A Ditadura na Avenida

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Apresentando sambas,enredo com temas gratos ao regime militar, a escola de samba Beija, Flor de Nilópolis, presidida por um contraventor, conquistou o seu lugar no Carnaval carioca

"Brasil no ano 2000", enredo da Beija-Flor no Carnaval de 1974: naquela década, a agremiação foi insrrumento para a associação entre política, jogo do bicho e festa popular

m 1975, uma pequena escola de samba da Baixada Fluminense, a Beija-Flor de Nilópolis, entrou na avenida com um enredo intitulado "O grande decênio". Exaltava as realizações da primeira década do regime militar implantado no país 11 anos antes. Dizia o samba, composto por Bira Quininho: " É de novo Carnaval/ Para o samba este é o maior prêmio/ E a Beija-Flor vem exaltar/ Com galhardia/ O grande decênio/ Do nosso Brasil que segue avante/ Pelo céu, mar e terra/ Nas asas do progresso constante/ Onde tanta riqueza se encerra (bis)! Lembrando PISe PASEP/ E também o FUNRURAL (bis)/ Que ampara o homem do campo/ Com segurança total".

Este enredo deu à escola de Nilópolis o apelido de "Unidos da Arena" (referência ao partido governista, Aliança Renovadora Nacional), que a perseguiria por bom tempo e que seria alimentado por um certo ressentimento vindo de setores do mundo do samba e da intelectualidade progressista, devido ao sucesso que a Beija-Flor faria nos anos seguintes, ocupando espaços antes restritos às agremiações tradicionais. Mas como é que esta associação entre a então pequena escola da Baixada e a ditadura militar se iniciou? Ao longo de sua história, as escolas de samba do Rio de Janeiro passaram por diversas mudanças que, em escala menor, refletiam as transformações políticas, econômicas e sociais vivenciadas pela so-


~H ciedade brasileira nos últimos setenta anos. Dos primeiros concursos oficiais da década de 1930, na velha Praça Onze, ao carnaval-espetáculo das "superescolas S/ N' na Marquês de Sapucaí, os desfiles das agremiações carnavalescas cariocas foram d eixando de lado a espontaneidade original e se transformaram em um gr ande negócio, que movimenta anualmente muitos milhões de reais, tornando-se o ponto alto do calendário turístico da cidade. Boa parte dessas transformações aconteceram a partir da década de 1960, e foram modificando aos poucos o perfil original do universo das escolas de samba. Com a oficialização cada vez maior dos desfiles, transformados em evento turístico da cidade, iniciouse o processo de "profissionalização" das escolas. Um exemplo disto foi a gravação dos sambas-enredos das futebol-, por um lado atendia às novas necessidades escolas do primeiro grupo, a partir do final da década das escolas de samba geradas pelas mudanças ocorride 1960, que rapidamente se transformou num negó- das nos desfiles oficiais, por outro fornecia aos "patrocio bastante lucrativo. Além disto, novas regras para os nos" urna aceitação social e urna "respeitabilidade" que desfiles- como o tempo-limite (197 1) - vão sendo es- eles normalmente não teriam. Do ponto de vista ecotabelecidas, dando-lhes, gradualmente, o seu formato nômico, o patrocínio às escolas de samba também era atual. É nesse contexto que os desfiles do Grupo I co- um bom negócio, já que o dinheiro gasto pelos banmeçam a ser transmitidos pela televisão- no momen- queiros de bicho no Carnaval poderia ser deduzido do to em que estavam se formando as primeiras grandes imposto de renda, nos termos da Constituição de 1967. redes -, com as emissoras passando a exercer de forAssim algumas escolas, sem qualquer melindre, dema bastante efetiva urna forte ingerência sobre eles. senvolverem seus enredos preocupando-se principalDa mesma maneira, neste lento promente em agradar os governantes da cesso de surgimento do carnaval-espeRepública, instalados no poder após o O ingresso do táculo, assistiu-se nas décadas de 1960 e movimento militar que destituiu o bicheiro Aniz Abraão presidente João Goulart, em 1964. 1970 à penetração cada vez maior de David na Beija~Flor Embora esse fato não fosse novo - o segmentos da classe média nas escolas, deu resultados Estado Novo também soube se utilizar gerando o que muitos críticos chamam imediatos: em 1973, de "embranquecimento do samba': politicamente dos desfiles-, foi durandepois de um te a ditadura militar que esse governisOutro fato novo desse período foi o mo explícito se tornou mais constante. surgimento da figura do "patrono da modesto sexto lugar escola" - espécie de mecenas que, com Esses fenômenos - a "adesão" de no ano anterior, a algumas escolas ao novo regime, o os custos cada vez maiores dos desfiles, escola se sagrou "embranquecimento" do samba, a passou a fmanciar boa parte das despevice~campeã do "profissionalização" dos desfiles e a sas das agremiações. Este papel vai ser Grupo 11 exercido geralmente pelos grandes banentrada da contravenção no patrocínio queiros do jogo do bicho que, ao patrodas agremiações - em seu conjunto cinarem as escolas das áreas em que eles controlavam causaram grande impacto sobre o mundo do samba. o jogo, fortalecem os seus vínculos com a população É óbvio que o regim e instaurado em 1964 não deilocal e aumentam sua influência sobre ela. Esta ligação xou de perceber o potencial dos desfiles - da mesma com a escola de samba local, associada a trabalhos de maneira que já o percebera no futebol. Isso servia à "assistência social" realjzados pelos contraventores, faz legitimação ideológica de seu projeto perante as cacom que eles passem a ser reconhecidos como benfei- madas populares, utilizando o samba para divulgar tores da comunidade e a exercer de fato urna lideran- uma imagem favorável de si. Por outro lado, aos novos "patronos" das escolas de samba interessava soça - inclusive política - em sua região de atuação. Se a associação de figuras da cúpula da contraven- bremaneira, por motivos óbvios, agradar aos en tão ção com o Carnaval- e muitas vezes também com o detentores do pod er. Não é de se estranhar então que

