Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ Instituto de Filosofia e Ciências Sociais – IFCS Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia – PPGSA
Hugo Menezes Neto
Tem Samba na Terra do Frevo. As escolas de samba no carnaval do Recife
RIO DE JANEIRO 2014
Hugo Menezes Neto
Tem Samba na Terra do Frevo. As escolas de samba no carnaval do Recife
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de PósGraduação em Sociologia e Antropologia, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial à obtenção do título de Doutor em Antropologia. Orientadora: Profª. Dra. Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti.
Hugo Menezes Neto
Tem Samba na Terra do Frevo. As escolas de samba no carnaval do Recife
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de PósGraduação em Sociologia e Antropologia, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial à obtenção do título de Doutor em Antropologia. Orientadora: Profª. Dra. Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti.
Banca Examinadora
_____________________________________________ Prof. Dr. André Botelho (PPGSA/IFCS/UFRJ) _____________________________________________ Profª. Dra. Ilana Strozenberg (ECO/UFRJ) ____________________________________________ Profª. Dra Karina Kuschnir (PPGSA/IFCS/UFRJ) _____________________________________________ Prof. Dr. Nilton Santos (UFF)
Menezes Neto, Hugo. Tem Samba na Terra do Frevo - As escolas de samba no carnaval do Recife / Hugo Menezes Neto. Rio de Janeiro: UFRJ, IFCS, 2014. xvii. 226f.: il; 30 cm. Orientadora: Profª. Dra. Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti. Tese (Doutorado) UFRJ/IFCS, Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia. 2014. Referências Bibliográficas: f 234-243. 1. Carnaval. 2. Escola de samba. 3. Identidade. I. Cavalcanti, Maria Laura Viveiros de Castro, orientadora. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais. Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia. III. Título.
Aos meus filhos, Hygor e Lua. É por eles e para eles tudo na minha vida.
AGRADECIMENTOS
Agradecer é um verbo de amor. Conjugá-lo é como partilhar doces, afagos e poesias... Nessa jornada, contei com muitas ajudas preciosas e é esse o dado mais relevante da minha tese, por isso ser grato a tanta gente é estado de êxtase... Gostaria de agradecer, primeiramente, à Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro – a FAPERJ - pela bolsa concedida para a realização do doutorado. Aos professores do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, especialmente a Beatriz Heredia, Karina Kuschnir e André Botelho, com os quais estudei e convivi diretamente. Bem como aos professores Renata Gonçalves, Nilton Santos, Ilana Strozenberg pelas colaborações em importantes etapas do meu processo de doutoramento. Agradeço ainda à Secretaria do Programa, mesmo à distância, a equipe foi sempre atenciosa e solícita. Agradeço aos colegas da turma de doutorado 2010, com eles a convivência, embora curta, foi estimulante e prazerosa. Bem como a Valéria Aquino, Ricardo, Luciana e Bárbara, éramos um delicioso grupo de orientandos de Maria Laura. De forma muito especial agradeço à minha orientadora, Maria Laura Cavalcanti, pelo acolhimento, carinho e força desde o começo dessa caminhada até os momentos mais difíceis. Existem encontros que mobilizam nossas vidas, impulsionam-nos e fazem-nos pessoas melhores, encontrá-la teve esse sentido. Obrigado por tudo. Flores de gratidão aos amigos cariocas que conquistei e levei como herança terna e viva do Rio de Janeiro: Isis e Joba (minha primeira família carioca); Lula, Cláudio, Tex (minha outra família carioca); Kalyla, Nathalia, Carla, Priscila, Dandara, Rafael, João, Luiz, Érico... Certamente devo ter esquecido alguém. Abraços fraternos ao meu parceiro de pesquisa, George Araújo, sempre disposto a acompanhar e ajudar a feitura deste trabalho. Amigo de muitos anos e de muitas histórias, presença indispensável no campo de pesquisa e na minha vida, jamais conseguirei retribuir sua participação nesse processo. Abraço fraterno também para meu outro parceiro de pesquisa, Luiz Henrique, historiador de olhar aguçado, sempre a apontar-me as fontes e a estimular o diálogo entre História e Antropologia. E a Carmem Lélis, com quem há muito tempo compartilho trabalho, abraços e outras alegrias.
Aos amigos queridos, suporte emocional de todas as horas, ao meu lado sempre, no Rio, em Recife ou na conchinchina, apoiando, amparando, cuidando: Juninho, Brivaldo (aos dois com carinho), Marcelinho, Marcelão, Luciana, Lígia, Cris, Gleidson, Jamersom, Chico, Eduardo, Carol e Claudinha. Agradeço profundamente às escolas de samba Galeria do Ritmo, Samarina, Unidos da Mangueira, Unidos de São Carlos Gigante, Limonil e, especialmente, à Gigante do Samba, por ter aberto as portas e o coração - representada, aqui, por Marize Félix (uma amiga adquirida), Rivaldo Lacerda e Hilário Silva, pelos quais sinto, hoje, inegáveis laços de gratidão e afeto. A minha mãe, agradeço pelo reconhecimento e torcida de sempre. E a Patrícia Menezes, como agradecer? A ela devo tanto... Dedico todo o meu amor. Esvazio-me dele para morrer um pouco, é todo seu, pois sei ressuscitar por você todos os dias. Vem comigo, serei grato eternamente. Para onde? Sei lá, para qualquer lugar, quero receber teus cafunés e sentir o teu cheiro, em troca de dizer eu te amo até esvaziar...
RESUMO Esta tese consiste em uma análise antropológica sobre as escolas de samba no carnaval do Recife. Registros históricos indicam a presença dessas agremiações no Carnaval da capital pernambucana, a partir dos anos de 1930, e, igualmente, sugerem que, por serem imediatamente associadas ao repertório do carnaval do Rio de Janeiro, foram percebidas como estrangeiras, intrusas e caricaturas das originais cariocas, por intelectuais como Gilberto Freyre. Desse modo, a presença e a consolidação das escolas de samba são entendidas como ameaça ao frevo (emblema do carnaval), às tradições carnavalescas “tipicamente pernambucanas”, instaurando-se um campo de debates, ao longo do século XX, de conteúdo de extremo regionalismo, em torno das noções de tradição, identidade e pertencimento. Este trabalho pauta-se na ideia de que tais debates perdem força a partir dos anos de 1980, mas ainda incidem no imaginário e na experiência social das escolas de samba do Recife. Com efeito, esta pesquisa estrutura-se em dois movimentos analíticos amalgamados: um de cunho histórico-antropológico, para contextualização e reflexão acerca dos referidos embates simbólicos; o outro, constituído por um olhar etnográfico, a fim de não só percebermos as ressonâncias desse lastro histórico marcante, bem como compreendermos os bastidores do processo ritual do desfile, atentando para as relações entre o Rio de Janeiro e o Recife, na perspectiva dos sambistas pernambucanos. Palavras-Chave: Carnaval, escola de samba, identidade.
ABSTRACT This thesis is an anthropological analysis of the samba school in the carnival of Recife. Historical records indicate the presence of these associations (groups) at Carnaval of Pernambuco´s capital since 1930 and also suggest that, as the associations (groups) are immediately associated with the repertoire of the Carnival of Rio de Janeiro, they were seen as foreign, intrusive and caricatures of Rio's originals by intellectuals like Gilberto Freyre. Thus, the presence and consolidation of the samba schools are seen as a threat to frevo (Carnival´s emblem) and to the "typical of Pernambuco" carnival traditions, establishing up a field of debates throughout the twentieth century with extreme regionalism content, around the notions of tradition, identity and belonging. This thesis is guided by the idea that such discussions lose strength in the 1980s, but still lies on the imaginary and the social experience of the samba schools of Recife . It is structured into two amalgamated analytical movements: A historical- anthropological for contextualization and reflection about these symbolic struggles. The other, an ethnographic eye to perceive the resonances of this historic ballast as well as to understand the backstage of the parade´s ritual process, paying attention to the relationships between Rio de Janeiro and Recife in the perspective of the people who work with samba in Pernambuco. Keywords: Carnival, samba school, identity.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES Figura 1
Foto mais antiga do acervo da Gigante do Samba, década de 1970.
071
Figura 2
O Maskarado, 1949.
072
Figura 3
Diário de Pernambuco, Fevereiro de 2013.
075
Figura 4
Ensaio Bateria Mirim da Gigante do Samba.
078
Figura 5
Bateria mirim - concentração do desfile.
078
Figura 6
Aula do projeto samba e saber Agosto de 2012.
079
Figura 7
Cartaz Projeto Samba e Saber. Agosto de 2012
080
Figura 8
Documento da Lei 1363. APEJ
107
Figura 9
Festa dos Protótipos da Gigante do Samba, Setembro 2012.
157
Figura 10
Festa dos Protótipos da Gigante do Samba, Setembro 2012.
158
Figura 11
Festa dos Protótipos da Gigante do Samba, Setembro 2012.
158
Figura 12
Festa dos Protótipos da Gigante do Samba, Setembro 2012.
158
Figura 13
Festa dos Protótipos da Gigante do Samba, Setembro 2012.
159
Figura 14
Encontro para elaboração do vídeo para a Noite das Baianas, Novembro 2012.
160
Figura 15
Noite das Baianas, Gigante do Samba. Dezembro de 2012.
161
Figura 16
Noite das Baianas, Gigante do Samba. Dezembro de 2012.
162
Figura 17
Noite das Baianas, Gigante do Samba. Dezembro de 2012.
162
Figura 18 Noite das Baianas, Gigante do Samba. Dezembro de 2012. Figura 1
163
Figura 19 1 Noite das Baianas, saída da cesta, Gigante do Samba. Dezembro Figura de 2012.
163
Figura 20
Noite das Baianas, participação do Maracatu Encanto da Alegria, Gigante do Samba. Dezembro de 2012.
164
Figura 21
Preparação para o desfile, confecção de fantasias, sede da Gigante do Samba, Setembro 2012.
165
Figura 22
Preparação para o desfile, confecção de fantasias, sede da Gigante do Samba, Setembro 2012.
165
Figura 23
Preparação para o desfile, confecção de fantasias, sede da Gigante do Samba, Setembro 2012.
166
Figura 24
Preparação para o desfile, confecção de adereços, sede da Gigante do Samba, Setembro 2012.
166
Figura 25
Croquis de fantasias, sede da Gigante do Samba, Setembro 2012.
166
Figura 26
Preparação para o desfile e Festa dos Protótipos. Protótipo de fantasia. Sede da Gigante do Samba, Setembro 2012.
167
Figura 27
Preparação para o desfile. Ensaio de rua, Galeria do Ritmo, novembro de 2011.
168
Figura 28
Sede da Escola de Samba Limonil. Visita em 02/12/1012.
169
Figura 29
Quadra da Escola de Samba Samarina. Visita em 21/11/1012.
170
Figura 30
Sede Escola de Samba Unidos de São Carlos. Visita em 10/10/1012.
171
Figura 31
Preparação para o desfile. Sede Escola de Samba Unidos de São Carlos. Visita em 10/10/1012.
172
Figura 32
Sede Escola de Samba Unidos de São Carlos. Ensaio da Bateria. Visita em 10/10/1012.
173
Figura 33
Mapa do Recife
192
Figura 34
Mapa do Centro do Recife
193
Figura 35
Desfile Gigante do Samba, 2013. Av. Nossa Senhora do Carmo. Comissão de Frente.
220
Figura 36
Desfile Gigante do Samba, 2013. Av. Nossa Senhora do Carmo. Abre-Alas.
220
Figura 37
Desfile Gigante do Samba, 2013. Av. Nossa Senhora do Carmo. Alas.
220
Figura 38
Desfile Gigante do Samba, 2013. Av. Nossa Senhora do Carmo. Alas.
221
Figura 39
Desfile Gigante do Samba, 2013. Av. Nossa Senhora do Carmo. Ala coreografada.
221
Figura 40
Desfile Gigante do Samba, 2013. Av. Nossa Senhora do Carmo. Velha guarda.
222
Figura 41
Desfile Gigante do Samba, 2013. Av. Nossa Senhora do Carmo. Alegorias.
223
Figura 42
Desfile Gigante do Samba, 2013. Av. Nossa Senhora do Carmo. Mestre sala e porta bandeira.
224
Figura 43
Desfile Gigante do Samba, 2013. Av. Nossa Senhora do Carmo. Baianas.
225
Figura 44
Desfile Gigante do Samba, 2013. Av. Nossa Senhora do Carmo. Bateria.
226
Figura 45
Desfile Gigante do Samba, 2013. Av. Nossa Senhora do Carmo. Mestre da Bateria.
226
Figura 46
Desfile Gigante do Samba, 2013. Av. Nossa Senhora do Carmo. Finalização do desfile
227
LISTA DE TABELAS Tabela 01 Produção de Entrevistas
030
Tabela 02 Participação das agremiações na programação do carnaval 2013
187
Tabela 03 Escolas de samba, grupo, bairros/comunidades de origem
191
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
AESPE
Associação das Escolas de Samba de Pernambuco
FECAPE Federação Carnavalesca de Pernambuco FESAPE
Federação Escolas de Samba de Pernambuco
IAHGP
Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico de Pernambuco
IPHAN
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
PCR
Prefeitura da Cidade do Recife
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO – O Fio que nos une e nos separa
018
1.
I CAPÍTULO – Tem samba na terra do frevo
034
1.1
O Mistério do Frevo
039
1.1.1
O núcleo disseminador e a província rebelada.
040
1.1.2
O “Projeto Cultural” e o Mistério
045
1.2
Que é Pernambucanidade?
047
1.2.1
O Frevo e os sentidos da Pernambucanidade
055
1.2.2
A onda e o estado endiabrado
058
1.2.3
Transgressor dos corpos bem comportados.
060
1.2.4
Democrático, Popular e Mulato
063
1.3
Frevo, Pernambucanidade e Escolas de Samba
067
1.3.1
Os primeiros carnavais e a “Guerra às Escolas de Samba”
070
2.
II CAPÍTULO - A Batalha Frevo-Samba: Pureza e Perigo no Carnaval do Recife
076
2.1
Gilberto Freyre: Samba, Frevo e Saber
081
2.1.1
O Rio de Janeiro e o imaginário regionalista (1920 – 1940)
083
2.1.2
Gilberto Freyre, o carnaval e as escolas de samba
091
2.2
A Bibliografia do Samba e Saber: apontamentos acerca da batalha frevo-samba na ótica de Katarina Real, Valdemar de Oliveira e Ruy Duarte 097
2.2.1
Valdemar de Oliveira e Ruy Duarte: a condição de territorialidade
098
2.2.2 2.3
Katarina Real: relativizando a “batalha” 102 Episódios emblemáticos: ações e ressonâncias da “batalha frevosamba” 105
2.3.1
A distribuição da subvenção pública: a Lei 1363/1956.
106
2.3.2
A despassarelização
109
2.4
Uma batalha sem vencedores?
113
3.
III CAPÍTULO - Trabalho, criatividade e amor: um olhar etnográfico 118
3.1
A Festa dos Protótipos
120
3.1.1
Sanduíches, Malinowski, Mauss e Fantasias
120
3.1.2
O carnavalesco: “um pé lá e outro cá”
121
3.1.3
De Poseidon à Iemanjá: o enredo da ‘Gigante do Samba’ 2013
123
3.1.4
As fantasias e a “teoria da invasão chinesa”
129
3.1.5
A ‘Festa’
134
3.2
A Noite das Baianas
137
3.2.1
As baianas da Gigante do Samba: o coração da Escola
137
3.2.2
O axé das baianas em noite de festa
140
3.3
Situações sociais: ditos e ritos, um olhar.
142
3.4
Construindo desfiles: outras escolas, experiências compartilhadas.
146
3.4.1
A falta do carnavalesco
147
3.4.2
A falta da quadra
150
3.4.3
A falta da comunidade
153
3.4.4
Sentimentos e controle das impressões: a valorização da dificuldade 154
3.5
Caderno de imagens I
157
4.
IV CAPÍTULO - Entre dois carnavais
174
4.1
O Carnaval Multicultural do Recife
176
4.1.1
O conceito e a organização da festa “Multicultural”
178
4.1.2
Crítica ao Carnaval Multicultural
183
4.1.3
O Polo das Agremiações e o desfile das escolas de samba
190
4.1.3.1
Itens de julgamento e comissão julgadora
195
4.1.3.2
A primazia do esforço e o êxtase do desfile
197
4.1.3.3
O desfile e o público
198
4.2
O Outro Carnaval: impressões sobre o carnaval das escolas de samba do Rio de Janeiro 202
4.2.1
Fonte de inspiração
204
4.2.2
As “Empresas de Samba”
206
4.2.3
A imagem da ostentação: luxo e riqueza
212
4.3
Crise e conflitos: os casos da Mangueira e da Unidos da Tijuca no carnaval do Recife 215
4.4
Caderno de imagens II
220
5.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
228
6.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
234
18
19
Prólogo do conflito sedutor: notas sobre um romance inspirador Há mais de dez anos, quando ainda era estudante de graduação, curioso por literatura pernambucana e pelo carnaval, li, indicado por um professor, o clássico Passsionário, escrito por Theotônio Freire1 em 1897. Já no doutorado, encontrei o texto de José Ramos Tinhorão (1991), intitulado “O Carnaval no Romance Pernambucano”, que me fez reler e reinterpretar Passionário. Ambos foram inspirações para esta tese. Trata-se de um romance ambientado nas ruas do Recife com contornos de crônica da vida da cidade, no fim do século XIX. Freire, um pungente escritor naturalista, presenteia seus leitores com a estória de Arthur, um jovem bacharel em direito rico e egoísta, “pouco se importando com as dores alheias, nem com os sofrimentos estranhos, pronto a rir-se da miséria e a chasquear da desonra [...]. Tinha nojo dos mal trajados, tinha asco à miséria [...]” (FREIRE, 2005, p. 37). O personagem principal nutre um desejo sombrio por Lúcia, afilhada de sua mãe, pobre e de pais desconhecidos, “[...] casta, bela, honrada e de sentimentos nobres” (p.117). Ele quer apenas seduzi-la, enquanto ela sonha com um lar e uma família. Arthur mora na Rua da Imperatriz, famosa rua do centro do Recife, e Freire não economiza esforços para descrever, em várias passagens do livro, o cotidiano desse núcleo urbano que, na virada do século, respirava ideais de modernidade e de urbanização: A cidade acordava num runrum cotidiano [...]. Gritos desafinados de garotos cortavam os ares – Cem réis o Diário, O Jornal e A Província; traz telegrama do Rio! Pelas portas das lojas caixeiros de cara enfarruscada, mal acordados, penduravam amostras de fazenda, empilhavam peças de chita em posições variadas. Amas e criados, com balaios e cestas à cabeça ou ao braço, dirigiam-se as compras [...]. A cidade começava a viver a sua vida diária, aspirando o trabalho que em ondas largas invadia-a, produzindo-lhe a hematose nos pulmões enormes, oxigenando-lhe o sangue venoso da preguiça e abandono noturno, para transformá-lo em sangue arterial das lides diurnas, fonte de atividade e de progresso humano. (FREIRE, 2005, p. 49-50) (grifo meu).
Na descrição de Freire, o Rio de Janeiro aparece nas entrelinhas a disseminar as notícias e novidades da modernidade afrancesada típica daquele momento histórico. O melhor amigo de Arthur é o carioca e estudante de direito, Álvaro Taborda, seu companheiro de “ceiatas e orgias” (p.78), por quem D. Madalena, mãe do protagonista, nutria profunda antipatia. Álvaro é boêmio inveterado, jogador de cartas, apreciador de bebidas e frequentador dos bordéis da cidade, vivia a explorar o amigo.
1
Teotônio Freire nasceu no Recife (1863 -1917), diplomou-se na escola normal do Rio de Janeiro, escreveu poesias, contos e romances, foi fundador e primeiro presidente da Academia Pernambucana de Letras.
20
O ponto alto da trama ocorre no carnaval do Recife, quando Arthur e Álvaro juntam-se a Otília e Mariana, duas “mulheres de prostíbulos” (p. 120); saem fantasiados para curtir a festa em um “landau”, puxado por uma parelha de cavalos, guiados por um cocheiro. Utilizo um trecho da descrição de Freire sobre esse carnaval, no primeiro capítulo, para propósitos específicos, mas, de tão rica, sobra-nos muito ainda para compor de beleza e história esta introdução. Embora vista através da lente elitista de Theotônio Freire, como alerta Tinhorão (1991), a imagem do carnaval do Recife do final do século XIX e começo do XX é muito familiar, aos olhos de quem conhece as festividades de momo atualmente: Domingo de carnaval. Quatro horas marcam os relógios. O movimento carnavalesco, até então quase nulo, começou a aumentar e em breve, como se fora um rio engrossado por afluentes numerosos, estendia-se da Rua da Imperatriz à do Crespo, atravessando a Nova, a Cabugá e a Pracinha, uma massa compacta de mascarados, mescla de costumes e caracteres de luxo e de fantasia, de todos os tempos e de todos os povos. Os dominós de veludo preto ou carmesim davam o braço aos pierrôs encanudados [...], e ao longe, para os lados do cais do Capibaribe, os da Caninha Verde, gemiam os ritornelos do cavaquinho [...]. Pelas calçadas, pelo meio da rua, pendurados dos carros, equilibrados nos estribos dos bondes, multiplicavam-se os máscaras, agitando guizos, vibrando castanholas, misturando-se com a mole do povo, parecendo toda aquela aglomeração de cabeças em movimento a superfície agitada de oceano revolto, levantando, baixando, recuando, avançando suas ondas colossais, ao sopro forte e poderoso do furacão. O sol, no seu declínio, descia para poente [...] e fixando-se nos estofos raros dos trajes, dava tons estranhos cambiantes de cores não imaginadas à superfície frocada dos pierrôs gomados, às curvas caprichosas dos dominós de veludo cor de vinho, aos tufos insolentes e provocantes das fofas de sede amarela; e as flores e as ramagens das chitas das vestes centúria dos Caiadores tornavam, aos reflexos tristes dos raios do astro, o aspecto de festões murchos a bailar, no meio do burburinho entontecedor dos foliões. De quando em quando, a vozeria aguda e estridente era abafada pelo rumor surdo dos atabaques e dos maracás das baianas e o Cambinda Elefante, ou o Dois de Ouro, atravessando a massa compacta do povo, ostentava o conjunto grotesco de suas figuras, arrastando à admiração basbaque a parte ignara do poviléu que se babava de satisfação [...] (FREIRE, 2005, p. 126-127).
A massa agitada movimentando-se como um “oceano revolto” em “ondas colossais” é o frevo, naquele momento ainda sem esse nome a designá-la. As figuras do Clube de Alegoria e Crítica “Caninha Verde”2, do Clube Pedestre Caiadores (hoje chamados clubes de frevo) e as baianas dos Maracatu Cambinda Elefante, para além de povoar o imaginário da festa demarcam a singularidade do carnaval do Recife, resistem ao tempo e continuam “arrastando admiração”. Em meio à balbúrdia da rua, dentro do landau, os quatro personagens discutem para onde ir, diante das várias possibilidades da festa. Otília despretensiosamente elogia o carnaval daquele ano, e o carioca Álvaro retruca comparando-o aos carnavais do Rio de Janeiro, este “enormemente esplendido”. Tinhorão (1991, p. 138), analisando esta mesma obra, chama 2
Veremos no primeiro capítulo a formação dos clubes de alegoria e crítica e dos clubes pedestres.
21
atenção para “o sentido de rivalidade entre pernambucanos e cariocas em matéria de carnaval”, já no século XIX. Segue o diálogo: -Pois é isto, dizia a Otília, está bonzinho o carnaval este ano. -Ora, retrucou o Álvaro, é porque você não viu ainda um carnaval no Rio, sabe? Aquilo sim, aquilo é que é sexquipedalmente, enormemente esplendido, sabe? Oh! Esplendido! Esplendido! -Não duvido, meu caro; mas não há de querer comparar o carnaval do Rio com o daqui. -Nem há termo de comparação, sabe? Aqui, tudo é acanhado; os Filomomos dão seis ou oito críticas; o Trinta e Três o mesmo, e o mais é a mascarada pedestre, insulta e sem espírito. -Já estão vocês na maldita mania de comparações, interrompeu Arthur. Outro rumo, outro ofício. -(Mariana) Não sei não... Amode que a gente saiu para ver qual dos dois carnaval é o melhor! Tenho nada com o modo da gente do Rio de Janeiro? Vôte! Eu quero é me divertir-me, está! -Isso mesmo Mariana tu tens mais espírito do que todos nós; é divertir e nada mais. (FREIRE, 2005, p. 128-129) (grifos meus)
Álvaro sugere ao grupo dançar maxixe no Baile da Madalena, um tradicional baile de máscaras, aos moldes venezianos, muito comuns no Rio de Janeiro, também realizado no Recife, em meados de 1860. Arthur, contrário à proposta, define como destino final o Baile dos Fenianos - Clube de Alegoria e Crítica famoso na cidade – e tranquiliza o amigo informando-lhe que lá, como em todos os bailes “desde o mais aristocrático, até o ínfimo sifilítico”, havia de ter o maxixe. Para Tinhorão (1991, p. 139), essa passagem denota a “popularidade do maxixe carioca no Recife no fim do século” e “a tendência à imitação das formas de organização de lazer criadas no Rio de Janeiro”. No baile, Arthur e Álvaro se desentendem por causa de Otília, entram em luta corporal e Álvaro dispara dois tiros contra o amigo. O silêncio toma conta do ambiente antes preenchido por “um zunzum surdo de mil vozes, se chocando, de mil ruídos se cruzando [...]” (p.138), e contrastava com o som de fora: O rumor dos maracatus atroava os ares e os atabaleitos, no frenesi da despedida da noite, tiravam das peles retesas dos instrumentos, sons roucos e altos [...] e acima do runrum ensurdecedor vibrava alto, no ambiente a canção do Clube dos Carecas, executada com o acompanhamento de trombones de papelão. (FREIRE, 2005, p. 142).
A tragédia de Arthur é encenada em meio a duas imagens do carnaval do Recife na virada dos referidos séculos: a dos bailes fechados e o maxixe, a da festa de rua com maracatus e clubes pedestres “avançando suas ondas colossais, ao sopro forte e poderoso do furacão” (p. 126). Baleado, Arthur é atendido por médicos e, depois, volta para casa para
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repouso absoluto com risco de morte. Fica aos cuidados de D. Madalena, e, principalmente da sua afilhada, Lúcia, a mocinha da narrativa. Entre o carnaval e a semana santa o protagonista aos poucos demonstra melhoras de saúde e regenera-se quanto ao seu caráter, “aos olhos dele adivinhava-se toda a ressurreição de sua alma forte e viril” (p.186). “Morreu” o homem egoísta, materialista e excludente, e o amor de Lúcia fez “ressuscitar”, no Domingo de Ramos, um novo homem. Em frente ao andor com Jesus Cristo, na procissão que passara embaixo de sua janela, prometeu amá-la “para sempre e para todo o sempre” (p.188). Freire descreve Otília, o par de Arthur em um dia de carnaval, como refinada e elegante com “corpo delicadamente esculturado” (p.120), no prostíbulo imperava como rainha, escolhia seus amantes e dispensava quem não queria. Mariana era o oposto, uma “mulata acobreada de lábios grossos, excessivamente luxuriosa e igualmente grosseira” (p. 120). O autor a escreveu de forma jocosa para fazer graça com o “exotismo” de uma representante das camadas populares, frente ao requinte dos demais. Funciona como contraponto aos membros do quarteto, era gorda, suarenta e ignorante, desconhecedora da norma culta da língua, sua fala é repleta de expressões populares, veste-se de maneira deselegante e não compartilha dos mesmos códigos de etiqueta com os demais. A discussão sobre o carnaval do Rio de Janeiro começa entre Álvaro e Otília. O carioca acha o carnaval do Recife “acanhado”, menospreza o Clube de Alegoria e Crítica Filomomos3, e considera a mascarada pedestre – a festa de rua - “sem espírito”. Arthur chama atenção de todos para a “maldita mania de comparações”, mas é Mariana quem resolve o conflito. O povo, na voz de Mariana, não está interessado nas disputas entre Recife e Rio de Janeiro, quer apenas “se divertir”. E, no fim, para Freire, Mariana - o povo e o carnaval de rua- tem “mais espírito” do que a elite e suas digressões carnavalescas. Tinhorão (1991, p.154) lembra ainda que Mário Sette, um dos mais importantes e reconhecidos cronista da vida social do Recife, na primeira metade do século XX, usou o mesmo recurso de Freire e traz em sua obra mais famosa, ‘Seu Candinho da Farmácia’ (escrito em 1932), um personagem carioca, a fim de “permitir as velhas comparações entre os carnavais do Recife e do Rio de Janeiro”. Seu nome é Caio Curvelo e diferente de Álvaro Taborda, ao comparar os dois carnavais se encanta pela animação dos recifenses, deixa-se envolver pela “onda” e derrete-se em elogios ao frevo. Em um “jantarzinho festivo”, Caio Curvelo fala “com desembaraço carioca” de sua adesão “sem vergonha” a um “partido contrário”: 3
Tido pelos historiadores como importante agremiação do Carnaval do Recife no final do século XIX e começo do século XX. Ver Araújo (1996) e Lélis (2011).
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Não falo nos corsos, nem nos préstitos: os do Rio são maravilhosos, é verdade, mas, na animação do povo, tenha santa paciência, o do Recife tem o primeiro lugar. Aqui tudo estremece mesmo... Então com essa música formidável! Com esse demônio gostoso do frevo! [...] No domingo fiz sacrifícios para reagir, fiz, sabe? [...] Ah! O passo!4 Quando um clube passava com aquelas marchas de arrastar até os cofres e os pianos, com os remelexos, com as dobradinhas, eu sentia o pecado subir pela espinha dorsal. [...] Afinal, na terça-feira aderi [...]. Aderi com um semvergonhismo de político profissional, quando sobe o partido contrário. (SETTE, 1985, p. 56-57) (grifos meus)
Os carnavais do Rio de Janeiro e do Recife inscrevem-se em um conflito sedutor, convidativo ao olhar antropológico. A partir dos anos de 1940, depois de Álvaro Taborda, de Freire, e Caio Curvelo, de Sette, as escolas de samba passam a compor esse conflito. Elas estão em Recife e no Rio Janeiro, ao mesmo tempo, o fio que nos une e nos separa. O invento folião e a Antropologia: coincidência, curiosidade, ideia
A literatura, tanto quanto a história, ilumina os conflitos simbólicos estabelecidos entre o carnaval do Recife e o do Rio de Janeiro, ao longo século XX, quando se construíam e se consolidavam como emblemas das identidades local e nacional. Estamos falando da relação entre o lugar tido como “núcleo disseminador de práticas carnavalescas” (QUEIROZ, 1999) e outro como o “centro de resistência regionalista” (FREYRE, 1976), a gerar, em Pernambuco, um campo de tensões e negociações acerca das noções de pertencimento, autenticidade e singularidade. A ideia da tese passa pela reflexão desse conflito, entendendo que, apesar de ganhar outros contornos no século XXI, ainda reverbera e incide sobre a experiência social dos grupos diretamente envolvidos com o carnaval do Recife. Tomei as escolas de samba do Recife como objeto de pesquisa não só por considerá-las exemplos paradigmáticos da atuação dos “antigos sentidos de rivalidade em matéria e carnaval”, entre Recife e Rio de Janeiro; como também por ter curiosidade em mergulhar em um universo constitutivo do Carnaval recifense pouco explorado, um tanto esquecido pelos estudos acadêmicos5. Depois de quatro anos de pesquisa, é possível afirmar que boa parte da população recifense desconhece as escolas de samba da cidade. Quando falava a respeito do meu 4
O passo é o nome dado à dança do frevo. Na antropologia, não há maiores estudos especificamente sobre as escolas de samba do Recife. No campo dos estudos de folclore, encontramos trechos pontuais, sempre postas em oposição ao frevo. No campo da história, os trabalhos dos historiadores Ivaldo Marciano de Lima (2013) e Augusto Neves da Silva (2012) dedicam-se à temática. 5
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trabalho de pesquisa no Rio de Janeiro ou em Recife as reações pela existência desses grupos não raro eram de surpresa, sobretudo, para os colegas da academia. Sabia da existência das escolas porque fui brincante de quadrilhas juninas6, e escolas de samba têm uma convivência bastante próxima com as quadrilhas. No ano de 2006, durante a pesquisa para a produção da minha dissertação de mestrado, sobre o movimento de quadrilhas juninas do Recife, visitei quadras de escolas de samba onde esses grupos ensaiavam e faziam festas para captação de recursos; acompanhei quadrilhas desfilarem nas escolas compondo alas inteiras, sendo financeiramente pagas por isso ou em troca do espaço de ensaio. Em 2007, tornei-me vizinho da Escola de Samba Galeria do Ritmo, do Morro da Conceição, na zona norte do Recife; da minha janela, ouvia os ensaios da bateria, e a curiosidade me impeliu a ir pessoalmente ao ensaio geral. Findei por desfilar nela junto aos amigos quadrilheiros que lá estavam, fiz parte da ala de ciganos do enredo sobre minorias étnicas. No carnaval de 2008, a escola de samba carioca Estação Primeira de Mangueira desenvolveu um enredo em homenagem ao centenário do frevo7, e a Prefeitura do Recife foi uma das patrocinadoras, em troca da vitrina proporcionada pelo desfile, destinando-lhe cerca de três milhões de reais. Essa transação gerou polêmica na cidade, principalmente por parte dos carnavalescos. Naquele momento, ocupava o cargo em comissão de assistente da Gerência de Preservação do Patrimônio Cultural Imaterial na Secretaria de Cultura do Recife8, função que exigia o contato direto com os brincantes e proporcionava uma circulação entre as agremiações carnavalescas da cidade. Essa posição privilegiada possibilitou-me acompanhar o episódio da Mangueira e de seus desdobramentos pela repercussão alcançada nas mídias locais, também dos pontos de vista do patrocinador e o dos brincantes. Como efeito da celeuma entre recifenses e cariocas, cifras milionárias e muitas expectativas em torno do evento, o desfile da Estação Primeira ganhou destaque no Estado9. Não coincidentemente10 as escolas de samba do Recife, em sua considerável invisibilidade 6
As quadrilhas juninas do Recife configuram um importante movimento artístico-cultural da cidade, similar ao das escolas de samba do Rio de Janeiro. Dancei quadrilha até o ano de 2013. Sobre o movimento de quadrilhas do Recife, ver Menezes Neto (2008). 7 No ano de 2007, Pernambuco celebrou cem anos da primeira aparição da palavra frevo, registrada pelo Jornal Pequeno, em 09 de fevereiro, dado produzido por Rebello (2004). 8 Nesse cargo, participei ainda da pesquisa e produção de textos das publicações Guia do Folião (2008) e Catálogo das Agremiações Carnavalescas do Recife (2009), lançadas pela Editora da Fundação de Cultura da Cidade do Recife. Trata-se de um mapeamento e produção de textos sobre as agremiações carnavalescas do Recife, dentre elas as escolas de samba. 9 Analiso esse episódio no IV capítulo. 10 Penso essa trajetória a partir das reflexões de Becker (2007, p. 55) sobre coincidências: “O caminho que leva a qualquer evento pode ser visto como uma sucessão de eventos contingentes uns dos outros dessa maneira”.
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chamaram minha atenção como interessante dispositivo antropológico a articular: relações sociais, políticas públicas, concepções identitárias, percepções estéticas, construções históricas e pensamento social brasileiro. Samba na Terra do Frevo? As escolas de samba do Recife
Registros históricos indicam a presença do samba no carnaval do Recife desde o século XIX,11 porém as escolas de samba passam a figurar nessa Festa apenas no final dos anos de 1930, consolidando-se na década de 1940. Desde então, até o fim do século XX, por serem recorrentemente associadas ao repertório do carnaval do Rio de Janeiro, sua presença instaura um campo de tensões que envolve intelectuais, artistas e políticos locais, defensores do frevo e das tradições carnavalescas “autenticamente pernambucanas”. Recife foi um ambiente hostil às escolas de samba consideradas elementos extrínsecos às tradições carnavalescas “genuinamente” pernambucanas, estrangeiras cariocas e invasoras, uma imagem ligada a antigos “sentidos de rivalidade” entre os carnavais do Rio de Janeiro e do Recife - expostos, por exemplo, nos romances de Mário Sette e Theotônio Freire-. Sofreram preconceitos e retaliações, ao mesmo tempo em que mobilizaram agenciamentos da identidade local constituída de forte conteúdo regionalista com bases na contraposição histórica entre o norte e o sul do país. Este trabalho, por conseguinte, é um olhar antropológico sobre as escolas de samba do Recife atentando para a incidência desse lastro histórico marcante sobre a experiência social e artística dos sambistas pernambucanos. Exploro a pergunta norteadora: como é fazer samba na “Terra do Frevo”? Atualmente, existem dezesseis escolas de samba no Recife e na Região Metropolitana12. São elas: Unidos da Mangueira, Limonil, Unidos de São Carlos, Deixa Falar, Gigante do Samba, Rebeldes do Samba, Galeria do Ritmo, Imperadores de Vila São Miguel, Samarina, Imperiais do Ritmo, Queridos da Mangueira, Raio de Luar, Preto Velho, Estudantes de São José, Criança e Adolescente, Unidos de Vila Escailabe. Estão organizadas em torno de duas entidades associativas: a Federação das Escolas de Samba de Pernambuco (FESAPE)13 e a Associação das Escolas de Samba de Pernambuco (AESPE)14 . Para além da 11 Ver Rabello (2004), Diniz (2006) e Lima (2013), respaldados em análises dos registros jornalísticos. 12 Quantitativo dado pelo Núcleo de Concursos da Prefeitura do Recife. Existem ainda outras escolas no interior do Estado. 13 Sua fundação data de 1954, com o nome de União das Escolas de Samba de Pernambuco.
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festa, as quadras das escolas de samba são requisitadas como espaços de sociabilidade; mexem com a dinâmica socioeconômica e com a vida das comunidades da periferia da cidade; promovem relações interpessoais e intergrupais, configuram-se como um expressivo movimento15 artístico-cultural no estado, ainda que ofuscado pelos emblemas da “cultura pernambucana”.
No fluxo dos (des)encontros: campo, método e reciprocidade Considero o ano de 2011 como o início da pesquisa de campo para a tese. Nesse ano, assisti ao desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro, ação imprescindível para apreender um pouco do universo de referência constantemente acessado pelas escolas pernambucanas. Em Recife, escolhi acompanhar a escola de samba Galeria do Ritmo, levei em conta já ter nela desfilado, a conveniência da distância (éramos vizinhos), por ser um grupo antigo, representativo, expressivo e, razoavelmente, bem estruturado. Valia-me de estratégias metodológicas clássicas da antropologia - observação direta e entrevistas semiestruturadas. Estive em todos os ensaios da Galeria durante o segundo semestre daquele ano, paralelamente acompanhei, na medida do possível, os preparativos para o carnaval de 2012, fiz algumas entrevistas, registros fotográficos e anotações no diário de campo. Entretanto, enfrentei dificuldades para acessar as lideranças da escola que passavam por reformulações políticas internas, e não conseguiam andar com destreza pelos bastidores. A experiência não correspondia à perspectiva, ou a minha expectativa, malinowskiana do antropólogo plenamente imerso no universo de pesquisa. No ímpeto de me reencontrar na pesquisa, resolvi mudar de Escola e começar tudo de novo, seria um risco, mas encarei o desafio. Pensava, talvez, para me tranquilizar, ser uma forma de ampliar o meu olhar, de ter duas experiências de observação. Após o Concurso das Escolas de Samba de 2012, procurei a agremiação campeã, Gigante do Samba, sem conhecer ninguém, liguei para o presidente16, marquei um encontro na sede, localizada no bairro de Água Fria, zona norte do Recife. Cheguei à escola de samba Gigante do Samba, em abril de 2012. Na ocasião, ocorria uma reunião da diretoria, portanto, no primeiro dia, conheci todos os diretores, conversamos por horas, percorri a sede, vi alegorias e fantasias, foi uma noite movimentada. Na Gigante do 14
Essa associação é dissidente da FESAPE, foi criada em 1999. Termo síntese de articulação, mobilização e interação, que agrupa as agremiações em configurações socioafetivas e lhes confere importância social, política e econômica (MENEZES NETO, 2008). 16 Antes de começar a pesquisa, tinha conseguido com o Núcleo de Concursos da Prefeitura do Recife uma lista com os telefones das dezesseis escolas do Recife e da Região Metropolitana. 15
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Samba, fui bem recebido, fiz amigos e me entranhei nos bastidores, na vida da escola. Estive presente em todos os eventos de 2012 e de 2013: ensaios, festas, reuniões, eliminatórias, final da escolha do samba enredo, lançamento do enredo, Festa dos Protótipos, Noite das Baianas, aniversário da escola, aniversário do Presidente da Escola, confraternização de fim de ano [...], além de acompanhar bem de perto todo o trabalho de produção do desfile. Então, sentime, de fato, entrando no “mundo social”17 (BECKER, 1977) das escolas de samba, pronto a fazer descobertas, a me surpreender e desconcertar (DURKHEIM, 1982). Quando me apresentei, expliquei que era um estudante da Universidade Federal do Rio de Janeiro desenvolvendo uma pesquisa sobre as escolas de samba em Pernambuco; logo fui acolhido, como muitos queriam conhecer o “pesquisador do Rio de Janeiro que vai escrever um livro sobre a Gigante”. Era atraente essa “identidade carioca” embutida na minha condição de estudante da UFRJ, por ser o Rio uma grande referência no imaginário, nos discursos, na prática dos componentes das escolas pernambucanas. No começo, fazia uso dela para me aproximar das pessoas sabendo que, obviamente, nas primeiras frases de um diálogo qualquer, a pré-noção seria desfeita em se tratando de um pernambucano de sotaque inegável, morador de um bairro próximo à quadra. Um tanto de frustração era evidente; por outro lado, mais rapidamente me tornava “de casa”, e a interação fluía com menos ressalvas. Já a imagem do escritor do livro da Gigante me acompanhou por toda a pesquisa, não consegui desvencilhar-me totalmente dela e de suas armadilhas (ZALUAR, 2004) 18. Com estreitamento dos laços entre eu e a Escola, fui “convocado” para contribuir em algumas ações ligadas ao meu “potencial”, identificado pelas lideranças. Dentre elas, destaco como as mais importantes: a digitalização do acervo fotográfico, a produção de um documentário sobre as baianas e a elaboração de um projeto de captação para o Fundo de Incentivo à Cultura do Governo do Estado. A princípio, declinei da solicitação, mas, depois, percebi que a minha imersão no campo era tão mais profunda e profícua quanto maior a colaboração com a Escola. A minha disponibilidade em ajudar era sempre retribuída. Em outras palavras, passei a trocar um pouco 17
Nos termos de Becker (1977, p. 09), segundo o qual preza a ideia de pessoas em dinâmicas afetivas e organizacionais essencialmente coletivas: “A totalidade de pessoas e organizações cuja ação é necessária à produção do tipo de acontecimento e objetos caracteristicamente produzidos”. Entrar no mundo social é uma alusão a Durkheim (1982, p. 23) que ensina: “É necessário que, ao penetrar no mundo social, tenha ele (o sociólogo) consciência de que penetra no desconhecido [...]; é preciso que se mantenha pronto a fazer descobertas que hão de surpreendê-lo e desconcertá-lo”. 18 Zaluar (2004 p. 117) alerta que a publicação de um livro como “saída para realização da pesquisa”, precisa ser refletida, sobretudo pela importância histórica e simbólica do registro de grupos invisibilizados. Para a autora, a reflexão parte do uso que esses grupos farão dos textos lançados. “[...] podem ser usados para decidir conflitos [...] torna-se simbólico de sua (do grupo) importância histórica, marca solitária de um momento único de reconhecimento pelos outros no processo contínuo do esquecimento do grupo”.
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de trabalho e dedicação à Escola, por dados de pesquisa, portas abertas, confiança para as entrevistas, era um acordo tácito. Além disso, as próprias atividades a mim solicitadas produziam dados de pesquisa. Pouco tempo depois da minha chegada à Escola, conheci Maria do Carmo, a secretária. Ficamos próximos, e eu, com freqüência, perguntava sobre documentos e fotos antigas da agremiação, ela respondia reticente não haver “quase nada” de acervo. Vários meses de convivência depois, Maria do Carmo espontaneamente solicita ajuda para digitalizar as fotos da Escola, há muito tempo guardadas e sem os devidos cuidados, na Secretaria, uma salinha pequena e desarrumada; mais parecida com um almoxarifado destinado à documentação antiga, troféus e outras relíquias. Em uma sexta feira de setembro, levei os dois álbuns de foto para casa, sob recomendações e a confiança dessa diretora; digitalizei-os no fim de semana, devolvi os álbuns e um CD e, em agradecimento, ela me permitiu usá-las neste trabalho (em anexo). São fotos da década de 1980, não muito antigas, mas são as únicas de posse da Escola, tem valor simbólico. Em novembro de 2012, Marize, uma das diretoras e principais interlocutoras da pesquisa, pediu-me um favor, “uma missão”, em suas palavras. No primeiro final de semana de dezembro, acontece uma tradicional festa do calendário da Gigante, a Noite das Baianas, e ela, coordenadora dessa ala, pretendia fazer uma espécie de documentário caseiro, em homenagem às suas baianas. Precisava de ajuda para elaboração e execução da ideia. Consegui articular um amigo da área do audiovisual e uma câmera de pequeno porte, amadora, mas serviria aos propósitos. Roteirizei o vídeo, estruturado em uma grande roda de conversa. Elaborei as perguntas e, no dia marcado, lá estávamos eu e elas, as baianas, com fantasias, turbantes, colares, um mar branco de senhoras negras. Organizei o grupo, conduzi as perguntas e, para a pesquisa, nada foi mais rico e mágico do que aquele momento, um enorme grupo focal com a fonte primeira das histórias da escola. Jamais eu conseguiria juntar todas senão fosse a “ajuda” prestada. Acompanhei a edição o vídeo que intitulei “Baianas: força de Gigante”, exibido no dia da festa19. Quando solicitado, preparei projetos de captação de recursos, levei um amigo arquiteto para ajudar em um problema estrutural da sede, criei um blog e construí textos, a pedido da diretoria, para a divulgação dos eventos na quadra. Recusei apenas ser o segundo mestre-sala do carnaval de 2014, convite feito depois de Marize descobrir que sou bailarino popular.
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A etnografia da Noite das Baianas, com falas desse vídeo está no terceiro capítulo.
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Cada vez mais nós antropólogos lidamos com a cobrança por parte dos grupos estudados, por atuação e identificação política, afirma Durham (2004, p. 27). Para ela, esses grupos exigem o retorno dos resultados da pesquisa para a comunidade, e os antropólogos, quando não conseguem descobrir aplicação imediata, tendem a substituí-los por “uma ação junto à população que a beneficie”. Na minha experiência, os componentes da Escola aguardam os resultados da pesquisa, mas cobram a atuação, mesmo durante o processo. Em contrapartida, transformei minha participação em instrumento de conhecimento e dos resultados, fatos etnográficos (PEIRANO, 1995, p. 17)20. Em alguma medida, participar perece menos uma mera questão de escolha, do que, por um lado, uma astuta estratégia de pesquisa; por outro, reflexo de uma lógica de reciprocidade, para lembrar Mauss (2003, p. 201) e o potlatch. O “retorno da pesquisa à comunidade” ou a atuação do antropólogo, “junto à população” não deve ser investido apenas do sentido de retribuição, pois “a obrigação de dar” é tão importante quanto a “obrigação de receber”, a “obrigação de retribuir”, “recusar dar” assim como “recusar receber” é “[...] recusar a aliança e comunhão” (idem, p. 202). A ‘Gigante do Samba’ é uma grande agremiação carnavalesca; possui o maior orçamento de todas as escolas de samba, é atualmente heptacampeã consecutiva do Concurso. Detém uma sede bem estruturada, uma dinâmica de produção organizada, quando comparada às suas coirmãs21.Trata-se de uma exceção, portanto, senti a necessidade de conhecer outras além da minha passagem pela Galeria do Ritmo; Escolas do Grupo I, inclusive, para apreender realidades distintas e melhor dimensionar esse mundo social. Certamente não iria conseguir acompanhar todo o processo de produção de outras escolas, mas resolvi fazer entrevistas semiestruturadas com suas lideranças. Escolhi entrevistar mais, visitar a sede e entrevistar mais duas escolas do Grupo Especial (Unidos de São Carlos, Limonil); duas do Grupo I (Unidos da Mangueira, Samarina). Para visualização do trabalho de pesquisa, mais especificamente, da produção de entrevistas (não considerei os depoimentos tomados como nota em caderno de campo), segue uma tabela:
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“(...) como o observador é parte integrante do processo de conhecimento e descoberta, pode-se dizer, como já se fez anteriormente, que na antropologia não existe fato social, mas fatos etnográficos, salientando que houve seleção no que foi observado e interpretação no relato” (PEIRANO, 1995, p. 17) 21 Coirmãs é o termo que os componentes das escolas de samba usam para se referir a outra escola.
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Tabela 01: Produção de Entrevistas Escola de Samba Galeria do Ritmo Gigante do Samba
Unidos de São Carlos
Limonil
Unidos da Mangueira
Nome - Função
Período
Local
Naná – Mestre da bateria
21/12/ 2011
Casa de Mestre Naná
Saúba – II Mestre da bateria
21/12/ 2011
(Alto José do Pinho)
Marize - Diretora
28/08/2012 e 03/12/2012
Quadra da Escola
Lacerda - Presidente
07/09/2012
(Água Fria)
Soldado - Diretor
07/09/2012
Hilário – carnavalesco
10/09/2012
Equipe Projeto Samba e Saber
12/08/2012
Conceição - Presidente
10/10/2012
Sede da Escola
Itamar - Diretor
10/10/2012
(Afogados)
Fernando - Diretor
10/10/2012
Jarlan - Presidente
01/02/2012
Casa do Presidente /
Nado- Vice-presidente
01/02/2012
Quadra da Escola
Valmir - Escultor
01/02/2012
(Vila São Miguel)
Carlos Alberto - Presidente
14/11/2012
Casa do presidente / (Mangueira)
Samarina
Sr. Correia. – Presidente
21/11/2012
Quadra da Escola
Fábio Costa e
01/01/2013
Residência
Américo Barreto (Ex-carnavalescos)
Ao todo, foram 20 horas de entrevistas semiestruturadas produzidas com componentes de seis escolas, observação participante em uma delas, a ‘Gigante do Samba’. A pesquisa incluiu a busca ativa de documentos e de registros históricos nos acervos do: Arquivo Público Estadual Jordão Emereciano; Centro de Formação, Pesquisa e Memória Cultural – Casa do Carnaval (equipamento da Prefeitura do Recife); a Fundação Joaquim Nabuco; e nos acervos on-line da Fundação Biblioteca Nacional, do Diário de Pernambuco. Assisti aos desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro, em 2011, o Concurso das Agremiações Carnavalescas de Pernambuco, em 2012 e 2013. O fio que nos une e nos separa, em capítulos Desde os anos de 1940, a presença e a consolidação das escolas de samba são entendidas como ameaças ao frevo (emblema do carnaval), às tradições carnavalescas
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“tipicamente pernambucanas”, instaurando-se um campo de debates ao longo do século XX, de conteúdo de extremo regionalismo, em torno das noções de tradição, identidade e pertencimento. Esta tese pauta-se na ideia de que tais debates perdem força, a partir dos anos de 1980, mas ainda incidem no imaginário e na experiência social das escolas de samba do Recife. Destarte, este trabalho se estrutura em dois movimentos analíticos amalgamados, quais sejam: um de cunho histórico-antropológico, para contextualização e reflexão acerca dos referidos embates simbólicos; o outro, constituído do olhar etnográfico, a fim de não só perceber as ressonâncias desse lastro histórico marcante, bem como compreender os bastidores do processo ritual do desfile, atentando para as relações entre o Rio de Janeiro e o Recife, na perspectiva dos sambistas pernambucanos. A tese divide-se em quatro capítulos. Devo advertir, de antemão, que utilizei as representações sobre a relação entre Recife e Rio de Janeiro, no campo do carnaval, como fio condutor das análises neles contidas. O primeiro capítulo, intitulado “Tem Samba na Terra do Frevo”, versa sobre o processo de elaboração do frevo como emblema do carnaval do Recife, com vistas a refletir sobre a participação das escolas de samba nesse processo. Por meio da análise das narrativas historiográficas e literárias disponíveis sobre o frevo, é possível perceber antigas rivalidades entre o Recife e o Rio de Janeiro, transferidas para as escolas de samba. Depreendo, portanto, que tais rivalidades são partes constitutivas da construção do frevo como elemento representativo do carnaval e da identidade pernambucana, tanto quanto da posição desprivilegiada ocupada pelas escolas de samba, frente a outras expressões carnavalescas de Pernambuco. O segundo capítulo, “A ‘Batalha Frevo-Samba’: pureza e perigo no carnaval do Recife”, é inspirado em Real (1990) e Douglas (2012). A folclorista, em 1967, chamou de “batalha-samba” o campo de embates simbólicos que envolviam intelectuais políticos e outros mediadores acerca da presença das escolas de samba no Carnaval do Recife: O assunto das escolas de samba é um dos mais explosivos de todo o carnaval do Recife. Os jornais se deliciam com as fofocas que os prós e os contras na batalha ‘frevo-samba’ provocam. Qualquer opinião a respeito da crise entre o frevo e o samba pode provocar manchete. (REAL, 1990, p. 52)
O capítulo trata diretamente dos conflitos entre a intelectualidade - defensora do frevo e das tradições “autenticamente pernambucanas”-, e as escolas de samba, pensando tal relação como alicerçada em antagonismos anteriores entre Recife e o Rio de Janeiro, consolidados pelo pensamento regionalista de Gilberto Freyre (considerando-o o representante mais
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expressivo do pensamento dos intelectuais pernambucanos da época, bem como, da atuação desses na “batalha frevo-samba”). Portanto, analiso o lugar do Rio de Janeiro nas obras de Freyre, entre as décadas de 1920 a 1940, quando as escolas de samba são definitivamente incorporadas ao carnaval do Recife. Penso que, a partir de então, suas ideias sobre o Rio de Janeiro serão transferidas para os seus argumentos contra as escolas de samba, em artigos publicados em jornais de grande circulação, entre os anos de 1950 e 1970. Por fim, elenco dois “dramas sociais” da história das escolas de samba (TURNER, 1974), para evidenciar como esses conflitos simbólicos incidem na experiência de fazer escola de samba no Recife. O terceiro capítulo volta-se ao cotidiano das escolas de samba, intitulado “Trabalho, criatividade e amor: um olhar etnográfico”; consiste em um olhar etnográfico sobre o processo ritual do desfile pernambucano, a partir da observação direta realizada na Escola de Samba Gigante do Samba. Para tanto, escolhi duas situações sociais (GLUCKMAN, 2010): duas festas do calendário da Escola, para desdobrá-las, a fim de refletir sobre a experiência de produzir uma escola de samba no Recife, de revelar os bastidores desse processo ritual. Analisei dois eventos como opostos complementares e relacionados ao universo de representações do Recife e do Rio de Janeiro. Por essa condição, evidenciam conteúdos, formas e agenciamentos distintos, porém, necessários mutuamente. São eles: a Festa dos Protótipos e a Noite das Baianas. No fim do capítulo, trago dados e reflexos sobre a construção do desfile de outras escolas da cidade. O quarto capítulo é o desfile, o carnaval, a culminância do processo exposto no terceiro. O título, “Entre dois carnavais... o Recife e o Rio de Janeiro”, já informa, entretanto, a dupla expectativa das escolas de samba pernambucanas, entre os carnavais do Recife e do Rio de Janeiro. O primeiro é o da realidade, da experiência prática, a passarela por onde efetivamente desfilam as suas escolas. O segundo é o carnaval acompanhado a distância, idealizado, sonhado, produto da imaginação e de impressões elaboradas. A partir da etnografia, analiso o atual modelo de carnaval oficial do Recife, atentando para a continuidade de antigos embates e hierarquias simbólicas, impressos na história desse carnaval. E, tomando como evidência antropológica a presença eminente do carnaval das escolas de samba do Rio de Janeiro, na vida das representantes pernambucanas do gênero, sistematizo e analiso as principais impressões elaboradas pelos sambistas locais sobre o Carnaval carioca. Não pretendo adiantar discussões teóricas desenvolvidas nos capítulo, porém devo registrar brevemente onde se localizam três chaves importantes para o desenvolvimento da ideia da tese que podem ter aparecido nesta Introdução de maneira dispersa.
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A primeira são as noções de representação social e conflito. Entendo a relação de conflito, de antigas rivalidades entre Recife e Rio de Janeiro em “matéria de carnaval” (para usar os termos de Tinhorão), como uma representação em consonância com Becker (2007, p. 57). As representações são elaboradas para nos aproximarmos do problema, são “imagens que servem para teoria ou explicações de algo, histórias sobre como eventos e pessoas de certo tipo chegam a ser como são”. A imagem produzida, e não deve se encerrar em si, as relações entre Recife e Rio de Janeiro, mesmo no carnaval, não se limitam ao conflito. Em contrapartida, à primeira vista, o conflito pode omitir o diálogo e as intensas trocas culturais entre os dois lados. A noção de experiência, acionada com frequência, é baseada em Hall (2003, p. 134): “Em última análise, trata-se de onde e como as pessoas experimentam suas condições de vida, como as definem e a elas respondem”. Igualmente, a noção de imaginário social pauta-se em Souza (2011, p. 30-31): “[...] conjunto de interpretações e de idéias que permitem compreender o sentido e a especificidade de determinada experiência histórica coletiva”. Enfim, procuro contribuir com os estudos antropológicos sobre o carnaval, especificamente sobre o carnaval do Recife que ferve não só com o frevo.
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“O samba na ‘Terra do Frevo’ sobrevive dos amantes... Daqueles que amam o samba de verdade.” (Rivaldo Lacerda, presidente da Gigante do Samba)
Antes de realizar a pesquisa de campo, já havia lido sobre a relação conflituosa entre o frevo e o samba, no passado. Katarina Real (1990), que em 1967 chama a atenção para as discussões expostas pela imprensa sobre a participação das escolas de samba no carnaval do Recife, foi uma inspiração para a o projeto de doutoramento. A antropóloga denomina essa relação conflituosa (ou uma crise) de “batalha frevo-samba” e, inadvertidamente, nomeou um campo de representações e embates simbólicos entre o Recife e o Rio de Janeiro, que ressoa ainda hoje. O assunto das escolas de samba é um dos mais explosivos de todo o carnaval do Recife. Os jornais se deliciam com as fofocas que os prós e os contras na batalha ‘frevo-samba’ provocam. Qualquer opinião a respeito da crise entre o frevo e o samba pode provocar manchete. (Real, 1990, p. 52)
Ao estudar as escolas de samba do Recife, encontrei, entre os tambores de suas baterias, o frevo e o carnaval do Rio de Janeiro como temas nas entrelinhas de uma históriaenredo a permear recorrentemente os repertórios discursivos e imagéticos dos brincantes de samba recifenses. Por isso dedico parte de minha atenção aos conteúdos simbólicos da relação entre frevo e samba e de suas respectivas cidades tidas como originárias (Recife e Rio de Janeiro), pois tais relações remetem ao que poderíamos designar como identidades carnavalescas estruturantes das representações sobre o carnaval de Pernambuco. A partir desse exercício, creio ser possível apreender as experiências22 de fazer samba ou de pertencer a uma escola de samba na “Terra do Frevo”. Entrei na quadra da Gigante do Samba pela primeira vez como pesquisador em abril de 2012. Escolhi um dia festivo, o ensaio da bateria “Rolo Compressor”, como é conhecida. Fiquei extasiado com a força dos ritmistas, com a alegria das passistas, com a participação da comunidade que prestigiava o evento. Vi um espaço grande e bem estruturado, privilégio de poucas agremiações da cidade. Uma quadra verde e branca, uma gente de verde e branco, e eu ouvia, por instantes, o carnaval do Recife na potência do samba. Marquei um encontro com a diretoria para o dia seguinte, queria me apresentar mais formalmente, conhecer as lideranças do grupo, explicar o trabalho de pesquisa, e me familiarizar com os bastidores do desfile. O encontro foi em uma reunião do grupo de diretores; conheci a minha principal interlocutora, 22
A ideia de experiência aqui está baseada em Stuart Hall, “Em última análise, trata-se de onde e como as pessoas experimentam suas condições de vida, como as definem e a elas respondem” (Hall, 2003, p. 134).
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pessoa que abriu as portas da Escola, Marize Félix, diretora, esposa do presidente, organizadora da ala das baianas. Também conheci Rivaldo Lacerda, o presidente. Marize e Lacerda (como é chamado) circularam comigo pelos vários ambientes da sede, contaram como chegaram “no samba” e nesse lugar de liderança do grupo. Conversamos sobre a história da Gigante, o enredo do carnaval passado e o do próximo, a escolha do samba-enredo, e muitos assuntos de uma vez, atropelados pela minha curiosidade e pela ansiedade deles. Em um descampado atrás da quadra, estava a alegoria da águia, o símbolo da Escola. A águia ainda estava com a “cara do carnaval passado”. Ali, Lacerda não tardou, porém, de trazer o frevo para nossa conversa a propósito de explicar o atraso na confecção da “nova cara” da águia para 2013: Fazer samba na Terra do Frevo é muito difícil. Terra do maracatu e do caboclinho também, mas mais do frevo. As autoridades ainda dão privilégios ao frevo. Mas o samba sobrevive dos amantes, daqueles que amam de verdade; o samba tá no sangue. O samba também é pernambucano e nós não vamos deixar o samba cair.
Minha surpresa, entretanto, foi a forma espontânea e a rápida com que o assunto do frevo e da identidade recifense apareceu nesse primeiro contato. Em entrevista com outros membros da Escola, segui o mesmo exercício intuitivo de não provocar o referido assunto, mesmo assim “o samba na Terra do Frevo” invariavelmente apareceu. A primeira lição para o pesquisador: na quadra da Gigante também é frevo. A gente não tem chance de nada, a gente não tem privilégio de nada. Uma avenida daquela... a gente tira por isso né? A gente não é comentado, só é frevo, maracatu. A gente não é reconhecido. No Rio tem apoio e reconhecimento do samba. Aqui se não fizer festa não tem dinheiro porque a subvenção é pouco, a gente rala muito para colocar a Escola na rua para mostrar que na “Terra do Frevo” também tem samba. (Do Carmo, diretora/secretaria, Gigante do Samba) Eu sou do samba de pequenininho. É difícil fazer samba aqui em Recife, porque aqui falta verba. Aliás, aqui não tem verba pra fazer o samba, que eles acham que nem existe, tem gente da política que nem sabe que existe. Aqui eles só apoiam o Galo da Madrugada, o frevo é o que se vê, não investe aqui no samba que também é do nosso carnaval. (Lenildo, responsável/coreógrafo da Comissão de Frente da Gigante do Samba)
Conforme adiantei na Introdução, apesar de fincar os pés e coração na Gigante do Samba, circulei por entre outros grupos durante a pesquisa. Entrevistei as lideranças das seis escolas visitadas e todas, espontaneamente, acionaram o frevo para falar sobre a experiência de fazer samba em Recife. Na primeira visita, a principal rival da Gigante, a Galeria do Ritmo, do Morro da Conceição, curiosamente, o mestre da bateria, Naná, comandava seus ritmistas com uma
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sombrinha de frevo na mão servindo-lhe de batuta. Marquei um encontro com Mestre Naná, um nome muito conhecido no samba, em sua casa no Alto José Bonifácio. Ele, muito econômico em suas palavras mas contundente, abre a entrevista: “O Recife é ruim de se trabalhar porque a turma só valoriza o frevo”. Seu assistente, Saúba, presente no dia da entrevista, complementa rapidamente: “É como diz: o pobre vive de teimoso que é, faz samba aqui apulso porque não tem condição não, a turma não valoriza o samba, só o frevo, e olhe lá, porque acham que aqui é a “Terra do Frevo””. Na sede-barracão da Escola de Samba Limonil, na Vila São Miguel, muitas penas espalhadas pelo chão para a confecção de adereços de cabeça de inspiração indígena amazonense, para o enredo 2013 sobre Parintins. Ao entrar, Nado, o vice-presidente da Escola mais antiga da cidade em atividade, desculpa-se pela “bagunça” e alerta: “Essas penas pelo chão são Reais espalhados, pena é muito caro”. Na verdade, continuava Nado: “tudo é muito caro para quem é pobre como é o samba aqui em Recife”. O argumento central parecia o mesmo: não há incentivo, não há reconhecimento, e o frevo monopoliza as atenções do poder público: Aqui é conhecido como a Veneza Brasileira e a Terra do frevo. É porque a tradição de Recife e de Pernambuco é frevo e, no máximo, o maracatu. O povo vai ver as escolas porque tem gente como eu que gosta de samba, o samba é diferente, é para quem gosta. A gente paga um preço alto por viver em um lugar onde o samba não é considerado, onde só se vê frevo, maracatu e caboclinho na mídia. Isso me entristece. (Nado, vice-presidente da Limonil)
Fui ainda para a “Escola de Samba Unidos de São Carlos”, bairro de Afogados que, assim como as supracitadas, pertence ao grupo especial, entretanto, apresentava maiores dificuldades financeiras e estruturais. Comparada à São Carlos “Gigante era rica”, nas palavras dos seus próprios componentes. Cheguei a uma sede alugada, minúscula, completamente tomada por adereços, roupas, instrumentos. Chovia muito, diversos baldes espalhados pelo pequeno espaço para amparar as goteiras. Sentamos em um sofá tomado por tecidos e roupas de carnavais passados, prontas para serem “remodeladas”. Nas paredes, adereços de cabeça pendurados, fantasias em cabides, algumas fotos de desfiles passados. O ensaio da bateria, semanalmente realizado na rua em frente dessa casa-sede, fora suspenso por causa da chuva. Conceição, presidente da agremiação, literalmente, apontava as suas preocupações, emocionada desabafou: “É assim como você está vendo, moço, essa é a realidade do samba em Recife, sem glamour, sem brilho, sem dinheiro, só com muito esforço e amor”. Para ela, há uma falta de assistência, por parte do poder público, ao samba pernambucano e, como contraponto, há uma supervalorização ou superexposição do frevo:
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Eles investem mais no frevo. Quando investe no samba é em gente de fora. A gente que é do samba e daqui não vê nada e nem ninguém vê a gente. Parece que estamos invisíveis ou no escuro. A perca aqui da prefeitura é essa. Como é que a gente pode pegar fama em algum lugar se eles só se lembram do frevo e do pessoal de fora pra cantar? Aí fica difícil, não dá pro povo de Recife saber que tem escola de samba aqui, eles trazem e pagam uma fortuna para Mangueira, Tijuca e outras de fora e as daqui nada. Para a gente fazer samba aqui, no lugar que o povo acha que é a Terra do Frevo, é uma luta. O maracatu e o caboclinho ainda ficam na frente do samba, aliás tudo fica na frente do samba né. Aqui a gente faz de teimoso, por causa de muito amor porque eles [a Prefeitura] só enxergam o frevo. (Conceição, presidente, Unidos de São Carlos)
A ideia de fazer samba, ou da dificuldade para fazê-lo na “Terra do Frevo”, faz parte do imaginário social (SOUZA, 2011) das escolas de samba; constitui o repertório de imagens e discursos desse mundo social (BECKER,1977) e incide sobre a experiência atual de pertencer a uma escola de samba na cidade do Recife. Esse capítulo, portanto, lança um olhar sobre a construção do frevo como emblema do carnaval e da cidade do Recife, com vistas a ressaltar a participação das representações sociais (BECKER, 2009) do Rio de Janeiro e das escolas de samba nessa empreitada. O objetivo é propor outro olhar para os conflitos simbólicos entre o frevo e o samba argumentando que a existência do samba e do próprio conflito ajudou a construir a “Terra do Frevo”. Primeiramente, explanei de forma breve a história do frevo, a partir da leitura de atuais referências desse campo. O intuito foi evidenciar a existência de dois momentos para a trajetória do frevo: final do século XIX e começo do XX, quando perseguido e negativamente valorado; em seguida, na década de 1930, transformado em emblema da identidade local, pela atuação do Estado Novo e da Federação Carnavalesca de Pernambuco. Há uma descontinuidade nas narrativas, senão uma supervalorização do projeto ideológico do Estado, perdendo de vista outras dinâmicas e processos para a transformação do frevo em emblema da identidade pernambucana dos quais participam, inclusive, aqueles envolvidos nos conflitos simbólicos. Importante visualizar também a relação de acolhimento e negação, por parte dos mediadores pernambucanos, para com as práticas carnavalescas, oriundas do centro difusor, o Rio de Janeiro (QUEIROZ, 1999). Parto do princípio de que símbolos ou emblemas de uma cultura têm força de representatividade proporcional a sua capacidade de condensar24 sentidos e significados do universo simbólico do qual faz parte e o é anterior. Tais capacidades são atribuídas, em
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Uso o termo ‘condensação’ de sentidos inspirado em Victor Turner (2005, p. 61). Para ele, tendo em vista o que lhe ensina Sapir, o símbolo dominante condensa vários significados em uma forma singular, essa é uma das suas principais propriedades.
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grande medida, potencializadas por intelectuais e outros mediadores25 de reconhecida atuação. Com efeito, a transformação do frevo em emblema identitário foi facilitada, ou conduzida, pela associação exitosa entre ele e os conteúdos da pernambucanidade (representações, do caráter/natureza/marca do povo pernambucano), tornando-o um representante da ideia de ser pernambucano. Em seguida, busco revisitar a ideia de identidade pernambucana (o conceito de pernambucanidade) e sua ligação com o frevo, por meio da análise dos textos de mediadores intelectuais, reunidos numa obra clássica sobre o carnaval do Recife. Aqui também busco entender quais as características mais recorrentes atribuídas ao frevo, como elas lhe conferem um status de destaque no repertório das “coisas pernambucanas”. Por fim, reflito a relação entre as escolas de samba, o frevo e os conteúdos da pernambucanidade entre os anos de 1930 e a década de 1940, quando as Escolas se organizam e se estabelecem como movimento forte, atuante no carnaval do Recife. 1.1
O Mistério do Frevo
Hermano Vianna (2004), ao estudar a transformação do samba de expressão popular do Rio de Janeiro em emblema da identidade da Nação, chama atenção para a fissura presente nas narrativas históricas sobre a temática marcada por dois momentos distintos: o primeiro, o samba encastelado nos morros cariocas; o segundo, a conquista das ruas, carnaval, das rádios, passando a “simbolizar a cultura brasileira em sua totalidade” (p.29). Essa passagem de “ritmo maldito a música nacional” (consolidado na década de 1930) apresenta-se como uma descontinuidade, encobre o “mistério do samba” 26. Ao mesmo tempo, quando nos deslocamos para Recife, as narrativas históricas disponíveis sobre o frevo relatam sua passagem de prática
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Inspirado em Vianna (2004, p. 41) “A existência de indivíduos que agem como mediadores culturais, e de espaços sociais onde estas mediações são implementadas, é uma ideia fundamental para a análise do mistério do samba”. Renato Ortiz (2012, p. 139) destaca a participação de determinados agentes na construção da memória e da identidade que se querem nacional. Para tanto, aciona a ideia de mediação como ação promovida parte de intelectuais na reinterpretação simbólica de algo que é particular, restrito a um grupo, para ser “universal”. Pensando em consonância com Dominichi Miranda de Sá (2006, p.26) que “Argumentos, enunciados e ideias têm assim, valor de ação. Em outras palavras, produzir criticamente já significaria intervir na ordem social”. 26 Além de Hermano Vianna (2004), Ruben Oliven (1989) e Peter Fry (1982) que demandam esforços para análises da produção do samba e do carnaval antes reprimidos pelo Estado e depois projetados como emblemas da nacionalidade. Renato Ortiz (2012, p. 140) também se dedica a analisar processos de reinterpretação simbólica por parte dos intelectuais do país que transformam “práticas populares em expressões da cultura nacional”. Bem como Maria Isaura Pereira de Queiroz (1994) que lida diretamente com a transformação do samba em símbolo da identidade nacional, sua obra “Carnaval Brasileiro” é um clássico do tema.
