Entre congadeiros e sambistas: etnopedagogias musicais em contextos populares de tradição afro-brasi

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Entre congadeiros e sambistas: etnopedagogias musicais em contextos populares de tradi~o afro-brasileira 1 Maria Elizabeth Lucas Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sui -UFRGS Vou/ora em Efmusicclogia pela University of Texas System

Profassora Adjunta e Professora do PPG em Musica

Doutora em Musica pe/a UFRGS

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MafQarefe Arroyo Professora Adjunta da Universidade Federal de UberMndill

Marflia Stein Mestre em Educa9Ao pela UFRGS Professora Adjunla dll FUNDARTElUEAGS Luciana Prass Mestre em Educar;ao pela UFRGS Profesro(8 Adjunta da FUNDARTEVERGS

Resumo: Esle artigo apresenta alguns aspectos dos processos de pesquisa de

tr~s

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bathos desenvolvidos entre 1995¡1999, no PPGMUS/UFRGS, pelos inlegrantes do grupo de pesquisa CNPq "Estudos Musicais: Etnografia, Hist6rla e Analise", sob a coordenacao

da Proia. Ora. Maria Elizabeth Lucas. Os tres estudos, base ados em trabalho de campo do tipo etnografico, articulam-se pelo seu foco nos processos nativos de ansino a aprandizagem musical (etnopedagogias), observados em tres situa~es distintas (oficinas de escola de samba, musica, terno de congo), mas estruturalmente hom610gas - atividade musical nilo-escolar identificada com tradi90es rituais da cultura popular afro-brasileira (carnaval e congado), praticada por segmentos populares integrados a cultura urbana contelllporimea. Guiada5 5empre pelo olhar relativizador do metodo etnografico-antropoI6gico, o material empirico analisado pelas pesquisadoras aponta para as solu90es criadas e negociadas pelos atores sociais - ritmistas, oticineiros/oticinandos e congadeiros - no ate de prepara9ao e realiza9ao de periormances musicais cotetivas em contextos nao-escolarss ds aprsndizagsm. Palavras-chave: educa9i1o musical, praticas afro-brasileiras, etnopedagogia musical. Abstract: This paper examines some aspects of research processes of three studies developed from 1995 to 1999 at PPPGMUS/ UFRGS by the CNPq research group "Musical Studies: Ethnography, History and Analysis", under the co-ordination of Teacher Maria Elizabeth Lucas. The three studies are based on ethnographic research and articulated with their focus on native processes of music teachind and learning (ethnopedagogies). They were observed in three different Situations ( samba dancing school, music workshop and congo group), but structuraly equivalent - not-scholar musical activity identified with ritual traditions of African-Bazilian culture ( camival and congado) practiced by popular segments connected to urban contemporaneous culture. The empiric material analysed by researchers was always guided by retativator eyes of ethnographic and antropologic method and points to created solutions social actors (samba musician, workshopers and congadeiros) at the preparation and realization act of musical periomances at not-scholar learning contexts. Key words: musical education, Afro-Brazilian practices, musical ethnopedagogy.

Introd uQao Formalmente, eSle artigo resulta de t res estudos etnograficos que se articulam pelo seu foeo nos processos nativos de en sino e aprendizagem musical (etnopedagogias), observados em tres cenarios distintos (escola de samba, oficina de musica, terno de congo), mas estruturalmente homologos - atividade musical naoescolar identificada com tradigoes rituals da cultura popular afro-brasileira (carnaval e congado) , praticada por

segrnentos populares integrantes da cullura urbana conlemporanea de duas cidades brasileiras - Porto Alegre, RS

e Uberlfmdia, MG2. Ideal mente, ele remete para urn percurso de pesquisa orientada para a sensibilizaQao da relaQao pedagogica encetada em contextos socioculturais muito distantes da instituiQao escolar e cia experil~ncia de formaQ8o musical, academica e pedagogica das proprias pesquisadoras. Guiadas sempre pelo olhar


relativizador do metodo etnogratlco-antropologlco adotado no trabalho de campo e na interpreta~ao cultural dos dados, as situa!(oes aqui relatadas pelas autoras valorizam as soluyoes crladas e negocladas pelos atores socials - ritmistas , oficineiros/oficinandos e congadeiros - no ata de prepara~ao e realizayao de periormances musicais coletivas, como forma de desvelar aquila que a senso comum desconhece ou nao percebe ocorrer em contextas nao-escalares de aprendizagem musical. A estrutura do artigo compoe-se de tres eixos de apresentas:ao sucinta do campo te6rico-pratico dos tras trabalhos (referenelal teorieo, metodo, universo empfrico), seguidos de tres recortes ilustrativos das etnografias realizadas pelas autoras; em cada um deles sao comentados os proeedimentos norteadores da pesquisa em seus aspectos eplstemol6glcos, metodol6gieos e empfrlcos. Do referenclal te6rlco No que tange a orientac;:ao te6rica, cada projeto desenvolveu urn referencial analitico capaz de construir nexos interpretativos para aquelas situac;:6es e eategorias que emergiram de forma marcada e recorrente durante 0 trabalho de campo. Foram escolhidos enfoques te6ricos sempre sintonizados com a perspectiva etnomusicol6gica e antropol6giea do estudo dos processos de ensino e aprendizagem musical como fatos culturais e sociais, atentando para as inter-relaqaes de eontexto, as atores e suas praticas sociais e musicais. Segundo Geertz e 0 seu projeto de antropologia interpretativa (1973), a arte (incluindo a musical tambem configura um corpo de saberes e praticas socialmente inteligrveis - e urn "saber loca/"tal como 0 direito, a familia, a poder, a religiao, no sentido de que a sua universatidade reside nas suas manlfestal;Oes partlculares, locais (Geertz, 1998). Oaf 0 fooo analftico voltado para 0 processo socializador da cultura, buscando desvelar os significados de etnopedagogias baseadas na aprendizagem coletiva de musica manifesta pela oralidade, entendida nao no sentido restrito de verbalidade, mas no sentido ant ropol6gico de "encorporamenton ("embodimentj, expressao que define as culturas e/au situac;:oes sociais em que 0 texto, a escritura nao e prioritaria e, sim, a comunica~ao via performances visuais, gestuais, auditivas. Das descric;:oes empiricas de cada caso foram reeortados as seguintes principios ordenadores destas praticas de ensino e aprendizagern musical nos Ires cenarios, que serao retomados na segunda seccao deste artigo: observaC;ao - imitayao gestual e auditiva corporaUdade. Assim, no Irabalho de Prass, em funQao de a bateria de escota de samba constituir urn cenario de aprendizagem coletiva, calcada na oralidade, e na tentativa de desvendar 0 faze r musical pala