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Nelson Abraão David, o Nelsinho, discursa durante inauguração de uma creche em Nilópolis, observado pelo irmão, Anisio, acompanhado de )oãosinho Trinta, em 1982: a contravenção também se legitimava através do assistencialismo


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Ao lado, propaganda ufanista do governo militar na década de 1970, quando compositores como Bira Quininho (à direita) escreveram sambas alinhados com o discurso oficial da ditadura

enredos de caráter ufanista, nos padrões usuais da máquina de propaganda governamental, comecem a aparecer com alguma freqüência entre as agremiações do Rio de Janeiro, principalmente durante os anos do chamado "milagre brasileiro", entre 1968 e 1973. A Beija-Flor surgiu em 1948, como bloco carnavalesco, no pequeno município de Nilópolis, na Baixada Fluminense, área pobre e de grande densidade demográfica situ ada na região metropolitana da cidade do Rio de Janei ro. Em 1954, já como escola de samba, participou do desfile do Grupo II do Rio de Janeiro, sagrando-se campeã e garantindo o acesso ao Primeiro Grupo, onde permaneceria até 1960, quando foi rebaixada. Durante a década seguinte, a escola teve trajetória bastante irregular, com um constante sobe-e-desce entre os Grupos II e III. Foi no final dessa década que se iniciou a aproximação entre a família Abraão David e a Beija-Flor. O processo culminaria com a ascensão de Aniz Abraão David, o Anísio, à condição de "patrono", e seu irmão, Nelson Abraão David, o Nelsinho, à de presidente da escola, em 1972. De o rigem libanesa, a família Abraão David- e seus ramos colaterais- exercia, desde o início da década de 1960, uma forte influência política em Nilópolis, com diversos de seus membros ocupando cargos eletivos nos legislativos municipal, estadual e federal, além da prefeitura local, por diversas gestões. No entanto, o mais conhecido dentre eles é Anísio Abraão, atual pre-

