ESCOLA DE SAMBA “EMBAIXADA COPA LORD”, FLORIANÓPOLIS: ENSINO E APRENDIZAGEM MUSICAL NA BATERIA Áurea Demaria Silva aureademaria@hotmail.com
Resumo: O presente trabalho é resultado de uma experiência de pesquisa realizada nos ensaios da bateria da escola de samba Embaixada Copa Lord, durante o carnaval de 2002, em Florianópolis. A pesquisa objetivou, através da observação das práticas musicais deste grupo, compreender os processos de ensino e aprendizagem de música no contexto de preparação do carnaval. Nesse sentido, o trabalho enfoca as estratégias utilizadas pelos mestres de bateria e “batuqueiros” para a transmissão de conhecimentos musicais, considerando: a) os processos de criação musical dos “breques” e das “levadas”, isto é, do arranjo do samba; b) a importância do gestual, oralidade e imitação na construção de saberes musicais durante os ensaios da bateria. Para realizar tal interpretação, dialoguei com a etnografia realizada por Prass (1998), que procurou desvelar aspectos da pedagogia nativa na escola de samba. Junto a este, acrescento os trabalhos de Araújo (1992), Goldwasser (1975), Leopoldi (1977) e Sodré (1998) que são fundamentais às discussões sobre o samba e enfatizam a importância das escolas na construção da identidade e resistência da cultura negra em nossa sociedade. Para entender os processos de ensino e aprendizagem busquei uma aproximação e convívio com a bateria da escola, utilizando técnicas etnográficas: observação participante, entrevistas livres, semi-estruturadas, gravações em áudio, vídeo e fotografia. O trabalho de campo foi realizado entre dezembro de 2001 a maio de 2002, nos ensaios e festas da escola. Desta pesquisa resultou meu trabalho de conclusão do curso de Licenciatura em Música na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC).
O presente trabalho é resultado de uma experiência de pesquisa realizada nos ensaios da bateria da escola de samba Embaixada Copa Lord, durante o carnaval de 2002, em Florianópolis. A pesquisa objetivou, através da observação das práticas musicais deste grupo, compreender os processos de ensino e aprendizagem de música no contexto de preparação do carnaval. Nesse sentido, o trabalho enfoca as estratégias utilizadas pelos mestres de bateria e “batuqueiros” para a transmissão de conhecimentos musicais, considerando: a) o ensino e aprendizagem dos “breques” e das “levadas”, isto é, do arranjo do samba enredo; b) a importância do gestual, oralidade e imitação na construção de saberes musicais durante os ensaios da bateria. Para realizar tal interpretação, dialoguei com a etnografia realizada por Prass (1998), que procurou desvelar aspectos da pedagogia nativa na escola de samba. Junto a este, acrescento os trabalhos de Small (1997) e Dantas (2001) pelas discussões acerca das vivências musicais em espaços não institucionais onde ocorrem práticas musicais. Para
entender os processos de ensino e aprendizagem busquei uma aproximação e convívio com a bateria da escola, utilizando técnicas etnográficas: observação participante, entrevistas livres, semi-estruturadas, gravações em áudio, vídeo e fotografia. O trabalho de campo foi realizado entre dezembro de 2001 a maio de 2002, nos ensaios e festas da escola. Desta pesquisa resultou meu trabalho de conclusão do curso de Licenciatura em Música na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Introdução O presente trabalho é resultado de uma experiência de pesquisa realizada nos ensaios da bateria da escola de samba Embaixada Copa Lord, durante o carnaval de 2002, em Florianópolis. A pesquisa objetivou, através da observação das práticas musicais deste grupo, compreender os processos de ensino e aprendizagem de música no contexto de preparação do carnaval. Nesse sentido, o trabalho enfoca as estratégias utilizadas pelos mestres de bateria e “batuqueiros” para a transmissão de conhecimentos musicais, considerando o ensino e aprendizagem dos “breques” e das “levadas”, isto é, do arranjo do samba enredo e a importância do gestual, oralidade e imitação na construção de saberes musicais durante os ensaios da bateria. Para realizar tal interpretação, esta pesquisa dialoga principalmente com os trabalhos de Prass (1998) e Dantas (2001), que refletem as particularidades das práticas musicais em espaços não formais como o ambiente da escola de samba1. Além disso, busquei relacionar o fazer musical da bateria da escola de samba com o conceito de música proposto por Small (1997) 2. Por entender a performance3 como atividade central da vivência musical, Small propõe que a palavra música seja transformada no verbo “musicar”. Assim, nos aproximamos mais da idéia de música como algo que acontece nas pessoas enquanto elas estão tocando. As pessoas presentes em um ensaio de escola de samba – ou qualquer momento de performance – cantam e dançam, em uma atitude de participação, junto com os músicos que estão atuando.
