, a atomização e o individualismo negativo”. Alba Zaluar, 1998:291 e 292
Em meados da década de 80, o livro A Máquina e a Revolta surgiu como um clássico da antropologia urbana. Nele a professora Alba Zaluar, tentava dar conta das aceleradas transformações ocorridas na comunidade carioca da Cidade de Deus por conta do tráfico de drogas. O processo de estigmatização que o bairro sofreu, conhecido do grande público através dos meios de comunicação, televisivo e escrito, atribuído, principalmente, ao tráfico de drogas e sua violência diária contra os moradores, esfacelou a confiança que alguns dos moradores depositavam no Estado e provocou a fragmentação das redes sociais existentes. Longe de ser um fenômeno exclusivo da Cidade de Deus, o município do Rio de Janeiro acompanharia, ao longo dos últimos vinte anos, o crescimento da violência gerada pelo tráfico de drogas em todos os bairros. Mas, seja pela falta de policiamento adequado, seja pela omissão de Estado ou pelo fracasso (óbvio) de políticas assistencialistas e paternalistas, o fenômeno da violência estigmatizou sobretudo os bairros mais pobres. É então que se começa a confundir a profunda desigualdade existente em nosso país e cidade com o conflito permanente gerado por uma suposta cidade partida. Quando comecei a pesquisa, Madureira era considerado um bairro violento, como tantos outros bairros. E como no resto da cidade, a percepção do que é conflito e do que é violência era muito diferente para cada um dos moradores entrevistados.
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Começarei relatando a experiência com a Serrinha, onde fizemos79 pesquisa por mais tempo e que nos possibilitou uma visão mais abrangente das relações sociais existentes em Madureira. Nas primeiras visitas, tínhamos a sensação de que, mesmo acompanhadas, éramos um perigo constante. Nos sentíamos vigiadas até por crianças. Foi preciso conquistar a confiança de uma moradora para que pudéssemos transitar mais livremente pela favela. Ela nos possibilitou dados importantes relacionados ao tráfico. Foi a primeira a nos apontar que, para os moradores, a construção da ponte que liga a Serrinha a outros morros foi prejudicial à população. Em suas palavras, “a ponte desprotegeu a Serrinha, facilitando assim as saídas dos meninos em dias de guerra com outras quadrilhas de traficantes”. Sempre nos alertava para o fato de que a associação de moradores local negociava com “os meninos” e que ela por ser contra esta política, sofria “intimidações”. Em algumas visitas ao ponto máximo da Serrinha, chegamos à conclusão que a vista ‘panorâmica’ do bairro de lá obtida, possibilitava a visualização de todas as entradas da Serrinha. A localização dos traficantes em cima da favela é estratégica, tal como a de militares em guerras. Na descida, assim como no morro do Sossego, visualizamos algumas inscrições que nos remetiam à violência e às drogas. Uma das que mais impressionaram a equipe dizia o seguinte: “O bonde do mal” com desenhos de uma caveira, armas e um cigarro que poderia ser um “baseado”. Quanto ao acesso às drogas na Serrinha, sabíamos que num dos bares da entrada da favela era possível comprar, mas que seu uso não era permitido nos limites da favela. Logo a regra ou norma imposta pelos moradores era de compra dentro da favela e uso fora. Para um de nossos informantes, alguns dos temores dos moradores do bairro, não vinculados ao pessoal do tráfico, estavam nas novas entradas dos complexos do Sapê e Serrinha. Já havíamos escutado de muitos que os novos acessos criados a
79
De 1998 a 2000, fizemos a pesquisa sobre Madureira em equipe, sendo composta por Fátima Cecchetto, Liliane Souza e Silva e por mim. 111
partir do projeto Favela-Bairro só facilitariam as ações dos ‘meninos’. Não avaliarei o projeto, apontarei apenas as modificações e os efeitos de um projeto governamental de reurbanização, sobre a nova sociabilidade de seus moradores e os conflitos internos gerados a partir da reorganização do tráfico de drogas no bairro de Madureira. O Projeto Favela Bairro na favela Serrinha visava não só a melhoria das condições básicas de sobrevivência para a população (saneamento básico, melhorias na distribuição de água, iluminação pública e asfalto), mas também a criação de áreas de lazer. Numa conseqüência imprevista pelos planejadores, segundo moradores locais, algumas destas áreas passaram a ser usadas para venda de drogas, tornandose de alto risco para os moradores da comunidade. Além disso, a facilidade de acesso resultou na criação de empecilhos postos pelo tráfico à subida da polícia nas comunidades, além da volta (temporária) da “lei do silêncio” e do “toque de recolher” em momentos de grande tensão nas guerras entre os grupos que disputavam o controle local. É a partir desses conflitos e tensões inesperados que se desenvolvem novas relações sociais dentro das comunidades, que se reorganizam as redes de tráfico, afetando a segurança na região de Madureira. Curiosamente, Madureira apesar de tudo que acontece, raramente é notícia nos jornais no quesito segurança. Mesmo sabendo-se que este é um dois bairros do subúrbio carioca que exibem um grande número de homicídios, e que já resultou na visita do secretário de segurança ao complexo do Sapê para destruir os “empecilhos” e “quebra-molas” colocados nos acessos do complexo que dificultavam as entradas da polícia ao local. Ainda assim nesta época, a Secretaria de Segurança do Estado afirmava que, estatisticamente, Madureira era um bairro calmo e sem problemas nas questões de segurança, como foi divulgado pelos jornais em janeiro de 1999. Sendo este um ambiente onde as relações de vizinhança se reorganizam com a transição da antiga favela em um complexo de morros, a situação tornou-se ainda mais delicada, tendo em vista as quadrilhas de traficantes que, há 20 anos, atuam na região e dominam quase todas as suas favelas. A quadrilha que passou a dominar a 112