sidente de honra da Beija-Flor e um dos banqueiros de bicho de maior destaque no mundo da contravenção. Nos primeiros anos da década de 1960, a família abrigada na UDN e, depois do golpe de 1964, na Arena -disputava espaço na política mun icipal com ou tras forças, ganhando e perdendo eleições. Por outro lado, Anísio- que era só mais um entre os diversos pequenos banqueiros de bicho existentes no Rio de Janeiro de então- ainda não tinha a influência que passaria a ter no mundo da contravenção na década seguinte. A adesão imediata dos David ao novo regime fez com que sua influência na politica local fosse aumentando gradualmente. Percebendo a "legitimação social" que isto daria aos seus negócios, bem como a possibilidade de consolidar a hegemonia de sua família na política municipal, Anísio Abraão aproximou-se cada vez mais da escola de samba local, que possuía uma forte identidade com a população nilopolitana. O ingresso de Anísio na Beija-Flor deu resultados imediatos: em 1973, depois de um modesto sexto lugar no ano anterior, a escola se sagrou vice-campeã do Grupo II e retornou, depois de 13 an os, ao Primeiro Grupo, com o primeiro de uma série de enredos exaltan do o regime militar, "Educação para o desen volvimento". O samba de Walter Oliveira e João Rosa dizia: "Brasil terra extraordinária/ Venham ver a nossa/ Cidade universitária/ Uni -duni-tê/ Olha o A-B-C (bis)/ Graças ao MOBRALI Todos aprendem a ler".


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Assumir o papel de apologista da ditadura militar era o desdobramento lógico da entrada da família Abraão David na Beija-Flor de Nilópolis. Já para o regime, que nos anos do "milagre" investiu maciçam ente na propaganda de tom ufanista, abria-se mais um canal para a divulgação de seu projeto político-ideológico e para a ampliação de sua influência junto aos setores populares. Assim, no Carnaval de 1973, o jornal O Globo do dia 4 de março noticiava que, segundo informações de dirigentes da Beija-Flor, "o ministro Jarbas Passarinho ficou entusiasmado com a iniciativa da escola". Em 1974, mais uma vez a Beija-Flor faz um enredo patriótico/ufanista, "Brasil no ano 2000", que parecia ter sido produzido pelos órgãos de propaganda do regime, tamanha a fidelidade ao discurso oficial de então: "É estrada cortando/ A mata em pleno sertão/ É petróleo jorrando/ Com afluência do chão': A escola assumiu aí a crença no "Brasil-potência", tão cara aos ideólogos da ditadura, e cantou os "avanços" e o "desenvolvimento" ocorridos no Brasil pós1964. Porém, se por um lado esta "adesão" da BeijaFlor ao regime atendeu aos interesses políticos e às opções ideológicas de seus dirigentes, por outro ela foi vista, por muitos de seus componentes, a partir de uma perspectiva mais pragmática. No "Caderno B" do Jornal do Brasil de 12 de fevereiro de 1975- ano do já citado enredo "O gran-

de decênio"- um dos diretores da escola afirmava tratar-se de "um tema sério que exalta a revolução e por isto está destinado a tirar o primeiro lugar". No entanto, tal estratégia - se efetivamente existiu não parece ter sido bem-sucedida: com exceção do vice-campeonato do Grupo II, em 1973, os enredos ufanistas só renderam à escola de Nilópolis dois modestos sétimos lugares. Tais enredos só serviriam para render à Beija-Flor o rótulo de "escola oficial do regime"- a "Unidos da Arena"- e a conseqüente antipatia de setores da intelectualidade e da própria mídia. Isto pode ser percebido pelo tom irânico de alguns comentários presentes na citada matéria do Jornal do Brasil, publicada na Quarta-feira de Cinzas. Ao relatar a entrada da escola, o jornalista escreve: "Se uma escola surpreendeu foi a Beija-Flor. De pé na Avenida, às primeiras horas da manhã, desfilou de azul e branco embora boa parte do público esperasse que viesse de verde e amarelo': Mais adiante, ironiza o desconhecimento dos componentes em relação a algumas questões presentes no enredo. "Bira Quininho, autor do samba, foi o único a dar uma explicação exata de PASEP, entre palmas da escola, pela sua sabedoria e grau de informação:' É somente em 1976, quando Anísio Abraão resolve investir grandes somas na escola que tinha decidido "adotar", que a Beija-Flor efetivamente entra no fechado círculo das grandes escolas cariocas. Tendo

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Para saber mais ARAÚJO. Hiram.