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“Saberes Musicais em uma bateria de escola de samba” (PRASS, 1998) e “O tamborim e seus devires na linguagem dos sambas de enredo” (DANTAS, 2001). 2 Para este autor, o significado da palavra música está mais relacionado com a atuação musical do que com as obras musicais. Ele afirma que a música não existe se não há performance, contrariando o pensamento ocidental da música erudita, que atribui maior importância às obras musicais, colocando em segundo plano a performance vivenciada pelos músicos. 3 Neste caso, o conceito de performance não está relacionado à exibição de técnica ou virtuosidade, mas sim a um encontro onde pessoas vão cantar, tocar, ouvir, dançar e compartilhar de um momento musical (SMALL, 1997, p. 5).
Quer dizer, todos estão atuando, partilhando da vivência musical, e afirmando a música como uma prática social (SMALL, 1997). O cenário da pesquisa: a escola, a bateria, os ensaios A Embaixada Copa Lord foi fundada no ano de 1955, por sambistas que freqüentavam o Morro da Caixa, uma das localidades pertencentes ao Morro da Cruz, no centro de Florianópolis. A sede da escola fica localizada na comunidade do Mont Serrat, também no Morro da Cruz, atualmente identificada como a comunidade da Copa Lord. A escola tem como símbolos uma carta de baralho (Às de Copas), uma cartola, uma bengala e um par de luvas brancas. As cores da escola são amarela, vermelha e branca. A bateria tinha cerca de cento e cinqüenta componentes e era coordenada por dois mestres de bateria: Tico e Carlos Alberto (Carlão). A idade dos integrantes da bateria durante o carnaval de 2002 variou entre quatorze (idade mínima permitida) até sessenta anos. Os mestres de bateria tinham ambos vinte e nove anos. Os instrumentos de percussão utilizados na bateria foram: surdo (de primeira, segunda e terceira), repinique, tarol, chocalho e tamborim. Acompanhavam a bateria cinco “puxadores”4 do samba, duas “pastoras”5 um violão de sete cordas, um cavaquinho e às vezes uma cuíca (que era amplificada). Observouse que os integrantes da bateria vinham de vários bairros da cidade, mas grande parte residia na comunidade do Mont Serrat ou em outras regiões próximas do Morro da Caixa. A maior parte dos integrantes da bateria era de origem negra, inclusive os mestres de bateria. Os ensaios da bateria aconteceram, na sua maioria, no Largo da Alfândega, espaço que fica entre o Mercado Público e o prédio da antiga Alfândega, no centro da cidade6. Para a realização do ensaio, era necessária uma estrutura de equipamentos e de pessoas, que ia muito além da bateria. Não existia um palco fixo para os puxadores do samba e os outros instrumentistas de cordas (violão, cavaquinho), de modo que a estrutura física era montada e desmontada todos os dias. Os ensaios aconteciam de segunda à sexta feira, geralmente a partir das nove horas da noite, finalizando pouco antes da meia noite. Por volta das sete horas da noite, já começava o movimento dos integrantes das escolas, e também daqueles que iam para assistir aos ensaios. Este movimento aumentava gradativamente até o início do ensaio. Além da Copa Lord, outros dois grupos ensaiavam na Praça da Alfândega, no mesmo horário. A escola de 4
Puxadores: são os homens que cantam o samba no ensaio e no desfile. Pastoras: são as mulheres que cantam o samba no ensaio e no desfile. 6 Ver Figura 1 em anexo. 5
