RNO VIRT E D
Caderno Virtual de Turismo ISSN: 1677-6976
Vol. 2, N° 2 (2002)
SMO RI
L DE TU UA
CA
A Festa do Corpo Heloisa Ribeiro & Lucelena Delamaro
Resumo
Os mais velhos dizem que "o Carnaval não é mais como antigamente". A indústria cultural se apropriou de uma representação espontânea e livre, transformando-a em produto de consumo dos meios de comunicação, do turismo e da publicidade. O Carnaval é agora um espetáculo de consumo, muito mais que uma expressão da cultura do povo. Dessa forma, difunde a imagem de sensualidade, de festa do corpo, que contribui para a manutenção da idéia do "paraíso perdido" a ser redescoberto nos trópicos, nos corpos morenos e sensuais de nossas mulheres. A síntese dessa imagem estaria representada na figura da "madrinha da bateria" das escolas de samba - um sonho que povoa a imaginação dos homens e das mulheres.
www.ivt -rj.net LTDS
1
Heloisa Ribeiro & Lucelena Delamaro
A Festa do Corpo
Laboratório de Tecnologia e Desenvolvimento Social
ISSN: 1677-6976
Vol. 2, N° 2 (2002)
Introdução
mais ou menos o mesmo que fazem, hoje as
Antigamente, as mocinhas da classe
madrinhas da bateria: excitar o público com
média sonhavam se tornar misses. Hoje, a
seus requebros e trejeitos insinuantes. Mas
grande maioria só pensa em fazer um curso
eram sempre mulheres da comunidade, com
de modelo, produzir um book e sair por aí,
um verdadeiro "samba no pé", como se dizia
enfrentando longas filas nos testes ou fazendo
então.
caras e bocas e cabelos jogados prá lá e
Na década de 60, talvez pela primeira
prá cá, para os "descobridores de talento".
vez, uma mulher de fora da comunidade foi
Com um pouco de sorte, muita anorexia e
especialmente convidada para desfilar
um silicone básico aqui e acolá, podem
como passista de destaque numa escola de
chegar
campanha
samba. Marisa Marcelino de Almeida, a
publicitária. Se a exposição for boa e a
"Nêga Pelé", encantou o todo-poderoso
repercussão, grande, podem almejar uma
Natal da Portela a ponto de levá-lo a fazer
ponta numa novela, um convite para
esse convite. E, a partir de então, a "Nêga
assistente de palco de algum jovem
Pelé" viajou pelo mundo, no embalo do
apresentador famoso ou para um "ensaio
samba, desbravando trilhas hoje percorridas
fotográfico artístico" numa revista masculina.
por outras rainhas. Ainda nos anos sessenta,
Nesse movimento de ascensão, um dia,
o requebro infernal dos quadris de Regina
quem sabe, alcançam a glória das glórias -
Helena Esberard, a "Gigi da Mangueira", fez
ser madrinha da bateria de uma escola de
com que uma mulher branca e de olhos
samba.
verdes, da classe média de Ipanema,
"estrelar"
uma
CA
Mas o que é ser madrinha da bateria de uma escola de samba, além de usar o "fio
* Historiador, Mestre em Educação, Professor e pesquisador da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade FUMEC/MG. É também membro do LABEPEH (Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino de História da FAE/ UFMG). Atua na coordenação de Comunicação e Informação do Projeto Veredas - Curso Normal Superior a Distância. É autor de livro e artigos acadêmicos sobre as implicações das tecnologias digitais na sociedade atual. E-mail: eucidio@gmail.com ** Turismóloga, faz especialização em Docência no ensino superior no PREPES (PUC Minas) e Turismo e Desenvolvimento Sustentável no Instituto de Geociências da UFMG), foi bolsista de Iniciação Científica (IC) do Centro Universitário UNI-BH e da FEAD (Faculdade de Estudos Administrativos de Minas Gerais) desenvolvendo pesquisas sobre Juscelino Kubitschek e também sobre mercado de trabalho de turismo em BH. Publicou artigo no XXV CBTUR 2005. E-mail: durcelinapi@yahoo.com.br
conquistasse também o seu lugar no seleto grupo das passistas de destaque.