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carnavalesca perseguida a emblema do carnaval de Pernambuco, descontinuidade similar à constatada por Vianna na construção da história do samba, este, o “mistério do frevo”. Segue uma breve análise da historiografia sobre o frevo, a partir dos trabalhos dos historiadores Rita de Cássia Barbosa de Araújo (1996 e 2008), Mário Ribeiro dos Santos (2008) e Lucas Vitor da Silva (2009). São produções mais recentes que fogem das lógicas memorialistas e/ou folclóricas recorrentes na bibliografia especializada. Buscam construir novas narrativas na chave das elaborações identitárias. Preocupam-se em relacionar a história do carnaval ao contexto do Recife do final do século XIX, chamando atenção para os processos de urbanização, de modernização de uma cidade vivendo mudanças sociais, políticas, econômicas, culturais, centro urbano em formação de um país recém-independente. Suas interpretações27 convergem quando analisam a trajetória do frevo até a transformação em emblema identitário de Pernambuco e relação com o arranjo organizacional e simbólico do carnaval da cidade. 1.1.1 O núcleo disseminador e a província rebelada. Araújo (1996 e 2008) e Silva (2009) recuam historicamente para as representações oitocentistas do carnaval pernambucano. A começar pelo entrudo28 no Recife, brincadeira carnavalesca de origem medieval, trazida pelos portugueses, muito difundida ainda nos tempos de colônia29. É uma forma de divertimento carnavalesco comum em muitas partes do Brasil, da qual participavam diferentes camadas da população, muito embora Araújo (1996) sinalize para as demarcações de classe na dinâmica da brincadeira em Pernambuco. Com o
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Respaldadas na produção da imprensa local, documentos oficiais e relatos de cronistas dos séculos XIX e primeiras décadas do XX As fontes jornalísticas, em especial, têm servido como base de pesquisa e interpretação para muitos historiadores pernambucanos dedicados ao frevo e ao carnaval como os importantes trabalhos de Leonardo Dantas Silva (2000) e Evandro Rabello (2004). Este último responsável por encontrar a primeira vez em que a palavra ‘frevo’ aparece nos registros da imprensa, em 09 de fevereiro de 1907. 28 A palavra entrudo é de origem latina, “intróito”, introdução, período que antecede a quaresma. No Recife, registros históricos apontam sua presença desde o século XVI (Dantas Silva, 1991:14) Para localizar suas as origens medievais e perceber os significados dessas brincadeiras como herança de uma visão carnavalesca de mundo, ver Mikhail Bakhtin (1999). Referências atuais do entrudo são as brincadeiras de mela-mela, muito comuns em Pernambuco, em especial nos municípios do interior do Estado, torna-se uma brincadeira para sujar a quem estiver por perto com lama, farinha, e outros materiais. Sobre o mela-mela ver Roberto Benjamim (1991), Leonardo Dantas Silva (1991:30) e Evandro Rabello (1991). 29 Consistia em “atacar” o outro, a princípio com água, depois com farinha, goma, limas-de-cheiro, e até com “materiais pouco recomendados” (urina, lama e frutas podres). De maneira bem objetiva Ruy Duarte (1968: 14) explica o que são limas de cheiro: “uma espécie de ovo, confeccionado com cera, cheio de água perfumada”. Rita de Cássia Araújo (1996) fala sobre a confecção e venda das limas de cheiro por escravos e ex-escravos em tabuleiros no centro do Recife.
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estabelecimento do Império, as elites citadinas não mais se identificavam com a brincadeira30, agora associada ao passado colonial, sinal de atraso, costume anti-higiênico, violento, de procedência pré-cristã31, entre outros qualificativos negativos. Instaurou-se uma campanha sistemática propalada pela imprensa para a sua proibição, à luz dos ideais de “modificações nos padrões de comportamentos e valores da sociedade da época” (ARAÚJO, 1996, p. 147). A crítica ao entrudo, desse modo, está a serviço da “identificação dos costumes das elites escravocratas com os costumes das ‘nações européias civilizadas’, as ‘nações cultas’ [como a França e a Inglaterra], tidas como verdadeiros modelos de sociedade, espelhos de civilização e progresso.” (SILVA, 2009, p. 45). O entrudo aos poucos condensa sentidos negativos. Em contrapartida, os bailes de máscaras, à moda veneziana, mostram-se como o modelo de diversão carnavalesca mais adequado às pretensões civilizatórias do Império, às novas construções imagéticas, discursivas sobre a nação. Duas práticas carnavalescas dispostas, pelas narrativas históricas, em um arranjo que ilumina tensões socioeconômicas e hierarquias sócio-raciais, traduzidas na oposição carnaval popular (a ser impedido ou controlado) e o carnaval das elites (representativo do novo contexto, a ser valorizado e difundido)32. O primeiro baile de máscaras do Recife ocorre em 1845, cinco anos depois do pioneiro baile do Rio de Janeiro33. Para Ferreira (2004, p. 380), enquanto, no Rio de Janeiro, a burguesia procurava seguir o exemplo parisiense, em Recife e outros centros urbanos, “o grande modelo era a festa fluminense, sem se desprezar, é claro, as influências vindas
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Silva (2009:44) destaca a relação entre a participação nas práticas carnavalescas e a construção de uma identidade de classe: “O entrudo brincado pelas elites desde o período colonial fazia parte do rol de práticas condenáveis na instituição da identidade da própria classe senhorial do Império” 31 Araújo (1996, p. 155) ressalta que este argumento religioso surge como parte da campanha desfavorável ao entrudo a sua associação às festas pré-cristãs, orgias gregas e saturnais da antiga Roma. 32 Esta polarização é um esquema para visualização dos conflitos sociais e simbólicos que se estabeleciam no Recife e de igual maneira no Rio de Janeiro. Tanto a elite também participava, a seu modo, da entrudança, quanto os bailes se popularizam e as máscaras são apropriadas pelo “povo”. Os trabalhos de Felipe Ferreira (2004 e 2005) e Araújo (1996) atentam para esta relativização: o primeiro, ao trabalhar a história do carnaval carioca; a segunda, o recifense. Ao ler as duas narrativas, percebe-se a proximidade entre o Recife e o Rio de Janeiro, no que concerne aos acontecimentos, à produção de sentidos, aos embates simbólicos, às posições oficiais que são evocadas pela produção historiográfica do carnaval das duas cidades. Especialmente, para ver as similares construções discursivas e estruturas analíticas de que ambos lançam mão para trabalharem o mesmo tema em lugares diferentes. Assim como no Recife: “O carnaval desejado pela burguesia carioca buscará, deste modo, afastar-se do modelo ‘caótico’ e ‘desorganizado’ do entrudo ‘português’, impondo à festa a idéia de ordem, de regulamentação e de purificação, tão cara ao século XIX (...)” (FERREIRA, 2005, p. 32) 33
Evandro Rabello (1978) e Ferreira (2005) afirmam que algumas fontes históricas informam que o primeiro baile carioca foi no ano de 1835; “[...] Vivaldo Coaracy, em Memórias da Cidade do Rio de Janeiro, relata, entretanto, que já em 1835 aconteceram bailes mascarados públicos no Hotel Itália e no Café Neuville.” (FERREIRA, 2004, p.110).
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diretamente de Paris”. Silva (2009) atenta para a atuação da imprensa na crítica ao entrudo e valorização dos bailes de máscaras, representantes de “bom gosto e luxo”: À moda européia, o Carnaval passava a ser sinônimo de luxo, de danças, de cantos, de banquetes, de recitais musicais, de festas em teatros e de bailes de máscaras. Aqui, os jornais assumem um papel importante. É pela imprensa que se constrói a crítica contra os ‘devaneios do nosso carnaval’ e os ‘exageros do entrudo’, e se elogia o luxo e a riqueza das máscaras e fantasias, e se convida a elite pernambucana para os bailes luxuosos em teatros como o Santa Isabel. Esse novo Carnaval mascarado era sinal de ‘civilidade’, ‘polidez’, ‘bom gosto’ e ‘luxo’. (SILVA, 2009, p. 51)
Maria Isaura Pereira de Queiroz (1999, p. 25), por sua vez, afirma que o Rio de Janeiro atua, desde o século XIX, como “centro de difusão de ideias para diferentes províncias – incluindo as novidades carnavalescas.”. Essa posição de núcleo disseminador de “idéias de comportamentos ‘modernos’ e ‘civilizados’”, porém, perde força apenas nos anos de 1960, com a instalação de Brasília e a destituição do Rio de Janeiro do privilegiado posto de capital federal, mas não o de “Capital do Carnaval”. Seu papel de núcleo disseminador dos folguedos data do século XIX [...] Era uma cidade comercial, e as qualidades do seu porto se tornavam porta de entrada privilegiada não só para mercadorias mas também para idéias [...] O Rio de Janeiro tornou-se portanto centro de difusão de idéia para diferentes províncias – incluindo as novidades carnavalescas. Proclamada a independência do país em 1822, a posição do Rio de Janeiro como capital federal foi reforçada, sua função de centro propagador de idéias e de comportamentos ‘modernos’ e ‘civilizados’ se fortaleceu. A transferência da administração do país para Brasília, em 1960, diminuiu sem dúvida a influência do Rio sobre o restante do país [...] E continua ser considerado por excelência a Capital do Carnaval.
Para Araújo (1996), a adoção de um modelo similar ao que ocorre no Rio de Janeiro é estratégica para a “luta” recifense contra o fluxo de perda de “prestígio, riqueza e poder” que ocorrera ao longo do século XIX, no Norte, em detrimento ao “enobrecimento” e enriquecimento do Sul do país. Os bailes de máscaras não só representavam o ideal de civilização burguesa almejado pelos grupos modernizadores para a província, como expressavam, no plano simbólico a luta dos pernambucanos para garantir sua posição política no cenário nacional e no internacional. Luta que se fazia tão mais necessária e angustiante quanto se tornavam mais perceptíveis as perdas de prestígio, riqueza e poder nas províncias do Norte para a região Sul do país, enobrecidas com as plantações de café. (ARAÚJO, 1996, p.182).
Araújo (1998) ainda afirma que a valorização dos bailes de máscaras pelas elites e pela imprensa espelha a intolerância desses segmentos, por ela designados como ‘dominantes’, em relação às manifestações culturais das camadas populares. Entretanto, à revelia da repressão e da desvalorização de suas práticas, as camadas populares, além dos jogos de entrudo,
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“divertiam-se nas ruas do Recife brincando nos sambas, maracatus, cambindas, fandangos, caboclinhos, nos bumba-meu-boi, grupos de Zé Pereira e máscaras improvisadas desde, pelo menos, 1859” (ARAÚJO, 1998, p. 86). Na segunda metade do século XIX, os mascarados também ganham as ruas, subvertem e disputam o espaço público com tais brincadeiras populares. A autora informa que, a partir da década de 1870, o carnaval passa a ser uma festa vivenciada predominantemente no espaço público. “Eventos em recintos fechados continuaram a existir, mas, longe estavam de ser a expressão máxima da celebração” (p.246). Assim, em 1872, aparecem as sociedades carnavalescas e clubes de alegoria e crítica recifenses aos moldes dos que já existiam no Rio de Janeiro34. Do mesmo modo que suas precursoras cariocas, os Clubes de Alegoria e Crítica Philomomos, Philocríticos, Cavalheiros de Satanás, Filhos da Candinha, Quatro Diabos, Anjos Rebeldes, já no século XX, os Caraduras e Dragões de Momo (Dantas Silva, 1991) eram formados pelas camadas mais abastadas da sociedade recifense, percorriam as ruas da cidade com luxuosas máscaras e fantasias, carros alegóricos, cavalos enfeitados. Tornaram-se sinônimo de carnaval civilizado, elegante e valorizado. Até o final do século XIX, o Rio de Janeiro ainda é acionado como uma referência positiva, modelo seguido. A partir da década de 1880, com as mudanças políticas, como a abolição da escravidão e proclamação da república, expansão urbana, modernização e a formação de uma nova classe trabalhadora, surgem os clubes pedestres35. Diferentemente dos clubes de alegoria e crítica, seus quadros eram compostos por pessoas das camadas populares - da nova classe trabalhadora, mas também, da “parcela marginalizada da população e excluída do mundo legítimo da ordem e do trabalho” (ARAÚJO, 1996, p. 240) -. Exibiam-se a pé, sem a pompa dos carros alegóricos, acompanhados pelas bandas marciais36 nas ruas estreitas do centro da 34
Carlos Eugênio Líbano Soares (2005, p.299) informa que desde 1850, as elites cariocas participavam do carnaval de rua com seus “imensos carros alegóricos, dando partida ao carnaval apoteótico do século XX”. Ver também Maria Clementina Pereira Cunha (2005, p. 409) e Felipe Ferreira (2004 e 2005), os quais detalham a inserção das elites nas ruas e apontam o Congresso de Sumidades Carnavalescas de 1855 como a sociedade carnavalesca carioca que serviu de referência para outras surgidas posteriormente – Club X, União Veneziana, Estudantes de Heidelberg e Boêmia. E ainda, as mais famosas, Tenentes do Diabo, Club Democráticos e Fenianos que, em 1860, firmam-se como as principais referências do carnaval com seus carros alegóricos. 35 Os primeiros são Club dos Symphaticos, Mimo de Amor, Sociedade Musical Arte e União. No final da década de 1880, surgem os mais propalados pelas narrativas históricas, tais como Caiadores, Vassorinhas, Cana Verde. Atualmente são mais de 120 grupos no Recife e na Região Metropolitana. Sobre a formação histórica dos clubes pedestres – também chamados de clubes de frevo, devido à interferência de Katarina Real -, ver Araújo (1996); sobre dados atualizados, ver Lélis (2011). 36 As bandas desempenham um papel de destaque na vida musical das cidades de todo o Brasil durante o século XIX. É presença obrigatória em festejos púbicos (como o carnaval) e outras solenidades. Além dos tradicionais dobrados e marchas, as bandas executavam gêneros da moda – polcas, quadrilhas, tango, música clássica, bem como os mais abrasileirados, como maxixes e lundu. A musicalidade do frevo é oriunda da combinação e aceleração desses ritmos. Maiores detalhes, ver Lélis (2011) e Dantas Silva (1991).
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capital pernambucana, vielas, pátios e praças dos bairros de São José, Santo Antônio e Boa Vista. A rivalidade entre as bandas, posteriormente transferidas para os clubes pedestres, foi por muitos anos a tônica do carnaval do Recife (DANTAS, 1991). Não só disputavam virtuosidades musicais, quando dos encontros inevitáveis ou programados, como iam à violência de fato, pois, à frente das bandas e dos clubes, estavam os capoeiras37 (ex-escravos, trabalhadores braçais, “homens da vadiagem”), a abrirem alas, demonstrarem habilidades e defenderem seus partidos. Do repertório musical das bandas (polcas, tangos, quadrilhas, peças eruditas, maxixes...) em especial, da hibridização e aceleração de dobrados e marchas, surge a música do frevo. A dança, o “passo”, é parte herança da capoeira, outra da inventividade espontânea na interação com um ritmo musical em formação “Os movimentos ágeis e definidos dos corpos, por sua vez, retornavam aos músicos e inspiravam novos acordes, num processo incessante de troca, improvisação e criação coletiva” (ARAÚJO, 1996, p. 362). As representações do frevo pautam-se nos clubes pedestres, na imagem da rua, circunscrição territorial e simbólica do conceito de povo. Referem-se a um jeito particular de brincar o carnaval com musicalidade e dança únicas, por isso tipicamente pernambucano, a princípio, tido pelas elites intelectuais como violento, selvagem e descontrolado, depois plenamente acolhido. Trata-se de representações contrárias ao “projeto cultural”, pautado no modelo de carnaval europeu; em segunda instância, do Rio de Janeiro, dos bailes de máscaras, do clube de alegoria e crítica, e do corso. Este último, um desfile de automóveis decorados com temas carnavalescos, para exibição pelas ruas, durante o carnaval das primeiras décadas do século XX, prática comum em outras capitais e também pela elite recifense na década de 1920. Explica Santos (2008, p. 76): “[...] vincula-se ao projeto de modernização das capitais brasileiras e à popularidade do automóvel na paisagem urbana nas cidades, principalmente entre as classes financeiramente privilegiadas”. Mário Melo38, em 1929, reivindica menos espaço no carnaval do Recife para o corso, considerando-o um atentado contra a “democracia”, característica dessa festa, uma prática oriunda do Rio de Janeiro, portanto, sua existência na capital pernambucana era uma “macaquiação”: 37
Homens a abrir alas na multidão para fazer suas demonstrações de desenvoltura, força e flexibilidade em movimentos e firulas de ataque e defesa que na maioria das vezes não eram apenas representações. Daí veio o “passo”, a dança do frevo, da destreza, da luta, do repertório dos movimentos e da liberdade criativa da capoeira. Um dos principais trabalhos sobre a capoeira e o passo é o de Valdemar de Oliveira (1985), tornou-se um clássico da temática. Sobre os capoeiras e o carnaval do Rio de Janeiro, ver Líbano (2005). 38 Uma voz muito importante para a emblematização do frevo, Jornalista, escritor, deputado, um dos fundadores da Federação Carnavalesca Pernambucana em 1936, autor de vários textos e falas públicas em favor do frevo e da manutenção das tradições carnavalescas “autenticamente pernambucanas”. Melo, Mário. Mais uma tradição que morre. ( Diário de Pernambuco, Recife 12/02/1929, p. 01. Apud. ARAÚJO, 2008, p. 91). Esse mesmo argumento pode ser encontrado contra as escolas de samba, a partir de 1940.
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[...] o carnaval do Recife era coisa bem diferente do que lhe estão impondo [...] Contava-se por dezenas de milhares o número de pessoas que acompanhavam um desses clubes – gente de todas as classes, de todas as cores, numa promiscuidade tal que poderia dizer-se, a democracia no Brasil só era praticada no Recife, nos três dias de carnaval [...] Como, porém, no Rio de Janeiro o carnaval se restringe ao corso de automóveis na Avenida e como vivemos de macaquiação [...] (grifos meus)
Diferentemente desses, o frevo, leia-se nos termos dos clubes pedestres e da festa de rua, é desenhado como uma manifestação carnavalesca autenticamente pernambucana, democrática e popular, da qual todos participam39. As suas representações fornecem, então, os dois conceitos estruturantes da festa carnavalesca da cidade ainda atualmente acionado, o carnaval do Recife é tido como autêntico, democrático e popular, ele é o frevo. O frevo simbolicamente transforma a festa, modificando inclusive a relação com o “núcleo difusor de práticas carnavalescas” (QUEIROZ, 1999), o Rio de Janeiro. Diferentemente do século XIX - quando o movimento de “civilizar” o carnaval, com o enfrentamento ao entrudo e a instauração de bailes de máscaras, fazia do Rio de Janeiro um modelo a ser seguido -, no começo do século XX, com a projeção do frevo, as práticas carnavalescas associadas à capital federal parecem gradativamente ocupar outro espaço simbólico, o da diferença ou contraponto negativo, não deixando, porém, de ser uma referência. O corso, nos anos de 1920, as marchinhas do carnaval carioca com a difusão das rádios nos anos de 1930 e 1940, as escolas de samba a partir dos anos 1940, serão representadas como elitistas, excludentes, modernas e estrangeiras. 1.1.2 O “Projeto Cultural” e o Mistério. As análises históricas de Araújo (1996) e Santos (2010) para a transformação do frevo em símbolo de identidade pernambucana são forjadas nos conflitos sociais e simbólicos entre “elite” e “povo”40. Houve, para Araújo, um “projeto cultural” orientado pelas elites pernambucanas com vistas à elaboração do frevo como “símbolo de identidade coletiva”, 39
Araújo, (1996, p. 366) credita a definição e separação dos papéis de participante (ativo) e espectador (passivo) aos propósitos do projeto cultural das elites: “O projeto cultural das elites previa duas alternativas para serem ocupadas pelas camadas populares, em relação às festividades momescas: transformá-las em inexpressivos espectadores de um espetáculo alheio – o que absolutamente não aconteceu – ou reprimi-las pela força 39 policial” . (grifo meu). 40 Assumidamente inspirada em E. P. Thompson (A formação da classe trabalhadora inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977) sua perspectiva ilumina a formação da classe trabalhadora em Pernambuco e a compreensão da sociedade, vista pelas situações de conflito advindas das experiências de classe e relação de produção que se expressam em termos culturais e colocam em pólos opostos trabalhadores e elite. A perspectiva da relação conflituosa (elite e povo) estará presente também nos trabalhos de Santos (2010) e Silva (2009).
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projeto engendrado em um contínuo histórico de atuação de tais elites no controle dos conteúdos simbólicos e da dinâmica do carnaval do Recife. Para a historiadora, em 1914: “[...] o frevo já estava consolidado como forma específica das camadas populares vivenciarem o carnaval e, por outro lado, já se delineavam os traços embrionários do projeto cultural que o transformaria em símbolo da identidade coletiva” (ARAÚJO,1996, p. 22). Orientação similar aparece em Santos (2008, p. 223): “Essa construção do carnaval popular não nasce aleatoriamente, sem haver a intermediação de alguém, de um grupo ou de uma instituição. É fruto dos esforços dessas “coletividades obreiras”, do Estado e das elites recifenses [...]”. Para Santos (2010) e Araújo (2008), a transformação do frevo em “símbolo da identidade pernambucana” ocorre quando, na década de1930, o Estado Novo41 se apropria do carnaval popular, antes perseguido, e o transforma em uma das suas imagens-síntese da integração e identidade nacional. Em suas narrativas, o final do século XIX e os primeiros anos da década de 1900 foram marcados por severa repressão policial e jurídica ao carnaval de rua do Recife, com fins de controle dos seus conteúdos estéticos e simbólicos. Na década de 1930, o Estado Novo e as elites locais abrandam a repressão, repensam estratégia e articulam uma política da aproximação entre poder público e agremiações carnavalescas, com o objetivo de disciplinar o carnaval popular e organizar seus grupos. Deste modo, a transformação do frevo em símbolo de identidade se consolida na década de 1930, devido às forças do Estado Novo, na cooptação das agremiações carnavalescas. Esta ação conta com a participação da Federação Carnavalesca de Pernambuco (FECAPE), fundada em 1935. A entidade adota a missão de proteger as tradições, especialmente o frevo e “não permitir que se descaracterize o carnaval pernambucano que é tipicamente regional”42. Fundada por intelectuais, políticos e empresários com a função de intermediar, regulamentar e organizar o carnaval, é também incumbida de distribuir o subsídio público municipal entre suas filiadas (concedido a partir de 1937). Nesse sentido, a entidade foi preenchida de poderes simbólicos, econômicos e políticos. Embora a atuação da FECAPE e do Estado Novo, no processo de transformação do frevo como emblema do carnaval de Pernambuco, seja importante, não deve ser 41
Existe vasta bibliografia que disserta sobre a ideia de cooptação das manifestações populares e do carnaval por parte do Estado Novo. Rubem Oliven (1989, p. 73) aponta a década de 1930 como marco da transformação do carnaval em símbolo de identidade nacional, a perseguição às práticas carnavalescas populares por parte do Estado, até que, na década de 1930, o Estado Novo percebe a importância política que as agremiações carnavalescas apresentavam enquanto associações civis organizadas, aplicando novas intervenções, numa dinâmica de reapropriação do carnaval, responsável por transformá-lo em símbolo nacional. Ver também Renato Ortiz (2012). 42 20/10/1936, Diário oficial, n. 63, ano II pág. 582, parecer do Deputado Arthur de Moura concedendo à Federação Carnavalesca de Pernambuco o título de Utilidade Pública.
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superestimada. Caso isso ocorra, corre-se o risco de se perde de vista a relevância das resistências às demandas do Estado Novo, das mudanças nos paradigmas fomentadores da construção das identidades nacional e local, além da dinâmica cultural de ampla participação destituída da perspectiva de um projeto político de cooptação. Um processo de emblematização, apesar de constituído por significados ideológicos, não se resume a eles. O frevo precisou ser investido de sentidos que permitiram sua transformação em um emblema da identidade pernambucana, mas, sentidos conectados com a experiência, com vida social da cidade, bem como, com a história de Pernambuco. Precisou alinhar-se com um repertório de identidade anterior a ele e dialogar com outros elementos da “cultura pernambucana”, um trabalho mais amplo do qual, na condição de um dos agentes do processo, participaram também a FECAPE e o Poder Público. Para Ruy Duarte (1968, p. 91)43: “Aí está o frevo, nascido dos pés descalços dos valentões e dos moleques de rua do Recife do passado, numa síntese das grandes lutas e dos grandes dramas vividos pelo povo pernambucano”. Seguindo suas pistas, chamo atenção para o processo de inserção do frevo no repertório de elementos da identidade pernambucana, considerando-o bem sucedido quando consegue sintetizar em suas representações, grandes lutas e grandes dramas do povo pernambucano... Como ele conseguiu é parte do seu mistério, burilar o mistério não significa desvendá-lo.
1.2
Que é Pernambucanidade?
De acordo com Hall (2006, p. 49), os conteúdos identitários passam pela ideia de representação, o “inglês” só existe devido ao modo como a “inglesidade” veio a ser representada. Assim atenta para a existência de “estratégias representacionais” que envolvem a escolha de alguns elementos a serem investidos de significados e transformados em representações. Neste processo, o que vai atuar na conformação da brasilidade e da pernambucanidade são os múltiplos arranjos no compartilhamento dos repertórios disponíveis na cultura, compartilhamentos que revelam as diferenças e os variados níveis de comunalidade numa mesma sociedade. Assim, em consonância com Fredrik Barth (2000, p. 212): “Se você é balinês, você se vê como balinês. Há identidade, mas também enorme diversidade do que é ou não compartilhado no interior do que essa identidade abrange”. 43
Jornalista, pesquisador e escritor, autor de História Social do Frevo, em 1968.
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Nilo Pereira lança a pergunta: que é pernambucanidade? Que é Pernambucanidade? Pode-se entender por essa expressão um estado de espírito. Uma vivência histórica. Um modo de ser. O pernambucano, talvez mais do que qualquer outro brasileiro, tem a sua singularidade [...]. Se o mineiro é a sabedoria política, o pernambucano é a inconformação que gera as revoluções, um estado de insatisfação [...]. A pernambucanidade deve ter nascido na luta contra o flamengo. Uma luta de vida e morte. Aqueles vinte e quatro anos de dominação contribuíram para dar a Pernambuco o sentido histórico de sua pernambucanidade. Foi o sentido que venceu o intruso. Esse sentimento tem o nome de pernambucanidade. [...] Pernambuco tem sido fiel a essa herança. Daí ser pernambucanidade uma forma de vitalidade histórica. Um retrato nítido do povo que encarou vivamente, heroicamente, o espírito de rebelião, que terminou sendo o espírito de independência. (PEREIRA, 1983, p.167, vol. I) (grifo meu)
Nilo Pereira44 tenta responder essa difícil pergunta como um pernambucano “fiel a sua herança”. Pernambucanidade45, para ele é “Estado de espírito”, “modo de ser”, “sentimento”, “nota distinta”. Trata-se de uma categoria usual na literatura sobre a cultura ou a história de Pernambuco, entendida, grosso modo, como sinônimo para ‘identidade pernambucana’46, mais precisamente, diz respeito a uma das formas de pensar e representar tal identidade. Pernambucanidade designa um dos conjuntos de referências históricas e míticas, norteadoras de elaborações identitárias para Pernambuco, forjado desde o século XVII, ganha força no final do século XIX e começo do XX, com a atuação do Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico de Pernambuco (IAHGP) e depois com a participação do Movimento Regionalista e do Movimento Folclórico47. Um repertório de narrativas históricas e míticas pretensamente determinantes dos traços psicossociais de um “autêntico” pernambucano. Um léxico de intenção generalizante atribuído ao universo simbólico (BERGER e LUCKMANN, 1985)48, em que se alojam e operam representações imagéticas e chaves discursivas sobre Pernambuco. Essas são constitutivas da experiência social, conecta a ideia de ser
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Nilo Pereira foi Jornalista, professor da Universidade Federal de Pernambuco, ensinou história para os cursos de filosofia; foi também político gestor público. Sua obra intitulada “Penambucanidade” de 1983 replica os discursos da identidade pernambucana a partir da narrativa mítica da Restauração Pernambucana; trata-se de um trabalho emblemático da continuidade deste aparato identitário. 45 Não se sabe ao certo quem criou essa palavra. Segundo Nilo Pereira, “foi neste nosso tempo, por influência de Gilberto Freyre, que surgiu essa palavra - pernambucanidade – e logo se sentiu que ela encarnava um Pernambuco verdadeiramente Leão do Norte.” (Nilo Pereira, 1983, p.168). 46 A ideia de pernambucanidade, origens e popularização deste léxico-conceito é desenvolvida na dissertação de mestrado de Leandro Patrício da Silva, defendida em 2012, no Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura Regional da Universidade Federal Rural de Pernambuco. Intitulada “De Guararapes veio tudo: representações da pernambucanidade no discurso dos políticos Pernambucanos”. 47 Sobre a ideia de movimento folclórico, ver Rodolfo Vilhena (1997). 48 [o universo simbólico] “Localiza todos os acontecimentos coletivos numa unidade coerente, que inclui o passado, o presente e o futuro. Com relação ao passado, estabelece uma memória que é compartilhada por todos os indivíduos socializados na coletividade. Em relação ao futuro, estabelece um quadro de referências comum para a projeção das ações individuais. Assim, o universo simbólico liga os homens com seus predecessores e seus sucessores numa totalidade dotada de sentido [...]..” (BERGER e LUCKMANN, 1985, p. 132)
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pernambucano a um passado comum, promovendo perspectivas de pertencimento, coletividade e continuidade. A Restauração Pernambucana contra o domínio holandês (1654) é considerada por muitos historiadores como marco para a formulação da pernambucanidade, mito de origem49 do “povo pernambucano”. Partindo dessa perspectiva, o historiador Evaldo Cabral de Mello (2008, p. 20) analisa a construção do mito a partir da visão local da permanência holandesa, mais especificamente do episódio da expulsão, preenchida por deformações, “mistificação histórica à derrapagem de significados” (p. 19). Assim, desde as crônicas luso-brasileiras do século XVII, sobre a guerra contra os holandeses, foram produzidas narrativas com interpretações heróicas e patrióticas a nos contar a vitória triunfante dos pernambucanos contra o “inimigo da pátria”. Mello (1997, p. 66) destaca a importância da atuação do Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico de Pernambuco (IAHGP) para a produção e preservação da memória da Restauração, para a reorientação da historiografia brasileira com vistas à valorização da história produzida no Estado50. Assim, a partir de 1862, com o IAHGP, “a memória restauradora passa a dispor da armação institucional indispensável a sua preservação”, no trabalho de “preservar a tradição histórica da província frente ao imperialismo da historiografia do Rio, imperialismo na dupla acepção da atividade expansionista [...] e de apologia dos valores ideológicos do regime imperial” (MELLO, 1997, p. 67)51. O Instituo, portanto, tem como um de seus objetivos corrigir a orientação historiográfica nacional, de caráter imperialista, que impõe como nacional a história produzida no Sudeste. Lilian Schwarcz (1993, p. 120), em suas análises acerca da produção do Instituto, ressalta a grande quantidade de trabalhos e menções sobre a expulsão dos holandeses entre os
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“[...] Fundamentalmente, um mito fundador remete a um momento crucial do passado em que algum gesto, algum acontecimento, em geral heróico, épico, monumental, em geral executado por alguma figura ‘providencial’”. (SILVA, Tomaz Tadeu da, 2012, p. 85). 50 De acordo com o historiador “[...] a visita do Imperador em (1859) e de Varnhagen pelo Recife (1861) haviam balançado os brios provinciais ao por em relevo o abandono a que haviam sido relegados os vestígios do passado e ao indicar a ignorância que pesava sobre ele” (MELLO, 1997, p. 66). Varnhagen, por sua vez, é autor do livro ‘História Geral do Brasil’, visto pelos intelectuais pernambucanos da época como obra com deformações de perspectiva unitária e fluminense, e criticado pelo tratamento intolerante com a Revolução de 1817. (MELLO, 1997, p. 67). 51 Disputas simbólicas se instalam no campo das autoridades e legitimidades historiográficas, o imperialismo do Rio é a sobreposição da história do Sul-Sudeste como nacionais, diante das outras histórias tidas como locais. Segundo Mello (1997, p. 68-69): “O Instituo Pernambucano foi, com exceção do efêmero Instituo Baiano de História, a primeira entidade provincial a romper o monopólio, até então deito pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, de enunciar a história do Brasil, fazendo-o, ao contrário deste, numa perspectiva regional, de maneira a reificar sua perspectiva centralizadora”.
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anos de 1870 e 193052. Sinaliza a recuperação da história da pátria com ênfase na participação de Pernambuco nos destinos do país, atendendo aos desejos de “manutenção da hegemonia pernambucana no interior da região nordestina”, ameaçada com a crise econômica e com o crescente desprestígio político das províncias do Norte. Schwarcz (1993, p. 121) detectou a recorrência da leitura maniqueísta e heróica da Batalha dos Guararapes53 - “de um lado o ‘ignominioso jugo estrangeiro’ de outro a heróica resposta do povo pernambucano” - e os esforços da aristocracia política, econômica e intelectual de Pernambuco do final do século XIX, em forjar uma “raça pernambucana”, cuja “valentia, abnegação e patriotismo passam a constituir adjetivações suficientes para a formação da identidade”. O Leão do Norte54 bradava ideais libertários e revolucionários. Ser pernambucano estava vinculado a uma inerente natureza insurreita, inconformada, rebelde, patriótica e corajosa55. Vale ressaltar, desse modo, que a restauração da possessão portuguesa do domínio holandês aparece como precursora de outros episódios, as chamadas revoluções liberais, portadoras dos mesmos ideais a mobilizar a mesma “natureza”, reafirmando o jeito de “ser pernambucano” - Guerra dos Mascates (entre 1710 e 1712), Revolução Pernambucana em (1817), na Confederação do Equador (1824), e Revolta Praieira (1848)56. A produção intelectual do IAHGP propõe uma interpretação própria da história de Pernambuco – ufanista, celebrativa, épica e fundante – apresentadas para intencionalmente acionar e alimentar o orgulho por ser/pertencer a um lugar especial e de peso na trajetória da nação. Nessa produção, Pernambuco é representado com características singulares diante do
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Segundo Schwarcz (1993, p. 120), neste Instituto , 51% da produção realizada entre os anos de 1870 e 1930 é sobre a Invasão Holandesa, com foco na resistência heróica dos pernambucanos e a narrativa “épica” da expulsão. 53 Nome dado à definitiva batalha da Insurreição Pernambucana, em 1654. 54 Alcunha de Pernambuco, alusão aos tempos de hegemonia econômica no período colonial. 55 O Hino de Pernambuco, de Oscar Brandão da Rocha e Nicolino Milano (1908), traz estas referências: Coração do Brasil, em teu seio /corre o sangue de heróis - rubro veio/que há de sempre o valor traduzir /És a fonte da vida e da história/desse povo coberto de glória /o primeiro, talvez, no porvir. / Salve, ó terra dos altos coqueiros/ de belezas soberbo estendal/ nova Roma de bravos guerreiros/Pernambuco imortal! Imortal! /Esses montes e vales e rios/ proclamando o valor de teus brios/ reproduzem batalhas cruéis/ No presente és a guarda avançada/ sentinela indormida e sagrada / que defende da pátria os lauréis./ Do futuro és a crença, a esperança/ desse povo que altivo descansa/ como o atleta depois de lutar/ No passado o teu nome era um mito/ era o sol a brilhar no infinito/ era a glória na terra a brilhar/ A república é filha de Olinda/ alva estrela que fulge e não finda/ de esplender com os seus raios de luz/ Liberdade um teu filho proclama/ dos escravos o peito se inflama/ ante o sol dessa terra da cruz! 56 Schwarcz (1993, p. 121) reforça: “Também a Revolução de 1817 era insistentemente lembrada como prenúncio da vanguarda pernambucana, no que se refere à defesa incontestável da liberdade nacional”. Nilo Pereira (1983, p.29) afirma: “Dos Guararapes veio tudo. Veio a resistência. Veio a altivez. Veio 1710, em Olinda, com Bernardo Vieira de Melo. Veio a Revolução Republicana de 1817. Veio a Confederação do Equador, de 1824. Vieram as revoluções liberais. Os guerreiros mudaram de nome e de estratégia. Mas não mudaram de espírito: o espírito dos Guararapes”.
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resto do Brasil, ao mesmo tempo como indispensável à história nacional, lugar das revoluções, da subversão, das lutas, e de um povo igualmente lutador, rebelde, cívico. Mello, contudo, alerta para uma espécie de ressentimento pernambucano na produção do IAHGP, oriundo da falta de reconhecimento da importância de Pernambuco ou de um tratamento privilegiado ao Estado, antes por parte da coroa portuguesa e do império, depois da nação (MELLO, 1997). O ressentimento, segundo Lúcia Lippe Oliveira (2005, p. 18) é um dos binômios elaborados para as teses sobre questão nacional, “ressentimento versus ufanismo”: “Ressentimento envolve a idéia de que estão nos devendo algo. Deveríamos ser ou ter mais. Somos mais, temos atributos extraordinários, mas o mundo teima em não reconhecer isso. Teríamos assim o direito a partilhar mais e melhor da riqueza da terra, da modernidade, da civilização ocidental [...]”. Desse modo, analisa Evaldo Cabral de Mello (1997, p.41): A capitania que se reputava, mais que qualquer outra, o prolongamento de Portugal no Novo Mundo, e que, como tal, vangloriava–se de haver resistido durante um quarto de século à dominação estrangeira, tinha de julgar-se credora de tratamento especial por parte da Coroa lusitana. Quando a expectativa frustrou-se, ela rejeitou a metrópole, tanto intensa quanto outrora a adesão que sentira. O ressentimento nativista impregnará doravante toda a história das nossas relações com Portugal e, feita a Independência, com o Império.
O historiador Leandro Patrício da Silva (2012), em seus estudos sobre a pernambucanidade, destaca a perpetuação desse “ressentimento”, sendo possível encontrá-lo na produção intelectual da segunda metade do século XX, a exemplo do já citado Nilo Pereira, na década de 1980. Pereira defende uma “justiça histórica”, pois, segundo ele: [...] o verdadeiro papel que Pernambuco desempenhou nos momentos mais decisivos da história do país é relegado para segundo plano pela historiografia nacional, cujas injustiças remontariam às práticas historiográficas dos primórdios do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. (SILVA, 2012, p. 83)
Voltando aos primeiros anos do século XX, a partir da década de 1920, Freyre e o Movimento Regionalista, também empreendem esforços para reaver a posição de supremacia regional e destaque nacional para Pernambuco. Se, para Freyre, “a civilização do açúcar” foi a grande matriz da sociedade brasileira, Pernambuco foi assumidamente “seu foco, seu centro, seu ponto de maior intensidade”, e o pernambucano foi “a especialização mais intensa das qualidades e dos defeitos dessa organização - monocultural, monossexual, e principalmente aristocrática e escravocrática” (FREYRE, 1967, p. 176). Lugar onde, por exemplo, o processo
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de miscigenação apresenta maior equilíbrio: “O equilíbrio que Joaquim Nabuco atribuía a própria natureza pernambucana” (FREYRE, 1976, p. 66)57. Embora Freyre tenha tecido críticas ao trabalho do IAHGP58, há, em ambos, o intuito de reconstrução da história com vistas à valorização de aspectos tidos como locais para a trajetória nacional. Essa valorização reposiciona o Nordeste e Pernambuco na história oficial, nas hierarquias simbólicas que operam as relações entre províncias e regiões, no século XIX e começo do XX. Assim, em muitos escritos, adota-se o mesmo ardor cívico, nativista dos intelectuais do Instituto (ARRAIS, 2006, p. 105). Ao seu modo, acionam-se a ocupação, expulsão holandesa como constitutiva das idiossincrasias pernambucanas, como um evento de grande importância para a história do Brasil. No “Guia Prático, Histórico e Sentimental da Cidade do Recife”, publicado em 1934, Freyre aciona a Restauração Pernambucana, tratandoa como evento unificador da nação: Com o sangue aí derramado é que se escreveu o endereço do Brasil: um país só, em vez de dois; uma nacionalidade, não uma colônia; uma terra de brancos confraternizando com negros e índios, e não uma minoria de louros explorando e dominando um proletariado de gente de cor. (1961, p. 32)
Em Nordeste, publicado em 1937, Freyre aponta a “luta contra os invasores louros” como parte irreparável da história da Região e da Nação; o solo do Nordeste, como gerador de uma “nacionalidade inteira”: Nessas manchas de solo encarnado ou preto se lançaram os alicerces dos melhores engenhos. Foram elas que mais se avermelharam de sangue nos tempos coloniais. Sobre elas que tanto luso brasileiros, tanto preto, tanto caboclo, tanto mulato, morreu em luta contra os invasores louros. Esses invasores não desejavam outras terras senão aquelas: as terras de massapé. As terras de barro gordo, boas para cana de açúcar. [...] Porque através daqueles dias mais difíceis de fixação da civilização 57
Este equilíbrio entre as matrizes étnicas em Pernambuco aparece, por exemplo, no Manifesto Regionalista de 1926, publicado em 1976, quando fala da cozinha do Nordeste; “Onde parece que essas três influências melhor se equilibram ou se harmonizam foi na cozinha do Nordeste agrário onde não há nem excesso português como na capital do Brasil [Rio de Janeiro] nem excesso africano como na Bahia nem quase exclusividade ameríndia como no extremo Norte, porém o equilíbrio. O equilíbrio que Joaquim Nabuco atribuía à própria natureza pernambucana” (p.66). 58 Críticas concernentes à ausência de uma relação direta com a sociedade. Freyre ainda acusa os membros do IAGP de elitistas e apartados da realidade social do povo pernambucano (REZENDE, 1997). Como exemplo, no Manifesto Regionalista de 1926 (1976, p. 63) diz não querer evocar o “[...] tom do discurso do Instituto Histórico, os heróis de Guararapes ou os patriotas de 17, mas, os bumbas-meu-boi, as cheganças, os pastoris, os mamulengos dos engenhos da região”. Outro episódio a sua insatisfação quanto à mudança do nome das ruas do Recife para homenagear batalhas e personagens da Restauração Holandesa é emblemática dessa relação conflituosa. O historiador Raimundo Arrais (2006, p. 104) comenta: “De acordo com ele o Instituto Arqueológico e Geográfico de Pernambuco traíra as tradições recifenses cristalizadas nos nomes das ruas, ao aderir à lisonja, sugerindo nomes dos figurões locais para rebatizar as velhas ruas da cidade”. Vale salientar que, além da troca dos nomes das ruas, o Instituto estabelece datas comemorativas e eventos cívicos em comemoração à Restauração, celebrando-a como importante para a história de Pernambuco e do Brasil (MELLO, 1997).
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portuguesa nos trópicos, a terra que primeiro prendeu os luso-brasileiros, em luta com outros conquistadores, foi essa de barro avermelhado ou escuro. Foi a base física não simplesmente de uma economia ou de uma civilização regional, mas de uma nacionalidade inteira. (FREYRE, 1967, p. 10)
Pernambuco, no pensamento de Freyre (1967, p. 11), desenvolve-se a partir dos conflitos que impeliram os senhores de engenho a se defenderem dos estrangeiros, nasce sob a égide da guerra e do patriotismo: “E defendendo seus canaviais, seus rios, suas terras de massapê, começaram a perceber que estavam defendendo o Brasil”. Experiência detonadora de um “sentimento de suficiência” que respalda as revoluções libertárias do século XIX e o caráter de um povo: “Quando em 1710, em 1817 e em 1824 tentaram constituir-se em república, já foi sobre esse sentimento de suficiência, sobre esse desejo de estabilidade que lhes davam as terras férteis da cana”. O espírito combativo e revolucionário, a ideia de liberdade são constituintes da pernambucanidade, para o IAHGP como herança histórica; para Freyre, como filigranas do cotidiano que não devem escapar à produção da história do Recife, escreve em Região e Tradição de 1941: Em 1830, pela ponte da Boa Vista, saíam os recifenses, geralmente só os homens [...] Ahi e no Cais do Collegio, sentavam-se à noite os negociantes, os advogados, para falar mal do governo, discutir escândalos, namorar com mulatinhas, conspirar pela Liberdade. Pode-se dizer que no Brasil – no Nordeste pelo menos – as próprias revoluções teem sido combinações de rua – e não apenas do interior das lojas maçônicas. (FREYRE, 1941, p. 142)
O movimento regionalista, ou regionalista ao seu modo modernista, nos termos de Freyre (1976), acrescenta aos debates da época argumentos acerca da relevância cultural, das experiências singulares do Estado, potencializa Pernambuco para as disputas simbólicas por status no conjunto dos estados da nação59. Para o historiador Durval Muniz de Albuquerque Junior (2009 e 20013), o “Leão do Norte” fora (re)construído por uma intelectualidade ativamente engajada no movimento modernista e regionalista, a fim de manter a hegemonia que acreditava ter, ‘ao menos no interior do Nordeste’. No começo do século XX, essa “intelectualidade” respirava os preceitos da passagem do romantismo para o modernismo; o frevo é o exemplo pernambucano mais evidente da projeção da noção de folclore como estratégica na concepção da identidade60. O carnaval e o frevo são inseridos no repertório da 59
Lady Selma Albernaz (2004, p. 38) observou movimento similar na construção da identidade maranhense. A antropóloga comenta a solução dada pelos intelectuais do século XX, frente à descontinuidade da história do Maranhão provocada pela decadência econômica: enaltecer o valor da cultura local e reposicionar o estado em relação à nação. 60 Sobre o movimento modernista brasileiro, a relação imbricada com a construção da identidade nacional, ver Lisbeth Rebollo Gonçalves (2007). Para ela: “[...] constata-se, de imediato, que existe, na modernidade brasileira
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pernambucanidade e, devido à expressividade, à representatividade adquiridas, tornam-se emblemas da identidade pernambucana, perpetuados pelo século XX, pontua Gilberto Freyre na década de 1980: A quem me pede que cite pernambucanismos com que Pernambuco tem enriquecido a cultura brasileira mais folclórica, mais popular, mais característica, não tenho hesitado em apontar estes três: o maracatu, a buchada, o frevo. Não que sejam os únicos. Mas me parecem os mais castiços no sentido de serem pela origem e pela permanência, pernambucanos. [...] E o terceiro muito daquela carnavalidade característica de um dionisíaco ânimo brasileiro: o frevo. Um frevo do qual não se pode dizer ter vindo desta ou daquela fonte mais evidente de cultura ou de carnaval brasileiro. Uma expressão de carnaval própria do Recife [...]. Que surgiu de pés e de ritmos de corpos brasileiros, em ruas do Recife, sob brilhos de um sol recifense e em harmonia com sons captados por ouvidos também recifenses: talvez batendo nos próprios recifenses. (FREYRE, [1981] 1991, VII)
Leandro Patrício da Silva (2012, p. 86) analisa a continuidade desses conjuntos de significados desenhados no final do século XIX, começo do XX, a partir das “representações de pernambucanidade” presentes nos discursos políticos entre os anos de 1979-1986. O historiador atenta para a recorrência de temas, conceitos, personagens, valores, e outros elementos desse universo. Como recurso analítico, agrupa tais recorrências em dois grupos de discursos: “formações discursivas” (a partir de Foucault), são eles: regional-erudita e regional-popular. A primeira está para os episódios históricos já mencionados e para traços psicossociais do ethos pernambucano “como a bravura, a coragem, a valentia, a rebeldia, o irredentismo e a vocação libertária, entre outras sinonímias dessas adjetivações” (SILVA, 2012, p. 87). Enquanto a segunda formação está para as manifestações da cultura popular (na perspectiva folclórica), e para práticas carnavalescas. Nessa segunda formação discursiva, Pernambuco aparece como a “Terra do Carnaval”, a “Terra do Frevo”: Na formação-discursiva regional-popular, Pernambuco é tomado como a terra do Carnaval, como a terra do frevo, do maracatu, dos caboclinhos, da ciranda, dos cavalos-marinhos, entre outras manifestações tidas por populares e/ou folclóricas, mas, sobretudo pelo frevo. Os pernambucanos são tomados como uma gente alegre, que não resiste a um passo, que entre um samba e um frevo, prefere mesmo é o passo, como uma gente religiosa, sincrética, apegada às tradições. (SILVA, 2012, p.89) (grifo meu).
Entre as décadas de 1930 e 1940, o frevo consolida o processo de condensação de sentidos do universo simbólico da pernambucanidade, com os esforços dos intelectuais do
um olhar para o futuro, um desejo de ruptura, inovação e experimentação. Mas ao mesmo tempo, há uma nostalgia do passado, um olhar para as raízes culturais que marcaram o processo de formação histórica da nação” (p. 24).
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IAHGP, do regionalismo/modernismo, do poder público, dos folcloristas61, da Federação Carnavalesca de Pernambuco62 e de outros agentes. Para Santos (2008), nesse momento histórico, a sociedade “encontrará no frevo o elemento de síntese cultural”. [...] a mesma sociedade que antes recriminava a forma de brincar desses clubes, blocos e troças, nas ruas, encontrará no frevo o elemento de síntese cultural; uma manifestação urbana que reúne aspectos tão expressivos da nossa história, o ponto comum que nos identifica enquanto pernambucanos e faz do carnaval, uma festa popular e brasileira. (SANTOS, 2008, p. 122) (grifos meus)
A emblematização do frevo, porém, é um trabalho apoiado na dinâmica cultural, popular, viva e ativa que torna o referido processo plausível e, de certo modo, eficaz. A escolha do frevo como emblema levou em conta suas potencialidades para condensar sentidos identitários disponíveis no universo simbólico da pernambucanidade e de traduzir os qualificativos importantes para o momento, ser: “autenticamente pernambucano”. Não foi apenas o braço forte do Estado, ou a força eminente dos foliões que transformaram o frevo em emblema, dinâmicas de produção e condensação de sentidos o privilegiaram diante de outras possibilidades de escolha, dinâmicas simbólicas iniciadas antes da década de 1930 responsáveis inclusive pela consolidação de seu status ao longo do século XX e atualização do mesmo na contemporaneidade.
1.2.1 O Frevo e os sentidos da Pernambucanidade
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O trabalho de pesquisa PIBIC de Tatyane dos Santos Maciel de Souza, orientado pela professora Lady Selma Albernaz, intitulado “Classificações culturais e identidade em Recife: produções de folcloristas pernambucanos no período de 1950-70, disponíveis na comissão pernambucana de folclore”, atesta, por meio de relatórios publicados, o grande envolvimento dos folcloristas na produção de identidade pernambucana, em especial evidencia o trabalho da Comissão Pernambucana de Folclore na consolidação do frevo como emblema identitário, ressaltando o relevante quantitativo de trabalhos sobre o frevo. A pesquisa com o acervo documental da Comissão “[...] revela o frevo como uma das expressões que mais caracterizam a cultura pernambucana. Dessa maneira dando substancia a ser pernambucano”. 62 Nos primeiros anos de atuação, a Federação empreende esforços declarados na articulação entre o frevo e os elementos da pernambucanidade. Amparada pelo artigo 5º do seu regimento - “Moldar o carnaval no sentido do tradicionalismo histórico e educacional, fazendo reviver costumes nossos, tipos da nossa história, fatos que nos educam” - organiza o carnaval de 1937 com algumas mudanças. Estimulou o uso de fantasias inspiradas no imaginário nativista na pretensão de limar os traços exóticos, as importações de referências externas aos valores e à história de Pernambuco, bem como de valorizar o mito fundador da sociedade pernambucana, seus sentidos patrióticos e “não fúteis”. Desfilam no carnaval do Recife de 1937 figuras heroicas de 1817 (Insurreição Pernambucana), 1824 (Confederação do Equador), 1848 (Revolução Praieira) e “ao som do frevo, jovens, adultos e crianças, fizeram o passo à moda Henrique Dias, Felipe Camarão, Vidal de Negreiros, Ana Paes, Matias de Albuquerque [...] entre outros que se encontravam pelas ruas com blocos fantasiados de soldados combatentes a época da invasão holandesa (SANTOS, 2010, p. 206). A Federação, ao orientar suas filiadas a vestirem-se de personagens históricos de Pernambuco, não criou novos “símbolos culturais” de intenção patriótica, ela se utilizou de elementos do mito de origem, do imaginário social existente e revigorado pelo IAHGP, desde o final do século XIX, materializou as conexões simbolicamente plausíveis e comunicáveis.
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Aí está o frevo, nascido dos pés descalços dos valentões e dos moleques de rua do Recife do passado, numa síntese das grandes lutas e dos grandes dramas vividos pelo povo pernambucano (RUY DUARTE, 1968, p. 91) (grifos meu) .
Para o pesquisador pernambucano Ruy Duarte (1968), o frevo é “a síntese das grandes lutas e dos grandes dramas vividos pelo povo pernambucano”. Mais de uma década depois, Nilo Pereira (1983, p. 167) retoma esse argumento, desenvolvendo-o: Eis a definição completa, profunda e abissal. O que há em Pernambuco como rescaldo de todas as paixões e agonias vibra no frevo, como se encontrasse nessa música alucinatória a evasão total dos seus recalques. [...] Mesmo fora da festa momesca, o frevo contagia, subverte, levanta velhos e moços, misturando-os na massa animada e demiúrgica, que ganha todos os espaços. A pernambucanidade não é só o heroísmo histórico; é também o heroísmo das ruas, o povo animado e feliz, com os seus esgares, seu historicismo, sua vocação libertadora, seu sensualismo, sua imoderação, sua indisciplina. O povo na plenitude de si mesmo. [...] O frevo é o fenômeno das massas. Ganha os espíritos, traz alucinações, desvarios, coreografias estranhas e sensuais, que fazem do carnaval de rua a expressão suprema do povo. É como se soltassem uma enorme serpente e deixassem que ela silvasse, dantesca, irreprimida, num assalto fatal à vida em seus estertores mais irrefreáveis. (PEREIRA, 1983, p. 167) (grifos meu)
“O que há em Pernambuco como rescaldo de todas as paixões vibra no frevo” (PEREIRA, 1983, p. 167). Assim o frevo é frequentemente representado como um autêntico pernambucano, concebido à luz do heroísmo. Não apenas o heroísmo histórico, ele encarna também o “heroísmo das ruas”, a “vocação libertária”, o “sensualismo”, a “imoderação” e a “indisciplina” chaves constitutivas da ideia de ser pernambucano. Seguindo pistas deixadas por Duarte e Pereira, entendo que frevo é um elemento a sintetizar com êxito conteúdos simbólicos de uma plataforma de identidade anterior ao seu surgimento. Em outras palavras, as representações sobre o frevo são construídas como parte de processos de produção, condensação (TURNER, 2005) e/ou sobreposição de sentidos da pernambucanidade. Quanto mais conectado ao repertório identitário historicamente elaborado, mais eficiente é a transformação de status. Na procura pelas aproximações entre o frevo e os conteúdos da pernambucanidade, escolhi como caminho metodológico a investigação de narrativas de intelectuais produzidas ao longo do século XX. A produção de tais narrativas operaram e/ou refletiram o processo de transformação da manifestação carnavalesca popular – rejeitada e perseguida pelas elites –em emblema de Pernambuco. A proposta, então, é burilar textos sobre frevo do final do século XIX, mais precisamente de 1899, até a década de 1970, auge da batalha frevo-samba, reunidos na obra de referência sobre o tema “Antologia do Carnaval do Recife” (1991),
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organizada pelo historiador Leonardo Dantas63 e o folclorista Mário Souto Maior64. A obra é um compêndio de escritos sobre carnaval do Recife de 34 autores e publicado, em 1991, pela Fundação Joaquim Nabuco, com a apresentação assinada por Gilberto Freyre. Somam-se aos organizadores, Limeira Tejo, Mário Melo, Paulo Fernando Craveiro, Paulo Nunes Viana, José Lins do Rego, Valdemar de Oliveira, Mário Sette e Teôtonio Freire. Nomes reconhecidos, pesquisadores orgânicos e vozes potentes na história do frevo. Uma ressalva pautada no olhar de Renata de Sá Gonçalves para o material de cronistas e jornalistas que utilizou no seu trabalho os ranhos no Rio de Janeiro: os textos escolhidos devem ser entendidos como “indicadores de significações e valores sociais, orientados pelas negociações entre jornalistas e cronistas e aqueles grupos carnavalescos por eles observados e qualificados” (GONÇALVES, 2007, p. 74). A extensão da temporalidade dos escritos é dado proposital e interessante, pois, embora pertencentes a contextos históricos distintos, os intelectuais65 acionados refletem conteúdos ligados a mesma matriz de sentidos, como se interconectados. Aqueles produzidos no século XIX poderiam facilmente ser lidos e entendidos como recentes, sem grandes problemas de anacronismo ou descontinuidade histórica, por apresentarem ideias similares sobre o frevo e a pernambucanidade. Ao falarem do frevo, os textos parecem imersos em um contexto atemporal, refletindo a força do processo de condensação de sentidos que o transformou em síntese do povo pernambucano, repertório vivo e em constante revisitação. Antes, uma ressalva: trabalhar chaves de conexão entre o frevo e pernambucanidade, por meio de textos dos intelectuais, é uma opção. Os intelectuais operam a experiência social, mas seus textos, depois de decantados pelo tempo, apresentam-se como reflexo de um processo popular vivo e ativo simbolizado, traduzido, agenciado pelos autores.
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Prestigiado historiador pernambucano, dedicou grande parte de sua produção à temática do carnaval e do frevo, também foi gestor público na área de cultura. 64 Renomado folclorista, pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco, autor de diversos livros sobre folclore. 65 Inspirado em Vianna (2004:41) “A existência de indivíduos que agem como mediadores culturais, e de espaços sociais onde estas mediações são implementadas, é uma ideia fundamental para a análise do mistério do samba”. Renato Ortiz (2012:139) destaca a participação de determinados agentes na construção da memória e da identidade que se querem nacional. Para tanto, aciona a ideia de mediação como ação promovida parte de intelectuais na reinterpretação simbólica de algo que é particular, restrito a um grupo, para ser “universal”. Pensando em consonância com Dominichi Miranda de Sá (XXX:26) que “Argumentos, enunciados e ideias têm assim, valor de ação. Em outras palavras, produzir criticamente já significaria intervir na ordem social”. Gilberto Freyre, Manuel Bandeira, Mario Sette, José Lins do Rego e outros regionalistas, ao mesmo tempo em que vivenciam um contexto de construção de identidades nacional e local que estimula suas ideias, suas ideias instauram novas perspectivas intervindo no contexto, no carnaval, na produção simbólica e nas constituintes da imaginação social.
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1.2.2 A onda e o estado endiabrado Nas narrativas analisadas, é recorrente a história-mito de um monstro que ocupava/invadia as ruas do Recife durante o carnaval, nos anos finais do século XIX e começo do século XX, tomando as pessoas de assalto, invadindo a alma. A “serpente silvando dantesca”, nas palavras de Nilo Pereira, que derrota os projetos elitistas de um carnaval aos moldes europeus e estabelece um modelo ou forma de brincar “tipicamente pernambucana”. Ele é transgressor da ordem, das moralidades e hierarquias, valente, amedrontador, vence os inimigos, invasores, aguerrido como um autêntico pernambucano. O texto do escritor e romancista pernambucano Teotônio Freire é o mais antigo da seleção de “Antologia do Carnaval do Recife” (1991), trata-se de um recorte de seu romance, clássico da literatura de Pernambuco do século XIX, Passionário, escrito em 1897, publicado em 1899. No trecho escolhido, o carnaval de rua do Recife é representado como “doidamente misturado”, “uma loucura descabelada”, “sem ordem, sem rumo”, imagem amplamente difundida no século XX. [...] subia, oscilava, descia, falava, gritava, berrava, andando, pulando, correndo, dançando, aos saltos, aos pinotes, fazendo ziguezagues e passos ginásticos, sem ordem, sem rumo, desenfreadamente, carnavalescamente [...] Clubes ostentando orgulhosamente estandartes surrados e cheios de mofo, recortavam as ruas [...]. Havia no ar uma propagação infinita de ondas sonoras, distendendo-se, alongandose, entrando pelos tímpanos auditivos adentro num ensurdecimento sem nome. Há uma amálgama de sons e de ruídos, de notas soltas, estacadas, de flauta, de clarineta, de violino, misturadas, com as vibrações abafadas, quase surdas dos realejos e os guinchos, os berros estridentes de vozes humanas a cantar, a rir, a gargalhar, tudo num concertante estapafúrdio e sem igual. (FREIRE, 1991, p. 127) (grifos meu)
Quase quarenta anos depois, em 1938, Mário Melo aciona a imagem da multidão imperativa, que ordena, rompe, a despeito de qualquer resistência, transforma a multidão em uma “onda humana em ebulição”66: Quando uma orquestra carnavalesca rompe uma marcha típica pernambucana, impossível alguém resistir. Todos dançam, pulam, saracoteiam. Quem a observa do plano elevado e vê aquela onda humana em ebulição tem idéia de um grande depósito de líquido em fervura. (MELO, 1991, p. 257).
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A relação entre o frevo e a multidão em ebulição, fervendo, um coletivo em cortejo pelas ruas dançando e cantando é uma imagem-conceito muito comum. Está presente desde os primeiros registros jornalísticos e dela parte etimologia da palavra frevo, encontrada na imprensa pela primeira vez pelo historiador Evandro Rabello (2004) em 09 de fevereiro de 1907. Sobre a imagem do povo em ebulição ver Rita de Cássia B. Araújo (1996).
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No mesmo ano, 1938, Limeira Tejo67 também traz a imagem do arrebatamento que transforma as pessoas em “diabos solto no meio da rua”, livres. O autor, no entanto, alertou seus leitores para a necessidade de se interpretar o carnaval do Recife, não apenas vê-lo. Descreve o frevo como “espelho da alma popular”, expressão das emoções coletivas a refletir “arrancos e anseios de liberdade” do povo pernambucano. Para o autor, entendê-lo enquanto fenômeno psicossocial é fundamental para não cair no encanto meramente “pitoresco”, exótico. Assim, só a partir da “interpretação” seria possível compreender a violência e as emoções que orbitam o carnaval e o frevo. O Carnaval do Recife, esse já tão decantado Carnaval das ruas recifenses, não pode ser visto apenas. É preciso antes de tudo ser sentido. Não é uma festa somente para os sentidos. É uma festa que exige interpretação [...] é um espelho da alma popular. Ele reflete emoções coletivas nos seus arrancos e anseios de liberdade, nas suas quedas ao complexo social da escravidão. Quem não procurar ver o carnaval do Recife por esse prisma psicológico arrisca-se a descobrir-lhe um encanto apenas pitoresco, sem profundidade. Arrisca-se a assistir um espetáculo meio violento, de uma gente suada a pular como diabos soltos no meio da rua. (TEJO, 1991, p. 212) (grifo meu)
Paulo Fernando Craveiro68, vinte e três anos depois, em 1961, retoma a ideia de imoderação do frevo. A música rompe o ar como quem invade para atravessar “por dentro a multidão” para transformar o povo, “despertar os diabos que existem escondidos”, libertá-lo. O frevo evoca um estado endiabrado: Dêem-lhe uma camisa de três cores e um guarda-chuva esfarrapado. Ofereçam-lhe, talvez dois goles de cachaça. Deixem que um frevo rompa o ar, atravesse por dentro da multidão e vá despertar os diabos que existem escondidos no homem [...] frevo transforma o povo. Gente vira bicho. Homem vira mulher. Branco vira preto. A culpa é dos diabos que são incorporados às multidões. Carnaval não é festa de anjos: é território de demônios (CRAVEIRO, 1991, p. 301) (grifo meu).
Craveiro atribui ao frevo um ímpeto guerreiro, de possuir o folião, o invadir deliberadamente. Para ele, o carnaval de Pernambuco, a despeito de tantas outras práticas carnavalescas, “é igual a milhares de pessoas dançando frevo”. Uma força extraordinária que não deixa escolha, age como o “vento”, um “furacão”, intempestivo, vivido de forma violenta. Craveiro recita: Um homem é possuído pelo frevo assim como um homem é possuído pelo vento. Frevo e vento são coisas que quase não se deixam pressentir. Invadem, sem pedir licença, o corpo e a alma do homem [...]. Carnaval pernambucano é igual a milhares de pessoas dançando o frevo. Homens, mulheres, crianças numa interminável procissão sem soluços: a de fé na vida que tem que ser vivida com a violência de quem vai morrer amanhã de manhã. (CRAVEIRO, 1991, p. 301) 67 68
Romancista, memorialista, ensaísta, tradutor, jornalista, sociólogo e economista. Jornalista, poeta, escritor.
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Poucos anos depois, em 1964, Antônio Maria69, poeta e compositor recifense, mas residente no Rio de Janeiro por muitos anos, presenteia seus leitores com um dos mais poéticos textos sobre o frevo: Carnaval Antigo... Recife. Nele, assim como em Craveiro, o frevo também é livre como o vento. Antônio Maria lança mão de qualificativos caros à pernambucanidade. Em suas palavras, o carnaval do Recife era “guerreiro”, “revoltado”, “rebelde” e “liricamente subversivo”, um “furacão libertário”, emancipatório pertencente a todos, do qual participavam “cada homem e cada mulher”: [...] o Vassourinhas estourava numa esquina, acordando-nos na alma, uma alegria guerreira, impossível de explicar [...]. Eu era mais que um guerreiro. Era o vento. Cada homem e cada mulher eram uma parte daquele furacão libertário. Todos se emancipavam [eu digo por mim] e se tornavam magnificamente dissolutos... [...] Os meus carnavais eram revoltados. Não tenho a menor dúvida de que aquilo que fazia a beleza do carnaval pernambucano era a revolta – revolta e amor – porque só de amor, por amor, se cometem os gestos de rebeldia. [...] Nãos sei de vontade igual a esta, que estou sentindo, de ser o menino, que acordava de madrugada com as vozes dos metais e as vozes humanas daquele carnaval liricamente subversivo. (ANTÔNIO MARIA, 1991, p. 11 - 12) (grifo meu)
O frevo toca a alma, Vassourinhas (um dos mais antigos clubes do Recife) não chega, ele estoura, bélico, forte e rebelde como a onda humana, imagem consolidada do carnaval pernambucano. 1.2.3 Transgressor dos corpos bem comportados. O “sensualismo” de Nilo Pereira (1983) esteve anteriormente em Teotônio Freire (1889). O autor expressa um teor sexual muito recorrente nas narrativas sobre o frevo. O carnaval do Recife era uma “espécie de orgia”, de “loucura descabelada”. O frevo é, nessas representações, permissivo, lascivo, subverte as moralidades cotidianas, as vergonhas, os usos dos corpos; transgredia os bons costumes controladores da vida sexual. [...] grupos, clubes, sociedades, sambas, maracatus, profusão de fitas, de rendas, de pandeiretas, castanholas soando, ventarolas abertas, cabelos revoltos, cintilações de olhares, maneios de ancas polposas sob fofas de cetim, arcarias de canela, coretos de músicas, postes com flâmulas galhardetes, carros de rodas enfeitadas a flores carregando famílias; serpentinas enroladas e enoveladas em pescoços alvos, 69
Antônio Maria, cronista, poeta, letrista, morou muitos anos no Rio de Janeiro e firmou parceria artística com grandes nomes como Vinicius de Moraes. Antônio Maria escreveu “Carnaval Antigo... Recife”, em 07/02/1964 ano de sua morte.
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confeitos pairando no espaço, entrando pelos colarinhos, pelos peitilhos, pelos decotes dos vestidos; pó de arroz recendendo ylang-ylang ou jasmim, ondulando no ar, entrando nas narinas, estonteando, embebedando; bisnagas de colônia e Ixora, de Rita Sangalli e Vitória, tudo doidamente misturado, numa espécie de orgia, de loucura descabelada, um atabalhoamento descomunal. (FEIRE, 1991, p. 127) (grifos meu)
Na obra analisada, há o trecho de outro clássico da literatura pernambucana, “Seu Candinho da Farmácia”, de Mário Sette70, publicada em 1933. Neste trecho seus personagens falam sobre o carnaval do Recife e Sette revela apreensões similares às de Teotônio Feire, por quem tinha reconhecida admiração. Descreve o frevo desgovernado, o “imperativo de loucura”, a “multidão saracoteante”, e, especialmente, sexualizado, um tanto promíscuo: Um imperativo de loucura, um contágio de desatinos, uma coceira de alegria. Ninguém mais se continha ninguém mais se governava… Todas as imediações do bairro atravessado pelo buliçoso cordão carnavalesco vibravam ao zumbido fortíssimo do contentamento. [...] Avistava-se por cima daquele movediço dorso cinzento-escuro, que era a soma da multidão saracoteante, o estandarte bordado a ouro com uma vassoura de penas no teso da haste. Zunzum promíscuo de frases soltas, de malícias, de contatos, de pruridos, de ditérios, de risozinhos, de perguntas, de desejos, de machucadelas, de afagos clandestinos… E um cheiro provocante de éter perfumado, evocando nudezas e lascívias carnavalescas, promissória sensual a vencer-se nos três dias próximos. (1991, p. 400 - 401) (grifos meu)
Em Sette, assim como em Freire, o frevo também aparece como a onda impetuosa e permissiva, de poder subversivo frente à submissão moral. O comando é dado apenas pela “cadência voluptuosa, ardente e volúvel da marcha”, à qual se devota “obediência absoluta e gostosa”, à revelia das regras do cotidiano, leis e ordem pública. Um redemoinho movido a frevo, em que eram permitidas atitudes “cômicas” e “delirantes”. Na onda, os corpos se misturam, “se esfregam, se torcem, se enlaçam, se verticalizam, se cheiram, se beijam, se apalpam, se agacham”, sob o comando da música que ordena e penetra as veias para fazer “cócegas no sangue”: O frevo! Aquela massa de corpos e de almas vinha numa obediência absoluta e gostosa à cadência voluptuosa, ardente e volúvel da marcha. A cada vez que a orquestra repetia num enfarofado de acordes a introdução todo o povo redemoinhava, refervia nas atitudes mais caprichosas, mais cômicas, mais delirantes. Dir-se-ia que tentavam misturar, confundir, trocar os membros, os troncos, as cabeças, para depois ir procurá-los de novo. E no seguimento da música lá se iam todos na impetuosidade da “onda”, no esbandalhamento do “passo”, de pernas abertas em tesouras, de cócoras em saca-rolhas, de bustos empinados para frente em rigidez, de nádegas oferecidas ao alto, de mãos trançadas nas nucas, de narizes a farejar os cangotes femininos, de braços dados em cordões, de barrigas coladas, 70
Mário Sette é um dos cronistas do século XX mais conhecidos de Pernambuco. Seus textos, em formato de crônica sobre personagens, eventos históricos e marcos da pernambucanidade eram amplamente acessados na rede pública de ensino do estado até os anos de 1970.
