A Festa do Corpo

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Caderno Virtual de Turismo ISSN: 1677-6976

Vol. 2, N° 2 (2002)

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A Festa do Corpo Heloisa Ribeiro & Lucelena Delamaro

Resumo

Os mais velhos dizem que "o Carnaval não é mais como antigamente". A indústria cultural se apropriou de uma representação espontânea e livre, transformando-a em produto de consumo dos meios de comunicação, do turismo e da publicidade. O Carnaval é agora um espetáculo de consumo, muito mais que uma expressão da cultura do povo. Dessa forma, difunde a imagem de sensualidade, de festa do corpo, que contribui para a manutenção da idéia do "paraíso perdido" a ser redescoberto nos trópicos, nos corpos morenos e sensuais de nossas mulheres. A síntese dessa imagem estaria representada na figura da "madrinha da bateria" das escolas de samba - um sonho que povoa a imaginação dos homens e das mulheres.

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Heloisa Ribeiro & Lucelena Delamaro

A Festa do Corpo

Laboratório de Tecnologia e Desenvolvimento Social


ISSN: 1677-6976

Vol. 2, N° 2 (2002)

Introdução

mais ou menos o mesmo que fazem, hoje as

Antigamente, as mocinhas da classe

madrinhas da bateria: excitar o público com

média sonhavam se tornar misses. Hoje, a

seus requebros e trejeitos insinuantes. Mas

grande maioria só pensa em fazer um curso

eram sempre mulheres da comunidade, com

de modelo, produzir um book e sair por aí,

um verdadeiro "samba no pé", como se dizia

enfrentando longas filas nos testes ou fazendo

então.

caras e bocas e cabelos jogados prá lá e

Na década de 60, talvez pela primeira

prá cá, para os "descobridores de talento".

vez, uma mulher de fora da comunidade foi

Com um pouco de sorte, muita anorexia e

especialmente convidada para desfilar

um silicone básico aqui e acolá, podem

como passista de destaque numa escola de

chegar

campanha

samba. Marisa Marcelino de Almeida, a

publicitária. Se a exposição for boa e a

"Nêga Pelé", encantou o todo-poderoso

repercussão, grande, podem almejar uma

Natal da Portela a ponto de levá-lo a fazer

ponta numa novela, um convite para

esse convite. E, a partir de então, a "Nêga

assistente de palco de algum jovem

Pelé" viajou pelo mundo, no embalo do

apresentador famoso ou para um "ensaio

samba, desbravando trilhas hoje percorridas

fotográfico artístico" numa revista masculina.

por outras rainhas. Ainda nos anos sessenta,

Nesse movimento de ascensão, um dia,

o requebro infernal dos quadris de Regina

quem sabe, alcançam a glória das glórias -

Helena Esberard, a "Gigi da Mangueira", fez

ser madrinha da bateria de uma escola de

com que uma mulher branca e de olhos

samba.

verdes, da classe média de Ipanema,

"estrelar"

uma

CA

Mas o que é ser madrinha da bateria de uma escola de samba, além de usar o "fio

* Historiador, Mestre em Educação, Professor e pesquisador da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade FUMEC/MG. É também membro do LABEPEH (Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino de História da FAE/ UFMG). Atua na coordenação de Comunicação e Informação do Projeto Veredas - Curso Normal Superior a Distância. É autor de livro e artigos acadêmicos sobre as implicações das tecnologias digitais na sociedade atual. E-mail: eucidio@gmail.com ** Turismóloga, faz especialização em Docência no ensino superior no PREPES (PUC Minas) e Turismo e Desenvolvimento Sustentável no Instituto de Geociências da UFMG), foi bolsista de Iniciação Científica (IC) do Centro Universitário UNI-BH e da FEAD (Faculdade de Estudos Administrativos de Minas Gerais) desenvolvendo pesquisas sobre Juscelino Kubitschek e também sobre mercado de trabalho de turismo em BH. Publicou artigo no XXV CBTUR 2005. E-mail: durcelinapi@yahoo.com.br

conquistasse também o seu lugar no seleto grupo das passistas de destaque.