da morte" , ou um pesado esplendor bordado
Parece que se inaugurava uma nova
em pedrarias e recoberto de caríssimas
moda: convidar mulheres bonitas, que
plumas - em geral bancado pela própria
soubessem sambar, para participar do desfile
moça
altíssimas
como passistas de destaque, mesmo que não
plataformas de salto fino, para ter quinze
-
ou
sambar
sobre
fizessem parte da comunidade da escola.
minutos de destaque na imprensa? O que
Essas passistas, em geral, desfilavam no
há por trás de tudo isso, a ponto de fazer
espaço entre o casal de mestre-sala e porta-
com que algumas mulheres se desesperem
bandeira e a primeira fila da bateria. Com o
até o choro ao serem dispensadas do posto
passar do tempo, e algumas presenças
ou não conseguirem ocupá-lo?
femininas marcantes pelo seu desempenho,
Se, atualmente, belas mulheres são
a figura dessas passistas começou a se
quase tudo para uma escola de samba,
destacar cada vez mais. Até que, em
nem sempre foi assim. Não é possível precisar
meados da década de 80, a elevação de
o momento em que surgiu a figura feminina
uma dessas mulheres a uma categoria de
a frente da bateria das escolas de samba.
maior destaque ainda em relação às outras,
Desde a década de 50, algumas passistas se
foi estabelecida. A aproximação da bateria
destacavam no conjunto das escolas por
passava a ser anunciada pela presença e
conjugarem dois fatores: sensualidade e
pela performance da "madrinha" ou da
"samba no pé". Essas passistas ganhavam
"rainha" da bateria.
algum destaque, acompanhadas por um
O Carnaval de 1985 trouxe o título de
ritmista, que se apresentava fazendo
madrinha da bateria para a mulher que
malabarismos com um pandeiro. Elas faziam
desfilava à frente dos ritmistas. A modelo 2
Heloisa Ribeiro & Lucelena Delamaro
a
A Festa do Corpo
RNO VIRT E D
Caderno Virtual de Turismo
SMO RI
L DE TU UA
ISSN: 1677-6976
Vol. 2, N° 2 (2002)
Monique Evans, na escola de samba
fotógrafos e cinegrafistas quando mulheres
Mocidade Independente de Padre Miguel,
famosas passaram a brilhar na função.
foi a primeira madrinha da bateria oficial,
Tudo começou nos anos 80, quando
especialmente convidada para ocupar
muitas transformações ocorriam na vida
esse posto. A passista Soninha Capeta,
social brasileira. Foram mudanças políticas,
desfilando pela Beija Flor de Nilópolis no
socio-econômicas, nos costumes, na moda e
Carnaval de 1988, foi a primeira rainha da
no estilo de vida. As representações coletivas
bateria com essa denominação.
se modificaram, conforme os meios de
Cabe aqui desvendar um mistério do
comunicação se apropriavam de suas
Carnaval carioca: qual a diferença entre a
expressões e as disseminavam pelos mais
"madrinha da bateria" e a "rainha da
diversos setores da sociedade. Houve um
bateria" ? Quem explica essa diferença é o
certo frisson na atmosfera cultural, uma
carnavalesco Alexandre Louzada, quando
sensação de liberdade capturada por essas
diz que a "rainha da bateria" é uma mulher
manifestações coletivas e repassada pela
da comunidade, escolhida pelos ritmistas,
mídia. Não foi à toa que em 1979, a Escola
enquanto a "madrinha da bateria" pode
de Samba Beija Flor de Nilópolis ousou trazer
ou não ser da comunidade mas ocupa esse
à avenida, pela primeira vez, durante o seu
posto a convite da direção da escola.
desfile de Carnaval, mulheres nuas (ainda
Quase todas as escolas possuem "madrinha"
que envoltas em tecidos transparentes). No
e "rainha" da bateria, mas como as
ano seguinte, e nos demais a partir daí, um
madrinhas costumam ser figuras de maior
número cada vez maior de belas mulheres
destaque na mídia, essas concentram as
passou a desfilar nua, ou recobertas de
atenções da imprensa e do público.
purpurina e brilhos, em todas as escolas de
as mulheres à frente da bateria em duas categorias:
samba, tornando-se uma "marca" do Carnaval carioca. Os mais velhos diziam: "o Carnaval não
- sambistas de tradição, integrantes da
é mais como antigamente". E não era mesmo.