observ8ryao participante da pesquisadora no conjunto instrumental, 0 referencial te6rico recaiu em trabalhos etnomusicol6gicos realizados em condieOes semelhantes a essa, em outras culturas. A interlocugao com auto res, tais como Blacking (1990a; b; 1995), sabre a musica das crianc;:as Venda na Africa do SuI; Seeger (1988), sobre a musica dos indios Suya do Alto Xingu; ou ainda, junto de Rice, com a musica folk da Bulgaria (1994), Nketia (1974) e Chemoff (1996), sabre a percussao na musica africana e Araujo (1992) sobre a bateria das escolas de samba no Rio de Janeiro, foi fundamental para etnografar a pedagogia musical nativa dos "Bambas da Orgia". Na pesquisa de Stein, a referencial teo rico baseou-se na Etnometodologia segundo a proposta de Coulon (1995a; b; c). Os processos de ensino e aprendizagem musical em uma ofiGina de musica situada em um balrro porto-alegrense de perfil popular foram interpretados como "merodos nativos" (formas pelas quais os atares sociais se organizam para reaUzar suas aeDes cotidianas) de constitui!(80 do fazer pedag6g/co-musical no encontro entre oficinandos da comunidade e urn oficineiro extracomunitario. A analise da interaqao entre mestre e aprendizes seguiu as noc;:6es de "estrategia de negociliyBO" (Coulon, 1995a; b; c), "discipfina" (Foucault, 1996) e "conven9ao" (8ecker, 1977), que permitiram seguir as nexos entre as escolhas musicalS dos ofiGinandos nas oficinas e 0 cotidiano musical destes atores, em que as praticas da musica afro-pop (axe, funk, reggae, rap), e em particular a percussao de carnaval, apresentam-5:e centralmente importantes. Na tese de Arroyo, 0 modelo te6ricointerpretativo do Congado seguiu Leach (1992), para quem 0 ritual e um veiculador de mensagens a partir de um mito fundante. No Congado, 0 mite de origem descreve uma relayao com 0 sagrado, oom as santos protetores, estabelecida pelo sam dos batidos dos Congos; a mito e recriado e atualizado a cada ana pelos diversos ternos da cidade de Uberlandia, quando mensagens de contraposiryao de culturas, de etnias, de poderosos e naopoderosos atuam no processo de forma~ao e revigorayao de suas identidades . 0 fazer musical congadeiro incorpora a oralidade, os gest05 e 0 ethos coletivo expressos no mito, tornando-se a musica um dos sfmbolos agregadores do ritual e de seus participantes. Do metodo etnog raflco o metodo etnogratico-antropol6gico e urn processo qualitativo de pesquisa com enfase na reflexao sobre a encontro entre as intersubjetividades de pesquisador e pesquisados, postas em contato direto e prolongado em situac;:6es de campo. Durante a realizac;:ao das tres pesquisas aqui em tela, procurou-se por meio da reflexaa coletiva, abordar os problemas mais comuns - eticos a praticos - dos pesquisadores iniciantes em campo,

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com 0 objetivo de descobrir estrategias para solucionar os impasses, os conflitos e as dificutdades heuristieas e 16gieas da pesquisa etnografica, Disso re:sultau 0 usa dense das tecnicas de obseJva y8.o participante, do registro sistematico dos diarios de campo, de entrevistas abertas, fotos, graval10es em audio e video, e a sua transcriacao na trama narrativa, composta a partir das perspectivas emicas (a dos nativas) e eticas (a das pesquisadoras). Oessa feita, 0 deslocamento cultural promovido pelo trabalho de campo contribuiu para a transformal1aO epistemologica das educadoras musicaispesquisadoras pela via da relativizal{aa e desconstruc;:ao de noc;:Oes de ensino e aprendizagem musical difundidas a partir de um modelo unico. Propor alternativas aos preconceitos arraigados e herdados do modelo escolaJconservat6rio de musica, model a institucional responsavel pela farmac;:ao dos pratessores e profissianais da area com suas crencas universalistas, ideologias de prestigio e distincao social , nao e tareta tacil . 0 desafio de realizar 0 dialogo na pluralidade de realidades sociais e musicais - ouvir 0 outro, aprender com 0 outro , apreender 0 outro para concretizar ar;:oes pedag6gicas transformadoras subjaz em cada uma das situal{oes de pesquisa aqui relatadas . Do unlverso empfrlco Nas tres pesquisas 0 trabalho de campo propiciau a convlvencia prolongada das pesquisadoras com os pesquisados em suas formas de sobrevivencia cotidiana no bairro, em suas casas, nas testas coletivas e familiares, em shows, bares, no trabalho, etc. Os atores sociais constituem o nudeo pradutor das form as e manifestacoes musicais descritas em detalhe nos trabalhos citados. Seu pertil sociocultural se define em parte pela inserl{ao e relacionamento simultaneo com as margens (condilfoes materiais intra-humanas) e 0 epicentro da cultura urbana contemporanea (e.g. a tecnologia do som, a midia eletronica), sando reinterpretado pelo seu pertencimento etnico, de gâ‚Źmero e de ctasse social. De forma resumida , esse e a contexto antropol6gieo geral em que foram etnografadas as cenas entre as participantes da bateria da escola de samba, das aficinas e do Cangado, 0 que equivale a dizer que os significados atribufdos as praticas musicais e etnopedag6gicas abaixo descritas fazem parte de uma densa relar;:ao entre as coordenadas gente-tempo-espar;:o, principia antropal6gico adotado para reno.var 0 foco dos estudos sobre aprendizagem musical. Recortes de Campo

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Recorte de cena urn: "/550 aqui urna escola de samba!" De longe jil. era possivel ouvir a sam alto vindo da escola de samba: mistura de vozes de puxadores e instrumentos harmonicas com batidas fortes de

percussao em grupo. Ja na porta da escota esses sons mixados ao halito de casa cheia: quadra lotada de carnavalescos danr;:antes, conversando e bebendo a festa, A quadra, uma especie de ginil.sia de esportes, tornava essa polifonia confusa e estridente a ouvidos despreparados. 0 inicia do encontro cultural. Os ritmistas, bambas da orgia: acostumados a trabalhar todo 0 dia nos mais diversos empregos e a noite fazer samba, axe, pagode e funk. Edgar, militar da Aeronautica; Celso e Jose, funcionarios publicos municipals; Ana Paula, massagista em um salao de beleza; Jacare, funcionario de uma mal haria ; Ninja, policial; Regina, monitora da FEBEM3; Alessandra , Guto, Beto e Rafael, estudantes de segundo grau. Quase todos afrobrasileiros, integrantes de urn segmento de classe media assalariada, com variantes para segmentos mais modestos. A sequencia do encontro CUltural. Todos dancarn enquanto tocam e tacam porque aprenderam "de ouvido" 0 que as diferentes mestres que passaram pela escola ensinaram e a que conseguirarn aprender sozinhos , graQas ao convivio com 0 mundo do samba e do carnaval desde a infc!tncia. Nenhuma partitura, nenhum papel , nenhum atendimenta individual as dOvidas sabre como tocar maracanBs, ganzas, repiniques, tamborins e tar6is. A radicalidade do encontro cultural. Entre 1996 e 1998 convivi intensamente com as atores sociais da Escola de Samba Bambas da Orgia, a escola de samba mais antiga de Porto Alegre, fundada em 1940, e que, atualmente, reune cerca de 2000 integrantes para 0 desfile camava[esco, sambanda sob 0 ritmo cadenciado de uma bateria de quase trezentos ritmistas. Quando iniciei 0 trabalho de campo nao imaginava que houvesse tantas diferenr;:as entre a minha cultura e a cultura do samba, ja que eu estava ingressando em urn cenario musical urbano, dentro da pr6pria cidade onde vivo, e tendo em vista tambem minha area de atuaQao ser a EducaQao Musical. Entretanto, rneu encontro com os Bambas fai se delineando como um encontro repleto de estranhamentos. 0 olhar antropol6gico dirigido a eles pade entao comecar urn caminho inverso de famifiariza{:Bo com as caracterfsticas deste cenario onde a musica esla no centro da vida. Como logo esclareceu mestre Biskuim, na epoca 0 segundo mestre de bateria, "isso aqui e urna escola de samba". Ensinar samba, ensinar a ser bamba Envolvendo-me diretamente com as experiencias musicais na escola de samba como aprendiz de tamborim, procurei interpretar esta forma particular de aprender e de ensinar musica, esta etnopedagogia de educayBo musical 4 • Interessava-me especialrnente refletir sobre 0 aprendizado mUSical sem 0 auxflio de signos escntos. Como os ritmistas aprendiam a tocar as instrumentos de percussao? Como era feita a