samba Protegidos da Princesa ensaiava em frente ao prédio da Alfândega, e o bloco Rastafari, atrás deste mesmo prédio. Nem todas as atividades da bateria aconteceram na Alfândega. Os ensaios técnicos foram realizados na passarela do samba “Nego Querido”. Procedimentos metodológicos Considerando o ambiente da escola de samba – ensaios, festas, reuniões e demais atividades – como o campo principal para coleta de dados, foram utilizadas as seguintes técnicas etnográficas: observação participante e entrevistas semi-estruturadas. Também foram realizadas gravações em áudio e vídeo, com a finalidade de fazer um registro visual e sonoro dos ensaios. O objetivo da minha participação nos ensaios foi tentar observar, no comportamento das pessoas ali presentes, aspectos que ajudassem a entender o processo de ensino e aprendizagem dos instrumentos da bateria. Para tanto, seria necessário um convívio intenso com os integrantes da bateria da Copa Lord, participando de todos os seus momentos de encontro. Este convívio intenso se deu através do meu ingresso na bateria da escola, o que caracterizou a observação participante. Tocar na bateria foi fundamental para a pesquisa, pois pude acompanhar mais de perto a rotina dos ensaios e o processo de aprendizagem pelo qual passavam os “batuqueiros”7 da Copa Lord. Além disso, o meu próprio processo de aprendizagem dos instrumentos de percussão contribuiu muito na tentativa de responder à questão central que mobilizou esta pesquisa: como as pessoas aprendem a tocar os instrumentos na bateria da escola? Para obter dados mais aprofundados sobre o que pensavam os batuqueiros da Copa Lord, realizei entrevistas semi-estruturadas8 durante as observações na bateria. O roteiro elaborado para as entrevistas contemplava os seguintes tópicos: nome; idade; como se aproximou da escola de samba/carnaval; como ingressou na bateria; há quanto tempo participa da bateria; qual/quais instrumentos toca na bateria; como/com quem aprendeu a tocar os instrumentos da bateria; como acha que as outras pessoas fazem para aprender a tocar os instrumentos; qual o instrumento mais difícil da bateria; o que acha mais importante no momento do ensaio; como se sente no momento do ensaio. O roteiro elaborado para a
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Batuqueiros: termo utilizado pelos mestres de bateria para designar os instrumentistas participantes deste grupo. As entrevistas com os batuqueiros foram realizadas ao longo do período de ensaios. Aconteceram sempre no Largo da Alfândega e antes do início dos ensaios, no momento de preparação do local do ensaio. A entrevista com os mestres da bateria aconteceu após a realização do desfile (maio de 2002) na casa do mestre Carlão.
entrevista com os mestres, além dos tópicos citados acima continha questões relacionadas à composição do arranjo do samba enredo e às etapas de organização e condução do ensaio. As estratégias de ensino e aprendizagem musical na Embaixada Copa Lord No primeiro ensaio da bateria, os mestres mostraram aos batuqueiros a levada9 de cada instrumento, isto é, mostraram o papel que cada um teria no conjunto. Neste dia, ensinaram a levada do tarol, do surdo e do repinique. Eles tocavam e os batuqueiros observavam e depois repetiam. Após o ensino do tarol passou-se para o surdo – de primeira, segunda e terceira. Porém, o ensino dos surdos não ocorreu separadamente. Os batuqueiros que tocavam o surdo entraram tocando junto com os batuqueiros do tarol e, uma vez tocando juntos, não se tocava mais separadamente. Quando os mestres precisavam retomar a levada do tarol, sempre pediam para que alguns batuqueiros participassem tocando surdo e repinique. Neste momento notei que a levada de um instrumento ajudava na aprendizagem do outro, de modo que uma levada precisava da outra para fazer sentido. No trecho abaixo, Dantas (2001) argumenta que a diversidade de instrumentos e timbres presente na bateria de escola de samba é fundamental para o enriquecimento do processo de aprendizagem musical: A polirritmia presente na bateria torna rica a experiência do ritmista. Um arranjo para uma bateria de escola de samba é organizado a partir da superposição das batidas dos naipes de instrumentos, de forma a se ter uma polifonia rítmica. Isso proporciona ao ritmista o contato com outros naipes, com seus timbres diferenciados [...] com as diferentes acentuações [...] com os improvisos [...]. A imersão nessa paisagem sonora faz com que se desenvolva a musicalidade do ritmista, no que tange à escuta vertical, à concentração e à execução (DANTAS, 2001, p. 22).