escola de samba que representam e
O Carnaval voltava-se, cada vez mais, para
conhecidas no mundo do samba;
os veículos de comunicação - em especial,
- mulheres famosas ou em evidência à época do desfile por razões que nada têm a ver com o carnaval - geralmente atrizes e modelos escolhidas por sua beleza.
a televisão - e para os turistas. Tinha se tornado um espetáculo midiático de consumo, que parava a vida do país, pautava os noticiários e envolvia um intenso processo
Apesar das restrições dos sambistas ortodoxos, a idéia de trazer mulheres de fora da comunidade para os desfiles vingou, e o público aprovou a novidade de ver de perto as suas musas - a beleza de Luiza Brunet, de Luma de Oliveira (em 1987, com seios ao vento e samba no pé), de Luciana Sargentelli (e seu desvario em 1992, sambando até sangrarem os seus pés). O
de
profissionalização
das
atividades, diretas e indiretas, dos desfiles cariocas. O Carnaval perdia as suas características originais de festa espontânea e livre, cedendo lugar a um tipo de manifestação organizada segundo padrões da indústria cultural e transformada em produto
de
consumo
dos
meios
de
comunicação de massa, das agências de turismo e da publicidade.
posto virou uma atração a mais devido ao interesse da mídia, traduzido no assédio dos
A tendência à profissionalização das atividades ligadas ao Carnaval e às escolas 3
Heloisa Ribeiro & Lucelena Delamaro
Passa a ser possível, então, classificar
A Festa do Corpo
RNO VIRT E D
Caderno Virtual de Turismo
SMO RI
L DE TU UA
CA
ISSN: 1677-6976
Vol. 2, N° 2 (2002)
de samba foi um movimento que começou
elementos, isso se dava cada vez mais de
nos anos 70 e se intensificou na década
forma simbólica, mais visual do que corpórea,
seguinte. Essa organização sistemática do
muito mais como proposta do que como
Carnaval, e sua aproximação com a
realização.
atraiu
médios
da
As camadas subalternas da sociedade
ascendente
ou
podiam "ver de perto" os seus ídolos, ainda
aspirantes a tal - socialites, atrizes, modelos,
que esse perto não estivesse ao alcance de
manequins - que buscavam exposição
suas mãos. Já as camadas dominantes
pública e divulgação de suas atividades,
reafirmavam a ideologia da integração
na maioria das vezes privilegiando o corpo
social e da miscigenação racial, misturando-
como principal instrumento de seu trabalho.
se mas onde sabiam que não estariam
Essa
a
expostos ao pleno acesso. Ofereciam, por
inauguração da Passarela do Samba, ao
umas poucas horas, a sua imagem, seus sorrisos
mesmo tempo que contribuiu para a
e acenosnão apenas pela manutenção da
aproximação da mídia, também teve, como
pseudo-integração sócio-racial mas também
conseqüência, restringir o acesso do povo.
porque essa exposição reverteria em
Delimitados os espaços para o povo nessa
marketing pessoal e profissional, satisfazendo
festa, tanto como participante quanto como
egos e saldos bancários. Nessa perspectiva,
observador, a classe média sentiu-se mais
as mulheres começaram a oferecer a
"segura" para ocupar espaços dos quais,
imagem
originariamente, não participava. Para o
previamente retocados para o consumo das
povo, sistematicamente, a relação com a
massas, e trabalhados por bisturis e muito
festa passou a ser mediada pela imagem
suor. Imagem reconstruída pela indústria
vista
locais
cultural em luzes e cores estrategicamente
demarcados dentro do Sambódromo ou de
capturadas por suas lentes, transmitida pela
mais longe ainda - pela televisão.
televisão e pelos fotógrafos, remodelando o
população
setores
urbana,
profissionalização,
de
longe,
ao
associada
vivo,
nos
Excluídos do contato direto com a
de
seus
corpos
perfeitos,
sentido original da festa.