Serrinha, após a execução do projeto favela bairro nessa favela, mudou o Comando e, portanto, os inimigos da favela. Serrinha deixou de ser do Comando Vermelho e passou a ser Terceiro Comando. Com isso, outras favelas das cercanias, como o Morro São José, tornaram-se “inimigas” e seu território vedado aos moradores da Serrinha, especialmente os homens jovens, que poderiam ser “soldados” do tráfico local e, portanto, suspeitos de espionagem e traição aos olhos do outro comando. Em virtude das guerras constantes pelo controle do território e a hierarquia dentro
da
quadrilha,
que
também
caracterizam
outras
áreas
da
cidade,
paradoxalmente, esses novos acessos constituídos pelo projeto favela-bairro facilitam a saída estratégica dos “donos do local”80, nas citadas ocasiões, visto que não é possível entrar com facilidade em viaturas, mas a saída pelo cimo dos morros é facilitada pela quebra das antigas fronteiras espaciais. Essa situação demonstra uma grande fragilidade no aspecto da segurança pública desta população, já que eles sofrem o domínio das quadrilhas nos acessos à comunidade, criando uma espécie de “liberdade vigiada”. Do mesmo modo, no exercício tirânico de uma dita “lei do morro” pelo qual o mau pagador, o alcagüete, vulgo X-9 (ou o suspeito de), o que furta e rouba quem não deve onde não deve, o que ousa reclamar da mercadoria vendida, o que confronta por alguma razão alguns dos poderosos membros das quadrilhas, deve morrer. Completando este cenário, o poder público mostrou-se tímido diante desta situação. Um dos jovens entrevistados contou como os encarregados da construção do ‘favela-bairro’ na favela em que morava, seguindo as ordens do “dono” local, interrompeu a rua que subia até a parte mais alta do morro, substituindo-a por uma escada. Por causa disso, os moradores da parte alta não podiam ter acesso por veículos até suas residências. A ordem havia sido dada para que a polícia não pudesse subir o morro. Agindo quase como se nada estivesse
80
Para entender a hierarquia das quadrilhas ver trabalhos de Alba Zaluar A máquina e a revolta. São Paulo. Brasiliense. 1985; Condomínio do diabo. Rio de Janeiro. Revan: EDUFRJ, 1994 e “ Para não dizer que não falei de samba”, em História da Vida Privada vol.IV, Cia das Letras,1998. 113
acontecendo em alguns momentos, e cedendo onde deveriam afirmar a autoridade do poder público, acabando impedindo a população de exercer seus direitos fundamentais ou humanos, tais como o “direito de ir e vir” e “o direito à vida”. Havia, ainda no caso da Serrinha, uma série de discussões em torno da construção de uma via de acesso que ligaria Madureira a Vaz Lobo, desafogando o trânsito da Av. Edgar Romero. Para isso seria preciso cortar a Serrinha integrando-a aos morros vizinhos, formando um novo complexo de morros. No entanto, com a realização desse projeto, seriam desfeitas antigas fronteiras que a Serrinha mantinha com os morros vizinhos e que não eram só fronteiras espaciais. Eram também uma fronteira cultural do local conhecido por muitos como “quilombo cultural” na preservação das raízes negras, e da cultura negra na cidade. É interessante destacar que a Serrinha foi um dos locais onde o ‘movimento funk carioca’ não conseguiu se tornar a principal fonte de lazer entre os jovens como ocorreu em outras regiões da cidade como por exemplo no morro do Borel na Tijuca. Mesmo após a atuação do arquiteto responsável pelo projeto favela bairro que se apresentava como professor de funk e defende o estilo até hoje, na Serrinha os jovens não aderiram em peso ao baile funk, como aconteceu em vários outros locais no Rio de Janeiro. Isso não impede que aconteçam freqüentemente bailes funk de comunidade. Alguns moradores da Serrinha, os mais antigos, atribuem isso esse desinteresse do jovem morador ao fato de que o funk não pertence à “cultura deles”, qual seja, a afro-brasileira. Assim o jongo e as rodas de samba estão muito mais presentes no cotidiano dos jovens dali do que o funk, principalmente se levarmos em conta a existência de projetos que absorvem os moradores mais jovens desde a década de 80. Outro entrevistado, morador de favela onde também foi realizado o projeto Favela-Bairro, foi ainda mais contundente nas críticas feitas às relações promíscuas entre o pessoal responsável e os traficantes do local. Nessa favela, a rua que estava sendo construída para chegar até o alto do morro, teve uma parte no meio destruída e substituída por uma escada de três lances muito íngreme, escorregadia, porque o 114
"dono" determinou que não podiam fazer a rua até em cima. Diz ele: "Já é errado, quem tem que ver isso é o governo. Venderam (o pessoal da empreiteira que fez a obra) material à beça para os moradores. Os bandidos disseram que a rua não podia ir até lá em cima, não fizeram. Fizeram escada no meio pra polícia não chegar lá e depois continuaram a rua lá em cima. Ali é o dinheiro do povo, derrubaram o que tinham feito. O dono do morro é que mandou. Você não pode falar nada. O próprio governo está se submetendo a isso. Quem manda no governo é a bandidagem."