selet;:ao para integrar a bateria? Como era construida a relaQao entre os ritrnistas e 0 mestre de bateria? Como as sessoes de ensaio erarn arganizadas? Com 0 desenvolvlmento do trabalho de campo fui me familiarizando com a fato de que, ao cantrario do que se imagina, a preparayao para 0 olpice do ritual carnavalesco inicia ja nos primeiros meses do ana e val se intensificando ate as vesperas do carnaval, num crescendo de festas e ensaios.

BAM BAS DA ORGIA Ciclo Carnavalesco 1998

Etnografando as Sambas da Orgia pude perceber quais eram os saberes musicais valorizados neste cenario e, a partir de entao, refletir sobre alguns procedimentos basicos de ensino e aprendizagem de musica reincidentes na escola de samba: a imitac;:ao, a improvisac;:3.o e a corporalidade. Neste relato tratarei das relac;:oes entre corpo e aprendizagem musical.

Corpo Foi pelas observac;:oes e pelo aprendizado em campo que as relayoes entre corpo e mUSica na escola de samba tornararn-se relevantes para mim. Toear, dam;ar e eantar na quadra da escofa, ao longo da pesquisa, foram 59 delineando como gestos absolutarnente interligados e, portanto, para compreender 0 ensino e a aprendizagem musical na bate ria, foi preciso refletir sobre essas relay6es. Em meus diarios de campo do infcio da pesquisa, as relerencias aos corpos, apesar de sempre presentes, eram quase sempre indiretas: eu lazla relerencia a meu cansa90 corporal, aos suores, a reincidencia no discurso do mestre e dos ensaiadores em ter que cantar 0 samba, a

dificuldade em sincronizar as batidas de tamborim com as coreografias, mas isso nao parecia canter elementos relaciomiveis ao aprendizado musical na bateria. A princ(pio, as coreogralias que as ritmistas realizavam (e dentre eles, especialmente a naipe de tamborins) me pareciam um elemento apenas h,jdico. Entretanto, fui percebendo com a correr dos ensaios, 0 quanta as coreografias erarn importantes na memorizayao dos arranjos, demarcando corporalmente as sec5es de cada obra, relacionanda a estrutura formal das musieas com linguagens corporais espeeificas. Na auseneia de uma partitura para guiar a performance , cantar e danyar sao as elementos responsaveis pela excelencia da performance. Como h8. muitos breques nos sambas-en redo, a dificuldade de memoriza9ao aumenta. Par isse, as ritmistas cantam as musicas enquanto tocam, sem que necessariamente entoem as canyoes, mas cantam a letra e seu ntmo, como se fora uma especie de rap. Neste cenario cantar e fundamental para a performance coletiva e urn saber valorizado desde a mais tenra idade. Em um ensaio da bateria-mirirn, duas meninas danyavam perto de mim. Maite, de sete anos, acompanhava sua danc;:a cantando a samba-enredo da escola, inventando palavras que imitavam a sonoridade da letra original. Lembreime do Que 0 etnomusic6logo norte-americano John Blacking desereveu sobre 0 canto das crian98s Venda, da Atrica do SuI: entender au saber a letra importa menos do que aproximar imitativamente sonoridades semelhantes as da letra Que encaixem na metrica da melodia (Blacking, 1990a, p. 30)5. Toear, can tar e dan<;ar estao intimamente relacionados. Ha assim uma gestualidade nos sons, gestualidade tanto nos movimentos individuais quanta no movimento global da bateria que resulta do toear e cantar. Em urn ensaio em que tocavamos o samba-en redo da escola, mestre Estevao cortou a bate ria, mas 0 samba continuou com a harmonia> . Enquanto descansava os pulsos, Teparei Que Rafael, o coordenador dos tamborins, mostrava para outre ritmista, Marquinhos, 0 arranjo. Rafael !ocava no are do tamborim e Marquinhos imitava os geslos. Logo Rafael loi cercado por uma duzia de ritmistas que faziam 0 mesmo. Eu, que estava urn pouco longe, tam bern fui chamada pelo mestre: "Chega aqui que o Rafael fa mostrando como sIt. Nesse caso , imitavamos os geslos, cuja sonoridade resultants 56 eseutavamos intemamente. Em uma tarde de sabado, quando ensaiavamos as vinhetas7 sob a coordenac;ao de mestre Branco, mestre Biskuim chegou ali e, depois de escutar 0 que tocavamos, disse que nao adiantava ficar repetindo coisas erradas. Para tentar resolver isso, em urna das vinhetas foi passando de repinique em repinique ate descobrir quem estava errando. Eram tr~s. Dais deles entenderam rapidamente coma era a certa, venda 0 Biskuim tocando para eles em um andamento mais lento e dividindo as frases em cerulas ritmicas menores. 0


terceiro ritmista eslava com mais dificuldade. Depois de tentar vanas alternativas, mestre Biskuim pediu para ele "imitar com a boca" as ritmos que fazia no repinique. Nao 101 de imediato que ele conseguiu realizar a tareta, mas conseguiu, e entao Biskuim completou: ~Pronto, agora faz com a baqueta". Nesse casa, a ensaiador reduziu as variaveis a serem imitadas (omitindo, no caso, as gestos da baqueta), levando 0 ritmista a entender auditivamente (e entao ser capaz de Uimitar com a boca'), externalizando uma compreensao interna. Nesses exemplos pode-s9 perceber a quanto o ensino e a aprendizagem acontecem praticamente sem a intervencaa de palavras au de trases sabre o que fazer e como. A educal(ao musical dos Bambas ocone basicamente par sons realizados com os instrumentos ou com a voz, em forma de onomatopeias, ou ainda na expressividade do olhar e dos gestos corporais. Ensina-se e aprende-se mU5ica mU{iiaanddl.