da morte" , ou um pesado esplendor bordado

Parece que se inaugurava uma nova

em pedrarias e recoberto de caríssimas

moda: convidar mulheres bonitas, que

plumas - em geral bancado pela própria

soubessem sambar, para participar do desfile

moça

altíssimas

como passistas de destaque, mesmo que não

plataformas de salto fino, para ter quinze

-

ou

sambar

sobre

fizessem parte da comunidade da escola.

minutos de destaque na imprensa? O que

Essas passistas, em geral, desfilavam no

há por trás de tudo isso, a ponto de fazer

espaço entre o casal de mestre-sala e porta-

com que algumas mulheres se desesperem

bandeira e a primeira fila da bateria. Com o

até o choro ao serem dispensadas do posto

passar do tempo, e algumas presenças

ou não conseguirem ocupá-lo?

femininas marcantes pelo seu desempenho,

Se, atualmente, belas mulheres são

a figura dessas passistas começou a se

quase tudo para uma escola de samba,

destacar cada vez mais. Até que, em

nem sempre foi assim. Não é possível precisar

meados da década de 80, a elevação de

o momento em que surgiu a figura feminina

uma dessas mulheres a uma categoria de

a frente da bateria das escolas de samba.

maior destaque ainda em relação às outras,

Desde a década de 50, algumas passistas se

foi estabelecida. A aproximação da bateria

destacavam no conjunto das escolas por

passava a ser anunciada pela presença e

conjugarem dois fatores: sensualidade e

pela performance da "madrinha" ou da

"samba no pé". Essas passistas ganhavam

"rainha" da bateria.

algum destaque, acompanhadas por um

O Carnaval de 1985 trouxe o título de

ritmista, que se apresentava fazendo

madrinha da bateria para a mulher que

malabarismos com um pandeiro. Elas faziam

desfilava à frente dos ritmistas. A modelo 2

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Monique Evans, na escola de samba

fotógrafos e cinegrafistas quando mulheres

Mocidade Independente de Padre Miguel,

famosas passaram a brilhar na função.

foi a primeira madrinha da bateria oficial,

Tudo começou nos anos 80, quando

especialmente convidada para ocupar

muitas transformações ocorriam na vida

esse posto. A passista Soninha Capeta,

social brasileira. Foram mudanças políticas,

desfilando pela Beija Flor de Nilópolis no

socio-econômicas, nos costumes, na moda e

Carnaval de 1988, foi a primeira rainha da

no estilo de vida. As representações coletivas

bateria com essa denominação.

se modificaram, conforme os meios de

Cabe aqui desvendar um mistério do

comunicação se apropriavam de suas

Carnaval carioca: qual a diferença entre a

expressões e as disseminavam pelos mais

"madrinha da bateria" e a "rainha da

diversos setores da sociedade. Houve um

bateria" ? Quem explica essa diferença é o

certo frisson na atmosfera cultural, uma

carnavalesco Alexandre Louzada, quando

sensação de liberdade capturada por essas

diz que a "rainha da bateria" é uma mulher

manifestações coletivas e repassada pela

da comunidade, escolhida pelos ritmistas,

mídia. Não foi à toa que em 1979, a Escola

enquanto a "madrinha da bateria" pode

de Samba Beija Flor de Nilópolis ousou trazer

ou não ser da comunidade mas ocupa esse

à avenida, pela primeira vez, durante o seu

posto a convite da direção da escola.

desfile de Carnaval, mulheres nuas (ainda

Quase todas as escolas possuem "madrinha"

que envoltas em tecidos transparentes). No

e "rainha" da bateria, mas como as

ano seguinte, e nos demais a partir daí, um

madrinhas costumam ser figuras de maior

número cada vez maior de belas mulheres

destaque na mídia, essas concentram as

passou a desfilar nua, ou recobertas de

atenções da imprensa e do público.

purpurina e brilhos, em todas as escolas de

as mulheres à frente da bateria em duas categorias:

samba, tornando-se uma "marca" do Carnaval carioca. Os mais velhos diziam: "o Carnaval não