No que diz respeito às relação de vizinhança, a Serrinha tem um aspecto cultural muito interessante. Nela moram migrantes nordestinos, que formam um núcleo próprio com seus locais de encontro, terreiros etc., além dos “novos”, que são aqueles que vieram do asfalto por algum motivo, ou aqueles que vieram de outros morros. Como a população favelada de Madureira aumentou e como a Serrinha valorizou-se com o projeto favela-bairro, a existência de tais novos não é surpreendente. Outro morro de Madureira observado foi o Morro São José das Pedras. Ele localiza-se próximo ao extinto Mercadão de Madureira, e ao morro da Serrinha. É o único morro de Madureira que não participou do projeto Favela-Bairro. Há uma conhecida igreja de São José em Madureira, que fica localizada no topo do morro. A favela, na época da pesquisa, estava controlada pelos traficantes que seguem o Comando Vermelho. O que evidencia a presença de estratégias quase militares do tráfico de drogas em Madureira é que, assim como na Serrinha, o morro de São José das Pedras possui um ponto máximo no seu topo controlada pelos traficantes. Coincidência ou não, ambos foram locais de cunho religioso, que proporcionam hoje ao tráfico uma visão panorâmica da entrada do morro e da movimentação de seus vizinhos Como nos outros morros, nossas entradas e saídas, fomos acompanhadas por moradores. Logo na entrada, é possível ver ‘os meninos do movimento’ na escadaria que dá acesso ao morro, conversando e observando quem entra e quem sai. A venda de drogas, segundo observações in loco, acontece logo na entrada, mas uma das
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bocas mais movimentadas fica próxima à associação de moradores. Tanto o presidente da associação de moradores quanto os moradores mais antigos adotam o discurso canônico e ilusório, também encontrado em outras favelas dominadas pelo tráfico, para disfarçar as práticas violentas dos “donos”, “gerentes”, “vapores”, “soldados” e “olheiros”. Trata-se da repetida fala de que não há violência por ali e de que a convivência é pacífica entre os traficantes e os moradores, o que não se constata nas observações locais.
5.1 - Várias percepções do que é um conflito O que se entende por conflito assume nas entrevistas diversas nuances. Pode aparecer sob a forma de uma competição legítima pelo título de melhor escola de samba, como era o caso da disputa entre Portela e Império Serrano, até como um sinônimo de violência. Um dos entrevistados, Manuel, quando perguntado se havia muitos conflitos entre os nordestinos instalados na Serrinha na década de 70 e os moradores mais antigos, o que estabeleceria uma relação entre os estabelecidos e os outsiders dentro do morro, ele me olha espantado e diz que não, “nunca houve briga, essa coisa de violência, mas às vezes a gente não se entende”. Para o sr. Francisco, a violência faz parte de todos os espaços no Rio de Janeiro atual, que se opõe ao passado, segundo ele, quase idílico: Para ele: “Antigamente ... a valentia era mais luta corporal e a arma era branca, quando acontecia assim um crime, era um alarde, coisa de outro mundo ... hoje em dia se tornou rotina, ‘mataram fulano’ ... isso é normal. Antigamente isso era coisa de outro mundo, um caso desse, todo mundo no trabalho, maior sigilo ... hoje em dia isso é normal, agora dizem eles, já se sabe até quem vai morrer, quem não vai (...) antigamente Madureira era bem melhor de se viver. E, eu tive uma boa criação ... inclusive aquelas pessoas, antigamente era mais maconha, eles não deixavam que os garotos se aproximassem deles ... aqueles malandros da antiga, estavam lá fazendo o que eles tinham que fazer, quando chegava um menino, falavam sai daqui, vai embora ... agora não ...”
Lia, sobrinha de Francisco, tem mais medo de assalto à mão armada e assalto em ônibus, apesar de ter passado por algumas situações difíceis no bairro, como a sua 116
casa ter sido invadida por policiais a procura de traficantes e seu carro roubado diante da escola de samba Portela. Citando Gilberto Velho, Hermano Vianna nos diz que “o conflito é parte constitutiva da vida social, em todas as sociedades, sejam elas consideradas simples ou complexas. O equilíbrio, quando há equilíbrio, é sempre momentâneo e precário. Existindo visões de mundo e estilos de vida contrastantes, fatos básicos de toda vida social, o conflito atuará como um pano de fundo, mesmo dos momentos considerados mais ‘equilibrados’ ou ‘pacíficos’“. (1996:178)
Nessa perspectiva, Hermano Vianna ainda afirma que “nem todos os conflitos são considerados violentos. Se assim fosse, a vida social seria particularmente inviável, um estado constante de guerra de todos contra todos. Muitas vezes os grupos ou indivíduos encontram soluções pacíficas para tornar possível, sem acabar com o conflito, sua convivência numa mesma sociedade. A vida social pode mesmo ser considerada como essa negociação constante e permanente de diferenças, conflituosas ou não, de todos os tipos”. (1996:178)
Se, na relação entre os moradores, esses conflitos tendem a soluções pacíficas, o mesmo não acontece na relação dos moradores com os poderes constituídos pela posse de armas: as polícias. Praticamente todos os entrevistados enfatizam o desequilíbrio de poder na região. A polícia civil é considerada quase sempre omissa, enquanto a polícia militar é violenta, invasiva, arbitrária e desrespeitadora dos direitos. Mas o mesmo poderia ser dito dos traficantes, também fortemente armados e que só raramente se valem dos intermediários e do diálogo na solução de conflitos entre si, e nem sempre nos conflitos em que defrontem moradores desarmados. Por conta desse desequilíbrio de poder ora ausente, ora excessivo, notamos que há transformações aceleradas na sociabilidade dos moradores e na própria constituição das redes sociais. Compreendi, pela mudança gradual dos discursos e pelas estratégias adotadas pelos atores, como eles reagem a uma batalha cotidiana, por vezes sutil que dependerá do ‘jogo de cintura’ do morador; por vezes violenta, quando então não há negociação possível e resta à comunidade tão-só aguardar uma trégua na violência.