o corpo que caminha tocando e 0 principal responsavel pela manutenC1ao da pulsact80 coletiva. Ha, portanto, urna relacao polirritmica entre a coordena9ao dos pes para caminhar tocando, as batidas de cada naipe com suas exigencias tecnicas especificas entre as maos e ainda os ritmos da melodia que e cantada pelos ritmistas, tudo isso aliado a uma escuta dos demais naipes e do todo. Todas as vezes em que pedi que alguem tocasse 0 tamborim para me mostrar, 0 gesto de bater com a baqueta no instrumento vinha acompanhado de uma dan~a de pes que fazia 0 corpo gingar na pulsalfao do que era tacado. Minha batida comelfou a tamar forma somenle quando incorporei essa coreografia de pes. corpo que toea, dan9a, e a expressao musical do grupo e tambem uma expressao corporal. A propria energia sonora do som da percussao incita o eorpo a movimentar-se. De forma semelhante ao que John Blacking observou entre os Venda, dan~ar e tocar estao intimamente relacionados:

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Entre os Venda, as habilidades na musica e na dam;a eslavam lao intrinsecamente /igadas que, se, por exemplo, um homem Venda dissesse 'Eu posso facar tshikona ', ele quis dizer que poderia tamMm danpNa, e se urna garota dissesse 'Eu posso danyar tshigombe/a', ela poderia tambem cantare tocaros tamoores (Blacking, 1982a, apud Blacking, 1990b, p. 34).

o corpo era usado ainda para preencher as pausas nas musicas, gerando "sons gestuais"; algumas vezes esses gestos vinham acompanhados par gritos ou palavras cujo numero de silabas correspondia ao tempo de pausa. Para Blacking. (" .) quando parece que ouvirnos uma pausa entre duas batidas de tambor, n6s temos que nos dar conta que, para quem toea, isso nao euma pausa: cada batida no tambor e parte de um amplo movimento do corpo, no qual a mao ou a baqueta

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golpeia a pele do tambor (Black;ng, 199Gb, p.27).

Muitas vezes as ritmistas gestualizavam 0 ritmo dos outros naipes enquanto aguardavam 0 seu momenta de tocar. Dessa forma, explicitavam corporal mente que haviam memorizado nao s6 as celulas e frases ritmicas realizadas pelo seu naipe, mas tambem as dos outros naipes. 0 ritmista que toca 0 tamborim, por exemplo. e que internalizou as ritmos realizados par outro naipe quando 0 seu realiza urna pausa, dificilmente tocara a sua celula no tempo errado. E tambem 0 corpo, no caso 0 corpo dos ensaiadores, que coordena a performance do grupo, Como observou 0 etnomusicologo Samuel Araujo, em trabalho de campo realizado em escolas de samba cariocas, sendo responsavel nao pe/a mera coordenar;:ao destas muftipfas refayoes, mas tambem por assegurar que elas obtenham 0 me/hor efeito expressivo possivel, 0 diretor de bateria filtra sua performance literafmente atraves do seu corpo. Os ouvidos separam e reunem os varios componentes, os brB90s mBntem 0 tempo conjunto e sina/izam as nuances de timbre (mesmo quando 0 apito nao Ii usado) e, em cerlos casos (visualmente os mais exasperantes), a boca tamMm interfere na performance. Entao 0 corpo como lim todD ava/ia a BXpressiio emodonal e cinetica coletiva, alimentando de a/guma maneira ret6rica os caminhos e desvios tornados pelo evento sonoro, e entao, criativamente da forma parlitura aumP (Araujo, 1992, p. 153).

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o corpo desenvolve ainda resistencra fisrea para bater com agilidade os tamborins, para suportar as decibeis sonoros explosivos, para sustentar ao mesmo tempo 0 peso dos instrumentos (como as maracanas, par exemplo) somado ao peso do impacto produzido pelos golpes da mao. Como observou Luis Ferreira, pesquisador do candombe uruguaio, a soma dos sons de cada instrumento cria urna "corporalidade do som", que e sentida como pressao no corpo dos participantes (Ferreira, 1997, p. 2)10.0 corpo tambern precisa ser educado para toear horas a fio sem Que 0 andamento e a energia caiam, e sem deixar a samba atravessar. Dentro da etnopedagogia dos Bambas, havia uma rera9ao forte entre aprendizado e resistencia Hsica, explicita por meio de uma hierarquia entre os naipes de instrumentos. Iniciando sua participa~ao nos ensaios da batena, 0 ritmista podia eseolher 0 naipe que gostaria de integrar. No decorrer dos ensaios, em caso de dificuldades do ritmista, 0 mestre entao sugeria que ele trocasse de instrumento, geralmente passando ao naipe de ganzas. Aos poucos fui percebendo que esse procedimento, "ir para 0 ganza", continha uma 16gica pedag6gica especifica. Foi quando expticitei a mestre Estevao meu desejo de tocar tamborirn que eSSB fala chamou a aten9ao: "Nao, se nao der 0


tamborim, tu pode 5er no ganza, porque se tu e musica, ritmo tu deve ter". 0 que mestrs Estevao

estava me dizendo e que do naipe de ganzas era exigido apenas duas atitudes musicais: tocar ou nao tocar. E tocar significava wapenas" realizar semicolcheias constantes sem parder a pulsac;ao, diferentemente de outros naipes, como a de tamborins, que precisava realizar frases e breques. Apasar dessa aparante facilidade musical dos ganzas, inOmeras vezes ouv; colegas fazendo referencia ao cansaGo dos braGos e do quanta era diffcil nao deixar 0 samba marrero Essa alternativa de ~ir para 0 ganza", apesar da frustra9ao em nao toear 0 instrumento de sua escolha, proporcianava aos ritmistas vivenciar, imergir na paisagem sonora da bateria, ouvindo assim os outros naipes, suas frases, seus timbres. 0 ritmista, apesar de nao toear no naipe de sua preferencia. seguia partlcipando da bate ria e aprendendo sobre ela sonora e corporalmente, desenvolvendo reslstt!!ncla fislca e perce~o audit iva.