organização da festa e tendo limitado o seu
O Carnaval começava a se constituir
espaço de participação efetiva durante os
num espetáculo de consumo de belos corpos
desfiles, o povo passou a ter uma relação
femininos
idealizada com o Carnaval. Entretanto,
provocando-lhes ansiedade e ereção, que
longe de se sentir excluída, a população
não seriam consumados com eles. Imagens
reelaborou esse movimento, interpretando-
que destacam padrões de beleza e insinuam
o como uma forma de reconhecimento, pela
prazeres que nenhuma outra mulher poderia
elite, de seus valores culturais. Utopicamente,
oferecer - porque aquela imagem seria única
acreditava se concretizar uma anulação
e seu prazer prometido, irreal. Enfim, uma
das hierarquias e se efetivar uma real
construção abstrata que, no imaginário
convivência entre ricos e pobres, desfilando
social, preenchia o desejo dos homens e
lado a lado. Enquanto isso, a elite descobria
despertava frustração nas mulheres. Imagens
o Carnaval do samba, da avenida dos
para excitar o homem e mantê-lo sob
desfiles, da festa do corpo, da satisfação
constante ansiedade na busca do gozo
narcísica. O Carnaval passava a ser rico de
perfeito; imagem servindo de modelo para
sentidos e de possibilidades de prazer. Ainda
as mulheres, mantendo-as mais ocupadas
que a festa continuasse dramatizando
na
ritualisticamente a integração dos seus
tratamentos estéticos, mais passivas num
excitando
ginástica,
mais
os
homens,
endividada
em
4
Heloisa Ribeiro & Lucelena Delamaro
televisão,
A Festa do Corpo
RNO VIRT E D
Caderno Virtual de Turismo
SMO RI
L DE TU UA
CA
ISSN: 1677-6976
Vol. 2, N° 2 (2002)
estado de quase constante de inanição,
carioca, tornando-se uma referência, uma
dependente de moderadores de apetite e
marca que exalta a liberdade e a
anti-depressivos. Insatisfeitas com seus
sensualidade, não apenas da festa como
próprios corpos, tentando reconstruí-los;
da própria gente que festeja. Esse paraíso
insatisfeitas como mulheres, por não
do prazer atrai as atenções, desperta o
conseguirem a imagem ideal que daria o
interesse de percorrer os caminhos limítrofes e
gozo perfeito a seus homens. Aos homens
os interstícios por onde se ocultam os prazeres
ansiosos juntam-se mulheres insatisfeitas,
proibidos no restante do ano, nas outras
movimentando a economia e a sociedade
terras, nos outros corpos que não se permitem
no restante do ano.
à entrega plena dessas sensações. Estranhos
O símbolo maior dessa imagem perfeita,
e estrangeiros se dirigem à festa para descobrir
de uma mulher idealizada, da possibilidade
nela, no seu povo e nas suas mulheres, a
de gozo pleno, é sintetizado na imagem da
liberdade de serem o que quiserem, com ou
mulher que vem à frente de uma multidão
sem máscaras e fantasias, trocando
de homens em estado de êxtase - a
aleatoriamente de corpos. Homens que
madrinha da bateria. Homens envolvidos
mergulham numa nova e desconhecida
pelo som forte e cadenciado, com o corpo
coletividade na tentativa de renovar-se, de
coberto de suor, em plena concentração de
dar vazão aos seus instintos e descobrir os
seus esforços, com os músculos tensos, como
prazeres prometidos e, até então, ignorados
se prestes a explodir em gozo. Plenos de prazer
ou negados.
e de paixão, pela música e pela mulher que
A imagem veiculada pela mídia
requebra sensualmente à frente, intocável.
continua, de certa forma, a vender o Brasil
Uma imagem que representa para eles, e
da mesma forma que no passado: uma terra
para todos que a vêem, a síntese do objeto
exótica, selvagem, uma natureza que deve
de todos os desejos. Que todos querem olhar,
ser domada pela cultura. São incontáveis
desfrutar da promessa do prazer perfeito,
as reportagens sobre a acolhida do povo, o
concretizado na imaginação. Uma imagem
calor da convivência, a beleza "natural" de
capturada nas telas e nas lentes, para
suas
explorar as emoções do público, para
receptivas. Mulheres que no passado já
chamar a atenção, e convidar a todos à
haviam deslumbrado os colonizadores
simulação do sexo, que reproduzindo-se
portugueses com a sua intensidade sensual.
exaustivamente, acaba banalizado. A
Da mesma forma como foram por eles
madrinha da bateria é, durante o momento
seduzidas, pois como já dizia Gilberto Freyre,
fugaz do seu reinado, uma espécie de
as mulheres indígenas revelaram preferência
concentradora das energias libidinais. Uma
para contatos sexuais com portugueses que,
imagem para ser vista e reverenciada, para
em confronto com machos indígenas, se
povoar o imaginário de homens e mulheres,
revelaram mais ardorosamente potentes,
inacessível para a maioria dos mortais como
visto serem parceiros esporádicos. Talvez
um dia já foi a figura da miss. Um sonho
tenha sido a partir desse momento que a
povoando a cabeça de uma multidão de
imagem da mulher brasileira começou a ser
meninas. Um sonho sensual representando
associada a de "fêmea no cio" que, ainda
uma festa não mais popular, mas de
hoje, é vendida lá fora.