O ensino dos breques10 ocorreu também no primeiro ensaio da bateria. Na verdade, este foi o momento de aprender o samba enredo em si, uma vez que os mestres mostraram como as levadas se encaixavam na música e em qual lugar da letra do samba apareceriam os breques. Os mestres tinham uma estratégia para o ensino dos breques, que foi observada por mim e depois confirmada na entrevista que fiz com eles. No momento da aprendizagem a 9
Levada: padrão rítmico básico em um determinado estilo musical. Ver os padrões rítmicos básicos executados pela bateria da Copa Lord na figura 2 em anexo. 10 Breques: são ritmos diferentes do padrão básico que ao serem executados durante o samba enredo exercem uma espécie de contraste. São denominados muitas vezes de “paradinhas”. Ao longo do samba enredo da Copa Lord eram realizados dois breques. Ver os breques executados pela Copa Lord nas Figuras 3 e 4 em anexo.
primeira coisa a fazer era ouvir, e isto fica claro na fala do mestre Carlão: “nós vamos fazer o breque e essa galera que já tá ligada vai passá pra vocês e vocês vão só prestar atenção no que a galera vai fazer. Não tem pressa, vamos fazer cinco, seis, sete, oito, dez vezes, até devagarzinho todo mundo aprender” (Gravação em vídeo, 08/01/2002). Essa “galera que já estava ligada” no breque era formada por batuqueiros da comunidade que participavam de uma espécie de equipe de apoio dos mestres. Eram mais ou menos cinco ou seis pessoas que aprenderam o breque anteriormente, para chegar no ensaio e tocar para os outros. A composição deste grupo contemplava todos os naipes de instrumentos da bateria, para que os batuqueiros ouvissem todas as levadas ao mesmo tempo, com exceção do tamborim. Os mestres tinham a preocupação de que as pessoas entendessem como se fazia cada breque corretamente, então insistiam para que os batuqueiros ouvissem primeiro. Na primeira execução do samba, participaram apenas os mestres e a “galera que já estava ligada”, acompanhados dos puxadores, cavaquinho e violão. Os batuqueiros, enquanto ouviam a bateria, não conseguiam se conter e esperar para aprender os breques. Tentavam de alguma forma acompanhar a música que estava acontecendo. Mas os mestres, para garantir que os toques saíssem de acordo com a vontade deles, chamavam a atenção dos batuqueiros, pedindo para que eles ouvissem primeiro. Se em algum momento nos ensaios, os puxadores não estivessem cantando o samba, os mestres sempre cantavam. Nunca deixavam a bateria tocar sem que a música estivesse sendo ouvida. Por isso, além de cantar, os mestres sempre pediam para que os batuqueiros também aprendessem a cantar o samba enredo. Ao observar esses momentos, notei que saber cantar a música era essencial para o aprendizado dos breques. Em conversas com os batuqueiros e também com os mestres, percebi que estes possuíam suas estratégias para ensinar e, os batuqueiros, suas estratégias para tentar aprender os breques e as levadas. Nem sempre os mestres tinham controle sobre “todos” os processos de ensino aprendizagem que aconteciam nos ensaios. Além de coordenar, organizar os ensaios e cuidar da postura física dos batuqueiros, para os mestres era fundamental saber mostrar a maneira correta de tocar cada instrumento. Segundo os mestres, a demonstração de cada toque só deveria ser feita por eles. O grupo que mostrou o breque para os batuqueiros no primeiro ensaio não estava autorizado a ensinar os toques individualmente dentro da bateria. O papel deste grupo era apenas tocar o breque em conjunto, pois os dois mestres não conseguiriam fazer isto sozinhos.