- sambistas de tradição, integrantes da

é mais como antigamente". E não era mesmo.

escola de samba que representam e

O Carnaval voltava-se, cada vez mais, para

conhecidas no mundo do samba;

os veículos de comunicação - em especial,

- mulheres famosas ou em evidência à época do desfile por razões que nada têm a ver com o carnaval - geralmente atrizes e modelos escolhidas por sua beleza.

a televisão - e para os turistas. Tinha se tornado um espetáculo midiático de consumo, que parava a vida do país, pautava os noticiários e envolvia um intenso processo

Apesar das restrições dos sambistas ortodoxos, a idéia de trazer mulheres de fora da comunidade para os desfiles vingou, e o público aprovou a novidade de ver de perto as suas musas - a beleza de Luiza Brunet, de Luma de Oliveira (em 1987, com seios ao vento e samba no pé), de Luciana Sargentelli (e seu desvario em 1992, sambando até sangrarem os seus pés). O

de

profissionalização

das

atividades, diretas e indiretas, dos desfiles cariocas. O Carnaval perdia as suas características originais de festa espontânea e livre, cedendo lugar a um tipo de manifestação organizada segundo padrões da indústria cultural e transformada em produto

de

consumo

dos

meios

de

comunicação de massa, das agências de turismo e da publicidade.

posto virou uma atração a mais devido ao interesse da mídia, traduzido no assédio dos

A tendência à profissionalização das atividades ligadas ao Carnaval e às escolas 3

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Passa a ser possível, então, classificar

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de samba foi um movimento que começou

elementos, isso se dava cada vez mais de

nos anos 70 e se intensificou na década

forma simbólica, mais visual do que corpórea,

seguinte. Essa organização sistemática do

muito mais como proposta do que como

Carnaval, e sua aproximação com a

realização.

atraiu

médios

da

As camadas subalternas da sociedade

ascendente

ou

podiam "ver de perto" os seus ídolos, ainda

aspirantes a tal - socialites, atrizes, modelos,

que esse perto não estivesse ao alcance de

manequins - que buscavam exposição

suas mãos. Já as camadas dominantes

pública e divulgação de suas atividades,

reafirmavam a ideologia da integração

na maioria das vezes privilegiando o corpo

social e da miscigenação racial, misturando-

como principal instrumento de seu trabalho.

se mas onde sabiam que não estariam

Essa

a

expostos ao pleno acesso. Ofereciam, por

inauguração da Passarela do Samba, ao

umas poucas horas, a sua imagem, seus sorrisos

mesmo tempo que contribuiu para a

e acenosnão apenas pela manutenção da

aproximação da mídia, também teve, como

pseudo-integração sócio-racial mas também

conseqüência, restringir o acesso do povo.

porque essa exposição reverteria em

Delimitados os espaços para o povo nessa

marketing pessoal e profissional, satisfazendo

festa, tanto como participante quanto como

egos e saldos bancários. Nessa perspectiva,

observador, a classe média sentiu-se mais

as mulheres começaram a oferecer a

"segura" para ocupar espaços dos quais,

imagem

originariamente, não participava. Para o

previamente retocados para o consumo das

povo, sistematicamente, a relação com a

massas, e trabalhados por bisturis e muito

festa passou a ser mediada pela imagem

suor. Imagem reconstruída pela indústria

vista

locais

cultural em luzes e cores estrategicamente

demarcados dentro do Sambódromo ou de

capturadas por suas lentes, transmitida pela

mais longe ainda - pela televisão.

televisão e pelos fotógrafos, remodelando o

população

setores

urbana,

profissionalização,

de

longe,

ao

associada

vivo,

nos

Excluídos do contato direto com a

de

seus

corpos

perfeitos,

sentido original da festa.