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Como foi dito no primeiro capítulo, as linhas ferroviárias dividem Madureira em três partes. No terceiro lado, que vai sair em Vaz Lobo, Turiaçu e Rocha Miranda, esta divisão geográfica é mais visível. Além dessa divisão física, há a divisão territorial imposta pelos comandos do tráfico, comandadas por traficantes que já estenderam seu domínio das favelas ao asfalto. Os moradores da cidade são autoridades quando o assunto é a divisão territorial feita por diferentes facções do tráfico de drogas no Rio de Janeiro - o Comando Vermelho, o Terceiro Comando e o ADA (Amigo dos amigos). Também há leis próprias que regem estas facções, suas diferenças e a inimizade mortal entre elas são de conhecimento público. Os pontos de venda de drogas estão divididos entre essas facções em toda a cidade do Rio de Janeiro, e Madureira é mais um bairro fragmentado quando há guerra. Do viaduto Negrão de Lima dá para ver o Morro São José das Pedras e a rua Conselheiro Galvão, que vai direto para Turiaçu. Descendo o viaduto encontramos uma rua com entrada para quatro morros e favelas diferentes e com acesso para mais duas. É assim a Avenida Ministro Edgar Romero. De um lado, o acesso para o Morro São José das Pedras e para a Serrinha. De outro para o Morro do Sossego, mais conhecido como Cajueiro, e o complexo Buriti - Congonhas, todos com tráfico de drogas agindo e cada um com um comando diferente e fazendo o seu tipo de lei, todos mutuamente inimigos. Uma rua que em alguns momentos chega a ter abriga inimigos figadais que lutam para matar ou morrer. É assim Madureira hoje.
5.2 - As transformações da rede social É possível, dentro do conceito de redes sociais, que os indivíduos façam parte de mais de uma rede, e tenham, inclusive, diferentes inserções em cada uma delas, criando laços sociais. É possível ainda manter estas diferentes inserções em sigilo e manter contato com outras redes externas ao seu grupo social. Quando falamos das redes do jongo e do samba, falávamos principalmente de um estabelecimento na Serrinha, que não impedia e não impede que as pessoas de 118
diferentes localidades se visitem, mantenham relações e participem dessas redes, por amor ao jongo e ao samba, contribuição aos diferentes projetos ou como um apreço pela arte. O primeiro impacto causado pela fragmentação do território é o enfraquecimento dessas redes e como esse enfraquecimento modifica a vida cotidiana. Não estou falando de uma diferença inconciliável entre morro e asfalto e sim em diferentes espaços controlados por diferentes facções do tráfico de drogas, no mesmo bairro. A pergunta principal é como ficam as relações de amizade quando os amigos e parentes moram no território do inimigo? Como funciona esta lógica – a de não poder estar junto em público para não sofrer retaliação do traficante, as brigas entre pessoas de bairros diferentes ou sequer poder andar com liberdade no espaço que se habita? No trabalho de campo, tive algumas oportunidades de perceber quão séria era para os traficantes a lógica de uma guerra pelo controle dos pontos de tráfico na região. No dia-a-dia, as interdições territoriais são pouco faladas, mas as histórias, mesmo diferentes, são recorrente em um único ponto: é capital não passar por inimigo ou informante para o traficante do outro comando ou X-9, e até, se possível, evitar o trânsito no território inimigo. A primeira pessoa a falar claramente que um morro estava em guerra com outro foi uma antiga funcionária da associação de moradores do morro vizinho, o São José das Pedras. Numa conversa, ela começou a falar da violência dizendo que foi difícil a adaptação ao trabalho e como havia aprendido a não ver determinadas coisas. O aprendizado veio rápido e da forma mais inesperada possível. Quando ela começou a trabalhar na Associação dos Moradores, ‘os meninos’ foram lá saber quem era ela e de onde era. Perguntaram se ela era da Serrinha, e como ela não mora por ali respondeu que sequer sabia onde era. Perguntaram de onde ela era e, ao responder, foi sabatinada sobre o seu bairro, que fica em São João de Meriti. Para ela, isso significou um teste, primeiro para provar se ela estava mentindo ou não e, como conseqüência, para saber se eles podiam ter confiança nela, se ela não seria um 119
empecilho para o trabalho deles. Logo, ela percebeu como funcionava a dinâmica local e qual seria sua estratégia para permanecer ‘invisível’. Em grande parte, isso se deu por conta de um acontecimento anterior, que havia estabelecido uma relação de rivalidade entre os morros - aquele no qual, ela trabalhava e a Serrinha -, e que esta rivalidade se refletiria nas relações de vizinhança entre os morros e nas próprias redes sociais existentes no local. Segundo relato - Um morador de São José das Pedras encomendou um botijão de gás de cozinha a um fornecedor da Serrinha. O entregador, que era morador da Serrinha, foi executado logo na entrada do morro. Isso gerou um medo grande em habitantes de outros morros de Madureira, que freqüentavam principalmente a Igreja de São José das Pedras. A Igreja de São José das Pedras, cantada no samba de Beto sem Braço e Zeca Pagodinho81, protegeria não apenas os habitantes do morro, como os da proximidade e nela os habitantes do bairro se reuniriam principalmente nos dias de festa. No dia 1º de Maio de 2001, no meio de meu trabalho de campo, fui lembrada das rivalidades decorrentes das diferenças dos comandos. Como o dia do trabalho é comemorado durante todo dia dentro da Igreja e são muitos os devotos de São José, perguntei a uma moradora da Serrinha se ela compareceria às comemorações, ao que ela me respondeu: ‘antes eu participava todo ano, mas que agora tenho medo de subir o morro São José, porque sou da Serrinha’. Terceiro relato - Numa outra ocasião, acompanhando a rede do samba, saímos da Serrinha por volta das 23h 45min em direção ao Império Serrano, para acompanhar uma das eliminações do samba-enredo. Chegaríamos de ônibus à quadra em 15
81
É de Madureira, São José / É de Madureira / São José, Tu protejas a Serrinha / Que felicidade a minha / Eu poder te contemplar / Tua Capela é tão bela, enfeita o morro / Mas quem te pede socorro / Não é só quem vive de lá / Que te agradece / Por ser tão bem assistido / E ter sempre conseguido / Tantas glórias a teus pés / Quem sobe o morro / Carregando lata d’água / Solta o riso, esquece a mágoa/ Faz do samba brincadeira (É de Madureira ...)