selvagens,
sensuais
e
Essa versão do Brasil sensual, da terra
Uma imagem que se multiplica e se liga,
dos prazeres do corpo, principalmente
definitivamente, a do próprio Carnaval
durante o Carnaval, é perigosa porque 5
Heloisa Ribeiro & Lucelena Delamaro
consumo.
mulheres
A Festa do Corpo
RNO VIRT E D
Caderno Virtual de Turismo
SMO RI
L DE TU UA
CA
ISSN: 1677-6976
Vol. 2, N° 2 (2002)
reforça a visão ignominiosa de que, nesta
sexual, deixou de ser uma festa do povo,
terra, o papel da mulher é satisfazer o desejo
passando a uma festa para os sentidos,
dos homens com seu corpo. E que o dócil e
noticiada pela imprensa, multiplicada em
feliz povo brasileiro é receptivo a qualquer
imagens
estrangeiro que os honre com sua visita,
contribuindo para divulgar, muito mais do
abrindo-lhes espaço para a expressão dos
que os aspectos culturais, o caráter erótico. E
seus desejos, para o que possa chamar de
cada vez mais aportam, no Rio de Janeiro,
pecado,
a
pessoas dispostas a mergulhar nessa fantasia
exploração sexual ou o abuso. Como se aqui
do Trópico de corpos morenos e suados,
se concretizasse a "visão do paraíso", a
prometendo todo o tipo de prazeres. Uma
legendária construção do imaginário
fantasia que poderia ser chamada de
europeu do "paraíso perdido" renascentista,
mercantilização do corpo, principalmente do
exaustivamente elaborada, tanto pela
corpo feminino, onde a imprensa teria o papel
literatura como por toda sorte de registros
de "praça do mercado" onde se desenvolve
iconográficos,
esse novo comércio do prazer.
a
permissividade,
desde
os
tempos
do
Descobrimento em referência às terras brasileiras e ao seu povo.
percorrem
o
mundo,
Não podemos dizer, entretanto, que esse comércio seja exclusividade tropical.
A primeira impressão, mesmo que já
Mesmo nos países considerados mais
façam 500 anos, foi a que ficou e foi
desenvolvidos, apesar da civilidade, da
redescoberta pela imprensa, pelo turismo,
história e da sofisticação, também se abusa
pela propaganda. O exotismo brasileiro,
do corpo, em especial do das mulheres. O
como fator de consumo, vem atraindo
equívoco que ocorre, e que diferencia o
milhares de visitantes em busca de um belo
comportamento hedonista de alguns
exemplar de sensualidade pura. Num dos
visitantes durante o período do Carnaval, é
maiores eventos nacionais, em que a
que muitos sucumbem à fantasia de que aqui
sensualidade encontra razão para ficar em
é um país desreprimido, liberado, onde as
voga e o erotismo envolve hábitos e
mulheres vivem seminuas e receptivas à
cotidianos, a impressão de estrangeiros que
abordagem sexual a qualquer momento. A
vem ao Brasil no Carnaval é a mesma: a
ênfase no corpo que o Carnaval divulga
sensualidade, o corpo e o prazer são algo
acaba por reduzir a mulher a mero objeto e
normais para os brasileiros. E isso mexe com a
a trivialização do ato sexual equipara-o a
libido dos turistas e povoa sua imaginação
beber uma cerveja para matar a sede, em
com fantasias de belas e sensuais mulheres,
qualquer esquina, consagrando o caráter
que expõe seus traseiros com naturalidade,
descartável das relações. O corpo das
como as curvas do Pão de Açúcar.
