X I I I Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música
Dalva de Cachoeira: Samba e Boa Morte Francisca Marques UFRJ E-mail: mosaico9@hotmail.com Sumário: Áudio-documento sobre a vida e a obra de D. Dalva Daminana de Freitas, cantora, compositora e dona do Samba de Roda da Suerdieck. Esse trabalho faz uma síntese da biografia e da musicalidade de Dalva e de sua terra, Cachoeira. O feature que apresentamos é, portanto, resultado da edição dos trabalhos acústicos (e paisagens sonoras) captados pela pesquisadora durante os trabalhos de campo realizados sobre a Irmandade da Boa Morte em Cachoeira, Bahia. Palavras-Chave: samba de roda / etnomusicologia / trabalho acústico / Irmandade da Boa Morte / Dalva de Cachoeira "O samba é a alegria da gente. O samba é a liberdade. O samba é aquilo que a gente traz no sangue. O samba não pode morrer. Um pandeiro, uma viola e uma baiana batendo palma e tá feito o samba (...)" D. Dalva Damiana de Freitas em depoimento à pesquisadora (janeiro de 2000)
Introdução Esse trabalho tem como proposta um áudio-documento sobre a vida e a obra de D. Dalva Daminana de Freitas, cantora, compositora e dona do Samba de Roda da Suerdieck . Trata-se, portanto, de uma síntese da biografia e da musicalidade de Dalva e de sua terra. O feature que apresentamos é resultado da edição dos trabalhos acústicos (e paisagens sonoras) captados pela pesquisadora durante os trabalhos de campo realizados sobre a Irmandade da Boa Morte1 em Cachoeira, Bahia. Aproximando o potencial da terminologia discutida por ARAÚJO (1993:25-31) como reconceituação de práticas sociais onde o som está presente como produção de sentido, ou "músicas", em termos de trabalho 1
A Irmandade da Boa Morte é uma confraria de Senhoras negras e mestiças que mantém características evidentes do catolicismo, sem, no entanto, deixar de acentuar "intactas" suas raízes ligadas à ancestralidade dos povos africanos das diferentes nações escravizadas e libertas no Recôncavo baiano. Há 226 anos, sempre no mês de agosto, celebram três dias de rituais e revivem o drama da morte, assunção e glória de Nossa Senhora. Pierre Verger (1992) no artigo que fala sobre a contribuição das mulheres no Candomblé do Brasil, sugere que a atuação das primeiras Irmãs da Boa Morte teve significado fundamental à origem dos primeiros terreiros da Bahia. Apresentações Áudio-Visuais
628
X I I I Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música
humano, consideramos como trabalho acústico tanto os meios de captação como os dados coletados através de etnografia com registros sonoros.
Cachoeira: Boa Morte e o Samba de Roda A Boa Morte foi nascida da senzala e na senzala nasceu o samba. Porque na Boa Morte não existe dançar, só existe sambar. Então a Boa Morte é protegida, é nascida do samba (...); depoimento de D. Estelita, Juíza Perpétua da Boa Morte à pesquisadora (agosto, 2000)
Definir “samba” é um desafio tal a sua complexidade na vida brasileira (WADDEY, 1985). Ao mesmo tempo música, letra, dança, ou grupo, o samba inserido na dinâmica de comunidades específicas, como é o caso de Cachoeira, também conhecida como “terra da macumba”, assume claramente o papel, fundamental, de ponte entre o ritual religioso e a vida cotidiana (ZAMITH, 1993).
Dalva no dia do sentimento - Foto: Tatsuhiro Yazawa
Como parte desacralizadora dos rituais da Boa Morte, o samba culmina no domingo trazendo Irmãs e público do drama vivido pela passagem de Nossa Senhora da Morte para a Glória. O retorno ao profano, caracterizado também nas roupas de criola das Irmãs tem cores “vivas”, e se compõe na coreografia peculiar do chamado “samba no pé” que tanto a Irmandade quanto os nativos que assistem compartilham. São homens e mulheres das mais variadas faixas etárias que se alternam no centro da roda sambando a sós, em
Apresentações Áudio-Visuais
629
X I I I Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música
pares, e ainda, formando o coro que anima o samba no suor do corpo, no ritmo da voz, e nas palmas que acompanham o puxador e o pulso dos instrumentos.