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minutos, mas o ponto de ônibus fica na entrada do morro do Sossego (com um outro comando, na época) o que tornou nossa espera insegura e apreensiva. Do mesmo modo, os jovens do São José das Pedras que gostam de funk não podiam ir ao baile da entrada da Serrinha devido à rivalidade entre os comandos do tráfico que dominam os morros. Minhas primeiras entrevistas na Serrinha tocavam invariavelmente em dois fatores preponderantes nas relações dentro do morro: o respeito entre os moradores e a ausência de negociação com os donos do tráfico de drogas no local. Diminuiu-se, assim, devido ao medo, o contato com os amigos e com a família. Esse medo se justifica porque, na prática, os marginais de ontem não são os bandidos de hoje. Havia no passado uma distância entre os que exerciam a atividade ilegal e a população, e não havia motivos reais para se ter medo. Shirley, líder comunitária fala da distância como elemento da relação de distância e respeito, que, segundo ela, nortearia essas relações na Serrinha. “Antes a gente não tinha acesso, tinha muito menos, as pessoas tinham vergonha, quer dizer o viciado tinha vergonha de fumar na sua frente, cheirar na sua frente. Hoje ele é mais aberto ele faz, ele acha que ele é a autoridade máxima então ele faz, mas aqui na Serrinha aqui tem uma coisa de bom, aqui há um respeito. Mesmo que você veja um viciado fumar e cheirar, se você fala com ele, ele atende. O que você não vê em outros lugares, até porque eu visito outras comunidades e vejo isso, se você fala, comenta, eles acham que você está se metendo na vida deles”.
Pelo menos três fatores ficam patentes no discurso de Shirley. A primeira, é o retorno ao passado como meio de explorar o presente. Na comparação entre que existiu e o existente, a memória há uma clara preferência pelo passado, quando estamos
falando
das transformações
sociais
a
uma
rejeição
do
presente,
principalmente no que tange às mudanças sócio-geográficas82. O outro ponto sempre me chamou a atenção nas conversas e entrevistas: a relação de distância que 82
Especificamente na Serrinha, a memória dos tempos passados é ainda mais idílica, aceitável ou preferível quando o assunto é o samba antes, o jongo antes, as relações sociais antes, e, principalmente, a diferença nas manifestações da violência. “Eles só roubavam caminhão de gás”, “o problema era só os tiroteios”, “podia-se andar com tranqüilidade no morro”, etc. 121
algumas pessoas dizem manter do tráfico de drogas.
Frases como “eles nos
respeitam”, “nós não criamos convênio com estes meninos” são bem corriqueiras em seus discursos. A primeira vez que tocamos claramente nesse assunto, foi em uma conversa com três gerações de mulheres de uma família sobre a vida na Serrinha e as diferenças que elas percebiam existir com os morros vizinhos. Até então esse assunto passava ao largo quando aparecia, e as pessoas não falavam sobre isto por mais alguns momentos. Em outras entrevistas, o que ficou claro foi a negativa a se fazer acordos com o tráfico, ou melhor, a firmeza de não se deixar intimidar. É necessário que se compreenda essa afirmação, pois uma vez tendo negociado, cedido, aceito ou participado de alguma ação do tráfico ou com o próprio traficante dificilmente alguém poderá negar uma segunda vez. O meio termo não é muito bem visto. É verdade que esse discurso parte tanto dos moradores mais antigos, alguns com mais de 60 anos quanto de seus descendentes, mas podem vir de alguns moradores mais novos. São pessoas que nasceram e foram criadas no local, criaram ali; avós, pais, filhos e netos que acompanharam toda a transformação das relações entre as famílias, da vizinhança e, principalmente, as formas de violência. Para Shirley: “As memórias da Serrinha são muito lindas. E eu acho que essa história vem de um respeito muito grande, até porque a Serrinha não tem muita gente nova, é 10%, e 90% são tudo antigos da comunidade, eu acho que isso passa muito respeito, eles crescem, vêem essas pessoas, que eles não respeitem muito no interior, mas no exterior deles mostram um pouco mais de respeito”.
A princípio, pensei que esse discurso fosse uma idealização do que seria a real relação entre esses atores. Após alguns meses, percebi que me enganara. Quando se tem alguém de sua rede de relações envolvido no tráfico, não fazer “convênio” torna-se uma forma de manter o respeito e a distância, “não misturar as estações”. Uma forma de impedir que utilizem drogas no morro, que façam “ponto” no portão de suas casas ou exponham suas armas a quem passe no local, seja criança ou adulto. Isso era, até há pouco tempo, uma maneira de se marcar a posição no espaço.