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de caras rentes, de bocas grudadas […]. Moviam-se todos num incessante ondeio, num provocador remexido de quadris, de bustos, de ancas, de seios […]. Segundos apenas. Vence-se a síncope dos instrumentos. A orquestra recomeça num renovado empurrão da marcha. E de novo todos se movimentam, se esfregam, se torcem, se enlaçam, se verticalizam, se cheiram, se beijam, se apalpam, se agacham, como se a música lhes penetrasse veias adentro para ir fazer-lhes cócegas no sangue. [...] E a massaroca do povo, num remexido incessante, numa ‘onda’ perene, num bulício crescente, pernas que se arqueiam e se verticalizam, pés que se juntam e se distanciam, braços que se angulam e se amoldam, bocas que se escancaram e se trancam, torsos que se espigam e se flexionam, seios pontudos que se projetam em promessas e se retraem em negaças, dentes que se mostram, mãos que espanejam, cabeças que bamboleiam, como se todos estivessem atingidos de cócegas. (SETTE, 1991, p. 402 - 403) (grifos meus)
E “bustos empinados para frente em rigidez, de nádegas oferecidas ao alto, de mãos trançadas nas nucas, de narizes a farejar os cangotes femininos, de braços dados em cordões, de barrigas coladas, de caras rentes, de bocas grudadas”, a onda é, assim, sexualizada, masculinizada e viril. As apreensões masculinas, heterossexuais, patriarcais e machistas sobrecarregam o campo de representações sobre o frevo e o carnaval do Recife71. A “loucura descabelada”, de Teotônio Freire, e a “impetuosidade da onda” de Sette, reaparecem na poesia de Antônio Maria, em 1964. Para este, o frevo é uma dança louca e bela, grito de alforria a libertar o folião da submissão herdada. Submissão social que sujeita os humildes ao silênco, mas também e sobretudo, moral, do controle cotidiano dos corpos “bem comportados” – à espera dos clarins do frevo para a sua libertação: Não se pode fazer idéia do que era o povo do Recife, solto nas ruas do Recife após a declaração irreversível do carnaval. Faziam parte da corte imperial mulheres morenas, que suavam em bolinhas na boca e no nariz. Mulheres de olhos ansiosos, presas de todos os atavismos de religião e de dor, a dançar a mais verdadeira de todas as danças – o frevo. Ah, de nada serviriam suas heranças de submissão, porque o despontar do carnaval era um grito de alforria. E seus corpos, seus braços, seus pés, teriam sido repentinamente descobertos, assim que os clarins do “Batutas de São José” romperam o silêncio a que os humildes eram obrigados. Tão louca e tão bela aquela dança! Uma verdade maior que as verdades ditas ou escritas, saia dos seus quadris, até então bem comportados. (1191, p. 12) (grifos meus)
O frevo é o guerreiro, subversivo, invasor, desobediente... Qualificativos produzidos sob o ponto de vista masculino, por conseguinte, o frevo é masculino, viril. Na década de
71
Para ilustrar a questão com dados históricos: Leonardo Dantas, no texto produzido para a Antologia (1991), traz dois trechos de matérias jornalísticas que corroboram minhas análises sobre as representações do frevo e a masculinidade: “[...] o apertão do frevo, nesse descomunal amplexo de toda uma multidão que se desliza, se cola, se encontra, se roça, se entrechoca, se agarra (Jornal do Recife nº 65, 1916)”; “o frevo que mais consola. O que mais nos arrebata, é o frevo que se rebola, ao lado de uma mulata (Diário de Pernambuco nº66, 1916)”
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1970, os textos de Valdemar de Oliveira72 e o historiador Evandro Rabelo traduzem essa virilidade. Oliveira (1991, p. 72), em seu trabalho sobre a dança do frevo, o passo, escrito em 1971, afirma que fazer o passo é para homens: “Mulher pode esbaldar-se em exibições de passo. Não convence nunca. Falta-lhe virilidade, a virilidade indispensável ao combate da dança. Passo não se fez para ela”73. Rabelo, em 1978, convoca os leitores para participarem do frevo, de uma espécie de combinação entre folia carnavalesca e interação sexual. Honestamente, melhor que falar sobre o carnaval é participar dele [...] sair como figurante numa agremiação ou no coice de uma delas, no desmantelo do passo, com os ouvidos entupidos de frevo [...]. Cair na onda com a cabeça cheia de aguardente, no saracoteio louco do passo, pernas em desmantelo, braços jogados para todos os pontos cardeais, cotovelos para proteger o corpo e se houver oportunidade ‘roçar’ ou bater no seio da passista que estava ou entrou no ruge-ruge. (RABELO, 1991, p. 76 77)
1.2.4
Democrático, Popular e Mulato
Nas narrativas acessadas, o carnaval de rua do Recife é popular, todos participam, as hierarquias de classe, geração e raça são diluídas na “onda”, os lugares sociais claramente demarcados no cotidiano findam por se misturar no carnaval de todos. As representações sobre o frevo o apresentam com o poder de congregar sujeitos cujas interações no tempo ordinário seriam atravessadas por moralidades e distinções sociais, com o poder de apagar temporariamente as hierarquias, subvertê-la. Mário Sette, em 1933, ilustra bem esse argumento: Gente de não acabar mais! Gente de todas as classes. Homens e Mulheres numa conjunção das mais bizarras, das mais pitorescas, das mais democráticas. Esplêndido programa de partido da oposição. A cara bigoduda e gorda junta do rostinho esguio e brejeiro; a face madurona vizinha da bochecha imberbe; a manga de brim puro-linho, trançada pela da blusa de voile barato; a casimira inglesa e clara manchada pela mão cor de café com leite; a tez ariana, toda preconceitos colada ao pigmento africano todo afoitezas; o braço moreno e túmido amparado na farda cáqui e arrogante; o georgete preço do pecado perfumando e o fraque na burocracia respeitável; a adolescência sexo calças-largas atritando-se na puberdade cabelos à ventania; a seriedade do professor cara da quaresma irrigada pelo assanhamento da cabrocha; a velhice de cabeça pintada esquentando-se na mocidade de vestidos transparentes; o carola de atitude angélicas desafiando os diabos de pixaim; o doutor 72
Médico, professor, jornalista, musicólogo, teatrólogo, escritor dedicado especialmente ao frevo e aos estudos de folclore em Pernambuco. 73 Na sua obra clássica, Frevo, Capoeira e Passo, Oliveira (1991, p. 50) fala sobre o caráter viril do frevo comparando o frevo e às marchinhas do Rio de Janeiro. Pensa haver no frevo um ritmo motor que a marchinha carioca não tem por ser assexuada, enquanto o frevo é viril: “Ela [a marchinha carioca] convida a cantar, a entrar no coro, a assobiar baixinho [...]. Ele [o frevo] não convida: arrasta. Sua efervescência rítmica tem qualquer coisa de magnético, contra a qual é difícil resistir”.
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cortejando a cliente gratuita; o namorado cutucando a pequena fácil; o caixeiro fazendo festas à freguesia caloteira; o industrial fraternizando com a operária; o senhor de engenho virando mel para a moradora; o diretor alisando os dedos da datilógrafa; o proprietário ranzinza com a inquilina astuciosa; o homem das prestações justando contas com a mulata em atraso; o patrão de uma casa com a copeira de outra…Frevo! [...] – O Diabo inventou, mas é do céu! – Oh! onda do outro mundo! (SETTE, 1991, p. 402 - 403)
“A tez ariana, toda preconceitos colada ao pigmento africano todo afoitezas”, é o frevo representado como exemplo paradigmático das relações raciais constitutivas da sociedade brasileira. Mário Sette, declaradamente inspirado nos conteúdos sociológicos sobre raça de Gilberto Freyre, vê no frevo a síntese das relações raciais. O frevo sintetiza os sentidos de democracia racial presentes nos discursos identitários para o Brasil da primeira metade do século XX, é misturado, é mulato74. Ainda na década de 1930, no ano de 1938, a Federação Carnavalesca de Pernambuco abrigava diferentes expressões carnavalescas - maracatus, caboclinhos, e agremiações de frevo-. Entretanto, alocou os clubes pedestres (posteriormente denominados como clubes e troças de frevo)75 na posição de centralidade simbólica frente a outras práticas carnavalescas. Na concepção da entidade, os clubes pedestres eram legítimos representantes da mistura das matrizes étnicas constitutivas do povo brasileiro, a despeito do maracatu exclusivamente ligado à presença negra, do caboclinho aos índios, dos clubes de alegoria e crítica e os blocos de frevo às origens brancas e ao carnaval carioca (remetendo-o aos ranchos). No Anuário do Carnaval Pernambucano de 1938, a Federação defende a valorização do frevo justificada pela sua condição mestiça76 (de alguma forma também ligada ao imaginário nativista da Restauração Pernambucana77) e tradicional:
74
Há uma literatura da historiografia pernambucana que trata do frevo sob essa ótica. Para maiores detalhes, ver Silva (2010). 75 Os Clubes e Troças são herdeiros primeiros dos clubes pedestres. Têm entre si estrutura similar quanto aos componentes do cortejo e à sonoridade do frevo instrumental, diferindo nos horários em que desfilam. Os clubes desfilam à noite, enquanto que as troças saem às ruas durante o dia. Os blocos de frevo, ou blocos líricos ou de pau e corda, surgem nos anos de 1920. São bastante diferentes dos dois primeiros nas suas origens ligadas ao pastoril, no formato do seu cortejo (personagens) na sonoridade do seu frevo de bloco executado, outra orquestração, que produz uma música de compasso mais lento, cantada por um coro feminino, com letras que falam de amor e reverenciam antigos carnavais. Mais detalhes, ver Lélis (2011). 76 Vale ressaltar o impacto de casa das ideias de Gilberto Freyre na década de 1930 com, Casa Grande e Senzala (1933), tomando a miscigenação como referencial positivo para elaboração da identidade nacional. 77 Os heróis da Restauração representam uma tetrarquia fundante da formação social brasileira (brancos, negros e índios); o representante da interação entre elas, o mulato Vidal de Negreiros – representante português, notabilizou-se como liderança nas duas Batalha dos Guararapes, em 1648 e 1649; Felipe Camarão – de origem indígena, da tribo potiguar, do Rio Grande do Norte, organizou ações de guerrilha para conter o avanço dos invasores com os índios de sua tribo; Henrique Dias – liderança negra, filhos de ex-escravos, recrutou um grande
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Os clubes alegóricos, máscaras avulsos, ‘caninhas verdes’, bailes elegantes, o que há de comum nos carnavais europeus, sem nenhuma particularidade regional, a representarem o elemento étnico da raça branca. Clubes de caboclinhos [...] a restaurarem o que era o Brasil de ontem, antes da conquista dos civilizadores. Maracatus, clubes de negros, como os costumes de uma corte africana em visita pomposa à outra. Blocos Carnavalescos – agrupamentos mistos que evocam o carnaval brasileiro da Capital Federal. Finalmente os clubes pedestres, que representam a união dos elementos étnicos e tomaram caráter puramente pernambucano, com a criação do frevo, que é tipicamente nosso. (Anuário do Carnaval Pernambucano 1938. Recife: Federação Carnavalesca, 1938).
Voltando aos reunidos em Antologia do Carnaval do Recife, cito José Lins do Rêgo. De sua vasta obra literária, foi escolhido, para compor o livro, um trecho de O Moleque Ricardo, de 1957, em que fala sobre o frevo e o carnaval do Recife. Diga-se de passagem, José Lins do Rego e Mário Sette são reconhecidos por Freyre (2006) como os dois principais nomes da literatura regionalista, “a pernambucana”, sendo o primeiro seu amigo e um dos organizadores do Congresso Regionalista de 192678. A obra escolhida ainda é muito lida na rede de ensino, como peça representativa da literatura regionalista. Nela o protagonista sai do engenho, no interior de Pernambuco e, na capital, impressiona-se com o frevo, com a mistura de raças, com a festa de todos, na qual “não havia nem preto nem branco”: Há quatro anos no Recife, Ricardo não tivera conhecimento do que fosse mesmo o carnaval. Nos outros anos ficava numa porta de sobrado, vendo o povo de pé no chão, no frevo, os automóveis com mulheres enfeitadas, caminhões cheios, o povo doido na rua. [...] Viu negros velhos, meninos de três anos, mulheres feias, bonitas, brancas, pretas, tudo no frenesi se servindo de um prazer que lhe escapava. Não havia branco e não havia preto quando a música de um clube passava assanhando tudo. As moças de dentro dos automóveis, os que iam a pé, os homens importantes e iguais a ele, todos como se fossem da mesma casa. Todos se conheciam. A música era de todos. Gente cantando, gente de gravata e de pés no chão. ( REGO, 1991, p. 390) (grifos meu)
O texto de Paulo Fernando Craveiro, de 1961, exemplifica bem. Sugestivamente intitulado “Uma Pátria Chamada Carnaval”, pontua o maracatu, o caboclinho e o frevo como “divisões da alma mais geral: o Carnaval do Recife”, preocupando-se em hierarquizá-los a partir de diferenças raciais. Enquanto o caboclinho representa os “índios do carnaval”, o efetivo de africanos oriundos dos engenhos conquistados pelos invasores; João Fernandes Vieira – mulato assumiu a liderança da Insurreição de 1645. 78 José Lins do Rego, na apresentação da obra de Gilberto Freyre, Região e Tradição (1941, p. 09) comenta a influência contundente do amigo mudando suas leituras, preocupações, planos, e entusiasmos. Neste texto o romancista faz uma enorme reverência à participação de Freyre em sua vida pessoal e na sua produção literária: “[...] começou uma vida a agir sobre a outra com tamanha intensidade, com tal força de compreensão, que eu me vi com saber dissolvido, sem personalidade, tudo pensando por ele, tudo resolvendo, tudo construindo como ele fazia. Caí na imitação, no quase pastiche. Isto não só no seu jeito de escrever como em tudo o mais: nos seus gostos, nas suas relações, nos seus modos de vida”. (p.18).
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maracatu “[...] cantados por negros somente”, o frevo é da “multidão”, da “explosão coletiva”. Frevo, para ele, o híbrido, superior no que concerne à dança e ao ritmo, comparado aos outros dois, “monótonos”, “pobres” e “cansativos”. Esse mundo está dividido não em países nem em cidades, mas em danças. Elas fazem parte de uma federação de sentimentos. [...] Caboclinho, maracatu e frevo são divisões de uma alma mais geral: O Carnaval do Recife. Os Caboclinhos são índios do carnaval, geralmente unidos em agrupamentos ao som de guizos atados em suas fantasias, pulam monotonamente. A cadência é certa como um pingo d’água caindo. Auditivamente cansativa [...] O Maracatu é espécie de religião. Sua pureza consiste sem ser cantado por negros somente. A coreografia é pobre e espontânea. Ao que entoam as loas respondem os outros negros. Sua influência vem dos séquitos africanos [...]. O frevo é a explosão coletiva. Violento como um susto. A multidão dançante parece ferver. Todas as vontades de libertação ficam a flor da pele. E o corpo individual e coletivo começa a vibrar; os pés em brasa e a alma voando. (CRAVEIRO, 1991, p. 302) (grifos meus)
Na década seguinte, o texto de Paulo Nunes Viana79, Carnaval de Pernambuco, escrito em 1974, aponta mais diretamente o frevo, “uma mistura de ritmos” como o representante pernambucano da “formação racial brasileira”. Em Viana, assim como para Craveiro, o carnaval de Pernambuco está relacionado à miscigenação, liga-se ao popular, por ter maior carga folclórica, comparado a outros festejo populares, além de representar “o elemento híbrido que caracteriza a nova geração brasileira” e herdar “hábitos e costumes dos antepassados”: O carnaval de Pernambuco ganhou fama e prestígio em todo o país em virtude de possuir maior carga folclórica relativa a esses festejos populares e, além do mais, porque através de três ritmos distintos, originários de índios, pretos e brancos, ele também se assemelha, bem de perto, estabelecendo uma simbiose, ao processo de miscigenação que caracterizou a colonização e a formação racial brasileira, criando a sua cultura, formando seus hábitos e costumes. [...] Mas, a exemplo do que ocorreu no País, os três ritmos originários dos índios, negros e brancos também se mesclaram, fundiram-se e criaram um quarto ritmo, com sua música e dança características, que, simbolicamente, representa o elemento híbrido que caracteriza a nova geração brasileira. O ritmo [música] se chama ‘Frevo’; a dança se denomina ‘Passo’. E esse elemento híbrido, pelas suas próprias características, representa a nova raça: - o brasileiro, porque, assim como o ‘Frevo’ é uma mistura de ritmos, a Nacionalidade também é, hoje, o produto do caldeamento, da miscigenação das três raças que se juntaram e amalgamaram o tipo padrão do brasileiro dos tempos atuais, se, esquecer as heranças atávicas, os hábitos e costumes dos antepassados. (VIANA, 1991, p. 305 - 306) (grifos meus)
O frevo foi elaborado como a “Receita pernambucana de folia”, nas palavras do cronista pernambucano Mário Sette (1984), pelos esforços de intelectuais, da imprensa, do 79
Jornalista, escritor de diversos livros, fundador do Sindicato dos Jornalistas de Pernambuco, trabalhou para o Jornal do Commercio e o Diário de Pernambuco.
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Estado, dos foliões anônimos, no trabalho de burilar uma “receita”, manipular ingredientes e transformar a capital pernambucana na “Terra do Frevo”. A análise dos textos evidencia apenas alguns elementos da pernambucanidade, aqueles que, dentro de um repertório de elementos tidos como identitários do “povo pernambucano”, servem para pensar de forma mais direta a relação com as escolas de samba.
1.3
Frevo, Pernambucanidade e Escolas de Samba
Os trabalhos dos historiadores Augusto Neves da Silva (2012) e Ivaldo Marciano de França Lima (2013) constatam, por meio dos registros jornalísticos das décadas de 1950 e 1960, as resistência às escolas, por parte significativa dos intelectuais pernambucanos defensores do frevo, preocupados com o declínio das tradições “definitivamente declaradas” com o fortalecimento das escolas de samba no carnaval do Recife. Ambos apontam nomes referenciais e realizaram uma busca atenta às matérias jornalísticas. Meu intuito é procurar outros caminhos para pensar a relação entre as escolas de samba e a pernambucanidade, partindo de reflexões do campo simbólico e do âmbito das representações. Considerando que o universo simbólico da pernambucanidade tem na resistência antiholandesa a matriz de sentidos, de significados, tidos como fundamentais do “ser pernambucano”, a batalha frevo-samba reifica o mito de origem, reafirma o ethos pernambucano ao qual o frevo se conecta para ser/funcionar como importante emblema do carnaval. Se no mito de origem da Batalha dos Guararapes, os pernambucanos (de caráter heróico, forte, subversivo, revolucionário, combativo, rebelde, libertário) lutam bravamente para expulsar o invasor (estrangeiro, inimigo holandês); na “batalha frevo-samba”, o frevo é o herói pernambucano; o samba (as escolas de samba), o antagonista louro a ser expulso. O frevo emblematiza o carnaval democrático, participativo do Recife, da tradição, pureza da pernambucanidade. Por sua vez, as escolas de samba, em franca ascensão, provocariam a decadência do frevo de tal modo que a sua presença representa “perigo” à “pureza” do carnaval pernambucano80 (DOUGLAS, 2012).
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Inspirado em Mary Douglas (2012). Inspiração que não perde de vista o universo específico da antropóloga, os propósitos e a análise estrutural do seu trabalho que trata de rituais de pureza e impureza: “Longe de serem aberrações do projeto central da religião, são contribuições positivas para a expiação. Através deles os padrões simbólicos são executados e publicamente manifestados. Dentro desses padrões, elementos díspares são relacionados e a experiência díspar assume significado.”. (DOUGLAS, 2012, p. 13).
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Como visto, os intelectuais articulam uma imagem do frevo como transgressor, caótico, uma onda humana, popular, participativa. Por outro lado, constroem uma imagem das escolas como manifestação que demanda uma audiência, um público de espectadores para contemplação e, por isso, nem todos participam dela. A questão das arquibancadas, no carnaval do Recife, transforma-se em um importante ponto de discussão até a década de 198081, por ir de encontro aos conceitos-chave do seu carnaval do Recife e, como agravante, ser um símbolo da participação e da presença das escolas de samba nessa festa. O frevo é representado como a desordem que confere ao carnaval do Recife uma característica única, enquanto as escolas de samba são investidas de imagem da ordem, foliões dispostos entre participantes e espectadores, não há mistura nem transgressão. O ressentimento da pernambucanidade se faz presente na “batalha frevo-samba”; o carnaval de Pernambuco, emblematizado pelo frevo, reivindica tratamento diferenciado, reconhecimento, importância nacional e justiça histórica. O frevo vai representar o Leão do Norte, traduz a imagem do pernambucano a defender seu território como, no século XVII, pronto para expulsar os invasores estrangeiros, para negar submissão, para se rebelar contra a “colonização do carnaval brasileiro” (VIANNA, 2004, p. 11) pelo Rio de Janeiro, inimiga imperialista, metrópole colonizadora, insistente em disseminar propostas estrangeiras, urbanas, modernas, externas às tradições. Tal como Mary Douglas (2012, p. 195) diz não haver ordem sem desordem, um precisa necessariamente do outro, na trama de uma batalha, não existe herói sem vilão, nem combate sem inimigo. O samba é o antagonista da batalha “frevo-samba”. Para Simmel (19 83, p. 122) o conflito é uma forma indelével de sociação, distinto da indiferença, puramente negativa (p. 123). Portanto, a batalha frevo-samba, vista como conflito simbólico, ilumina relações, entre as agremiações de frevo e as de samba na cidade, e concede às escolas de samba um papel de destaque diante de outras manifestações carnavalescas que, fora do conflito tornaram-se coadjuvantes nas narrativas históricas, ocupando lugares menos expressivos na história do carnaval do Recife e na hierarquia simbólica que ordena o repertório de práticas carnavalescas da cidade. Por esse ponto de vista, a “batalha frevo-samba”, como todo conflito, contém algo de positivo (SIMMEL, 1983, p. 123). Neste caso, foi importante tanto para a história do frevo, por serem os debates expostos na imprensa, um espaço de defesa irrestrita e de sua (a do frevo) valorização, como para a das escolas de samba. Constantemente acionadas, expostas, 81
Argumentos a serem desenvolvidos no próximo capítulo.
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trazidas à baila, as escolas de samba ganharam projeção. Diferentemente de bois, ursos, tribos de índio e de outras manifestações, as escolas recebem atenção e são evidenciadas como efeito inadvertido do embate. Essa visibilidade indireta pode ser apreendida no artigo de Lima (2013) traz uma expressiva relação de matérias jornalísticas dedicas à contenda entre o frevo e o samba nos anos de 1960 e 1970. As representações acerca do samba (especialmente as escolas de samba) inadvertidamente serviram para projeção do conjunto de significados identitários chamado de pernambucanidade. Penso, com base em Mary Douglas, que ao evidenciar o samba como elemento atípico (anômalo) frente ao repertório carnavalesco pernambucano, evidencia-se o próprio repertório: “Quando algo é firmemente classificado como anômalo, o esboço do conjunto no qual ele não é considerado membro se torna claro” (DOUGLAS: 2012, p. 53). A batalha frevo-samba, então, evidencia o conjunto do qual não deveria fazer parte, o das tradições pernambucanas. As escolas de samba, portanto, podem ser consideradas o exterior constitutivo do frevo, nos termos de Stuart Hall (2012, p. 110): As identidades são construídas por meio da diferença e não fora dela. Isso implica o reconhecimento radicalmente perturbador de que é apenas por meio da relação com o Outro, da relação com aquilo que não é, com aquilo que falta, com aquilo que tem sido chamada de seu exterior constitutivo [...]. Toda identidade tem, à sua ‘margem’, um excesso, algo a mais [...] toda a identidade tem necessidade daquilo que lhe falta.
Com a ressalva de que esse exterior constitutivo é uma imagem produzida sobre o outro, não o outro real. A escola de samba, no âmbito da “batalha frevo-samba”, é apenas a imagem construída por pernambucanos, representados pela intelectualidade, em um dado momento da história, eficazmente perpetuada. De igual maneira, o raciocínio se aplica ao frevo. Dessa forma, falta à imagem construída para o frevo exatamente o que foi imputado às escolas de samba, quando da produção da sua imagem, e vice-versa. Na década de 1930, surgem as primeiras escolas de samba do Recife, nascem em um “estado de guerra” já instalado, intensificando-o devido à pujança do movimento que instauram. Gigante do Samba, a escola escolhida para a observação do processo de preparação do desfile, foi fundada nessa década, é uma das mais antigas escolas de samba em atividade no Recife, vivenciou os embates e ainda os aciona na atualidade.
70
1.3.1 Os primeiros carnavais e a “Guerra às Escolas de Samba”. Pesquisadores e folcloristas pernambucanos (REAL, 1990; OLIVEIRA, 1971) contam que as primeiras escolas de samba do Recife surgem na década de 1930. Para Real (1990, p. 48) foram introduzidas por pernambucanos que, a serviço das forças armadas, passaram alguns anos na capital do país e, por isso, entraram em contato com o samba carioca e o trouxeram no seu retorno. A versão da chegada por meio dos marinheiros respalda a ideia de uma “manifestação importada”; o Rio de Janeiro como núcleo difusor (Queiroz, 1999); usada a exaustão como argumento para a batalha frevo-samba. Lima (2012) e Silva (2012) problematizam essa perspectiva. A começar, ambos negam interesse nas “origens”, porém afirmam encontrar a palavra samba designando evento, brincadeira ou festa, em registros históricos do final do século XIX. Informam que Batucadas e Turmas são outras designações anteriores às Escolas. Eram brincadeiras de samba cujo formato não se sabe ao certo. O jornalista e pesquisador José Teles (2008), contribuindo com a discussão, afirma que grupos de samba entre amigos em brincadeiras informais circulavam com instrumentos, muitos improvisados, pelas ruas do subúrbio recifense durante o carnaval. As Batucadas, Turmas e outras designações demarcam a relação do Recife com brincadeiras de samba antes dos paradigmáticos marinheiros, e, sobretudo, evocam uma dinâmica de interação que problematiza a prerrogativa da mera transposição cultural. Apenas na década de 1930, porém, fundam-se as primeiras agremiações, intituladas escolas de samba, em um lugar onde já havia samba e muito contato com o Rio de Janeiro. De acordo com Marize Félix, o Grêmio Recreativo Cultural Gigante do Samba ganha este nome em 1942, entretanto, Teles (2008, p. 40 - 41) encontra em suas pesquisas, no acervo do Jornal do Commercio, registros da agremiação já em 1937 com o nome de “Turma Quente”, no Alto do Céu, no bairro de Água Fria. Em 1938 o mesmo grupo sai às ruas com o nome “Garotos do Céu” e, só no carnaval de 1942, é batizada com o nome atual e definitivo
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de Escola de Samba Gigante do Samba82, provavelmente aderindo, nesse momento, o formato de escola de samba elaborado no Rio de Janeiro (CAVALCANTI, 1999) 83 .
Figura 01: Foto mais antiga do acervo da Gigante do Samba, década de 1970. Fonte: Gigante do Samba.
A Gigante do Samba e suas co-irmãs84 se alinham com os parâmetros das escolas de samba do Rio de Janeiro na década de 1940, crescem em número e força, seguem o modelo do em expansão na capital federal85. Silva (2012) indica esse período como o início das resistências dos intelectuais para com as escolas recifenses. Na opinião de Teles (2008, p. 41) resistências herdadas86: Os que combatiam as marchinhas cariocas nem imaginavam a ameaça que estas supostamente irrelevantes ‘turmas’ seriam para o frevo dentro de pouco mais de dez anos. Organizadas a partir de 1940. Na década seguinte já eram em número suficiente para desfilar na avenida, e começar a preocupar os defensores do frevo.
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Fundada por Waldomiro Silva, Olimpio Ferreira, José Marques da Silva e Luís Ferreira de França, a Escola tem o verde e branco, e a águia, no centro do seu pavilhão. Em mais de 80 carnavais a agremiação possui aproximadamente 50 títulos. Gigante é sem dúvida, além da principal Escola de Samba de Pernambuco. Ao que tudo indica o Grêmio Recreativo Escola de Samba Limonil, Escola ainda em atividade, é anterior à Gigante, fundada como escola de samba em 1935. Nem Gigante tampouco Limonil possuem registros oficiais dessas datas, então os componentes a verde e branco da Vila São Miguel, no bairro de Afogados, no centro do Recife, ostentam o título de “a escola mais antiga da cidade”. 83 As escolas de samba surgem no Rio de Janeiro na década de 1920, “organizam-se e estruturam-se entre 1920 e 1950 definindo o desfile como acontecimento específico dentro do carnaval e conquistando com ele a hegemonia carnavalesca da cidade. Já hegemônicas na cidade, elas asseguram também, entre os anos de 60 e 80 a primazia do país” Cavalcanti (1999, p. 82 - 83) 84 Expressão muito usada para um grupo se referir a outro de forma diplomática ou carinhosa. 85 Para ratificar o crescimento das escolas de samba na cidade, em 1948, foi fundada a União das escolas de Samba de Pernambuco. 86 Argumento a ser desenvolvido no próximo capítulo.
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O jornal, O Maskarado, foi a referência mais antiga e diretamente relacionada com a batalha frevo-samba, que encontrei na pesquisa ao Arquivo Público de Pernambuco. Publicada em 1949, coaduna-se com a observação de Teles e, às vésperas da década de 1950, a preocupação com as escolas de samba aparecem de forma mais evidente. O Maskarado, uma publicação independente que circulava nas ruas do Recife, pelo segundo ano consecutivo, traz um texto ilustrativo, precursor da batalha frevo-samba, identificada por Real, na década de 1960. A manchete de capa estampava: “Guerra às Escolas de Samba”. A matéria abaixo transcrita traz categorias norteadoras das representações da rivalidade entre o frevo e o samba. Nela as escolas de samba são descritas como intrusas, invasoras, importadas, externas às tradições do carnaval pernambucano, pondo em xeque não só a tradicionalidade, a autenticidade da festa, mas também a “dignidade do povo pernambucano”. Elas são um perigo eminente e intencional a ser sanado, com “enérgica repressão”, “reação vigorosa e imediata”, uma guerra cuja arma seria o “desprezo” à sua participação. “Perniciosas”, iludem o povo com “objetivos inconfessáveis”, portanto, moralmente comprometidas, “degradadas”, ruins, atacam ou contaminam a pureza do carnaval do Recife; o frevo, moralmente “bom”, tradicional, um autêntico “patrimônio de Pernambuco”.
Figura 02: O Maskarado, 1949. Fonte: Arquivo Público de Pernambuco
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Guerra às Escolas de Samba. O povo se aglomera nas ruas durante os três dias de reinado de momo, está na obrigação de reagir contra esses intrusos que pretendem impor ao Carnaval pernambucano, já tão descaracterizado e em tão lamentável decadência, uma modalidade de folguedo que não se coaduna em absoluto com nossos costumes, por vários motivos que seria ocioso enumerar. São as tais escolas de samba, importadas lá das favelas cariocas, onde a malandragem já se tornou um lugarcomum, e onde o samba, música tipicamente brasileira sem dúvida alguma, caiu no índice de, vamos dizer, degradação tal que se constituiu um espelho fiel daquela mesma malandragem inegavelmente policiável. Em todo o caso este estado de coisa existia apenas lá para as bandas da capital do país, essas perniciosas ‘Escolas’ só grassavam naquelas paragens, às custas de ‘cavações’ dos facadistas das favelas. Aliás, por si só esse evidente aviltamento de uma música popular brasileira deveria dar lugar a uma enérgica repressão, não dizemos policial, mas pelo menos partida das próprias camadas mais sadias do nosso povo. Mas, como acentuamos, isso são coisas que se passam lá no sul do país, até onde não chega a nossa voz e onde devem de existir vozes outras com o mesmo pensamento e os mesmos propósitos que os nossos. Pois bem, é isso, apenas isso, esse espetáculo de degradação e malandragem organizada que se quer impingir ao povo pernambucano, com perspectivas as mais desastrosas [...] para as nossas festas tradicionais carnavalescas, como também para a própria dignidade do povo pernambucano. São esses dois aspectos da questão que merecem ser refletido por todos: além de concorrer de maneira a mais perniciosa para uma maior descaracterização do carnaval de Pernambuco, essas indecorosas “Escolas de Samba” constituem também uma verdadeira afronta e um verdadeiro perigo às nossas tradições de povo sério e trabalhador como quem mais o seja. Quem diz ‘Escola de Samba’, diz malandragem, diz degeneração de costumes, diz tudo enfim quanto falta, felizmente, ao povo pernambucano. E não se venha afirmar que estamos precisando importar músicas de outras terras para o brilho do nosso carnaval. Temos aí o ‘frevo’, o contagiante ‘frevo’ que os nossos clubes entoam todos os anos pelas ruas do Recife, espalhando pela cidade uma atmosfera de alegria e de contentamento invulgares. A esses Clubes que todos os anos, enfrentando as mais diversas dificuldades e arcando com os maiores sacrifícios, saem às ruas, é que devemos dar o nosso apoio decidido, pois além do mais eles já se constituem, uma verdadeira tradição, um autêntico patrimônio de Pernambuco. Maskarado, que desde o primeiro número se propôs a incentivar por todos os meios o brilhantismo das tradicionais festas de Momo em Pernambuco, não poderia faltar com sua palavra de combate decidido às esdrúxulas ‘Escolas de Samba’ que se organizam no momento pela cidade iludindo a boa fé de muitos e com objetivos inconfessáveis. O nosso carnaval não precisa delas para nada e o nosso povo haverá de repudiá-las com toda a veemência, numa campanha grandiosa em defesa do que é nosso e do que é bom. Mas, o que é preciso é uma reação vigorosa e imediata. Não estamos aqui pregando a violência e a desordem, mas tão somente advertindo a população de Pernambuco contra esses inqualificáveis processos com os quais se pretende descaracterizar o carnaval de Pernambuco. Contra as ‘Escolas de Samba’ estamos na obrigação de erguer o nosso grito de guerra. E guerra significa, no caso, o desprezo total. Incentivemos de todos os modos os clubes carnavalescos do Recife, o ‘Vassorourinhas’, as ‘Pás’, o ‘Batutas de São José’, o ‘Prato Misterioso’, o ‘Pavão Dourado’ e tantos outros que existem por aí, lutando há muitos anos com os mais terríveis empecilhos e contribuindo de maneira decisiva para o brilho do carnaval. E repudiaremos, com toda a força energia, esses ‘cavadores’ intrusos que se reúnem com o rótulo de ‘Escolas de Samba’. (O Maskarado, Guerra às Escolas de Samba, 1949.) (grifos meus)
Tais ideias provavelmente não circulavam apenas em Recife. Durante a pesquisa encontrei no Jornal do Brasil, de 21 de fevereiro de 1957 (oito anos depois da matéria do
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Maskarado) o texto “O Frevo Pernambucano”, de A. Castro Lino. O autor foi vice-campeão do Concurso “Escreva Sua História de Carnaval” escolhido pela ilustre comissão julgadora composta por Rachel de Queiroz, Barbosa Lima Sobrinho e Manoel Bandeira. Nele Lino disserta para o público carioca a diferença entre o samba e o frevo, fala da “infiltração” do samba no carnaval do Recife e aponta as escolas de samba como elemento “facilmente dispensável” nessa festa: Entre um e outro a diferença vai longe [...] O Samba pode infiltrar-se em qualquer quadrante do solo brasileiro o mesmo não acontece com o frevo que dificilmente floresce fora do seu habitat, pois, carecem de fatores tradicionais e psicológico que se encontram no seu meio de origem. Daí sua particularidade de ser visto e admirado “in-loco” pois fora disso é mais uma ilustração á título de propaganda do que outra coisa. [...] O Samba vem tentando infiltrar-se no carnaval pernambucano porém, muito mal sucedido e não acredito que algum dia possa desbancar o “frevo” apesar mesmo de toda a sua popularidade, pois, falta-lhe o principal, o sangue nortista que só vibra em ritmo quente. [...] As escolas de samba do Recife apenas tem uma finalidade no tríduo momesco, é mais um colorido ao cenário carnavalesco pernambucano, que nada lhe deve e pode dispensá-la facilmente. (LINO, Castro. O Frevo Pernambucano. Disponível em: http://memoria.bn.br/. Acesso em 09 de abril de 2014). (grifo meu).
Voltando a terras pernambucanas, a reivindicação exposta no Jornal O Maskardo, em 1949 por uma “campanha grandiosa em defesa do que é nosso e do que é bom” não surtiu o efeito esperado, não houve desprezo pelas escolas; ao contrário, longe de serem “facilmente dispensadas “continuaram a crescer, como confirmou Real (1990) em 1967. A existência das escolas era importante como contraponto para os discursos e práticas das agremiações de frevo, para as políticas públicas, e consolidação, mais tarde, constante afirmação do frevo como emblema do carnaval da cidade, elemento do repertório da pernambucanidade. Como diz Mary Douglas: “Aquilo que é negado não é, todavia, removido. O resto da vida, aquilo não se enquadra exatamente nas categorias aceitas está ainda presente e exige atenção.” (DOUGLAS, 2012, p. 198). A discussão segue com menos vigor a partir dos anos de 1980, mas, ainda persiste na imprensa e a cada carnaval reaparece. Ao menos nos últimos quatro anos em que estive envolvido com a pesquisa, não faltam matérias a falar do samba, alertar recifenses para a existência dessas agremiações “desconhecidas”, e, claro, a evocar uma
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relação conflituosa com o frevo. A exemplo da que foi feita pelo Diário de Pernambuco em fevereiro de 2013, as vésperas do carnaval.87
Figura 03: Diário de Pernambuco, Fevereiro de 2013. Acervo pessoal.
O samba e o Rio de Janeiro são o “outro” a serviço da diferença. Foram, em Pernambuco, historicamente elaborados como o contraste útil para a construção de matrizes argumentativas, representações imagéticas e discursivas, forjadas ao longo do século XX, estruturantes do modelo de festa carnavalesca recifense. Essa relação ainda existe e se faz assunto merecedor de investimentos de jornalistas e intelectuais. Investigo, no próximo capítulo, a batalha frevo-samba, suas categorias constitutivas e alcance na experiência social das escolas de samba do Recife.
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Como “estudioso do tema” fui acionado pelos jornalistas de todos os jornais de grande circulação da cidade, nos últimos anos para entrevistas, inclusive nessa matéria exposta. As perguntas se repetem, os temas são os mesmos: a dificuldade de fazer samba na Terra do Frevo. O intuito benevolente dos jornalistas também se repete, todos querem alertar os leitores para a existência das escolas em Recife.
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“É de paixões que se brotam opiniões”. Nietzsche (2005, p. 27)
Na sede da Gigante do Samba, acontecem algumas ações sistemáticas voltadas para a comunidade de Água Fria, onde atualmente se localiza a Escola, como a distribuição de leite para as famílias (programa do Governo Estadual), aulas de ginástica para a terceira idade, e o projeto com crianças e adolescentes, chamado “Samba e Saber”, ao qual a diretoria dedica especial atenção. A perspectiva de transmissão de conhecimentos para os mais jovens, e a de continuidade da Escola, mobiliza as coordenadoras do projeto, Marize e Joelma: Aqui tinha o projeto “Bombando Cidadania” que o Wal Mart financiou para aprimorar e qualificar o pessoal da cultura de carnaval com capacitações em várias áreas. Eles tiveram a maior dificuldade de articular pessoas jovens para as capacitações. Por quê? Porque não se trabalha uma juventude que goste de cultura, que continue o que os avós, os pais fazem... Eu mesma sei que se eu partir pra outro plano espiritual sei que tem Xangai [filho] que vai me representar muito bem, tem uma sobrinha Paloma que está dentro do samba, tenho um sobrinho também que trabalha no bar daqui, ajuda a mãe com a roupa, que ela é a segunda Porta-Bandeira. Então são gerações e gerações. Gigante é a única que tem a perspectiva de ter um futuro assim porque as outras agremiações vão se acabar... Só o caboclinho é que eu acho que ainda tem raiz, que tem aquelas meninas pequenininhas dançando. Até o maracatu eu acho que já está fugindo, sem crianças e jovens. Você não vê mais aquele maracatu pequenininho. Frevo nem se fala... as crianças e a juventude não participam das agremiações de frevo. Para estimular, remontei a bateria mirim da Escola que existia antigamente mas tinha morrido e fizemos o projeto maravilhoso com essas crianças e jovens, o “samba e Saber” (Marize, diretora da Escola e Coordenadora do Projeto Samba e Saber)
O “Samba e Saber” é um projeto de extensão da Universidade Federal de Pernambuco, executado predominantemente por alunos do curso de graduação em História; atende crianças e jovens (de oito a dezessete anos) da “bateria mirim” da Gigante do Samba. O Projeto (em funcionamento desde 2011) surge como desdobramento da retomada da bateria mirim da Escola, desativada pela antiga gestão. Trata-se de encontros semanais, aos sábados pela manhã, para transmissão de conhecimentos sobre a história do samba, mais precisamente, do samba no Recife. Uma atividade complementar aos ensaios da bateria mirim, de forte caráter pedagógico e evidente conteúdo histórico88. Joselito, um dos estudantes de História e integrante da Gigante, explica: 88
Rafael, outro estudante de história e educador do projeto, comenta a preocupação pedagógica: “[...] passamos um ano não só falando do samba e do Rio de Janeiro porque a gente tenta, dentro das limitações, trazer algum tipo de reforço pros meninos, a gente já trouxe leitura, aula de Geografia pra tentar incorporar mais elementos [...] Às vezes a gente traz letras de samba pra eles interpretarem, acaba sendo uma aula de interpretação de texto com letras de samba. [...] Tem a dificuldade da idade, porque vai de 8 a 18 e tem a dificuldade escolar mesmo,
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Essa ideia da bateria mirim foi resgatada por Marize e Joelma. Já tinha há muito tempo, mas acabou. Aí há dois ou três anos eles regataram a bateria mirim. Mas com esse plano de trabalhar com esses meninos da comunidade, elas pensaram uma coisa mais voltada para o social, não só os meninos chegar aqui para tocar. Foi aí que Joelma teve a ideia de me chamar, eu sou irmão dela, pra gente dar um auxílio. Eu disse que o que a gente podia dar era a História do samba porque a gente é pesquisador. E a gente pensou no projeto pra ter uma legitimação da Universidade.
Marize e Joelma incentivaram Joselito e seus companheiros de graduação a realizarem o projeto na Gigante do Samba, pensando no impacto direto sobre as crianças e jovens da Escola: “É importantíssimo que as crianças e adolescentes saibam a história do samba em Recife e não fiquem só no aprendizado do instrumento. Precisa saber de onde viemos [o samba] e o que passamos para chegar até aqui”.
Figura 04: Ensaio Bateria Mirim da Gigante do Samba para o carnaval 2013. Foto: Hugo Menezes.
Figura 05: Bateria mirim na concentração do desfile da Gigante do Samba, carnaval 2013. Foto Hugo Menezes
tem menino que não sabe ler. É difícil padronizar isso, porque está completamente desnivelado. Então nesses espaços de reforço a gente tenta dar atenção nessas dificuldades mais básicas pra tentar planificar o máximo possível pra gente conseguir o melhor aproveitamento da aula porque às vezes a gente sente que não chegou o suficiente, isso angustia a gente. Por isso a gente pensou nessa outra via não só estudar o samba, mas, também de trazer um conteúdo escolar como entremeio.”
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As crianças e jovens aprendem a história do samba no Recife a partir da perspectiva do conflito simbólico entre o samba e o frevo. Acompanhei algumas aulas do projeto (2012/2013) e, em suas explanações, os professores explicavam o seguinte para os alunos (dispostos em roda): “[...] quando a Gigante começou, em 1942, o samba era visto como estrangeiro, era rejeitado. Foi muita luta para chegar até aqui” (nos termos de um dos educadores). Eis a foto representativa dessa aula:
Figura 06: Aula do Projeto Samba e Saber. Agosto de 2012. Foto: Hugo Menezes
Na parede da sala, cartazes expõem a produção dos jovens ritmistas da bateria mirim acerca dos conteúdos estudados89. Um deles era a síntese das últimas aulas sobre a história do samba em Recife. Assim, sintetizava o cartaz: “O samba não é estrangeiro” “O samba era rejeitado” “O samba não era importante no Nordeste” “Pernambuco também é a cidade do samba” (sic) “O samba não foi considerado90 no Recife”
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As atividades do projeto estruturam-se em explanações dos conteúdos, roda de diálogo, seguida de atividades didáticas para construção de material referente ao conteúdo estudado, como cartazes e textos. 90 “Ser considerado” é uma expressão local equivalente a não ser prestigiado ou valorizado.
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Figura 07: Cartaz Projeto Samba e Saber. Agosto de 2012. Fonte: Hugo Menezes
Depois de uma das aulas, perguntei aos participantes do projeto sobre os aprendizados mais importantes dos últimos encontros. Apareceram os conteúdos do cartaz e, de forma recorrente, o discurso da histórica “rejeição” ao samba, no Recife, a consequente resistência das escolas. As falas eram bastante enfáticas; os alunos defendiam o samba discriminado na “Terra do Frevo”:
Eu acho bom porque a gente aprende como fundou o samba, de onde veio o samba, aprende as origens, as histórias, vários tipos de coisas A gente aprendeu que o samba não veio do Rio, veio da Bahia, dos negros, da África. E que, quando chegou aqui, era rejeitado e, de tão forte, resistiu e sobreviveu até hoje. (aluno do projeto Samba e Saber) Ainda existe discriminação. Existe porque o pessoal diz que Recife é a Terra do Frevo, mas não é só “Terra do Frevo” não, porque existe escola de samba, urso, boi, tem tudo aqui no Recife, maracatu. Dizem que é a terra do frevo e do maracatu, eu não acho isso legal não porque isso escanteia a gente que gosta do samba. Aqui também é terra do samba (aluno do projeto Samba e Saber) O samba é uma cultura popular, não é só do Rio de Janeiro, é uma cultura brasileira. Mas, o pessoal acha que só tem escola de samba no Rio de Janeiro porque lá tem grandes escolas. O pessoal acha que o samba de lá é melhor do que a daqui, mas, a diferença é só porque lá eles têm mais financiamento, porque as daqui são guerreira, sobreviveram na raça contra o preconceito. (aluno do projeto Samba e Saber)
Este capítulo, portanto, trata da “batalha frevo-samba”, pensando ser esta ainda uma fonte para as narrativas sobre a história das escolas de samba e do frevo (como atestam os conteúdos do Projeto Samba e Saber); por fornecerem elementos discursivos e imagéticos acionados pelos brincantes de samba e de frevo, na cidade do Recife; por incidir na experiência e no imaginário social (SOUZA, 2011) dos sambistas pernambucanos.
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Penso que a relação conflituosa entre frevo e samba pode estar alicerçada em antagonismos anteriores entre Recife e o Rio de Janeiro, produzidos pelo pensamento regionalista encabeçado por Gilberto Freyre. Logo, busco pistas sobre as representações das duas cidades na produção do sociólogo, com fins de encontrar o lugar do Rio de Janeiro no pensamento regionalista entre os anos de 1920 e 1940. Por conseguinte, o movimento regionalista é pano de fundo para a “batalha frevo-samba”, quando produz estereótipos e prénoções acerca do Rio de Janeiro. Esses estereótipos e essas pré-noções são transferidos para as escolas de samba, a partir dos anos de 1940, quando do início da “guerra às escolas de samba”. Em seguida, considerando o próprio Freyre como partícipe mais ilustre da “batalha” foco na sua atuação para visualizar as categorias argumentos e sentidos constitutivos da contenda simbólica. Como complemento, acessei as obras que os professores indicaram como referência para as aulas do Projeto Samba e Saber - Katarina Real (1990), Valdemar de Oliveira (1971) e Ruy Duarte (1968) – em busca de argumentos e sentidos pouco evidentes na produção de Freyre. Por fim, elenco dois episódio emblemáticos para evidenciar ações práticas do conflito simbólico, percebendo como tal conflito incide na experiência de fazer escola de samba no Recife; termino o capítulo tentando ressignificar a contenda iluminando relações entre grupos de frevo e escolas de samba no contexto atual.
2.1 Gilberto Freyre: Samba, Frevo e Saber Devido ao grande impacto de Casa Grande e Senzala (1933), Freyre é frequentemente acionado pela literatura do pensamento social para pensar a mudança dos paradigmas raciais até então existentes, ao valorizar a miscigenação, antes culpada de todos os males nacionais, associando-a à originalidade cultural brasileira. Hermano Viana (2004), por sua vez, aponta o encontro boêmio92, ocorrido em 1926, entre Gilberto Freyre, Prudente de Moraes, Sergio Buarque de Holanda, Villa-Lobos, Luciano Gallet, Patrício Teixeira e Donga, como emblemático da articulação do “Brasil mestiço”, com o novo lugar do samba como elemento definidor da identidade nacional. Depois do referido encontro de 1926, Gilberto Freyre estaria “sendo seduzido pela cultura popular carioca. Não 92
O encontro é registrado em: Freyre, Gilberto. Tempo Mortos e Outros Tempos (diário de adolescência e primeira mocidade – 1915-1930). Ed. Global, São Paulo, 2006. (p. 264).
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só ele: todo Brasil”. O Estado Novo e suas pretensões nacionalistas, o aparato das rádios e das gravadoras de discos no Rio de Janeiro, teriam impulsionado a “colonização” do samba carioca no carnaval brasileiro. O rádio, por exemplo, fizera suas primeiras transmissões no Brasil nas comemorações do centenário da independência em 1922 [...]. O Mercado de discos brasileiros, no final da década de 20, também estava em ritmo de revolução, com o advento da gravação elétrica e a instalação de várias gravadoras no país [...]. Nada mais propício para o samba carioca, mais tarde tido como brasileiro, finalmente se definir como estilo musical. Em sua própria cidade já havia as rádios, as gravadoras e o interesse político que facilitariam [mas não determinariam - isso é outro problema] sua adoção como nova moda em qualquer cidade brasileira. O samba tem tudo ao seu dispor para se transformar em música nacional. [...] Foi só nos anos 30 que o samba carioca começou a colonizar o carnaval brasileiro, transformando-se em símbolo de nacionalidade. Os outros gêneros produzidos no Brasil passaram a ser considerados regionais” (Vianna, 2004, p. 109-11). (grifos meus).
O ponto de vista do “colonizado”, em se tratando do caso de Pernambuco, evidencia, contudo, resistências às demandas da “metrópole”. A obra e a atuação de Gilberto Freyre também podem ser tomadas como representativas de tais resistências. Talvez estivesse mesmo sendo “seduzido” pela cultura popular carioca, pois o Rio de Janeiro e suas manifestações artístico-culturais eram assuntos de seu interesse. Entretanto, suas oposições declaradas às propostas artísticas, urbanísticas, arquitetônicas, literárias do modernismo do eixo Rio-São Paulo foram notórias. A defesa dos valores regionais e a exaltação da história local/regional, bem como a rejeição às escolas de samba, não coadunam com a ideia da “colonização” de Pernambuco pelo “samba”. Interessava a Freyre ressaltar não só a diversidade regional, mas, sobretudo, o lugar preponderante do Nordeste (e de Pernambuco) para a formação social e cultural brasileira. Inspirado em Vianna, tomo Gilberto Freyre como personagem igualmente significativo para a elaboração do emblema da identidade local, o frevo. A viagem de Freyre ao Rio de Janeiro, em 1926 - e o encontro com o importante grupo de intelectuais, artistas e políticos – não deve ocultar a sua controversa relação com os amigos (e alguns desafetos) modernistas. Igualmente tal viagem não deve ocultar suas impressões negativas sobre a, então, capital federal em plena expansão urbana. Juntam-se a essas premissas suas ideias sobre miscigenação e regionalismo, formulando concepções de grande penetração no pensamento da intelectualidade pernambucana, em torno da cultura popular e dos marcos identitários. Com efeito, essas concepções reorientaram posições conceituais e políticas
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concernentes às práticas carnavalescas, alimentaram imagens e discursos sobre o frevo e as escolas de samba.
2.1.1 O Rio de Janeiro e o imaginário regionalista (1920 – 1940) A palavra Nordeste é hoje [em 1937] desfigurada pela expressão ‘obras do Nordeste’ que quer dizer ‘obras contra a seca’. E quase não sugere senão as secas. Os sertões de areia seca rangendo debaixo dos pés. Os sertões de paisagens duras doendo nos olhos. Os mandacarus. Os bois e os cavalos angulosos. As sombras leves como umas almas de outro mundo com medo do sol.” (FREYRE 1967, p. 05)
As representações sobre o Nordeste foram delineadas ainda no Império, quando da criação de um repertório de representações sobre o “Norte” do país, consolidadas com a República, com a definição geopolítica e cultural das Regiões. São elaboradas a partir do ponto de vista do centro político e econômico, o Rio de Janeiro e São Paulo, responsáveis por associá-las ao problema crônico das secas, da miscigenação, tido como obstáculo ao progresso, ao desenvolvimento econômico da nova nação (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2009). A crise do açúcar do século XIX impulsiona a produção de discursos93 em defesa dos interesses das províncias do Norte, “enquanto um bloco e contraposta a um outro, o Sul” (PENNA, 1992, p. 22). Tais províncias estavam gradativamente fragilizadas em sua economia, sofriam as intempéries de secas consecutivas. O Brasil de meados do XIX era marcado por grandes distâncias entre as províncias, deficiência dos meios de transporte para o deslocamento, o baixo índice de migrações internas. Isso fazia das regiões Norte e Sul “espaços completamente desconhecidos entre si” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2009, p. 53). Com a instauração da República, o desenvolvimento da imprensa, as visitas dos políticos dos “Estados Norte” ao Rio de Janeiro, ocorrem maior contato e circulação de impressões mútuas, em geral, estruturadas em qualificativos binários como “costumes bizarros e simpáticos” do Norte ou “estrangeiros e arrivistas” do Sul (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2009, p. 54)94.
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Albuquerque Junior (2009, p. 35) explora as fontes e a recorrência desses discursos. Para ele definir a região é pensá-la como um “grupo de enunciados e imagens que se repetem com certa regularidade, em diferentes discursos, em diferentes épocas, com diferentes estilos [...]”, enunciados e imagens, resultados da atuação de agentes das artes, literatura, ciência, política entre outras instâncias de poder e difusão de ideias. Tais enunciados e imagens ao mesmo tempo em que refletem também produzem representações sociais, o que parece estar em consonância com Bourdieu pois, para o sociólogo francês - ao tratar do tema região e nação - as representações que os agentes sociais têm das “divisões da realidade” contribuem para a “realidade das divisões” (1989, p. 120). 94 Albuquerque Junior (2009) traz em seu livro muitas referências jornalísticas e literárias acerca dessa circularidade de impressões mútuas e estereotipadas entre Norte e Sul.
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O Nordeste emerge da antiga geografia do país segmentada entre “Norte” e “Sul” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2009, p. 51), oriunda da reelaboração das imagens e de enunciados acerca do Norte, da “crise político-econômica e a desigualdade entre as regiões brasileiras” (PENNA, 1992, p. 23). As regiões são construídas por processos histórico-sociais que as delimitam e as transformam em espaços – territoriais e culturais - “naturais” e “reais”. Circulava, na literatura, nas artes, nas ciências, na política, na economia uma visão do Norte ligado ao atraso, às práticas tradicionais e à seca. Essa visão era comparada ao do Sul, lugar embranquecido, da modernidade, do progresso e centro em potencial de atração dos fugitivos das secas, dos intelectuais nortistas, em busca de “civilização”. Resume Albuquerque Júnior (2009, p. 75): “O ‘Norte’ é o exemplo do que o Sul não deveria ser. É o modelo contra o qual se elabora a imagem civilizada do “Sul””. Em seu livro “Nordeste” 95, de 1937, Freyre critica o que chama de visão de um “Norte maciço”, construída pelo “Sul” com “exagero de simplificação”, o que Albuquerque Júnior (2009) define contemporaneamente de “operação de homogeneização” para a construção simbólica do Nordeste. Como saída para desconstruir a tal imagem, Freyre sugere estudos criteriosos sobre ecologia e sociologia regional (FREYRE, 1967, p. 06) para mostrar “que dentro da unidade essencial, que nos une, há diferenças às vezes profundas”. Gilberto Freyre e seus pares do movimento regionalista, a partir dos anos de 1920, trabalham na construção de outras representações para além do castigo irreversível da natureza e dos malefícios da interação racial, mobilizados em desestabilizar os estereótipos produzidos pelo “Sul” do país, e, por conseguinte, em iluminar especificidades, em valorizar a participação do Nordeste para a definição da Nação. O Regionalismo contribui para tornar a espacialidade “socialmente visível”, criando “uma forma de representação difundida e aceita” (PENNA 1992,19). O regionalismo97 é importante para a formação discursiva nacional-popular com vistas a dialogar com as novas demandas do processo de elaboração da identidade nacional. O paradigma naturalista - “considerava a diferença entre os espaços do país como reflexo imediato da natureza do meio e da raça”98 (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2009, p. 53) - perde 95
O livro “Nordeste” dedicado a analisar a que ele chama de civilização da cana do açúcar no Nordeste e a sua importância para a formação social nacional. 97 Para Elide Rugai (2011: 448) a atuação dos modernistas na década de 1920 em “São Paulo, Rio de Janeiro, Nordeste e Minas Gerais”é importante para a reelaboração da temática região-nação. Entretanto, os nove estados da Região são omitidos pelo genérico Nordeste em detrimento àqueles estados do Sudeste, individualizados. É importante discutir região e nação, como tese para a formação nacional enquanto espaços criados e não dados naturalizados com vistas a não reproduzimos o caráter unívoco que historicamente constitui a categoria Nordeste. 98 Como representante desta formação discursiva, destaca-se Euclides da Cunha. Para maiores aprofundamentos acerca do argumento sociológico de Os Sertões, ver Nísia Trindade (2010).
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fôlego diante dos argumentos com base na ideia de cultura99; a questão racial ganha outra dimensão com a perspectiva positivada da miscigenação, sistematizada por Freyre100. O discurso regionalista de Freyre reivindica o reconhecimento do Nordeste como portador de história e de especificidades culturais relevantes para a formação social brasileira, frente à supremacia das referências histórica e culturais do Sudeste. Pierre Bourdieu identifica orientação similar, ao pensar o binômio ‘região e nação’, o regionalismo tenta “impor como legítima uma nova definição das fronteiras e dar a conhecer e fazer reconhecer a região assim delimitada – e como tal desconhecida -, contra a definição dominante, portanto, reconhecida e legítima que a ignora” (BOURDIEU, 1989, p. 116). Em Freyre (1967, p. XXVIII), a “civilização baseada na cana de açúcar” (da monocultura,
escravidão,
latifúndio
e
miscigenação
compulsória)
comprova
a
“nordestinização” brasileira de precedentes coloniais invisibilizada pela “definição dominante que a ignora”. O Nordeste do começo do século XX continua a ser um “centro de irradiação” das atividades culturais brasileiras e não apenas uma área de “passiva repercussão ou de arcaica estagnação”. Em suas palavras, assim define o processo de nordestinização: [...] De extensão a outras áreas brasileiras e até estrangeiras, não só de métodos e de condições de economia, de cultura e de vida, como de métodos e formas de criação de arte, de ciência e de estudo, por algum tempo peculiares ao Nordeste ou originários do Nordeste brasileiro. Tanto do agrário como do pastoril. Tanto do úmido como do seco. Essa nordestinização foi aliás, precedida por outra que, ainda na época colonial, fez do Nordeste uma influência transregional na vida brasileira: a que se refere a expansão do complexo casa-grande & senzala [...]. (1967, p. XIX)
O discurso regionalista do Nordeste (não mais do Norte), de Freyre, revaloriza a história da Região no intuito de reposicioná-la, concedendo-lhe prestígio por sua atuação na formação da sociedade brasileira. Ultrapassa a imagem da seca e reivindica “vantagens correlativas”, tanto econômicas quanto simbólicas (BOURDIEU, 1989) 101. Nesse Nordeste
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A região Nordeste vista como lugar da formação da cultura brasileira e não como espaço (pré)determinado pela raça ou natureza. Freyre insere a discussão sobre cultura para pensar a região por meio da ideia da originalidade – autenticamente brasileira – do “complexo casa-grande e senzala” como “expressão de um sistema patriarcal de organização de família, de economia e de vida social” (FREYRE, 1967, p. XXIX). Discípulo de Franz Boas, experiência que o fez compreender que raça não determina a cultura, fê-lo desarticular a identificação da nacionalidade com unidade racial. 100 A harmonização entre as três raças é ponto de crítica aos argumentos de Freyre, uma vez que a sugestão de relações harmônicas entre as “três raças” omite o campo de tensões no qual se desenvolvem tais relações. 101 Para Bourdieu (1989, p. 124), a questão das regiões e do regionalismo também se inscreve nos termos das batalhas simbólicas entre frentes de poder. O regionalismo (ou nacionalismo) é apenas um caso particular das lutas propriamente simbólicas em que estão em jogo vantagens correlativas, tanto econômicas quanto simbólicas.
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estão as origens do povo brasileiro, onde primeiro se deu a miscigenação e a formação social da Nação, um regionalismo, que se pretende nacionalismo102: A verdade é que foi no extremo Nordeste [...] que primeiro se fixaram tomaram fisionomia brasileira, os traços, os valores, as tradições portuguesas, que junto com as africanas e as indígenas constituíram aquele Brasil profundo, que hoje se sente ser o mais brasileiro. O mais brasileiro pelo seu tipo aristocrático, hoje em decadência, e principalmente pelo seu tipo de homem do povo, já próximo, talvez, da relativa estabilidade. Um homem do povo semelhante ao polinésio, feito de três sangues, noutras terras tão inimigos – o do branco, o do índio e o do negro. Um negro adaptado como nenhum à lavoura do açúcar e ao clima tropical. Um português também predisposto à sedentariedade da agricultura, e um índio que ficou aqui mais no ventre e nos peitos da cabocla gorda e amorosa do que nas mãos e nos pés do homem arisco e inquieto. (FREYRE, 1967, p. 10) (grifos meus)
O Sul/Sudeste, em contrapartida, aparece em Freyre como exemplo paradigmático da “repercussão passiva”, da influência da modernidade e do progresso destruidores das tradições a desajustar a ordem social103. Espaços pouco protegidos dos estrangeirismos104 que atentam contra os conteúdos “originais” do povo e “autenticamente brasileiros”, atentam contra a identidade nacional. Freyre (1941, p. 248), referindo-se ao regionalismo do Rio Grande do Sul, defende o controle da tradição sobre a modernidade, a conciliação entre as “vantagens do progresso” e a “personalidade regional”, só não deixa muitas pistas de como isso deveria acontecer: No Rio Grande do Sul é o que acabo de surpreender com maior alegria: o gosto de sua gente em adaptar vantagens do progresso mecânico conservando entretanto o máximo de sua personalidade regional. O narcisismo gaúcho é no que mais se delicia: na contemplação de um progresso que não destruiu sua personalidade regional.
Tais argumentos comparativos alicerçam a relação, em certa medida, de oposição, entre o movimento regionalista do Recife, o movimento modernista de São Paulo e Rio de Janeiro. Todavia, Freyre (1941, p. 23) não se autodefine como um intelectual radical ou completamente avesso às novidades, vê-se atraído pelos seguintes aspectos: 102
Para Freyre (1941, p. 242): “Nós todos, brasileiros do Sul e do Norte, estamos como nunca nos contemplando a nós mesmos. No narcisismo regional se exprime o nacional com maior e menor intensidade”. 103 Sobre este ponto da construção sociológica do Nordeste por Freyre, é interessante a análise de Albuquerque Júnior (2009, p. 117): “[...] uma região contra a despersonalização cultural trazida pela generalização dos fluxos da modernidade, da defesa do sobrado e até dos mocambos contra os arranha-céus. Sua utopia é o surgimento de uma sociedade na qual a técnica não seja inimiga da tradição, em que a técnica e a arte se alinhem, e tradição e modernidade andem juntas, sempre sob o controle da primeira”. 104 Para Freyre (1941, p. 193), leia-se ‘estrangeiros’ tanto o acolhimento das vanguardas artísticas e novidades técnicas, tendências e modismos comportamentais como também a miscigenação que envolvesse europeus nãolusitanos. Como o Nordeste não recebeu imigrantes em massa para mão-de-obra nos primeiros anos da república do modo como ocorreu com o “Sul”, a Região se apresenta então como o “refúgio da alma do Brasil” (expressão que o autor toma de empréstimo de Oliveira Vianna). Desenvolveu-se no Nordeste, mais do que no Sul, a brasilidade.
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[...] pela aventura intelectual, para a experimentação artística, para a inovação literária e, ao mesmo tempo, para os encantos da rotina, da tradição e da continuação – nos limites do possível – das coisas familiares, quotidianas e de província.
Salienta suas “profundas afinidades” com alguns modernistas, que conhecera na sua primeira visita ao Rio de Janeiro e a São Paulo, em 1926, interessados “no folclore lusobrasileiro, em coisas de negro, de caboclos, de mestiços do Brasil”105 (p.25). Com exceção desses amigos, assume certa rejeição ao movimento modernista “[...] tal como surgiu no Rio e em São Paulo e nos estados menores: radicalmente contra a rotina [...] inimigo de toda a espécie de tradicionalismo de toda a forma de regionalismo” (p. 24). Sobre essa viagem para o Rio de Janeiro106, Freyre expõe, em seu diário, a decepção com a cidade, em especial com a arquitetura e a urbanização107 (ou com a paisagem urbana, incluindo a conjugação natureza e cidade), aspectos indicadores da adesão da cidade à modernidade108: Chego à ‘capital federal’ que venho a conhecer depois de ter estado em vários países e em várias cidades dos Estados Unidos e da Europa.
105
Cita Freyre (1941, p. 25): “Manuel Bandeira [poeta], Prudente de Moraes, Rodrigo de Mello Franco de Andrade, Carlos Drumond de Andrade, Sérgio Buarque de Hollanda, Couto de Barros, Rubens Borba de Moraes, Jayme Ovalle, Affonso Arinos de Mello Franco, e dois ou três outros, aos quais continuam a ligá-los preocupações e modos de ver comuns”. 106 O Rio de Janeiro já povoava o imaginário de Gilberto Freyre desde criança. Familiares seus já tinham conhecido esse Estado; ora por terem passado temporadas lá, ora morado definitivamente na capital do país. Essa construção de imagens está assim retratada: “Meu passado recifense, ou pernambucano, por exemplo, tem alguma coisa de passado do Rio por ter a experiência de velhos parentes meus assimilando no Rio imagens e sensações que foram transmitidas a minha meninice com tal vivacidade que se tornaram fluidos; e, nesse estado de fluidez e de movimento, se tornaram parte do meu próprio passado de menino provinciano, agora projetado sobre o meu presente”. (Freyre, 2006, p. 258). Durval Muniz de Albuquerque Junior (2013), por sua vez, explora esse imaginário nordestino sobre o sudeste no começo do século, quando levas de retirantes, fugindo da seca, e intelectuais, em busca de trabalho, ocupavam a cidade. 107 Nesse mesmo diário, meses antes de viajar para o Rio, Freyre (2009, p. 254) fala sobre outro evento que organizou e foi conferencista, a Semana da Árvore. A temática de sua conferência foi sobre a urbanização, mais especificamente sobre a necessidade de arborização das cidades do Nordeste, em particular, do Recife, devendo ser um processo sob o critério regional: “combatendo a praga que representa a figueira-benjamim – além do eucalipto – agora plantada em toda parte neste trecho do Brasil. O que devemos plantar é árvore brasileira. Ou aqui já aclimatada. Árvore regional [...].”. O comentário sobre a urbanização do Rio de Janeiro conecta-se com os assuntos recentes da pauta de discussão de Gilberto Freyre e da agenda regionalista em Pernambuco. 108 Em outras obras, Freyre reforça sua posição contrária às mudanças arquitetônicas que atribui ao modernismo, e, especificamente, ao Rio de Janeiro. Em Região e Tradição de 1941, Freyre é enfático: “De minha parte, nunca pude me entusiasmar por certos edifícios novos e certas casas modernas do Rio e de outras partes do Brasil, com um excesso de vidros [...] A casa nos trópicos sem sombra me parece um fracasso [...] e pela sombra nas ruas das cidades do Brasil estamos cansados de bater – os regionalistas do Recife”. Contrapondo-se às mudanças na paisagem urbana atribuídas à subordinação a modelos estrangeiros, Freyre (1976, p. 35) escreve, na década de 1930, em Nordeste: “Para os renovadores do Recife, as cidades brasileiras, ao se modernizarem com arranhacéus cinzentamente cosmopolitas, estavam correndo o risco de perderem a tropical ‘Vária cor’ – segundo a expressão camoneana – das fachadas dos edifícios. ‘Vária cor’ nos edifícios que correspondesse à vária cor de uma população panbrasileira crescentemente miscigenada, e, no Nordeste miscigenadíssima”, leia-se brasileiríssima.
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Desapontado com a arquitetura nova do Rio: tanto a pública como a doméstica. É horrível. A nova Câmara dos deputados chega a ser ridícula. Aquele Deodoro à romana é de fazer rir um frade de pedra. Quanta caricatura ruim [...] Na arquitetura doméstica domina também um subrococó dos diabos. A variedade de subestilos é assombrosa, e só uma unidade os irmana: o mau gosto. Faz pena ver o Rio - cidade de situação ideal – sob essa invasão triunfante do mau gosto que vem conseguindo corromper as próprias vantagens naturais da capital brasileira: saliências de morros cobertos por vegetação tropical. Em vez de se conservar a velha confraternidade da mata com a civilização, raspa-se agora o verde para só destacarse o horror de novos e incaracterísticos arquitetônicos [...] Entretanto o velho Rio que vem sendo assim descaracterizado era uma cidade a que não faltava encanto próprio, único, inconfundível. Arquitetura sólida. Muita cor – como em Lisboa. E uma confraternização única com a mata, com a água e com a natureza. É o que concluo através desse Rio bom e autêntico. É bom o que ainda se vê em suas velhas casas [...]. No Cosme Velho inteiro. Em Santa Tereza inteira. Ilhas e ilhotas que vêm resistindo à inundação do mau gosto, de arrivismo, de rastaqüerismo. E certos modernistas’ a acharem isso ‘bonito’, ‘progressista’, ‘moderno’ e a se regojizarem com a destruição das ‘velharias’. São uns cretinos, esses ‘modernistas’. (FREYRE, 2009, p. 257) (grifo meu).