organização da festa e tendo limitado o seu

O Carnaval começava a se constituir

espaço de participação efetiva durante os

num espetáculo de consumo de belos corpos

desfiles, o povo passou a ter uma relação

femininos

idealizada com o Carnaval. Entretanto,

provocando-lhes ansiedade e ereção, que

longe de se sentir excluída, a população

não seriam consumados com eles. Imagens

reelaborou esse movimento, interpretando-

que destacam padrões de beleza e insinuam

o como uma forma de reconhecimento, pela

prazeres que nenhuma outra mulher poderia

elite, de seus valores culturais. Utopicamente,

oferecer - porque aquela imagem seria única

acreditava se concretizar uma anulação

e seu prazer prometido, irreal. Enfim, uma

das hierarquias e se efetivar uma real

construção abstrata que, no imaginário

convivência entre ricos e pobres, desfilando

social, preenchia o desejo dos homens e

lado a lado. Enquanto isso, a elite descobria

despertava frustração nas mulheres. Imagens

o Carnaval do samba, da avenida dos

para excitar o homem e mantê-lo sob

desfiles, da festa do corpo, da satisfação

constante ansiedade na busca do gozo

narcísica. O Carnaval passava a ser rico de

perfeito; imagem servindo de modelo para

sentidos e de possibilidades de prazer. Ainda

as mulheres, mantendo-as mais ocupadas

que a festa continuasse dramatizando

na

ritualisticamente a integração dos seus

tratamentos estéticos, mais passivas num

excitando

ginástica,

mais

os

homens,

endividada

em

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televisão,

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estado de quase constante de inanição,

carioca, tornando-se uma referência, uma

dependente de moderadores de apetite e

marca que exalta a liberdade e a

anti-depressivos. Insatisfeitas com seus

sensualidade, não apenas da festa como

próprios corpos, tentando reconstruí-los;

da própria gente que festeja. Esse paraíso

insatisfeitas como mulheres, por não

do prazer atrai as atenções, desperta o

conseguirem a imagem ideal que daria o

interesse de percorrer os caminhos limítrofes e

gozo perfeito a seus homens. Aos homens

os interstícios por onde se ocultam os prazeres

ansiosos juntam-se mulheres insatisfeitas,

proibidos no restante do ano, nas outras

movimentando a economia e a sociedade

terras, nos outros corpos que não se permitem

no restante do ano.

à entrega plena dessas sensações. Estranhos

O símbolo maior dessa imagem perfeita,

e estrangeiros se dirigem à festa para descobrir

de uma mulher idealizada, da possibilidade

nela, no seu povo e nas suas mulheres, a

de gozo pleno, é sintetizado na imagem da

liberdade de serem o que quiserem, com ou

mulher que vem à frente de uma multidão

sem máscaras e fantasias, trocando

de homens em estado de êxtase - a

aleatoriamente de corpos. Homens que

madrinha da bateria. Homens envolvidos

mergulham numa nova e desconhecida

pelo som forte e cadenciado, com o corpo

coletividade na tentativa de renovar-se, de

coberto de suor, em plena concentração de

dar vazão aos seus instintos e descobrir os

seus esforços, com os músculos tensos, como

prazeres prometidos e, até então, ignorados

se prestes a explodir em gozo. Plenos de prazer

ou negados.

e de paixão, pela música e pela mulher que

A imagem veiculada pela mídia

requebra sensualmente à frente, intocável.

continua, de certa forma, a vender o Brasil

Uma imagem que representa para eles, e

da mesma forma que no passado: uma terra

para todos que a vêem, a síntese do objeto

exótica, selvagem, uma natureza que deve

de todos os desejos. Que todos querem olhar,

ser domada pela cultura. São incontáveis

desfrutar da promessa do prazer perfeito,

as reportagens sobre a acolhida do povo, o

concretizado na imaginação. Uma imagem

calor da convivência, a beleza "natural" de

capturada nas telas e nas lentes, para

suas

explorar as emoções do público, para

receptivas. Mulheres que no passado já

chamar a atenção, e convidar a todos à

haviam deslumbrado os colonizadores

simulação do sexo, que reproduzindo-se

portugueses com a sua intensidade sensual.