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Afirmar “eu sou mais velho, estou aqui há mais tempo, minha autoridade é legítima” para se opor ao “mais novo, recém chegado, minha autoridade está na arma que carrego”. Tal como o samba de Nelson Cavaquinho “quem diz, não mente, nas mãos de um fraco (o que precisaria das armas), sempre morre um valente”. Isso se tornou ainda mais claro quando os chefes passaram a ser designados de fora do morro pelos comandos e não mais jovens crescidos e criados na favela, um morador como todos, portanto, passível de negociação. A própria pesquisa encontrou transformações bruscas. A mudança rápida e violenta de comandos implica uma instabilidade muito grande para os moradores. Como ouvimos de um entrevistado em Madureira: “você dorme Comando Vermelho, acorda Terceiro (Comando)”, as regras não apenas são negociadas no dia-a-dia, como são feitas conforme as leis locais, impostas pelo atual “dono” [“da boca” ou “, do morro”] (Zaluar:1998, isto é, o) ou traficante. Se antes havia respeito e distância, porque o chefe do tráfico da ocasião havia jogado bola na infância com um percussionista local ou com o sobrinho do presidente da associação de moradores, isso agora é raro, pois o comando do tráfico muda rápido e seu líder local geralmente vem de fora. Outra transformação na rede são os efeitos do tráfico de drogas para sobre as relações familiares. Sobretudo, o afastamento da rede próxima de parentes e amigos causado pelas drogas ilícitas, presente na distinção clara nas entrevistas entre o “nós” e o “eles”, que marca as posições de usuários e traficantes e dos demais moradores dentro da comunidade. Quando a dependência química atinge uma pessoa, de qualquer classe social, atinge de um modo ou outro os que estão mais perto e, a partir daí, a rede também pode entrar em processo de enfraquecimento. Tal como o vício atinge o dependente químico, atinge também a toda família, que passa a viver em função da droga, com um comportamento análogo ao do dependente. Esse processo, o que é chamado por Giddens (1993) de co-dependência. Não é raro que os familiares abandonem as suas atividades para viver em função 123
do dependente - “se dedicar a ele” , “cuidar dele” -, agravando o quadro doméstico. Alguém da família toma as rédeas da casa, redistribuem-se as responsabilidades do dependente químico, que passa a ser tratado como um incapaz. Se há problemas como dívidas com traficantes, envolvimentos com o tráfico, ou comportamento violento aliado às armas, a situação pode piorar muito. Falando das mortes de amigos e vizinhos causadas pelo uso e o tráfico de drogas, Pedro, ex-morador da Serrinha, afirma que eles estão “Se envolvendo no mundo do crime, eles estão acabando cedo, rápido... Eu tenho muitos amigos e senhoras amigas que são mães de meninos, os netos que se envolveram nesta vida agora e tudo, eles não estão vivendo o tempo necessário para viver, estão acabando na faixa de... não chegam aos 30, enveredam aí nos seus 15 anos e com seus 20, 22, 25 anos se desfazem, acabam na frente da bala da polícia, do marginal, eles mesmo que se destroem... quando não é pela violência em si, é pelas drogas”.
Lia, ex-moradora da Serrinha e freqüentadora do Império Serrano, percebe que a violência gerada pelas drogas está pondo em risco a rede social da sua família. Referindo-se aos sobrinhos, conta que eles não levam amigos para casa para não expô-los a situação de risco: “Até pra trazer um amigo de escola eles não trazem, quando tem algum trabalho de pesquisa, alguma coisa, eles vão até a casa do amigo, dependendo também de onde mora ou vão pra uma biblioteca, não dá mais não...Abrir a porta da sua casa, você vê é difícil. Difícil porque você expõe o filho dos outros, porque você sabe que lugar é perigoso, pode acontecer alguma coisa, você traz uma criança, de repente o que acontece com aquela criança, aí fica difícil”.
5.3 – As transformações no Jongo e no Samba “Hoje, os trabalhadores pobres, que criaram essas variadas organizações vicinais e nelas conviveram, assistem ao esfacelamento de famílias e associações, tão importantes na criação da cultura e na conquista da autonomia moral e política”. Alba Zaluar, 1998:290
O samba e o jongo em Madureira tiveram que criar suas próprias estratégias para não ser engolidos pelo tráfico de drogas da região.
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No jongo, a estratégia foi a de enfatizar o aprendizado da cultura negra, em projetos sociais que dessem oportunidade de criação para as crianças e adolescentes envolvidos, criando novas redes sociais, profissionalizando os alunos e aumentandolhes a auto-estima. Ambos os projetos vistos (o ReCriar, extinto em 1999, e o Centro Cultural Jongo da Serrinha, fundado em 2000) revelavam a consciência de sua responsabilidade social e buscavam socializar os atores envolvidos dentro de sua própria história. Enfim, não se limitavam ao jongo, mas também ofereciam aulas de música e dança, como no caso do projeto ReCriar e aulas de capoeira, maculelê e percussão, no caso do CCJS. Segundo Dyonne Boy, coordenadora de projetos sociais do Grupo Cultural Jongo da Serrinha: “A formação é baseada nessa cultura afro tradicional, que foi muito massacrada pela cultura de massa e muito desvalorizada pelos padrões globalizados, americanizados. A gente faz esse resgate, fala de folclore trabalha com maracatu, com coco, com maxixe, que são danças brasileiras. A cultura trabalhada aqui é trazida de casa pelas crianças, é a vivência delas — da avó que dançava o Jongo ou do garoto que está no candomblé desde criança e toca tambor super bem. A aula de dança afro primitiva é um sucesso. O samba já é o jeito de corpo. É diferente se tivéssemos a proposta de entrar com o balé clássico. É legal, mas tivemos o movimento de buscar o que já existia ali e fomentar.”