Em busca de pontes entre a eseola de samba e as escolas em gerel Conviver intensamente com os Bambas da Orgia, retletir sobre sua etnopedagogia, proporcio· nou uma amplial1ao de minha viseo a respeito da Educacao Musical. Desde que a pesquisa encerrou, quando enta~ retornei a pratica de educadora musical em cenarios institucionais, venho procuran· do ressignificar e adaptar 0 que aprendi com os Bambas minha reaUdade atuat. Algumas possibili· dades deste exercfcio sao as que seguem: · Pensar 0 corpo como urn construto das culturas e a servil10 delas e entendido como elemento fundamental a aprendjzagern musical, no sentido de urna tecnica corporal como propos 0 antrop610go Marcel Mauss, pioneiro em estudos do corpa, definida como -as maneiras como as homens, socledade por socledade e de maneira tradicional, sabem servir-se de seus corpos" (Mauss, 1974, p.l); · Romper com a idela reducionista de -dom", de "1alento inato", tantas vezes ainda enfatizada em nossas escolas de musica, a partir da percep¢o da importancia do processo socializador da cultura na formaQao dos sujeitos musicalizados; · Compreender erros e acertos como realizal10es coletivas, construfdas a partir da rela¢o entre professor e alunos envolvidos em um evento educative comum; · Se a sala de aula pade ser vista como urn cenario de realiza90es coletivas, entao a tarefa de ensinar tamMm pode ser coletiva, nao precisa centralizar-se na figura do professor. Como na escota de samba, quem sabe ensina para quem nao saba, ainda que seu saber nao esteja no ponto do de um ensaiador au de um mestre, ja que 0 objetivo ultimo do fazer musical eta bateria e levar a escola bonita, segurar 0 samba, fazer explodir a

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srquibsncada.

Logicamente, como contextos diferentes, a

escota de samba e as escolas em gerar comportam al10es educativas diferentes. Etnopedagogias espedficas para as distintos grupos com os quais trabalhamos precisam ser construfdas, respeitando as culturas de alunos e professores. Talvez pensando assim, na relal1ao professor·aluno como encontro cultural, possamos enriquecer nossa tarefa de educar musicalmente e aprender ainda mais com ela.

Recorte de cens dois: Aulas-ensaio de percussao na Cruzeiro: urn evento constituido como a~ao coletlva Conheci 0 grupo de percuss;!o da Vi/a CruzeIro, bairro de perfil operaric-popular da regiao sui de Porto Alegre, em dezembro de 1996, em urna mostra de trabalhos das OflCinas de Musica, nome dado a um projeto pedag6gico-musical da Secretaria Municipal de Cultura desta cidade. Nesse evento, cnanl1as, /ovens e adultos de diversas comunidades porto-alegrenses, na condil1ao de· oficinandos, mostravam, par meio de variadas formal1oes instrumentais e vocais, suas competencias adquiridas na experiencia e suas preferencias musicais, assessorados pelos coordenadores das oficinas, os oficineiros, nao-moradores dos bairras das oficinas. A diversidade musical oportunizava nessa tarde a consonAncia entre rap e samba, balada e funk, musica erudita e paQode e rock. Tambem a diversidade etana dos instrumentistas e cantores nos grupos ehamava a aten~ao e provocava interroga~6es sobre a natureza de processos de ensino P. aprendizagem nesse contexto multietario. Motivando quest5es sabre a relatividade cultural e sabre a educa~ao musical entre grupos populares e sem deltmita~o eta ria, a mostra musical me fez querer aprofundar tais temas na experiencia mOsicceducacional das ofieinas. Os meninos e meninas da Vila Cruzeiro. em particular, tornaram-se meu mais forte interesse por seu sam intenso e slncronizado nos tambores, a prese~a carismatica do oficineiro transitando entre as instrumentistas com seus srnars enigmaticos e as funl10es distinguidas na performance musical para meninos e meninas estas danl1avarn os ritmos afro-brasileiros no prlmeiro plano do palco e nao tocavam Instrumentos, aqueles tocavam os tam bores de diferentes tamanhos, produzindo uma dam;a mats sutil nos corpos, movimento que parecia Impulslonar e organizar a produ9&o sonora. o ponto de partida da reflexao te60ca foi 0 conceito tradiclonal de oficina de mUsica. Na concepcao nascida nos anos 60, 0 movimento de oficlnas de musica esta associado ao experimentalismo na mUSica contemporAnea erudita. Tambem chamada de -'aborat6rio de sam", esta forma original de oficina de musica enfatiza a 8xperiencia da crial1ao musical e era promovida inicialmente junto comunidade acadilmica. Na experiencia pedag6gico·musical chamada de oficina de musica que QCorre hoje em Porto Alegre - desde

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1992, da forma intarmitanta - a tamMm em outras cidades brasileiras, a musica e prioritariamente trabalhada na sua dimensao performatica, pel a execuQ60 musical, geralmente abordando repertorio popular, e Hga-se de forma estreita a polHicas culturais dirigidas a grupos de baixa renda de centros urbanos, pollUcas estas de inclusao social, de resgate da cidadania e de ocupaQao do tempo livre com ativ;dades positivas, entre outros objetivos expressos por dirigentes e lideranlfas publicas que se ouvem e IGem na mldia au em eventos publicos. Mas esle era um lade te6rico e/ou midiatico de conhecimento sobre a oficina de musica. E na pretica, como ela acorria na Vila Cruzeiro? Seguindo as prlnclpios epistemol6gicos da pesquisa etnognHica, de buscar conhecer a realidade de um detenninado grupo cultural a partir do cantata prolongado e intenso com seus membros, extraindo deste convfvio as categorias marcadas de organizacao e compreensao de sua propna aC;ao! constrw;ao nalda realidade , iniciei 0 trabalho de campo na Vila Cruzeiro, uma das sete comunidades onde sa desenvolviam na epoca as oficinas de musica do Projeto de Descentralizacao da Cultura, em julho de 1997. A comunidade da Cruzeiro foi aos poucos se revelando musicalmente durante a pesqu(sa por suas expressoes comparti(hadas com Olrtros grupos de perij] operario-popular e tambem por suas especificidades musicais , fruto da combina9ao de simbolos e materiais que eram adotados neste bairro para dar sentido ao dia-adia de seus mais de 3000 moradores. Nn nlh;H inir:iRlmp.n1A J1ArmAROn pAlo estranhamento daquela cultura de bairro popular, distante tambem geograficamente do meu espa90 de convivio social - mai s central na cidade , geralmente promovendo a interar;ao entre grupos majoritariamenle de classe media - definia-se naquele momenta apenas urn interesse amplo de conhecimento do evenlo da oficina da Vila Cruzeiro enquanto um espago organizado por seus participantes no processo de negociac;ao entre suas culturas, de significayao do evento a partir dalas a de ress(gnifica9ao da cultura na constrw;:ao da oficina. Com este roteiro de observacao abrangente, fui conversando com pessoas ligadas oficina, 0 oficineiro, oficinandos, lideranc;as comunitarias , parentes dos oficinandos , vizinhos, assistindo as sessees das oficinas, anotando momentos do processo, gravando, por vezes filmando, auxiliando no transporte dos instrumentos musicais em dias ensolarados de ensaro ao ar livre, tornando-me aos poucos uma canhecida, uma tia das caronas, do bloco de notas, do alhar e da esc uta que buscavam ser atentos.