Nesse mesmo ano, 1926, ocorre o Congresso Regionalista organizado por Freyre. O Manifesto Regionalista109 exprime as impressões do autor sobre o Rio de Janeiro e os modernistas. O documento fala do seu entendimento acerca das diferenças (ou oposições) entre as plataformas de ideias “progressistas” do modernismo “Rio-São Paulo” e tradicionais do seu “[...] regionalismo tradicionalista ao seu modo modernista: mas de todo independendo do ‘modernismo’ Rio-São Paulo” (1976, p.15). Freyre afirma, no Manifesto, que o Movimento Regionalista do Recife rompe com as convenções e com a “passiva subordinação absoluta a modelos estrangeiros” (1976, p. 16) do qual parece acusar a capital federal, e é mobilizado pela missão da defesa de “valores e tradições do Nordeste” (p. 56): Procurando reabilitar valores e tradições do Nordeste repito não julgamos estas terras [...]. Procuramos defender esses valores e essas tradições, isto sim, do perigo de serem de todo abandonadas, tal o furor neófilo de dirigentes que, entre nós, passam por adiantados e ‘progressistas’ pelo fato de imitarem cega e desbragadamente a novidade estrangeira. A novidade estrangeira de modo geral. De modo particular, nos Estados ou nas Províncias, o que o Rio ou São Paulo consagram como ‘elegante’ e como ‘moderno’. (FREYRE, 1976, p. 56 - 57) (grifo meu)
O ironicamente “elegante” quer dizer “mau gosto”, “horrível”, “ridículo”, adjetivações que demonstram posturas antagônicas tanto estéticas quanto conceituais entre modernistas e regionalistas, ao menos do ponto de vista de Freyre. A adesão às “propostas” estrangeiras 109
É sabido das controvérsias acerca da real relação entre o documento publicado em 1976 quando das comemorações dos 50 anos do Congresso de 1926. É posto em xeque se de fato o Manifesto foi escrito a partir das demandas do evento. Em consonância com o historiador Antônio Paulo Rezende (1997), entendo que muitas das ideias apresentadas no Manifesto tardio já existiam em seus textos na década de 1920, o que o torna um registro importante, no que diz respeito ao pensamento do autor.
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além de esteticamente negativa, gera descaracterização, perda da originalidade, e apagamento do passado, vincula-se a um desencantamento. Nos termos do autor, o Rio de Janeiro “bom e autêntico”, de “arquitetura sólida”, “muita cor” e uma “confraternização única com a mata, com a água e com a natureza”, “era uma cidade a que não faltava encanto próprio, único, inconfundível” perde seu encanto por acatar as “cretinices modernistas”: Ainda há pouco um estrangeiro viajadíssimo era com que se encantava no Rio de Janeiro: com as velhas ruas estreitas e não com as largas. Não com avenidas incaracterísticas. Não com as nossas imitações às vezes ridículas de ‘boulevards’ e de ‘broadways’, por onde a gente que anda a pé só falta derreter sob o sol forte com que o bom Deus ora nos favorece, ora nos castiga. Entretanto, quando eu primeiro elogiei aqui as ruas estreitas e lamentei o desaparecimento dos velhos arcos que se harmonizavam com elas e das casas e sobrados pintados de vermelho, de verde, de azul ou revestidos de azulejos – azulejo que chegaram a ser condenados estupidamente, no Recife, por lei municipal – foi como se tivesse escrito uma heresia em porta de igreja ou obscenidade ou safadeza em muro de colégio de moça. (FREYRE, 1976, p. 60) (grifo meu)
Conforme escreve Freyre, em artigo da Revista do Norte, de 1924, o Recife, portanto, deve ser vigilante para não incorrer no mesmo erro: O Rio, no conjunto de suas avenidas e dos seus palácios cosmopolitas não passará de um amontoado inexpressivo de construções: imitá-lo será para o Recife o sacrifício da personalidade própria e um modelo que já em si é incolor, indistinto e inexpressivo110.
O historiador Antônio Paulo Rezende (1997, p. 143), afirma que o Recife, para Freyre, teria “[...] destaque especial em toda a sua reflexão como intelectual, lugar, para ele, privilegiado pela sua história, encantos e tradições”. Obras como O Guia Prático Histórico e Sentimental da Cidade do Recife (1934), Recife Sim! Recife Não! Assombrações do Recife Velho, dentre a sua produção, são alguns dos mais importantes textos sobre o Recife. Bem mais tarde, em 1971111, Freyre escreve sobre o Recife, para ele: “[...] democrático,
libertário,
potencialmente
revolucionário.
Em
linguagem
sociológica,
dionisíaco” (p.463). Destaca-se por sua singularidade cultural, metrópole do Nordeste que emerge do “principado de Nassau” e se coloca à frente de outras províncias “[...] se avantajava, sob vários aspectos de cultura, à insigne Bahia, dos governos gerais, ao Rio de Janeiro dos vice-reis, a São Paulo” (p. 469). E complementa o autor: “Nenhuma cidade está mais presente, sobretudo depois que se tornou capital de Pernambuco e firmou-se como 110
Apud Rezende (1997, p. 154). Revista do Norte. Recife, Ano 2, n.5, out 1924) (grifo meu). A título de curiosidade, a Revista do Norte é mencionada no Manifesto Regionalista (1976), apontada por Freyre como ferramenta importante para a divulgação da produção do Movimento Regionalista. 111 FREYRE, Gilberto. Como Escrever uma autobiografia coletiva do Recife? Um Tempo do Recife. Recife: Ed. Universitária, 1978.
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metrópole do Nordeste, na história da cultura brasileira” (p. 470). O Recife imaginado por Freyre concilia a tradição ao progresso, uma cidade “De vanguarda e de tradição. Fiel a suas constantes. Receptiva com relação a valores vindos de várias origens mas nada servil no setor cultural: recriadora. Afirmativa. Abrasileirante [...]” (p. 473), onde “o ânimo de modernidade permanece no recifense paradoxalmente ligado ao gosto pela tradição” (p. 477). A biografia que Freyre escreve para o Recife se caracteriza pela disposição em acolher o novo e fazê-lo interagir com a tradição, de recriar e produzir elementos originais, autenticamente pernambucano-brasileiros. Essa visão do Recife fornece pistas sobre a resistência de Freyre às escolas de samba. Pois seus elementos deslocam-se (é um processo metonímico, do todo para a parte e, depois, vice-versa) para o frevo, que condensa sentidos, passa a ser tão “democrático, libertário, potencialmente revolucionário” quanto o carnaval e a cidade que emblematiza. As comparações (implícitas ou explícitas) entre Recife e Rio de Janeiro, na obra de Freyre até os anos de 1940, parecem mostrar a experiência social urbana de ambas medidas pela existência ou resistência do “sentimento de expressão regional” traduzido, grosso modo, na manutenção da paisagem e dos costumes, da originalidade e autenticidade. As cidades são mais ou menos “expressivas”, de acordo com o grau, com o modo de adesão ao modelo europeu de vida social, Recife é criticada por isso em “Nordeste” de 1937: Recife que chegou a ser, com os senhores de engenho dirigindo a província, um verdadeiro centro de cultura intelectual e artística, onde o estrangeiro sofisticado se sentia melhor do que no Rio [...] vai se achatando entre as cidades mais inexpressivas da República, com os ricaços morando em palacetes normandos e chalés suíços, com igrejas velhas do tempo da colonização transformadas em igrejas góticas, com as ruas e os parques sombreados de fico benjamim ou enfeitados de vitória régia da Amazônia. Desapareceu do Recife todo o sentimento de expressão regional que chegou a ter como poucas cidades da América. (FREYRE, 1967, p. 158) (grifo meu)
O Regionalismo encontra um terreno bastante fértil para potencializar representações sobre o Rio de Janeiro alojando-o no lugar da modernidade desmedida, das mudanças, da “estrangeirice”
e
da
desnacionalização
e
reeuropeização112.
Por
outro
lado,
Pernambuco/Recife, mesmo com críticas como acima transcritas, será alinhada ao 112
Em Sobrados e Mocambos, Freyre (1951, p. 570 - 571) dedica parte de sua atenção ao que chama de reeuropeização. Para ele o Recife é resultado de um processo de assimilação e amálgama de diversas matrizes culturais engendradas pela experiência do modelo colonizador português. No século XIX, esses traços culturais singulares entram em conflito e perdem espaço para influências europeias que não as portuguesas – francesas, inglesas- e depois norte-americanas, “empalidecendo em nossa vida o elemento do asiático, o africano e o indígena, cujo vistoso de cor se tornara evidente na paisagem, no trajo e nos usos dos homens. Na cor das casas [...]”.
91
regionalismo, da tradição, da valorização dos elementos locais e do nacionalismo. O Recife é a “base da resistência tradicionalista” (ARRAIS, 2006, p. 146), os intelectuais, apoiados no regionalismo, são militantes em missão contra as “más influências” e o “mau gosto” “estrangeiro”, contra a sedução moderna. O regionalismo nordestino é, para Freyre (1976, p. 80), o único preocupado em manter as tradições brasileiras contra a onda de “mau cosmopolitismo” e do “falso modernismo”. Infere sentidos e agencia representações acerca do Nordeste e do Sudeste, mas, especificamente do Rio de Janeiro e do Recife que, posteriormente, estendem-se ao frevo e ao samba. A partir dos anos de 1940, as escolas de samba do Recife serão igualmente acusadas de serem estrangeiras, inautênticas, imitações, “de mau gosto”, caricaturas e vilãs que corroem a tradicionalidade pernambucana. Do mesmo modo, Pernambuco não é receptor passivo, filtra, mistura ou nega referências de projetos externos a sua identidade. 2.1.2 Gilberto Freyre, o carnaval e as escolas de samba Freyre foi um entusiasta do carnaval, era conhecido por frequentar o Clube de Frevo “Pás Douradas”, nos anos de 1920. Escrevera, em seu Diário, em 1928, uma defesa ao carnaval recifense indicando a necessidade da intervenção do Estado para a obtenção de subvenção pública para as agremiações carnavalescas “tradicionais” e populares, em detrimento dos clubes de alegoria e crítica, tidos como filiadas às elites locais, as quais, segundo Freyre, concentravam os recursos públicos. Já consegui do Governador [...] que subvencionasse clubes populares de carnaval. Subvenções que não importem em compromissos ou obrigações da parte desses clubes para com o Governo. Compromissos desse caráter poderiam afetá-los nas suas tradições e na sua espontaneidade: aquilo que eles têm de mais valioso. Eles farão o que entenderam das subvenções, contanto que elas sejam empregadas a favor de suas exibições nos dias de carnaval. Creio que com isso Pernambuco faz alguma coisa de importante a favor daquele seu carnaval – o dos clubes populares: o meu predileto dentre eles é o Clube das Pás – que, ao meu ver, só se apresenta como uma das expressões não só mais pitorescas como mais cheias de possibilidades artísticas [como arte genuinamente popular] no Recife. O que vinha sendo a regra? A regra vinha sendo o Estado subvencionar os grandes clubes burgueses que se apresentam em seus carros alegóricos de um crescente mau gosto, de uma cada vez maior falta de imaginação. Enquanto aos clubes populares [...] não tem faltado espontaneidade. Espontaneidade popular e originalidade brasileira [...] o carnaval embora ameaçado de aburguesar-se e carioquizar-se, está vivo no Recife. Precisamos de avigorá-lo. De defender suas tradições e de assegurar-lhe condições de sobrevivência, a fim de afirmar-se espontâneo, dinâmico, popular, regional e brasileiro. (FREYRE, 2006, p. 297) (grifo meu)
92
Em 1928, o sociólogo já reflete, ao mesmo tempo em que estrutura, argumentos constitutivos dos embates com as escolas de samba, postos anos depois, entre eles, destaco: a questão da subvenção pública às agremiações de carnaval, às hierarquias simbólicas para tal concessão; a percepção dos clubes pedestres como representantes da festa carnavalesca; a imagem do carnaval do Recife como “espontâneo, dinâmico, popular, regional, brasileiro”, em contraposição à do Rio de Janeiro como “burgês”, “elitista” e de “mau gosto”, tido como “perigoso” (com vistas ao fenômeno da carioquização) para a tradição da festa recifense. Nesse momento, a intervenção do poder público seria uma medida de reconhecimento da importância dos clubes pedestres do carnaval do Recife, bem como de contenção do “perigo” de o carnaval recifense “carioquizar-se”, em outras palavras, copiar o Rio de Janeiro em detrimento de sua originalidade/autenticidade. Em 1939, Freyre escreve o texto “O Narcisismo Gaúcho”, publicado em Região e Tradição (1941), no qual analisa a “geografia moral” das regiões brasileiras. Preocupava-se com os rumos do carnaval carioca e sua influência sobre a festa recifense. Na sua teoria, as danças de carnaval demarcam fronteiras regionais e culturais, bem como diferenças históricas e sociais. [...] a verdade é que o país se divide em regiões que se distinguem umas das outras, senão pelo tipo de dança popular preferida pela gente de cada região [...] as danças populares – principalmente as de carnaval – marcam fronteiras regionais de cultura, diferenças de formação histórica e de experiência social. (FREYRE, 1941, p. 252 253)
Nesse texto, o carnaval no Norte – Pernambuco, Bahia e Maceió – aparece como a “intensificação, talvez mesmo a antecipação da quase perfeita democracia social que será um dia o Brasil” (p. 252). O carnaval do Rio de Janeiro, por sua vez, é motivo de apreensão, por ser visto como despossuído de seus conteúdos tradicionais, perdidos em detrimentos das modernidades, nesse caso, o rádio. O Rio de Janeiro é tido como o centro de difusão (QUEIROZ, 1999), porém, Freyre dá relevo às resistências dos carnavais regionais “genuínos”, às “ofensivas do Rio no sentido de sua uniformização”. O Rio de Janeiro passa a ser representante de um projeto moderno de uniformização que atenta contra a diversidade, a brasilidade, o folclore e a espontaneidade regional. [...] O único carnaval brasileiro que está preocupando os sociólogos é hoje o da Praça Onze no Rio de Janeiro: justamente aquele que eu mais receio estar sendo transformado, junto com a Praça da Independência, no Recife, em carnaval para turistas. E, entretanto, há carnavais regionais genuínos por todo este vasto Brasil, com diferenças regionais de dança popular que resistem bravamente às ofensivas do
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Rio no sentido de sua uniformização. Ofensiva através do inimigo terrível da arte do povo, do folclore e da espontaneidade regional que é o rádio. (FREYRE, 1941, p. 255) (grifo meu).
Como vimos, desde os anos de 1940, já circulavam ideias, em geral negativas, sobre a presença das escolas de samba nessa festa. Em 19 de fevereiro de 1956, Freyre publica um texto para o Jornal do Commercio, intitulado “O frevo em face do Samba”, no qual trata especificamente do samba no carnaval recifense. Insere-se nas discussões respondendo a uma provocação: “Deve-se expulsar o ‘samba’ do carnaval do Recife para que reinem sozinhos, absolutos e puros, em Pernambuco o ‘frevo’ e o ‘maracatu’?”. Freyre “admite” o samba no carnaval do Recife, é otimista com relação à “vitalidade do frevo” e entusiasta da “combinação nova” que pode surgir no encontro entre o frevo e samba. Sua opinião parece contraditória, tendo em vista os conteúdos presentes nos já citados textos de 1928 e 1939. Fala de mudança, de uma dinâmica do carnaval com “suas alterações, suas vibrações, suas combinações” em oposição à “estabilidade de carnaval etnográfico”, “cristalização folclórica”, “carnaval de museu: sempre o mesmo”: O frevo em face do samba Deve-se expulsar o ‘samba’ do carnaval do Recife para que reinem sozinhos, absolutos e puros, em Pernambuco o ‘frevo’ e o ‘maracatu’? Sou dos que pensam que não: que se deve admitir o ‘samba’ no carnaval do Recife. Dar-lhes o direito de ver competir com as danças e as músicas da terra. Não, é claro, protegendo-o contra valores nativos. Mas, permitindo-lhes trazer a estes valores, temperos que talvez lhes estejam faltando. Não devemos descrer da vitalidade do frevo recifense: é uma vitalidade em expansão. Pode até vir a absorver o samba. Por que então expulsar-se daqui o samba? Ou proibir-se que ele procure tornar-se cidadão do Recife? Este exclusivismo é que repugna ao espírito tolerante de um recifense verdadeiramente recifense. Não devemos querer para o carnaval recifense uma estabilidade de carnaval etnográfico. Seria fazermos de um carnaval que se distingue pela vibração, pela espontaneidade, pela inquietação, um correto carnaval de museu: sempre o mesmo. O interessante para quem considera num carnaval o que nele é vida, expansão de vida, e não apenas cristalização folclórica, é observar suas alterações, suas variações, suas combinações. Talvez o encontro, não fortuito, mas profundo do samba carioca com o frevo recifense resulte numa inesperada combinação nova, deliciosamente brasileira de dança e de música. Deixemos que se verifique esse encontro. Que se processe essa combinação. O purismo exagerado com relação a um carnaval como o do Recife, como um purismo excessivo com relação a uma língua como a portuguesa, pode resultar em arcaísmos lamentáveis. [...] Dê-se assim liberdade ao samba de trazer ao carnaval do Recife o perigo de sua presença intrusa e perturbadora. É vencendo perigosamente que os valores, as artes, os estudos nacionais melhor se afirmam. E não sendo, excessivamente resguardadas por lei e por outras providências oficiais ou oficiosas.113 (grifos meus)
Freyre reconhece o “perigo” da “presença intrusa e perturbadora” do samba no carnaval do Recife, mas, seu discurso é triunfalista, entende que ao “vencer perigosamente” 113
Fonte: Departamento de microfilmagem da Fundação Joaquim Nabuco – FUNDAJ.
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os “valores, as artes, os estudos nacionais, melhor se afirmam”. Vale salientar, o indicativo de Rezende (1997, p. 150) quanto à importância de perceber Gilberto Freyre como um intelectual ambíguo, sendo assim, por vezes, não atacava a modernidade em todas as suas dimensões, é contra o “purismo excessivo”, liga-se às misturas e às vanguardas: Simpatiza com as renovações acontecidas na produção cultural, com as manifestações das vanguardas artísticas européias. A questão fundamental trata de saber como absorver essas renovações sem afetar a originalidade brasileira, na sua mistura que ele tanto diz admirar. O mundo das invenções elétricas não lhe atrai. Mostra temer o declínio das humanidades, critica as especializações e o industrialismo. O regional lhe fascina e é o ponto básico de suas reflexões.
Interessante notar a conexão entre o encerramento do texto – acerca da “lei” e outras “providências oficiais ou oficiosas” para resguardar o carnaval do Recife - e a discussão política do momento com a promulgação da Lei 3346 de 1955, a reger a distribuição dos recursos públicos entre as agremiações do carnaval, destinando uma parcela pequena para as escolas de samba em detrimentos das demais agremiações, especialmente as de frevo114. Dez anos depois, em 27 fevereiro de 1966, Freyre publica, no Diário de Pernambuco, o célebre artigo “Recifense, sim, subcarioca não!”. Nesse momento da década de 1960, com a expansão das Escolas em quantidade e prestígio (REAL, 1990; SILVA, 2011; LIMA 2013), Freyre desarticula a ideia de acolhimento do samba pelo carnaval do Recife exposta no texto de1956. Não há mais a perspectiva de uma “combinação nova” entre o samba e o frevo, nem a da liberdade para o samba exercer no carnaval o “perigo de sua presença”. No lugar do discurso triunfalista e vitorioso do carnaval do Recife, retoma o argumento de teor preservacionista, de certa forma, reacionário, temeroso da vitória eminente da “carioquização” indicada em 1928. O carnaval do Recife de 1966 decorreu sob este signo terrível: perigo de morte! É que o assinalou uma descaracterização maciça, através da invasão organizada, dirigida e o que me parece até oficializada dos seus melhores redutos de pernambucanidade: a invasão das escolas de samba. [...] No Recife, matar-se o frevo, o passo, o maracatu, o clube popular, o bloco, a espontaneidade, para quase oficializar-se o samba, o arremedo ou a caricatura do carnaval carioca, chega a ser um crime de traição ao Recife. [...] A traição ostensiva às tradições mais características de Pernambuco no que se refere a expressões carnavalescas. Um carnaval do Recife em que comecem a predominar escolas de samba ou qualquer outro exotismo dirigido, já não é um carnaval recifense ou pernambucano: é um inexpressível, postiço e até caricaturesco carnaval sub-carioca ou sub-isso ou subaquilo. De modo que a inesperada predominância, no carnaval deste ano, do samba subcarioca, deve alarmar, inquietar e despertar o brio de todo bom pernambucano: é preciso que a invasão seja detida; e que o carnaval de 67 volte a ser espontaneamente recifense e caracteristicamente pernambucano. Se há algum calabarismo a trair o carnaval do Recife, a favor de um carnaval estranho, que seja o 114
Analisaremos a lei mais adiante.
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quanto antes dominado este calabarismo. Afinal, como se explica a repentina organização de não sei quantas escolas de samba subcarioca na Cidade do Recife? A que plano obedece tal organização? Com que objetivo ela está se perpetuando? Eleitoralismo disfarçado? Estará havendo politiquice de qualquer espécie através do carnaval? Inocentes úteis estarão em jogo? Ou colapso da tradição carnavalesca no Recife por simples e passivo furor de imitação do exótico furor tão contrário ao brio recifense [...].
O artigo/manifesto de Freyre preconiza o “estado de guerra”, com direito à “invasão das escolas de samba”, tropas inimigas com a missão de “matar” as tradições carnavalescas de gênese “autenticamente pernambucana”: “[...] matar-se o frevo, o passo, o maracatu, o clube popular, o bloco, a espontaneidade, para quase oficializar-se o samba, o arremedo ou a caricatura do carnaval carioca, chega a ser um crime de traição ao Recife”. Os que não aderem ao movimento de negação/expulsão das escolas de samba são traidores, sofrem de calabarismo115. Freyre aciona o sentimento de “pernambucanidade”, do “brio do pernambucano”, convoca cidadãos-soldados para a proteção das fronteiras da tradição: “[...] a inesperada predominância, no carnaval deste ano, do samba subcarioca, deve alarmar, inquietar e despertar o brio de todo bom pernambucano: é preciso que a invasão seja detida”. Trata-se de luta patriótica da “nação Pernambuco” contra as forças estrangeiras dominantes, mais uma das guerras do Leão do Norte. As escolas de samba são consideradas estrangeiras, invasoras, perigosas. E as Escolas pernambucanas são “caricaturas”, “arremedos”, “postiços” das do Rio de Janeiro, um “exotismo dirigido”, configuram um perigo para a pureza do carnaval do Recife e devem ser contidas sob o risco de descaracterização e morte dessa festa. ”. A “batalha frevo-samba” é essencialmente constituída por esse sentido de perda da originalidade, da autenticidade, da identidade. Há nela a suposição da perda da forma autêntica como consequência das transformações históricas, da modernização, da concorrência com as escolas de samba, coaduna-se ao que José Reginaldo Gonçalves (2011, p. 136) chama de “retórica da perda”: “[...] circula de modo amplo e difuso em nosso cotidiano uma perspectiva sobre as culturas populares no qual estas são apresentadas sobre o signo da perda”. Nessa perspectiva, o frevo e, por extensão o carnaval do Recife, precisa ser protegido justificando a convocação dos “bons pernambucanos”, pois, “Diante de tal situação ‘de perda’ caberia às pessoas de bom
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Referência a Domingos Fernandes Calabar (c. 1600 — 1635). Um importante personagem da Restauração Pernambucana, a princípio aliado dos portugueses e brasileiros, porém, troca de lado e passa a ajudar os holandeses, por isso é tido como um grande traidor. Ver Evaldo Cabral de Mello (2000).
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senso e de boa vontade, recolher, identificar e preservar esses fragmentos, salvando-os do seu provável aniquilamento” (GONÇALVES 2011, p. 136)116. Seis anos depois, em fevereiro de 1972, Freyre escreveu sobre as escolas de samba, novamente, no Diário de Pernambuco. Nesse texto, o argumento central é a diferença entre assimilação e o “entreguismo”. Para ele, o pernambucano teria a característica de “acolher o exótico”, assimilá-lo, mas não seria da “melhor tradição pernambucana o entreguismo passivo ou inerte”. A assimilação, segundo Freyre, é feita magnificamente há muito tempo em Pernambuco “adaptando” o novo à tradição, enquanto o entreguismo é ser “absorvido pelo invasor ou corruptor”. O “samba invasor” está a “despernambucanizar” o carnaval, fazendo-o “acariocar-se”, “desprezando maracatus e frevos para substituí-los por ‘escolas de samba’”, apela e pergunta onde está a pernambucanidade: Estará Certo? Não é da melhor tradição pernambucana o entreguismo passivo ou inerte. Acolher o exótico, o transoceânico, o entranho, o novo, assimilá-lo, adotá-lo é uma coisa: e isto o pernambucano tem feito desde velhos dias. E feito, por vezes, magnificamente. [...] Tais observações ou assimilações só fazem bem a uma cultura regional ou nacional e só fazem honra aos que sabem adotar o exótico, adaptando-se às suas situações e às suas tradições. Arte que tem alguma coisa de ciência. O entreguismo é diferente. Não assimila: entrega-se. Não absorve: é absorvido pelo invasor ou corruptor. É o que está acontecendo com o carnaval do Recife, célebre pela originalidade dos seus maracatus, dos seus caboclinhos, do seu frevo: está sendo descaracterizado não só tem a justa resistência da parte dos pernambucanos, como com a adesão de alguns dos mais ricos, dos mais influentes, dos mais poderosos, dentre eles, ao samba invasor. Está a despernambucanizar-se. Está a acariocar-se. Grande parte do dinheiro que se destina à promoção do carnaval não está tendo outro fim entre nós senão este: trazer, a altos preços, risonhos cariocas, mestres do samba, ao Recife, para aqui procederem à despernambucanização de um dos carnavais mais originais do Brasil. Estará Certo? Onde está a pernambucanidade desses ricos? Que justiça haverá em dar-se tão bons dinheiros a esses, aliás, ilustres cariocas, desprezando-se os nossíssimos Nelsons Ferreiras e Capibas? Desprezando maracatus e frevos para substituí-los por “escolas de samba”, com que turistas contaremos para vir a um Recife assim acariocado no seu carnaval? Não se diga que 116
Há muito se fala nas dificuldades enfrentadas pelo frevo, especialmente àquelas ligadas as agremiações carnavalescas do gênero (clubes, troças e blocos de frevo). Para Leda Alves, a defesa do frevo e a preocupação com o seu declínio é uma questão antiga exposta já em 1956, em meio às discussões acerca da promulgação da Lei 1363/1956 da distribuição dos recursos públicos para as agremiações carnavalescas. Alves escreveu ao Diário de Pernambuco um artigo no qual expunha o perigo do contato com as escolas de samba descaracterizar o frevo e tornar o carnaval “cariocado”, e, assim como fez em 2013, reforça a marca identitária “Terra do Frevo”. Este artigo escrito pela atual Secretária é mais uma peça da “batalha frevo-samba” que ganha força pela posição hoje ocupada pela autora: “Pernambuco é conhecido em todo o Brasil como a terra do frevo [...] o frevo dos nossos compositores. O frevo que mexe, vivo e palpitante, o frevo que não vem de fora, que é criação nossa [...]. É nosso e não devemos perder a nossa característica carnavalesca. Se entra o samba o carnaval não será o mesmo. Será sofisticado, cariocado. Penso que ele deve ser sempre essencialmente pernambucano. Nós somos a Terra do Frevo. A Bahia é a Terra da Macumba. O Rio é a Terra do Samba. E se os outros estados lutam para conservar sua tradição, os seus costumes regionais, e suas criações [...] nada mais natural do que barrar a entrada e evitar que o samba vença o frevo [...]”. (Alves, Leda. Todos os dias: Carnaval Pernambucano. Correio do povo. 24/01/1956. p.06 – Arquivo Público Estadual Jordão Emereciano – APEJ. Apud. SILVA (2012)).(grifos meus).
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é o povo – o Povo Pernambucano: Povo com P maiúsculo – que quer se acariocar, entregando-se de corpo e alma ao carioquismo samba: música e dança de que ninguém nega as virtudes nacionais sendo, como é, para o Brasil, o que na culinária, é a feijoada. O que vem acontecendo, porém, entre nós, é uma sistemática e um tanto misteriosa obra de glorificação do samba em detrimento do carnaval pernambucano – espécie de pitu do Rio Una. Glorificação em artigos nos jornais, em falas nos rádios, em exibições nas televisões. Impossível que essa glorificação assim constante não consiga alguns dos desejados efeitos: um deles, incluir o frevo e o maracatus, passo a marchas, o carnaval verdadeiramente do Recife, entre quadradices vergonhosas para uma cidade “progressista”. Este, um aspecto do fenômeno que não deve ser esquecido. Pode ser expressão nacionalista: mas um nacionalismo a custa de uma variante regional de cultura nacional tão válida quanto a carioca. A discriminação pró-samba dá ao que há, na campanha de antipernambucano, um sentido quase sinistro [...].
Nesse começo dos anos de 1970, Gilberto Freyre chama atenção para a “obra de glorificação do samba em detrimento do carnaval pernambucano”, em “artigos nos jornais, em falas nos rádios, em exibições nas televisões”. Penso que se refere aos debates iluminados no fim dos anos de 1960 por Katarina Real (1990), atestado pelos inúmeros registros matérias, reportagens e artigos de jornal - catalogados por Ivaldo Marciano Lima (2013)-, testemunhos da importância e do poder de mobilização das Escolas de Samba recifenses, pelo menos até os anos de 1980. O final da década de 1960 e o começo da de 1970, inserem-se nos debates os trabalhos de Katarina Real, Ruy Duarte e Valdemar de Oliveira, cujas obras, hoje consideradas clássicas da temática, foram referências para o Projeto Samba e Saber. Vejamos quais as contribuições desses intelectuais à “batalha frevo-samba” junto aos argumentos já identificados por meio da atuação de Gilberto Freyre. 2.2 A bibliografia do Samba e Saber: apontamentos acerca da “batalha frevo-samba” na ótica de Katarina Real, Valdemar de Oliveira e Ruy Duarte. A princípio a gente ia fazer por nossa conta, sem o respaldo da Universidade. Todos fazemos História na Federal, menos Patrícia que não está aqui hoje e fez Psicologia. Aí a gente pensou em fazer esse projeto, com textos de autores daqui também, como Katarina Real, Ruy Duarte e Valdemar de Oliveira. Então, é um projeto pra resgatar a bateria mirim, de fazer um diferencial ensinando a verdadeira história do samba em Pernambuco, e já estamos aqui há um ano. (Joselito, coordenador do Projeto de Extensão da Universidade Federal de Pernambuco: Samba e Saber.)
Valdemar de Oliveira (1900 – 1977), recifense, foi médico, professor, teatrólogo, musicólogo, compositor, escritor, crítico de arte, membro da Academia Pernambucana de Letras, da Academia Brasileira de Música, do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico
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de Pernambuco, da Comissão Pernambucana de Folclore. Dedicou-se aos estudos de Folclore e, além de inúmeros artigos publicados em jornais e revistas nacionais e do exterior, publicou o clássico “Frevo, Capoeira e Passo” em 1971. Ruy Duarte foi um renomado jornalista pernambucano que, por muitos anos, morou no Rio de Janeiro prestando serviços à imprensa carioca e escrevendo sobre “cultura pernambucana”. É autor do clássico “História Social do Frevo”, lançado em 1968. Kathareine Royal Cate (Katarina Real), foi uma antropóloga norteamericana, Ph.D pela Universidade da Carolina do Norte, autora do clássico livro O Folclore do Carnaval do Recife, lançado em 1967, e reeditado, pela Editora Massangana, da Fundação Joaquim Nabuco, em 1990. A partir de 1959, dedicou-se aos estudos antropológicos, na área do Nordeste do Brasil, especialmente o universo do folclore. Residiu em Recife entre os anos de 1964 a 1968, tornando-se, em 1967, membro da Comissão Pernambucana de Folclore e cidadã do Recife em 1968, título concedido pela Câmara Municipal do Recife117. Juntei os dois primeiros autores no mesmo item por achar suas ideias fundamentadas em argumentos similares. 2.2.1 Valdemar de Oliveira e Ruy Duarte: a condição de territorialidade José Teles (2008) afirma, a partir das pesquisas no acervo do Jornal do Commercio, que na década de 1930, Valdemar de Oliveira já escrevia sobre a marcha pernambucana, o frevo, comparando-os com as marchinhas e os sambas cariocas. O embate entre as marchinhas do Rio de Janeiro e o frevo antecipa118 e constitui aquele (embate), posteriormente protagonizado pelas agremiações de frevo, as escolas de samba no carnaval do Recife. Oliveira considerava as marchinhas um ritmo “estranho à índole pernambucana”, esteticamente inferior, desanimado comparado à vibração do frevo. O samba, este então, sempre que se podia eram duramente fustigados como estranho à índole do pernambucano [sic]. Entretanto, as nossas músicas levam vantagem sobre as cariocas. Têm mais vida, mais vibração e sabem melhor ao nosso temperamento. Quem seria capaz de fazer o passo ouvindo uma dessas marchinhas do sul, açucaradas e xaroposas? (OLIVEIRA, Jornal do Commercio, dezembro de 1937. apud TELES, 2008, p. 20 - 21)
Como jornalista do Diário de Pernambuco, Oliveira teve bastante espaço e reconhecimento social; alcança os anos da “batalha frevo-samba” já desfrutando de enorme
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Dados sobre os autores foram retirados de Souto Maior e Dantas Silva (1991) Maiores detalhes sobre a querela entre marchinhas e frevo ver Teles (2008).
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prestígio. Sintetiza parte importante de seus pensamentos sobre as escolas de samba em “Frevo, Capoeira e Passo”, obra de 1971 ainda hoje muito acessada. Oliveira é insistente em conceder ao frevo a condição de originalidade incontestável. É uma música e uma dança “que são coisas suas, originais”: Pernambuco possui uma música e uma dança carnavalesca que são coisas suas, original, que se criou no meio do povo, quase que espontaneamente e se cristalizou depois, como traço importante de sua fisionomia urbana. Urbana sim. Até seria mais justo dizer o Recife do que em Pernambuco, porque foi, de fato, no Recife que tudo aconteceu. (p. 54)
Atrelada à originalidade está a condição de territorialidade. O frevo é pernambucano, “exclusivo do seu carnaval” e não funciona quando executado em outro território119. É uma herança atávica, “está no sangue”. Para Oliveira, assim como não devemos, não precisamos importar as marchinhas e os sambas cariocas; o frevo está “fechado ao mercado de exportação”120: O frevo não é planta que se transplante. Todas as tentativas nesse sentido têm falhado [...] por exemplo, na Guanabara. Não só a colônia pernambucana ali é pequena para construir a massa que o frevo reclama, como também não o leva no sangue não se deixa arrastar por ele [...]. Numa massa inteiramente empolgada pelo samba, excitante e exclusivo do seu carnaval, o frevo surge como surgirá a tarantela se com ele quisesse divertir-se a colônia italiana no Rio [...]. Os clubes que vem se apresentando no Rio mostram progressivamente desvirtuados. Seguem a linha de blocos e ranchos cariocas [...] que desgraçadamente já se vão infiltrando nos próprios clubes de rua do Recife. Ao transportá-lo só o nome vai, como foi para o Rio de Janeiro, tal pele de cobra deixada depois da muda [...] pois nem os portos mais próximos, Maceió ou João Pessoa, se aventura o frevo, fechado, por sua própria natureza ao mercado de exportação. Tão poderosa é a sua marca. Compreende-se bem as razões: frevo não é espetáculo, que nem as escolas de samba, mas participação do povo [...]. Aproveito a deixa: uma das causas do declínio do frevo, no Recife, é que os desfiles carnavalescos a ‘onda’ não comparece [...]. Quer dizer: de participante o povo passou a espectador. (p. 5556) (grifos meus)
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Autores como Leonardo Dantas Silva que, inclusive, escreve depois de Oliveira, acionam o mesmo argumento da condição de territorialidade. Segundo Dantas Silva (1991, p. LVII), as gravações de frevo, até a década de 1950, eram realizadas na capital federal. Entretanto, os músicos do Rio de Janeiro não teriam o “espírito” do frevo: “Antes de Pernambuco ter a indústria de gravação de discos suas músicas eram passadas para a cêra nas fábricas cariocas. As marchas, os maracatus, as valsas, todas as diversas modalidades de música mandadas para o sul, voltam de acordo com a encomenda, de acordo com a partitura e de acordo o espírito da canção. Menos o frevo. Toda a agravação do frevo suscitava reclamação. As partituras eram feitas com o maior cuidado. Todos os detalhes eram salientados. Toda a orquestração caprichosamente feita, mas mesmo assim, os frevos em gravados faltando alguma coisa. Não tinha espírito, não eram os mesmos. [...] para acabar com isso, resolveu-se enviar para o Rio, a fim de dirigir as orquestras das fábricas cariocas, um maestro pernambucano, um daqueles mestres das bandas de músicas recifenses”. (DUARTE, 1968:90) 120 O samba pode de ser visto como o estrangeiro de Simmel (1983, p. 266), como o samba “não é proprietário do solo, e o solo não é somente compreendido no sentido físico, neste caso, mas também como uma substância delongada da vida [...]. O estrangeiro é sentido, então, precisamente, como um estranho, isto é, como um outro não proprietário do solo.”
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Da mesma maneira, Ruy Duarte (1968) aciona a condição de territorialidade e o atavismo do frevo, e também o do samba, para justificar a negação às escolas de samba no carnaval do Recife e dos clubes de frevo no Rio de Janeiro. O frevo, ao sair de Pernambuco, é “tomado por raquitismo”; as escolas de samba, em solo pernambucano, “chocam pela pobreza do espetáculo”, quando comparada às suas co-irmãs cariocas. Não se deve tentar a exportação do frevo. Ele é de Pernambuco com exclusividade. Mesmo que as orquestras dos clubes de frevo cariocas tivessem tantos músicos como as do Recife, o fracasso seria o mesmo [...]. Saiu de Pernambuco é tomado de raquitismo. Sua integridade não desaparece, mas sua grandeza sim. Fica pequeno, triste, dez por cento de frevo. [...] O mesmo acontece, aliás, com o samba. Só quem viu pode imaginar o que sejam as apresentações das escolas de samba cariocas no Carnaval do Rio. O inverossímil começa pelo número de integrantes de cada uma dessas escolas. Eles se contam por milhares e milhares. Todos fantasiados com o maior gosto. As escolas são em grande número. Praticamente toda a população carioca toma parte nessas apresentações [...]. Ano a ano o número de sambistas aumenta, as escolas crescem e o interesse do turista estrangeiro pelo espetáculo é cada vez maior [...]. Mas o que queremos mostrar aqui é a grandiosidade desse espetáculo. Pois bem. Vá se exportar isso! Tudo isso é o Rio é o povo carioca, e não se formou de uma hora para a outra. Veio se consolidando vagarosamente, lentamente, fazendo a sua tradição. [...] Mas querer implantar esse costume, essa tradição, com toda essa grandeza, por exemplo, no Recife, fracassaria. Faltava a matéria-prima da solidariedade do povo, solidariedade que o samba tem no Rio alcançada pela tradição como o frevo tem no Recife. Aliás, no Recife, como entidade carnavalesca, com exibições no Carnaval, existem escolas de samba. Suas apresentações chocam, pela pobreza do espetáculo, a sensibilidade daqueles acostumados a ver o espetáculo das suas co-irmãs nas ruas do Rio. (DUARTE, 1968, p. 81 - 82).
Duarte (1968, p. 83) acrescenta ao debate argumentos sobre o poder de atração turística do frevo para o Recife; do samba para o Rio de Janeiro121. E não há necessidade disso. Samba tem grandeza bastante para encher o carnaval do Rio e trazer para ele, cada vez mais, turistas estrangeiros. Frevo tem grandeza bastante para encher o carnaval do Recife e trazer para ele, de ano a ano, maior
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O turismo aparece oficialmente como categoria importante para o carnaval do Recife desde a fundação da Federação Carnavalesca de Pernambuco em 1935. No parecer do Deputado Arthur de Moura, concedendo à Federação o título de Utilidade Pública, comparam-se diretamente os carnavais das duas cidades. O documento disponibilizado no Diário Oficial do Estado de Pernambuco, em 20/10/1936 (n. 63, ano II p. 582) espelha essas contendas. Nele, o carnaval carioca é reconhecido como uma grande festa com “fama em todo o universo”, o que justificaria o investimento do governo da República e da Prefeitura do Distrito Federal, bem como a sua posição central do interesse turístico para o país: “[...] muito poderá fazer a Federação para o turismo. Estado pobre, sem aspectos geográficos empolgantes, com uma capital que não oferece ainda qualquer coisa de notável à admiração do turista, como obras de arte e monumentos históricos de interesse mundial, Pernambuco [...] só tem verdadeiramente característico o seu carnaval [...] o frevo que é único no seu passo original e na sua música irresistível. [...] O carnaval do Rio tem fama em todo o universo. Por isto, o governo da República e a prefeitura do Distrito Federal dão-lhes toda a espécie de auxilio e dele fazem pivô do interesse turístico. [...] Entretanto, é de notar que o carnaval pernambucano supera, por todos os motivos ao carioca. Lá o samba se resume à harmonia do canto, pois, a sua dança é monótona, de acentuada languidez. Aqui, disputam os foliões com a orquestra: vibram todos numa alegria comunicativa e avassaladora que empolga e não permite qualquer outra preocupação”121. (grifos meus)
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corrente de turistas. Para que agora tumultuar a festa, querendo meter frevo no Rio e samba no Recife?
Outra contribuição de Oliveira foi a articulação da imagem das escolas de samba como o oposto do frevo, a partir das categorias de ordem e desordem; espectadores e participantes. Para o autor, “o frevo não é espetáculo que nem as escolas de samba”, e o grande risco do contato com o “espetáculo” é transformar o povo de “participante” em “espectador”. O frevo corresponde à própria desordem do carnaval, a “onda” que arrasta, em seus termos. No frevo há participação direta; nas escolas de samba, o folião não participa, “se aquieta como simples espectador” do espetáculo. O frevo é a imagem-síntese do carnaval participativo do Recife; as escolas de samba seu oposto. A escola de samba constitui na desordem carnavalesca a imagem da ordem e da disciplina. O povo pode participar da ‘onda’, mas, não participa da escola de samba onde se aquieta como simples espectador – espectador feliz que antes de ser recifense é brasileiro, sensível, portanto, ao samba dos seus ancestrais. [...] Boa parte do povo que acorre a ver a escola de samba, não esqueçamos, também cai no frevo. Desse modo, há a fazer em defesa das nossas tradições carnavalescas, não é combater às escolas de samba, mas, ajudar, o clube de rua. (p. 138).
Apesar de Oliveira dizer que não combate as escolas de samba, mas “defende as nossas tradições carnavalescas”, ele aponta, já em 1971, o “declínio do frevo”, por causa da falta de incentivo da Federação Carnavalesca de Pernambuco, do alto preço cobrado para os músicos tocarem nas agremiações, durante o carnaval; da “concorrência impetuosa das escolas de samba” (p. 137). Em sua opinião, uma intervenção do poder público seria a solução, como já fora em 1955, para se preservar o “verdadeiro caráter do carnaval do Recife”: Tal situação poderá modificar-se na medida em que o poder público se fizer presente [...] preservando o verdadeiro caráter do carnaval do Recife, isto é, a marca de sua autenticidade, porque nada no Recife é mais recifense do que o frevo e o passo. (OLIVEIRA, 1971, p. 139).
Duarte, já 1968, alerta para a “crise do frevo”, ameaçado pelas escolas de samba que ganham cada vez mais espaço no carnaval do Recife; para a sua “aceitação” na sociedade pernambucana. De acordo com o autor, em crescimento contínuo, as escolas “tomarão conta do carnaval brasileiro”. O frevo, como núcleo do carnaval pernambucano [...] está em crise, sofrendo um processo de lenta agonia. [...] Nelson Ferreira acha que o perigo que ameaça o frevo é o samba, ou melhor, as escolas de samba que estão encontrando cada vez mais melhor aceitação entre os pernambucanos. [...] E Nelson tem razão. As escolas de samba parecem que tomarão conta do carnaval brasileiro de Norte a Sul do país,
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inclusive em Pernambuco. No Recife, até bem pouco tempo, elas eram quase desconhecidas. Mas já nesse carnaval a que Nelson se referiu, o de 1966, elas se apresentaram em número de 21 para apenas 9 clubes de frevo. [...] Olhar o frevo com a importância que o frevo tem é a maneira mais eficiente de preservar sua existência, mesmos ao lado das crescentes escolas de samba. Para isso o que se deve fazer é estudar o frevo como este livro mostra. O frevo é uma coisa nossa, é uma criação do povo pernambucano, e se nós não formos os primeiros a olhá-lo com o maior respeito e a maior consideração, os outros não farão isso por nós. (DUARTE, 1968, p. 94 - 95)
2.2.2 Katarina Real: relativizando a batalha Os escritos de Katarina Real refletem sua formação antropológica destoando em estilo e conteúdo dos dois primeiros autores. Além da perspicácia em identificar o campo de embates simbólicos entre o frevo e o samba, relativiza-o e fornece um ponto de vista mais analítico das disputas identitárias em jogo (nacional e local), traduzidas na relação entre o frevo e o samba. Sua principal obra “O Folclore do Carnaval do Recife”, de 1967, ainda é muito utilizada como referência para a história das escolas de samba pernambucanas, até então não registrada por nenhum outro. Real não elabora argumentos contra as escolas de samba, preocupa-se em registrar uma origem, explica sua introdução no carnaval recifense, por meio de pernambucanos que, a serviço das forças armadas, passaram temporadas no Rio de Janeiro, em decorrência disso entraram em contato com o samba (REAL,1990, p. 48). Os grupos recifenses, devido a essa explicação de origem, cultivavam uma proposital e inteligível conexão com as escolas do Rio de Janeiro; Real, entretanto, não considerava esse dado um problema de descaracterização do carnaval ou perda da sua autenticidade. Alerta que, à revelia dos posicionamentos mais conservadores, “[...] As escolas de samba iam crescendo em número e tamanho e ganhando cada vez mais a simpatia do povo. E a cada ano esses grupos eram reforçados pelas grandes vitórias e inovações das escolas cariocas” (REAL, 1990, p. 48). Para Katarina Real (1990, p. 54) a “tensão” entre o frevo e o samba se intensifica com o aumento expressivo do quantitativo, com o fortalecimento das escolas de samba no Recife. Tais escolas tomam para si as vantagens da ampla publicidade nacional das suas “colegas cariocas”; da ação da indústria fonográfica na divulgação, também nacional, dos sambasenredos do Rio de Janeiro122; da transmissão televisiva do desfile123, realizada em Pernambuco a partir de 1961124. 122
Jorge Caldeira e Hermano Vianna consideram o rádio e a indústria fonográfica agentes na consolidação do samba como símbolo da identidade nacional. “O rádio e o disco carioca conheceram uma expansão muito grande na sua esfera de influência [...]. Cada vez mais o samba passou a viver em todo o país, tornou-se fenômeno
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As escolas cresciam, embora os clubes e troças de frevo conservassem, ainda nos anos de 1960,125 uma exaltação patriótica a Pernambuco, celebrando126 datas nacionais e estaduais importantes com sessões solenes usando “simbolismo estadual [...] em seus estandartes” (REAL,1990, p. 19). Pensando nisso, Real elabora um argumento destoante das discussões do universo do folclore e do regionalismo da época. Para ela, Recife, “um pouco provinciana”, nutre uma “forte admiração por tudo o que vem do Rio de Janeiro” (p.52), e as escolas recifenses “se orgulhavam de fazer parte de um movimento nacional”. Entre as décadas de 1960 e 1970, então, as escolas de samba tornam-se “uma força de importância crescente, até o ponto de causar preocupações às agremiações mais tradicionais e defensoras de um carnaval estritamente 'pernambucano’” (REAL, 1990, p. 48), devido à “extraordinária popularidade, luxuosidade e talento para organização das escolas de samba” (REAL, 1990, p. 31).
nacional. As canções e as disputas locais do Rio de Janeiro passaram a ser importantes em Quixaromobim. A roda do samba ganhou uma dimensão nacional que nunca mais pode ser ignorada.” (CALDEIRA, 2007, p. 40). 123 Dado propenso a ponderações. Pode se tratar de uma adesão ao discurso triunfalista do empreendimento televisivo da época que minimiza os trinta anos anteriores de existência das escolas de samba no Recife, fazendo perder de vista seu poder de adaptação e de crescimento. Segundo Renato Ortiz (1994, p. 59), na década de 1950, a televisão ainda era uma mídia em desenvolvimento “[...] com dificuldades em se transformar em um meio de massa”. Ainda conforme Ortiz, no final da década de 1960, verificam-se maiores avanços na área televisiva. Progresso, entretanto, atrelado a estatísticas sociais, poder aquisitivo e à formulação do hábito de assistir TV, indicadores que se diferenciam nas regiões do Brasil. O Nordeste demora um pouco mais para absorver a nova tecnologia e, depois, ainda para reelaborar os hábitos de consumo e entretenimento. 124 Vale ressaltar que, na década de 1950, foi fundada em Recife a Fábrica de Discos Rozenblit Ltda. De acordo com Lélis (2011, p. 49), a Rozenblit dedica-se a “registrar e difundir a “cultura da região, divulgando ritmos nordestinos”, mas, sem dúvidas, o frevo é o carro-chefe. A Rozenblit aparece, nas narrativas sobre o frevo, como uma agente na preservação da música regional; o selo Mucambo é a marca desta atuação. Narrativas sobre o frevo replicam a bem sucedida incursão da Rozenblit na promoção do gênero, especialmente entre as décadas de 1950 e 1960. Teles (2008, p. 48) afirma: “Em 1960 o frevo predominou nos salões e nas ruas graças à divulgação eficiente da Mucambo”. A “divulgação eficiente” consistia na execução das músicas pelas rádios, quatro meses antes do carnaval, na distribuição das partituras para as orquestras da cidade. Para Teles (2008, p. 48), “[...] com a Rozenblit o frevo viveria seu período de fausto. Mesmo com o samba tendo se tornado a música da nacionalidade, as escola invadindo o carnaval pernambucano, o frevo passou a ser divulgado fora do estado, com uma competente rede de distribuição que o fez chegar ao Sudeste”. Teles (2008, p. 55) lembra ainda que a Rozenblit também contribuiu para o surgimento de uma nova geração de cantores e de compositores de frevo e para a formação de um público consumidor da música, até os anos de 1980, quando encerra suas atividades. 125 Como dado histórico, sobre a produção de sentidos patrióticos, destaca-se a atuação da Federação Carnavalesca de Pernambuco, nos anos de 1930. Entre seus objetivos está o de transformar as agremiações carnavalescas em núcleos educativos que estimulem “o gosto pelos valores históricos e patrióticos”. Nota-se uma campanha de valorização da história de Pernambuco com ênfase no evento histórico da expulsão dos invasores holandeses. Nesse movimento, a entidade fez intervenções na dinâmica interna das agremiações, instalando conteúdos patrióticos no desfile e orientando-as a celebrar datas cívicas ligadas à Guerra contra os holandeses. Era incumbência de a Federação estimular a realização, nas sedes dos clubes, de comemoração a datas mais relevantes da história de Pernambuco e dos marcos nacionais, comemorações não apenas festivas como também de caráter formativo por meio de conferências e palestras históricas. 126 “As comemorações são importantes recursos do jogo identitário, atuam na ‘legitimação’, valorização, conjuração, exclusão, adesão aos acontecimentos fundadores, manutenção da ilusão comunitária, da ficção da permanência e do sentimento de uma cultura comum” (CANDAU, 2011, p. 147).
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Na perspectiva de Real (1990) a batalha frevo-samba é um campo de discussões sobre tradição e autenticidade do qual se destaca, em primeira instância, a participação dos mediadores intelectuais (pesquisadores, jornalistas, artistas e políticos). Os brincantes e carnavalescos do frevo e do samba aparecem em segundo plano, vozes menos audíveis em meio aos debates e a convivência entre os integrantes das agremiações de frevo e os das escolas de samba foi naturaliza, não há embates, apenas “admiração” dos primeiros para com os segundos: A relação entre os velhos clubes carnavalescos e as poderosas escolas de samba são (sic.) das mais amigáveis. Alguns diretores das Escolas de Samba da atualidade eram no passado diretores de blocos clubes ou troças [...]. Ao mesmo tempo, os integrantes das agremiações tradicionais “do frevo” não escondem sua admiração pelas escolas de samba e disfarçam qualquer tendência ciumenta sob frases generosas como: ‘pois todos somos brasileiros todos somos do Brasil, e o samba também é do Brasil’ – numa tolerância e bondade bem característica do povo carnavalesco pernambucano (REAL, 1990, p. 53 - 54)
De encontro à ideia de imposição estética das escolas de samba junto a outras manifestações carnavalescas do Recife vista em autores como Oliveira (1971) e Duarte (1969), ousadamente falava em influências mútuas. Carros alegóricos aos moldes das escolas de samba já eram vistos nas agremiações tradicionais de frevo do Recife (REAL, 1990, p. 17) quando de sua pesquisa. Por outro lado, apontava a presença de instrumentos de sopro nas baterias das escolas pernambucanas, o que faz a pesquisadora levantar a possibilidade de ser essa uma influência do frevo: Além dos tambores, pandeiros, cuícas, cabaças, agogôs, etc., típicos das escolas de samba em todo o Brasil, as escolas do Recife sempre saem com algum instrumento de sopro, principalmente, trombones e pistão. Seria a influência do frevo nas escolas de samba? (REAL, 1990, p. 51 - 52).
Outros pesquisadores posteriormente investiram nessa tese, como Roberto Benjamim (1989), procurando destacar diferenças, singularidades distintivas, principalmente na sonoridade e no desfile entre as escolas de samba de Pernambuco e as do Rio de Janeiro. Dar relevo a prováveis marcas distintivas é bastante recorrente entre estudiosos127 do carnaval do Recife, ainda preocupados em identificar a origem do samba, a autenticidade das escolas pernambucanas e um braço heróico das “forças locais” na ‘resistência’ ao modelo carioca. Benjamim (1989, p. 118) evoca a mesma possível influência do frevo no samba pernambucano evidenciada por Real, com a persistência dos instrumentos de sopro (extintos nas escolas do Rio de Janeiro) e na batida mais acelerada da percussão: 127 É possível encontrar esse mesmo argumento em trabalhos recentes sobre as escolas de samba do recife no campo da História, como o de Lima (2013) e Silva (2012).
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No caso da importação do samba carioca é possível sentir no Recife a ação das forças locais, marcando um distanciamento entre a manifestação observada no carnaval de Pernambuco e o samba do carnaval carioca [...] as tradições pernambucanas roem por dentro as escolas agindo nas suas baterias e nos passistas preparando um samba autenticamente pernambucano.
“O Folclore do Carnaval do Recife” foi publicado em 1967, em 1989, Real volta a campo para atualizar os dados e depara-se com o crescimento dos clubes de frevo. Confessa que, em 1966, constatou, mas não escreveu, uma “certa decadência” dessas agremiações em comparação com o “vigor fulminante das escolas de samba”: Francamente, eu nunca imaginei que esse crescimento pudesse acontecer e posso confessar que quando escrevi aquelas páginas em 1966, sentia uma profunda tristeza pela evidência de uma certa decadência nas apresentações dos clubes daquele tempo, em comparação com o vigor fulminante das escolas de samba. REAL (1990, p. 164)
A justificativa de Katarina Real para o restabelecimento dos clubes de frevo é justamente o acolhimento de “estilos”, recursos estéticos e performáticos, das escolas de samba por parte dos “tradicionais e genuínos” grupos de frevo. Sua tese é exatamente o que mais temiam os defensores do frevo, ela a expõe sem se limitar aos argumentos de pureza e o perigo que orbitam o tema do carnaval do Recife e impregnam os textos de Oliveira e Duarte: [...] E é natural que para concorrer com a crescente popularidade das empolgantes inovações dessa gente do samba, os clubes tivessem que, de um certo modo, adotar estilos das escolas de samba para defender a sua hegemonia no carnaval recifense. REAL (1990, p. 165)
2.3 Episódios emblemáticos: ações e ressonâncias da “batalha frevo-samba” Partindo do princípio de que a história das escolas de samba do Recife foi, em grande medida, estruturada pelo conflito com o frevo, entendo ser inevitável que tal rivalidade, para além do campo simbólico, venha incidir na experiência de fazer escola de samba no Recife. Alguns episódios parecem emblemáticos desse conflito, configuram-se experiências vividas pelos grupos de samba pernambucanos promotoras de mudanças nas relações sociais, dinâmicas e percepções de mundo dos seus componentes. O “mundo carnavalesco” (DaMatta, 1997), por seu turno, é constituído de um conjunto de memoráveis experiências, manifestadas pelos processos de significação, metaforização, transmissão e dramatização. Selecionei dois dramas carnavalescos, episódios marcantes, da história das escolas de samba: a distribuição das subvenções públicas entre as
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agremiações de carnaval – a promulgação da Lei 3.346 de 1955; e a questão da passarela no carnaval do Recife – o problema da despassarelização do carnaval na década de 1980. Apresentá-los serve para iluminar as tensões e negociações em torno das escolas de samba que, por sua intensidade, ainda aparecem nos discursos e práticas das lideranças das escolas de samba entrevistadas.
2.3.1 A distribuição da subvenção pública: a Lei 1363/1956. O samba era criticado, era rejeitado, escanteado. Teve uma aula aqui que a gente viu as troças, esses negócio de frevo, recebia mais e o samba recebia menos. (aluno do projeto Samba e Saber)
Em 1955 o então Prefeito do Recife, Pelópidas Silveira, assinou a Lei n. 3.346/55 (hoje revogada), com vistas a regulamentar o percentual de divisão da subvenção pública destinada às agremiações carnavalescas, concedida pela Prefeitura. Em janeiro de 1956, o Prefeito assina o decreto lei 1363/55 reajustando e ratificando a distribuição do total de recursos destinados a esse fim: 35% para os clubes de frevo; 20% para os blocos de frevo; 15% para os maracatus; 15% para os caboclinhos; 10% para troças e ursos; e apenas 5% para as escolas de samba. Muitos intelectuais, como Valdemar de Oliveira, também opinaram acerca da distribuição dos recursos financeiros para as agremiações de carnaval do Recife (SILVA, 2012, p. 121- 122). Oliveira acreditava ser essa uma ação importante para a preservação do frevo: Oficialização do Carnaval. Todos os meus aplausos para o prefeito Pelópidas Silveira, pela atitude tomada em relação à Lei que oficializou o carnaval do Recife. O que, porém, mais importa, nesse nosso projeto, é que somente serão preservados os clubes de frevo, os blocos [desde que adotem, em seus cantos, exclusivamente o ritmo do frevo], os maracatus, obrigados a respeitar sua forma primitiva, quanto ao conjunto musical, e os clubes de caboclinhos. As escolas de sambas, portanto, são excluídas de qualquer benefício.128
Críticas e apelos, oriundos de interlocutores de peso, repercutem nas esferas simbólicas e organizacionais da festa, respaldando e, de certo modo, orientando, intervenções do poder público que se alojam na memória do “mundo carnavalesco” (DaMatta, 1997). De acordo com Real (1990, p. 48), nesse período, intelectuais e políticos afirmam, em jornais de
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Oliveira, Valdemar. Oficialização do Carnaval. (Diário de Pernambuco, 15/01/1956. P. 06. apud. SILVA, 2012).
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grande circulação, ter sido essa lei uma medida necessária para impedir o aumento das escolas de samba e, como se fosse automático, a decadência das agremiações de frevo.
Figura 08: Documento da Lei 1363. Fonte: CD-ROM História do Carnaval, - Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano.
A retaliação financeira é uma demonstração do movimento de contenção do crescimento das escolas de samba, da negação da importância desses grupos e da hierarquia simbólica dos elementos constitutivos do carnaval do Recife. Evoca a posição de centralidade simbólica ocupada pelo frevo, configurando-se uma ação prática da batalha frevo-samba. Mesmo com a lei revogada, ainda há resquícios dessa discussão nas falas das lideranças das escolas de samba. A distribuição financeira dos recursos públicos ainda não é proporcional aos gastos dos diferentes tipos de manifestação carnavalesca. As escolas recebem o mesmo valor de outras agremiações, embora tivesse quantitativo bem maior de desfilantes e estrutura visivelmente mais dispendiosa129. Para os sambistas, assim, é um drama que se perpetua e não um problema político atual.
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Uma agremiação do grupo especial recebe, até 2013, doze mil e oitocentos Reais, dividido em duas vezes. Uma antes do carnaval e outra parcela depois. As do Grupo 1 recebem oito mil, dividido de igual maneira. As do Grupo 2 recebem seis mil, também em duas parcelas. Esses valores não são líquidos, incidem impostos obrigatórios e 10% de contribuição para a Federação das Escolas de Samba de Pernambuco – FESAPE.
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Eu acho que o frevo conseguiu decolar por conta do poder da burguesia, da política. A gente começou a receber subvenção na década de 50 e foi uma luta. Então, esse dinheiro vem de uma gestão, do poder público, e tinha um grupo que se articulava pro samba não ter vez. Teve briga até de tapa até as escolas formarem uma liga e receber a subvenção. Mas o frevo estava lá na frente, como ainda está. Então eu acho que não chega no mesmo patamar por conta de uma política pública que não tem respeito pela cultura. A distribuição das verbas não é proporcional, ela é injusta. Como é que uma escola de samba com 2.300 componentes ganha o mesmo prêmio que um urso? E esse dinheiro R$ 12.800,00 é pago em duas vezes, entre no outro ano, paga um pouco antes do carnaval [...] E como é que isso tudo é feito, essa divisão, a gente não sabe. Tem que se organizar, as agremiações, e fazer um levante um sacode. As coisas não são tão claras não. (Marize, Gigante do Samba, Grupo Especial) Esse negócio de pouco dinheiro é antigo no samba. Quem é do samba sabe que sempre fomos desprivilegiados de tudo e muito de dinheiro. Parece uma coisa, eles ( a organização do concurso) dão quase nada e pedem tudo. Sempre foi de propósito para murchar o samba. No frevo já fica mais fácil porque termina o desfile eles guardam a roupa e remodelam pro outro ano. Escola de samba não pode fazer isso de jeito nenhum. Tudo novo, não pode remodelar. E faz com que dinheiro. (Carlos Alberto, Unidos da Mangueira, Grupo 2) Eles alegam que aqui são 300 e poucas agremiações. Eu não tenho nada contra o maracatu, gosto, a gente precisa deles, nem urso, nem caboclinho. Mas o maracatu, o frevo não é igual a gente. Eles (a Prefeitura) têm que ver que a gente tem uma bateria pra botar na rua, que eles exigem, tem uma cota mínima. Baianas são 40, cota mínima, pra vestir não é mole não, no barato é 20 paus, é fantasia de 12 a 15 metros de babados pra ficar rodada. A minha escola saiu com 268 pessoas, nós perdemos 5 pontos por causa disso porque tem que ser 300. Agora eles dão uma mixaria, R$ 4.000 antes e a outra parte 3 meses depois do carnaval, foi quando eu fiz essa loucura de pegar dinheiro emprestado e me enrasquei. Eles dão um dinheiro desses e exigem? (Correia, Samarina, Grupo 1) O regulamento é parecido com as escolas do Rio. Só as escolas é que não parecem as do Rio por que vivem na pobreza. Eles (a Prefeitura) exigem muito, e a verba é muito pouca, há muitos anos que é assim, é coisa de história. Eles exigem de uma coisa que eles não mantêm. 12.000... não dá para nada, só 5 mil foi a costura da roupa da Galeria. (Saúba, mestre de bateria, Galeria do Ritmo, Grupo Especial) Aí voltamos pra Recife [de volta do Rio de Janeiro], voltamos a fazer carnaval, o samba entrou em total decadência (anos de 1980) parte pelo poder público mesmo sem incentivo algum, porque o samba é diferenciado, enquanto uma agremiação vem com 200 participantes a escola de samba vem com 1000, então não pode ter o mesmo tratamento. É a mesma coisa que dar uma verba pro time do Sport e a mesma pro time do Ypiranga. É Injusto. (Fábio Costa, ex-Carnavalesco da Samarina) Aqui no Grupo especial a gente tem a verba de R$ 13.000 dividida em 2 vezes. A primeira cota deve sair até dezembro e a segunda só Jesus sabe. Aí o mesmo dinheiro que a escola de samba ganha pra colocar 450 pessoas na rua o maracatu recebe pra colocar 100, 150. Eles podem reaproveitar as roupas, a gente não, se a gente colocar a mesma roupa desse ano no ano que vem a gente perde ponto, tá no regulamento. Se eu contratar uma destaque que vem numa escola na frente da minha eu perco ponto. Isso tá errado, a prefeitura só vê o lado dela. Maracatu, Abanadores do Arruda, esses blocos ganham tudo o mesmo dinheiro. Devia ser proporcional, o samba reclama disso desde antigamente. Eu tenho que colocar 450 pessoas na rua, para cada menos 1 pessoa eu perco 5 pontos. Eu fui pra uma reunião com a prefeitura, e eles pediram meio mundo de coisa e o dinheiro vai ser o mesmo. (Fernando, Unidos de São Carlos, Grupo Especial)
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Desde a década de 1950 a Prefeitura do Recife subvenciona os diferentes tipos de agremiações de carnaval e, ao mesmo tempo, organiza o Concurso das Agremiações Carnavalescas do Recife. A ligação entre as escolas de samba e o poder público municipal, portanto, é ambígua e permeada de ressentimentos históricos. A mesma fonte de recurso estabelece os percentuais de distribuição e elabora as exigências a serem atendidas com ele que é, na grande maioria das vezes, o único recurso. Percebe-se uma tensão entre o oferecido como subvenção pública e o cobrado em regulamento, agravada pela dificuldade em captar patrocínios privados, pelo sentimento de desprestígio, frente a outras manifestações carnavalescas.
2.3.2 A Despassarelização
A passarela do desfile é uma questão recorrente para os sambistas pernambucanos. Simbolicamente foram associadas ao carnaval do Rio de Janeiro, impediriam a livre participação popular ao separarem espectador e brincante. Entre os anos de 1980 e 1983, o então Prefeito Gustavo Krause retirou as passarelas do desfile das agremiações carnavalescas. A “despassarelização” 130, como ficou conhecido o episódio, atinge diretamente as escolas de samba, pois sua estrutura exige, mais do que a de outras manifestações populares, espaço diferenciado ou delimitado para apresentação. Fez parte do projeto intitulado “Carnaval Participação” – traduzido como carnaval de rua, sem competições ou espaços exclusivamente para desfiles, em que, teoricamente, não existiriam espectadores, e todos participam da festa – em oposição ao “carnaval espetáculo”, representação pernambucana do modelo de desfile carioca com suas passarelas e arquibancadas para a audiência e contemplação das escolas de samba. A gestão entendia a retirada da passarela como estímulo à participação no carnaval. Antecipadamente, Burke (1989, p. 18) alerta para os perigos do termo “participação”, muito vago, pode usado para referir-se a “um leque de atitudes que variam da total imersão à observação desinteressada”. Outrossim, há um deslocamento do termo “espetáculo” atribuindo-lhe sentidos negativos, imputando uma falsa ideia de mera contemplação para os brincantes do samba.
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Planejada e executada pela Fundação de Cultura da Cidade do Recife, na gestão do então presidente Leonardo Dantas.
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A dicotomia participação – espetáculo é resultado da produção de diferenças entre o frevo e samba. Como vimos, o frevo foi historicamente relacionado à primeira categoria (participação), que se desdobra em tradicional e popularidade; enquanto a imagem das escolas de samba à segunda (espetáculo) e, por sua vez, desdobra-se em moderna e excludente. A magnitude, profissionalização, inserção no mercado turístico e proposta estética exuberante, fizeram das escolas de samba do Rio de Janeiro exemplos paradigmáticos de expressão popular transformada em “megaespetáculo”132. Ou seja, sua condição de cultura popular já era posta em xeque na segunda metade do século XX, mesmo no Rio de Janeiro133, como exemplifica a discussão levantada por Renato Almeida, na Revista brasileira de folclore de 1974: A escola de samba é um conjunto folclórico? Não [...]. Tem caráter de entidade recreativa [...]. Tem uma institucionalização que a afasta em absoluto do folclore [...] O desfile das escolas de samba é um importante e admirável ‘show’, de que participa a gente do povo, como figurante, dentro de um esquema adotado e ensaiado, como se fossem artistas de teatro. A beleza do espetáculo é surpreendente, de cor, de ritmo, de movimento. Veio do povo, mas despreendeu-se das origens e ganhou vida própria, que não é absolutamente folclórica. (ALMEIDA, 1974, p. 2425)
Voltando às passarelas, durante três anos, as escolas de samba pernambucanas prejudicadas reivindicaram a reposição da passarela e ameaçaram não mais desfilar. O colunista Sebastião Vila Nova, defende a ação da Prefeitura em sua coluna no Diário de Pernambuco, em 23 de janeiro de 1980, ano da retirada das passarelas. Posiciona-se a favor dessa retirada e aciona a imagem de “contrafação da brincadeira do povo”, ligada às escolas de samba: Tenho lido aqui e acolá a respeito do descontentamento do pessoal das escolas de samba com relação à despassarelização do nosso carnaval. E o pessoal prometeu não desfilar no carnaval. Ora, se há uma coisa digna de todo o nosso respeito e admiração no que se refere às folganças do nosso povo, não resta dúvida que essa é a extinção da passarela no carnaval do Recife. Se mesmo no Rio de Janeiro as escolas de samba já são uma contrafação da brincadeira do povo, imagine o que não significa a escola de samba no carnaval do Recife [...]. As escolas de samba têm se multiplicado danadamente no Recife em detrimento às formas de brincadeira tipicamente nossas: os clubes de frevo, os blocos [...]. As escolas de samba estão sendo mais prestigiadas que os blocos, por quê? [...] A adição das escolas de samba 132
Na minha dissertação de mestrado sobre as quadrilhas juninas do Recife observei que, para os quadrilheiros “escola de samba” se configura categoria de acusação. Chamar as quadrilhas juninas de escola de samba – sejam mediadores intelectuais ou mesmo os próprios quadrilheiros entre si - significa dizer que elas não são tradicionais (ou são menos tradicionais), espetaculares, e alheias ao repertório das tradições juninas. Lady Selma Albernaz (2002) percebe orientação similar com os grupos de bois no Maranhão. 133 Segundo DaMatta (1997, p. 128), as escolas são vistas pelos blocos cariocas, por exemplo, como alheia às tradições carnavalescas, “miscigenadas [...], são ‘para turistas’ e não para o povo e não desfilam de modo espontâneo, fazem um show”.
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pelo carnaval resulta de uma cópia ingênua das formas de brincadeira que nada tem a ver com as nossas tradições locais, mas que aparecem como superiores aos olhos do povo simplesmente por se originar da metrópole econômico-cultural do país [...]. Assim, despassarelização é uma das mais importantes medidas para assegurar o nosso carnaval.