Observamos, então, dois tipos de estratégias utilizadas pelos mestres para o ensino dentro da bateria. Um deles relativo ao ensino dos breques, onde eles tinham o apoio de alguns batuqueiros para a realização de seu objetivo. E o outro, relativo ao ensino das levadas de cada instrumento, onde somente os mestres deveriam ensinar aos batuqueiros. Neste ensino, eles tinham preocupação de que os toques soassem da maneira correta, como era o caso do tarol (que no início possuía muitas levadas distintas). Por isso, se eles ensinassem, existia uma probabilidade maior de os batuqueiros tocarem a mesma levada. Por outro lado, os batuqueiros tinham suas maneiras de aprender a tocar os instrumentos. Entre estas maneiras estava presente a figura dos mestres de bateria, como podemos notar no trecho que segue: Eu, eu aprendi observando, mas ali eu vejo também que o mestre da bateria ensina alguém a tocar também. Pergunta - Ele ensina? Como é que ele faz? Ah, ele vai mostrando os toque, e a pessoa vai fazendo, se não conseguiu pegar, ele vai lá e ensina de novo até a pessoa pegar. (Entrevista, 22/01/2002).
Os mestres sempre percebiam quem estava tocando errado no meio da bateria. Aproximavam-se do instrumento de quem estava tocando errado e mostravam novamente a levada. Porém, com a quantidade de batuqueiros os mestres não poderiam ficar muito tempo ensinando uma só pessoa. Então, os batuqueiros tentavam aprender entre si, apenas observando: “aprendi olhando, vendo os outros tocar, pegava o instrumento e ficava treinando. Pelo som dos outros, eu tentava fazer o mesmo som no meu”11. Percebe-se que as estratégias de ensino e aprendizagem tinham os gestos, a imitação e a comunicação oral como recursos para a transmissão dos conhecimentos no momento do ensaio. Este tipo de prática já havia sido observado em estudos relativos a escolas de samba (PRASS, 1999; DANTAS, 2001) e também em estudos relativos a atividades musicais em espaços não institucionais (ARROYO, 2000). Observei a importância dos gestos em vários momentos de ensino e aprendizagem dentro da bateria. Nos momentos de regência, o gesto era utilizado pelos mestres de bateria, no intuito de sinalizar mudanças durante a execução do samba enredo: CARLOS - A intenção é...A importância é chamar a atenção deles, dos batuqueiros, e fazer a sinalização na hora da virada, tá tudo no gesto né.
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Entrevista, 07/02/2002.
TICO - É como se fosse um maestro. CARLOS - Quando nós falamo ali, pô é isso aqui, vamos fazer o breque, eles já tão sabendo se nós levantar a baqueta aqui vai ser o breque, aqui ó, vai embora continua tocando. TICO - Se nós fizer isso aqui ó, já sabe que é pra parar. Tu sabe agora né. [risos]. É tudo como no gesto, é gesto, nós só fazemos gesto. Às vezes a gente faz um molho no apito, pi, pi, pi. Como o maestro, o maestro faz isso aqui, o maestro pede pra baixar, a orquestra né, baixa, então nós ali, é no mesmo...Só que é diferente, nós não somos maestro né. Somos mestres de bateria.