Carnaval: seis milénios de H1stória. Rio de janeiro: Gryphus. 2003. CABRAL. Sérgio. As es-

colas de samba do Rio de jane1ro. 2a.ed. Rio de jane1ro: Lumiar, 1996. FREIXO. Adnano de e MUNTEAL. Oswaldo (orgs.). A ditadura em

debate: estado e soCiedade nos anos do aucoritansmo. Rio de Janeiro: Contrapomo. 2005. QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Carnaval brasileiro: o viv1do e o m1to. São Paulo: Brasiliense, 1999.

Desfile da Beija-Flor na Marquês de Sapucai, Carnaval de 2004: a escola só se tomou grande quando a contravenção a "adotou• e passou a mvestir grandes quantias nas alegorias monumentais


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Anísio em momento descontraído com o prefeito César Maia durante o desfile de 2002: o banqueiro do jogo do bicho soube se aproximar da Beija-Flor durante a ditadura, conseguindo uma boa inserção política na Baixada Fluminense

contratado o carnavalesco Joãosinho Trinta, campeão havia mudado. A aproximação entre o jogo do bipelo Salgueiro no ano anterior com um enredo abso- cho e as escolas de samba, iniciada no começo dos lutamente original, ''As minas do rei Salomão'; a esco- anos 70, se consolidou na década de 1980, princila de Nilópolis deixa de lado os enredos ufanistas e sa- palmente após a fundação da Liga Independente gra-se campeã com um enredo, não por acaso, sobre das Escolas de Samba (LIESA), em 1984, com o obo jogo do bicho, "Sonhar com rei dá leão", que inau- jetivo de cuidar da parte comercial dos desfiles, em gura uma nova era no desfile das grandes escolas do todos os seus aspectos. Esta entidade, que surgiu como a representante oficial das granRio de Janeiro. A imaginação exubedes escolas - e onde os "patronos" rante e a originalidade do carnavalesco Para o regime militar dessas escolas terão grande influên- que vê o desfile como uma grande abria~se mais um cia - , assumiria o controle de todas "ópera popular" - manifestam-se em canal para a as fases do desfile, da organização à alegorias monumentais e fantasias ludivulgação de seu xuosas que inauguram a era das "supeexecução, em uma perspectiva de projeto polític~ "modernização" do Carnaval dentro rescolas de samba" e fazem com que a de uma ótica empresarial. Beija-Flor de Nilópolis quebre o moideológico: os nopólio das quatro grandes - Portela, O desfile se tornou assim um esenredos da Beija~Fior petáculo para os setores mais abastaMangueira, Império Serrano e ampliavam sua dos e para os turistas nacionais e esSalgueiro- que, desde 1939, se revezainfluência junto aos vam vencendo o Carnaval carioca. trangeiros. Os grandes responsáveis setores populares por ele - os moradores dos morros e O desfile das escolas adquiriu, enda periferia - estão cada vez mais autão, o seu formato atual. Nos anos seguintes, as demais escolas assimilam o "padrão sentes da avenida. A maioria vê a passagem das esBeija-Flor"- gigantismo, luxo, exuberância visual- colas pela TV, por não ter como pagar o alto valor onde o sambista, muitas vezes, passa a ser um mero cobrado pelos ingressos. m figurante do desfile, como bem destaca o samba-enredo de 1982 do Império Serrano, "Bumbum pati- Ao RI A N O D E F R E I XO é doutorando em História Social na cumbum prugurundum": "Superescolas de samba UFRJ e professor do CEFET-Rf. Lu 1z EnM UNDO TAVA R E S é S/A/ Superalegorias/ Escondendo gente bamba/ professor de História do Brasil e chefe do D epartamento de Que covardia!". Efetivamente, o Carnaval carioca História da UER].


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