Para ilustrar a projeção da ação da Prefeitura, segue trecho da matéria, “Compositor rebate críticas de sulistas”, publicada no Diário de Pernambuco de 16 de janeiro de 1980, uma entrevista com o compositor de frevo Genildo Lopes apoiando e exaltando a desarticulação financeira e espacial das escolas de samba do Recife: Acho que chegou a hora de reprimir os ataques que estão sendo feitos pelos representantes da música carioca em nosso carnaval contra os verdadeiros donos do carnaval pernambucano que são os nosso clubes de frevo. [...] o Recife pode ter seu carnaval sem essa famigerada passarela [...] como as mesmas não gostam de desfilar no asfalto [...] que ele instale a mesma [passarela] no Morro da Conceição, e lá estas belas representantes do carnaval carioca possam disputar o título sem serem molestadas pelos foliões do nosso frevo. O que devemos fazer no próximo ano é fortalecer o nosso frevo da mesma maneira que o carioca fortalece o samba. As agremiações daqui devem receber da Prefeitura do Recife uma ajuda financeira mais eficaz, sempre maior que as concedidas às escolas. É assim que é tratado o frevo lá no Rio de Janeiro. Lá representantes de clubes não têm o mesmo tratamento dos representantes do samba [...]. Apesar de respeitá-lo [o samba] como boa música sou muito pelo ditado que diz ‘cada macaco no seu galho’. Se Pernambuco é do frevo, deixem o samba para lá (grifos do autor).
Três anos depois, as passarelas voltam ao seu lugar, mas tornam-se uma questão para os sambistas pernambucanos. Além de reivindicarem melhores estruturas para o desfile, recorrentemente se colocavam como responsáveis por “encher as arquibancadas”, trazer a audiência, sem, contudo, serem reconhecidas por esse feito. Desde os anos 2000, os desfiles dos grupos especiais, um, dois e acesso, ocorrem no mesmo dia, de forma concomitante, na segunda feira de carnaval. Os locais onde a Prefeitura instala as passarelas variam de acordo com o plano de organização dos pólos da festa carnavalesca; nos últimos anos, os desfiles do grupo especial ocorrem na Avenida Dantas Barreto ou Avenida Nossa Senhora do Carmo, ambas no centro da cidade134: Tem sempre gente pra assistir, porque escola de samba dá público, não tem outra coisa para encher as arquibancadas mais que o samba. Mais ninguém vê isso. Ficam levando a gente de um lado para o outro. Uma coisa que a gente rebate muito é isso de dividir as passarelas. Bota na Guararapes, na Dantas Barreto, na Nossa Senhora do Carmo. Vamos botar tudo num canto só, desde que comece cedo. Antigamente não era assim. Ia pro sorteio, quem abrisse, abriu. Começava com o segundo grupo, depois o primeiro e depois o especial. Fica ruim (separado) porque fulano quer sair na brincadeira de um e de outro, mas não pode porque fica no mesmo horário, não pode desfilar nas duas. (Carlos Alberto, Unidos da Mangueira) 134
A estrutura é frágil em aspectos estruturais. Discutiremos no capítulo IV.
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Meu filho eles não estão nem aí para o samba. Tem aquela Dantas Barreto todinha desde a Praça Sérgio Loreto até o final como era antigamente, mas eles não veem isso. Não tem sanitário, não tem policiamento, não tem um som bom. Não é só para o samba não, é para as agremiações de frevo também, mas, as de frevo desfilam em outros lugares, nas ruas, a gente só tem aquele dia e pronto. Era para ser o lugar dos sonhos, de uma vida, é uma vida para montar um desfile e chegar numa passarela daquela. Sabe que teve uma época que nem tinha passarela para o samba? Por isso parece que a gente vê o negócio ruim, mas tem é que agradecer, porque já teve tempo de não ter nem isso, foi na época de Krause. (Conceição, Unidos de São Carlos) A gente precisa ser valorizado, porque quando tem valor tem tudo. Valorizado em todos os sentidos. Financeiro, uma boa passarela, escolher um dia pro samba, porque eles começam com as agremiações – ursos, caboclinhos – no sol quente, quando chega a noite, passa pra bloco e deixa as escolas por último pra segurar o público, e a melhor escola no final, aí sabe que segura. Só o samba segura o público. Nos outros dias, pode ir na passarela que é vazio. Botar as três categorias num lugar só. Depois eles reclamam que o dinheiro não dá. Eles querem fazer 3, 4 pólos, se não podem iluminar nem um quanto mais quatro. Ano passado até na passarela do grupo especial o som teve problema. Som, iluminação, divulgação. Se fosse cada categoria no seu dia eles iam gastar menos, como era antigamente. Mas eles precisam do samba para ter público. [...] Aquela passarela não tem nem 100 metros. Quando fizeram o camelódromo podiam ter feito a passarela, como fizeram no Rio, em São Paulo. Estava conservado, serviria pra shows, bastava eles colocarem camarotes quando fossem fazer festas. Pessoas capacitadas eles não têm, porque se tivessem faria, dinheiro têm, porque eles sabem que é mais fácil arrumar gente pra patrocinar aquilo do que pra patrocinar um estádio pra copa do mundo. Se não fosse na Dantas Barreto, que botassem pra outro lugar, eles podiam até vender ingresso. Se eles fazem as coisas bem feitas e dão condições da gente fazer um trabalho bem feito, não fazer vergonha, não ir vestido de miserável pra avenida, porque com o dinheiro que dá é isso. Agora exigência tem muita. Agora cobrasse o ingresso e tirasse o dinheiro do carnaval. Porque, quando a coisa é organizada, ela segue em frente e cada vez melhor. Essa reinvindicação da passarela é antiga. Teve um tempo que ficou sem passarela, foi com Krause, inventaram um Carnaval Participação. Teve um ano que saía da Maciel Pinheiro, vinha pela Imperatriz, pela ponte e ia passando. Outro ano, foi o pior ano pra mim, foi na Conde da Boa Vista, uma avenida daquela largura pra botar umas escolas de sambas dessas daqui [...]. Tinha uns palanques em cada rua e tinha um percurso obrigatório e ia recebendo as notas. Aí eles viram que estava morrendo, que ninguém queria gastar, voltaram com a passarela. (Correia, Samarina) Veja só, estamos em um lugar onde eles privilegiam o frevo de uma maneira até preconceituosa, porque querem fechar os olhos para esses tipos de manifestações, como as escolas de samba, pra dizer que aqui é a terra do frevo. Enquanto todo mundo trabalha pra denegrir o samba, de fazer com que ele não exista, é ele que mantém aquelas pessoas na passarela na segunda-feira de carnaval, que é o dia mais cheio que tem. Aí teve um tempo que eles resolveram tirar a passarela da Dantas Barreto e passar pro Bairro do Recife, foi um golpe muito severo nas escolas de samba que vinha com alegorias enormes e não dava pra passar pelas árvores, fios. (Américo Barreto, ex-carnavalesco, Samarina e Deixa Falar) A passarela no dia do desfile do samba, por mais miserável que seja, os miseráveis, os pedintes, os fariseus estão lá à espera do pão e do circo, e quem sabe fazer o pão e o circo é o samba! Com raiva disso Jarbas ou foi Krause, tirou o desfile da passarela e colocou no bairro do Recife Antigo, solto, sem arquibancadas para apresentação solta. Nós fizemos um enredo revolucionário nesse ano na Samarina, que era ‘Cala boca já morreu, quem manda aqui sou eu. O túmulo do frevo’. Então, nós fizemos várias alegorias de morte, então montamos um cortejo fúnebre e enterramos o frevo. Então, um dos carros era um caixão saindo uma mão com uma
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sombrinha de frevo, fizemos lápides com o nome de Claudionor Germano, com o nome do presidente da Associação Carnavalesca, as colombinas eram todas trashs, rasgadas, era roxo, amarelo, muito preto e branco. Então, assim todas as fantasias eram rasgadas depois de prontas, marcou a despassarelização. (Fábio Costa, excarnavalesco, Samarina e Deixa Falar). Aqui no Recife eles nunca, desde de muito tempo, nunca, botaram um lugar decente pra escola desfilar. Tem lugar, mas eles não botam. Eles (poder público) não investem. A gente sempre lutou. A passarela mesmo só enche no dia do samba. Aí eles botam o frevo no mesmo dia mas quem enche é o samba. Vai nos outros dias pra ver... No dia de Gigante o povo espera até 3, 4 da manhã. Eles não deixam a gente desfilar antes porque senão o povo vai embora. (Lacerda, Gigante do Samba)
A passarela como hoje é concebida, tendo em vista a falta de estruturas básicas, denuncia a pouca relevância das agremiações carnavalescas do Recife, não apenas os grupos de samba, para a organização da festa. Na memória carnavalesca do mundo do samba, contudo, está registrada a despassarelização como marco representativo da falta de reconhecimento, por parte do poder público, e da importância social e simbólica do potencial de atração de público e mobilização comunitária das escolas de samba. Então, a passarela torna-se, para o samba, um símbolo que remonta a ressentimentos, a conflitos e às ações históricas; ganha outra dimensão atrelada às questões estruturais do desfile.
2.4 Uma batalha sem vencedores? Antes de qualquer coisa, desculpe as outras manifestações, mas eu tenho que falar: o frevo é o símbolo do carnaval do Recife. Mas, o frevo está se degradado, o carnavalesco está sem ânimo. Está faltando amor, a entrega, o entusiasmo de quem faz da sua agremiação a sua vida, [...] o amor que faz a gente amanhecer e anoitecer pensando como vai sair bonito. [...] Saí do concurso tão desanimada, tão triste com o frevo. Ano que vem (2014) ele vai ser o homenageado, o frevo que é nosso, porque nasceu aqui, mas que agora é Patrimônio Imaterial da Humanidade, pelo imenso valor que ele tem. Atravessando a dança, a música, as roupas, tudo relativo ao frevo é muito bonito [...]. Mas o frevo está tão fraquinho em termos de agremiação de frevo. Os maracatus estão vindo cada vez mais fortes e lindos. Os caboclinhos, belíssimos. Os blocos de frevo fazem pena. Pena para não dizer outra coisa. Os clubes de frevo, as troças uma ou duas, no máximo, que estão bem. Por que o pessoal do frevo está tão para baixo? Vamos ver como melhorar esse carnaval, [...] fraco, desanimado, pálido, sem beleza. Um sapato quebrado, um pé diferente do outro, as roupas velhas, com a marca do dobrado da camisa, logo vocês que fizeram tantas coisas bonitas [...]. Eu tenho saudade das coisas que eu via no carnaval do Recife, e por que eu não estou vendo mais? Só pode ser porque o carnaval, o frevo, está morrendo dentro de vocês. Uma alma que morre, não tem vida, não tem expressão. Então, temos que salvar a alma de cada um de nós, a paixão que tem aqui dentro, o espírito que habita cada um [...]. Eu convoco vocês a ressurgirem. Como é que na ‘Terra do Frevo’ não temos quem trabalhe por amor, isso é grave. Falta gente apaixonada pela agremiação que vá de corpo e alma para o
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frevo. Quem escuta frevo no som de casa, no seu rádio de casa toca frevo o ano inteiro? Ninguém. (Leda Alves, Secretária de Cultura do Recife, em reunião pública com carnavalescos da cidade, em setembro de 2013.)
A “batalha frevo-samba”, como vimos, fez parte do processo de transformação do frevo em emblema da identidade local e, em grande medida, desestruturou o movimento das escolas de samba quando estas experimentavam crescimento e projeção no carnaval do Recife na segunda metade do século XX. Enfraqueceram-se e hoje parecem estar à sombra de um passado quando de tão expressivas ofereciam o perigo que nenhuma outra “importação” sugeriu, preocupando e demandando retaliação por parte dos defensores da pureza do carnaval do Recife. Mal vistas e sem apoios sua participação nessa festa é prova de resistência. As palavras da Secretária de Cultura do Recife, Leda Alves, em 2013, revelam, contraditoriamente, que a supremacia do frevo como elemento representativo do carnaval e do povo pernambucano; Patrimônio Imaterial do Brasil (IPHAN) e Patrimônio da Humanidade (UNESCO/2012) -, presente de maneira predominante nos discursos, na visualidade e na programação do carnaval do Recife; não denota sua vitória plena. Para as agremiações de frevo as orquestras135 são uma grande despesa pois os clubes, troças e blocos não têm seus próprios músicos, e estes, devido à grande procura no carnaval, findam por ser onerosos profissionais indispensáveis. As dificuldades financeiras se agravaram à medida que passistas, destaques, porta-estandartes e outros componentes passam a também cobrar para desfilar. É comum, inclusive, o envolvimento das lideranças com agiotas136 para “colocar a agremiação na rua”, uma vez que a subvenção pública não dá conta de todas as despesas e os grupos parecem cada vez mais dependentes desta fonte de recursos (para a maioria, a única). Do ponto de vista estético, o carnaval dessas agremiações parece mesmo “fraco, desanimado, pálido, sem beleza”, como disse Alves em seu discurso, tal qual ao das escolas de samba. Os representante do Clube de Frevo Vassourinhas e o do Bloco de Frevo Banhistas do Pina, duas das agremiações mais antigas em atividade, no mesmo evento, respondem a provocação da Secretária de Cultura e ratificam as demandas trazidas acima: Eu sou do clube Vassourinhas [...]. Nós colocamos a nossa agremiação na rua porque realmente nós temos muito amor, mas está tudo muito difícil. A gente que é do frevo tem que pagar para o pessoal sair, porque não existe mais o amor ao frevo 135
Conforme vimos, Valdemar de Oliveira, em 1971, já alertava seus leitores para o “declínio do frevo”. Além da concorrência com as “impetuosas escolas de samba”, os altos custos para o pagamento de músicos das orquestras era o outro gasto expressivo, comprometedor do orçamento. 136 A relação entre as agremiações carnavalescas do Recife e os agiotas merece um trabalho de pesquisa específico pela importância e recorrência do tema. Penso em desenvolver tal trabalho posteriormente à produção desta tese.
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como existia antigamente. A gente tem que batalhar e muito para colocar a agremiação na rua. Esse ano eu fui a quarta melhor agremiação do Grupo especial, venho com tudo novo, porque não gosto de coisa velha, tenho vergonha de entrar na avenida de roupa feia, gosto do que é bom, mas tenho que pagar ao pessoal para desfilar. A gente paga caro a uma orquestra de frevo. Tem que gastar a cabeça para comprar coisa barata e fazer coisa bonita, e tem que guardar um dinheiro para pagar as todos para desfilar. (Representante do Clube Vassourinhas) Nada melhorou, é um descaso, não se leva a sério o frevo na nossa cultura. Não falo só da Prefeitura, porque a culpa também é nossa, dos pernambucanos que não amam mais o frevo como antes. O dinheiro não chega, é pouco, não dá para pagar tudo. É muita luta para colocar a agremiação na rua. A subvenção chega muito em cima; o povo recorre à agiota. Precisa de uma política séria, levantar a bandeira da cultura pernambucana, que dê independência das agremiações que ficam dependendo da Prefeitura. Pagamos tudo muito caro e não tem dinheiro para fazer nada. A gente que tem sede ainda consegue alugar, fazer festa, evento e, mesmo assim, não dá, imagine quem não tem [...] (Vavá, Bloco de Frevo Banhistas do Pina).
Para além do período de carnaval não há consumo de produtos de frevo pela sociedade recifense, portanto, a produção é, em grande medida, sazonal e aquém do potencial produtivo. O ritmo “autenticamente pernambucano” não é tocado nas rádios durante o ano, as agremiações, cantores e passistas, salvo algumas raras exceções, não sobrevivem do frevo, como ocorre com muitos dos que se dedicam as escolas de samba no Rio de Janeiro. As escolas de samba, por sua vez, passam por dificuldades semelhantes as das agremiações de frevo para preparar seus desfiles, são dependentes da subvenção pública e limitadas quanto à captação de recursos privados por carregarem os estereótipos negativos historicamente cultivados já mencionados.137. Com exceção da heptacampeã do Grupo especial, Gigante do Samba, sofrem para completar o quantitativo de componentes obrigatório no regulamento do concurso, articulam com as quadrilhas juninas, com os maracatus, com os caboclinhos e os próprios grupos de frevo, componentes para suas alas em troca de pagamento ou de outras parcerias; pedem empréstimos para a conclusão dos trabalhos; desfilam com materiais baratos, reaproveitados ao extremo e adereços de qualidade duvidosa; confeccionam as fantasias, sem contar com a venda delas e sem venda não há retorno financeiro para investimentos. As lideranças das escolas de samba pernambucanas aproximam realidades, compartilham perdas com o frevo: Tá todo mundo lascado, meu filho, o povo do samba reclama, mas, o povo do frevo também reclama. O povo do frevo paga para os componentes desfilarem. No meu caso, eu não tenho como pagar. A gente tem que correr, vai fechando com maracatu, com outras comunidades, com o povo do frevo. Por que é muito difícil cumprir o regulamento e levar 450 pessoas para a avenida, a gente acaba perdendo ponto. A gente faz em parceria, eles precisam de gente, eu levo os 137
Sobre as atuais dificuldades enfrentadas pelas agremiações de frevo, Ver SARMENTO (2011).
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meus, a gente precisa, eles mandam os deles. Se eu disser que vou pagar por 30 baianas eu tô mentindo, porque não tem dinheiro. Faz um ano que me elegeram presidente ,então, já não encontrei coisas boas. Teve muita coisa pra gente pagar. Eu peguei faz um ano e a gente conseguiu passar pro Grupo Especial. (Conceição, Unidos de São Carlos) Agora eu não sei se o frevo tem mais espaço do que o samba não, porque eles estão reclamando tanto ultimamente, dizendo que não têm dinheiro, que tá difícil. Acho que a briga do samba com o frevo é só assim na cabeça das pessoas, porque, no fim, todo mundo ta cheio de dificuldades. (Marize, Gigante do Samba). O frevo é tão pobre quanto o samba, se não for pior. O frevo recicla mais, não tem orquestra própria. O samba tem a bateria dela, não paga a batuqueiro. Mas o frevo tem mais nome na cidade. Precisamos ser mais unidos e enfrentar as adversidades, frevo e samba juntos. Mas as rivalidades não permitem. (Jarlan, Limonil)
. No passado, as escolas samba era uma ameaça, viva, com poder de cooptação, em crescente expansão, a ser contida, enquanto o frevo aparecia sob o signo da perda, estava em perigo iminente, precisava ser preservado. Os debates decantam ao mesmo tempo em que as escolas de samba tiverem grandes perdas, desvios na sua possível trajetória de sucesso, não oferecendo mais perigo à pureza do carnaval recifense. Com efeito, o discurso da Secretária de Cultura Leda Alves atenta para a falta de cuidado com a apresentação dos grupos de frevo, “Um sapato quebrado, um pé diferente do outro, as roupas velhas, com a marca do dobrado da camisa...”. Enquanto isso, no carnaval de 2014, a Escola de Samba Unidos de Vila Escailabe, do Grupo Especial, foi desclassificada por não ter elementos básicos como mestre sala e porta bandeira. Mas como a escola de samba não é, tal como as agremiações de frevo, símbolo do carnaval do Recife, a gestão pública não demonstra a mesma preocupação. Vale salientar, por fim, que atualmente (desde 2007) o frevo, como Patrimônio da Humanidade (título concedido pela UNESCO em 2012), é cada vez mais inserido no discurso patrimonial e este parece ascender como caminho para argumentos e práticas com vistas a sua valorização, promoção e difusão no campo das políticas culturais. A chancela institucional revitaliza discursos identitários relacionados ao frevo, revigora sentidos de empoderamento e pertencimento e alimenta argumentos e práticas a favor dele. Uma porta que não se abrirá para as escolas de samba recifense no horizonte atual. Katarina Real (1990, p. 53), à revelia das poderosas vozes da batalha frevo-samba, em 1966, mostrava-se bastante otimista com o futuro das escolas de samba: “As escolas de samba enfrentam um futuro quase sem preocupação, um campo livre para o desenvolvimento rápido e uma popularidade que cresce de ano para ano”. As palavras proféticas da antropóloga,
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contudo, não se concretizaram, não parece fácil ser uma escola de samba na “Terra do Frevo”, porém também não é fácil fazer frevo na “Terra do Frevo”. Buscando visualizar os bastidores de um movimento e com o intuito inclusive de aprofundar as dificuldades apontadas neste último item, vejamos no próximo capítulo a preparação das escolas de samba recifense para o desfile carnavalesco.
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Escola de samba é trabalho, criatividade e amor. Marize, Gigante do Samba
Este capítulo consiste em um olhar etnográfico sobre o processo ritual (CAVALCANTI, 1999, 2006) do desfile pernambucano, a partir da observação direta realizada na Escola de Samba Gigante do Samba. Destaco na etnografia a relação entre o Recife e Rio de Janeiro, pensando que históricas representações acerca dessas cidades, constitutivas da “batalha frevo-samba”, decantaram e, atualmente, no mundo social (BECKER, 1977) das escolas de samba, ganharam outros contornos, menos embativos e mais dialógicos. A noção de “situações sociais” de Max Gluckman (2010) foi estruturadora da pesquisa e da escrita do capítulo: As situações sociais constituem uma grande parte da matéria prima do antropólogo, pois são os eventos que observa. A partir das situações sociais e de suas interrelações em uma sociedade particular, podem-se abstrair a estrutura social, as relações sociais, as instituições [...]. (GLUCKMAN, 2010, p. 239)
Diante de muitas possibilidades, escolhi, portanto, duas situações sociais (duas festas do calendário da Escola), para desdobrá-las, para refletir sobre a experiência de fazer samba no Recife.
Analisei dois eventos como opostos complementares. Por essa condição,
evidenciam conteúdos, formas e agenciamentos distintos, porém, necessários mutuamente. São eles: a Festa dos Protótipos e a Noite das Baianas. Com bases também em DaMatta (1990, p. 77) e Cavalcanti (idem), entendo esses ritos139 como partes do processo ritual do desfile com potencialidade, para colocar em close up as coisas desse mundo social. O capítulo segue com uma etnografia das duas festas e posterior análise. Em seguida, por entender que a “Gigante do Samba” possui uma experiência peculiar no contexto pernambucano, mostro, nas últimas páginas, um pouco da realidade de outras escolas, ampliando a perspectiva, tentando acrescentar outras vozes à minha discussão, ao exercício de escrita etnográfica (CLIFFORD, 2002)140 139
Segundo, DaMatta (1999, p. 76): “[...] Os rituais não devem ser tomados como momentos essencialmente diferentes [em forma qualidade e matéria prima] daqueles que formam e informam a chamada rotina da vida cotidiana.”. Cavalcanti (2008, p. 06) se coaduna com as ideias de DaMatta: “A partir do material bruto dos valores e representações sociais, projetando-os como imagens em espelhos deformadores [Seeger, 1980], os ritos construíram, como forma da experiência viva, pontos de vistas peculiares, e intercambiáveis, sobre o mundo social.” 140 Optei neste capítulo todo e, em especial, na última parte, por trazer extensivamente as falas dos “informantes”, nos termos de James Clifford. Os sambistas pernambucanos, localizados em universos
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3.1 A Festa dos Protótipos 3.1.1 Sanduíches, Malinowski, Mauss e Fantasias Em setembro de 2012, realizei a primeira entrevista com o carnavalesco da Gigante do Samba, Hilário Silva. O encontro aconteceu na sede da Escola, no espaço para a confecção das fantasias, em meio a croquis, tecidos e adereços. O encontro foi marcado às 19h, horário da pausa para o lanche. Já havíamos nos encontrado na quadra, em outros momentos; fomos apresentados. Ele, o grande responsável pelo sucesso da “Gigante”, nos últimos anos, e eu, o “rapaz da Universidade que vai escrever um livro sobre a ‘Gigante’”. Hilário aguardava a minha chegada cortando um molde para confecção de adereços para uma ala. Ao me ver, liberou sua pequena equipe para o intervalo do lanche, com um tom de voz tranquilo (mantido durante todo encontro), pausado, sempre pensando muito na resposta a ser dada. Correspondia à imagem transmitida, antes do encontro, por Marize, diretora da Escola: “Hilário é ótimo carnavalesco, e o melhor é que ele é um homem fino”. Despretensiosamente, comecei a conversa falando do lanche também oferecido a mim, um sanduíche de mortadela com refrigerante. Perguntei se eles dividiram as despesas, e ele responde dizendo ser doação da comunidade141. Elogio a inserção da “Gigante” na Comunidade de Água Fria, refletida na doação, em um momento no qual as escolas reclamam da falta de apoio de suas comunidades. Ele retruca: “Na verdade, não é doação, é troca. Eles mandam lanche, porque sabem que a gente fica aqui até tarde, mas eles querem ver a ‘Gigante’ linda. Esse sanduíche custa caro, só aumenta a minha responsabilidade e o número de pessoas que eu tenho que dá satisfações”. E se, ao aceitar o sanduíche, mesmo sem vontade de comer, fez-me recordar Malinowski (1978)142, a resposta de Hilário, inevitavelmente, remete-me a Mauss (2003)143 e à reciprocidade. Pergunto, então, se ele faria algo para retribuir o sanduíche antes do carnaval, ou se acumularia a dívida até fevereiro. Sorrindo com a piada, sem saber ele, cheia de intenções antropológicas, pensa um pouco e responde: “Próximo sábado tem a “Festa dos Protótipos”, é invisibilizados, podem se vir e se ouvir falar sobre suas experiências. Clifford (2002, p. 54) afirma que citar os informantes, extensa e regularmente, é uma tática para o rompimento da “autoridade monofônica”, mas deixa claro que não está salva de problemas, assim como outras táticas para a escrita etnográfica também não estão. 141 Segundo Hilário, a comunidade doa carne e outros mantimentos para o almoço da equipe, além de doações em dinheiro para o pagamento semanal dos trabalhadores do barracão-quadra, “[...] a Escola corre atrás, a escola não tem condição, mas também faz por onde”. 142 Malinowski em sua obra de referência faz uma consistente discussão sobre exercício de poder, laços de parentesco, e hierarquias sociais pensando o inhame na vida trobriandesa. Mais detalhes ver Mintz (2001) 143 Mauss (2003,188) chama atenção para as sociedades em que a troca de presentes seria, em teoria voluntária, mas, na verdade, os presentes são “obrigatoriamente retribuídos”.
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uma das festas mais esperadas. A quadra enche, o povo vê como a Escola vai ficar linda. Dar essa alegria e mostrar o trabalho é uma retribuição, não é?”. Concordei. A Festa dos Protótipos é um evento do calendário da ‘Gigante’, com vistas a apresentar publicamente as fantasias do próximo desfile, uma de cada ala. No momento do nosso encontro, ele e sua equipe estavam trabalhando nos preparativos, ajustando as fantasias em manequins. Faltavam alguns dias e “tudo tem que estar perfeito”, disse Hilário. Contou que ele instaurou a tradição dessa festa na Escola, há cinco anos, inspirado nos eventos similares da ‘Mangueira’ e da ‘Beija-Flor’; orgulha-se em dizer ser a única de Pernambuco a realizar evento desse tipo. Enfatiza no tom de voz a ousadia da festa – por revelar as fantasias antes do carnaval, inclusive para as concorrentes – e o teor de inovação para o mundo do samba na cidade. Trata-se de uma “festa moderna”, traduzida em uma estrutura de iluminação, palco e “efeitos” ausentes em outros eventos da Escola. A Festa de Protótipo, nenhuma escola aqui de Pernambuco faz, é uma coisa nova. Eu faço do mesmo jeito que eu vi na ‘Mangueira’, na ‘Beija-Flor’. A gente faz uma festa bonita e hoje já virou um marketing também; o pessoal fica tudo perguntando quando é que vai ser a festa dos protótipos. A gente apresenta uma roupa de cada ala, bota jogo de luz, passarela montada, efeito, é uma festa moderna. (Hilário, ‘Gigante do Samba’)
Hilário apresentou-me as fantasias, explanou minuciosamente cada detalhe do enredo para respaldar suas criações, falou em tom de ensinamento: “[...] para a gente chegar até as fantasias é preciso saber do enredo”. Dessa maneira, a análise da Festa dos Protótipos demanda entendimento anterior sobre a figura do carnavalesco (ou desse carnavalesco), o enredo e a preparação das fantasias. No fim da entrevista, longa e muitíssimo proveitosa, ele perguntou: “eu vou estar no seu livro mesmo?” Respondi: será a minha retribuição a você. 3.1.2 O carnavalesco: “um pé lá e outro cá” Aqui no Recife, hoje, eu sou uma pessoa muito respeitada no samba, conhecida. Onde eu chego, gostam muito de mim; muitas escolas dizem que queriam ter dinheiro pra me ter lá, que eu sou uma pessoa cara. Eu até brinco que agora eu sou Neymar, se quiser me dar dinheiro... Mas é devido ao trabalho que você faz, esse é o reconhecimento do trabalho, e também da minha relação com o Rio de Janeiro porque eu tenho um pé lá e outro cá, isso me faz especial. (Hilário)
Hilário Silva é cabeleireiro de profissão, tem um salão bastante requisitado no bairro de Beberibe, onde mora, e costuma frisar: “o samba é um hobby, pois retorno financeiro não há”. Uma realidade comum aos carnavalescos da cidade, ninguém vive apenas do trabalho nas
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escolas de samba. No entanto, é um homem de carnaval, foi presidente da ‘Troça de Frevo Noturna de Beberibe’ por quinze anos. Deixou a Troça, e o trabalho com o frevo, para seguir uma bem sucedida trajetória no samba: a começar pela ‘Escola Sambistas do Cordeiro’; em seguida, ‘Deixa Falar’, ‘Unidos de São Carlos’, um breve retorno à ‘Deixa Falar’ e, por fim, na ‘Gigante do Samba’, onde conquistou quatro títulos seguidos dos cinco ostentados pela agremiação: “Eu tinha muita vontade de fazer um carnaval com a ‘Gigante’. ‘Gigante’ hoje tem a estrutura de uma escola do grupo A, no Rio de Janeiro, e eu sei que ajudei a deixá-la ainda melhor nesses quatro anos”. Um histórico de bons resultados fez de Hilário o “Neymar” das escolas de samba do Recife, sem dúvida o carnavalesco mais mencionado nas entrevistas realizadas com outros grupos. Completamente conectado às escolas do Rio de Janeiro, Hilário viaja todos os anos para o desfile das campeãs e traz “novidades” para seus trabalhos em Pernambuco. Em 2008, como premiação da Prefeitura do Recife, um “curso de carnavalesco”, no Rio de Janeiro,144 com o então carnavalesco da Mangueira, Max Lopes. Experiência vista por ele como uma das melhores coisas da sua vida. Aí João Paulo (Prefeito do Recife na época) me pagou de premiação um curso de carnavalesco, no Rio de Janeiro, com Max Lopes da Mangueira. Uma semana de curso, de domingo a domingo, tudo pago pela prefeitura, em 2008. Todo dia tinha uma van que pegava a gente de manhã e depois trazia de cinco horas da tarde. A gente passava o dia na Mangueira estudando, foi maravilhoso, eu aprendi muito, pra mim foi uma das melhores coisas da minha vida. Aí eu tive esse conhecimento de fazer um carnaval mais moderno, pra samba, porque o trabalho pra frevo é mais preso, não é tão moderno, não usa roupagens, tecidos, esses tipos de materiais. No samba, a gente pode ousar mais, pode endoidar sua cabeça, fazer suas loucuras, no frevo não. No frevo não tem ala, você pega 4 pessoas aqui, 4 ali e vai formando a brincadeira com 150, 200 componentes. Aqui você vai fazer com 2000, 1500, 1700. Então, quando eu fiz esse curso, lá no Rio, que voltei, eu fiquei muito conhecido na área do samba.
O curso de carnavalesco modificou a sua forma de ver o samba e o frevo. Depois das aulas com Max Lopes, Hilário atribui às escolas de samba “um carnaval mais moderno”, expressão da livre criatividade para “endoidar a cabeça, fazer suas loucuras”. O carnaval das agremiações de frevo, por sua vez, é “mais preso”, “não é tão moderno”, liga-se ao tradicional, diferentemente do das escolas de samba, pautado na “modernidade”. O contato com o Rio de Janeiro, além de provocar uma mudança na percepção de criação do desfile, concedeu a Hilário status positivo, diante dos seus pares pernambucanos. O carnavalesco 144
A Mangueira teve em 2008 boas relações com Recife, devido ao enredo sobre o frevo, desenvolvido por ele. A Prefeitura dessa capital foi uma das patrocinadoras da referida escola de samba.
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tornou-se conhecido na “área do samba”, devido à relação de proximidade estabelecida com o lugar de referência histórica e legitimação estética. Em Recife, entretanto, ter um carnavalesco é artigo de luxo. Em geral, as escolas de samba fazem seu carnaval com curiosos, aproveitando os talentos espontâneos e gratuitos da comunidade ou concentrando as atribuições criativas e administrativas na liderança. Para Hilário, isso é uma falha grave do movimento de samba na cidade; a falta de carnavalesco atrelada às extremas limitações financeiras enfraquece o movimento de samba nas dimensões estéticas e socioeconômica, atenta para uma dinâmica que se retroalimenta: “[...] não se investe nas escolas porque elas são feias e pobres, e elas são feias e pobres porque não se investe, não podem ter um carnavalesco para melhorar”. Assim, para ele, uma escola sem carnavalesco seria inconcebível, é um forte motivo da desestruturação das escolas pernambucanas: “Jamais você vai ver isso no Rio. [...] Um carnavalesco é como uma base. Sem ele é como fazer uma casa sem o pedreiro profissional; faz com um curioso e a casa cai.” Não basta, contudo, ter o carnavalesco, este precisa se aperfeiçoar continuamente. Nos termos de Hilário, o aperfeiçoamento de um carnavalesco vincula-se à apreensão da produção das escolas cariocas, ao contato com o Rio de Janeiro, para novos conhecimentos aplicáveis diretamente ao desfile, bem como à organização do processo de produção. Aqueles que não buscam essa referência, para o carnavalesco, trabalham como se o fizessem “para o frevo”, leia-se, de modo mais tradicional, menos liberto à criatividade: É que eles [os carnavalescos do Recife] são muito fechados para a criatividade, muito tradicionais. Eles trabalham como se tivessem trabalhando pra uma troça de frevo, pra um grupo de bumba-meu-boi, pra um maracatu. Eles não trabalham para samba. Trabalho para samba é trabalho para samba! Por exemplo, se eles vão botar um boi em cima de um carro, eles querem pintar o boi de tinta óleo da cor do boi, sem enfeite nenhum. Já eu não penso assim, quero botar o boi todo enfeitado de balangandã, todo cheio de brilho. Então a minha mente é aberta, aí o meu boi vai ganhar para o dele, porque eu vou entrar com o boi brilhante e ele vai entrar com um boi de tinta óleo, o impacto vai ser grande. Às vezes eles têm o dinheiro, mas não têm quem crie, porque as pessoas não vão lá pra fora buscar, ficam aqui; tem que correr atrás. E, hoje em dia, quem não correr atrás de fazer um belo carnaval no samba vai ficar sempre atrás de ‘Gigante’. Tem que investir em aperfeiçoar, gastar dinheiro, correr atrás, investir. Eu vou pro Rio atrás de melhorar o meu conhecimento.
Hilário se considera influenciado pelos trabalhos dos carnavalescos do Rio de Janeiro, Max Lopes e Paulo Barros. Consoante Hilário, este último é uma inspiração: “Paulo Barros não gosta de luxo, ele gosta de ideias. E aqui a gente só pode ter ideias”. Segundo Hilário, a maior qualidade, ou premissa básica, de um carnavalesco em Recife é a capacidade de criar
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em situação adversa, com recursos escassos. Produzir um desfile bonito com materiais baratos é um desafio que nem todos conseguem, mas, é um aprendizado. De acordo com o seu raciocínio, se ele for para o Rio de Janeiro, terá condição de atuar em qualquer escola, porém, em um movimento inverso, o representante carioca teria muita dificuldade: Eu faço qualquer carnaval no Rio. Aqui a gente tem que fazer de acordo com o que a escola tem pra gastar, você não pode criar mais do que a escola tem pra gastar. Se você tem um cartão de crédito e gasta mais que seu salário, você vai se ferrar. E esse trabalho é a mesma coisa. Aqui você tem que trabalhar com materiais alternativos, baratos, porém que fique uma coisa que agrade, que fique bonitinha, que fique legal e é o que eu faço aqui. No dia dos protótipos, você vai sentir como vai ficar bonito o carnaval, porque é trabalhar com materiais alternativos, mas que agrade ao povo. Já, no Rio, não, trabalham no luxo; você pode trabalhar mesmo, que a turma tem dinheiro pra gastar. Então, é cheio de plumas, fazendo e acontecendo. Aqui tem que ter ideia e saber comprar material barato pra fazer. Essas fantasias de ‘Gigante’ é tudo material barato, não são materiais caros. Já no Rio de Janeiro, eles fazem a mesma roupa, mas com material muito mais caro, de outra qualidade. Porque a qualidade tem seu preço. Uma pluma custa R$14, a gente não pode botar pluma em alas. Então, você tem que ter uma criatividade que agrade a todo mundo e que fique bonito, como foi o desfile de ‘Gigante’ nesse carnaval. A escola, pra Recife, tava linda.
O carnavalesco da ‘Gigante do Samba’ tem grande aceitação, por parte da diretoria Escola, e a comunidade de Água Fria deposita ampla confiança em seu trabalho, sobretudo, depois de campeonatos consecutivos. Cumpre o papel de “diretor-geral do espetáculo” (CAVALCANTI, 2006, p. 72), dirigindo a criação e coordenando a preparação de várias partes do trabalho coletivo para o desfile (BECKER, 1977). 3.1.3 De Poseidon à Iemanjá: o enredo da ‘Gigante do Samba’ 2013 Aprendi com Max Lopes que você tem que pensar num enredo que lhe dê abertura pra você fazer o glamour do carnaval. O enredo desse ano é um enredo de brilho, de visual. Quando eu apresentar as alas, vão sentir isso na pele. Vai ser um enredo forte. Eu tenho na minha mente ‘Gigante’ pronta, dentro da avenida, e eu sei que vai ser o maior e o melhor carnaval que ela vai fazer. Então, só quem acredita nisso sou eu, porque sou eu que tenho ela aqui, no papel, eu que risquei, o enredo é meu, então eu sei que vai agradar e muito. (Hilário)
Cavalcanti (1999p. 82) coloca o enredo na centralidade do processo criativo de uma escola, “sem enredo não há desfile”: O desfile é, em essência, a encenação de um enredo, narrado por múltiplos meios em cortejo linear. Os outros elementos formais – fantasias das alas e dos demais componentes da escola, alegorias e samba-enredo – transformam e ampliam significados já sugeridos pelo enredo. É ele o elemento-chave da forma estética e cultural do desfile: sem enredo não há desfile. (CAVALCANTI, 1999, p.82)
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O Enredo da ‘Gigante do Samba’, em 2013, foi “A Rainha que Canta e Dança em Noite de Lua Cheia no Reinado de Poseidon”. Hilário destrinça sua criação, parte da mitologia grega, considerando-a “uma lenda” e, sob essa condição, não seria História, portanto, descomprometida com a verdade “pode se criar em cima dela”. Pensou ainda, ao escolher o enredo, na conexão direta com o público, pois todos conhecem as lendas. Na verdade, para a composição do seu enredo, o carnavalesco acessou repertórios míticos variados, como os de matriz africana, e lançou mão de seres fantásticos. Expandiu a imaginação, misturou narrativas distintas, produziu um enredo bem recebido pela diretoria da Escola e celebrado pela comunidade. O mais interessante é percebermos o raciocínio e a organização das ideias nas suas próprias palavras: Esse enredo aqui, eu já tinha ele na mente. É um enredo da mitologia grega. É uma lenda e, quando você trabalha com a lenda, você também pode criar em cima. Porque ela não é uma história, é uma lenda viva, na mente de qualquer um. É como se fosse a história da Branca de Neve e dos 7 Anões, que nunca houve, é uma lenda, se você quiser acrescentar mais coisa, pode. Essa história da ‘Gigante do Samba’ é uma lenda. A gente vai falar da história da sereia do mar e de Poseidon que, segundo a lenda, é um deus grego, pai da mitologia. Ele teve muitos filhos e de cada medusa que ele teve relação nasceu um filho com um poder diferenciado. Um dos primeiros filhos dele se transformou num cavalo alado, um em Tritão – metade peixe, metade homem -. Ele em si era um homem muito poderoso, tinha um castelo de ouro no fundo do mar, e uma carruagem onde todos os cavalos-marinhos obedeciam a ele. Quando ele tava com muita raiva dos deuses, ele fazia aqueles trovões, relâmpagos, virava os navios. Fazia isso também quando tinha muito ciúme das rainhas e das filhas dele. Um dos deuses da mitologia teve relação com Anfitrite, e ela fecundou um embrião no mar, feito uma espuma branca, e daí deu a criação da rainha do mar, a sereia. E daí deu outras criações que dominam as águas. [...] Aí você pode dar um mergulho no fundo do mar sabendo que o mar é rico. A noite de lua cheia aparece, porque a sereia cantava quando tinha muito navio no mar; ela cantava pros marinheiros se apaixonarem porque ela era uma mulher devassa que queria se apaixonar por todos os homens. Segundo a lenda, ela levava os navios para o fundo do mar e devorava os marinheiros. Falou em sereia, eu vou trazendo Iemanjá e vou trazendo ‘flores no mar’, que é uma ala toda de pai-de-santo que vem jogando flores pra Iemanjá, porque, segundo a lenda, a sereia é a mãe de todos os orixás e adora rosas brancas. Então, quando fala da lua, segundo a lenda, se diz que o S. Jorge é o guerreiro da lua, então eu tô botando também. Como você tá falando da lua você pode falar também que na noite da lua cheia os lobos se transformam. Mas eu nem vou botar o lobisomem na escola porque é muita história.
Hilário pensa a história a contar na avenida, começa a desenhar as fantasias e alegorias em março. Não há dedicação exclusiva às demandas da Escola, aproveita o intervalo entre os clientes de seu salão de cabeleireiro para os primeiro esboços. Esse processo de criação é completamente individual. Em meados de abril, apresenta o projeto à diretoria da escola, na expectativa de aprovação ou possíveis mudanças, mas, comenta nunca ter havido mudanças
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em seus enredos, sempre aceitos. Marize, uma das diretoras, em outro momento confirma a impressão do carnavalesco, “essa apresentação é uma formalidade”, a questão tange apenas à viabilidade do projeto, não ao conteúdo. É complicado você pensar num enredo, fazer uma sinopse, depois ali você criar os modelos, as roupas, é tudo eu sozinho que faço. Em março, eu começo a fazer os rascunhos. Às vezes eu to trabalhando, aí tenho uma ideia. Quando eu termino o cliente, vou lá dentro e faço um rascunho rapidinho num guardanapo. Aí de noite, quando eu chego em casa, vou aprimorar o desenho. Quando tá fechada a ideia e a maioria dos desenhos, a gente faz uma reunião. Aqui não, é sempre em um restaurante, só com a diretoria. E apresento a ideia do enredo e algumas alas. Ali o que for aprovado, é aprovado, o que não for, a gente monta outra ideia, tem o diálogo. Mas, nesses quatro anos que eu tô aqui, nada foi desaprovado, sempre foi tudo aprovado. (Hilário).
No começo de maio, ocorre a festa do pré-lançamento do enredo145. Assim como a Festa dos Protótipos, trata-se de um evento, inserido no calendário da Escola por Hilário, igualmente inspirado em escolas como a Mangueira e a Beija-Flor. Estas fazem comemoração similar. Ocorre em uma casa de festa da cidade, restrita à diretoria, convidados seletos e possíveis patrocinadores. Após o pré-lançamento, começam os preparativos para o lançamento do enredo, na quadra com a comunidade, o concurso para a escolha do sambaenredo, concomitante aos trabalhos para a confecção das fantasias. No momento da entrevista com o carnavalesco, em setembro de 2012, o Concurso para a escolha do samba-enredo146 da Escola estava no fim. O principal concorrente, Belo Xis, é um conhecido sambista do Recife, puxador oficial da Escola, vencedor do Concurso nos últimos anos, por isso os demais concorrentes levantavam suspeitas acerca da idoneidade do certame. Hilário manifestou sua preferência, embora, avise de antemão não ter nenhuma interferência sobre a escolha final.
Eu acho que tem que ter um samba bom e um enredo bom pra impactar na avenida. Ontem (na eliminatória) ficou o de Belo Xis e o primeiro samba, mas quem vai ganhar é Belo Xis, o dele é o melhor. Aí, depois que ganhar, a bateria vai aprimorar, vai ensaiar em cima do samba, aí a coisa vai mudando. Mas eu não posso declarar 145
Hilário fala sobre a festa do pré-lançamento: “Aqui também nunca teve festa de pré-lançamento, hoje tem por conta de mim. Essa ideia veio de lá e funciona. A festa de pré-lançamento é um festão, a gente faz num Buffet com um telão, e o enredo todo demonstrado em vídeo, depois a gente faz o lançamento da logomarca e depois tem jantar, uísque, gente bacana. A gente só convida patrocinador, não convida ninguém não. O povo vai de paletó, é uma festa de gala. A festa já virou um marketing da escola, todo mundo já diz que, no dia que eu sair daqui, a festa vai continuar, porque virou um marketing de ‘Gigante’. Então Gigante tem muita gente que ajuda”. Ver Fotos da festa no Caderno de Imagens I. 146 Sobre o conceito de samba-enredo, sua relação com a categoria de performance e o concurso de samba enredo, ver Cavalcanti (2006).
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isso, mas no fundo é o samba que eu quero que ganhe. É o único que tem a história que eu vou contar na avenida, fala em São Jorge, em marinheiro e os outros não falam. O samba dele está completo e vai impactar. No Rio é excepcional [as escolhas dos sambas]147. Eu vou agora pro Rio e vou pra quadra da ‘Império da Tijuca’, pra ‘Viradouro’. [É diferente daqui] Lá é muito glamoroso, é muita riqueza, a turma lá luxa mesmo, bota pra arrombar mesmo. A estrutura é a mesma, tem palco, jurado, luzes. Aqui também tem. [...] Belo Xis tá aprontando pra final. Ele mandou fazer mil CDs pra distribuir. Ele tem muita prática, faz samba pras escolas do Rio, ele já tem o dom. Cada um nasce com seu dom, eu mesmo não sei fazer samba, sei fazer carnaval.
Na opinião de Hilário, o samba de impacto junto ao público, com capacidade de representar e relacionar os elementos diversos do expansivo enredo criado, a experiência e a ligação com o Rio de Janeiro credenciaram Belo Xis148 a emplacar mais um samba-enredo, confirmando o favoritismo. O Concurso da Gigante ganha corpo na final, com direito a fogos de artifício, cópias das letras dos candidatos, bandeiras, faixas, a atuação preciosa de uma torcida organizada. O campeão, contudo, não terá espaços de visibilidade midiáticos – não há gravação de CD ou shows- tampouco algum tipo de premiação. A participação é afetiva e a vitória concede apenas sagração entre os muros da quadra, quiçá no mundo do samba pernambucano. O samba é, aos poucos, absorvido pela bateria e aprendido pelos componentes com a repetição nos ensaios, nas festas, realizados de setembro, fim do processo de seleção, até o carnaval. Segue a letra do vencedor do carnaval 2013, a fim de visualizarmos a ideia do enredo apresentado por Hilário: Gigante é amor, é pura paixão/ Explode no peito o meu coração/ É show de alegria, que felicidade/ De verde e branco colorindo a cidade/ Vou mergulhar nesse mar de encantos e magia/ As águas vão purificar meu olhar/ Eu quero ouvir sereias cantar/ São Jorge guerreiro na luz do luar/ Gigante é esse mar de alegria/ Vem da Grécia a mitologia/ Mistérios eu vou desvendar/ Vou navegar no meu barco minha águia vai na proa/ Chuva grossa é tempestade, chuva fina é garoa/ Vou levar minha oferenda, vou jogar flores no mar/ 147
(bis)
A título de pesquisa, tive a oportunidade de observar uma eliminatória do samba enredo da ‘União da Ilha do Governador’, no ano de 2010. Como disse Hilário, a estrutura do evento é similar, porém, em menor proporção, no caso recifense. As eliminatórias (três) movimentavam a quadra da ‘Gigante’, tornando-se importante vetor decaptação de recursos para a agremiação e promotor de sociabilidades, entretanto, não tem o mesmo peso simbólico nem a infraestrutura daqueles realizados no Rio de Janeiro. 148 O samba vencedor era de Belo Xis em parceria com Nino Flor e Jorge Rafael. Em 2013, Belo Xis perde o concurso para o carnaval 2014 e afasta os rumores da predileção.
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Pra Iemanjá/ Uma carruagem dourada cruzando os sete mares avistei/ Puxada pelos cavalos marinhos, me encantei/ Poseidon o rei dos mares, mistérios veio revelar/ Tem pérolas negras nas conchas douradas/ Castelo de ouro no fundo do mar/ Mar, misterioso mar, mar que me faz sonhar o tempo inteiro/ Me dê um banho de emoção, que na sua proteção estão os bravos marinheiros/
Para as escolas de samba pernambucanas, diante das limitações orçamentárias, a concretização do enredo - sua transformação em música, fantasias e alegorias (CAVALCANTI, 2006p. 89) -, é um processo de negociação entre o ideal e o real. Embora a ‘Gigante do Samba’ não represente plenamente a realidade das escolas da cidade149, por se tratar de uma agremiação muito bem estruturada, comparada as demais “coirmãs”, também tem suas dificuldades. A diretoria reconhece a posição privilegiada da Escola, afirma ser resultado de “muito trabalho”, esforços concentrados em busca de patrocínios privados, parceria com a comunidade de Água Fria e o movimento empreendedor de realizar shows particulares com a bateria durante o ano, sem dúvida a mais requisitada entre os grupos da cidade. Vale ressaltar a importância de ter uma sede150 com espaço físico grande, disponível para abrigar eventos da Escola ou para ser alugada151, produzindo recursos. O presidente Rivaldo Lacerda compara os orçamentos do Recife e o que ele acredita gastar uma escola do Rio de Janeiro, para dimensionar os gastos da ‘Gigante do Samba’, atentando para as dificuldades dos demais grupos da cidade em situação econômico muito mais fragilizada: Como no Recife é o frevo, no Rio de Janeiro é o samba. Eles têm um orçamento de 15 milhões ou mais, uns 20 milhões. Aqui, pra gente sair decente, o mínimo, seria um orçamento de R$ 70.000, R$ 80.000. Nenhuma consegue, ficam dependendo dos 12 mil da Prefeitura e não correm atrás. Mas a ‘Gigante do Samba’ supera tudo isso. A ‘Gigante do Samba’ fez um orçamento esse ano de R$ 180.000, isso é uma coisa inédita. Para a gente conseguir uma verba dessa, para botar uma agremiação na rua, é difícil, mas com esforço nosso, da comunidade dos comerciantes do bairro conseguimos fazer isso aqui. A gente aqui sai na frente por causa da nossa união, a gente faz festa pra angariar o dinheiro, vai pra comunidade, vai pros 149
‘Gigante’ possui sede própria, uma enorme quadra, já participou de eventos no Brasil – Rio de Janeiro e São Paulo, bem como no exterior, passando por Portugal, França, Bélgica, Alemanha e duas vezes pelo Japão. Conta Soldado, um dos diretores da Escola: “Fomos para a Alemanha no ano que derrubaram o muro de Berlim, nós visitamos aquele muro. Foi o dia mais triste na Europa. Pessoal explicando que do lado oriental era comunista, só tinha alguma coisa se o Governo deixasse, só tinha um carro se o Governo quisesse. E tinha as catacumbas das pessoas que tentaram atravessar e foram fuziladas. A gente fez até um samba lá”. 150 A sede da ‘Gigante do Samba’ foi doada na década de 1980, pelo Prefeito Gustavo Krause, que também fez doação para a escola Samarina, no bairro de Afogados. 151 Em geral, nos fins de semana, ocorre, na sede da ‘Gigante’, um “brega”. Festa com MCs de brega muito comuns na periferia recifense. A organização é de um produtor independente, e a Escola ganha com o aluguel do espaço, ou o pagamento pode ser a divisão da bilheteria, ou do bar. Uma renda certa que ajuda a manutenção do espaço e entra no orçamento do desfile.
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empresários do bairro, eles ajudam, a gente faz a escola com muita dificuldade, não estamos nadando em dinheiro como as nossas coirmãs dizem. Desde São João que a gente trabalha muito, quando chega perto do carnaval, a gente tá pronto, a Escola sai bonita. [...] A gente ainda tem um espaço desse, e nossas coirmãs? Tem coirmã que disputa com a gente que não tem nem uma casa pra fazer seus ensaios, faz na rua. É complicado fazer samba em Recife. No Rio, tem as categorias de A a F, a todas elas a Prefeitura dá o barracão para elas fazerem as alegorias. Aqui a gente paga R$ 6.000 por 35 dias no barracão na cidade. A gente começa por aqui e, quando vai chegando mais perto, leva pra lá pra terminar a montagem. A gente não pode passar dois meses porque senão vai pra R$ 10.000. No Rio, a Prefeitura tem os barracões antigos pras escolas montarem as alegorias, enquanto que, aqui em Recife, tem esses galpões velhos, mas eles não fazem isso.
3.1.4 As fantasias e a “teoria da invasão chinesa” Após a festa de pré-lançamento, ocorre o lançamento do enredo para a comunidade, em meados de maio e, “a partir do São João”, como disse Lacerda, indicando o mês de junho, começam os trabalhos de produção de fantasias e alegorias. Como também explicou o presidente, por uma questão de economia, na ‘Gigante’, quase tudo do processo criativo é feito na quadra152, ou em espaços no entorno da comunidade153, até dezembro ou janeiro, quando é alugado um galpão para ser o barracão, com mais espaço para fazer as alegorias, próximo do centro do Recife. Em outras escolas, até mesmo do grupo especial, como a ‘Unidos de São Carlos’, tudo é feito na rua ou nas casas dos componentes, vizinhos e quintais disponíveis de préstimo; não há quadra tampouco barracão. Os esforços iniciais do carnavalesco voltam-se à preparação dos protótipos das fantasias, o primeiro exemplar a servir de modelo para a confecção das demais. Do mesmo modo como ocorre no Rio de Janeiro (CAVALCANTI, 2006, p. 189), depois de prontos, os “diretores de ala” se responsabilizam para confeccionar, vender as roupas, ou seja, organizam sua ala. Hilário, assumida e orgulhosamente, trouxe do Rio de Janeiro esse modelo para a ‘Gigante’. Em seus termos, copiar a organização das escolas cariocas é uma forma de modernizar o mundo do samba pernambucano, todas deveriam seguir para “não ficar para trás”154:
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Na ‘Gigante’, por vezes, a expressão barracão quer dizer a quadra e o trabalho de elaboração do desfile. Hilário conta que as alegorias estavam sendo feitas em Água Fria, um bairro vizinho, na casa de uma pessoa que tinha um terreno grande e fez um “preço camarada”. 154 Cavalcanti (2006, p. 189) descreve o esquema de produção de fantasias utilizado pela Mocidade Independente de Padre Miguel desde 1992: “[...] Excetuando os destaques, mestre sala e porta-bandeiras, que são fantasias únicas, a reprodução das fantasias se fazia a partir de um primeiro molde exemplar denominado protótipo, confeccionado no barracão. Uma vez pronto os protótipos, sua reprodução era realizada nos ateliês dos chefes de ala [geralmente instalados nas suas próprias casas] e era comercializada por eles”. 153
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A forma de organização da escola é parecido com o que eu aprendi no Rio. Antigamente Gigante também não tinha essa estrutura, eu que trouxe essa informação. A estrutura de primeiro era assim: Gigante fazia todas as roupas, aí, no dia, vinha aquele bolo de gente pegar a roupa, era uma danação. Hoje aqui tem diretores de ala, como no Rio. Aquela senhora ali é diretora da ala de São Jorge, ela tem todos os componentes dela. Ela vende, ela que resolve. Quando chega o dia, ela já tem todo mundo certo, ela que vai distribuir a roupa, ela que vai se virar com tudo. No dia, cada um pega seu ônibus e vai pra avenida. Aí lá eu vou ter um papel já com a escola montada ala por ala, cada diretor tem um papel desse, com o nome da ala dela, aí ela já sabe onde ela vai se localizar, atrás de tal carro, de tal ala. Na hora que começa arrumar a escola, todo mundo já sabe que setor vai ficar. Não tinha essa ideia aqui, foi eu quem trouxe. As escolas daqui não usam isso não. E hoje a que não copiar ‘Gigante’ não vai conseguir fazer carnaval direito, porque toda a ideia de ‘Gigante’ eu trouxe do Rio que é a matriz, a modernidade. (Hilário)
Marize confirma as dificuldades na organização da confecção e da distribuição das fantasias, antes do modelo trazido por Hilário; considera tal modelo um sucesso. A distribuição dos protótipos para os diretores de ala se dá depois da festa de sua apresentação, quando é repassado já com o valor do custo da fantasia e a sugestão do preço de venda, pensando na margem de lucro para o diretor de ala. Assim como no Rio de Janeiro, o diretor de ala monta seu próprio protótipo (CAVALCANTI, 2006, p. 215) e precisa vender, no mínimo, 50 (cinquenta) fantasias. Três alas são da comunidade155, e a Escola dá toda a roupa. Todavia, para além das três alas da comunidade, o presidente doa mais fantasias para as pessoas sem dinheiro para arcar com os custos e que não tenham conseguido espaço nas alas gratuitas. Relata Marize: Antes era uma zona, agora está uma maravilha. Cada ala tem um representante, e ele resolve tudo. O carnavalesco faz os figurinos, aí numa certa data ele faz a festa dos protótipos, onde ele convida os representantes de ala que escolhem os figurinos que querem. Aqui, graças a Deus, os representantes são responsáveis, estão sempre participando, já procuram ele antes do protótipo. Aí vêm pra aqui, fazem o seu próprio protótipo, por exemplo, Dona Nana, Dona Sílvia, Lídio. Aí as pessoas, quando veem os protótipos, dizem ‘a ala de Dona Naná tá bonita, vamos procurar ela’. Aí ‘Gigante’ esse ano saiu com 23 alas, sem contar com a ala de composição, baiana, bateria. [...] Na gestão de Lacerda, ele é muito pai. Todo o material quem compra é a Escola e, às vezes, até a costura é a Escola que paga, manda pra cooperativa, ali na Av. Norte. A pessoa que quer sair compra essa roupa ao representante de ala. Lacerda diz quanto custou a roupa e sugere o preço de venda. O lucro geralmente fica pra quem vende, porque nem todo mundo presta conta 155
Diferentemente das queixas das lideranças das agremiações de frevo, na ‘Gigante’ ninguém recebe para desfilar. Há, na verdade, uma demanda de mais componentes que não desfilam porque não podem pagar as roupas: “Ninguém recebe cachê, tem pessoas que a escola banca 80% da roupa, mas ninguém recebe nada, é amor mesmo. Aqui o povo paga pra desfilar. No dia do desfile é muita gente procurando as camisas pra ir pra avenida. É porque as pessoas ainda não são empreendedoras, porque demanda tem. Um dia a gente tem que focar nisso de empreendedorismo, com qualidade e saber que aqui dentro tem essa sustentabilidade.” (Marize). Movimento similar existe nas quadrilhas juninas do Recife. Todos os participantes pagam para dançar, e há um exército de reserva para dançar, caso a quadrilha possa ceder a roupa ou haja uma desistência nas vésperas do ciclo junino (Menezes Neto, 2008).
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direitinho. O diretor de ala tem que se virar pra colocar 50 pessoas na ala, mas não é difícil não. E tem três alas que é da comunidade, é tudo de graça. Mas, na verdade, tem muita ala que vem com gente de graça porque sempre aparece gente dizendo que não tem condições. Não dá lucro, mas desse jeito dá pra pagar a quem deve e fazer um carnaval belíssimo. Agora tem que ser igual a Lacerda que compra à vista e pechincha com todo mundo. (Marize, diretora, Gigante do Samba).
As fantasias da comissão de frente, mestre-sala e porta-bandeira, rainha da bateria, bateria e baianas não entram nesse esquema, são confeccionados na quadra ou na casa de Hilário, por se tratarem de itens de julgamento ou de fantasias de maior importância para o conjunto156. Os destaques, em geral, são contratados/alugados de artistas da cidade, participantes dos concursos de fantasia do circuito de bailes de carnaval fechados, como o Baile Municipal ou o Bal Masquê. A confecção da roupa da porta-bandeira apareceu na fala de Hilário como exemplo emblemático da diferença entre a “visão moderna”, instalada por ele na ‘Gigante’, e a “visão arcaica”, reproduzida pelas outras escolas da cidade que não diferenciam o “trabalho para o samba” e o “trabalho para o frevo ou para o maracatu”. Para ele, Pernambuco é “fraco em termos de fantasia”, as roupas das portas-bandeiras das suas concorrentes parecem de baianas de maracatu, não têm o “glamour diferenciado do samba”, cujo espelho é o Rio de Janeiro. Em sua reflexão, as escolas pernambucanas aparecem alojadas em dois pólos distintos, mediados pela aproximação e distanciamento dos conteúdos provenientes do desfile carioca: ‘Gigante’, de um lado; as demais, do outro. Igualmente, Pernambuco e Rio de Janeiro ocupam lugares distintos, a partir do sentido de desenvolvimento do samba, “lugar em crescimento”, “lugar sem esse crescimento todo”. A porta-bandeira, eu faço sozinho na minha casa, ninguém vê, só a minha família que me ajuda. A porta-bandeira desse ano vai ser toda branca e champanhe. A gente não aproveita a roupa do outro ano não, é tudo novo, é a escola que dá. Então a roupa desse ano vai ficar cara, a gente já comprou. Eu creio que ela vá ganhar de novo esse ano (o concurso de porta-bandeira). Pra você ver como é fraco em termo de fantasias aqui em Pernambuco, nas outras escolas as roupas de porta-bandeira parecem de maracatu, não parece de porta-bandeira de escola de samba. Porque porta-bandeira tem um glamour diferenciado, é um trabalho voltado pro samba, feito no Rio de Janeiro. Eu acho muito arcaico, uma coisa muito presa na mente das pessoas. É como se você fizesse uma faculdade nos Estados Unidos, e eu fizesse aqui. É claro que a gente vai ter uma ideia completamente diferente porque você estudou em um lugar de crescimento e eu estudei num lugar sem esse crescimento todo. Então você tem uma ideia muito diferente da minha. A diferença daqui é essa. Eu corro atrás, eu vou em busca do negócio, eu vou pra dentro do samba, da montagem do carnaval do Rio de Janeiro e o povo aqui não vai, 156
Esse mesmo grupo de fantasias também não entrava no esquema de confecção e distribuição no Rio de Janeiro, descrito por Cavalcanti (2006, p. 189). Eram feitas no barracão ou em um ateliê particular sob encomenda da Escola.
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só conhece mais do frevo. Então, quando vai bolar uma fantasia, sai da cabeça deles, não ai, a diferença é essa.
Além da mudança organizacional, Hilário afirma ter provocado modificações estéticas nas fantasias da ‘Gigante’ igualmente a partir repertório do Rio de Janeiro. Hilário participa do desfile das campeãs cariocas todos os anos. Não vai apenas para se divertir, encara a viagem como um aperfeiçoamento, vai em busca da fonte de inspiração e volta com novas ideias. As limitações financeiras, as de material, entretanto, exigem adaptação e criatividade. Logo, não se trata de uma cópia, nem se essa fosse a intenção seria possível, é um novo trabalho inspirado na matriz estética dessa manifestação popular. Todo ano eu vou para o desfile das campeãs. Mando fazer minha roupa e vou desfilar na ‘Beija-Flor’. Eu assisto ‘Gigante’ na avenida e viajo na quarta-feira de cinzas, a passagem já tá comprada. Eu me inspiro muito, quando eu to fazendo as fantasias aqui, eu fico me lembrando do que vi lá, pra ver se sai alguma coisa que preste. É inspiração mesmo: você vê um trabalho e cria o seu em cima dele, mas, com seu material diferenciado. Essa roupa mesmo (ele mostra) foi copiada de uma da ‘Beija-Flor’, mas no lugar desses babados, era pluma, e o meio era todo bordado de lantejoula, muito luxo. Como ‘Gigante’ não pode luxar muito, mudei... mas tá bonito. (Hilário)
Insisti com meu interlocutor para qualificarmos melhor a ideia de cópia. Perguntei o que ele achava de copiar, e ele elaborou a “teoria da invasão chinesa”: todos nós nos copiamos, e os produtos chineses servem de exemplo de um mundo de cópias. Segundo Hilário, as ruas do Recife estão invadidos por chineses e seus produtos criados, a partir de uma ideia originalmente concebida nos Estados Unidos, porém de menor qualidade. Os chineses se esforçariam para não deixar transparecer a cópia tornando-a muito similar à original. As escolas de samba do Recife, por sua vez, devem seguir outro caminho, pois não conseguiriam copiar de forma absoluta as fantasias do Rio de Janeiro sem o dinheiro, o material e a tecnologia necessários. Assim, é preciso mexer na ideia original do Rio de Janeiro e usar a criatividade para não deixar ninguém perceber a imitação para não ser “mau visto” adaptar à realidade e mascarar a cópia esse é o segredo-. Para exemplificar, o carnavalesco mostra, nos protótipos prontos em seus manequins, as suas inspirações e adaptações. Aproveita para relatar um caso acontecido com ele no começo dos anos 2000, quando era carnavalesco da Escola ‘Deixa-falar’. Seu presidente, na época, foi ao Rio de Janeiro e comprou o figurino de 50 baianas da ‘Mocidade Independente de Padre Miguel’. Não houve
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tempo para as devidas modificações, os jurados perceberam se tratar de uma cópia e tiraram pontos da agremiação: Eu também gosto muito do carnaval da ‘Beija-Flor’. E, quando você vive no meio, você vai aprendendo. Não é vergonhoso copiar nada, porque hoje o mundo é feito de cópia mesmo. Não é à toa que a cidade está invadida por chineses com cópia de CDs, jogos eletrônicos, bolsas, óculos, celulares “ching ling”157, de tudo que a gente possa imaginar. Eles pegam a ideia boa, original, dos Estados Unidos e copiam do jeito deles, com os materiais mais baratos. Fica de menor qualidade, claro, mas servem igual e às vezes você nem percebe que é made in China. E eu acho que você me copia, eu copio você e o mundo é assim mesmo. O meu eu faço, mas não dá pra perceber que é cópia. Por exemplo, aquela roupa eu criei a minha ideia em cima da ideia dos orixás da ‘Beija-Flor’. Se eu ver em outra escola, eu reconheço porque eu acompanho muito, até as escolas do Rio copia uma às outras. São Paulo copia muito o Rio, quando eu vejo São Paulo desfilando, eu digo a todo mundo: essa roupa ele copiou de tal escola. E eu admito algumas cópias mais fortes, como a bateria desse ano, que eu vou botar toda de marinheiro, idêntica ao oficial da Marinha, inspirado na minha ‘Beija-Flor’ no ano de Roberto Carlos. [...] Ele Nielson da ‘Deixa falar’ - foi no Rio de Janeiro e comprou 50 baianas da ‘Padre Miguel’, já pronta do carnaval passado e comprou umas fantasias e trouxe. A gente fez uma reforma nas roupas, e a escola parecia mais uma ‘Padre Miguel’ na avenida e todo mundo sabia. Aí nós perdemos o carnaval por conta disso, no dia da pontuação, o homem disse que a ‘Deixa Falar’ ia perder tantos pontos, porque tinha trazido fantasias do Rio de Janeiro, de outras escolas. Aí eu me chateei, por conta disso saí da escola.
Protótipos prontos, a serem entregues para os diretores de ala após a Festa. O carnavalesco e a diretoria da Escola estavam naquele momento, em meados de setembro de 2012, completamente mobilizados para o evento. Depois dele, o trabalho na quadra vai gradativamente diminuindo, restam a produção das roupas das baianas e a da bateria. Na sequência, o trabalho com os carros alegóricos ganha mais força, a princípio nos lugares dispersos pelo entorno da comunidade, onde estão sendo feitas as alegorias e, quando da proximidade do carnaval, no galpão alugado pela Escola, no centro da cidade para seu barracão158.
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Expressão usada no Recife para designar os produtos não originais, em especial, os chineses. Na ‘Gigante do Samba’, as alegorias são a parte mais cara da escola, segundo Hilário. Em 2013 as maiores alegorias serão um Poseidon e uma sereia, mas boa parte é reaproveita, com modificações de um ano para o outro, como um cavalo alado de 2012, que vai se transformar no cavalo de São Jorge de 2013. A águia, símbolo da Escola, também é reutilizada há alguns anos. Quando comparada às escolas do Rio de Janeiro, as alegorias, mais do que outros itens, denunciam a estrutura financeira debilitada das escolas pernambucanas, mas Hilário revela seus segredos de pentacampeão: “O trabalho do samba você tem que abrir muito bonito, com muito impacto e encerrar com impacto. O miolo é o miolo, porque a comissão julgadora fica com aquilo da abertura e do término com impacto. Então esse é o segredo do carnaval, uma boa alegoria no começo e outra para fechar, no meio a gente faz o que pode”. Nos momentos finais da produção, cerca de quinze pessoas trabalham no barracão, diretamente com as alegorias. 158
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3.1.5 A ‘Festa’159 No dia da ‘Festa dos Protótipos’, os componentes que servirão como modelos para o desfile chegam mais cedo à quadra. Às 21h, todos deviam estar prontos: maquiados, roupas ajustadas, adereços, cabeças e sapatos organizados. Hilário coordena os preparativos, é perfeccionista e centraliza os trabalhos: “Eu penso em tudo, até no sapato, aqui sai todo mundo igual, não tem cada um com seu tênis não. Todo mundo, lindo, maquiado, na ordem do desfile, eles representam o meu trabalho”. Reúne todos e explica a ordem da apresentação, a mesma da sequência do desfile do carnaval, termina e sai do camarim improvisado. A diretoria também chega cedo, é uma festa trabalhosa, muda o espaço da quadra. Instala-se uma passarela no meio do salão, por onde desfilarão os protótipos, e uma iluminação especial com luzes coloridas, além de canhões de papel picado e fogos de artifício. O teto e a própria passarela foram decorados com malhas, priorizando as cores da escola, verde e branco. Cadeiras rodeavam a passarela e logo foram ignoradas pelo público que veria o desfile de pé. Os ritmistas se organizam, e a bateria esquenta o salão antes e durante o desfile. O Rolo Compressor dá início ao evento com a “casa cheia”, como eles costumam falar, e executando o samba-enredo vencedor com insistência para incorporá-lo à Escola160 e para entreter o público, pois o desfile atrasa uma hora. O carnavalesco me convidou para assistir ao desfile no palco, em frente à passarela, onde pude conversar com ele e com a diretoria momentos antes da apresentação das fantasias. Hilário fala sobre o orgulho por ter trazido “direto da quadra da mangueira” um evento considerado bem sucedido e que atende às “tendências no mundo do samba”: Eu trouxe a ideia da festa dos protótipos do Rio para a ‘Gigante do Samba’ inovar. Eu estava na festa dos protótipos da Mangueira no ano em que ela falou do frevo e pensei que poderíamos fazer isso aqui igual. Esta festa que você vai presenciar é parecida com a que tem lá, não deixa a desejar as de lá, é um sucesso porque é uma tendência no mundo do samba. Eu modernizei a escola, tirei do arcaico que ela estava. [...] Eu digo que gigante seria uma ótima escola do grupo ‘A’, do Rio de Janeiro.