A bateria, em seu conjunto, só desempenhava uma ação nova se fosse acionada pelos gestos dos mestres de bateria. Os batuqueiros sempre seguiam a indicação do último gesto dos mestres até o surgimento de uma nova indicação para a mudança. Além da regência, ainda havia o gesto realizado pelos mestres no momento da coreografia12. O mestre Carlos Alberto se juntava à fila da frente com o braço levantado e iniciava a coreografia junto com os batuqueiros. O gesto indicador da coreografia se expressava com o corpo inteiro. Os mestres também utilizavam os gestos no ensino dos ritmos utilizados nos breques e nas levadas. Mesmo sem estar com o instrumento na mão, eles faziam o movimento dos braços e reproduziam vocalmente a sonoridade relativa de cada timbre. No caso do tamborim, o mestre Tico executava todo o arranjo apenas com a sua baqueta de regência, também sem utilizar o instrumento. Na tentativa de aprendizado dos batuqueiros, a imitação era um importante recurso utilizado. O processo de imitar o outro era, na verdade, a imitação do gesto que tocava o instrumento. Era muito comum ver os batuqueiros tocando seu instrumento ao mesmo tempo em que olhavam para quem estava ao lado. Durante o meu aprendizado no tamborim, várias vezes toquei olhando para o lado. Primeiro, para aprender as levadas e depois para conferir se eu estava tocando corretamente, isto é, fazendo o mesmo gesto que os outros. Sobre este aspecto da imitação, Prass afirma que: A imitação, muitas vezes ligada à repetição, é um dos recursos principais para o aprendizado, comportando tanto o processo de mostrar por parte dos ensaiadores ou dos ritmistas mais experientes, quanto o de observar com atenção sonora e cineticamente alguém que é tido como modelo (PRASS, 1999, p.14).
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A coreografia da bateria da Copa Lord consistia em andar (quer dizer dançar) três passos para frente e depois voltar ao lugar, repetindo este movimento mais ou menos oito vezes. Essa dança era realizada pela bateria inteira.
Os batuqueiros aprendiam por meio desse convívio, durante o período dos ensaios. Mesmo que os mestres tivessem a preocupação de estar mostrando todos os toques, eles não eram os únicos a ensinar. Os batuqueiros aprendiam observando os mestres e também observando outros batuqueiros. Não existia somente um detentor do saber como no ensino institucional de música. O saber está na vivência musical do grupo. Nenhum batuqueiro precisava se colocar na condição de “mestre” para ensinar. Bastava tocar seu instrumento para que os outros pudessem apreciar seus movimentos. O contexto social da bateria: contribuições para as discussões acerca do ensino e aprendizagem de música “Eu via o meu pai tocar, que o meu pai também era de escola de samba” 13 Quando eu perguntava aos batuqueiros, nas entrevistas ou em conversas informais, sobre como tinham aprendido a tocar os instrumentos de percussão, a maioria respondia primeiro que aprendeu sozinho. Depois de conversar um pouco mais é que eles começavam a falar e explicar o que era esse “aprender sozinho”. Com isso, percebi que para eles não interessava pensar nisso naquele momento, ou eles nunca pararam para pensar sobre como aprenderam. Saber tocar era algo “natural” para eles de modo que algumas vezes pensei estar fazendo uma pergunta que ali não fazia sentido. Mesmo assim, busquei através deste convívio, entender o que queria dizer “aprender sozinho”. Ao perguntar aos mestres de bateria como aprenderam a tocar os instrumentos não sabiam como explicar detalhadamente. Nas palavras de mestre Carlão: “brincando, batendo, não sei, acho que é um dom”14. Mas seu pai tocava tarol e ele conta que desde que era muito pequeno se lembra de ir ver o carnaval com sua mãe. Percebi que a aproximação dos mestres com o carnaval aconteceu sob forte influência das pessoas da família que, de alguma forma já participavam do carnaval e da escola de samba. Assim como os mestres, os batuqueiros que residem na comunidade também deixavam transparecer em suas falas a influência da família na construção de uma relação com a escola ou com o carnaval, como me disse Marcos15: Eu, desde quando eu era criança, sempre acompanhava o meu pai, em tudo quanto era lugar que ele ia, referente a Copa Lord, então aprendi a gostar de carnaval quando o meu pai me levava sempre pra vê as alas. [...] Então desde 13
Eloir em entrevista, 04/02/2002. Entrevista, 02/05/2002. 15 Entrevista, 04/02/2002. 14
que eu conheço como gente, eu já faço parte do carnaval, por isso que eu amo a Copa Lord, desde o início, eu acho que isso, ser Copa Lord, eu acho que já tem que vim de berço.