exaustivamente, acaba banalizado. A

Da mesma forma como foram por eles

madrinha da bateria é, durante o momento

seduzidas, pois como já dizia Gilberto Freyre,

fugaz do seu reinado, uma espécie de

as mulheres indígenas revelaram preferência

concentradora das energias libidinais. Uma

para contatos sexuais com portugueses que,

imagem para ser vista e reverenciada, para

em confronto com machos indígenas, se

povoar o imaginário de homens e mulheres,

revelaram mais ardorosamente potentes,

inacessível para a maioria dos mortais como

visto serem parceiros esporádicos. Talvez

um dia já foi a figura da miss. Um sonho

tenha sido a partir desse momento que a

povoando a cabeça de uma multidão de

imagem da mulher brasileira começou a ser

meninas. Um sonho sensual representando

associada a de "fêmea no cio" que, ainda

uma festa não mais popular, mas de

hoje, é vendida lá fora.

selvagens,

sensuais

e

Essa versão do Brasil sensual, da terra

Uma imagem que se multiplica e se liga,

dos prazeres do corpo, principalmente

definitivamente, a do próprio Carnaval

durante o Carnaval, é perigosa porque 5

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consumo.

mulheres

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reforça a visão ignominiosa de que, nesta

sexual, deixou de ser uma festa do povo,

terra, o papel da mulher é satisfazer o desejo

passando a uma festa para os sentidos,

dos homens com seu corpo. E que o dócil e

noticiada pela imprensa, multiplicada em

feliz povo brasileiro é receptivo a qualquer

imagens

estrangeiro que os honre com sua visita,

contribuindo para divulgar, muito mais do

abrindo-lhes espaço para a expressão dos

que os aspectos culturais, o caráter erótico. E

seus desejos, para o que possa chamar de

cada vez mais aportam, no Rio de Janeiro,

pecado,

a

pessoas dispostas a mergulhar nessa fantasia

exploração sexual ou o abuso. Como se aqui

do Trópico de corpos morenos e suados,

se concretizasse a "visão do paraíso", a

prometendo todo o tipo de prazeres. Uma

legendária construção do imaginário

fantasia que poderia ser chamada de

europeu do "paraíso perdido" renascentista,

mercantilização do corpo, principalmente do

exaustivamente elaborada, tanto pela

corpo feminino, onde a imprensa teria o papel

literatura como por toda sorte de registros

de "praça do mercado" onde se desenvolve

iconográficos,

esse novo comércio do prazer.

a

permissividade,

desde

os

tempos

do

Descobrimento em referência às terras brasileiras e ao seu povo.

percorrem

o

mundo,

Não podemos dizer, entretanto, que esse comércio seja exclusividade tropical.

A primeira impressão, mesmo que já

Mesmo nos países considerados mais

façam 500 anos, foi a que ficou e foi

desenvolvidos, apesar da civilidade, da

redescoberta pela imprensa, pelo turismo,

história e da sofisticação, também se abusa

pela propaganda. O exotismo brasileiro,

do corpo, em especial do das mulheres. O

como fator de consumo, vem atraindo

equívoco que ocorre, e que diferencia o

milhares de visitantes em busca de um belo

comportamento hedonista de alguns

exemplar de sensualidade pura. Num dos

visitantes durante o período do Carnaval, é

maiores eventos nacionais, em que a

que muitos sucumbem à fantasia de que aqui

sensualidade encontra razão para ficar em

é um país desreprimido, liberado, onde as

voga e o erotismo envolve hábitos e

mulheres vivem seminuas e receptivas à

cotidianos, a impressão de estrangeiros que

abordagem sexual a qualquer momento. A

vem ao Brasil no Carnaval é a mesma: a

ênfase no corpo que o Carnaval divulga

sensualidade, o corpo e o prazer são algo

acaba por reduzir a mulher a mero objeto e

normais para os brasileiros. E isso mexe com a

a trivialização do ato sexual equipara-o a

libido dos turistas e povoa sua imaginação

beber uma cerveja para matar a sede, em

com fantasias de belas e sensuais mulheres,

qualquer esquina, consagrando o caráter

que expõe seus traseiros com naturalidade,

descartável das relações. O corpo das

como as curvas do Pão de Açúcar.