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Ver imagens da festa no “Caderno de Imagens I” no fim deste capítulo. Movimento igual ao registrado por Cavalcanti (2006, p. 205) na ‘Mocidade’. Nesse relato Cavalcanti ressalta que a bateria não acompanhou o desfile, tocava na Festa do Rio de Janeiro o CD com a gravação do samba-enredo, o que ocorre no caso pernambucano. 160
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Para Do Carmo, a secretária da Escola, a Festa dos Protótipos dá uma satisfação à comunidade da produção e serve, sobretudo, como marco do início da produção e de venda das fantasias:
Essa festa dos protótipos tem o tempo que a gente (a diretoria) tem na casa, 5, 6 anos. É a apresentação das fantasias do próximo ano. É pra comunidade, para agradecer o apoio e para ela se alegrar, se animar. A partir do momento que veem as fantasias, é tiro e queda, as pessoas se animam e botam pra quebrar. (Pra diretoria) é a melhor parte, é o orgulho da escola, é mesmo que ela já tá desfilando porque é uma de cada, mas daí você sabe que vão ter 60 peças de cada. Aí agora que começa realmente o trabalho. (Do Carmo, secretária da Gigante)
Há também uma dimensão visual e didática importante. A audiência, incluindo a diretoria, além de mais uma vez ouvir os detalhamentos sobre o enredo, vindos do próprio carnavalesco, pode agora visualizá-los por meio das fantasias. Assim, a apresentação ajuda a compreensão da narrativa a ser exposta no carnaval e provoca expectativas. Observou Marize: “A festa dos protótipos é onde a gente fica pensando como a escola vai sair. Ver as pessoas desfilando com as roupas dá para imaginar como vai ficar”. Aproveite e perguntei a Marize se poderia acontecer de a diretoria ou de a comunidade não gostar muito de uma ou outra fantasia, agora quando visto o conjunto de todas elas. A sua segunda resposta complementa a primeira. Embora, a partir dos protótipos, seja possível projetar uma imagem do desfile, o carnaval é imprevisível; além disso, a performance dos desfilantes para “dar vida” à fantasia conta para a beleza da ala. Agora não tem mais jeito, é assumir o risco. Geralmente acontece, mas o que conta é o todo. Realmente tem coisa que a gente não gosta, mas está dentro do conceito e às vezes aquilo que a gente não gosta é o que mais brilha. Porque às vezes o chefe de ala faz uma coreografia que abala. Então passa a ser outra coisa. Os desfilantes dão vida à fantasia. A fantasia vai muito da criatividade de quem tá vestindo. Aqui cada ala tem seu responsável e funciona, quem é que não quer ter o orgulho de ver seus habitantes?
O presidente, ladeado por toda a diretoria, fez o discurso de abertura e pediu o empenho da Escola “rumo ao hexa” em 2013, ressaltando o teor de projeção, de futuro, imbuído nessa festa: “Essa é uma festa para a gente já imaginar o futuro, quão bonita vai sair a nossa Escola, para vencer e ganhar o hexa”. Lacerda passou a palavra para o carnavalesco fazer o seu discurso e publicamente faz a conexão entre a ‘Gigante’ e o Rio de Janeiro:
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Queria pedir desculpas pelo horário, mas é uma luta pra organizar esse trabalho. Demorou, mas vai valer a pena, eu tenho certeza que o trabalho tá muito bom e mais uma vez ‘Gigante’ vai fazer um belo carnaval. Não sei se a gente vai ser campeão, porque só quem sabe disso é Deus, mas nós lutamos e tentamos pra fazer um carnaval belíssimo pra vocês. Primeiramente, eu quero agradecer a duas pessoas que lutou muito nesse protótipo, Dona Sílvia e Iara e a equipe do barracão. Lutamos muito hoje para organizar essa festa, muito obrigado, em nome da Diretoria. Eu queria avisar a vocês que aqueles que quiserem desfilar nas alas procurem nossos diretores de alas. Aqui na ‘Gigante’ igual ao carnaval do Rio de Janeiro. Cada ala tem uma pessoa à frente dela, é organizado. Quero dizer também que faltam 4 meses para o carnaval, mas a escola está bem adiantada e é isso aí, nós vamos tocar o barco pra frente e vamos fazer um carnaval lindo de morrer na avenida. [...] Então vamos começar.
Em seguida, as luzes centrais foram apagadas e a iluminação especial, mais cênica, marcava a decoração do desfile. Cores fortes realçavam as fantasias e atribuíam um charme à passarela. Hilário segue convocando as alas pelos seus nomes, uma a uma, e a fantasia era apresentada por um breve texto feito pelo próprio carnavalesco. O público reagia com intensidade e era ainda mais contundente quando o desfilante realizava uma performance animada, ou quando a fantasia chamava atenção. Na Festa dos protótipos, o carnavalesco e as fantasias são o centro do evento. Porém, ao fim da festa, os diretores de ala assumem a responsabilidade de concretizar o que foi apresentado, longe da batuta do carnavalesco; este, por sua vez,
dedicar-se-á a outros
elementos do desfile, como as alegorias. Nessa dinâmica, Hilário encontraria suas fantasias quatro meses depois da Festa dos Protótipos, já na avenida, todavia, ele se coloca disponível para dúvidas e se lança na fiscalização do trabalho dos diretores de ala, afirma: “não consigo me desligar totalmente das minhas criações”.
Eu como carnavalesco, depois a festa dos protótipos, teoricamente teria folga das fantasias. A Escola se vira pra colocar na avenida junto com os diretores de ala. Só veria isso agora no carnaval como o povo do Rio faz. É muita gente envolvida, é muita gente trabalhando. Cada diretor de ala tem sua equipe, então são equipes espalhadas que eu coordeno de longe e, às vezes de perto, quando vou visitar. Antigamente era tudo feito aqui, era desordenado, descoordenado. Eu fico procurando saber como está, vou nas casas dos diretores de ala para ver como está. Caso eles não acertem fazer, eles vêm aqui na quinta à noite, e eu faço na frente dele pra ele ver como é. (Hilário)
Ao terminar as apresentações, a festa continua na quadra. A bateria para, mas o brega eletrônico recifense estronda nos caixas de som. A parcela mais jovem da plateia fica, o bar se mantém aberto, música e bebida garantem consumo e diversão até a madrugada. Cavalcanti (2006, 206) analisa a Festa dos Protótipos da ‘Mocidade Independente de Padre Miguel’
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como menos uma festa do que reunião de trabalho festiva161. O caso recifense parece ser diferente, a ambiência é bastante festiva. Os dois eventos, porém, igualmente demarcam a introdução das alas “diretamente no processo de produção do carnaval” (ibdem). 3.2 A ‘Noite das Baianas’ Segundo Cavalcanti (2006, p. 218), toda escola do Rio de Janeiro faz anualmente uma festa das baianas, “na qual elas oferecem tradicionalmente um banquete”162. Na ‘Gigante do Samba’, há a “Noite das Baianas”, também em homenagem às mulheres mais antigas, pelas quais a escola têm grande respeito e deferência. Embora possa haver alguma relação entre a celebração nos dois estados, o evento da escola recifense apresenta singularidades. Trata-se de uma noite especial que envolve elementos da tradição pernambucana e segredos religiosos do candomblé. 3.2.1 As baianas da ‘Gigante do Samba’: o coração da Escola
As baianas são uma ala de evolução. Como as demais alas da escola, à exceção da bateria, não são julgadas por nenhum quesito específico. Ocupam, todavia, um lugar especial no conjunto das alas, e no desfile evoluem segundo uma coreografia característica e muito apreciada: giram de tempos em tempos em torno do próprio corpo, rodando sua ampla saia na avenida [...]. A ala compunha-se obrigatoriamente de senhoras. (CAVALCANTI, 2006, p. 217 - 218)
Marize Félix, além de coordenar a bateria mirim, é a diretora responsável pela ala das baianas. Para ela, essa ala ocupa, de fato, “um lugar especial no conjunto das alas”. São as senhoras da Escola, associadas ao arquétipo da Grande Mãe163, portanto, vistas como mãe de todos, a serem tratadas com o devido respeito. Como matriarcas, são mulheres mais velhas, avós, bisavós, guardiãs das memórias da família de sangue, da “família do samba”, mantêm uma relação de reverência e afeto por parte dos demais integrantes. Na perspectiva de Marize, percebe-se se uma escola de samba é boa, no que se refere à observação da sua ala de baianas. Em sua teoria, quando essa ala é grande e bem apresentada, 161
“Embora denominada festa, a apresentação dos protótipos às alas, pelo seu caráter interno e setorizado, pode ser melhor definida como uma reunião de trabalho festiva” (CAVALCANTI, 2006, p. 206). 162 Cavalcanti (2006, p. 218) informa que no ano de sua pesquisa, em 1992 houve uma reivindicação das baianas para elas não precisarem preparar um banquete. Queriam ganhar a festa e divertirem-se. 163 Micea Eliade (1992, p. 73) discute a produção simbólica em torna da mulher, a partir da categoria jungana do arquétipo da Grande Mãe. Para Eliade, a fecundidade feminina gera um modelo cósmico: o da Mãe Universal.
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denota uma escola igualmente bem estruturada, pois se trata de mulheres “com história” na agremiação; cuidar delas é “cuidar da história da escola de suas tradições”. História, tradição e afetos são partes fundamentais, ao menos no âmbito das representações, para o organismo de uma agremiação de carnaval, e as baianas são legítimas representantes desses pilares: Falar de baianas em uma escola de samba é como falar de uma parte importante do corpo, como o coração. A escola que tem uma bela ala de baiana, você pode ver que essa é uma escola estruturada, uma escola que tem união e amor. Uma escola que, em Recife, sai com 50 e 60 baianas, é uma escola articulada, que tem muita história. Primeiro porque a ala das baianas é uma ala de pessoas que estão dentro da escola de muito e muito anos. [...] Temos um grande grupo, uma ala de baiana maravilhosa, se você ver uma escola com um grupo assim, pode escrever, é um grupo com potencial. (Marize)
A atenção dada ao coração da ‘Gigante’ se reverte também em ações para qualidade de vida dessas mulheres. Marize organiza encontros festivos entre elas para fortalecer os laços, promove passeios, e também acolhe um projeto da Prefeitura do Recife de educação física especializada para terceira idade, na quadra. Ela entende essa atenção como “trabalho de humanização”: “É um grupo que emana muito amor, mas são mulheres pobres, de idade, sofridas, mulheres que precisam receber de volta respeito, atenção e cuidado que às vezes a vida não deu”. O reflexo desse trabalho, conforme ela, pode ser visto e sentido no amor pela escola, no ânimo para o carnaval, por elas manifestados:
A ‘Gigante’ sempre teve muito cuidado, muito carinho pela ala das baianas. Só que hoje a gente vem buscando cuidar melhor delas, exercer um papel social, um trabalho de cidadania. Hoje elas têm grupo de passeio, elas têm exercício físico dentro da escola. Aí a gente percebe que elas ganharam mais ânimo, se sentem em grupo. E, quando elas se vestem e cantam, com toda a energia e amor, nos ensaios e na avenida, mais do que qualquer outra ala, eu penso que só pode ser fruto desse trabalho de humanização. Quando elas entram na avenida, arrancam aplausos da emoção. Entenda, não pelo visual, mas é a força de cada uma delas, mulheres poderosas, fortes. Cada uma com a sua personalidade, mas todas com uma história para contar e, acima de tudo, todas amando ‘Gigante’.
A Escola paga a roupa da ala das baianas. A diretoria justifica a isenção pela difícil situação financeira da grande maioria delas, acreditam também ser um gesto de respeito e carinho com o grupo. Explica Marize: A estrutura para a ala das baianas funciona assim: o carnavalesco desenha o figurino, e a gente, junto à diretoria, vai fazendo o protótipo, pegando todo o material que vai fazer parte do contexto daquela fantasia, e vai fazendo o orçamento em cima da quantidade de pessoas. Diante disso, o carnavalesco viaja, a escola tem um caixa e, dentro desse caixa, e a prioridade é comprar as roupas da ala das
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baianas, da bateria, do pessoal de frente. Lacerda, o presidente, e o carnavalesco Hilário vão ao Rio de Janeiro, compram o material e, quando voltam, a gente já tem tudo custeado. A gente faz alguns eventos, como a feijoada das baianas, 2 vezes por ano, tem o evento da Noite da baianas, que é um dos mais fortes, outros recursos também, rifa, picnic, cotinha e é assim que a coisa funciona, é bem do pequenininho pro grande. E, quando chega no final, a roupa pronta, essas baianas não tiram do seu dinheiro. Até porque a maioria não tem condições, são empregadas domésticas, ganham salário mínimo, são lavadeiras, diaristas, manicures. Então, desde a gestão de Lacerda, a gente fez questão de não receber dinheiro. Elas são prioridade, mas outros segmentos, a gente também não quer dinheiro, a gente vai até onde pode na simplicidade, mas o intuito é que os figurantes, sambista vá (sic.) pra avenida satisfeito, bem vestido e sem tanto custo, sem tirar da sua fira, da sua despesa, a roupa. Aí elas ganham suas roupas e até o transporte delas [das baianas], a gente tem gratuito pra levar pra avenida.
Uma semana antes da ‘Noite das Baianas’, Marize solicitou minha ajuda para a elaboração de um vídeo164 com as baianas, cujo conteúdo previa capturar alguns depoimentos sobre a relação delas com a Escola, para exibição no evento. Aceitei e, no dia marcado, na quadra, estavam reunidas trinta baianas em uma grande roda. Uma oportunidade única de ouvir histórias sobre a agremiação, inevitavelmente misturadas com as histórias de vida e de morte165 de cada uma daquelas “mulheres poderosas”. Essa roda mostrou o quanto elas também se veem como a “Grande Mãe”, como representantes da história, da tradição da ‘Gigante’. Destaca-se também o vínculo afetivo profundo que o grupo sente entre si e com a Escola, bem como a relação, nem sempre explícita, com o sagrado, as baianas detêm o axé: Eu to com 73 anos e estou na ‘Gigante’ desde que nasci. Mas eu não podia desfilar quando era muito menina, mas aos seis anos comecei a desfilar, até hoje. Agora que eu não posso mais desfilar, porque eu estou com meu joelho doente, sofro por isso [...]. Mas não perco o desfile, só quando morrer. É uma emoção muito grande, é um amor muito grande. Eu acho que quero é morrer antes de ‘Gigante’, para não vê ela se acabar. (D. Maria do Carmo, mãe de Marize) Na hora, quando eu vejo botar aquela fantasia em cima mim, parece que o mundo não existe mais, fico na alegria maior do mundo. Por isso eu dou meu sangue a ‘Gigante’, o que ela precisar de mim, na minha pobreza, eu dou para ‘Gigante’. Não cobro nada da minha ‘Gigante’, e quem gosta de ‘Gigante’ não cobra nada, só doa amor e para sempre. Desfilo há 25 anos, há mais de 40 que eu gosto, mas o meu marido não deixava, com frescura de ciúme, não podia desfilar porque os homens iam me catar. Depois que Deus levou ele, eu entrei no samba e só saio quando eu morrer. (Dona Terta) A baiana é a força da Escola. Uma escola sem baiana não existe, morre. Porque a gente vem com todo o axé da escola. Emocionamos o público. O axé das baianas de ‘Gigante’ é forte, viu?. Nós representamos um grande papel dentro da escola, somos
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O vídeo ficou pronto, minha participação foi preparar um roteiro de perguntas e elaborar uma dinâmica par que elas respondessem espontaneamente. O vídeo está de posse da ‘Gigante’, em seu acervo, na secretaria. 165 Cavalcanti (2006, p. 219) chama atenção para a morte como tema constitutivo do universo desse grupo de mulheres, no Rio de Janeiro, por se tratar de pessoas de idade avançada.
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a tradição, representamos a história da escola, e aqui tem muito amor depositado. (Dona Maria) Vivia numa solidão, numa tristeza e, a partir do momento que cheguei aqui, é uma felicidade. Aqui me sinto querida. É uma emoção que faz tão bem para mim, a gente ganha essa roupa de coração, porque isso aqui é uma família para a gente. (Dona Marluce)
Coração, imprescindível ao corpo. A importância das baianas que fazem pulsar a vida da ‘Gigante do Samba’ pauta-se no trabalho cotidiano e obstinado, regado a suor e lágrima, tudo é viver o momento de reunir e ornar o trajeto da festa, para depois (e)ternizarem-se, em declarações de amor cantadas na quadra ou em plena avenida. 3.2.2 O axé das baianas em noite de festa
A Noite das Baianas da ‘Gigante do Samba’ acontece há mais de vinte anos166, faz parte do cronograma de atividades e do calendário festivo da Escola de forma indelével. “É, sem dúvida, a festa da tradição de ‘Gigante’”, conceitua o presidente Lacerda. E complementa: “não tenho notícia de festa igual a essa no Brasil, acho que ela é só nossa. É a cara da Gigante”. Geralmente realizada na primeira sexta feira de dezembro (embora algumas edições tenha ocorrido no domingo), trata-se de uma celebração visivelmente relacionada às religiões afro-brasileiras e cujo sentido, para além da homenagem às baianas, é o de proteção e ajuda espiritual para o carnaval. No entanto, como é comum no Brasil que as “entidades sobrenaturais que nos protegem [...] podem ser de duas tradições religiosas aparentemente divergentes” (DAMATTA, 1986, p. 117), um dia antes da ‘Noite das Baianas’, ocorre uma missa na igreja católica167 da comunidade, em devoção à Nossa Senhora, a Grande Mãe arquetípica, par a abençoar as mães da ‘Gigante do Samba’. Dois dias antes da ‘Noite’, há um ritual de defumação da quadra, para a “limpeza espiritual” do espaço, encaminhada pela baiana mais antiga (e mãe-de-santo), Dona Terta. É ela também a responsável pelo preparo da cesta com as oferendas, a ocupar lugar de destaque no evento. Esses momentos são restritos apenas às baianas e a alguns membros da diretoria. O preparo da cesta é segredo, como tal, Marize, a organizadora da festa, não os revela: “essa é uma festa mágica, cheia de segredos. Não é permitido revelar algumas coisas”. As baianas 166 167
A diretoria não sabe com precisão esse dado cronológico, mas todos confirmam ser mais de 20 anos. Em 2013 a missa não foi realizada devido à incompatibilidade na agenda da igreja e da escola.
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ainda cuidam das comidas da festa e cada uma traz um prato - frutas, acarajé, farofas, pipocas, comidas de santo -. A quadra estava toda decorada com motivos rústicos, folhas de coqueiro pelas paredes, uma mesa forrada com uma toalha branca apoiava um enorme arranjo de frutas e alguns alguidares de barro. Não havia palco, no meio da quadra, estava um tecido preto e uma esteira de palha dispostos no chão, em cima deles vários outros alguidares contendo as comidas. Tudo ladeado por velas brancas em formato de roda. No centro, como não poderia deixar de ser, a enorme cesta de flores e frutas. Tudo estava disposto de forma similar a uma oferenda de candomblé. Na hora marcada para o início do evento, às 20h, a quadra já estava cheia. Uma hora depois, quando as baianas já se faziam presentes e prontas, o vídeo documentário (do qual ajudei a fazer) foi exibido em um telão e recebido com emoção por elas, pelo público presente, apesar da sua natureza amadora. A audiência parecia saber a dinâmica do ritual, após o vídeo organizaram-se em círculo ao redor da cesta de flores, no aguardo da celebração. Marize, então, abre o evento com um discurso acerca do conceito da ‘Noite’: Bom, gente, estamos aqui, mais uma vez, reunidos para cumprir uma tradição no calendário da ‘Gigante do Samba’. É uma festa nossa, da comunidade para as nossas baianas, em homenagem às nossas baianas. Elas são o símbolo da história da ‘Gigante’, a nossa tradição. Então, falando em tradição, convidei mais uma vez o Maracatu, que é da terra, assim como nós, dos negros, dos escravos. É tambor igual a gente, e é Pernambuco, é da cultura pernambucana. Nós juntos somos a cultura Pernambucana, e essa noite celebra isso, a nossa cultura na quadra da Gigante do Samba.
As luzes da quadra são apagadas, acendem-se as velas, embora, depois desse começo, as luzes periféricas (mais distantes da quadra) terem sido ligadas. A atração da festa não é a bateria, mas o ‘Maracatu Encanto da Alegria168’, a iniciar uma batida forte. As baianas, ao som do Maracatu, entram devagar, rodando, umas com as roupas do carnaval passado (2012), outras vestidas de branco e axós169, e todas com torço na cabeça. Não estavam presentes as 60 (sessenta) baianas, mas um número muito expressivo representava o grupo. Ao entrar na roda, dirigiam-se ao centro, na busca do seu alguidar, colocavam-no na cabeça e seguiam o movimento circular. Muitas voltas, ao som da batida forte do Maracatu, girando e dançando com a comida na cabeça até que, em um momento, elas passam a distribuí-la sem parar de
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Já participaram de outras edições os Maracatus Leão Coroado, Raízes de Pai Adão, o Afoxé Ilê de Egbá. Roupa do cerimonial do candomblé.
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percorrer a roda. O público pode participar da roda, dançar nela, seguir a girar com as baianas, comer as comidas distribuídas por elas. O conceito da Noite das Baianas, “uma festa profana ligada ao sagrado”, como explica Marize, justifica o bar da Escola aberto, a vender cervejas e refrigerante, as pessoas bebendo e conversando trivialidades, ao lado da roda. Basta tirar os olho da roda e ver a festa para outras pessoas. Tudo se mistura, nada se define, nada se resume àquilo que nossos olhos veem. Menos de uma hora depois, uma das baianas, Dona Terta, pega a cesta de flores no meio da quadra, enquanto as outras seguem atrás em cortejo, seguindo o Maracatu, em direção ao portão de saída. O público acompanha o movimento, com muitas palmas, fogos explodem. As baianas lançam rosas e jogam perfume; é curioso ver aqueles que estavam bebendo pedirem para ser borrifados com alfazema. Pessoas pedem flor, fazem pedidos, rezam. Do lado de fora, um carro esperava esse momento, entram nele a baiana condutora da cesta e Marize; a cesta, acomodada no banco de trás, seguiu rumo a um rio ou ao mar, depende a quem é devotada: Oxum ou Iemanjá; mas isso não quis perguntar170. Mesmo depois da partida do carro, o Maracatu continuou tocando em frente à quadra da ‘Gigante’ por um bom tempo, e o público, conectado à atração, desfrutava e se energizava com a batida poderosa das alfaias até a bateria da Escola colocar todos de volta para dentro da quadra, a fim de dar continuidade à ‘Noite’ reassumindo seu lugar preponderante. Antes de a festa acabar Marize retorna a quadra, sem a cesta. Perguntei como estava se sentindo e ela responde: “Dever cumprido. A Escola está renovada. Esta festa é tudo para ‘Gigante’. Elas (as baianas) são a história, a sabedoria, a alegria, a espiritualidade, a tradição. A gente homenageia elas e homenageia a nossa história ao mesmo tempo”.
3.3 Situações sociais: ditos e ritos, um olhar. A ‘Festa dos Protótipos’ e a ‘Noite das Baianas’ são rituais, ressaltam aspectos essenciais do mundo social (CAVALCANTI, 2006). Escolhi-as por nelas enxergar aspectos complementares da experiência social das escolas de samba em Pernambuco. Juntas, suor e a lágrima mobilizam o processo ritual do desfile (ibdem). A ‘Festa dos Protótipos’ é forjada na dimensão criativa, a do trabalho, do processo ritual do desfile. Sem maiores surpresas, o Rio de Janeiro e suas escolas de samba aparecem 170
Sobre as dificuldades da negociação da informação entre o antropólogo e interlocutores, no contexto das religiões de matriz africana no Brasil, ver Vagner Gonçalves da Silva (2006).
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como referencial para tal dimensão. O discurso acerca do processo de criação na Gigante do Samba, elaborado pelo carnavalesco Hilário Silva, relaciona as escolas do Rio de Janeiro com a ideia de modernidade e inovação. Chama atenção o seu contraponto, o Recife e as agremiações de frevo, ligados à tradição e, em suas palavras, “não tão modernos”. As escolas de samba vinculam-se à liberdade criativa, enquanto às agremiações de frevo têm seus processos criativos limitados pelo repertório estético e conceitual da tradição. Como mencionado no segundo capítulo, o regionalismo freyriano do século XX já apontava para essa representação binária; contudo, atribuía ao pólo do Rio de Janeiro e da modernidade um sentido, em certa medida, negativo e ameaçador. Mantém-se a dicotomia, mas se altera o sentido de valor. Na experiência das escolas de samba do Recife, representadas pela ‘Gigante do Samba’, ser moderno e inovador é, agora, positivo. Agora, pois, salienta Cavalcanti (2001, p. 08) que a cultura popular171 interpreta as noções de tradicional e moderno “[...] dentro do seu próprio universo de relações, estabelece assim distinções internas, nunca absolutas ou imutáveis, que buscam controlar e refletir sobre as mudanças sociais em curso com as quais inevitavelmente se depara”. A estrutura da ‘Festa dos Protótipos’ comunica “modernidade”, com luzes coloridas, palco, chuva de papel picado, elegância e, como diz Hilário recorrentemente, “muito glamour”, não visto em outros eventos. É tida como ideia inovadora em Recife, embora já aconteça entre as escolas cariocas, pelo menos desde a década de 1990; é, sobretudo, a culminância de um “novo” modelo de organização de confecção e venda de fantasias que mudou a ‘Gigante do Samba’. Ser, dizer ser, a única a realizar o evento em Pernambuco, além de apontar para a valorização da relação mais estreita com o Rio de Janeiro – conectando assim a escola à experiência identitária e sentidos de pertencimento de conteúdos considerados nacionais, compartilhados com outros grupos de referência - faz a Escola ocupar um lugar de vanguarda no mundo do samba pernambucano. É a festa que revela segredos, descortina os bastidores, torna públicos conteúdos antes guardados, as ideias. As fantasias que ganham vida ousadamente antecipam os segredos, despertam sentimentos e julgamentos. A ‘Festa dos Protótipos’ está voltada para o visual, o aparente. As hierarquias ficam aparentes: a assinatura do carnavalesco no processo criativo, o empenho da diretoria para a produção são visibilizadas. São eles, carnavalesco e diretoria, os iluminados pelos holofotes do evento, no palco, separados do público, assistem à apresentação das fantasias na passarela, ao mesmo tempo são assistidos pelo público que está embaixo. 171
Sobre a noção de cultura popular, as categorias de tradição, de modernidade e o mundo do samba, ver: Cavalcanti (2006 e 1999) e Gonçalves (2007 e 2010).
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Regozijam com sucesso do trabalho, consolidam suas imagens diante da comunidade, o primeiro (carnavalesco) como bem sucedido maestro a orquestrar o processo criativo; os segundos (diretoria), como eficientes e indispensáveis organizadores e facilitadores do trabalho de criação. A ‘Noite das Baianas’, por sua vez, inscreve-se na dimensão subjetiva dos afetos, das lágrimas, dos suportes emocionais e histórico-memoriais.. Diferentemente da ‘Festa dos Protótipos’, a modernidade não é mencionada, em nenhum momento o Rio de Janeiro é acionado, mesmo sabendo-se da existência de evento similar realizado pelas escolas cariocas. O lugar referencial é o Recife, os conteúdos simbólicos a ele vinculados. A ‘Noite’ é considerada como uma criação da ‘Gigante do Samba’, revestida, então, de originalidade e de pertencimento. Situada neste polo, a ‘Noite’ apresenta-se, então, como a festa da tradição, remete-se à história do samba em Pernambuco, a da ‘Gigante do Samba’, personificadas na figura das baianas. As baianas, para a agremiação, a ‘Grande Mãe’, carregam as memórias de décadas de carnavais, de construção e de convívio na quadra, na avenida, na vida, a serem reverenciadas. Uma festa que as tomam como homenageadas reflete, representa a deferência, o respeito da Escola pelo passado. Se a ‘Festa dos Protótipos’ projeta o futuro e a mudança, a Noite das Baianas corteja, valoriza o passado, a permanência, mas como princípio elementar da continuidade. As baianas representam força, resistência, amor à Escola; servem, portanto, de espelho para os demais componentes. Pela antiguidade, pela entrega, suas histórias de vida (pelo menos as da maioria) confundem-se com a história da ‘Gigante’. Os vínculos de afetos profundos com o espaço, com as pessoas vivas, as mortas da Escola, presentes na imagem das baianas, evidenciam constructos poderosos para a manutenção da rede que sustenta esse mundo social (BECKER, 1977). Vale ressaltar que a ideia de “cultura pernambucana” articula o conceito e a prática da ‘Noite das Baianas’. O evento comunica - a partir dos discursos legitimadores do calendário festivo, da estrutura, do próprio ritual da festa-, a interação ente a ‘Gigante’ e outras expressões, outros elementos do repertório carnavalesco pernambucano. Os jogos de luz e o palco da ‘Festa dos Protótipos’ cedem lugar a uma decoração rústica, ao “estilo regional”, com velas, flores e palha. Maracatus e afoxés apresentam-se como convidados, atrações a dividirem atenção com a bateria, um encontro bastante emblemático, tendo em vista as relações entre as escolas de samba e a ideia regionalista de “cultura pernambucana”.
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De um lado, a ‘Festa dos Protótipos’ comunica o plano concreto, do trabalho – organizacional e criativo -; por outro, a ‘Noite das Baianas’ ilumina a ligação com o sagrado. A festa cobre a Escola com o “axé da baiana”, as “mães” abençoando seus filhos. É o momento de pedir aos orixás força, proteção para o carnaval, para a vida. Salta aos olhos a primazia da intimidade, do cuidado, com a quadra, com a Escola, com as pessoas. Enquanto a ‘Festa dos Protótipos’ revela os segredos172, a Noite das Baianas preserva os segredos, esconde os rituais mais íntimos, pois se fundamenta exatamente no mistério. Os dois eventos, em seus sentidos e significados, são complementares, dialogam no devir da construção do desfile. Juntos apontam para o que Bakhtin (1987, p. 06-08) chama de “caráter universal do carnaval”, estabelecido nos “fins superiores da existência humana”: o renascimento e a renovação. A ‘Festa dos Protótipos’ deflagra a morte do carnaval passado, presentifica um novo carnaval por instantes – na junção do enredo, samba-enredo, bateria e fantasias, a ser vista novamente apenas no ano seguinte -, projeta-o para o futuro, quando, finalmente, renasce. Na ‘Noite das Baianas’ renovam-se a fé, os afetos, as hierarquias simbólicas, os vínculos com o passado e com a ancestralidade. Ambos dispositivos do tempo estrutural do carnaval, “[...] repetitivo, com conteúdos afetivos e cognitivos característicos. É um tempo social, fortemente ligado à experiência vital e à visão de mundo de uma sociedade ou civilização” (CAVALCANTI, 1999, p. 77). No processo ritual do desfile pernambucano, as duas festas, em suas especificidades e desdobramentos, mostram os sambistas agenciando, ao seu modo, as oposições tradição e modernidade, permanência e mudança, caras à cultura popular, ligadas, no caso da história das escolas de samba, aos lugares referenciais “Recife e Rio de Janeiro”, respectivamente. Como alerta Cavalcanti (2001, p. 06), esses modelos ideais têm aspectos problemáticos, sem contar que são “elaboradas e interpretadas pelos próprios processos populares”: Tradições são histórias, e como tal criadas, desfeitas, retomadas e, sobretudo, a idéia de tradição [e de seu par ‘moderno’] é ela mesma um valor trocado e transformado em teias de relações sociais que precisam ser contextualizadas [...]. A cultura popular interpreta as noções de tradicional e moderno dentro de seu próprio universo de relações. Estabelece assim distinções internas, nunca absolutas e imutáveis, que buscam controlar e refletir sobre as mudanças sociais em curso com as quais inevitavelmente se depara (CAVALCANTI, 2001, p. 08).
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Para Simmel (1999), o segredo também comunica, é um organizador das relações, tão importante quanto outras formas de comunicação.
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3.4 Construindo desfiles: outras escolas, experiências compartilhadas. No carnaval do Recife, a ‘Gigante do Samba’ é uma exceção, é possível dizer com certa clareza se tratar da maior agremiação da cidade. Seus orçamentos, estimados em mais de R$100.000 (ouvi nas pesquisas um valor R$180.000), são completamente fora dos padrões do Estado (incluindo as agremiações de frevo, maracatu e caboclinho). Nenhuma outra consegue levar à avenida duas mil pessoas distribuídas em 22 (vinte e duas) alas, 05 (cinco) carros alegóricos e uma bateria com 60 (sessenta) ritmistas e, por conseguinte, sagrar-se campeã por seis vezes consecutivas173. No dia do Concurso das Escolas de Samba, a arquibancada inegavelmente fica à espera da ‘Gigante do Samba’, inclusive, nos últimos anos, a organização do evento a coloca propositalmente como a última da noite, a fim de garantir o público presente, tal como mencionado anteriormente. A diretoria atual, nesse posto há cinco anos, credita o sucesso atual da Gigante a um “novo modelo” de gestão atenta a uma nova organização do desfile, inspirada no Rio de Janeiro, e a um movimento de rearticulação da Escola com a comunidade. Soma-se a isso uma expertise administrativa com o tempo aprimorada no tocante à captação de recursos e controle de gastos. Dona de uma sede bastante grande para os padrões recifenses, a Escola faz eventos ou aluga o espaço todos os finais de semana, de quinta a domingo, lucrando com o bar e/ou com a bilheteria. A sede, além de gerar recursos, é imprescindível à preparação do desfile, ao trabalho de criação. Serve para a preservação de material (novos ou os reaproveitáveis oriundos de carnavais passados), instrumentos, roupas, adereços e alegorias; para a confecção das fantasias, das alegorias. A existência da sede, portanto, faz protelar, ao máximo, o aluguel de um barracão (que só ocorre nos últimos dois ou três meses antes do carnaval); possibilita a organização do desfile com ensaios da bateria, da comissão de frente, das alas coreografadas (em 2013 eram duas) e para o ensaio geral. A sede é igualmente importante como espaço de memória, de sociabilidade. Funciona como centro de salvaguarda do acervo de troféus, fotos e outras relíquias da Escola. Torna-se, sobretudo, um espaço de uso da comunidade, ao oferecer, não só os eventos festivos, cursos de capacitação profissional, ações para qualidade de vida (como atividades físicas gratuitas, em parceria com a prefeitura), como também projetos que atendem desde crianças, jovens (como o projeto ‘Samba e Saber’ – II Capítulo) às baianas. 173
No ano de 2013, Gigante consegue o esperado hexacapeonato, como veremos no próximo capítulo.
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Vale ressaltar, porém que a experiência da ‘Gigante do Samba’ é diferenciada, quando comparada às demais escolas da cidade. Certamente a Escola enfrenta problemas, desafios e limitações inerentes à vida das agremiações de carnaval no Recife, mas seu relativo sucesso destoa de todas as outras coirmãs. Dessa forma, a partir das entrevistas com as lideranças dos outros grupos, analisei e sistematizei as recorrências extraindo as principais ideias quanto ao processo de produção do desfile. Identifiquei, a princípio, o tom de lamentação e resignação nos discursos sobre esse processo. As dificuldades do fazer aparecem rapidamente nas suas falas, mais do que as soluções e alegrias do percurso, pontuam sempre a ausência, faltam-lhes tudo, primordialmente dinheiro. Em contrapartida, em seguida ao desabafo, vem a ideia de resistência às intempéries, a emoção em ver a escola pronta, após tantos percalços. Com esse desenho em vista, sistematizei três grupos de recorrência acerca da ideia de ausência ou de falta, articuladas pela premissa da escassez de recursos: 1. a falta de um carnavalesco; 2. a falta de uma quadra; 3. a falta da comunidade. 3.4.1 A falta do carnavalesco O carnavalesco é peça chave para o processo de criação do desfile carioca (SANTOS, 2009)
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, assim como o é para a ‘Gigante do Samba’. Uma ausência, no mínimo,
comprometedora para o resultado estético final. Todavia, a grande maioria das escolas pernambucanas não conta com o trabalho de um carnavalesco, mesmo escolas do grupo especial, como a ‘Unidos de São Carlos’. Pagar a uma pessoa preparada para criar é um excedente financeiro, diferente do que foi em um passado, rememorado com frequência, quando os carnavalescos das agremiações de frevo migravam para as escolas, empolgados com as possibilidades criativas do mundo do samba (o caso de Hilário, o carnavalesco da ‘Gigante’, é exemplo típico). As lideranças, por vezes uma só pessoa, concentram todo o trabalho administrativo e criativo, sobrecarregando-se e, claro, prejudicando as duas partes. Pensam no enredo, nas fantasias - fazem a compra, a confecção -, buscam recursos, administram pessoas, providenciam componentes, comparecem a reuniões, assim mesmo, misturando etapas. Contam, por vezes, com a ajuda de um membro da família, um amigo mais próximo, ou alguém da comunidade, com certo talento artístico, disponível gratuitamente. É um 174
Sobre a atuação da figura do carnavalesco como responsável pela concepção estéticas das escolas de samba e como mediador das relações estabelecidas no mundo do samba, ver o robusto artigo de Nilton Santos (2009, p. 153). Por meio dele o autor chama a atenção para a problemática do estilo autoral e da individualidade artística no carnaval carioca e para a questão do trânsito de carnavalescos entre escolas.
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trabalho voluntário, que não prevê o acompanhamento dos trabalhos. Ou seja, mesmo contando com a ajuda para criação, as lideranças acompanham a execução sem o suporte de quem teve a ideia. Aqui na Mangueira a gente mesmo é quem bola. A gente não bota carnavalesco. Com que dinheiro eu botaria? Eu digo que a gente tem uma ‘carnavalesca’ (fez gesto de aspas com as mãos). É uma menina da comunidade. Ela bola tudo. Tem ano que ela mesma costura, quando ela não pode, peço só a ideia do desenho, e eu mesmo desenrolo fazer as coisas. Aí começa na casa dela e, depois, vai pra casa das outras costureiras, temos duas. O tema, eu não tenho muita criatividade, peço para alguém dizer, alguém ter uma ideia boa, ela mesma, às vezes, dá. Aí é só dizer que vai falar sobre alguma coisa, e a gente aprova. Digo ‘a gente’ porque tem eu, o presidente, mais tesoureiro e secretário, mas, na prática, eu faço tudo. A gente vai começar a trabalhar depois que passar as eleições. Eu tenho um dinheiro na Caixa e a gente vai comprar uns tecidos pra começar. Em geral, começa em novembro e dá tempo porque as alas da gente são muito poucas. (Carlos Alberto, Unidos da Mangueira, Grupo II).
Pensando nisso, a criação antecipa-se à execução, assim, só se cria o que, de antemão, é exeqüível. Um caso da ‘Unidos de São Carlos’ do carnaval de 2012 é ilustrativo. A escola pediu a um carnavalesco da cidade para ajudá-los a desenhar a roupa da bateria. O carnavalesco desenhou uma fantasia de São Jorge, padroeiro do município da cidade a qual a Escola homenageava em enredo. No momento da execução, a roupa seria muito cara, e as lideranças não conseguiam fazer, ou modificá-la sem ajuda dele. Conceição, a presidente da escola, mudou a ideia, então, a bateria desfilou de franciscanos, com simples túnicas marrons: “era mais fácil e barato, lá tem um convento franciscano, a ideia cabia”, explicou ela. O reaproveitamento parece uma prática bastante usual. Entretanto, consta, no regulamento do concurso, a proibição da repetição de fantasias, de alegorias, de um ano para o outro. O reaproveitamento demanda, então, prática, criatividade para desmontar algo feito, remontá-lo, de modo que a operação passe despercebida. Valmir, responsável pelas alegorias da ‘Limonil’, resume a seu modo: “[...] lá no Rio é logística e criatividade, aqui caos e reciclagem”. Carlos Alberto, da ‘Unidos da Mangueira’, comenta sobre o esforço para o reaproveitamento de materiais, sobre a ausência de carnavalesco para coordenar esse movimento inevitável, em sua visão, até para as escolas do Rio de Janeiro: Esse ano a gente mexeu em roupas antigas. Tinha uma menina que tinha uma caixa de roupa dos anos anteriores, e a gente fez uma remodelação. Foi o único meio, estava tudo parado, sem dinheiro e sem criação. É muito difícil ver a roupa pronta e pensar em fazer outra coisa com ela, dá um trabalho enorme. Um bom carnavalesco resolveria, ele olha e vê o que serve, o que não serve e o que fazer. Tu acha que o que a gente vê do Rio não tem reciclagem? Claro que tem, eles reciclam tudo, mas o carnavalesco é inteligente e ninguém percebe. Nós do Grupo I e II temos a mesma
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estrutura, zero. Tem escola do especial penando, e as do acesso nem se fala. O que é pra um é pra todos, a pobreza dentro do samba é justa. O que tem que fazer é esticar o dinheiro, comprar um tecido mais fraco e mexer no que eu tenho por aqui. (Carlos Alberto, Unidos da Mangueira, Grupo II).
O representante da ‘Limonil’, escola do grupo especial, fala do desejo de ter um bom carnavalesco, “é um sonho, faz a escola ir para frente”. Mas argumenta ser artigo caro atualmente, “ninguém mais vem por amor como era antigamente”. Mesmo quando existe dinheiro para investir nesse elemento importante, o “mercado é inflacionado” para os parâmetros de Recife: Aqui na ‘Vila São Miguel’ tem um carnavalesco muito bom, Maninho. Mas ele pediu R$ 10.000, ele pode ser bom, pode ter a bagagem que tiver, mas não tenho condição. Acertei com um daqui do Totó (bairro do Recife), mas ele acertou uma coisa e agora já tá vindo com outra. Ele acertou dividir o pagamento, um pedaço quando chegar a primeira parcela da subvenção e o restante depois do carnaval, com a segunda parcela da subvenção. Agora já quer um dinheiro adiantado. Eu disse a ele que, se tivesse dinheiro, ia gastar na escola e não ia dar a ele todo. Falta gente profissional e de palavra nesse mercado inflacionado. (Jarlan, Limonil)
O presidente da Escola de Samba ‘Samarina’ (Grupo I), Correia, concorda com seu colega, Jarlan, e descreve uma negociação mal sucedida com um carnavalesco, ocorrida em sua escola no ano de 2007: Em 2007 o pessoal disse que era bom contratar um carnavalesco, aí eu chamei Cazuza (um importante carnavalesco da cidade). Ele disse aqui na frente de todo mundo: ‘Meu trabalho é R$ 5.000, vocês façam festa, se virem’. A gente recebia R$ 4.000 antes e R$ 4.000 depois do carnaval pela Prefeitura, como a gente ia pagar? Ele disse ainda ‘não trabalho com TNT (um tipo de tecido muito barato), nem cetim, só trabalho com material brocado’. Eu ia fazer o que mais? Eu disse à diretoria que isso era bom da gente levar na cara, eles passaram esse tempo todinho aqui, viu pessoas fazendo carnaval e não aprenderam? Digo para as outras escolas, se transformarem em carnavalescos, porque o mercado de carnavalescos parece mais alto do que mercado das ações do petróleo.
Por outro lado, o ofício é aprendido na prática. Com o tempo, quem está à frente de uma escola nessas condições finda por desenvolver a expertise, aprende a fazer carnaval, tornam-se, a seu modo, carnavalesco175. Correia percebe-se atualmente um carnavalesco, trabalhou 43 anos nessa função, “já sabe fazer carnaval”, só lhe falta o dinheiro. O presidente da ‘Samarina’ discorre sobre seu aprendizado:
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Peter Burke (2010:145) faz uma discussão histórica sobre a classificação dos artistas na cultura popular, como profissionais, semi-profissionais ou amadores de acordo com o grau de conhecimento e a relação de subsistência que estabeleciam com a arte.
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Eu já sei fazer carnaval, aprendi nesses 40 anos. O enredo, penso numa coisa que fique mais fácil para mim fazer, porque eu faço tudo sozinho mesmo... Então não é o melhor, é o que vou conseguir fazer com a minha cabeça. Quando chega mais perto (do carnaval), eu compro o material no cartão dos outros, porque eu não tenho cartão. Tem coisa que eu compro antes, como papelão pra fazer cabeça, tecido. O bicho pega mesmo em dezembro, fantasia, carro, tudo, aí eu tenho esse trabalho todinho pra fazer. Eu quebro cabeça pra montar a minha escola, é muito estresse. [...] Fazer carnaval eu sei. Não é possível que eu com 43 anos só aqui dentro da ‘Samarina’ não soubesse fazer carnaval. Era muita burrice. Eu sei fazer carnaval, o que falta é dinheiro. Se eu tivesse dinheiro pra fazer o carnaval, não digo que ganhava todo ano, mas a disputa ia ser grande, se as outras não tivessem cuidado iam perder. [...] Trabalho muito, quando chega perto do carnaval, chego até passar mal. Já teve o dia de eu terminar alegoria no dia, em cima da hora, porque senão a escola perdia 3 pontos. A gente monta as coisas na avenida, monta lá. Isso eu aprendi no Rio, pela televisão, coisa prática, porque aquelas alegorias não saem daquele jeito do barracão, agora é tão prático que monta lá. [...] Essas esculturas, eu aproveito de um ano pro outro, mudando a frente. Tenho três carros, e eu faço eles todo ano sozinho, crio e arrumo, então eu sei fazer carnaval.
3.4.2 A falta da quadra Samba em Pernambuco é fazer milagre. Só quem tem sua quadra própria é que tem recurso, capital de giro. Quem não tem fica assim, no relento e sem ter como fazer dinheiro. Pois se eu tivesse uma sede, eu botava para arrombar com a minha escola (Conceição, Unidos de São Carlos)
No Recife apenas ‘Gigante do Samba’, ‘Galeria do Ritmo’, ‘Limonil’ e ‘Samarina’ possuem uma quadra para abrigar suas atividades; suas quadras são suas sedes. Outras, como a ‘Unidos de São Carlos’, possuem apenas uma sede, uma casa alugada, para reunir as atividades da escola que demandam menos espaço. A maioria, no entanto, não tem sede nem quadra, produz o carnaval na casa do presidente e de outros componentes da escola. A quadra é o suporte espacial para o desenvolvimento do processo ritual do desfile e para a vida social da escola, ponto de encontro, lugar de atividades a gerar recursos, de sociação. Embora as quadras das escolas de samba do Recife não sejam representativas no sentido arquitetônico ou estético, carregam uma dimensão simbólica e histórica. Ter uma quadra aparece nas falas dos sambistas pernambucanos como ponto de partida para a produção do carnaval, “quem tem quadra sempre tem dinheiro, tem tudo na mão”, pensa Conceição, da ‘Unidos de São Carlos’. Como exemplo do que é feito na ‘Gigante do Samba’, a quadra tanto pode servir de espaço para eventos da própria escola, o lucro seria a consumação e a bilheteria, como pode ser alugada para terceiros. Jarlan e Correia descrevem as experiências com os usos da quadra da ‘Limonil’ e da ‘Samarina’, respectivamente: Na sede da ‘Limonil’, o acordo é meio a meio, se você trouxer uma banda, é tudo dividido meio a meio, portaria, bebida, não tem essa de você comer sozinho ou eu
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comer sozinho. Tudo tem que ir uma parte pra ‘Limonil’. Eu não pego em dinheiro. Vai tudo pra mão do vice-presidente, ele passa para o carnavalesco. Ele presta contas a ela e acabou-se. Toda semana tem um dinheiro para as coisas do carnaval, mas é pouco, porque tem que pagar as coisas da sede, não é bem como as outras que não têm sede falam não. (Jarlan) Todo final de semana tem festa, homem é R$ 3,00; mulher é R$ 2,00, quando é só som. Quando é banda, aí todo mundo é R$ 5,00. É o povo da redondeza que vai, Mangueira, Mustardinha, Imbiribeira, Coque. Mas depois que paga a todo mundo, o som, a banda, a limpeza, sobra tão pouco [...]. A gente aluga para festa também. Quando é pra uma festa de aniversário, é R$ 80,00. Agora, se for pra uma pessoa de dentro da comunidade que sai com a Escola no carnaval, eu só cobro uma taxa pra energia e pra limpeza, é R$ 20,00. Pra show, pagode é R$ 150. (Correia)
As baterias da ‘Unidos de São Carlos’ e da ‘Unidos da Mangueira’176 ensaiam na rua e projetam uma imagem negativa desse espaço: “É como se a gente não tivesse uma casa, um lugar para ficar só nós; a gente fica exposto aqui, tudo atrapalha, até mesmo a chuva” (Conceição, Unidos de São Carlos). Ensaiar a bateria na rua simboliza a ausência de uma casa, de “um espaço exclusivo”, ligado à segurança, às relações familiares, conota insegurança e impessoalidade do espaço (DAMATTA, 1986, p.23). Não ter uma casa compromete a conservação de “objetos, relações e valores que todos do grupo sabem que importa resguardar e preservar” (DAMATTA, 1986, p.24). Os instrumentos da bateria, as fantasias, o pavilhão da Escola, os troféus, as fotografias, tudo fica desprotegido, espalhado em vários lugares, perde-se. Além dessas, há coisas de maior valor, tais como as alegorias, ferragens, carros. Estes, muitas vezes, quando guardados em terrenos, quintais possíveis no entorno da comunidade, destroem-se com a ação do tempo. A bateria fica lá na Mustardinha (bairro vizinho), umas coisas ficam aqui em casa, amontoadas, como você está vendo, porque que não tenho espaço. Outras ficam na outra casa que eu tenho, lá na Mangueira (outro bairro). Fica, assim, tudo espalhado; tem coisa que, sinceramente eu não sei nem onde está. (Carlos Alberto, Unidos da Mangueira) Olha só, tudo da gente fica por aí, chega dá uma dor. A gente só tem um carro alegórico, que se você vê, você vai perguntar se é um carro alegórico: é um chassi de um fusca. Esse é nosso mesmo, e está guardado num terreno aqui perto. A gente tem também mais dois emprestados. Um é do homem do gás, que ele me emprestou, e eu não voltei mais lá para não devolver. O outro é um palco do evangélico que faz culto na ‘Vila São Miguel’. Esses dois estão aqui no Atlético (Clube próximo), mas o presidente do Atlético quer que a gente tire de lá... As roupas, levo tudo para minha casa, mas minha casa é bem pequenininha. A gente leva todas roupas prontas pra lá e para as casas dos vizinhos, porque não pode deixar aqui, porque pode chover e aqui (na sede alugada) enche de água, tem pingueira. O que a gente vai aprontando a gente vai guardando numa casa que dá oportunidade de receber. Aqui cada casa guarda uma coisa. Guarda a bateria, guarda cabeça de baiana, ala. Na noite anterior
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No momento da pesquisa, a Escola ‘Galeria do Ritmo’ também ensaiava sua bateria na rua, porém a Escola tem quadra e, devido a uma divergência com a igreja evangélica, ao lado, optou por ensaiar na rua.
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do desfile, eu saio nas casas recolhendo e contando tudo. (Conceição, Unidos de São Carlos)
As escolas sem quadra se dizem prejudicadas também por não poderem produzir seus desfiles, marcar ensaio geral, ensaiar com a comissão de frente, e outras etapas que demandam um espaço predeterminado. Não ter uma quadra, então, para eles, incide na qualidade do espetáculo levado à avenida no carnaval, elementos básicos para o desfile, tal como conhecer o samba nem sempre é alcançado, pela impossibilidade de marcar encontros com os desfilantes: A bateria ensaia aqui na rua, a partir de setembro ou outubro, todas terças e quintas. Tem muitos jovens, meninos e meninas. A gente não tem ensaio técnico, a gente encontra com o pessoal da comunidade só lá mesmo na avenida. Não tem ensaio pra baiana, pra ala, pra nada, é tudo lá, no improviso, na hora. Na hora a gente diz qual é o samba e, se não souber cantar, coloca um chiclete na boca quando passar na frente do jurado. Porque eu não tenho estrutura pra fechar uma rua e fazer um ensaio com todo mundo. (Itamar, Unidos de São Carlos)
Os representantes das escolas com sede, por sua vez, alertam para as dificuldades, para os custos com a manutenção dos seus espaços. Segundo eles, a receita produzida com os usos da sede nem sempre suprem as despesas com ela mesma, “nem tudo o que se fatura na festa é lucro” (Jarlan, Limonil); tampouco é possível fazer o carnaval só com as ações da quadra. Para Correia, da ‘Samarina’, com o tempo, as dificuldades aumentaram, destacam-se a retirada do apoio financeiro dos vereadores das comunidades às escolas177, o afastamento da comunidade da quadra e, consequentemente, da vida dessas agremiações. As contas da sede estão todas atrasadas. Eu estou esperando essa ajuda da subvenção da Prefeitura. Muita gente fala que quem tem sede poderia sair melhor no carnaval. Não dá. A quadra ajuda, mas é pouco para fazer um carnaval bonito. De primeiro mundo, como é Rio de Janeiro, São Paulo, nem pensar. Tem que correr atrás porque se ficar só com esse dinheiro da Prefeitura e com o que a sede gera nunca vai sair uma escola de primeiro porte, com hidráulico numa alegoria, com jogo de luz. (Jarlan, Limonil) Se Samarina fosse viver do dinheiro dessas festas, já tinha fechado. A manutenção de um espaço desses é muito alta. Eu boto dinheiro meu aqui dentro, essas alegorias aí do lado de fora são minhas, comprei com o meu dinheiro. O dinheiro da prefeitura não dá pra custear nem o carnaval. Eu estou pagando R$ 300,00 para agiota, desde fevereiro, por R$ 1.000,00 que eu peguei emprestado. Antigamente era mais fácil, 177
A atuação de políticos na produção das escolas é um assunto controverso que as lideranças não gostam de comentar. Constatei a presença de vereadores no ensaio geral da ‘Galeria do Ritmo’ e no dia da ‘Festa dos protótipos’ da ‘Gigante do Samba’. Prefeitos, governadores, vereadores participaram da história dessas agremiações, subsidiando desfiles, concedendo-lhes sedes (as sedes da ‘Gigante do Samba’ e da ‘Samarina’ foram doadas, na década de 1980, pelo Prefeito Gustavo Krause), vale investigar essa relação posteriormente. Chama atenção a dialética escondida na fala de Correia: as escolas empobreceram com a retirada dos vereadores ou os vereadores se retiraram devido ao empobrecimento desses grupos, agora com menos prestígio.
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por vários motivos: a gente não pagava som, o som era da escola, não precisava de grupo de pagode, a bateria tocava a noite toda. Batuqueiro, a gente dava a bebida dele e o que vinha de fora, passagem. A gente fazia um sambão só com a bateria eram 30, 40 grades de cerveja vendidas. Hoje o povo só quer brega e pagode, se faz uma festa, tem que ter pagode, só a bateria o povo não vem. E a gente tinha aqui dentro 4 vereadores, porque o vereador botava a subvenção lá, mas, quando ia na boca do caixa, era metade dele metade da escola, aí os 4 davam, não tinha importância de quantos vereadores tinha aqui. (Correia, Samarina)
3.4.3 A falta da comunidade
A ausência da comunidade nas ações da escola é uma reivindicação recorrente, quando o assunto abordado é a preparação para o desfile. A queixa primeira é o esvaziamento da quadra. Repetem-se as histórias de eventos com “casa cheia”. A imagem ideal da “comunidade participativa” faz parte dos argumentos de todas as lideranças entrevistadas. O esvaziamento da quadra reflete diretamente na dificuldade das escolas em completar o quantitativo de componentes exigido para desfile, quadra vazia, alas vazias. O problema parece ainda mais grave, pois os poucos que desfilam não querem pagar a fantasia ou seja, as lideranças se desdobram para fechar suas alas e ainda custeiam as fantasias. Escolas como a ‘Samarina’ (do Grupo I) desfila com 12 pessoas numa ala, quando o mínimo para esse grupo são 30. Antigamente a gente fazia na sexta, e a Império (escola vizinha), no sábado, era tudo casa cheia. Hoje difícil eu ter casa cheia e gente para ficar na escola, para ser da escola. A gente botava fantasia no Baile Municipal e ganhava. Hoje em dia, não compram nada (fantasias), não querem pagar nem a costura. Antigamente era diferente. Tinha gente que pegava o tecido e o modelo e fazia sua fantasia junto com o representante de ala. Hoje não tem mais representante de ala, tudo sou que faço. Também não é mais essas pessoas todas numa ala, porque não tem mais condições, o povo não quer. Hoje, se eu botar 30 pessoas numa ala, é uma belezura, mas eu já saí até com 12 pessoas numa ala. Isso mata muito a escola porque fica o buraco, uma escola preparada pra ter uma ala com 30 pessoas vai 12... No desfile geral, a gente tira uma nota menor, eu tenho que reconhecer. (Correia, Samarina) A gente tem duas alegorias. Esse ano a gente saiu com 6 ou foi 8 alas. Mesmo sendo quantidade pouca, eles exigem 250 pessoas, não é fácil juntar, às vezes não dá. Tem uns aqui da comunidade, da Mangueira, e de outra comunidade, de Prazeres, que saem com a gente para a gente sair na agremiação dele de frevo. A gente não paga, que não tem condições de pagar, a gente dá uma ajuda e manda o ônibus. (Carlos Alberto, Unidos da Mangueira)
Se antes, contam os sambistas, a comunidade fazia questão de desfilar, atualmente, assim como ocorre com outras agremiações de carnaval, é difícil atender ao concurso. Há uma percepção compartilhada acerca da mudança de motivação dos componentes, a de que
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participação espontânea, paulatinamente, vem sendo substituída pelo cachê, em especial, em funções indispensáveis como o mestre de bateria. O afastamento da comunidade, os excessos nos custos de produção são apontados como responsáveis pela extinção de muitos grupos. Antes a gente tinha 140 batuqueiros brigando aqui pra sair, hoje sair com 50 batuqueiros é uma maravilha. Hoje a gente paga a um mestre de bateria é R$ 1.500 por carnaval. Nos ensaios, para ter os ritmistas, é passagem pra um, pra outro, cerveja, cachaça. Hoje, se eu fizer um sambão, eu não cobro entrada, não posso cobrar senão o povo diz que não vai sair na escola. O lucro é o do bar sem bilheteria. (Correia, Samarina) Antigamente tinha mais escolas, tinha ‘Couro de Bode’, ‘4 de Outubro’, ‘Labariri’, ‘Império do Samba’... se acabam pelo fato da verba que é muito pouca, mesmo se for campeão, a verba é muito pouca. Mas também porque não tem mais gente para desfilar, o povo das comunidades não querem mais. Aqui, quando minha bateria nota 10 tá na rua, muitos até aparecem só para observar, acha bonito a zoada, o toque da bateria, fica pra escutar o samba. Mas só olhar não resolve, tem que chegar junto, eu chamo tudinho, mas ficam só assistindo e, no carnaval, não desfilam. Dentro de Recife, hoje, só faz carnaval quem gosta, que adora mesmo estar dentro do carnaval, dentro do samba, porque senão não faz. A gente disputa componente na unha, faz acordo, dá passagem. A gente luta pelo samba em Recife. (Carlos Alberto, Unidos da Mangueira) A comunidade não ir para a quadra mostra que o movimento está enfraquecendo. Eu não faço um trabalho melhor aqui na Galeria porque não tem condições, os ritmistas não querem mais ensaiar, não tem recurso para instrumento... Antigamente tinha 51 escolas de samba. O que sobra hoje vive na raça, porque a turma gosta do brinquedo, empenha, vende as coisas, mas parece que está se acabando. (Naná, mestre de bateria, Galeria do Ritmo, grupo Especial)
3.4.4 Sentmentos e controle das impressões: a valorização da dificuldade O processo de produção das escolas de samba do Recife é preenchido de lembranças de um passado de êxito e de falas sobre um presente difícil. Chama atenção a contundência e a frequência com que as dificuldades são acionadas, ora elaboradas em um tom triunfalista, alardeando a força e a persistência das escolas, ora em tom de lamento e desalento diante dos percalços. O que mobiliza essas lideranças a continuarem fazendo suas escolas de samba sem condições financeiras, sem a presença contundente da comunidade, sem espaço físico para fazer.? Tentar responder a essa pergunta sem resposta faz abrir janelas para pensar o extraordinário universo subjetivo constitutivo da experiência social das agremiações. O universo das emoções desvendadas e expressas por meio de visões, tradições, releituras e transformações a desembocar, como um rio, no desfile, este, transversal de significados a irradiar glórias, disputas, embates e construções sociais. Os sambistas, assim como os brincantes do frevo, do
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maracatu, do caboclinho e de qualquer outra manifestação carnavalescas, dão corpo a “ciclos ininterruptos de criação, explosão e renascimento, pois, na quarta feira de cinzas renascem os subversivos que resistem à efemeridade e insistem em ser, por mais um carnaval a imagem alegórica da fênix” (LÉLIS; MENEZES, 2008). Amor, orgulho e resistência ocupam os lugares centrais nas respostas dos brincantes de samba entrevistados. Mobilizam esforços para a (re)construção anual e para os sentidos de continuidade, impelem as escolas a se manterem vivas, diante da figura da morte, lindas aos olhos de quem as faz. A gente não faz vergonha não, eu tenho o maior orgulho dessa escola de samba. Você sabe o que é amor? É o que eu sinto por ela. Eu fico doente quando as pessoas dizem que ela não vai sair, ela sai! Eu viajo muito na minha mente! Quando eu penso nela na avenida, eu choro, fico pensando: meu Deus, será que a gente vai conseguir? Aí, quando chega na véspera, eu já entro em estado de choque, eu não durmo, eu vejo o dia amanhecer. A sensação, quando eu vejo a escola entrar na avenida, é tão grande que eu não sei falar. Quando ela está toda formada, seguindo o caminho dela, eu tomo distância, é como se fosse a coisa mais importante da minha vida. É uma sensação que não tem nem como eu explicar. Tu acredita que nem roupa eu faço? Eu venho empurrando o carro. Eu fico ali, próxima ao portão, quando o portão se abre, eles vão entrando, é uma sensação muito boa. (Conceição, Unidos de São Carlos). Eu trabalho dia e noite, estou aqui desde de manhã trabalhando, sem receber nada, porque eu gosto de samba. Se eu tirar R$ 50,00 pra mim, vai fazer falta pra comprar material. Só sabe o que é quem tá aqui dentro. Agora, no dia a Vila fica um deserto, vai todo mundo pra avenida pra ver ‘Limonil’. Tive dois AVCs aqui dentro esse ano, preocupação, virando noite. É um amor que não tem explicação, mas se não fosse esse amor, já teria desistido, é tudo muito difícil. (Nado, diretor, Limonil) Trabalho para Galeria por amor, só por amor, não ganho nada. E amor é sentimento precioso, não sinto por qualquer coisa não. Já tive muito aperreio, não se tem dinheiro para nada. Para comprar a pele para os surdos, as baquetas novas, não tem dinheiro, nunca... É um sofrimento, é na raça que sai. Mas eu amo ‘Galeria’, tenho o maior orgulho da Escola, é a escola do meu coração. (Naná, Galeria do Ritmo) O que faz eu ficar aqui depois de falar tudo isso? É que aqui eu sou feliz ainda e na vida nada mais importante do que a nossa felicidade. Ter orgulho do que faz e sentir prazer em fazer. (Correia, Samarina)
Por outro lado, pensando com base em Goffman (2009, p. 23) e na sua ideia de controle das impressões, “[...] quando um indivíduo se apresenta diante de outros, terá muitos motivos para procurar controlar a impressão que estes recebem da situação”, a valorização da dificuldade engrandece o feito. As falas dos sambistas pernambucanos convergem para a exaltação da resistência, do orgulho e do amor, sentimentos elaborados em oposição à negação, à rejeição, e ao ódio, constitutivos da “batalha frevo-samba”. Deste ponto de vista é
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possível visualizar o esquema maniqueísta representativo do drama das escolas de samba do Recife. As lideranças entrevistadas selecionam o que esconder e revelar, seleção carregada de intenções a traduzir uma impressão idealizada, “[...] a representação de um indivíduo acentua certos aspectos e dissimula outros” (GOFFMAN, 2009, p. 67). A dificuldade é real, palpável e presente na experiência social das escolas de samba, argumento selecionado para aparecer de forma direta junto às reivindicações de ordem prática. Está também nas falas estruturadas nas ideias de orgulho, amor e resistência, pois esses sentimentos são evocados, em grande medida, pela dificuldade, valorizando o fazer da escola de samba no Recife. A experiência da construção do desfile da ‘Gigante do Samba’ se inspira no carnaval do Rio de Janeiro e culmina nas ruas do carnaval do Recife, vejamos, no próximo capítulo, as vivências, relações e representações construídas pelos sambistas recifenses acerca desses dois carnavais, distintos entre si embora unidos pelo samba.
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3.5 Caderno de Imagens I
Fig. 09. Festa dos Protรณtipos da Gigante do Samba, Setembro 2012. Fonte: Hugo Menezes
Fig. 10. Festa dos Protรณtipos da Gigante do Samba, Setembro 2012. Fonte: Hugo Menezes
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Fig. 11. Festa dos Protรณtipos da Gigante do Samba, Setembro 2012. Fonte: Hugo Menezes
Fig. 12. Festa dos Protรณtipos da Gigante do Samba, Setembro 2012. Fonte: Hugo Menezes.
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Fig. 13. Festa dos Protรณtipos da Gigante do Samba, Setembro 2012. Fonte: Hugo Menezes
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Fig. 14. Encontro para elaboração do vídeo para a Noite das Baianas, Novembro 2012. Fonte: Hugo Menezes
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Fig. 15 Noite das Baianas, Gigante do Samba. Dezembro de 2012. Fonte: Hugo Menezes
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Fig. 16 Noite das Baianas, Gigante do Samba. Dezembro de 2012. Fonte: Hugo Menezes
Fig. 17. Noite das Baianas, Gigante do Samba. Dezembro de 2012. Fonte: Hugo Menezes.
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Fig. 18 Noite das Baianas, Gigante do Samba. Dezembro de 2012. Fonte: Hugo Menezes
Fig. 19. Noite das Baianas, SaĂda da cesta, sede da Gigante do Samba. Fonte: Hugo Menezes
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Fig. 20 Noite das baianas, participação do Maracatu Encanto da Alegria. Dezembro de 2012. Fonte: Hugo Menezes
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Fig. 21 Preparação para o desfile, confecção de fantasias, sede da Gigante do Samba, Setembro 2012. Fonte: Hugo Menezes
Fig. 22 Preparação para o desfile, confecção de fantasias, sede da Gigante do Samba, Setembro 2012. Fonte: Hugo Menezes
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Fig. 23 Preparação para o desfile, confecção de adereços, sede da Gigante do Samba, Setembro 2012. Fonte: Hugo Menezes
Fig. 24 Preparação para os desfiles. Croquis de fantasias, sede da Gigante do Samba, Setembro 2012. Fonte: Hugo Menezes
Fig. 25 Preparação para o desfile Alegoria para reutlização, sede da Gigante do Samba, Setembro 2012. Fonte: Hugo Menezes
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Fig. 26 Preparação para o desfile e Festa dos Prótótipos. Protótipo de fantasia. Sede da Gigante do Samba, Setembro 2012. Fonte: Hugo Menezes
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Fig. 27 Preparação para o desfile. Ensaio de rua Galeria do Ritmo, novembro de 2011. Fonte: Hugo Menezes
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Fig. 28 Sede da Escola de Samba Limonil. Visita em 02/12/1012. Fonte: Hugo Menezes
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Fig. 29 Quadra da Escola de Samba Samarina. Visita em 21/11/1012. Fonte: Hugo Menezes
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Fig. 30 Sede Escola de Samba Unidos de SĂŁo Carlos. Visita em 10/10/1012. Fonte: Hugo Menezes
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Fig. 31 Preparação para o desfile. Sede Escola de Samba Unidos de São Carlos. Visita em 10/10/1012. Fonte: Hugo Menezes
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Fig. 32 Sede Escola de Samba Unidos de SĂŁo Carlos. Ensaio da Bateria. Visita em 10/10/1012. Fonte: Hugo Menezes
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Para as agremiações carnavalescas, o processo ritual do desfile é vivenciado durante todo o ano de forma cíclica e ininterrupta; a culminância se manifesta no carnaval. Uma grande expectativa é gerada até a festa carnavalesca pelas centenas de agremiações do Recife e por toda comunidade envolvida na sua produção, assim como o é para as escolas de samba, como observamos no terceiro capítulo. Entretanto, estas últimas, diferentemente das outras agremiações, apresentam uma dupla expectativa, pois se localizam entre dois carnavais: o do Recife e o do Rio de Janeiro. O primeiro é o de ordem da realidade, da experiência prática, a passarela por onde efetivamente desfilam as suas escolas, o amor e o orgulho renovados ciclicamente. O segundo é o carnaval acompanhado a distância, idealizado, sonhado, produto da imaginação e de impressões elaboradas. Este capítulo, inicialmente, pretendia analisar o desfile da ‘Gigante do Samba’ no Carnaval do Recife, e assim o fiz na primeira parte. No entanto, esse duplo vínculo também desviou meu olhar para relação entre os sambistas pernambucanos e o Carnaval das escolas de samba do Rio de Janeiro, movimento realizado na segunda parte do capítulo. Nesta chamada primeira parte, analiso o atual modelo de carnaval oficial da cidade, o Carnaval Multicultural do Recife, pensando que, a partir dele, é possível refletir sobre o lugar das escolas de samba na festa e na vida social da capital pernambucana. Procurei entender os agenciamentos das categorias multiculturalismo e globalização, iluminadas pelo referido modelo, amparado nas reflexões de DaMatta (2001), Calhoun (2001), Hall (2008) e LeviStrauss (2010). Com efeito, conecto as discussões atuais circunscritas nessa ‘Festa’ a antigos embates e hierarquias simbólicas impressas na história do carnaval do Recife, acreditando que estes são reanimados e continuam a incidir diretamente na experiência dos sambistas pernambucanos. Em seguida, lanço um olhar etnográfico sobre o Concurso das Agremiações Carnavalescas, no qual concorrem as escolas de samba, apresentando um ponto de vista sobre o desfecho do processo ritual do desfile. Na segunda parte, tomando como evidência antropológica, a presença iminente do carnaval das escolas de samba do Rio de Janeiro na vida das representantes pernambucanas do gênero, sistematizo e analiso as principais impressões elaboradas pelos sambistas locais sobre o Carnaval carioca. A partir das falas dos interlocutores e da sua observação, monto um quadro com as imagens mais recorrentes, a fim de refletir sobre o jogo de alteridade que atua nas escolas de samba do Carnaval do Recife, visível desde a produção até o desfile, e atravessa ainda a elaboração da auto-imagem desses grupos. Esse esforço etnográfico tem
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bases no diálogo com os trabalhos de Cavalcanti (2006, 1999) sobre os bastidores do Carnaval das escolas carioca. 4.1 O Carnaval Multicultural do Recife Cavalcanti (1999, p.85) chama atenção para a perda da hegemonia nacional do carnaval do Rio de Janeiro, destacando o deslocamento do interesse de foliões e da imprensa para os carnavais de Salvador, de Olinda e Recife, a partir dos anos de 1980, quando surge novas formas de representar a nacionalidade valorizando-se as diferenças culturais e a ideia de pluralidade: Creio que a partir dos anos de 80, o desfile vem perdendo a hegemonia nacional: os carnavais de Salvador (BA) e de Olinda e Recife (PE), embora todos muito diferentes entre si e igualmente carnavalescos, já atraem interesse no mínimo semelhante entre foliões, imprensa e curiosos. A própria forma de representar a nacionalidade transformou-se, valorizando cada vez mais as diferenças culturais, numa sociedade que se concebe cada vez mais nitidamente plural.