Nos ensaios da Copa Lord, podíamos notar a presença representativa das crianças. Nos momentos de intervalo do ensaio, as crianças se aproximavam dos instrumentos e tentavam tocar, imitando os batuqueiros. Isto atenta para um tipo de aprendizado que acontece através do convívio com os familiares. Prass (1998), em seu trabalho também se refere a estes aspectos da aprendizagem quando escreve que “o pessoal quando chega na bateria já ‘sabe’ tocar porque viu e ouviu quando ainda usava fraldas e vinha para escola no colo da mãe, porque o pai tocava na bateria” (PRASS, 1998, p.142). “Quando a gente tá ensaiando, a gente sente que tá na avenida16” A expectativa em relação ao desfile era uma unanimidade entre os participantes da bateria. As conversas geralmente eram cheias de euforia o que demonstrava uma certa ansiedade quanto à chegada do dia do desfile e a preparação da escola para este evento. Sem dúvida, o dia do ano mais importante para a escola de samba é o dia do desfile. Nas palavras de mestre Tico: “carnaval pra nós é como se fosse uma Copa do Mundo. É melhor do que a Copa do Mundo”17. Toda essa euforia em relembrar desfiles dos anos anteriores ou ficar imaginando como será o próximo é sempre muito carregada de emoção. A emoção está diretamente ligada à sensação de estar desfilando na avenida: “O cara sente. Na avenida, né Tico. O que o cara sente na hora do desfile ali é fora do normal, se o cara não tem um controle...”18. A vontade de “ganhar o carnaval” fazia com que, além dos mestres, os batuqueiros da Copa Lord também tivessem opiniões a respeito da preparação da bateria para este dia. Quando em entrevista, eu perguntava a opinião deles sobre o ensaio, muitos deles relacionavam diretamente com o desfile19: Acho que o ensaio pra mim, desde o início, quando começa o ensaio até o final, eu toco sério, eu gosto de seriedade, acho que é um trabalho, se tiver fazendo...se não tiver levando de uma maneira séria aqui, na passarela também não vai levar, então acho que o trabalho começa na seriedade. Se começa sério aqui, vai. Se for um trabalho certo aqui, lá na passarela vai ser também certo. 16
Edilson em entrevista, 29/01/2002. Entrevista, 02/05/2002. 18 Entrevista, 02/05/2002. 19 Entrevista, 04/02/2002. 17
Sabendo desta preocupação com o êxito da escola no dia desfile, os batuqueiros, tanto os novos quanto os mais antigos, se empenhavam ainda mais para aprender os breques e o samba enredo. Nas palavras de Júnior, que com quatorze anos já toca todos os instrumentos da bateria, “o ensaio da bateria é um local onde a gente tem que prestar atenção e aprender a batida pra poder sair no carnaval”20. Quer dizer, estava claro que para permanecer na bateria e desfilar pela escola, era necessário alcançar um objetivo nada simples: aprender a tocar o samba enredo. “Livre, bate o tambor21” Para ingressar na bateria da Copa Lord, não era necessário comprovar nenhuma habilidade prévia, a não ser a vontade de querer entrar. Conversando com os batuqueiros, nenhum deles mencionou algum tipo de teste quando do seu ingresso na bateria. Em entrevista, os mestres disseram que não existia nenhum tipo de critério para entrada das pessoas na bateria. Nas palavras de mestre Tico, “fica ali aberto, vai lá e pega o instrumento, mas só tem que fazer o que a gente pede”22. Neste trecho, um dos batuqueiros fala sobre a importância de se ter uma oportunidade para ingressar na bateria: Eu acho que a pessoa aprende quando ela tem um interesse e a pessoa [...] e o mestre de bateria diz assim "pô, essa pessoa tem um interesse, eu vou dar uma chance pra ele", então aí ela tem mais condições de aprender, por que teve uma chance de tá ali, então quando tu tens uma chance de participar a tua chance é maior de aprender, tu não vais aprender, se tu não vai participar. (ENTREVISTA, 04/02/2002).