Segundo consta na reportagem, a maior parte da verba do projeto vem da Prefeitura, embora a estrutura (Centro Cultural e Grupo Cultural) sobreviva muito em função de uma grande rede de apoiadores e do trabalho voluntário. “São apoios, doações, fazemos campanhas em colégios e conseguimos material pedagógico, brinquedos. Temos uma creche lá na Serrinha, que fez um ano e tem 150 bebês. Recentemente, fizemos uma campanha de fraldas. Ou seja, é sempre uma colcha de retalhos de parceiros que se faz para conseguir preencher a demanda de atendimento. Assim, nosso trabalho foi sendo muito bem avaliado, pois conseguimos montar uma rede de voluntários com pouquíssima verba (...) se você se insere numa comunidade de baixos salários se depara com milhares de deficiências, e elas não acabam. Por exemplo, surge uma criança que tem um talento incrível para a dança e, se ela tem irmãos, acaba trazendo todo mundo. Assim, você se vê entrando naquele universo da mãe, do pai, da família. É complicado, porque a gente se propôs a mexer no problema social brasileiro, e isso não tem fim. Precisa-se de dentista,
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ginecologista, alimentação melhor, precisa-se de tudo.” (Luiza Nascimento, in: O jongo vai ao teatro, agosto de 2003)
No Império Serrano, não há uma relação direta entre a escola de Samba e o tráfico de drogas. Para uma das fundadoras, “como existe o tráfico de drogas, o mesmo se faz presente na Escola de Samba, por meio dos freqüentadores, mas não há possibilidade de entrar com armas na quadra”. Para um antigo presidente “quem tiver seu vício eu não posso proibir, mas quem estiver dentro da escola não usa”. Já um exmestre de bateria mandava que cada um se responsabilizasse pelo outro, já que “na bateria é o lugar onde estas coisas (uso de drogas) acontecem”. São dois os aspectos paradoxais das políticas das escolas em relação ao tráfico de drogas ilegais. Oficialmente as escolas de samba, nesse bairro como em outros, não permitem o uso de tóxicos em suas dependências. Mas muitos dos seus ritmistas, puxadores de samba e integrantes de ala utilizam drogas ilegais, sobretudo a cocaína83. Muitos membros da escola estão indiretamente envolvidos com o tráfico, seja por amizade ou parentesco – podendo exercer ou não o papel de mediadores na relação entre fornecedor e consumidor. Outros usam antes de ir para os ensaios ou para o desfile no Sambódromo. Na concentração das escolas na avenida Marquês de Sapucaí, é possível observar o uso discreto das drogas ilegais e o consumo aberto das legais, como o álcool e o tabaco. As escolas também podem ter certo envolvimento com o tráfico, visto que contam com o dinheiro do “dono do morro” para ajudar a promover e financiar seus desfiles e fantasias luxuosas, como fizeram os bicheiros a partir da década de 60 (CAVALCANTI, 1995). Há membros do tráfico que participam algumas alas, sobretudo da bateria. Ao ser eleita presidente da escola, uma das primeiras providências de Neide
83
Informações de entrevistas, observações e conversas informais. 126
Coimbra foi pedir que, quem fosse envolvido com drogas, por uso ou tráfico, e que tivesse amor à escola, ou que não a usasse para fazer seus negócios, ou que saísse. Conversou principalmente com as pessoas que ela sabia que podiam prejudicar a administração e as atividades da escola se houvesse uma relação, mínima que fosse, entre as drogas ilegais e a mesma. O Império, assim como o jongo, mantém atividades para a população dentro da sua quadra. Segundo Neide Coimbra “Esse trabalho nós estamos fazendo há muito tempo, nós estamos com a Comunidade Solidária, nós já tivemos vários projetos aqui dentro. Nós já formamos turmas de cabeleireiro, manicura, limpeza de pele, costura. Nós já fizemos várias formaturas aqui (...). Nós fizemos um curso também com meninos de rua, esses meninos que ficavam embaixo do viaduto de Madureira. Era sobre máscaras, eles tinham que fazer uma máscara do rosto deles, então eles chegavam aqui, nós tínhamos uma ajuda, né, eles vinham, eles chegavam de manhã, tomavam banho, café da manhã, trocavam de roupa, eles tinham uniforme, com a camisa com o nome da escola e tudo. Eles tomavam café, almoçavam, passavam o dia aqui duas vezes na semana, entendeu? Eles aprenderam a fazer máscara, acharam a máscara muito interessante e depois os que se saíram melhor, os primeiros colocados, eles ganharam uma casa, para eles conviverem com pais adotivos, para eles poderem trabalhar e nós noutro dia tivemos a surpresa, veio um aí e está ótimo ... ‘ah, tia, que bom ... eu vim aqui para saber como a senhora está’ ... eu fiquei olhando, menina, eu fiquei assim ... sabe, de boca aberta, por que eu tive a maior surpresa com ele. Você sabe o que é a pessoa mudar da água para o vinho? Ele era menino de rua de cheirar cola debaixo do viaduto de Madureira ... ele falou: ‘olha, eu agradeço muito, tia. Esse curso que eu vim fazer aqui, e os pais que eu ganhei, tudo aquilo, minha vida mudou’, quer dizer, isso é bom você ouvir, né?”
A estratégia do Império Serrano para 2003 foi cantar em seu enredo uma quase oração. “Onde houver trevas que se faça luz”, era um pedido especial, já que a escola foi duramente atingida no ano de 2002 com o assassinato do seu Mestre de Bateria, Macarrão, pelos traficantes do Morro da Serrinha. Para 2004, a reedição do sambaenredo Aquarela do Brasil (1964), de Silas de Oliveira foi muito bem recebido não só pelos componentes da escola, como pelos foliões em geral. No samba e no jongo, talvez possamos contar com dias melhores. Ao que parece é a esperança nos conduz e a luz começa a substituir as trevas. Desse modo, a alegria não nos abandona e o samba não morre...