D. Dalva de Cachoeira A Irmandade da Boa Morte tem os chamados “sambas da Casa” e suas compositoras de samba. A mais conhecida é Dalva Damiana de Freitas, Dona Dalva do Samba de Roda da Suerdieck. Operária aposentada da empresa de produtos fumageiros Suerdieck, Dalva aprendeu sambas antigos com a mãe e com a avó: Eu ia fazendo minhas histórias porque também minha vó velhinha né... ela ficava cantando... ela lavava roupa... então ela ficava ensabuando roupa... esfregando a roupa e cantando... aí eu também junto com ela eu também pegava... aí ela ficava... Eu vi Anália Penerando massa ioiô Penerando massa aiá Penerando massa ioiô Penerando massa Íoiô penerando massa... Aí ia gravando as coisas e no fim... fazia o meu... tudo o que ela cantava eu botei tudo no samba e deu certo... (entrevista realizada pela pesquisadora em janeiro de 2000)
Segundo Nelson de Araújo (1986:120) seus bisavós maternos foram africanos nagôs e seus sambas são resultados da vivência pessoal e do convívio com as companheiras de trabalho na Suerdieck. Enquanto trabalhavam no expediente da fábrica, Dalva puxava um samba conhecido ou apresentava algum de sua autoria, enquanto as companheiras respondiam como coro batendo as “taubinhas” que utilizavam para o trabalho no manuseio do fumo. Surgiu daí o nome Suerdieck, embora, como afirma a própria Dalva, o seu samba não tenha recebido qualquer patrocínio da empresa. O Samba de Roda da Suerdieck tem 39 anos segundo conta Osvaldo Santos Pereira, violeiro que toca com Dalva desde a primeira formação do Samba. Ele reúne antigos e novos instrumentistas com um coro de baianas que sambam e tocam as “taubinhas”. Dalva também comanda, com participantes da Suerdieck e sua filha Luci, o Samba Mirim da Suerdieck. Através desse trabalho crianças aprendem a tocar instrumentos, praticam o “samba no pé”, o coro e as “taubinhas”.
Apresentações Áudio-Visuais
630
X I I I Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música
Samba Mirim na Festa da Boa Morte - Foto: Francisca Marques
Considerações finais O trabalho de D. Dalva de Cachoeira tem uma musicalidade (e poética) bastante peculiar. São temas que vem de um contexto feminino cotidiano, às vezes emocional enquanto saudade (lírico), valor de cidadania à Cachoeira, ou ainda, na prática do quintal e da culinária: Às vezes quando eu estava com a mente mais desocupada, despreocupada(...) eu mesma, por mim mesma tirava as músicas; eu mesma é quem preparava as minhas músicas. Analisava... deitava, sonhava... o prazer era tanto que eu tinha que eu sonhava... Às vezes eu sentava assim num lugar e ficava pensando uma coisa, aí eu pegava um lápis ou uma caneta, um pedaço de papel, anotava... Daqui a pouco quando o pensamento... por acaso pegava uma palavra de uma pessoa, vc conversava comigo, eu pegava uma palavra sua... aquela... já botava ali... depois eu ia somar aquilo tudo, ajeitar... no fim eu fazia um samba, fazia uma letra. E com isso... o jiló mesmo eu fiz... o jiló... eles faz um samba amargoso... eu disse é amargura é jiló... aí fiz um samba com jiló... (entrevista realizada pela pesquisadora em janeiro de 2000) Jiló, ô jiló / venha cá como quiser ô jiló / jiló ô jiló / como quiser venha cá / plantei jiló não pegou / a chuva caiu rebentou / cortei miudinho / botei na panela / pensei que é jiló / não é jiló / é bringela
O "fazer" samba, ou a forma como Dalva compõe, reflete uma simplicidade surpreendentemente "elaborada". A "sambarista", como ela mesma se define, entre dezenas de sambas (ainda inéditos), tem uma obra Apresentações Áudio-Visuais
631
X I I I Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música
significativa, e pode-se dizer que Cachoeira, tem em Dalva a sua mais importante compositora: Eu faço primeiro a letra... depois vou... bate a tecla pra ver a música qual é que vai dar... Amor de longe.. eu digo... Ah... a gente quando vai embora tá longe tão cedo... ô meu Deus fulano tão cedo tá tão longe, nunca mais vi nem vejo... quer dizer que é Amor de longe né... Amor de longe / Tão cedo eu não vejo mais / A Bahia numerou, meu Deus / Cachoeira ai meu Deus / (e a despedida...) / Adeus gente, adeus gente / Adeus qu’eu já vou m’imbora...
Referências Bibliográficas ARAÚJO, Nelson de. Pequenos Mundos: um panorama da cultura popular da Bahia - tomo I - O Recôncavo. UFBa (EMAC) Fundação Casa de Jorge Amado, 1986. pp. 110-127. ARAÚJO, Samuel Descolonização e discurso: notas acerca do poder, do tempo e da noção de música. R. bras. Mus., Rio de Janeiro, 20:25-31, 1992-1993. THOMPSON, Paul. História Oral - São Paulo: Paz e Terra. 1992. p.254-337 VERGER, Pierre A contribuição especial das mulheres ao candomblé do Brasil. In: Artigos. Tomo I São Paulo, Corrupio, 1992 WADDEY, Samba de Viola e Viola de Samba no Recôncavo Baiano. Parte 1: Viola de Samba in Ensaios/Pesquisas nº 6 (1985); UFBa/CEAO. ZAMITH, Rosa Samba de Roda no Recôncavo Baiano (encarte de cd) Coordenação de Folclore e Cultura Popular - Funarte : Rio de Janeiro, 1994
Apresentações Áudio-Visuais
632