“Dar uma chance” mostra que o espaço da bateria é aberto e as pessoas têm a oportunidade de pegar os instrumentos e tentar aprender. Em função desta liberdade, e informalidade, os batuqueiros tinham a possibilidade de experimentar vários instrumentos. Nos ensaios eu percebia que as pessoas mudavam de instrumento, via as mesmas pessoas experimentando instrumentos diferentes. Esta liberdade de poder tocar todos os instrumentos tem muita importância para o processo de ensino e aprendizagem. Em entrevista, os mestres disseram que, quando uma pessoa não está conseguindo tocar determinado instrumento eles oferecem outro. Dessa forma as pessoas podem tentar se adaptar ao instrumento e tem mais uma chance de permanecer na bateria.
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Entrevista, 17/01/2002. Trecho do samba enredo da Copa Lord para o carnaval de 2002. 22 Entrevista, 02/05/2002. 21
Porém, essa liberdade não quer dizer que qualquer pessoa, mesmo não sabendo tocar, pode permanecer na bateria até o dia do desfile. Esta liberdade quer dizer que as pessoas têm a oportunidade de tentar aprender, durante um determinado tempo. Mas quando começa a se aproximar o dia do desfile, os mestres são obrigados a fazer os cortes, para que a escola não seja prejudicada no dia do desfile. Conclusões Este texto procurou apresentar alguns aspectos da vivência musical da bateria escola de samba Embaixada Copa Lord com a intenção de apontar para a existência processos de ensino e aprendizagem de música durante a preparação deste grupo para o desfile de carnaval. Os momentos de ensino e aprendizagem observados expressaram que as formas de se relacionar com a música na bateria são caracterizadas pela oralidade e imitação, sendo que o gestual do corpo tem importância fundamental neste processo. Esse tipo de prática musical, muitas vezes não é valorizado nos espaços institucionais, onde, para o aprendizado da música é necessário o domínio da escrita musical e diversos conhecimentos teóricos que antecedem a vivência musical. Segundo Small, A música popular [...] é por sua própria natureza contrária ao espírito da educação formal, e não é de se surpreender que alguns dos melhores músicos tenham chegado ao sucesso sem instrução formal, aprendendo música tocando e imitando outros músicos. Toda a cultura da música popular é avessa ao tipo de padronização na qual são baseados os exames. A música popular não incentiva a imobilidade, o isolamento e a concentração intelectual, mas sim o movimento, o envolvimento do grupo e o êxtase – tudo que é considerado errado na sala de aula (SMALL, 2002, p. 96).
Além disso, no contexto social da escola de samba observamos vários aspectos, que exerceram grandes influências no processo de ensino e aprendizagem como: a) o aprendizado musical de muitos integrantes começou com as famílias que fazem parte da comunidade da escola; b) a expectativa em relação ao dia do desfile; c) uma certa abertura aos iniciantes, pois não existia nenhum teste de aptidão para ingressar na bateria; d) a aproximação e cumplicidade estabelecida entre os integrantes da bateria após longo período de convivência. Após ter feito a experiência de participar dos ensaios da Copa Lord, consegui entender com mais clareza alguns aspectos da vivência musical dos grupos que possuem práticas musicais “não formais”. Sem dúvida, a diferença entre ler sobre estes grupos, e participar de uma vivência musical com eles é muito grande. Confrontar o meu saber musical, com o saber dos batuqueiros da Copa Lord foi algo marcante, que transformou o meu
entendimento sobre o que seria uma atividade musical. Nesse sentido, assim como os trabalhos de Small (1997), Prass (1998), Arroyo (2000) e Dantas (2001), esta pesquisa apresenta aos educadores musicais, outras prĂĄticas de ensino e aprendizagem, outras atitudes no modo de se relacionar com a mĂşsica, diferentes das utilizadas no ensino institucional de mĂşsica.
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Anexos Figura 1: Local de ensaio da bateria da Embaixada Copa Lord.
Figura 2: Levadas – padrões rítmicos básicos executados pela bateria da Copa Lord
Figura 3: Primeiro breque realizado no samba enredo da Copa Lord
Figura 4: Segundo breque realizado no samba enredo da Copa Lord