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Dos criadores do som:

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cenario comunitario

e as historias dos stores Na primavera de 1997, quando 0 tempo bom permitia a oficina ser realizada em local aberto, fui 10

assistir a mais urn ensaio na Praya do 8arracao, praga ampla e pouco arborizada, com cancha de esportes, a quatro quadras da Associacao de Moradores da Vila Cruzeiro, onde ficavam guardados as instrumentos de percussao. Mais de 20 meninos e meninas, sob a olhar cuidadoso de Paulo Romeu, 0 oficineiro, levavam a pe os instrumentos para a praya. Roupas simples, alguns pes descalyos, ou com chinelo ou tenis, camisetas com sfmbolos esportfvos, bones, anais e brincos em meninos e meninas. Cabelos trabalhados com tranc;as, outros bem curtos, alguns tingidos de amarelo. Nessa caminhada evidencia-se 0 espa90 reduzido entre cada moradia e 0 papel da rua como lugar de sociabilidade por excelencia. Cruzamos com as co-moradores locais: sentados em cadeiras, uma roda de amigos ocupa a cal9ada; de um sofa¡ em frente a casa, uma '0'6 cuida os netos enquanto conversa com vizinhos ou familiares. Emolduram nossa passagem-desfile casas compostas por fachadas irregulares e materiais variados, que indicam os modos culturais particulares que esta popula(fao encontra para lidar com au suprlr suas carenclas, traduzindo gostos, concePQ6es e logicas em uma estetica cotidiana da vi la, diferente da dos predios de classe media, geralmente solidos, uniformes e com um acabamento que esconde a vida privada do espaqo publico. Entre os casebres aparenlemente "improvisados" (do ponto de vista do estrangeiro) , ha casas prefabricadas, casas de alvenaria com tfjolo a vista e outras de alvenaria com reboco. () .~nm on.~ tRmborA.c:: Am lrfm.c::ito r:nmJ1Atp. r:nm as musicas das radios frequentemente sintonizadas, que privilegiam batadas romanticas, pagodes, axemusic, rap. Rostos curiosos, alguns lisonhos, outras criticos. Para alguns moradores 0 som que a grupo da oficina faz e samba, e samba e alegria, danca, barulho bom. "Meu filho gostava de auv;r aqui da esquina, fica va dam;ando~ - depoe uma jovem mae, na epoea em que 0 grupo ja havia transferido os ensaios para a sede da escola de samba presidida pelo oficineiro, a Garotos da Orgia, em funyao da proxlmidade do carnaval, do qual participariam em 1998. Para oulros, barulho e estorva, como para uma senhora alfabetizadora de adultos, percebendo o som do grupo como concorrente as alividades que desenvolvia dentro da Associayao. Entre os oficinandos, com idades entre 6 e 25 anos, e mesmo havendo eventuais participaqoes de meninos menOfes e ate homens adultos, os mals eSlaveis tinham em media 10 ou 11 anos. Muitos trabalhavam, e os traba!hos predominantes deles e de seus parentes referiam-s8 a servi<fOs gerais em instituiqoes privadas (Seu Flavio, 45 anos, tio de oficinandos, Irabalhava em urn estadio de futebol; Doda, 25 anos, trabalhava em um asilo para idosos; Dunga, 12 anos, ja vendera jornal no centro) ou publicas (a mae de Moga, 15 anos, trabalhava no Departamento Municipal de Limpeza Urbana, assim como Sandrinho, 25 anos, ex-oficinando e na epoca

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da PQsqulsa ritmista da bateria dos Sambas da Orgla, escota de samba porto · alegrense ), a trabalhos autOnomos (Aonaldinho, 19 anos, era mecanico; 0 pai de Cleberton, 10 enos, pedreiro; MOlja e Priscita, 16 enos, ja haviam trabalhado como empregadas domeslicas; Marco, 23 anos, irmao de Doda, reformava bicicletas), e a biscates (Bento. 12 enos, e seu irmao mais velho faziam serviyos em ume earroc;;a de carregar m6veis e de cortar grama; Cirilo, 13 anos, recolhia entulhos da frente de casas; Tiaguinho. 10 anos, cuidava carros no centro). Muitos oficinandos ja haviam feito ou faziam musica fora da oficina na spoca da pesqulsa. Cirilo, Diego (13 anos) e Vladimir (14 anos) , por exemplo, tocavam pandetro, caixeta, tarol, surdao, repinique ou cubana em um grupo de pagOde na Associacao Crista de MOIfoS (ACM) do bairro, que freqQentavam no horario em que nolo estavam na escota. No entanto, nenhum dos oficinandos tinha aula de mUSlca na escota. Cirilo espanta-se de au perguntar a Cris (12 anos) se havia musica em sua escola:·O roIegio e de pobre, vai ts musica!·· diz ele, rindo da pergunta aparentemente despropositada. Cris compteta: .. E, 0 colegio de pobre, de madeirinha e ainda fa cheio de cupim." Na mesma ocasiao, Cris cant a que urn dos seus quatro irmaos estava viajando com sua banda de musica, na qual tocava teclado e cavaquinho. Parecia orgulhoso ao revelar:

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UAgora minha mae vaL Eu vou ter uma aula de cavaquinho com meu tio, Nao me lembro 0 nome dele, el8 la do fmperador.ll ( ... ) E um cabeludinho que toea guitarra."

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hill hop , movimento composto por manifestaQ6es esteticas como 0 rap. as graffiti (assim como do break, do scratch e dos masters of cerimony), vem a ser uma das dimensoes culturais expressivas do ethos deste grupo. Ronaldinho, que tocava eventualmente na oticina de percussao, descreve seu envolvimento com a cria/(ao de rap: Eu ja tenho umas musica pronta, la. Nao lenho os gurl pra cantar, pra toear. (... ) As ViJzes, quando da na cabe{:a de noile au saio pra rua a fico viajando, escrevendo as musica. 0 jeito hip hop tambem

ocoma como citac;ao ao b-boy, quando, a noite ou nos dias mais frias, meninos e meninas usavam jaquetas estilo jogador de beisebol. Em dias quentes, muitos meninos de bermud6es, e menlnas com v8stidos, shorts au saias curtas e blusas mini. Estes jovens ligavam-se a diferentes redes socials na construcao de experi ~nclas musicais anteriores au paraleJas a realizac;ao da oficlna de musica. Pagode, bateria de escola de samba, rap, batuque 12, capoeira sao algumas das praticas soclomusicals com as qua is as oficinandos identificavam-se por Ihes ter acesso mais direto em seu catidiano comunitario. Associadas cultura afroamericana, de tais pratieas este grupo de aprendizes extraia valioso recurso simb6 lico, traduzido, par exemplo, em suas expectativas em reJaC;:80 a ofidna de musica. Os meninos e meninas da Cruzeiro desejavam aprimorar-se na performance da bateria,

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confirrnando uma identificaC;8o com a estelica do camaval e um ideal vinculado competitividade e ao status das baterias de escola de samba vencedoras dos desfiles de carnava!. Entre oficinandos e oficineiro, e apesar do compartilhamento de valores cuHurais, havra diferenc;as culturais que oportunizavam, como dizla Paulo, uma troea cultural. A trajet6ria profissional de Paulo era vinculada a experiencias passadas, desde 1982, com oficinas baseadas no ensino de muSicas usando instrumentos de percussao, em comunidades de perfil operario-popular. Oesenvolvera este tipo de trabalho ora individualmente, ora com 0 grupo Afrosul, banda e grupo de danc;a porto-alegrenses especializados em expressoes cutturais afro-brasileiras, coordenados respectivamente por Paulo e por sua esposa. 0 oficineiro considerava uma missao passar tudo que aprendera de educac;:ao musical, desde 0 tempo em que andava com seu pai, tamqem musico , acompanhava renomados musicos gaUchos, como Lupicfnio Rodrigues e Rubem Santos. andava na noite com etes, Oescreve suas primeiras experiencias de ensino e aprendizagem musical na infancia:

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Cedo ja comecei a tocarpercussao junto com esse pessoa/ tudo al que da antiga. Entao aprendi muito de educari8.a musical, saba. Pessoal me o/hava, assim, jlJ sentia que eu tava ... t6 tocando a/to demais, t6 quebrando demais 0 instrumento, coisa que fo; me /apidando. (...) S6 meio musico par descend~ncia, assim, meu pai e musico tamMm, entao jlJ era, desde pequeno ficava. vivia no meio, anclava com ele pm hi e pra da! eu lui

e

ca,

indo. Quanta a continuidade de sua forma9ao musical, Paulo explica que com seu pai s6 aprendeu de la junto , mas dele me ensinar, assim, didaticamente, nao. Ai ja comecei a aprender vio/ao com outr~ professor, com uns nove, dez anos. Fui tocando percussao, sempre lui muito encarnado em percussiio, quando tinha uma escola /8,., dos Imperadores, que era bem pertinho da ond9 eu morava naque!a epoca. A/lava sempre nos ensaio, B. (...) No Imperadorque corneaei a me Jigar mais como assistente. Eu era pequeno, af tava sempre /a venda 0 pessoal fazer instrumento e ensaiar. Ai lui indo. (. ..) Ai ja tinha uns dezessels anos, (. . .J a gente {amigos da vizinhanya}, como morava ma/s ou menos tudo ali, e ai eles eram do Academico, dar eu comeeei a sair na bateria /a na AcadfJmleo, tocando repinique.

Paulo foi indo, desenvolvendo-se musicalmente em cenarios distintos de ensino e aprendizagem: a ambiente familiar com a pai musico e seus colegas, a situac;:ao didAtica na qual aprendera violao com um professor e 0 espalYO da

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escola de samba, onde, olhando os instrumentos e o ensaio, aprendera a toear, tambem a ensaiar, a assistir. Nesse contexto, sua inicia/(ao e a continuidade de sua formaQao musical ocorreram atraves de uma educa98.o musical baseada no compartUhamento musical de crianqas com adultos , no usa de instrumentos de percussao, na estrategia de "olhar" mais do que ''verbalizar''. Estes seriam as principios que, par con sequencia, incroporaria em seu trabalho pedag6gico-musical junto aos meninos e meninas da Cruzeiro. A oficins em foco: das negociaQoes de rltmos, tambores e estrat9gias de ensine e aprendlzagem A afjcina de musica da Vila Cruzeiro podia se realizar na associa/(80 de moradares, na praya, na rua , na escola de samba a que Paulo Romeu pertencia. Durante uma hora e meia, com instrumentos de percussao cedidos de emprestima par Paulo - tarol, surdo, repinique e caixeta - as oficinandos interagiam entre si e com 0 oficineiro , que, em frente ao grupo e de baqueta na mao, coordenava a sessao , o rientando verbal e corporalmente como as aficinandos deveriam se comportar, como desenvolver os ritmos, quais os naipes que deveriam tocar nos diferentes momentos da levada. Era assim, pelas express6es rirmo e levada que os participantes da oficina denominavam, respectivamenle, a genera musical e 0 contraponlo ritmica executado pelos instrumentos de percussao. A tecnica basica de execuyao musical na oficina consistia em parcutir uma baqueta na superffcie esticada de cou ro ou plasHco do instrumento de percussao, ou, como se dizia na Cruzeiro, em bater urn dos tambores , compartilhados em situayao de revezamento pelos oficinandos. Participa~6es diferentes contrastavam com asta modo predominanta de express8.o musical: uma voz infanti! amplificada ao microfone cantava as vezes musicas canhecidas na midia au criadas par um grupo de alunos ; crianQas e jovens danc;;avam, oulros percutiam em materiais de sucata. Na conjugayao desses processos, as musicas realizadas no ensaio de bateria - como os participantes chamavam a oficina - lortaleciam a grupo em torno de um objetivo comum - tacar e aprender a toear para desfrutar do som, ser ouvido, cuidado, apreciado e conhecido. Durante as quase 12 meses de trabalho de campo, evidenciaram-se neste encontro entre oficineiro e oficinandos alguns aspectos de negocia9ao da aprendizagem musical que adolei como eixos de analise de processos pedagogicos da oficina : negociaq6es de repert6rio musical, de usa dos instrumentos musicais e de aproveitamento do tempo (natureza e disposi9ao das estrategias no tempo) .

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Em relactio a negociactao de repertorio musical o interesse palas musicas era compartilhado entre oficinandas e oficineiro, resultando em um

repertorio baseado em rilmos afro-americanos, tais como oiodum, reggae, rap e samba, que paredam satisfazer a lodos as participantes. As vezes surgiam composi({oes proprias dos oficinandos, havendo, por exemplo , a insery8.o de um rap feito par alguns meninos no repertorio do grupo.

Quanto as negocisctoes de uso dos instrumentos musicais Os instrumentos musicals tornavam-se neste contexto musical os mais adequados para expressar esta musica. Os lambores produz ia m, sob orienta({ao de Paulo e nas maos com e sem baquetas dos oficinandos, levadas representativas daqueles rilmos, em uma sonoridade coletiva cujo contra ponto ritmico resultava da soma dos padroes rftmicos executados par cada urn dos tambores de forma cfclica, chamados de batidas. A base rftmica era dada pelo surdo, de som mais grave, que exigia de seus executantes grande tor~a ffslca para carregar a instrumento pendurado pelo talabarte e para tocar com exatidao a levada prevista, sem atravessar a batida, como se diz na linguagem carnavalesca. Tarol e repinique desempenhavam fun({ao de levar a ritmo para frente, dar fluencia musica, alem de serem os instrumentos improvisadores par excelencia. As caixetas - em grupos profissionais, como na bateria de escola de samba, por exemplo, geralmente encarregadas de breques13 complexos, ritmas sincopados e ageis que geram surpresa e interesse continuos musica - entre os oficinandos func ionavam de forma mais simples, fazendo geralmente um contraponto ao surdo, mas sendo raramente usadas em breques , recurso tecnico/ estetico considerado pelo oficine iro atem das condi90es medias de execuy8.o do grupo. Por isso a caixeta geralmente era entregue para meninos mats novos e para meninas - considerados pelo grupo com menos for({a e resistencia ffsica -, havendo, no entanto, exce90es: Jane (12 anos) sempre que comparecia a oficina toeava surdo por longo tempo; Michel, 0 Chel , dos mais jovens no grupo (9 anos), tocava sempre tarol, elogiado pelo oficineiro como modele de executante da levada de funk. Os oficinandos desejavam muito bater com campetencia as tambores e nesse sentido esfo r({avam-se para desenvolver coordenayao motora, forGB fisica e resistencia musculare dermica. Para a oficineiro, a competencia como percussionista exigia que tivessem sangue, 0 que representava uma especie de caracterfstica ligada ao corpo e a musicalidade advinda da experiencia: Tiaguinho tocava surdo firme e forte, como devia ser, por ter um sangue danado, adquirido em anos de convivio com a pratica do batuque, em que era lamboreiro, acompanhando sua famma . "Entfio ja tem urna formar;8.o de toear tambor. Sua competencia, dizia Paulo, vinha de raiz." A experiencia do sangue se traduzia tambem no corpo ferido pelo uso da baqueta, na mao com bolha coberta com fita adesiva, tecido au luva, ou