mulheres

O caráter alegre, festivo e sensual é

é,

de

novo,

exaustiva

e

doentiamente explorado, onde se confunde

às

erotismo com promiscuidade e desejo com

contradições e insatisfações, renovando a

perversão. E, rapidamente, o objeto de

ordem existente, permitindo escapar às

consumo apetecível se transforma em lixo

dominações do cotidiano, ainda que

descartável, as musas de um Carnaval

temporariamente. A ginga sensual das

raramente se repetindo no outro. Por isso, elas

mulheres e o ar excitado dos homens

precisam desesperadamente aproveitar o

contribuem para reforçar a imagem do

seu tempo de exposição na frente das luzes

Carnaval como uma festa do corpo.

e das lentes.

como

uma

válvula

de

escape

Transformado em espetáculo de consumo 6

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para

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Não importa que a mocinha de hoje

sonhos. Sonhos de meninas comuns, que não

não tenha lido "O Pequeno Príncipe" de

conseguiram compor um "book", que não são

Antoine de Saint-Exupéry, que saia nua nas

destaque na mídia e andam em busca da

páginas de um revista masculina ou que

tão falada chance de serem "descobertas".

requebre sensualmente a frente de um legião

Meninas que malham o corpo em busca das

de homens extasiados, porque isso não vai

formas ideais, que se submetem aos caprichos

comprometer a sua reputação e desvalorizá-

dos modismos e se expõem nas praias e nas

la no mercado matrimonial. Somente o que

academias, nas muitas passarelas da vida,

importa é o desejo, numa "corvéia do prazer",

nas zonas nobres ou periféricas da cidade,

onde todos e cada um devem se dedicar

em busca desses poucos minutos que

incessantemente a essa busca. O desejo de

poderiam revolucionar as suas vidas.

uns poucos minutos de fama e o prazer de

Muitas delas se expondo a tudo que

alimentar os múltiplos desejos de uma

possa servir ao desejo de quem pode pagar,

multidão de corpos, de uma multiplicidade

de quem pode comprar. Do fellatio

de lentes. A sua chance está naqueles

apressado numa esquina ou numa praia

minutos, e seu futuro pode vir a depender

qualquer, sem compromisso, sem pecado, à

dos desejos que consiga despertar. Seu

prostituição,

prazer está restrito àqueles minutos e a

consumindo corpos com violência e

possibilidade de multiplicá-los no futuro.

voracidade num absoluto desrespeito pela

à

exploração

sexual,

Não importa o "fio da morte", o peso do

condição humana e pela dignidade. O

esplendor, os pés sangrando na sandália. A

centro da nossa cidade ou as sombras da

dor pode ser sublimada no prazer que causa

noite na sofisticada orla da zona sul servindo

nos outros; na capacidade de despertar o

de abrigo e esconderijo para o que restou

desejo masculino e a inveja das outras

dessas "meninas", depois que seus corpos

mulheres. Da capacidade de se fazer

foram usados e seus sonhos se mostraram tão

desejada, cobiçada, objeto de um gozo

estranhos à realidade quanto o é sua

desconhecido e que nem mesmo vai chegar

fantasia carnavalesca para vesti-la na rotina

perto dela, depende sua carreira e a

do dia-a-dia. O momento de prazer

continuidade do espetáculo. Seu corpo

transitório não servindo para modificar-lhe o

deve ser apenas uma imagem perfeita,

cotidiano que, para além do Carnaval, se

abstrata, onde a humanidade é menos

perpetuará depois da Quarta-feira de

importante do que aqueles minutos que

Cinzas, quando as luzes se apagam e as

varrerão o mundo, que a levarão para longe

lentes se voltam para outras passarelas,

e trarão milhares de olhos para mais perto. E

outros sonhos.

no próximo ano, no próximo Carnaval, esses olhos de agora poderão se transformar em mais corpos em busca do prazer nessa

se perpetua na promessa de que não existe pecado do lado de baixo do Equador. Mas entre o sonho sensual oferecido por esses corpos perfeitos, cujas imagens correm o mundo, e os olhos gulosos que impelem os corpos a vir em busca dessas promessas há um grande hiato preenchido por outros 7

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Cidade Maravilhosa - visão do paraíso que

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