A referida década foi, de fato, para o Recife, marco na construção de uma festa oficial, com experimentações de formatos diversos, na medida em que as gestões municipais sucediam-se178. A Prefeitura dedicou-se à elaboração e execução de uma festa capaz de traduzir, de uma maneira ou de outra, conceitos historicamente elaborados para o carnaval como: popular e democrático; “de chão ou de rua”, oposto ao “de arquibancadas”; “de participação”, contrário ao “de espetáculo”. Em geral, as imagens do carnaval “de espetáculo” ou “de arquibancada” estão, para o imaginário pernambucano, ligados ao Rio de Janeiro. Lembro ainda que o binômio “espectadores – foliões” permeia a história da festa carnavalesca do Recife, desde o final do século XIX, inicialmente, como parte dos argumentos dos intelectuais defensores dos clubes pedestres de frevo contra os Clubes de Alegoria e Crítica, depois contra o corso, e com mais contundência em oposição às escolas de samba, todos vistos como excludentes e apenas para a contemplação. No começo da década de 1980, a gestão do então Prefeito Gustavo Krause (PFL) põe em prática o projeto de “Carnaval Participação”. Para tanto, a passarela do desfile das agremiações foi retirada do carnaval, com o intuito de estimular a participação direta, na qual, 178
Desde a década de 1940, a Prefeitura do Recife assumiu para si a organização, fiscalização e os custos da festa, além dos Concursos das agremiações carnavalescas, festivais e outros eventos. Sobre a oficialização do carnaval do Recife, ver Araújo (1996, 2008), Silva (2009), Neves (2011), Lélis (2011), Santos (2010) e Dantas Silva (1991, 1999).
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teoricamente, não há espectadores, apenas foliões “no chão”. Intencionava ainda estimular as manifestações populares, as agremiações “autenticamente pernambucanas”, acostumadas com o carnaval de rua, nas vielas das comunidades da periferia da cidade, no aperto das ladeiras de Olinda. Assim, o binômio era atualizado, os embates simbólicos entre o frevo e o samba também. Ainda na primeira metade da década de 1980, a passarela voltou ao seu lugar. Outros prefeitos experimentaram modelos para a festa e investiram neles. Nos anos de 1990, por exemplo, na gestão de Jarbas Vasconcelos (PMDB), destaca-se a inserção dos trios elétricos de Salvador179, e o deslocamento da festa, tradicionalmente ocorrida no centro da cidade, para a orla do bairro nobre de Boa Viagem, com fins de atrelar o carnaval ao “turismo sol e mar”180. Entretanto, quando os conceitos de participação, de valorização dos conteúdos da pernambucanidade pareciam esmorecer, o carnaval aderir a uma lógica de mercado, similar a de outras capitais, o quadro muda radicalmente. Em 2001, a Prefeitura, na gestão do prefeito João Paulo e do secretario de cultura Roberto Peixe181, elabora um novo modelo de festa intitulado “Carnaval Multicultural do Recife”. Desde então bem sucedido, inclusive, replicado em outras partes do Brasil, especialmente nas cidades de gestão petista, como Fortaleza. O Carnaval Multicultural pauta-se nas noções de participação, diversidade e democratização, como chaves para seu conceito, conectando o carnaval às discussões políticas atuais. Trata-se, na prática, de um megaevento com atrações nacionais, internacionais e locais (nessa categoria, incluem-se também as agremiações carnavalescas), espalhadas por toda a cidade, de modo descentralizado, absolutamente gratuito. Para tanto, demanda grandes investimentos financeiros, providos por patrocinadores de peso; intensa negociação política entre poder público e a cidade, para a sua realização; e, no campo simbólico, agenciamentos dos símbolos, construção de novos discursos identitários, com fins de produção e projeção da “nova” imagem do carnaval da cidade.
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O historiador Leandro Patrício da Silva (2012) chama a atenção para a construção histórica da rivalidade entre Pernambuco e Bahia, inscritas nas disputas, simbólicas e políticas, pela posição de destaque da vida econômica e cultural da Região Nordeste. 180 Na história do carnaval do Recife, há fluxos de redescoberta do potencial turístico da festa. Como discutimos no I capítulo, desde a fundação da Federação Carnavalesca, em 1935, o carnaval era entendido como festa potencialmente capaz de atrair turistas, sobretudo com o chamariz do frevo em sua originalidade, frente a outras manifestações artísticas do Brasil. 181 Ambos do Partido dos Trabalhadores (PT).
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4.1.1 O conceito e a organização da festa “Multicultural” A premissa do respeito à diversidade cultural entre os países de culturas e suas distintas é consenso em instâncias de discussões internacionais, pensada como ação estratégica para a efetivação de países mais justos e democráticos, capazes de enfrentarem a exclusão social. Ao mesmo tempo, a atuação política dos vários grupos constitutivos das grandes cidades, em suas múltiplas expressões, mostra a diversidade dentro da própria cultura, “no seio de cada sociedade” (LEVI-STRAUSS, 2012), desafiando os setores de desenvolvimento político e econômico, a encarar a população como inscrita na diferença182. [...] Pois esse problema da diversidade não se apresenta apenas a respeito das culturas encaradas nas suas relações recíprocas. Apresenta-se em cada sociedade que reúne em seu seio grupos e subgrupos que não são homogêneos: castas, classes, meios profissionais ou confessionais... Esses grupos desenvolvem entre si diferenças às quais cada um dá grande importância, e é possível que essa diversificação interna tende a crescer quando a sociedade se tornar mais numerosa e mais homogênea de outros pontos de vista. (LEVI-STRAUSS, 2010, p. 15)
No início do século XXI, o enfrentamento à exclusão social, o atendimento das demandas das ditas “minorias sociais”, a integração dos diferentes grupos “no seio de cada sociedade” e a promoção da cidadania pautam as discussões políticas no Brasil, no mundo. A atenção à diversidade cultural, portanto, está situada nas diretrizes internacionais, para elaboração de políticas públicas de cultura e, por conseguinte, faz-se presente no Plano Nacional de Cultura184, tradutora das referidas diretrizes na realidade brasileira, reverbera-a nas políticas, nos âmbitos estaduais e municipais. Não obstante, a Prefeitura mostrava-se sensível a tais discussões contemporâneas, entendia o Recife como uma cidade a assumir o “problema da diversidade”, das relações conflituosas entre grupos e subgrupos com suas diferenças, todas importantes, a serem acolhidas, trabalhadas e equalizadas. Conjugando-as nas bases da justiça social, da igualdade. 182
Blacking (1984), analisando a sociedade inglesa, a sua constituição multicultural, sublinha o equívoco em pensar que tal natureza se manifesta apenas com a inserção de imigrantes asiáticos, caribenhos, como parte substancial da população inglesa. Para ele, as diferenças anteriores, como os estilos de vida do norte e do sul, entre classes, entre ricos e pobres eram tão grandes quanto as que existem entre sociedades. Os antropólogos deveriam estar atentos a elas. “[...] But even before Caribbean and Asian immigrants farmed a substantial part of its population, it was in fact multicultural: differences between the lifestyles of people in the north and south of the country, between classes and between rich and poor, were as great as between societies that anthropologists would describe as having different cultures. (BLACKING, 1984, p. 18) 184 Em âmbito internacional, ver a “Declaração Universal sobre Diversidade Cultural”, de 2001. Para localizar a diversidade cultural nas políticas públicas nacionais, ver o Plano Nacional de Cultura, disponível no site do Ministério da Cultura: http://www.cultura.gov.br/plano-nacional-de-cultura-pnc-, que tem por finalidade o planejamento e implementação de políticas públicas voltadas à proteção, à promoção da diversidade cultural brasileira.
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O Carnaval oficial do Recife, promovido pela Prefeitura, foi escolhido com um emblema desse “novo” olhar político da gestão pública, por ser considerado expressão dessa sociedade pluricultural, festa na qual se encontram referências múltiplas185, contribuições culturais,
diálogos diversos, em conflitos históricos, porém redutíveis entre si. Surge o
Carnaval Multicultural do Recife, nomenclatura articuladora das chaves para o conceito da festa – a participação, a diversidade e a democratização. A princípio, o Carnaval Multicultural viria sanar os problemas de governabilidade de um microcosmo dessa sociedade (ou lidar com eles), “[...] na qual diferentes comunidades culturais convivem e tentam construir uma vida em comum [...]” (HALL, 2008, p. 50). As expressões carnavalescas foram elencadas como representantes da diversidade interna da cidade186, denotam origens distintas e misturas singulares. São muitas as manifestações populares do carnaval do Recife, preenchidas de sentidos, ligadas às matrizes étnico-raciais, a processos de construção histórica e de hibridização, constitutivos das identidades locais e nacionais. Clubes e troças de frevo, caboclinhos, maracatus, bois, ursos, tribos de índio, escolas de samba, afoxés representam os recifenses em grupo e subgrupos de uma metrópole em suas interações e conflitos. Representam sobremaneira a cultura tradicional pernambucana, no entanto pensada por meio das assimilações, recriações e improvisações, a serem atendidas por políticas públicas, com vistas à igualdade de direitos. Dessa forma, o Carnaval se apresenta como espaço emblemático, propício à atuação, reivindicação, exibição e preservação das práticas artísticas, da vida social de inúmeras comunidades invisibilizadas. As agremiações ocupam lugar de destaque nos materiais publicitários, nos discursos políticos do Carnaval Multicultural, os quais insistentemente referendam os chamados “brinquedos” em sua singularidade, como temas preponderantes dessa festa. Sobressaem, nesses materiais e discursos, o sentido de “festa participativa”, a experiência “da rua”, caros ao percurso de momo no Recife. As agremiações atendem a uma programação preestabelecida, disponibilizada para a população, com dias e horários definidos na programação de todo o carnaval. Assumindo a diversidade como constituinte da cidade, esta visa a uma programação que, propositalmente, evidencia as influências múltiplas e inevitáveis, os diálogos entre o tradicional e o moderno, o 185
Na discussão sociológica, a noção múltiplas referências culturais é entendida como parte do espaço, da dinâmica citadina, desde o começo do século XX. Parece estar no cerne do conceito de cidade de autores clássicos desta temática como Park (1979, p. 61) que assim pensa: “[...] cidades grandes como sempre foram um cadinho de raças e de cultura”. Wirth (1979, p. 104) pode ser outro exemplo, atentando para o “cosmopolitismo” como componente da natureza urbana. 186 Assim como os folguedos carnavalescos estiveram no centro do pensamento e das ações do movimento folclórico, entendidas como núcleo da identidade nacional. Ver Vilhena (1997)
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local e o global. Para tanto, junto às agremiações no Carnaval do Recife também se apresentam, nos palcos públicos e gratuitos, outras manifestações artísticas, ritmos como rock and roll, manguebeat, MPB, música eletrônica. Na programação, figuram nomes de artistas nacionais, internacionais, não necessariamente ligados ao repertório carnavalesco tradicional da cidade, tais como Sandra de Sá, Emílio Santiago, Caetano Veloso, Baby do Brasil, Seu Jorge, Zeca Baleiro, Titãs, Paralamas do Sucesso, Zélia Duncan, Nação Zumbi, Tulipa Ruiz, DJ Sasha (da Croácia), Mc CP (dos Estados Unidos), entre outros (para citar apenas os artistas da programação de 2013). À primeira vista, o Carnaval Multicultural, ao mesmo tempo em que visibiliza e integra “todas as agremiações carnavalescas”, considerando-as, em tese, importantes em sua diversidade, promove o diálogo entre os grupos da cultura popular e outros artistas. Com efeito, parece resolver históricas disjunções, antigos problemas na conjugação de categorias antagônicas constituintes das discussões sobre o carnaval na cidade, como a relação entre o tradicional e o moderno, o autêntico e o híbrido, o “genuinamente pernambucano” e o “estrangeiro”. Expostos ao diálogo, os diferentes artistas e as categorias que representam são tratados como imprescindíveis um a outr e não “mutuamente excludentes”. O conceito da festa do Recife parece “agir antropologicamente” (DAMATTA, 2001): O global termina e se realiza no local, tal como o moderno tem como o seu outro lado necessário o tradicional [...]. Desse modo, vale a pena, de saída agir antropologicamente e considerar que global e local, bem como moderno e tradicional, não são categorias mutuamente exclusivas. [...] Assim, tanto a oposição global/local quanto a dicotomia moderno/tradicional falam de estilos de vida que vão juntos e que não podem ser lidos como etapas de um processo que inevitavelmente desembocaria na globalização ou na modernidade como uma instância de sociabilidade e englobadora de toda a história humana. (DAMATTA, 2001, p. 168- 169).
Logo, não caberiam mais os embates em torno da proteção da tradicionalidade e do impedimento das influências “de fora”. Aliás, os “de fora” não devem mais ser vistos como perigo à pureza do carnaval: a modernidade não é perigosa, e o carnaval do Recife não é puro, é diverso. No conceito da Festa, a cidade é imaginada como agregadora de referências, e a tradição, longe de ser ensimesmada, é construída pelas assimilações, recriações e improvisações. Por isso é possível pensar e naturalizar o convívio de agremiações tradicionais e uma tenda eletrônica, com um DJ croata na mesma programação. No Carnaval Multicultural, pessoas e grupos, de várias partes do Brasil e de outros países participam, trocam influências entre si. Essa é, no conceito da Festa, a dinâmica cultural na qual se inserem, há mais de um século, o frevo, o maracatu o caboclinho, o urso, o boi e demais
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brinquedos, vivenciados, acrescidos e repassados a outros universos sociais e artísticoculturais (e deles também a receber), à revelia dos debates sobre a proteção da pernambucanidade. A descentralização é outra chave para o conceito da festa, atende à demanda de democratização do acesso aos conteúdos da festa oficial, antes concentrada no centro do Recife. O Carnaval Multicultural materializa-se na realização dos polos de carnaval. Um polo diz respeito a uma estrutura física, de palco e/ou arquibancada, uma programação de artistas a compor a “grade de programação”. A elaboração da grade exige muita negociação entre setores da Prefeitura distintos e, por vezes, divergentes como a Secretaria de Cultura, a Secretaria de Turismo, a Secretaria do Orçamento Participativo187; e ainda os artistas, as lideranças comunitárias (movimentando-se em prol de seus polos descentralizados), o Conselho de Municipal de Cultura, os patrocinadores, entre outros.
O lançamento e
divulgação da programação dos polos ocorrem nas proximidades do carnaval e geram muita expectativa. O significado de descentralização, portanto, foi na prática a continuidade dos polos já historicamente consolidados como “lugares de carnaval”, nos bairros centrais do Recife – os polos centrais - e a inserção de outros espalhados pela periferia da cidade, em bairros política e geograficamente estratégicos – polos descentralizados. Em 2013 foram oito polos centrais situados nos bairros de São José, Santo Antônio, e no Bairro do Recife (ou Recife Antigo), próximos um do outro é possível fazer o circuito por todos a pé, são eles: Polo do Marco Zero, Praça do Arsenal, Cais da Alfândega, Avenida do Guararapes, Pátio de São Pedro, Pátio do Terço, Avenida Nossa Senhora do Carmo e Pátio de Santa Cruz. O Polo do Marco Zero é o palco principal da festa, o maior e mais evidenciado pela cobertura da imprensa. Sua programação é diversificada; nele ocorre a abertura do carnaval e as atrações mais importantes, no sentido midiático. O polo da Praça do Arsenal inicia sua programação à tarde, para atender ao público infantil; à noite, junto com o Pátio de São Pedro, apresenta uma programação bastante eclética, vários ritmos, artistas nacionais e locais dividem o palco. Este último, por sua vez, vem atendendo ao público LGBT (sobretudo, aos sábados, com apresentação de artistas dessa vertente). O Polo Cais da Alfândega é conhecido como “alternativo”, com artistas do rock, manguebeat, rap, música eletrônica, etc. O Pátio do Terço é o lugar das atrações ligadas às tradições afro-brasileiras, lá
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O Orçamento Participativo (OP) é uma ferramenta de gestão petista para a escuta pública às comunidades para apreensão das necessidades e escalonamento das prioridades. Parte do princípio da negociação, da aplicação do orçamento público, com a população e posterior prestação de contas. Em Recife, no ano 2012, momento da pesquisa, havia uma Secretaria específica para OP, extinta em 2013, quando assume a nova gestão do PSB.
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ocorre o encontro de Afoxés, a cerimônia da Noite dos Tambores Silenciosos188, shows de artistas e grupos, cuja produção se vincula ao conceito afro do polo. Os Polos da Avenida Guararapes, Avenida Nossa Senhora do Carmo e Pátio de Santa Cruz são dedicados às agremiações carnavalescas, sobremaneira, abrigam o Concurso das Agremiações, do qual participam as escolas de samba, como veremos mais adiante. Em 2013, foram realizados nove polos descentralizados nos seguintes bairros: Brasília Teimosa, Chão de Estrelas, Casa Amarela, Nova Descoberta, Alto José do Pinho, Várzea, Jardim São Paulo, Ibura e de Água Fria. São palcos com estrutura de iluminação e som proporcionalmente similar aos centrais, com uma programação interessante, com vistas a concorrer com os polos centrais, de fato, como opção plausível. Os polos descentralizados não impedem a concomitância do chamado “carnaval de rua”, espontâneo, organizado e executado pelas comunidades, com os “blocos de sujo” ou “bloco de arrastão”, para levar foliões pelas ruas do bairro e do entorno, ao som das orquestras de frevo ou trios elétricos (dependendo do tamanho do bloco). Antigas prerrogativas sobre o carnaval do Recife são atualizadas e utilizadas como marcas diferenciadoras da festa recifense. O carnaval “popular e democrático”, do qual “todos participam de forma livre e gratuita”, por exemplo, continua a ser um corpus histórico importante e uma imagem singular a se contrapor às imagens dos carnavais do Rio de Janeiro e de Salvador189. Estes são considerados como de participação restrita, excludente, tanto pelos altos preços, como por vagas limitadas do sambódromo, igualmente, como pelos cordões de isolamento dos blocos soteropolitanos. No campo do turismo, é um produto bem sucedido e um concorrente forte frente à festa destas duas cidades (Rio de Janeiro e Salvador). Todavia, o modelo não é blindado a criticas. O Carnaval Multicultural provoca debates desde os anos 2000, acerca do seu conceito e realização. O uso da categoria multicultural aparentemente acomodou as tensões historicamente presentes no carnaval, mas, na prática, os conflitos apenas ganham novos contornos com as discussões sobre delimitações de espaços de visibilidade, a presença de atrações não consideradas pertencentes ao repertório carnavalesco local.
188
O Pátio do Terço é emblemático para entender a lógica dos polos centrais. A noite dos Tambores já existia neste lugar há mais de 50 anos. A Prefeitura aproveitou o lugar tradicional de carnaval e instalou um Polo. 189 Sobre um panorama dos carnavais de Recife, Salvador e Rio de Janeiro, ver Santos (2010) e Ferreira (2004).
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4.1.2 Crítica ao Carnaval Multicultural A categoria multicultural é tratada pela gestão pública, assimilada pela população, como sinônimo de pluralidade cultural. Ser multicultural é igual a ser “muito cultural”, muito no sentido quantitativo e no de intensidade, ser por demais “cultural”. O multiculturalismo, entretanto, é uma formação discursiva190 e, como tal, desdobra-se, gera novos argumentos, certezas e desafios (CALHOUN, 2001, p. 202). O multiculturalismo recifense, esse “muito cultural”, criação do seu carnaval (ARGIER 2011, p.156)191, devolve ao debate novas questões e desafios como efeito inadvertido de seu uso corrente e pouco reflexivo. O principal desafio escapa ao discurso público (CALHOUN, 2001)192: a articulação das diferenças para além do reconhecimento delas. Assumir ser pluricultural, inserir a diversidade como categoria do discurso, como conceito da festa, é um feito importante, mas, por si, não equaliza problemas históricos na relação entre “os diferentes” no carnaval. Circula em Recife, uma ideia simplista acerca do multiculturalismo, basicamente o que alerta (CALHOUN, 2001, p.205): “[...] estaria simplesmente na afirmação de que pessoas de culturas diferentes podem viver juntas em harmonia, e para mútuo benefício, em um mesmo país”, sem necessariamente produzir “[...] estratégias e políticas para governar ou administrar problemas de diversidade e multiplicidade” (HALL, 2008, p.50). Acomodar as agremiações carnavalescas junto a artistas internacionais não atende às demandas específicas desses dois personagens, especialmente não atua de forma equânime com quem mais precisa da ação da política pública. As agremiações carnavalescas não se mostram satisfeitas em dividir o espaço com outras produções artístico-culturais. Para elas, o Carnaval Multicultural significa perda de espaço, e não um ganho. Surgem mais artistas concorrentes para dividir os recursos públicos, e estes artistas “de fora” ganham muito mais por uma questão de valor de mercado. Assim, estão juntos nos mesmos polos, porém, de forma desigual.
190
Em consonância com Craig Calhoun (2001, p.200), “O multiculturalismo é uma formação discursiva, como diria Foucault, e não apenas uma posição essencialista. Assim como o individualismo, o multiculturalismo é uma fonte inesgotável de novos discursos, novos argumentos, novas certezas e novos desafios para certezas.” 191 Alerta Argier (2011, p.156): “As criações do carnaval elaboram retóricas identitárias de um modo quase experimental, suscetíveis de se prolongar no cotidiano comum e de alterar componentes políticos, ideológicos e identitários da cidade no seu conjunto”. 192 Novamente nos termos de Calhoun (2001, p. 202): “O que nós conhecemos como discursos públicos é o modo pelo qual as idéias, as opiniões e identidades são apresentadas e submetidas ao debate mais ou menos aberto – idealmente, talvez um debate crítico racional [...]. É uma arena de debate e tentativas de persuasão reconhecidas. O discurso público é um dos modos possíveis de transmissão e reprodução da cultura, mas não o único”.
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Nessa relação de conflito, provocada pela inserção de artistas de outros lugares, as lideranças das agremiações atualizam os ideais de pernambucanidade. É, por exemplo, frequentemente retomada a noção da “invasão estrangeira”, de produções alheias ao repertório carnavalesco pernambucano (argumento fundante da “batalha frevo-samba”). Nesse momento, contudo, não são apenas as escolas de samba as “grandes intrusas”, “estrangeiras” e “perigosas”, o novo modelo amplia o perigo e reacende regionalismos latentes. Como exemplo das discordâncias ao modelo do Carnaval Multicultural, cito o trecho do texto da Liga dos Blocos Líricos – LBL193, assinado pelo Presidente da entidade, Seronildo Guerra da Silva, lido publicamente no 1º Encontro do Plano Integrado de Salvaguarda do Frevo194, divulgado na Internet, em 2011. No documento, há a reivindicação por espaços privilegiados para o frevo e uma crítica ao modelo da festa oficial da Prefeitura do Recife, no enfrentamento aos conteúdos tidos como alheios ao repertório do carnaval pernambucano. Venho através desta como uma entidade que luta pela exposição das nossas agremiações o ano todo. [...] A proposta de ‘Carnaval Multicultural’ nos exclui das outras festas de época e de apresentações o restante do ano no Estado, pois, não existe “São João Multicultural”, assim como, não tem “Natal Multicultural”. Entretanto, quando o carnaval é “Multicultural”, dividimos nosso espaço com todos aqueles que já se apresentam o ano todo, como: Rock; Forró; Reggae; Manguebeat, Pagode, Brega, Hip-hop, etc. Nunca nenhum Bloco Lírico foi convidado para um Festival de Rock, ou para uma festa de Forró, ou ainda, um Festival de Manguebeat. Nada contra as apresentações deles, porém, o nosso frevo, é a nossa âncora cultural musical. Esse Multicultural que vivenciamos, tendo a presença de outros ritmos, forasteiros, chama-se mistura baiana. As Agremiações Carnavalescas, bens resultantes ou identificadas como os processos de transformação da matéria prima, são os bens que resultam de performance, que inclui a atualização dessas manifestações culturais em seus múltiplos valores e significados, responsáveis legítimos pela sua difusão. (Seronildo Guerra da Silva, Presidente da Associação da Liga dos Blocos Líricos de Pernambuco, 2011) (grifos meus)
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Entidade que reúne os blocos líricos ou blocos de pau-e-corda. Agremiações originárias do Recife, nos anos de 1920. Em sua formação oficial, tem semelhança com os ranchos carnavalescos do Rio de Janeiro e com os grupos de pastoril do ciclo natalino. São estas as suas características: um coral feminino acompanhado por uma orquestra de pau-e-corda, composta por instrumentos como banjo, bandolim, cavaquinho, violão, pandeiro, entre outros. Esses grupos tocam frevos-canção de melodia lenta e compassada que falam predominantemente de amor e de antigos carnavais. Ver Menezes Neto; Pinheiro Sarmento; Ribeiro e Nascimento (2008, 2009). 194 Em 2007, o Frevo foi registrado como Patrimônio Imaterial do Brasil pelo IPHAN. O trabalho de realização do inventário para a candidatura foi realizado pela Prefeitura do Recife/Secretaria de Cultura em 2006. Nesse processo de pesquisa, fui pesquisador no que diz respeito à música. Em 2011 houve o primeiro Encontro promovido pelo IPHAN e Prefeitura do Recife para repactuar o plano de salvaguardo construído em 2007, como parte constitutiva do inventário. Este encontro reuniu parcela significativa dos detentores do bem para formar um comitê de acompanhamento do referido plano. O evento foi realizado em 28 e 29 de setembro de 2007, na sede regional do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, em Recife.
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Para citar outro exemplo de manifestação de insatisfação com o modelo do Carnaval Multicultural, cito o trecho da carta da Comissão Pernambucana de Folclore, lida publicamente no Encontro de Avaliação do Carnaval do Recife, realizado pelo Conselho Municipal de Cultura, no ano de 2006. Trata-se de outro lugar de fala, outros agentes, com poder de atuação e alcance distintos, porém com argumentos similares aos explanados pelos Blocos de frevo acima transcrito. Não inventamos nada quando afirmamos que carnaval é poder, ou seja, o poder público manipula o carnaval quando quer e como quer. Parece que algumas dessas manipulações estão dando resultados, outras não. [...] A prefeitura cria diversos espaços para a realização do carnaval. A esses espaços eles chamam de ‘polos’. O Polo do Cais da Alfândega [Polo Mangue] é a novidade: destinado aos públicos que aproveitam o carnaval como uma forma de sair de casa mas, sem gostar do carnaval propriamente dito. É fundamentalmente um público de jovens, que se reúne para ver shows de bandas, disk-jockeys e outras atrações que podem ser vistas pelo país a fora durante o resto do ano. Pasme: tem até desfiles de modas! [...] Nesses pólos, ocorrem apresentações de grupos e de indivíduos, para os quais são destinados recursos financeiros e que nada têm a ver com o sentido maior do festejo, quando tais recursos financeiros deveriam ser mais bem distribuídos com as agremiações carnavalescas, que são as responsáveis diretas pela animação além de manter nesses locais orquestras tocando a mais genuína música do nosso carnaval. Há polos como o afro, por exemplo, que executa tipos de música completamente desligadas do sentido carnavalesco, pois o “reague” e o “funk”, entre outras imitações de ritmos alienígenas, destoam do nosso carnaval. [...] (Comissão Pernambucana de Folclore, 2006). (grifos meus)
Carnavalescos do frevo, representados pela LBL e os intelectuais do folclore foram por muito tempo os oponentes das escolas de samba, no Carnaval do Recife na “batalha frevosamba”. Entretanto, durante os anos 2000, as escolas de samba fazem coro às suas reivindicações, sentindo-se prejudicadas, compartilham com os brincantes do frevo e com os intelectuais críticas similares ao Carnaval Multicultural, demonstrando uma reconfiguração das alianças políticas e reposicionamento dos antagonismos. Durante a pesquisa, em 2012, o modelo da festa carnavalesca do Recife era assunto recorrente entre as lideranças das escolas de samba que defendem a reserva dos espaços de visibilidade para as agremiações e artistas locais, a prioridade das agremiações pernambucanas (todas em sua diversidade), por ocasião da distribuição dos fomentos públicos, via programação do evento. As falas de Correia, presidente da ‘Escola de Samba Samarina’, e de Nado, vice-presidente da ‘Limonil’, são exemplos emblemáticos dessas críticas. Ambos mostram visões negativas sobre o acolhimento aos “cantores de fora” considerando que estes têm oportunidades de se apresentarem o ano inteiro, fora do carnaval, diferentemente das agremiações pernambucanas. E, assim como os carnavalescos de frevo, contestam o conceito da festa, comparando-a com
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os modelos dos ciclos natalino e junino, também realizados pela Prefeitura. Em seus argumentos, o modelo da Festa Junina atende à tradição, restringe a programação aos artistas do gênero forró, coco e xaxado e às quadrilhas juninas, elementos essencialmente pertencentes ao repertório tradicional do “São João do Recife”; não é, portanto, um “modelo multicultural”. Eu acho que não melhorou não porque a palavra carnaval já diz tudo, não pode se envolver tanta coisa. Não pode se envolver funk, não tem nada a ver. Porque não tem outro evento multicultural, é só o carnaval. Abriram brecha, carnaval é carnaval, pra mim carnaval é o que tem aqui, é frevo, somos nós das escolas, essas coisas. No Rio eu só escutei marcha, tudo feito lá, Bandeira Branca, marcharancho, o resto era samba. Aqui, não tenho nada contra, gosto de Banda Calypso, mas não tem nada a ver não. Eles vão matando o carnaval sem saber. E isso veio com o Multicultural de João Paulo (o Prefeito), que fez um bem por um lado e pro outro tirou verba do carnaval pra essas músicas aí que de carnaval não tem nada. (Correia, Samarina) (grifos meus) Essa história de Multicultural só tem o nome porque ela não dá condições de fazer as coisas na altura que ela diz. Eles (a Prefeitura) vêm e colocam um monte de gente de fora e a gente continua ganhando uma miséria. Então é só fantoche, a realidade é outra. Carnaval devia ter as coisas de carnaval e pronto. Esses cantores têm outros lugares para cantar o ano inteiro, nas rádios e etc. Aí vem para Recife porque aqui é multicultural. Então ser multicultural é valorizar os de fora? É abrir as pernas? Não concordo. Pergunta aos sanfoneiros se eles querem o São João Multicultural, com certeza vão correr. (Nado, vice-presidente, Limonil). (grifos meus)
Embora sambistas e brincantes de frevo compartilhem das mesmas críticas ao Carnaval Multicultural, quando focamos a participação das agremiações na Festa, é possível perceber o desequilíbrio entre elas e logo esse par se desfaz. Na programação do Carnaval 2013, as agremiações195 figuram em 430 apresentações na grade de vários polos. Desse total, 40% de apresentações correspondem às agremiações de frevo, enquanto as escolas de samba tiveram uma participação de 1,5%. Esses dados refletem uma hierarquia simbólica entre as manifestações carnavalescas, não coincidentemente as agremiações de frevo são seguidas dos maracatus e juntos contabilizam 65% do total. Em contrapartida, as escolas de samba ocupam seu lugar historicamente desprivilegiado e detêm o menor percentual. Segue a tabela com o percentual de participação das agremiações nas grades de programação dos polos (centrais e descentralizados) no carnaval 2013196. 195
Maracatu de baque solto, maracatu de baque virado, clube de frevo, troças de frevo, clubes de bonecos, blocos de frevo, caboclinho, urso, boi, tribo de índio, afoxé, bloco afro, e escolas de samba. Não contabilizei as apresentações das orquestras de frevo e dos grupos de passistas de frevo. 196 Fonte de dados – Programação do Carnaval do Recife. 2013: http://www.agendadorecife.com.br/CarnavalPernambucoRecife2013.pdf. Análise e produção dos dados, Hugo Menezes. Acessado em 26/03/2014.
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Tabela 02: Participação das agremiações na programação do carnaval 2013 Manifestações carnavalescas Agremiações de Frevo (Clubes, Troças e Blocos) Maracatu de baque solto Maracatu de baque virado Caboclinho Afoxé Boi Urso Bloco Afro Tribo de índio Escolas de Samba
% de participação na grade do carnaval 40% 13% 12% 8% 8% 7% 5% 3% 2,5% 1,5%
A valorização da diversidade, nesse microcosmo que é o carnaval, passa pela igualdade de oportunidades para “grupos e subgrupos” da cidade, com fins de dirimir exclusões latentes. Como visto, isso parece não se concretizar, o Carnaval Multicultural do Recife, na prática, aponta para a continuidade de antigas hierarquias simbólicas, neste caso, evidenciadas pelo desprestígio das escolas de samba na participação da grade de programação. Participar da grade é importante para o orçamento das agremiações. Essa importância se explica por, além da subvenção ligada ao concurso, as apresentações nos polos se reverterem em cachês. São também outros espaços para amostragem do trabalho coletivo e intenso para o carnaval, bem como mais uma oportunidade de vivenciar as emoções da relação com o público. O Presidente da Federação das Escolas de Samba de Pernambuco (FESAPE197), Valdek, declara, como representante político das escolas, grande insatisfação com a elaboração das grades de programação dos últimos anos: “[...] claramente excludente às filiadas da entidade, apesar de se dizer multicultural”. A FESAPE, em 2006, reivindicou publicamente a sua participação na elaboração das programações. Essa entidade reclama, em carta aberta, um melhor tratamento por parte dos organizadores do carnaval. O pleito foi exposto na primeira página do informativo feito por tal entidade, o “Correio do Samba”198, cujo texto é intitulado “O samba continua discriminado”:
197
Federação das Escolas de Samba de Pernambuco - FESAPE - é uma entidade representativa das escolas de samba do Estado de Pernambuco, fundada em 1954. No atual momento, encontra-se esvaziada politicamente, e sua atuação não parece significativa para a vida das escolas de samba no Estado. 198 Em 2013, Valdek informou que a Entidade continua reivindicando maior participação na elaboração das grades de programação do carnaval, uma vez que, de 2006 a 2013, não houve mudança no perfil das grades, e as escolas continuam sem uma participação equivalente a outras agremiações do carnaval da cidade. Entretanto, não houve mais registros escritos, pois o referido informativo foi extinto.
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É bom que o senhor prefeito tome conhecimento da discriminação que os sambistas vêm sofrendo na atual administração [...]. Em anos anteriores a FESAPE era convidada para elaborar em conjunto os desfiles das agremiações carnavalescas [...]. A FESAPE só toma conhecimento quando a dita programação está pronta [...] e para onde vai o dito carnaval participativo que o senhor prefeito apregoa aos quatro cantos do mundo? É bom salientar que as administrações passam, mas, as federações continuam porque são autênticas defensoras das nossas tradições e raízes [...]. Não temos compromissos com partidos ou políticos, o nosso compromisso é com o samba e ao nosso lado estão milhares de sambistas desejando colocar o ritmo mais contagiante do país no seu devido lugar. O samba Sr. Prefeito merece sem dúvidas um melhor tratamento por parte da Prefeitura da cidade do Recife, passarelas limpas, decoradas, iluminadas, com policiamento e com banheiros para atender as necessidades dos nossos foliões, seria o principal ponto de partida. (grifos do autor)
Os sambistas percebem a pouca participação das escolas de samba da grade de programação, consideram a exclusão uma incongruência do Carnaval que se proclama multicultural. Reanimam a “batalha frevo-samba” quando comparam tal participação com a das agremiações de frevo, continuidades da relação histórica, dos “dramas socias” vividos pelas escolas nos embates com o frevo – retaliações financeiras e despassarelização-; dramas ressignificados ou omitidos pelo discurso multicultural.
Nessa história de multicultural o frevo é chamado para todo lugar, e o samba você quase não vê. Cadê as baterias das escolas de samba tocando nos pólos descentralizados? Agora, frevo é só o que tem. É um carnaval multicultural do frevo e da política que está por trás. (Marize, Gigante do Samba) [...] Se é carnaval multicultural tem que ter apoio para todo mundo, não só para uns e outros não. Não mais para o frevo do que para o samba. É isso que a gente vê, discriminação. Trazem cantor de rock, de pagode pagando milhões! Isso não tem nada a ver com o carnaval. Dão não sei quantas apresentações para o povo do frevo. Isso não tem nada a ver com multicultural. (Soldado, Gigante do Samba) Eles apóiam porque o carnaval aqui é chamado multicultural porque junta todas as culturas mas o forte aqui é o frevo, maracatu, caboclinho. E a gente depende cada vez mais da subvenção porque não tem apresentação nas grades do carnaval. (Itamar, Unidos de São Carlos)
A exaltação à diversidade não destituiu o frevo de sua posição de “centralidade simbólica”199, frente a outros ritmos ou manifestações artístico-culturais, tampouco alçou as escolas de samba a uma posição mais confortável. Essas últimas descobrem na prática que, na verdade, a inserção do discurso da multiculturalidade200 no Recife não descarta antigos 199
Inspirado em Lady Selma Albernaz (2002), o seu trabalho compreende o processo de formulação da identidade maranhense frente à nação. A autora estrutura sua argumentação a partir do Bumba-Meu-Boi, afirmando que ele assume uma posição de centralidade simbólica no contexto específico da experiência identitária no Maranhão. 200 Sobre o discurso multicultural, Stuart Hall (2003, p. 84) alerta: “Há o perigo de simplesmente se prezarem os valores distintivos da ‘comunidade’ como se eles nem sempre participassem de um relacionamento dinâmico com todos os outros valores que concorrem ao seu redor”.
189
“pontos de referência” e que tais pontos não são “ficções culturais” (CALHOUN, 2001, p. 177)201, incidem em suas experiências sociais. De fato, a circunscrição periférica foi ampliada e na programação cabem não apenas as atrações “autenticamente pernambucanas”, mas também outros ritmos e estilos. Porém, nem todas as “diferenças de estilos” são acolhidas pelo Carnaval Multicultural, há censuras acerca das atrações e conteúdos, excluindo-se, por exemplo, o calypso, o sertanejo, o arroxa, o axé music, e o forte movimento do brega recifense, espraiado por toda o subúrbio da cidade202. Por esse ponto de vista, há no Carnaval do Recife uma diversidade selecionada e uma “igualdade enganadora”203. Para a compreensão antropológica, creio, inspirado em Leach (1996, p. 308), que “As contradições são mais significativas que as uniformidades”. Assim, os limites e inconsistências da noção de diversidade no Carnaval do Recife evidenciam com mais clareza as fronteiras dos grupos em negociação, fronteiras que “se fazem e se desfazem, num processo eminentemente dinâmico e interativo” (SEMPRINI, 1999, p. 146). O que há de mais multicultural no Carnaval do Recife é essa semiosfera de circulação de símbolos (idem) em uma cidade movimentando-se, ao seu modo, para a elaboração de formas novas de combinar a diferença sem desapegar-se plenamente de suas constituintes históricas e identitárias. A crítica, portanto, não invalida a relevância da experiência do Recife para o pensamento sobre a categoria, as discussões acerca do carnaval brasileiro. O Carnaval Multicultural, como faz as festas, coloca em close up (DAMATTA, 1999) a cidade como lugar de “encontro, colagens e difusões, um dispositivo cultural” (ARGIER, 2011, p. 170). Ilumina processos de exclusão, mas também a capacidade adaptativa das tradições, entre elas as escolas de samba, adequando-se, reinventando-se diante de novos contextos globalizantes, por vezes desfavoráveis a elas. Festa a provocar múltiplos e imprevisíveis diálogos, palco de encontros para a construção de um mundo que “está voltando a se diversificar [...]” (SAHLINS, 2007, p. 545)204, mesmo que a passos lentos. Como diria DaMatta (2001, p,178),
201
Na perspectiva de Calhoun (2001, p. 177), com a qual coaduno, o multiculturalismo moderno liga-se à globalização e ao neoliberalismo, portanto, adotá-lo não significa ausência de poder ou de centro. Adaptando o seu pensamento à realidade da minha pesquisa, penso que o discurso multicultural não se livra do centro simbólico e da periferia onde se localizam, em hierarquias instituídas historicamente, os elementos culturais do carnaval do Recife. 202 Sobre o ‘brega recifense’ e sua diferença e semelhanças com os ritmos do Pará, ver o importante trabalho de Fontanella (2005). 203 Referindo-me aos ensinamentos de Lévi-Strauss (2010, p.19): “A simples proclamação da igualdade natural entre todos os homens e da fraternidade que os deve unir, sem distinção de raças, tem qualquer coisa de enganador para o espírito, porque negligencia uma diversidade de fato, que se impõe à observação [...]”. 204 Para Sahlins (2007, p. 545), “Em certa medida, a homogeneidade global e a diversificação local se desenvolvem juntas, esta última como resposta à primeira, em nome da autonomia cultural nativa”, é o que ele chama de indigenização da cultura.
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tentando tranquilizar os mais pessimistas, quanto ao processo de globalização sobre as culturas locais: “Estou seguro de que o nosso bom senso saberá o que fazer dessa onda globalizadora que nos invade no momento, dela tirando o que pode ser usado, inclusive no carnaval”. 4.1.3 O Polo das Agremiações e o desfile das escolas de samba205 No Polo das Agremiações acontece o Concurso das Agremiações Carnavalescas do Recife. Em 2012 e 2013, o Concurso foi realizado em duas avenidas, próximas uma da outra, no bairro de Santo Antônio (centro da cidade): a Nossa Senhora do Carmo (onde desfilam as agremiações do Grupo Especial) e a Guararapes (passarela do Grupo I). Não há atrações artísticas, além, claro, das agremiações; não há palco, só arquibancadas, no lugar das calçadas, fazendo da pista um corredor, a passarela; um palanque para a comissão julgadora. O Carnaval Multicultural tem nas agremiações a grande imagem-síntese da diversidade e do “carnaval de rua” do Recife. Contraditoriamente, o Concurso é uma ação pouco divulgada e de menor integração com o suporte e o discurso turístico da festa. As passarelas têm estrutura física bastante precária, faltam banheiros, segurança no entorno, a iluminação e o equipamento de som são insuficientes para as necessidades das agremiações. Na Avenida Guararapes, a arquibancada é muito pequena, a maior parte do público assiste aos desfiles em pé; mesmo a da Avenida Nossa Senhora do Carmo, visivelmente maior, não comporta todos no dia de maior público. A estrutura física da passarela é uma reivindicação dos brincantes, um elemento importante da história das escolas de samba, como observados no segundo capítulo. A audiência é composta praticamente pelas comunidades das concorrentes. O dia do samba, a segunda-feira de carnaval, continua sendo, desde os anos de 1960 o dia de maior público (REAL, 1990; SILVA, 2012; LIMA, 2013) 206. O Concurso das Agremiações abraça “onze modalidades” 207: maracatu baque solto, maracatu baque virado, caboclinho, clubes de frevo, troças de frevo, clube de boneco, bloco
205
Fotos do Polo e do desfile das escolas de samba encontram-se no Caderno de Imagens II. O trabalho historiográfico de Lima (2013) comprova, por meio de registros de imprensa, a presença de um público significativamente mais expressivo no dia das escolas de samba nas décadas de 1960 e 1970. 207 Modalidades é um termo no próprio regulamento. Das manifestações apenas os afoxés e os blocos de samba não participam do concurso, seus grupos quando convidados a entrar no certame declinaram do convite, não possuem a competição como norteadora de sua dinâmica. 206
191
de frevo, tribo de índio, ursos, boi e escola de samba208. O Concurso divide as agremiações nos seguintes grupos: Especial (I, II) e Acesso209. Os Grupos Especial (I e II) recebem subvenção pública atrelada a sua participação; já os de Acesso são grupos recém-fundados ou aqueles sem estrutura competitiva consolidada, não recebem a referida subvenção. Em 2013, foram extintos o Grupo II e o Acesso para as escolas de samba, devido à diminuição no quantitativo de representantes do gênero, continuam divididas apenas nos grupos Especial e I. Para visualização, segue a tabela com as escolas de samba, o grupo (até o carnaval de 2013) e seus bairros/comunidades de origem: Tabela 03: Escolas de samba, grupo, bairros/comunidades de origem Escola de Samba Estudantes de São José Queridos da Mangueira Criança e Adolescente Unidos da Mangueira Raio de Luar Imperadores da Vila São Miguel Rebeldes do Samba Deixa Falar Imperiais do Ritmo Samarina Unidos de São Carlos Preto Velho Unidos de Vila Escailabe Limonil Galeria do Ritmo Gigante do Samba
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Grupo
Bairro/comunidade
Grupo I Grupo I Grupo I Grupo I Grupo I Grupo I Grupo I Grupo I Grupo I Grupo I Especial Especial Especial Especial Especial Especial
São José Mangueira Coelhos Mangueira Afogados Vila São Miguel São José Campo Grande Afogados Afogados Afogados Olinda – Cidade Alta Vila Escailabe Vila São Miguel Morro da Conceição Água Fria
Os ursos remetem ao universo simbólico europeu transferido para o Brasil na colonização. Apropriação das artes circense e cigana, a encenação dos “ursos amestrados” transforma-se em brinquedo de carnaval. O urso dança preso ao caçador por uma corda e, em alguns momentos do desfile, foge e simula ataque ao público. Tudo acontece em meio às músicas cantadas por um coral em ritmos de marchinhas, baiões e xaxados. Os bois de carnaval aparecem como uma derivação do bumba-meu-boi, auto que representa a morte e ressurreição deste animal. O caboclinho é o brinquedo de herança indígena. Com penas, arco e flecha, perucas e pinturas corporais, os brincantes mexem com o imaginário em torno da figura do índio e desenham coreografias, que remetem a rituais e narrativas míticas do universo indígena, no ritmo cadenciado produzido por flautas e chocalhos. O maracatu de baque virado é a representação alegórica de uma corte concebida pelos escravos, tendo origens no ritual de coroação de rainhas e reis negros, denominados Reis do Congo. São “fidalgos” de uma corte ricamente trajada de luxo e beleza que enaltece a negritude, sob a égide do contraste com a performance cortesã. Após a abolição, passa a integrar o carnaval como um cortejo, ao som das alfaias e sob as bênçãos dos orixás. O maracatu de baque solto é oriundo do interior do estado, de origens afro-indígena que expressa a fusão de vários folguedos do estado, tais como reisado, pastoril, cavalo marinho e bumba meu boi. Ver Menezes Neto; Pinheiro Sarmento; Ribeiro e Nascimento (2008, 2009) 209 As do Grupo II e do Acesso desfilam no Pátio de Santa Cruz, Avenida do Forte (bairro mais afastado dos polos centralizados). Para as escolas, a ausência dos dois grupos alerta para a diminuição de agremiações do gênero e para os limites da renovação do movimento quando não há criação de novas agremiações de samba e extinção das existentes.
192
Polos Descentralizados Área Central do Recife Escolas de Samba
Fig 33. Mapa do Recife. Fonte: Caderno de Mapas, Ed. Construir. 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. 15. 16. 17. 18. 19. 20. 21. 22. 23. 24.
Aflitos Afogados* Água Fria** Alto do Mandu Alto José Bonifácio Alto José do Pinho Alto Santa Terezinha Apipucos Areias Arruda Barro Beberibe Boa Viagem Boa Vista Bomba do Hemetério Bongi Brasília Teimosa Brejo da Guabiraba Brejo do Beberibe Cabanga Caçote Cajueiro Campina do Barreto*** Campo Grande
25. 26. 27. 28. 29. 30. 31. 32. 33. 34. 35. 36. 37. 38. 39. 40. 41. 42. 43. 44. 45. 46. 47. 48.
Casa Amarela Casa Forte Caxangá Cidade Universitária Coelhos Cohab Coqueiral Cordeiro Córrego do Jenipapo Curado Derby Dois Irmãos Dois Unidos Encruzilhada Engenho do Meio Estância Espinheiro Fundão Graças Guabiraba Hipódromo Ibura Ilha do Leite Ilha do Retiro
* Onde está localizada a comunidade de Vila São Miguel. ** Onde está localizada a comunidade de Escalaibe. *** Onde está localizada a comunidade de Chão de Estrelas.
49. 50. 51. 52. 53. 54. 55. 56. 57. 58. 59. 60. 61. 62. 63. 64. 65. 66. 67. 68. 69. 70. 71. 72.
Ilha Joana Bezerra Imbiribeira Iputinga Ipsep Jaqueira Jardim São Paulo Jiquiá Jordão Linha do Tiro Macaxeira Madalena Mangabeira Mangueira Monteiro Morro da Conceição Mustardinha Nova Descoberta Paissandu Parnamirim Passarinho Pau Ferro Peixinhos Pina Poço da Panela
73. 74. 75. 76. 77. 78. 79. 80. 81. 82. 83. 84. 85. 86. 87. 88. 89. 90. 91. 92. 93. 94.
Ponto de Parada Porto da Madeira Prado Recife Rosarinho Sancho San Martin Santana Santo Amaro Santo Antônio São José Sítio dos Pintos Soledade Tamarineira Tejipió Torre Torreão Torrões Totó Várzea Vasco da Gama Zumbi
193
Fig 34. Mapa do centro do Recife. Fonte: www.recife.pe.gov.br 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8.
Polo do Marco Zero Polo da Praça do Arsenal Polo do Cais da Alfândega Polo da Av. Guararapes Polo do Pátio de São Pedro Polo do Pátio do Terço Polo da Av. N. S. do Carmo Polo do Pátio de Santa Cruz
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O Concurso acontece entre o domingo e a terça de carnaval, durante a tarde e a noite. A programação dos Grupos Especial e I ocorre similar e concomitantemente nas duas avenidas. Ou seja, as escolas dos diferentes grupos não assistem aos desfiles das suas oponentes, pois estão participando de suas competições, no mesmo horário, mas em lugares diferentes. A dinâmica do Polo nas duas avenidas se repetiu nos anos de 2012 e 2013, configura uma forma eficiente de conjugar tantas expressões carnavalescas em pouco tempo disponível. O relato da dinâmica do Grupo Especial ajuda na visualização do Concurso. A competição começa no domingo, a partir das 14h, com a apresentação das troças de frevo cuja característica principal é desfile diurno, diferença primordial com relação aos clubes de frevo. Todas as troças se apresentam até as 17h e, a partir das 19h, é a vez dos clubes de frevo, dos maracatus de baque virado e dos blocos de frevo, em uma sequência de apresentações definida por sorteio, misturando as três modalidades até as 05h da manhã da segunda-feira. Na segunda-feira, o Polo recomeça, das 15h30min às 17h, com os grupos de boi. Composto por muitas crianças, esse brinquedo também é essencialmente realizado à luz do dia. Das 17h às 22h, revezam-se na passarela clubes de boneco e tribos de índio (organizados por sorteio). Das 22h às 03h, a passarela é só das escolas de samba. Na terçafeira, os ursos abrem o Concurso e se apresentam das 14h às 16h. Na sequência, entram na avenida os maracatus de baque solto até as 19h30min, os caboclinhos encerram o último dia, por volta da meia noite, entrando da quarta-feira de cinzas. Cerca de 300 agremiações participam do Concurso. A competição provoca rivalidades, ao mesmo tempo em que proporciona trocas estéticas, conceituais, parcerias para a realização do carnaval, posicionamentos políticos, relações interpessoais e intergrupais. Coloca em diálogo brincantes de expressões diversas, reúne-os antes, para discutir; durante, para a realização do evento; depois, para a apuração dos resultados, avaliação e novas discussões para o ano seguinte, cíclico e ininterruptamente. O Concurso os faz estar juntos como “carnavalescos” (acima das especificidades de suas manifestações artístico-culturais), reivindicam juntos, por exemplo, melhorias na estrutura do polo ou o aumento da subvenção; a queixa de um é a de todos. Talvez, sem esse modelo de Concurso, os componentes dessas agremiações não estivessem tão próximos na passarela e na vida.
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4.1.3.1 Itens de julgamento e comissão julgadora A competição, além de estar no cerne do “mundo do carnaval” (BURKE, 2010) e da “visão carnavalesca de mundo” (BAKHTIN, 1999), torna-se um pilar dos mais importantes para a organização interna, a dinâmica de produção e para as relações de grupo que, em torno da competição, mantém-se integrado o ano inteiro, em interações interpessoais e intergrupais. As escolas de samba, plenamente instaladas em um processo ritual competitivo, inscrevem-se em uma rede de cooperação (BECKER, 1977) mútua, que abriga desde os que concebem e executam o desfile, passando pelos que participam ou assistem as escolas, até os fornecedores de equipamentos, materiais e serviços. Dessa rede, destaco as peças mais importantes da competição, os jurados dos concursos, em seguida, o público. As agremiações são julgadas por um corpo de jurados escolhido a partir da participação e do desempenho no Seminário de Carnaval, organizado anualmente pela Prefeitura, especificamente pelo Núcleo de Concursos210. O evento, com inscrição gratuita, tem uma semana de duração, nele são discutidos, em plenárias abertas, temas concernentes às onze modalidades, muitas vezes com a participação dos próprios brincantes de carnaval. A dinâmica do evento também subdivide os candidatos a jurados, a partir de suas preferências, em grupos de trabalho específicos de cada manifestação, em uma espécie de workshop sobre a história do brinquedo e dos itens de julgamento. Ao cabo desse Seminário, artistas das artes cênicas, brincantes de outros ciclos festivos211, professores, intelectuais e antigos carnavalescos compõem as comissões julgadoras. Formam-se equipes de julgadores, para cada uma das passarelas, e cada equipe julga mais de uma modalidade. É perceptível a repetição de nomes no corpo de jurados de um ano para o outro, leva-se em consideração a enorme demanda de trabalho e a necessidade de mão-de-obra qualificada para atender a contento o julgamento de estilos distintos de expressões carnavalescas. Rege o regulamento que as escolas de samba do Grupo Especial têm, no máximo, 60 minutos (e, no mínimo, 30 minutos) para a passagem na passarela. Ao Grupo I é determinado o tempo de 40 minutos para o desfile, e a metade disso como exigência fatal212. Além do tempo regulamentar, as escolas devem atender a um número mínimo de integrantes: 450 e
210
Coordenado há mais de dez anos pelos técnicos da Prefeitura, Zélia Sales e Albemar Araújo. Artistas de manifestações da cultura popular, como os quadrilheiros, das quadrilhas juninas, movimento muito forte em Pernambuco, cada vez mais compõem comissões julgadoras de carnaval. Ganham fama no ciclo junino, ocupam outros espaços artísticos, experimentam outra posição. Sobre as quadrilhas juninas, ver Menezes Neto (2009). 212 Perdem 1 ponto por cada minuto excedente. 211
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300, respectivamente, para as do Grupo Especial e I, com vistas à penalidade de 05 pontos pelo descumprimento da exigência. Vale salientar a dificuldade em cumprir essa demanda, pois exige articulação com a comunidade e dinheiro. Em alguns casos, são estabelecidas parcerias com outras agremiações ou se destinam pagamentos para pessoas e grupos desfilarem em alas inteiras. Clubes de frevo e quadrilhas juninas, por exemplo, constantemente compõem alas nas escolas de samba e, por vezes, usam seus próprios figurinos como fantasias. Os quadrilheiros negociam um cachê de participação a ser destinado à produção de suas quadrilhas. Para os Clubes de Frevo, pode ser uma troca de favores, pois eles também precisam dos componentes das escolas para garantir a sua exigência mínima de componentes (100 desfilantes para o Grupo Especial)213. Os itens de julgamento são: fantasias; alegorias e adereços (mínimo, 03 carros alegóricos para o Grupo Especial;
02, para o I); coreografia, evolução, conjunto e
empolgação; mestre-sala a e porta-bandeira; comissão de frente (no mínimo, 06 integrantes); bateria (mínimo, 70 ritmistas para o Especial; 40, para o I); samba-enredo; enredo; ala das baianas214 (com no mínimo de 40 para o Especial; 20, para o I). A escola que não cumprir o número mínimo de ritmistas em sua bateria, de membros da comissão de frente e/ou de baianas, perde 01 ponto por cada ausência. Perde também 03 pontos a escola com número de alegorias inferior ao designado para seu grupo. As escolas, sem o seu pavilhão, são impedidas de desfilar, não entram na avenida. Aquelas sem mestre-sala e/ou porta-bandeira, ou que se apresentarem com menos da metade do número de componentes, serão desclassificadas, desfilam, mas não lhes é atribuída pontuação. Incorre ainda em desclassificação o uso de fantasias e adereços de outras agremiações no mesmo polo ou na mesma modalidade em qualquer polo; a utilização de propaganda política; e o uso de instrumento de sopro na bateria215. As escolas de samba disputam o prêmio de R$ 11.000,00 para o primeiro lugar; R$5.500,00, para a segunda colocada do Grupo Especial. A campeã do Grupo I recebe o
213
A diferença entre a exigência mínima de componentes das escolas e dos clubes de frevo foi bastante acionada pelos sambistas durante a pesquisa, uma vez que as duas modalidades recebem o mesmo valor de subvenção pública, mas incide sobre seus orçamentos cobranças regulamentares desiguais. 214 Interessante notar essa especificidade, as baianas, no concurso do Rio de Janeiro, apesar de sua importância, não se configura item de julgamento. 215 O uso de instrumentos de sopro na bateria era bastante comum no passado das escolas de samba. O folclorista Roberto Benjamim (1987) atribui esse uso às influências pernambucanas do frevo “corroendo” as escolas de samba. Os historiadores Neves (2012) e Lima (2013) pensam na perspectiva da originalidade do samba pernambucano a partir dos instrumentos de sopro. A proibição atual é a tentativa de alinhar a sonoridade das escolas pernambucanas com a produção carioca.
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prêmio de R$ 5.500,00; a vice, de R$ 2.750,00216. Esses valores não são líquidos, são debitados descontos de impostos. Os troféus são entregues no Desfile das Campeãs, realizado no sábado seguinte ao carnaval, quando se reunem as campeãs e vice-campeãs de todos os grupos e de todas as modalidades, na Avenida Nossa Senhora do Carmo.
4.1.3.2 A primazia do esforço e o êxtase do desfile
Na dinâmica do Concurso, a campeã do Grupo I sobe ao Especial, por conseguinte, a última do Especial desce para o Grupo I, e, como no Rio de Janeiro, “as escolas disputam entre si não apenas o título de campeãs de seus grupos, mas também o direito mesmo de permanência num grupo ou ascensão a ele” (CAVALCANTI, 2006, p. 54). A composição interna dos Grupos do Concurso, entretanto, é bastante desigual, refletindo-se na competição e nessa mobilidade. O Grupo Especial, em tese mais competitivo, abriga, por exemplo, a imponente ‘Gigante do Samba’ e a batalhadora, porém empobrecida, ‘Unidos de São Carlos’. Uma com o orçamento de R$150.000; a outra conta apenas com a subvenção de doze mil Reais da Prefeitura, sem sede nem patrocínios, sem nada. Essa disparidade é sublinhada pelas escolas:
Ela é ‘Gigante’ mesmo, ela tem dinheiro, é a rica. Competir com ela nas condições que temos hoje é surreal. Você vai ver na avenida a diferença. Agora vejo, não é menosprezando nosso trabalho não. Não é uma questão de criatividade, é de dinheiro. Não sei como ela consegue patrocínio, a sede dela vive cheia, deve ter uns políticos por trás que eles não contam. Mas é de verdade uma competição desleal. (Jarlan, Limonil) Eu tenho que botar 450 pessoas na avenida. Estamos no grupo especial agora. Subimos esse ano, fomos vice-campeões. Foi difícil, mas, mais difícil vai ser agora pra nos manter lá, porque agora a gente vai brigar com os tubarões, com a ‘igante’ Gigante do Samba. Porra, se disser que o desfile é amanhã (estávamos em outubro) ‘Gigante’ vai estar 50% pronta. Porque ‘Gigante’ tem um patrocinador muito bom, tem uma sede enorme onde faz festa, ela é a mior (sic.) e não faz feio para nenhuma do Rio. A gente não tem nada disso aqui. Aqui (a sede) é alugado, a gente paga R$ 200 do nosso bolso. E olhe que a Gigante ainda ajuda a gente, ainda passa as sobras dela. (Itamar, São Carlos)
216
Se houvesse Grupo II, as escolas disputariam o prêmio de R$2.200,00 para o primeiro lugar; R$ 1.100, 00 para a segunda colocada. Sobre esse valor, há impostos a serem descontados.
198
Conceição, diretora da Unidos de São Carlos, em um de nossos encontros, às vésperas do carnaval 2013, foi enfática: “minha briga não é para ganhar, é para continuar aqui (no Grupo Especial)”. E conseguiu; a escola Limonil, sua concorrente, foi desclassificada e caiu para o Grupo I, por não trazer componentes básicos do julgamento e menos da metade do contingente de desfilantes exigido, desfilou apenas com uma alegoria, uma parte da bateria e duas alas, explicou Jarlan, o então presidente: Viemos para não deixar de desfilar, para mostrar que Limonil está viva e só. Tivemos problemas financeiros e pessoais no percurso, não conseguimos fazer carnaval, mas também não é fácil fazer o carnaval de samba aqui em Recife, é muita luta. Esse ano a gente queria fazer um bom carnaval sobre Parintins, não deu. [...] E agora é se reerguer no grupo I e voltar em 2015 para o Especial, quem sabe.
A ‘Unidos de São Carlos’ foi a última colocada, falhou em itens do regulamento que despontuam, porém não desclassificam. A Limonil, desclassificada, desceu. Próximo ao carnaval de 2014, novamente falei com Conceição sobre as expectativas para o Concurso, ela respondeu prontamente e em tom cômico: “a expectativa é a mesma, meu filho, não descer”. Novamente ‘Unidos de São Carlos’ ficou na última colocação, mas não desceu. Uma de suas concorrentes, a ‘Unidos de Vila Escailabe’, atrasou mais de uma hora a sua entrada na avenida e não apresentou itens obrigatórios para julgamento, como o casal de mestre sala e porta-bandeira. A ‘Escailabe’ foi desclassificada, desceu para o Grupo I e garantiu a manutenção da ‘Unidos de São Carlos’ no Especial para 2015. ‘Limonil’, ‘Escailabe’ e ‘São Carlos’ são exemplos emblemáticos da falta de competitividade e desequilíbrio do Grupo Especial. A força de uma escola de samba em Recife está, em grande medida, relacionada à capacidade inicial de conseguir chegar à avenida e desfilar – “mostrar que está viva”, nas palavras de Jarlan-; em segunda instância, a sua competência em cumprir minimamente todos os itens estabelecidos no regulamento, principalmente, aqueles indispensáveis e desclassificatórios; e só, por fim, ao seu investimento na dimensão criativa e estética.
4.1.3.3 O desfile e o público
The whole edifice of dance anthropology is based on this is premise: we must accept as valid scientific evidence the perceptions and conceptualizations of appreciative audience as well as the statements of performers and choreographers, if we are to understand dance as a human phenomenon. (BLACKING, 1984, p. 05)
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Seguindo a pistas de John Blacking (1984), acreditei ser importante perceber o desfile do ponto de vista das “percepções e conceituações de audiência apreciativa”. Logo, resolvi acompanhar o desfile do Grupo Especial na arquibancada, nos anos de 2012 e 2013, cheias e desconfortáveis, mas a animação compensava o desconforto e, certamente, vivenciei uma relevante experiência de pesquisa. Nos dois anos me coloquei atento ao público, observando as reações e os comentários. A presença eminente das escolas de samba do Rio de Janeiro como modelo ideal/típico permeia não somente a produção como também a fruição estética das escolas de samba pernambucanas. Chamou a minha atenção o movimento constante do público em compará-las, sobretudo, assinalando o que lhes faltam para ser uma escola de samba, nos termos das representantes cariocas, eram pensadas a partir da “imagem da ausência”. O luxo das fantasias e a grandiosidade dos carros alegóricos do Rio de Janeiro eram as “ausências” mais sentidas. As fantasias, pouco elaboradas e feitas com material visivelmente mais barato, eram apontadas e comentadas de forma cômica, mas os carros alegóricos mostraram-se a marca da diferença. Pequenos e pouco estruturados, a maioria deles sem esculturas ou destaques suntuosos, sugerem o maior contraste entre os dois desfiles, sua passagem provocava gracejos e pilherias. Em contrapartida, a bateria, as baianas e o casal de mestre-sala e porta-bandeira217 eram muito aplaudidos, reverenciados com gritos e acenos. O pavilhão e as grandes senhoras, simbolizando a própria escola e a comunidade, despertam identificação, sentidos de pertencimento e respeito; eram tratados com deferência, não sendo emitidos comentários jocosos ou brincadeiras. A bateria, por sua vez, funciona como catalisador de emoções a contagiar (CAVALCANTI, 2006) qualquer plateia, no Rio de Janeiro ou em Recife, fazia balançar as arquibancadas e o palanque dos jurados. A comicidade e o gracejo, a emoção e o reconhecimento medeiam a interação entre as escolas e o público. Uma interação pautada na ambiguidade, no “riso popular”, no “princípio cômico” (BAKHTIN, 1997), constitutivos do carnaval. Os espectadores têm a noção consolidada do modelo ideal/típico de uma escola, aos moldes do Grupo Especial do Rio de Janeiro, e não foram à Avenida Nossa Senhora do Carmo à espera de encontrar a grandiosidade e a beleza barroca do carnaval carioca (CAVALCANTI, 2006). Neste último “a visualidade das grandiosas alegorias, das fantasias, da coreografia de uma comissão de frente, do balé do casal de mestre-sala e porta-bandeira [...] são um convite a uma outra forma de 217
Sobre a importância do casal de mestre-sala, o de porta-bandeira, a sua função de “carregar o principal símbolo da Escola”, ver Gonçalves (2009).
200
participação: a admiração e o êxtase” (idem, p. 59), enquanto no Recife o “visual” provoca um fruição instalada entre a identificação e a picardia. O público parece não levar as escolas de samba tão a sério, e, creio, nem elas a si mesmas, essa é a beleza do carnaval dessas agremiações, um sorriso satírico apontado para o oficial, quando não é possível ser igual a ele. Para as escolas de samba, a segunda feira é o grande e o único dia de carnaval. Como já havia mencionado, as outras modalidades do Concurso se apresentam em outros polos do Carnaval. Em 2013, a programação do Carnaval Multicultural contava com apenas seis apresentações das baterias das escolas de samba nos polos descentralizados218 - ‘Gigante do Samba’ e ‘Galeria do Ritmo’, com duas apresentações cada, e uma da bateria da ‘Samarina’ e outra da ‘Queridos da Mangueira’-, número irrisório, quando comparado às 170 apresentações das agremiações de frevo nos quatro dias da folia oficial. Vale lembrar ainda que a subvenção pública para as agremiações carnavalescas - nos valores de R$ 12.000, R$ 8.000, e R$5.000, respectivamente para os Grupos Especiais (I e II) - é paga em duas vezes, uma antes e outra depois do desfile, quem não comparece ao Concurso não recebe a segunda parcela. Portanto, para algumas agremiações, a competição é um compromisso obrigatório, parte do processo de captação de recursos, mais um compromisso de uma agenda de apresentações do carnaval, a cidade terá a oportunidade de revê-las em outros momentos. Muitas agremiações sequer participam do Concurso e apenas se apresentam como atração nos polos de carnaval. Todas as escolas de samba do Recife e da Região Metropolitana, por outro lado, participam do Concurso e têm apenas este dia para se exibirem, o dia do encontro com o público. Toda a construção do desfile é voltada para a segunda feira de carnaval, a passarela é a culminância do processo de trabalho e a concretização do sonho. ‘O mar de Poseidon e de Yemanjá’ da ‘Gigante do Samba’ invadiu a Avenida, no carnaval de 2013. Última a desfilar, segurou o público até as 03 horas da manhã da terça-feira gorda. Havia muita torcida da ‘Gigante do Samba’219, com camisas da Escola e trajes verdesbrancos, era a atração mais esperada da noite. Sua apresentação deixa claro se tratar da maior agremiação carnavalesca do Concurso, entre todas as modalidades. Para o contexto recifense,
218
As escolas de samba, mais do que outras manifestações carnavalescas, necessitam da passarela para se apresentarem devido a sua dinâmica de exibição. Fazer um cortejo nas ruas da cidade, como tradicionalmente fazem os grupos de frevo, não é parte do repertório de atuação das escolas. Quando convidadas para comporem a grade de programação do carnaval, vai apenas parte bateria, algumas passistas, o casal de mestre-sala e portabandeira. Portanto, é uma representação diminuta do todo. A escola completa passa apenas uma vez no carnaval. 219 Só havia grupo de espectadores que se configuravam torcida para a ‘Gigante do Samba’ e para a ‘Galeria do Ritmo’. Esta última, uma das grandes campeãs do Concurso, há anos atravessa dificuldades financeiras atrapalhando seu desempenho.
201
seu padrão estético-visual220 é bastante interessante, seus carros alegóricos têm esculturas, luzes, destaques com resplendores e penas, carros bem ornados, contadores de enredo. A Águia, seu símbolo, tem até mobilidade. Fantasias bem acabadas, desfilantes padronizados dos pés à cabeça, mil e quinhentas pessoas na Avenida a jogarem flores no mar. Seu samba colou nos ouvidos, e a arquibancada cantou junto. Seu desfile gera um duplo comparativo: é estonteante, quando comparado às escolas recifenses; simples, em relação ao Rio de Janeiro; simples, porém, muito mais próximo desse modelo ideal/típico. O público reage a esse visual de forma diferente, o riso menos acentuado, os gracejos mais pontuais, há mais vibração com a passagem da Escola. Paira no ar certa surpresa com o investimento estético; e comentários como: “essa aí está até arrumadinha”. E outras frases, com diferentes palavras e igual sentido, denunciavam a surpresa positiva da audiência. Penso que, ao se aproximar dos códigos estéticos das escolas cariocas, ‘Gigante’ aciona convenções (BECKER, 1977, p. 213)221 compartilhadas pelo público mexendo com as expectativas de uma apresentação “bem sucedida”. Nas palavras de Cavalcanti (2002), pensando na participação da plateia nos desfiles das escolas de samba e do boi de Parintins, uma apresentação “bem sucedida” significa dizer: [...] a distinção entre espectadores e brincantes torna-se, senão totalmente abolida, muito diminuída [...]. Em muitos momentos, o espectador torna-se um brincante que não apenas saúda a passagem da escola mas que se une efetivamente a ela, como um participante especial. (CAVALCANTI, 2002, p. 03)
A platéia das escolas de samba do Recife tem participação direta no desfile das escolas de samba, interagem e tal interação ganha outra dimensão com o apreentação bem sucedida da Gigante do Samba. De acordo com a visão carnavalesca de mundo apreendida por Bakhtin (1987, p. 06) na obra de Rabelais, “Os espectadores não assistem ao carnaval, eles o vivem”. Ao sair da passarela, a Escola fez um grande arrastão com a participação do público até a dispersão, aos gritos de “é campeã”. Lá a bateria continuou a tocar por quase trinta minutos. Amanhecia e os componentes se abraçavam, a diretoria chorava, o público sambava, todos comemorando velada e antecipadamente mais uma vitória, a sexta consecutiva. Mesmo que essa vitória não viesse, essa sensação de dever cumprido e de felicidade, antes do
220
Fotos do desfile no caderno de Imagens II. Para Becker (1977 – 212-213) no mundo da arte possui convenções, acordos, regras que se tornaram habituais, “a maneira convencional de fazer as coisas”. As convenções, além de nortearem de forma indelével a produção “regulam as relações entre artistas e platéia, especificando os direitos e obrigações de ambos” .