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Uma possível conclusão “As trevas, as ervas daninhas, as pragas, os homens de mal 84 vão desaparecer nas cinzas de um carnaval ”. (João Nogueira e Paulo César Pinheiro)
Nesta conclusão gostaria de desatar alguns nós que porventura tenham surgido sobre as redes de Madureira. O bairro é identificado, tanto pela sua história, quanto pela sua produção cultural, como um bairro musical e de forte presença negra. Essa identificação é dada por dois motivos: o primeiro é a existência da sociabilidade via música, não no sentido simmeliano, mas no sentido corrente de cotidiano e interação. A presença do samba e das manifestações e instituições ligadas a ele têm forte influência no cotidiano dos moradores. A presença do jongo em Madureira fortalece esta visibilidade. É uma simplificação identificar Madureira apenas como um subúrbio, musical e negro, pois enquanto o conceito de rede social dá conta das transformações na musicalidade do bairro a filiação étnica – negros bantos originando o jongo e sua autenticidade passando necessariamente por esta via - não se sustenta e não significa necessariamente que os argumentos utilizados para a defesa de um (o jongo), sejam os mesmos utilizados para a defesa do outro (o samba). A discussão da origem do jongo como banto e a repetição acrítica de conceitos utilizados no século XIX por ambos os grupos não se repete quando o assunto é samba. Os conflitos no samba não se enunciam da mesma forma, já que o samba na sua história pouco foi monopólio dos seus fundadores, o que tem se tornado ainda mais visível nos últimos anos. A sobrevivência da escola de samba se daria na medida em que os fundadores e seus descendentes se tornassem referência dentro da escola e tivessem um grau de respeitabilidade e voz nesse processo, reforçando uma tradição posta, mas pouco ou nada utilizada. 84
As Forças da natureza, de João Nogueira e Paulo César Pinheiro. Ed. SIGEM (ADDAF) 70395895. 128
Em relação à existência de um tráfico de drogas violento e delimitador de territórios, que altera todas as relações, não só de convivência dentro da rede, mas na relação dela com o mundo exterior, já que não se pode mais transitar dentro dos morros com facilidade e entre os morros com segurança, vai afetar diretamente a vida social e cultural. Pude constatar isso quando eu estava terminando a própria dissertação. Uma festa no Centro Cultural Jongo da Serrinha foi desmarcada em cima da hora por um conflito entre traficantes do morro e policiais, tornando o evento temerário. Pelos mesmos motivos foram cancelados os ensaios de rua do Império Serrano para o carnaval de 2003, cujo enredo pedia luz para uma fase de trevas85 e 2004, que reeditava Aquarela do Brasil, um grande sucesso de Silas de Oliveira. Outra conseqüência que pode ser notada é o propósito das atividades. Se antes havia a sociabilidade no sentido simmeliano – pura, sem interesses imediatos ou grandes problemas estruturais – hoje este movimento tende a acabar. Maria Alice Rezende Gonçalves afirma que: “As escolas de samba podem ser entendidas como associações que inicialmente se restringiam a relações primárias, envolvendo pessoas que se conheciam entre si. Ao longo do tempo tornaram-se associações formadoras de redes sociais que incorporam estranhos, cujo objetivo final seria a distribuição de bens baseada em critérios amplos de justiça, ou seja, critérios que vão mais além dos locais, característicos das associações onde predominam os laços de amizade, vizinhança e parentesco” (GONÇALVES, 2002: p.25).
As escolas de samba - inclusive o Império Serrano - estão mais conscientes dessa transformação; cada vez mais o sentido da socialização se apresenta: se antes a existência do jongo e do samba contava com a confraternização e a união dos moradores, hoje, boa parte dessa existência passa pela criação de projetos sociais e culturais, que não apenas dariam conta de manter a divulgar a história da escola de samba e do jongo no Rio de Janeiro e legitimando o papel de pólo cultural de 85
Essa analogia foi incansavelmente esgotada ao longo do carnaval, associando a violência de Madureira e os conflitos internos do Império Serrano com ‘a treva’, que só poderia ser superada com luz e esperança. 129
Madureira, como criaria alternativas à entrada de uma população jovem e pobre para os quadros do tráfico de drogas.
d O último capítulo desse trabalho se chamaria “A guerra tudo muda”, mas a guerra não muda tudo. Seria assumir uma atitude derrotista e dar a treva uma importância absoluta que ela não merece. Alguns valores ainda prevalecem e a própria existência do samba e do jongo no bairro, apesar de todos os conflitos e tensões que permeiam suas relações, demonstra bem a dualidade do conflito. Mesmo com todas as críticas que se possa fazer ao mercado e ao espetáculo que as escolas de samba se tornaram, mesmo que haja críticas aos projetos relacionados ao jongo e uma tensão entre o que é tradição, o que é inovação tanto no jongo como no samba, a dedicação, solidariedade que transparece no trabalho (por vezes voluntário) de alguns sambistas e jongueiros e no amor que os mesmos têm pela sua arte e cultura, reforça essa impressão. A guerra não altera todas as relações da comunidade e em alguns raros casos até as fortalece. É o que já se nota na retomada das escolas de samba pelos seus componentes, no novo prestígio das velhas guardas, na recuperação das raízes afro brasileiras na cultura local e no trabalho de prevenção e tratamento da violência entre os jovens realizados formal e informalmente nas escolas de samba, no Centro cultural do Jongo da Serrinha e na própria Serrinha. Já há luz no final do túnel.
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(Vagalume).
Na
roda
de
samba.
RIO
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JANEIRO:
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