mulheres
O caráter alegre, festivo e sensual é
é,
de
novo,
exaustiva
e
doentiamente explorado, onde se confunde
às
erotismo com promiscuidade e desejo com
contradições e insatisfações, renovando a
perversão. E, rapidamente, o objeto de
ordem existente, permitindo escapar às
consumo apetecível se transforma em lixo
dominações do cotidiano, ainda que
descartável, as musas de um Carnaval
temporariamente. A ginga sensual das
raramente se repetindo no outro. Por isso, elas
mulheres e o ar excitado dos homens
precisam desesperadamente aproveitar o
contribuem para reforçar a imagem do
seu tempo de exposição na frente das luzes
Carnaval como uma festa do corpo.
e das lentes.
como
uma
válvula
de
escape
Transformado em espetáculo de consumo 6
Heloisa Ribeiro & Lucelena Delamaro
para
que
A Festa do Corpo
RNO VIRT E D
Caderno Virtual de Turismo
SMO RI
L DE TU UA
CA
ISSN: 1677-6976
Vol. 2, N° 2 (2002)
Não importa que a mocinha de hoje
sonhos. Sonhos de meninas comuns, que não
não tenha lido "O Pequeno Príncipe" de
conseguiram compor um "book", que não são
Antoine de Saint-Exupéry, que saia nua nas
destaque na mídia e andam em busca da
páginas de um revista masculina ou que
tão falada chance de serem "descobertas".
requebre sensualmente a frente de um legião
Meninas que malham o corpo em busca das
de homens extasiados, porque isso não vai
formas ideais, que se submetem aos caprichos
comprometer a sua reputação e desvalorizá-
dos modismos e se expõem nas praias e nas
la no mercado matrimonial. Somente o que
academias, nas muitas passarelas da vida,
importa é o desejo, numa "corvéia do prazer",
nas zonas nobres ou periféricas da cidade,
onde todos e cada um devem se dedicar
em busca desses poucos minutos que
incessantemente a essa busca. O desejo de
poderiam revolucionar as suas vidas.
uns poucos minutos de fama e o prazer de
Muitas delas se expondo a tudo que
alimentar os múltiplos desejos de uma
possa servir ao desejo de quem pode pagar,
multidão de corpos, de uma multiplicidade
de quem pode comprar. Do fellatio
de lentes. A sua chance está naqueles
apressado numa esquina ou numa praia
minutos, e seu futuro pode vir a depender
qualquer, sem compromisso, sem pecado, à
dos desejos que consiga despertar. Seu
prostituição,
prazer está restrito àqueles minutos e a
consumindo corpos com violência e
possibilidade de multiplicá-los no futuro.
voracidade num absoluto desrespeito pela
à
exploração
sexual,
Não importa o "fio da morte", o peso do
condição humana e pela dignidade. O
esplendor, os pés sangrando na sandália. A
centro da nossa cidade ou as sombras da
dor pode ser sublimada no prazer que causa
noite na sofisticada orla da zona sul servindo
nos outros; na capacidade de despertar o
de abrigo e esconderijo para o que restou
desejo masculino e a inveja das outras
dessas "meninas", depois que seus corpos
mulheres. Da capacidade de se fazer
foram usados e seus sonhos se mostraram tão
desejada, cobiçada, objeto de um gozo
estranhos à realidade quanto o é sua
desconhecido e que nem mesmo vai chegar
fantasia carnavalesca para vesti-la na rotina
perto dela, depende sua carreira e a
do dia-a-dia. O momento de prazer
continuidade do espetáculo. Seu corpo
transitório não servindo para modificar-lhe o
deve ser apenas uma imagem perfeita,
cotidiano que, para além do Carnaval, se
abstrata, onde a humanidade é menos
perpetuará depois da Quarta-feira de
importante do que aqueles minutos que
Cinzas, quando as luzes se apagam e as
varrerão o mundo, que a levarão para longe
lentes se voltam para outras passarelas,
e trarão milhares de olhos para mais perto. E
outros sonhos.
no próximo ano, no próximo Carnaval, esses olhos de agora poderão se transformar em mais corpos em busca do prazer nessa
se perpetua na promessa de que não existe pecado do lado de baixo do Equador. Mas entre o sonho sensual oferecido por esses corpos perfeitos, cujas imagens correm o mundo, e os olhos gulosos que impelem os corpos a vir em busca dessas promessas há um grande hiato preenchido por outros 7
Heloisa Ribeiro & Lucelena Delamaro
Cidade Maravilhosa - visão do paraíso que
A Festa do Corpo
RNO VIRT E D
Caderno Virtual de Turismo
SMO RI
L DE TU UA
CA