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resultado, é o verdadeiro êxtase para quem entrega sua vida a sambar na Avenida Nossa Senhora do Carmo. A apuração ocorre na quinta-feira, após o carnaval, no Pátio de São Pedro, bairro de São José (centro do Recife), com todas as agremiações de todos os grupos. Começa na ordem crescente de importância: o Grupo de Acesso, em seguida os Grupos I, II e, por último, o Especial. O evento dura o dia inteiro e é muito tenso. As rivalidades entre os maracatus e entre os caboclinhos geram brigas, são modalidades mais equilibradas e, por isso, a apuração é um momento de decisão por décimos. Diferentemente do resultado das escolas de samba do Grupo Especial que coroa o hexacampeonato conquistado com folga pela ‘Gigante do Samba’ e já esperado pelas suas concorrentes. Com a oficialização do resultado, às 15h, houve festa na quadra da verde e branco, o último evento ligado ao carnaval 2013; depois dela, como seguindo o fluxo cíclico do ritual do desfile, 2013 vira “o ano passado” (CAVALCANTI, 2006). Hilário, o carnavalesco, já pensa no enredo 2014, “A sinfonia dos anjos na passarela dos cristais”, e me confidencia: “esse vai ter anjos, ciganos, indianos [...] e tudo mais que for meio místico, porque uma coisa puxa a outra. Já estou pensando em umas coisas, inspirado, claro, no que eu vi esse ano no Rio de Janeiro...”
4.2 O Outro Carnaval: impressões sobre o carnaval das escolas de samba do Rio de Janeiro As escolas de samba do Rio de Janeiro fazem parte do imaginário das representantes do gênero em Pernambuco, sua presença é constante desde a concepção até a apresentação na avenida. A produção das escolas cariocas funciona como uma espécie de referencial de tradição, “repertório de significados” (HALL, 2003, p. 70) aos quais os sambistas pernambucanos estão vinculados e se inscrevem “para dar sentido ao mundo sem serem rigorosamente atadas a ele em cada detalhe de sua existência” (idem, ibdem). Ao pensarem sobre a própria experiência, os membros das escolas pernambucanas acionam esse repertório, comparam-se, imaginam como deve ser o carnaval de uma escola no Rio de Janeiro. Uma conexão estabelecida a partir de imagens construídas, “representações irrealistas” (BECKER, 2009)222 a incidir na vida e, inadvertidamente, na autoimagem das 222
BECKER (2009, p.151 - 152) alerta para a produção de representações “irrealistas”: “[...] residem uma outra coisa que não a sua fidelidade a um original do mundo real. [...] O analista faz essas descrições idealizadas removendo detalhes que não precisam ter a forma que assumem em algum caso histórico; e, ao fazê-lo revela os mecanismos organizacionais idealizados [‘perfeitos’] que um exemplo empírico esconde. Representações como
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escolas de samba do Recife. Para os sambistas pernambucanos, esse “outro semelhante”, as escolas de samba do Rio de Janeiro, é um espelho invertido. As imagens produzidas pelos sambistas pernambucanos, mediadas pela distância, evidentemente, generalizam a experiência das escolas do Rio de Janeiro, idealizam o trabalho e as relações do Grupo Especial e estendem essas apreensões para o conjunto das escolas cariocas. Os termos, “Lá”, “eles”, “no Rio” e suas variantes, indicam os sentidos englobantes de tais imagens e o desconhecimento da heterogeneidade, inclusive dentro do próprio Grupo Especial carioca. A produção das imagens acerca das escolas de samba do Rio de Janeiro é um exercício de imaginação, resulta da manipulação de dados concretos e meras especulações (fofocas) veiculados pela imprensa; das memórias e narrativas de pernambucanos que estabeleceram algum contato com as escolas do Rio de Janeiro; das impressões pessoais acerca do desfile e de sua dinâmica de produção, para forjar impressões de “como as coisas seriam se funcionassem daquele modo” (idem, p.152). As impressões circulam, são partilhadas e, em certa medida, tornam-se coletivas. Pensar “como deve ser” no Rio de Janeiro, assistir aos desfiles cariocas, sonhar e se inspirar e, por vezes, também negar. Tudo isso revela os pernambucanos entre dois carnavais. Nas palavras de Perez (2011, p. 101), a festa é assim identificada: “Como forma lúdica de sociação e como operador de ligações a festa, simultaneamente e a uma só vez, expressa sentimentos, emoções e sonhos coletivos, estrutura pautas e códigos de vínculo, gera imagens multiforme da vida coletiva”. Na intenção de iluminar compartilhamentos, certos consensos coletivos constitutivos do imaginário social das escolas de samba pernambucanas, sistematizei os conteúdos no que chamo de três grandes imagens recorrentes, produzidas a partir da pergunta “como é o carnaval das escolas de samba do Rio de Janeiro?”. Assim, destaco as impressões mais recorrentemente elaboradas, repetidas por mais de um interlocutor, as quais parecem mobilizar, conectar, mesmo de modo unilateral, escolas recifenses e cariocas, são elas: a imagem da “fonte de inspiração”; a do profissionalismo e organização empresarial do processo de produção, que chamo de “empresas de samba”; e a “imagem da ostentação”.
essas nos mostram como as coisas seriam se funcionassem daquele modo, se as forças em jogo, não estorvadas por detalhes irrelevantes e estranhos, pudessem revelar sua natureza essencial”.
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4.2.1 Fonte de inspiração Conceição: quando eu assisto o desfile das campeãs, eu viajo na minha mente, pela inocência das minhas netas, eu digo ‘aí queria minha porta-bandeira assim’... E choro de admiração e de desejo de ter uma igual na minha escola. Olho para outra fantasia e digo ‘queria essa roupa de madrinha de bateria’. Querer a gente pode, ter é outra coisa... (Conceição, Unidos de São Carlos)
As escolas do Rio de Janeiro são vistas pelos sambistas pernambucanos como fonte de inspiração para seus trabalhos. Ao mesmo tempo, há o reconhecimento da dificuldade em concretizar essa inspiração, devido às limitações financeiras, configurando-se uma espécie de admiração platônica. O desfile carioca desperta o desejo de ser igual, a resignação no ato de fazer. Como disse Correia, da Escola de Samba Samarina: “Aqui inspirar é livre, mas fazer, a gente só faz o possível”. Os pernambucanos acompanham os carnavais do Rio de Janeiro, assistem ao desfile, opinam sobre quem deveria ganhar ou perder, muito embora o Concurso das Agremiações do Carnaval do Recife ocorra na segunda-feira, no mesmo dia do evento na Marquês de Sapucaí. O domingo de carnaval do sambódromo carioca, então, é a noite esperada e prestigiada pelos que conseguem, às vésperas do seu próprio desfile, assistir à transmissão televisiva. A segunda-feira da Sapucaí é vista com atraso, mas muitos sambistas pernambucanos são grandes colecionadores de DVDs de carnavais, sabem a respeito dos carnavais passados, enredos, vitórias, “injustiças” e compartilham com os sambistas do Rio de Janeiro uma “memória carnavalesca” (CAVALCANTI, 2006) relacionada ao carnaval carioca. Compartilham, entre ouras coisas, a admiração e o respeito por nomes do mundo do samba como Jamelão e Neguinho da ‘Beija-Flor’; por escolas e por baterias de escolas específicas como ‘Mangueira’, ‘Beija Flor’, ‘Mocidade’, ‘União da Ilha’ (as mais citadas); e por outros personagens emblemáticos como a porta-bandeira Selminha Sorriso. Nas falas, surge a ideia da “necessidade” de as escolas de samba em Pernambuco assistirem aos desfiles da Sapucaí, uma relação de conexão da parte com o todo, de partilha de um mesmo universo. O movimento de assistir às escolas do Rio de Janeiro e de acompanhalas
está para além do deleite, serve para aprendizado, atualização e vinculação quase
obrigatória com o “repertório de significados” (HALL, 2003)223. Algumas lideranças, 223
A diretoria da ‘Gigante do Samba’, frequentemente endossa seu currículo de serviços prestados ao samba em Pernambuco elencando nomes de artistas do mundo do samba do Rio de Janeiro. Com orgulho, Lacerda, o presidente da escola, levanta as personalidades do samba carioca que já tocaram na quadra da Gigante com a Bateria Rolo Compressor: “Aqui em Gigante já veio Alcione, Jamelão, Leci Brandão, Zeca Pagodinho, Jorge Aragão, Martinho da Vila. E Neguinho mais de uma vez. A bateria daqui toca o repertório dele ,e ele rapidamente se afina com o pessoal quando ele vem”.
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inclusive, solicitam a componentes específicos, como passistas e ritmistas, que assistam às escolas, que ouçam os sambas do Rio de Janeiro, como parte da preparação para o carnaval. Para ser um bom carnavalesco do samba, tem que ver as escolas do Rio. Eu gosto de tudo nas escolas do Rio de Janeiro, de tudo. E quando a bateria da Mangueira fez aquela abertura em 2008 sobre Pernambuco foi o que mais me emocionou, uma coisa linda do mundo. Coisa que muitos daqui não criam. Eu enlouqueço dentro de casa, aqueles destaques. Fico pensando: a gente com dinheiro só precisava de uns cinco aqui daqueles. Eu, se tivesse dinheiro e um carnavalesco bom, eu fazia igual, porque ideia tem. Não posso perder a verderosa, senti muito a perda de Jamelão, eu acompanhava o trabalho dele daqui e para mim foi um baque, como se tivesse perdido um pai. Depois da Mangueira e outra que admiro muito é a Beija-Flor, por causa de Neguinho, ainda sento ao lado dele, tenho fé. Ele faz muito bem o trabalho dele, o samba, a voz. Poxa, ele é tudo! (Carlos Alberto, Unidos da Mangueira). Eu assisto às escolas de samba do Rio no domingo, a gente fica trabalhando aqui e fica assistindo. Aqui inspirar é livre, mas fazer, a gente só faz o possível. Acho importantíssimo porque a gente aprende muita coisa, deveria ser obrigatório porque lá é a fonte de inspiração para todos nós. Às vezes a gente (recifenses e cariocas) está com o mesmo tema, só que a diferença é muito grande, aí você vê que o negócio é dinheiro. Vejo eles e parece um sonho. Já teve vezes que a gente criou coisa na alegoria de um dia para o outro porque viu no desfile, coisa possível, claro, porque às vezes eles fazem o impossível. (Correia, Samarina) Eu assisto às escolas do Rio, com certeza, porque as escolas do Rio servem como uma reciclagem pra gente, de aprendizagem, de inspiração. Tem muita coisa que a gente se espelha no Rio de Janeiro. O carnavalesco daqui todo ano vai pro Rio de Janeiro e, no desfile das campeãs, ele desfila na Beija-Flor. E ele já disse que vai fazer a pós-graduação dele lá. Ele vai pra lá, olha e traz. Muita inspiração de Hilário é baseado lá. Aí junta com a habilidade que ele tem e, pronto. Até as sambistas, eu mando elas assistirem, para elas pegarem o gingado dos passos. Eu mando minha porta-bandeira ver Selminha Sorriso, ela é um escândalo, um arraso! Tem que aprender com a bicha, porque ela é boa, é a melhor (Marize, Gigante do Samba) Eu costumo escutar os sambas do Rio de Janeiro, e eu mando meus batuqueiros ouvirem, gravo uns piratas e distribuo. Para mim, existe muita diferença, entre nós e eles, e quero chegar mais perto possível deles. A bateria que eu mais gosto no Rio de Janeiro é a Mangueira porque é só uma pancada, é a única bateria diferenciada no Rio de Janeiro. Agora as baterias também me inspiram é a BeijaFlor e a União da Ilha do Governador. Elas conseguem fazer mais trabalhos bonitos no samba, cadenciado, nunca foge do que está fazendo, eu me espelho nessas três. (Fernando, Unidos de São Carlos).
A ideia de inspiração nas escolas de samba do Rio de Janeiro, entretanto, é cautelosamente qualificada pelos grupos pernambucanos. Há um cuidado para não se tornar “cópias”, bem como a valorização de uma produção com autonomia para reinterpretações e
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intervenções no formato, mudanças, contudo, conectadas ao “repertório de significados”, para não se tornarem “ininteligíveis e incomunicáveis” (SAHLINS, 1990)224. Tem escola que copia as coisas do Rio, copia tudo, não cria nada, não tem nenhum breack criado por ela. Nada. Essa não contribui para o movimento de samba na cidade do Recife. A gente tem que se inspirar, mas também tem que fazer do nosso jeito, precisam ficar independentes, senão seremos só uma sombra de outro Rio de Janeiro. (Saúba, Galeria do Ritmo). A gente copia as coisas belas. Tem coisa que é cabível, mas tem coisa que é inadmissível copiar, senão a gente vira sempre xerox de fulano, de sicrano. As nossas batidas de baterias têm umas iguais, mas têm outras bem diferentes, o nosso samba tem que ter uma diferença. Elas são ricas em tudo, mas nós somos ricos de criatividade. (Lacerda, Gigante do Samba) [...] Me inspiro em todas. É tudo a mesma coisa, é tudo samba e tem para oferecer alguma coisa. Fico de olho no figurino, mas não faço igual não, coloco a minha criatividade. Ninguém pode dizer que eu copio, eu fico esperta, faço parecido, copiar não, até porque a gente não tem dinheiro para isso. Agora eles deveriam vir aqui para ver o que a gente faz com um orçamento de R$12.000, milagre. Eles também teriam muito para aprender com a gente. (Conceição, Unidos de São Carlos)
4.2.2 As “Empresas de Samba”
A percepção das lideranças das escolas de samba em Pernambuco sobre o processo de construção do desfile carioca se baseia na noção de profissionalismo. A imagem construída é a de uma “empresa de samba”, em que tudo é essencialmente organizado, programado e bem remunerado. O resultado final exibido no desfile viria dessa junção de criatividade, dinheiro e organização225. Parâmetros empresariais foram levantados como norteadores da dinâmica de produção do Rio de Janeiro e colocadas em oposição ao “amadorismo” dos grupos de Pernambuco. As ideias de “frequência obrigatória” dos componentes da escola nas atividades e ensaios para o carnaval – em detrimento das dificuldades de reunir os integrantes nas agremiações do Recife; 224
Sahlins (1990), a sua reavaliação funcional das categorias, constitui uma boa referência para pensarmos as mudanças em uma manifestação carnavalesca, tal como as escolas de samba: “As improvisações [reavaliações funcionais] dependem de possibilidades dadas de significação, mesmo porque de outro modo seriam ininteligíveis e incomunicáveis. Daí o empírico não ser apenas conhecido enquanto tal, mas enquanto uma significação culturalmente relevante, e o antigo sistema é projetado adiante sob novas formas” (SAHLINS, 1990, p. 11). Mudanças certamente são inevitáveis e inerentes à dinâmica das expressões artísticas. A tradição e, neste caso, ligada ao arcabouço do Rio de Janeiro, deve ser vista também como uma categoria propensa à reavaliação, não enclausurada em si mesma, mas exposta a riscos empíricos, de ordem social, cultural, econômica e política, bem como às subjetividades individuais e contextuais. 225 Sobre a dinâmica de produção das escolas carioca na Cidade do Samba, ver Barbieri (2009, p. 142).
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e a do cumprimento fiel do planejamento, do cronograma de atividades – contrastando com a falta de planejamento e infraestrutura dos grupos recifenses –, são constituintes exemplares da imagem da “empresa de samba”: Ali eu vejo como uma empresa. No dia do ensaio, todo mundo tem que estar, se não tiver é cortado, sem pena. Coisa que aqui não acontece, se eu cortar, não tem outro para botar no lugar, porque lá eles têm fila para ser batuqueiro, sai um entra outro, simples assim. Quer não? Até logo! Lá eles conseguem fazer os ensaios por ala, ala de caixa, ala de repique. Aqui a gente não consegue porque o pessoal trabalha, vem numa semana na outra não vem. Aí a gente tem que passar o trabalho pro grupo, é tudo misturado. Isso no final gera uma diferença no som, no desfile, em tudo. Então lá é como uma empresa, tem que bater o cartão todo ensaio, isso faz diferença. (Fernando, Unidos de São Carlos) Eles têm seis meses para ensaiar a bateria quase todo dia, eles se preparam para fazer aquele som maravilhoso, um bom som. E a ordem é: se faltar é cortado. Aqui a gente pede pelo amor de Deus para que as pessoas fiquem, e muitos vão pra avenida tendo ensaiado, quase nada, para não dizer nada. Lá o que o mestre de bateria pedir, o presidente atende no dia seguinte, tem demora não, porque eles são uma empresa. Um comunica para o outro, libera o dinheiro e compra. Também porque eles têm o dinheiro sempre em caixa, disponível. Aqui eu digo: presidente, está faltando pele [e ele diz: não tem, não tem dinheiro], está faltando baqueta [ele diz: não tem], está faltando esteira nos caixas... E a gente se vira, tem que arrumar, recicla, pega dos caixas velhos... A gente não trocou nenhuma pele de surdo de 2012 para 2013, ele colocou remendo nos que tinham para não furar e ainda furou um na passarela. Isso tira a qualidade do som. (Naná – Galeria do Ritmo) Lá no Rio agora, em outubro, eles já estão prontos, faltando só detalhes, e os segredos que é para ninguém saber. Os caras são profissionais, não é isso aqui que a gente vive não, essa palhaçada. O design deles já está pronto, o making off, a palavra não é essa não mas eu vou usar, o making off das fantasias já está pronto. Aqui, se você perguntar qual é a escola que está pronta, só a Gigante está mais ou menos porque ela é a rica daqui. Só deve estar faltando os carros alegóricos. (Edvaldo, Limonil).
Na imagem das “empresas de samba”, os profissionais são muito bem remunerados. As pessoas vivem do samba e recebem salários em cifras inflacionadas que ganham ainda mais substância quando comparadas aos valores correntes no universo do carnaval do Recife. Imagina-se um mercado cujos altos valores pagos pelos serviços e as negociações entre profissionais e as escolas são a tônica dos bastidores do carnaval carioca.
Renato, meu enteado que é daqui de dentro de Gigante, pesquisa tudo sobre samba, aí essa semana ele disse que o primeiro casal da Portela foi exonerado... Aí ele disse que é exonerado sim porque elas recebem salário, é R$ 20.000 por mês! E eles saíram porque queriam mais, e a Escola não deu. Fiquei besta, menino. Eles estavam achando pouco, saíram, vem uma mais rica do que a Portela, uma Beija-Flor e oferece mais. É um mercado. Quem não quer ser porta-bandeira da Portela pra ganhar R$ 20.000 por mês? O carnavalesco daqui, Hilário Silva, disse que um amigo dele foi pro Rio há uns 3 anos, já é carnavalesco de uma escola de acesso, a Império da Tijuca. O cara ganha R$ 5.000 por semana, é R$ 20.000 por
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mês! É outra realidade, mas aqui poderia ser quase igual se tivesse empreendedorismo. (Marize, Gigante do Samba). Tu pensa que eles respeitam, têm ética? Lá é no quem dá mais, tem esse negócio de amor não. As escolas tiram o carnavalesco, a porta-bandeira, o mestre de bateria, da sua concorrente. Oferecem uma proposta melhor e leva. Claro, oferece não sei quantos mil a mais, aí o povo vai, a não ser que role uma contraposta, mas isso fica por trás das cortinas, ninguém sabe. (Saúba, Galeria do Ritmo) Quando eu vejo as escolas de samba do Rio de Janeiro, fico bestinha. Ainda vou passar um carnaval no Rio. É muita coisa linda, ainda vou no Rio, pra ver as escolas. Eu acho, pelo o que o povo comenta, que no Rio se torna mais fácil fazer o samba. As coisas saem bonitas porque a verba é maior, tem exigência, mas a verba é maior, a turma sabe como trabalhar, tem muitos carnavalescos bons e eles trabalham satisfeito e de bolso cheio. Olhe um carnavalesco deve ganhar em torno de uns R$ 200.00. De uma vez não, por mês. Ah, meu filho, sai lindo daquele jeito porque o povo tem condições, recebem bem. Um mestre da bateria não ganha menos de que R$100.000 por mês, lá, o daqui eu dou só a passagem R$ 5,00 e o lanche, às vezes uma cerveja. É outro mundo. A menina daqui, da Queridos da Mangueira, estava conversando comigo semana passada que Paulo Barros, da Tijuca, ganhava um milhão por mês. (Carlos Alberto, Unidos da Mangueira)
No imaginário dos sambistas pernambucanos, os carnavalescos são bem remunerados para criar, mas, não participam da execução das atividades, coordenam e fiscalizam o trabalho “da empresa”. Para Lacerda, o presidente da Gigante do Samba, os trabalhos de construção das alegorias no Rio de Janeiro, por exemplo, são terceirizados, feitos por uma “empresa licitada”, escolhida entre várias concorrentes, que emprega mais de 200 trabalhadores com a finalidade de executar o projeto do carnavalesco, tal qual fora idealizado e no tempo estipulado pela escola. Eficiência nos prazos e na qualidade do produto garantida pelo sistema gerencial das escolas. As alegorias não têm esse negócio da gente fazer não. As escolas contratam uma empresa que faz. É uma licitação, tem muitas empresas dessas lá no Rio, responsável por fazer alegorias e outras coisas para as escolas. O carnavalesco dá a planta do carro e, em quatro meses, está pronto. São uns 200 trabalhadores, ou mais. Aqui não, aqui é a gente mesmo que faz. Tenho certeza que o carnavalesco lá nunca pegou em ferro, papel, cola, como a gente aqui. Para fazer alegoria, eu tenho seis, no máximo, 10 pessoas, na dificuldade... Aí é que a gente diz: como é difícil fazer samba numa cidade como essa. Mas é o amor pelo samba. (Lacerda, Gigante do Samba).
Valmir, o responsável pelas alegorias da ‘Limonil’, acredita que ser um carnavalesco é a “melhor profissão do Rio de Janeiro”. Para ele, os carnavalescos são ricos, famosos; sua função limita-se à criação. Ratifica a impressão de Lacerda da Gigante do Samba, e afirma: “carnavalesco não bota a mão na massa”.
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Aqui a gente não tem dinheiro não. Um carnavalesco no Rio ganha uma média de R$ 45.000, o que ganha pouco, porque o que ganha muito, eu não sei nem te dizer valores. Acho que é dinheiro que não e acaba mais. Eles são todos ricos, carros importados, mansão e cobertura. Ser carnavalesco é a melhor profissão que tem no Rio, eles são celebridades. E é só para mandar, que eles não botam a mão na massa não. Eles mandam um povo fazer, e vão lá só olhar. Um pessoal tipo terceirizado, como uma empresa mesmo faz. Eles têm uma filosofia de empresa, chefe é chefe, carnavalesco não bota a mão na massa. O peão faz isso. (Valmir, Limonil)
Nessa imagem de “empresa de samba”, as escolas cariocas aparecem como potências na captação de recursos, empreendedoras. Não há dificuldades para levantar capital através de parcerias e patrocínio do setor privado; pelo contrário, os patrocinadores são os maiores interessados em custear os desfiles. A Prefeitura do Rio de Janeiro aparece como uma grande patrocinadora, destinando cifras milionárias de fomento público226 às suas agremiações. Considerado o baixo valor da subvenção concedida pela Prefeitura do Recife, a atuação do poder público é imaginada de forma bem diferente da realidade das representantes pernambucanas do gênero.
Lá é muito fácil, é tudo dado. As empresas correm atrás das escolas. Aqui não dá pra ser assim, porque a gente tem que correr atrás. Tem que fazer uma festa, e lá tem muita gente pra apoiar, tem patrocinador sobrando. Lá, quando faz festa, vai numa Skol, Schin e enche o caminhão, o freezer fica cheio, tudo patrocinado, então o lucro do bar é de 100%. Aqui você vai procurar a cerveja que está mais barata e que a turma consegue tomar, para vender e lucrar R$ 0.50 ou, no máximo, R$1,00 por lata vendida. Lá não faz bingo que nem a gente aqui, para vender uma cartela a R$ 1,00. A prefeitura investe nelas, o Governo investe, e dão muito dinheiro. Carnaval aqui em termos de samba, governo, prefeitura, é difícil apoiar. Tem que fazer porque gosta. (Fernando, Unidos de São Carlos). O carnaval da Beija-Flor esse ano (2013) é 18 milhões. Só o Jockey Club deu 8 milhões. Sabia? E foi o próprio Jockey que foi lá oferecer o enredo e o patrocínio. Ela ainda abre o carnaval da Holanda, ela abre o carnaval do Japão, ela abre o carnaval da Argentina, entra muito dinheiro, por isso que ela faz o povo voar na Sapucaí. Ela tem pra gastar, e a Prefeitura ainda ajuda, ajuda não, dá muito dinheiro. Aqui a gente faz uma tocada (com a bateria) para Prefeitura no Carnaval, quando tem, é R$ 1.000 para receber não sei quando. Aí é R$ 200 pro ônibus, R$ 200 para o mestre de bateria, tem que dar alguma coisa para a bateria, a escola fica com o quê? Muitas vezes as pessoas de fora não sabem as dificuldades de botar uma escola na rua aqui em Recife, mas, lá no Rio, é beleza. (Nado, Limonil) 226
CAVALCANTI (2009, p. 108) informa que o desfile de uma escola de samba não custaria menos do que cinco milhões de reais. Essa pequena fortuna viria do repasse de parte da arrecadação da LIESA (SERIA INTERESSANTE EXPLICAR ESTA SIGLA) do ano anterior (venda de ingressos, patrocínios) distribuídos de acordo com o ranking do último concurso, do fomento público da Prefeitura (mais de dois milhões), mais outros patrocínios e receitas produzidas na quadra. Escolas como Beija Flor e Mangueira chegam a orçar oito milhões de reais. BARBIERI (2009, p. 142) também comenta a realidade díspare entre as escolas do Grupo Especial e os demais grupos do Carnaval Carioca, que se reflete diretamente na distribuição desigual da subvenção pública para os diferentes grupos. Barbieri fala em cifras milionárias para o Grupo Especial (com orçamento estimado em quatro milhões).
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Além dos patrocinadores e da Prefeitura, o jogo do bicho227 e o tráfico228 de drogas são apontados como importantes patrocinadores do carnaval carioca. A contravenção, o contrabando, o investimento de banqueiros de bicho e chefes do tráfico explicariam os orçamentos elevados. No caráter generalizante das impressões pernambucanas, todas as escolas receberiam dinheiro dessas fontes mantendo uma relação com a ilegalidade bem resolvida e do conhecimento público. Nas falas dos interlocutores, não há um juízo de valor negativo, condenatório, essa forma ilícita de composição de orçamento apareceu naturalizada como parte do processo de produção. Por conseguinte, a participação dos banqueiros de bicho é associada a grandes investimentos, aos desfiles luxuosos, ao sucesso do modelo estético e organizacional atual das escolas229.
O material deles todos vêm da China, vêm de fora. Na Mocidade mesmo, quando Castor era vivo, vinha da China, dos EUA. Vem contrabandeado, não é surpresa para ninguém. Esse ‘TNT’ mesmo que eu comprei do povo do Rio, veio contrabandeado. Eu comprei 900 metros de TNT por R$ 700,00. O metro dele aqui tava R$ 4,50. Eu ainda tenho aí uns 200 metros. Lá os bicheiros mudaram tudo, eles bancam tudo, mandam buscar tecidos fora, de muito, porque é mais barato. Com os bicheiros era um derramamento de dinheiro. Um carnavalesco, eu não sei quanto eles ganham, mas deve ganhar ótimo, na casa dos milhões, porque bicheiro quer ganhar não quer perder, e ele é bandido, paga para ganhar. Quando todas as escolas tinham os bicheiros foi quando elas mais cresceram e viraram essas empresas. Joãozinho Trinta ganhou muito dinheiro do bicho, mas tinha amor por aquilo, ganhou muito dinheiro também, mas quem era que comandava? Anísio. (Correia, Samarina). No Rio, todo mundo sabe, você vai fazer um enredo já chega muito bicheiros querendo entrar na jogada para lavagem de dinheiro. No Rio as escolas andam, porque tem recursos, tem patrocinador oficial e o bicheiro por trás. Lá ninguém trabalha feito aqui não, na unha, na tora, aqui até ferramenta a gente tem que inventar. Lá tem uma forma de trabalhar que foi os bicheiros mesmo que colocaram, é diferente, o dinheiro arruma a casa. (Valmir, escultor da Limonil) É muito dinheiro, o jogo do bicho deve mandar uns 4 milhões para cada uma, só os bicheiros, como Castor de Andrade, ele já morreu? Não sei, mas se ele morreu a família cuida porque é genético, fonte segura de dinheiro. E tem a bandidagem também que obriga as pessoas a darem dinheiro pras escolas. As pessoas ajudam com medo das represálias dos chefes do tráfico. Eles dão dinheiro para ficar bem com a comunidade. Aqui a gente não pode nem pensar em fazer isso. (Jarlan, Limonil) 227
Sobre a relação entre o jogo do bicho e as escolas de samba, ver a acurada análise de Cavalcanti (2009, p. 94): “[...] o principal desfile das escolas de samba da cidade do Rio de Janeiro é hoje administrado não pelo poder público, nem exatamente pelas escolas de samba, mas pela organização que representando as grandes escolas de samba, congrega, desde 1984, a cúpula da rede do jogo do bicho na cidade. Com ela os bicheiros ganharam grande visibilidade e prestígio”. Sobre o jogo do bicho e o carnaval do Rio de Janeiro, ver também Cavalcanti (1999, 2006) e Pereira de Queiroz (1992). 228 Cavalcanti (2009, p. 114) alerta que muitas escolas “Veem-se às voltas, com a presença de difícil controle e mais do que poluidora, destruidora, do tráfico de drogas dentro da escola”. 229 Para Cavalcanti (2006, p. 52-53), “[...] Um banqueiro de bicho gastava no desfile quantias extraordinárias de dinheiro cujo retorno se dava em outra moeda: o prestígio adquirido com a vitória de sua escola no carnaval”.
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As impressões sobre a “empresa de samba” são elaboradas também a partir do contato direto entre os sambistas pernambucanos e as escolas de samba do Rio de Janeiro. Alguns dos interlocutores entrevistados passaram temporadas ou moraram na capital fluminense, trabalharam nos barracões, conheceram de perto a produção do desfile carioca, trouxeram lembranças, percepções e aprendizados aplicados na construção do desfile de suas agremiações para o Carnaval do Recife. Essa experiência foi acionada pelo mestre da bateria da ‘Galeria do Ritmo’, Mestre Naná; escultor da ‘Limonil’ (Valmir); os ex-carnavalescos da ‘Deixa Falar’ e da ‘Samarina’, Fábio Costa e Américo Barreto; o atual presidente da ‘Samarina’, senhor Correia; e o carnavalesco da ‘Gigante do Samba’, Hilário Silva. Entre os conteúdos, mais frequentemente trazidos à baila, estão o aprendizado das técnicas e do uso de materiais novos, o poder de adaptação a uma realidade muito distinta e as mudanças promovidas por essa vivência.
Fui para o Rio de Janeiro em 1972 e fiquei até 1978, lá não desfilei. Ficava só olhando, ia para a concentração das escolas, para ver como é que era. Lá já era naquela época tudo muito organizado, o pessoal tem muita força de vontade. Quando eu cheguei aqui, mudei muita coisa aqui da bateria de Galeria. Mexi nas afinações e na maneira de repassar as coisas. Faz tempo, mas eu acho que ainda hoje lá é assim. Se antes era organizado, tudo no seu devido lugar, agora são grandes empresas. (Mestre Naná, Galeria do Ritmo) Eu já trabalhei no barracão da Beija-Flor, passei 6 anos no Rio. Foi show de bola, a gente aprende muita coisa lá. Hoje eu sou artista plástico e esse é o primeiro ano aqui. É muito diferente Rio e Recife. Aqui é reciclagem e a gente tem que se adaptar. Lá trabalha com reciclagem, mas é muito pouco, é tudo novo. Lá eu recebia por semana e tinha tudo o que eu queria, tudo o que eu precisava. Aqui eu recebo quando tem dinheiro. Era uma grande empresa. Era muito trabalho, o carnavalesco era muito perfeccionista, mas dava condições. Deve continuar assim, porque a gente só vê as escolas cada vez maiores, mais desenvolvidas. (Valmir, Limonil) A passagem pela Vizinha Faladeira, pela Mangueira e pela Tijuca (nos anos de 1990), foi fantástica nesse ponto do aprendizado. A experiência de conhecer materiais que nunca tínhamos ouvido falar. E também o processo de uma escola de samba, da soldagem de um carro até o acabamento final, nós acompanhamos todo esse processo. Claro que não dá para usar aqui igual como vimos lá. Mas ganhamos conhecimento para trabalhar não só com o carnaval mas com outras festas. (Fábio Costa, ex-carnavalesco Deixa Falar e Samarina) Eu morei no Rio em 1981, minha escola lá era de perto de onde morei, Bangu, a Mocidade Independente de Padre Miguel. Lá eu aprendi muita coisa nos barracões, a esculpir, fazer trabalho com resina, eu visitava os barracões dos blocos. Fui na Mocidade, Tijuca, na Salgueiro, até Beija-Flor eu fui. Era tudo já profissional, organizado, um lugar de trabalho não de amadores, por isso que está assim hoje. Lá fui também ritmista. Agora eu sou presidente, mas eu sempre fui batuqueiro, aprendi lá a tocar 5 instrumentos diferentes, porque a gente está na vida pra aprender e eu aprendi lá muito do que eu sei hoje. (Correia, Samarina).
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Não
obstante,
a
percepção
sobre
a
organização
empresarial
e,
consequentemente, sobre a ordem e o sucesso das escolas de samba do Rio de Janeiro talvez não corresponda totalmente à realidade. A veracidade dela, contudo, não é relevante diante do poder dessas representações para a construção da autoimagem das escolas pernambucanas e da identificação dessas com um modelo ideal. 4.2.3 A imagem da ostentação: luxo e riqueza
Como é o Carnaval do Rio? Luxo e Riqueza, meu bem! Só Glamour, só ostentação, tudo de muito, tudo do bom, sem mendicância. Eles gastam sem dó, é fartura. Nós somos os primos pobres e distantes. (Marize, Gigante do Samba)
A “imagem da ostentação” é a mais recorrente, sendo possível percebê-la nas falas já expostas neste e nos outros capítulos da tese. Diz respeito à noção de grandiosidade, “luxo e riqueza” atribuída às escolas cariocas. Pensei em nomeá-la como “imagem da imponência”, porém, a partir da comparação proposta pelos sambistas pernambucanos entre os seus trabalhos e o das escolas cariocas, o conceito de ostentação surge com mais vigor diante de uma autoimagem oposta, de extrema simplicidade. A análise do ex-carnavalesco pernambucano Américo Barreto que, por anos, trabalhou no Carnaval do Recife, em várias agremiações de samba, ajudou a qualificar essa impressão coletiva, e eu definir ostentação como palavra chave desta imagem: É ostentação mesmo. Esse ano (2013), nós já vimos na passarela (em Recife) uma índia com um cocar com 2 penas de passarinho! Quando você vai para o Rio, uma fantasia de índio tem um bando de passarinho da cabeça aos pés, uma revoada inteira na cabeça em um cocar. O que o povo pensa sobre o Rio, aqui em Recife, é a mais pura realidade. Lá é aquela coisa de material por cima de material, tecido, pena, galão tudo pra dar efeito e ostentar também. Então essa comparação é a mais verdadeira possível é o luxo versos o lixo.
Américo Barreto também já passou uma temporada trabalhando nos barracões das escolas cariocas (na Mangueira e na Unidos da Tijuca), fala sobre o material diferenciado e caro usado pelas escolas do Rio de Janeiro e destaca a técnica de sobreposição desses materiais para a confecção de fantasias e alegorias, o que dá o sentido da ostentação. Isso foi sintetizado por ele de forma emblemática: “luxo versus o lixo”.
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Até hoje tem gente que não sabe o que é um egrete aqui em Recife, porque nunca chegou no mercado, é uma pena de garça. Uma outra pena muito usada lá é a pena de pavão, aqui é absurdamente caro, eles ostentam bandos inteiros de pavões e faisões nas fantasias, da cabeça aos pés, principalmente dos destaques e da portabandeira. Aqui, uma pena de pavão mede no máximo 50cm, lá tem até de 2m. Um chumaço de penas custa R$ 1.500. Como os pobres daqui podem comprar? É o luxo que ofusca o lixo. No Rio uma fantasia de um destaque tem muito mais penas do que de uma ala daqui.
Para Américo, há “muito mais” penas230 na fantasia de um só destaque de uma escola do Rio de Janeiro do que em uma ala inteira de uma escola pernambucana. Trata-se de uma ideia constitutiva da “imagem da ostentação”, acionada em vários momentos por diferentes interlocutores: com um fragmento do Carnaval carioca é possível produzir grande parte do desfile do Carnaval do Recife. Foram muitos os relatos dos sambistas pernambucanos sobre uma única fantasia de ala de uma escola carioca que se transformou em mais de um destaque no desfile recifense ou vestiram comissões de frente; roupas de um ritmista do Rio de Janeiro que se transforma no figurino de um mestre sala em Pernambuco. Dá sim porque a menina que costura pra gente tem uns parentes no Rio que saem na Mangueira e, depois, ela manda as fantasias pra gente. De uma só de ala que ela mandou a gente fez três destaques. Porque tem muito tudo na peça, muita pena, muito galão, muito paetê, aí a gente vai esfacelando a fantasia e dividindo. (Carlos Alberto, Unidos da Mangueira). Uma roupa de ala lá, se vier toda direitinha pra cá, ela entra com o destaque, já fizemos isso, e a que veio de lá era a roupa mais bonita que a gente tinha no desfile. Uma roupa só, de ala mesmo, que venha de lá, a gente faz a festa aqui. Se vier seis roupas de ala, a gente faz 12 para a comissão de frente e fica lindo.Uma bateria de lá é uma escola de samba inteira daqui. (Itamar, Unidos de São Carlos) Aqui já teve escola grande que a roupa da bateria da Beija-Flor foi a roupa do Mestre-Sala. Não tiveram nem o desprazer de mudar uma cabeça, fazer um resplendor, nada. O jurado nem se ligou e deu dez para ele. Aqui é assim: botou um brilhinho a mais já está lindo. (Nado, Limonil)
Os sambistas pernambucanos sublinham o contraste entre Rio de Janeiro e Recife, representado pelo binômio luxo e simplicidade, afirmando que as escolas de samba do Rio de Janeiro usam pouco o recurso do reaproveitamento, desperdiçam muito material após o desfile. A “imagem da ostentação” também se constrói amparada na noção de obsolescência programada. No campo dos estudos de consumo e de meio ambiente, a obsolescência programada é o nome dado à vida curta de um bem ou produto, projetado para funcionar 230
Nas entrevistas com os sambistas pernambucanos, usar penas no Carnaval é uma referência para os padrões de luxo e pobreza, por ser um material muito caro. “Pena é para rico, um quilo de pena é R$1.800. Com que dinheiro eu compro isso?”, indaga Conceição, da ‘Unidos de São Carlos’. A ‘Gigante do Samba’ compra penas e outros materiais nos barracões do Rio de Janeiro, por isso vista como “rica” por suas coirmãs: “Só a Gigante, e antigamente a Galeria, que têm dinheiro para comprar pena da melhorzinha, o resto usa pena de fazer peteca mesmo, ela é a rica”, complementa a Presidente da Unidos de São Carlos.
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apenas por um período reduzido (GONÇALVES, 2011)231, produzindo assim mais consumo. Desse modo, as fantasias e alegorias do desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro seriam, na visão dos carnavalescos pernambucanos, “programadas para durar” apenas os 90 minutos do desfile da Marquês de Sapucaí, em seguida, sem uma dinâmica de reaproveitamento, tornam-se obsoletas, transformam-se em lixo. Nessa lógica, com bases na sobreposição de materiais e na obsolescência programada “carnavalesca”, as escolas cariocas ostentam e desperdiçam. Em contrapartida, suas coirmãs do Carnaval do Recife imaginam-se usufruindo desse excedente. Para elas, o lixo do Carnaval do Rio de Janeiro é uma imagem forte, seria a solução para os seus problemas, significaria o uso de materiais inexistentes no mercado da cidade, traria beleza estética ao desfile e uma conexão direta entre os dois Estados. Dá pra fazer um carnaval aqui com o lixo deles, dá de sobra. Se a gente fosse mais unido, o povo de samba daqui e o povo do samba de lá, isso daria certo. Porque aí eles mandavam o lixo para a gente; lixo é lixo, eles não vão usar, e faria a alegria das escolas daqui. (Valmir, Limonil) Às vezes eu paro e fico só pensando... Se a Beija-Flor fizesse uma caridade e mandasse o lixo dela pra mim. Eu sempre gostei da Beija-Flor, por causa do passarinho e de Joãozinho Trinta. De 10 anos pra cá, ela é 1º, 2ºou 3º lugar, sou fã. Só o lixo dela eu ganharia aqui disparado e fazia carnaval, dois anos seguidos de carnaval. Tentei falar com eles, mas não tivemos resposta (Jarlan, Limonil)
As lideranças entrevistadas afirmam querer assistir ao desfile no sambódromo da Marquês de Sapucaí (a maioria deles nunca saiu do Estado), mas a dispersão aparece como lugar de desejo, principalmente depois dos desfiles das campeãs: “[...] é quando eles jogam tudo fora, tudo vira lixo” (Naná, Galeria do Ritmo).
No Rio eles não reciclam. O lixo, eles dão pros blocos, na avenida, queria eu poder ir pra avenida. No dia do desfile das campeãs, você pode ir pra lá que, na pior das hipóteses, você traz 10.000 plumas. A gente não compra material no Rio, porque sai quase o mesmo preço. (Nado, Limonil) Você ficando ali na dispersão, você monta umas três escolas, porque vai terminando os desfiles, e a turma vai deixando tudo no chão. Essas plumas brancas vêm do Rio de Janeiro, um amigo conseguiu mais barato, é o lixo do passado de lá. Estamos trabalhando muito com reciclagem porque, se não for com reciclagem, eu não vou pra frente. (Itamar, Unidos de São Carlos)
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Para contextualizar, Pólita Gonçalves (2011, p. 33) explica que a obsolescência programada é uma estratégia de mercado, parte do fenômeno mercadológico contemporâneo, que visa garantir o consumo constante.
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Eu tenho vontade de ir pro Rio, mas, para catar o lixo deles, porque o deles é rico, e o da gente é pobre. Eu queria ver os desfiles e, depois, eu queria catar o lixo, meu aperreio é o lixo. [...] Eu vejo pela televisão e fico imaginando o que eles podiam reciclar lá, aquelas fantasias que eles jogam no lixo, eles têm que ver que a gente aqui é pobre. Se tivesse uma fusão, uma união tanto das de lá como as daqui... Como a gente já tentou entrar em contato pela internet, mandar mensagem, mas eles disseram que não podiam ajudar, porque não conheciam escola pelo nome de Unidos de São Carlos. Aí isso já magoou muito a gente, porque tanta coisa que eles jogam no lixo... (Conceição, Unidos de São Carlos)
Nesses últimos trechos transcritos, percebe-se o movimento dos pernambucanos para estreitar os vínculos entre os dois estados, mesmo por meio da doação de material; é possível ver certa decepção pela pouca receptividade e solidariedade, por parte das escolas cariocas. Há nessa “imagem da ostentação”, entretanto, um encantamento que impossibilita discernir o luxo e a “impressão de luxo” (CAVALCANTI, 2006), propositalmente transmitida pelas escolas de samba do Rio de Janeiro, bem como o desconhecimento da dinâmica de reaproveitamento do Carnaval dessas escolas, pois o “lixo” do Grupo especial circula e chega àquelas dos demais grupos232. Vale ressaltar que as escolas pernambucanas também se ajudam, o excedente (nem sempre o lixo, mas também a sobra da produção) da Limonil, segundo seu presidente, é doado para a Escola do Grupo I, Raio de Luar, e o da Gigante do Samba é doado a sua concorrente do grupo especial ‘Unidos de São Carlos’.
4.3
Crise e conflitos: os casos da Mangueira e da Unidos da Tijuca
Leach (1996), em seu estudo sobre os povos habitantes do noroeste da Birmânia, alerta que as sociedades não estão em “equilíbrio estável” e, para análise antropológica, as contradições e incongruências são tão importante quanto a estabilidade. Obviamente não quero comparar os cariocas e os recifenses aos Kachins e os Chans, estudados por Leach, mas tenciono, ao fim deste capítulo, não deixar uma percepção de mera harmonia e admiração na ligação simbólica da parte das escolas de samba pernambucanas para com as representantes do carnaval cariocas. De fato, foi difícil encontrar pontos de tensão em um universo de
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É comum o movimento de doação e circulação de “lixo” para as escolas dos outros grupos do Carnaval do Rio Janeiro: “A cada ano muita coisa virava sucata, e era mandada embora, ou passava para outras escolas que repassavam o “lixo” das grandes para as escolas menores e para os blocos” (CAVALCANTI, 2006, p. 156). Sobre reaproveitamento de material e doação para grupos menos abastados, no universo das escolas de samba do Rio de Janeiro, ver também Barbieri (2009). Acompanhei esse movimento na visita realizada ao barracão das escolas de samba dos grupos C, D e E, com Maria Laura Cavalcanti, em setembro de 2010.
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relações cuja admiração é um vínculo precioso – sobretudo, para uma manifestação carnavalesca historicamente sem aliados em Pernambuco e alvo de esforços regionalistas contra a sua presença-. Ou seja, a relação estabelecida com as escolas de samba do Rio de Janeiro, mediada pela distância geográfica, é simbólica, romantizada e unilateral, efetivamente partem do Recife para o Rio de Janeiro. Entretanto, em dois momentos de crise (TURNER, 2005), foi possível visualizar as tensões nessa relação, os casos dos patrocínios e contratações da ‘Estação Primeira de Mangueira’ e ‘Unidos da Tijuca’ pela Prefeitura do Recife e Governo do Estado de Pernambuco, respectivamente. Patrocínios em desacordo, sob protestos dos sambistas pernambucanos. Nesses momentos de crise, de “ruptura com a ordem social” (idem), o discurso e a percepção mudam. Não há admiração, não se fala em beleza estética, e a imagem do carnaval do Rio de Janeiro ganha contornos negativos. A posição historicamente designada às escolas de samba pernambucanas, desde os tempos da “batalha frevo-samba” (REAL, 1990), é invertida; as escolas cariocas são as invasoras, o “perigo” a ser combatido pelos pernambucanos, agora, dentre eles, as escolas de samba do Estado. No carnaval de 2008, a escola de samba ‘Estação Primeira de Mangueira’ desenvolveu um enredo em homenagem ao centenário do frevo. Para tanto, a Prefeitura do Recife foi uma das patrocinadoras e, em troca da vitrina proporcionada pelo desfile, com vistas a vender o carnaval do Recife em um megaevento de alcance internacional, destinou à Escola cerca três milhões de reais. Segundo dados oficiais, divulgados no site da Prefeitura233, além dos três milhões, eram previstos, por parte da escola de samba carioca, a realização de oficinas carnavalescas para dez integrantes das três escolas de samba campeãs do Carnaval do Recife, com duração de uma semana no barracão de alegorias da Mangueira234, além de três shows no Recife, com 28 integrantes da agremiação e possibilidade de uma quarta apresentação. O contrato ainda previa a divulgação da Prefeitura com publicidade nos eventos e citação do patrocínio no material divulgado pela imprensa sobre a escola. Essa transação gerou muita polêmica na cidade, principalmente, entre os carnavalescos, dividindo opiniões umas de aprovação, outras de protesto. A intenção do poder público municipal em capitalizar e projetar o frevo em um evento de alcance internacional 233
Ver Boletim Diário - Sec. Comunicação (Intranet). Quinta-feira, 21 de Junho de 2007. http://www.recife.pe.gov.br/2007/06/21/mat_38854.php Boletim Diário - Sec. Comunicação (Intranet). Acessado 04/04/2014. 234 Oficina da qual Hilário Silva, o carnavalesco da Gigante do Samba, participou e foi mencionada no terceiro capítulo.
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não convenceu a maioria dos sambistas da cidade. A grande reivindicação era o alto valor do patrocínio dado ao desfile da “Verde e Rosa”, enquanto as escolas locais se apresentariam no Polo das Agremiações do Carnaval, com uma subvenção menor que 0,5% do montante em questão, paga em duas parcelas; uma delas a ser recebida depois do carnaval, sem data regulamentar. Se até para o universo do samba carioca, três milhões se trata de um valor significativo, para as agremiações do Recife, é uma enorme fortuna. Somando-se o valor de subvenções de todas as quase 300 agremiações do Concurso das Agremiações não teremos 10% da rubrica destinada à Mangueira. As discussões se agravaram após o desfile mal sucedido, com falhas no desenvolvimento do enredo quanto à história do frevo e com o qual a Mangueira ficou na pior colocação nos últimos anos. Vale lembrar que a escolha do frevo deixou descontente muitos mangueirenses por ter destituído Cartola, fundador de Escola, no ano de seus 80 anos, em detrimento a um enredo patrocinado, o frevo. Os sambistas pernambucanos, quando entrevistados, quatro anos depois do desfile da Mangueira, falavam do evento de forma espontânea, como se o evento estivesse atualizado na memória e atuante a mobilizar indignação. Com certeza eu sou das poucas que defendem o patrocínio. Nunca a Prefeitura vai ter uma projeção dessa, por esse preço. Eu entendo. Agora, sou contra, e muito contra, é a gente não ter a mesma valorização. Se tem essa verba para gastar com uma agremiação de fora, tem para gastar com as de dentro. O pior de tudo é que o desfile foi podre, horrível, nem o povo do frevo gostou, ninguém gostou, nem os jurados. Me revoltei. (Marize, Gigante do samba) Olhe foram duas injustiças: o patrocínio de R$ 3 milhões para a escola de samba carioca é uma injustiça com todas as escolas do Recife; aliás, com o Carnaval do Recife, com centenas de agremiações penando para sobreviver. Ninguém de fora deve receber mais do que as daqui, isso era para ser lei. Ela pode ser Mangueira, a escola do papa, tem que ter bom senso. Anunciar aos quatro cantos que vai dar três milhões para uma escola só é querer que todos se calem e pense que é bom para o frevo, para o Estado. Bom para o Estado é ter as escolas daqui boas, bonitas e competitivas. A outra injustiça foi com Cartola que faria 100 anos em 2008, mas isso cabe ao povo de Mangueira protestar. (Correia, Samarina) Para mim, o lance da prefeitura ter dado dinheiro para a Mangueira foi uma coisa que mexeu com todos nós do samba. Eu acho errado, por que não deu aqui pra gente? Se a gente for falar do Pão de Açúcar e for pro Rio, se a gente não tiver dinheiro pra um hotel de quinta, a gente vai dormir na quadra da escola apulso. Agora eles, quando vêm pra cá, eles têm tudo 0800. E a promessa deles é que vem fazer um desfile aqui. Uma escola que sai com 4.000 pessoas, aí vem pra aqui e traz 80 pessoas, me poupe. Vem ganhar mais dinheiro às custas dos bestas, com essa história de divulgação da cultura pernambucana. Com esse dinheiro, a gente também divulgaria e muito mais bonita (Nado, Limonil). [...] Além de tudo, o desfile, meu Deus, uma vergonha para o povo de Pernambuco. E eu acho é pouco para a Mangueira que deixou de homenagear um mestre, Cartola,
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e para a Prefeitura que deixa de nos ajudar e ajuda uma de fora para fazer aquele desfile. (Naná, Galeria do Ritmo).
Em 2011, foi a vez da escola de samba carioca ‘Unidos da Tijuca’ que anunciou um enredo em homenagem ao centenário de Luiz Gonzaga, a ser comemorado em 2012. Após o anúncio, organizou uma comitiva para negociações de cotas de patrocínio com o Governo do Estado. Depois da experiência com a Mangueira, em 2008, já nesse primeiro momento de negociações, os sambistas pernambucanos se mostraram contrários ao possível patrocínio e já se mobilizavam para protestar. O Governo de Pernambuco, talvez pela repercussão irregular do caso da Mangueira, em 2008, não patrocinou diretamente o desfile da ‘Unidos da Tijuca’, mas a ajudou financeiramente de maneira indireta, por meio da Empresa de Turismo de Pernambuco (EMPETUR) e da Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (FUNDARPE) que investiram ao menos R$ 650 mil em contratos com a escola235. O caso da Tijuca acrescentou novas questões aos debates iniciados com o episódio do fomento da Mangueira. Nesse momento, não se tratava mais de subvenção pública, por isso a discussão encaminha-se em outros termos. As escolas de samba questionavam o porquê de também não serem contratadas pelo Governo e pela Prefeitura para se apresentarem no carnaval, e assim serem ajudadas sob os mesmo termos da Tijuca. Salta aos olhos e se transforma em reclamação à disparidade entre os valores pagos pelas apresentações da Tijuca e o cachê daquelas poucas apresentações de uma escola de samba local no carnaval. Embora os carnavalescos reconheçam os ditames e valores de mercado, há um entendimento anterior a tudo: a contratação e os cachês para o carnaval devem fazer parte uma ação de política pública e não apenas uma negociação pautada nos valores e status do mercado artístico. Os sambistas pernambucanos questionavam-se ainda sobre a ausência do Governo do Estado na produção dos desfiles locais, sobre a mediação de patrocínios privados, como foi feito para a Escola carioca. Por fim, refletiram sobre as condições a que se sujeitavam, quando são contratados para os eventos públicos, uma vez que circularam muitos comentários sobre a
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Segundo site da assessoria de imprensa da EMPETUR, a colaboração financeira do governo se deu, a princípio, através da contratação de integrantes da escola para a realização de shows, nas cidades pernambucanas: Recife, Garanhuns (no Festival de Inverno de Garanhuns – um dos maiores eventos do Estado), e Exu (onde nasceu Gonzaga). De acordo com a assessoria de imprensa da Unidos da Tijuca, o desfile de 2012 ainda conseguiu patrocínio das empresas pernambucanas: Moura Dubeux, Queiroz Galvão, Vital Engenharia, Coca Cola Guararapes, Conecta, MPX, Maxxima, Egesa, Jaraguá, GL Empreendimentos e Oi. O contato com esses patrocinadores foi mediado pelo Governador Eduardo Campos e alcançaram o valor de R$ 3 milhões de reais.
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hospedagem dos componentes da Tijuca em hotéis de luxo, alimentação em requisitados restaurantes. Certamente o caso da Tijuca, apesar de levantar discussão, teve menos ânimo e repercussão. Diferentemente da Mangueira, em 2008, o desfile da Tijuca foi bem aceito no Estado e, o mais importante, conquistou o campeonato arrefecendo os debates, pois o êxito do desfile transmitiu a ideia de “investimento certo” do Governo em explorar a visibilidade do Carnaval do Rio de Janeiro e ligar-se diretamente à Escola campeã. A gente falou de Luiz Gonzaga, o que foi que a gente ganhou do Estado? A Tijuca, que é do Rio... A subvenção da prefeitura é tão irrisória, se eles tivessem dado 10% do que deram à Tijuca. Soldado: a Tijuca esse ano recebeu uma grande verba aqui (o tema era Luiz Gonzaga). Mais o cachê, fez 4 shows aqui no estado. Pra gente é uma falta de prestígio, de consideração de investimento. Eles acham que é só o frevo tudo bem, mas tem que ver a cultura, olhar o trabalho da gente. Faz uma pesquisa, eles vão ver a força que a ‘Gigante’ tem. (Soldado, Gigante do Samba) A Tijuca veio aqui fez uma apresentação junto com ‘Gigante’, a ‘Gigante’ não ganhou uma água mineral. Eles vieram com 100 componentes, ganharam passagens, hospedagens, bufê com comidas regionais. Cachês diferentes, tratamentos diferentes, por quê? Por causa do mercado, tá certo, mas o carnaval não é só mercado não. Se não ajudar as escolas daqui, elas nunca vão ficar iguais às de lá. Vão é se acabar, aí o mercado salva as grandes e enterra as pequenas e isso não pode ser feito com dinheiro público. (Marize, Gigante do Samba).
Em 2014, a nova gestão da Prefeitura do Recife, agora do PSB, mantém o mesmo modelo de organização da festa, exatamente igual, mas retira o nome multicultural da festa, principalmente por se tratar de uma marca contundente da antiga gestão, usada por 12 anos consecutivos. A categoria diversidade, então, toma conta dos discursos e materiais de divulgação. As escolas de samba seguem pontuando as mesmas críticas e enfrentando os mesmos limites. Entre dois carnavais, um de cada lado, tão perto e tão longe, daqui e de lá, nós e eles, tudo ao mesmo tempo. E o samba, mesmo acolhido pela ideia de diversidade, continua sendo um fio que une e separa.
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4.4 Caderno de imagens II
Fig. 35. Desfile Gigante do Samba, 2013. Av. Nossa Senhora do Carmo. ComissĂŁo de Frente. Fonte: Hugo Menezes.
Fig. 36. Desfile Gigante do Samba, 2013. Av. Nossa Senhora do Carmo. Abre-Alas. Fonte: Hugo Menezes.
Fig. 37. Desfile Gigante do Samba, 2013. Av. Nossa Senhora do Carmo. Alas. Fonte: Hugo Menezes.
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Fig. 38. Desfile Gigante do Samba, 2013. Av. Nossa Senhora do Carmo. Alas. Fonte: Hugo Menezes.
Fig. 39 Desfile Gigante do Samba, 2013. Av. Nossa Senhora do Carmo. Ala coreografada. Fonte: Hugo Menezes.
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Fig. 40. Desfile Gigante do Samba, 2013. Av. Nossa Senhora do Carmo. Velha guarda. Fonte: Hugo Menezes
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Fig. 41. Desfile Gigante do Samba, 2013. Av. Nossa Senhora do Carmo. Alegorias. Fonte: Hugo Menezes.
224 Fig. 42. Desfile Gigante do Samba, 2013. Av. Nossa Senhora do Carmo. Mestre-sala e porta bandeira. Fonte: Hugo Menezes.
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Fig. 43. Desfile Gigante do Samba, 2013. Av. Nossa Senhora do Carmo. Baianas. Fonte: Hugo Menezes.
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Fig. 44. Desfile Gigante do Samba, 2013. Av. Nossa Senhora do Carmo. Bateria. Fonte: Hugo Menezes.
Fig. 45. Desfile Gigante do Samba, 2013. Av. Nossa Senhora do Carmo. Bateria. Fonte: Hugo Menezes
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Fig. 46. Desfile Gigante do Samba, 2013. Av. Nossa Senhora do Carmo. Finalização. Fonte: Hugo Menezes.
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Ao fim desta tese, penso que ainda tenho muito a falar, mas já previa o intenso exercício do trabalho do antropólogo de escolher caminhos, materiais e apreciações, em detrimento de outros também relevantes. Não usarei, contudo, esse último espaço para retrospectiva dos conteúdos, pretendo apenas demarcar ou destacar dois pontos importantes como encerramento. O primeiro diz respeito aos distintos níveis de compartilhamentos dos patrimônios culturais numa mesma sociedade que, ao meu ver, são caros à discussão antropológica sobre a escolas de samba no Recife ou em qualquer outro parte do Brasil. O segundo ponto, alerto o leitor para produção do texto etnográfico como tradução das escolhas do antropólogo, entre o que evidenciar ou não, bem como do estado momentâneo das suas reflexão etnográficas, sempre disponíveis a atualizações. Lembranças e carnavais: partilhas e antropologia Não, não deste último carnaval. Mas não sei por que este me transportou para a minha infância e para as quartas-feiras de cinzas nas ruas mortas onde esvoaçavam despojos de serpentina e confete. Uma ou outra beata com um véu cobrindo a cabeça ia à igreja, atravessando a rua tão extremamente vazia que se segue ao carnaval. Até que viesse o outro ano. E quando a festa já ia se aproximando, como explicar a agitação que me tomava? Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate. Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim. Carnaval era meu, meu. (LISPECTOR, 1999)
Clarice Lispector viveu sua infância no Recife, e os antigos carnavais da cidade permeiam alguns dos textos de sua produção literária. Nesta crônica, publicada no Jornal do Brasil, o carnaval de 1968 a transportou para a sua infância, a começar pela agitação que a tomava às vésperas da festa, seguida da ocupação do espaço público como se “as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas”. E, por fim, a cidade vazia em uma quarta de cinzas, no movimento cíclico de esperar “até que viesse o outro ano”. Ao longo do texto, Lispector deixa claro que o seu carnaval é o do frevo com lança-perfume, confetes e mascarados nas ruas; ela morava defronte a Praça Maciel Pinheiro, tradicional foco da folia. Nas minhas lembranças de carnaval, na infância, estão as ruas de Olinda. Meu pai gostava muito do Bacalhau do Batata, famoso bloco daquela cidade, conhecido por arrastar multidões exatamente na quarta feira de cinzas. Portanto, minhas quartas de cinzas, diferentemente das de Lispector, nunca foram desoladas, tinha muito frevo, e beatas só se fossem de fantasias. Lembro-me dos cheiros, das ruas apertadas, de um calor infernal e da felicidade do meu pai.
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Perguntei a Marize, atualmente diretora da Gigante do Samba, quais eram as suas lembranças de carnaval na infância. Ela respondeu que sua mais antiga lembrança se remetia aos cinco anos de idades, quando viu a Gigante do Samba e despertou o desejo de desfilar. Aos sete anos, teve o pedido atendido e não parou nunca mais (atualmente, tem cerca de 40 anos). Desfilou em ala, de passista, rainha de bateria, destaque e continua desfilando. Sua mãe, Dona Maria do Carmo, desfilou “desde moça” e, segundo ela: “se teve carnaval de outro jeito, sem Gigante, não me lembro”. Nos últimos anos, foi baiana, mas, acometida por “problemas da idade”, não pode desfilar, lamenta e chora por isso. Inspirado na história de Marize e da mãe dela, perguntei a minha mãe, D. Marlene, uma cearense residente em Recife, há mais de 30 anos, se ela já havia assistido a um desfile das escolas de samba do Recife. Ela respondeu com uma franqueza característica que não sabia da existência dessas agremiações até eu comentar. E ela não é a única; de fato, muitos recifenses desconhecem as escolas de samba pernambucanas. Eu mesmo cresci sem saber delas, o carnaval para mim era do frevo. Talvez Lispector também não tenha visto ou não se lembrava delas. Clarice Lispector, Hugo Menezes, Marize Félix, Dona Maria do Carmo, Dona Marlene, todos ligados ao Recife. Moradores da cidade com histórias de vida e experiências carnavalescas muito diversas. Gilberto Velho (1980, p. 16), refletindo sobre a pesquisa antropológica nos centros urbanos, advertia que nas cidades a partilha dos patrimônios culturais é atravessada pelas “trajetórias, experiências e vivências específicas”: Dentro da nossa própria sociedade existe, constantemente, esta experiência de estranhamento. Vivemos experiências restritas e particulares que tangenciam, podem eventualmente se cruzar e constantemente correm paralelas a outras tão plenas de significado quanto as nossas. A possibilidade de partilharmos patrimônios culturais com os membros de nossa sociedade não nos deve iludir a respeito das inúmeras descontinuidades e diferenças provindas de trajetórias, experiências e vivências específicas. Isto fica particularmente nítido quando fazemos pesquisas em grandes cidades e metrópoles onde a heterogeneidade provinda da divisão social do trabalho, a complexidade institucional e a coexistência de numerosas tradições culturais expressam-se em visões de mundo diferenciadas e até contraditórias. Sob a perspectiva mais tradicional poder-se-ia mesmo dizer que é exatamente isto que permite ao antropólogo realizar investigações na sua própria cidade. (VELHO, 1980, p. 16)
Nesta tese, parti do princípio de que a “batalha frevo-samba”, identificada por Katarina Real (1990), diz respeito às discussões em torno das ideias de identidade e pertencimento. A celeuma se relacionaria, nas palavras de Velho (1980), às dificuldades de
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alguns atores sociais em admitirem que, embora pertencentes à mesma sociedade, não partilhamos o patrimônio cultural da mesma forma. Tentei compreender o “ponto de vista nativo” desta discussão, como os brincantes de samba pernambucanos elaboram, agenciam a noção de pertencimento, de identificação com a “pernambucanidade”. Suas experiências me remeteram à Barth (2000, p. 212), segundo o qual há diversos níveis de compartilhamento no interior da própria identidade a gerar, inclusive, estratégias opostas de identificação. Lancei mão também dos estudos de Geertz (2001, p. 72), que aponta a ausência de consensos, sejam eles transnacionais, transculturais, ou dentro de uma mesma sociedade: [...] Mas, há também, e creio que não menos importante, o aumento da consciência de que o consenso universal – transcultural, transnacional e até de todas as classes – sobre assuntos normativos não está visível num futuro próximo. Nem todos os sikhs, os socialistas, os positivistas, os irlandeses – chegarão a uma opinião comum sobre o que é decente e o que não é, o que é justo e o que não é, o que é belo e o que não é, o que é razoável e o que não é, pelo não tão cedo, ou talvez nunca”
Desse modo, destaco que os brincantes de samba em Pernambuco engendram um jogo particular de distanciamento e de aproximação dos repertórios identitários, local e nacional, acionam os conteúdos da “pernambucanidade” para afirmar particularismos distintivos e aqueles da “brasilidade” (emblematizados pelo samba) para evocar traços de similaridade a lançá-los para além dos limites regionais. As escolas de samba pertencem ao Recife, ao Rio de Janeiro e a outros tantos lugares onde se fazem presentes, partilham patrimônios culturais diversos e, em cada um desses lugares, apresentam-se iguais e, ao mesmo tempo, diferentes, ambiguidade a desafiar a ilusão da unidade e da identidade unívoca. Como explicou, ao seu modo, Marize da Gigante do Samba: A gente ainda não teve uma oportunidade de formalizar uma coisa nossa, porque quem se articulou politicamente com o samba foi o Rio de Janeiro. Mas tudo gira em torno da gente também. O samba é do Brasil. Todos os Estados do Brasil têm uma escola de samba. Cada uma é diferente, mas também tem coisas iguais. A gente é daqui, mas é também do Brasil.
Penso ter apresentado as escolas de samba do Recife como interessante situação etnográfica para olhar, dentre outras coisas, os agenciamentos dos conteúdos identitários, a “ausência de consensos” e as variadas possibilidades de partilhamento dos patrimônios culturais.
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Escrever é preciso... De certo, a escrita etnográfica ilumina apenas alguns aspectos, discussões, personagens, acerca do objeto de pesquisa e não alcança outros. Como diz Vagner Gonçalves da Silva (2006, p. 118): “O texto etnográfico em geral é uma redução brutal das inúmeras possibilidades de interpretação da experiência de campo e do difícil exercício de alteridade realizado entre o antropólogo e seus interlocutores”. O texto etnográfico, como uma forma de representação de “uma adequação ou transformação da realidade que pretende inscrever, descrever, interpretar, compreender, explicar etc.” (idem, 118), é, então, uma reconstrução seletiva da realidade. Tenho clareza, por exemplo, da impossibilidade de, nos termos deste trabalho, analisar profundamente os sentimentos dos componentes das escolas de samba por suas agremiações. Falas como as de Marize são dignas de tratamento analítico específico, pois são, em grande medida, emoções mobilizadoras das resistências das escolas de samba, em um ambiente austero a impor a elas muitas dificuldades práticas e simbólicas. Eu sou apaixonada pelo samba... Eu posso estar com o maior problema do mundo, quando eu chego aqui em Gigante que a bateria toca eu começo a viver de novo. O samba ele tem o poder de fazer você esquecer tudo de ruim que tem na sua vida, ele tem esse poder. Quando a bateria da Gigante toca, até o aleijado quer se levantar da cadeira! (Marize, Gigante do Samba)
A bateria que “faz esquecer tudo de ruim que tem na sua vida”, faz superar também as referidas limitações; é uma espécie de “poder”, segundo Marize. Ora, logo nós antropólogos tão dedicados à magia, à feitiçaria e a encantos místicos de outros povos, não podemos desconsiderar o poder de uma bateria em fazer alguém “viver de novo”, ressuscitar a cada encontro com as suas batidas mágicas. Em contrapartida, procurei, no texto etnográfico, valorizar as apreensões dos sambistas recifenses ao seu respeito, por meio de suas falas, dos conceitos e práticas constitutivos do movimento das escolas de samba do Recife. Nessa orientação metodológica, busquei, ao escrever, dar voz ao outro lado da histórica “batalha frevo-samba”, da qual apenas os intelectuais, artistas e políticos “defensores do frevo” foram evidenciados e estudados. Reconhecer as diferenças e observar as especificidades das escolas de samba do Recife foi importante para ver a cidade sob novos ângulos. Como afirma Cavalcanti (2006, p. 26): “compreender o ritual do desfile é ao mesmo tempo, compreender a cidade que o realiza as tensões que a constituem e nela se desenvolvem”. Recife se mostra mais conservadora do que
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a multiculturalidade do seu carnaval apregoa e igualmente mais cosmopolita do que acreditava e ainda acreditam alguns intelectuais de verve regionalista. É uma metrópole e, como tal, “se revela como uma daquelas grandes formações históricas em que correntes opostas que encerram a vida se desdobram, bem como se juntam às outras de iguais diretos” (SIMMEL, 1979 p. 25). O Recife se mostrou um lugar de grande resistência às escolas de samba, ao mesmo tempo, um contexto de escolas muito resistentes, que perduraram à revelia dos esforços contrários. Esta tese não pretendia, porém, responder de que maneira elas conseguiram se estabelecer, o que por si só é incrivelmente impressionante. O objetivo era investigar experiências dos brincantes de samba, geradas neste contexto de intenso regionalismo cultural e interpretá-las antropologicamente, entendendo que essas traduzem também uma experiência específica da cidade. Apreciar o Recife, por meio das escolas de samba, é conhecer um pouco mais sobre seu “estado de espírito”, “sentimentos”, “atitudes”, “costumes” e “tradição”, Cidade, nos termos de Robert Park (1979, p. 26): [...] a cidade é mais do que um amontoado de homens individuais e de conveniências sociais [...] algo mais também do que a mera constelação de instituições e dispositivos administrativos [...]. Antes, a cidade é um estado de espírito, um corpo de costumes e tradições e dos sentimentos e atitudes organizados inerentes a esses costumes e transmitidos por essa tradição. Em outras palavras a cidade não é meramente um mecanismo físico e uma construção artificial. Está envolvida nos processos vitais das pessoas que a compõem. (PARK, 1979, p. 26). (grifos meus).
Em 2014, a Escola de Samba Gigante do Samba venceu mais um Carnaval, tornou-se heptacampeã, com fôlego suficiente para mais campeonatos; a nova gestão da Prefeitura ventila a possibilidade de abrir um Polo de Samba no Carnaval em 2015; a Secretária de Cultura do Recife, Leda Alves, prometeu realizar o carnaval de 2015 com mais artistas locais e menos atrações “de fora”; essas são algumas possíveis mudanças no campo de pesquisa. O que observamos hoje é um quadro momentâneo de um fluxo contínuo, como diz a antropóloga Léa Perez (2012, p. 30): “A Festa é vivida como explosão de vida, pleno de atualidade. Festa é presentificação da Tradição enquanto experiência da vida em sua efemeridade e em sua fugacidade”. Enquanto isso, continuo a concordar com Mariza Peirano, para quem a prática etnográfica “artesanal, microscópica e detalhista – traduz como poucas outras, o reconhecimento dos aspectos temporais das explicações” (PEIRANO, 1995, p. 57).
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