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peJo peso do inslrumento no taJabarte sentido no mU5culo do ombro e das costas. Como forma de alterar exig~ncias muscutares e dermicas, dando alfvlo ao corpo ern formac;Ao/aprendizagem, era adotada a seguinte estrategia na pedagogia nativa deste grupo, sugerida pelo ofieinei ro e ace ita, apesar de eventuais resistencias, pelo grupo: revezavam-se os instrumentos entre as ofidnandos, por exemplo, do surdo para 0 tarol. ou do repinique para a assistllncia. Essa estrategia representava tam bern uma convenc;ao necessari a ao desenvolvimento da ofidna, pois nem sempre eram suficientes os instrumenlos para lodos os execulantes. No entanto, devido importancia veiculada petas crian9as e peto oficineiro a. performance publica. para que asIa acontecesse como a expressao da competllncia musical do grupo, as vesperas de apresenta({oes erarn estabelecidos instrumentos fixos para cada executante. Entao 0 revezamento dos tambores era inlerditado, e as func;:oes dos participantes do grupo eram definidas em prol de uma execu9ao musical sincronizada, com sonoridade firme e forte, conforme expressao de Paulo.

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Oa natureza e dlsposl~ao das estrategias de enslno e aprendlzagem no tempo a tempo era disposto no evento da 01idna de torma 'nici:~tica ¡, contorme Foucault (1996). Isto e, sem a proposj~ao de segmentacao do tempo em partes sequenciadas, como no "tempo discipJinar", segundo 0 qual, de uma atividade passa-se outra com maior grau de complexidade , muitas vezes sendo proposto a isolamento de urn elemento para sua aprendizagern em separado do evento cultural como um todo (Foucault, 1996). Paulo Romeu nao propunha 0 ensino/ensaio das musicas por partes au isolando urn elemento de sua estrutura para ensin/Ha aos aprendizes - rilmo, texto, acenlo ou dinamica - nem os oficinandos expressavam querer aprende-Ias dessa forma. Tampouco se criavam exercfcios de compreensao te6rica ou se utilizava 0 recurse da escnta musical como elemento didatico, de transmissao de conhecimentos, ou como conteudo de aprendizagem. As musicas eram transmitidas oral mente, pelo exemplo musical reaJizado no instrumento pelo mestre-oficineiro, vista e ouvido pelos oficinandos , que dessa forma buscavam aproximar-se do modelo astatico sugerido por Paulo e apreciado pelos jovens como representativo do universo cultural ao qual pertenciam. Nao loa que oficineiro e oficinandos refeTiam-se a. oficlna musical como 0 ensaio ou a aula de bateria, remetendo a um evento que se dirige a urn fim performatico - a apresenlaQao publica, a execw;ao sincronizada de uma bateria (de escola de samba).

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Aprendendo a batlda certa De acordo com este interesse compartirhado pero grupo, de integrarem 0 cicIo carnavalesco

alraves da aprendizagem de Titmos percussivos de urna bateria de ascola de samba, estrategias e convenQoes de ensina e aprendizagem musical acionadas par oficinandos e oficineiro apontavam para a aproxima~o da postura corporal e dos sons musicais daqueles previstos pela estetica da bateria da escola de samba no evento do carnaval. Tais at;cSes e regras envolviam olher e ouvir 0 modele de performance musical , falar ou fazer a levada de um dos tambores (produzindo sam e imagem). Duas oficinandas explicam como aprendem as musicas: (Priscila, 16 snos): 0 Paulo pegs as betides, ensina as batidas, dar fala como B que e as betidas. Oaf, se fica muito difrcil, ele pega nosso bra~o e comeys a bater aM a gente pegar. (M098, 15 anos): E dar a gente ja sabe a musica e a betida certa pra poder se apresentar no dia {da apresenta~~o publica].

Priscila e M09a destacam princfpios pedag6gico¡musicais conectados com 0 cenano do carnava!. Em seus depoimentos expressam 0 centralismo etas batidas, pois, para elas, aprender as musicas signifiea saber a batida certa e a liga~o desta aprendizagem it. meta de apresentar-se no dia (publicamente). Alam disso, confirmam estratllgias observadas durante as sessoes da oficina de musica, tais como a fala - significando ncotc contcxto a dcmomltroyOo dEl.3 batidas por meio da vemaliza9ao deseritiva ou onomatopeica, au da realizat;ao de um modele instrumental sonoro e/ou visual¡ e 0 pegar no bra90 - representando a intervenc;ao corporal. Esse e OUtTOS depoimentos viriam refon;ar a interpreta9Aa das sessoes da oUcina de musica como aulas-ensalo de uma bate ria de escola de samba - interpreta9Bo esta baseada na adoQao de recursos materiais e culturais comuns ao carnaval, como os instrumentos musicais (tambores) e 0 repert6rio musical (samba-enrado, olodum, funk) pela valorizac;ao da corporalidade e da oralidade no processo de aquisi9BO de sa be res esteticomusicais. Outro aspecto que indica a constitui~o da oficina de musica como fundada no valor da performance publica e a fato de que a convenc;:ao de revezamento de instrumentos musicais frequentemente era substitu'da por seu oposto - a interdic;ao da troca e a fixaltao dos melhores instrumentistas em tam bores especificos - como forma de dar continuidade aos ensaios ate culminar em uma apresentaltao publica que devena ser bem realizada, isto e, que correspondesse as expectativas de realizalfBo musical nos pad roes esteticos de uma bateria associada ao mundo do carnaval, com sincronia, for9a e firmeza. Neste contexto culturalmente constitufdo pelo recurso da oralidade e de tecnicas corporais a ela vinculadas, coletivo e multietario, a organizagao social do grupo de percussao pesquisado pode ser vista, sob varios aspectos, como uma a980 coletiva (Becker, 1977). Na teoria da a~o coleliva, Becker


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que os membras de urn grupo a constituem a

medida que SEI organizam em tome de urn objetivo comum • nesse caso, a ensaio da bateria para a

carnaval - acionando para isso conven90es auxiliares no aprimoramento da habiHdade grupar,

como, por exemplo, nesse case, 0 revezamento dos instrumenlos musicais, ou ainda, as [evadas dos rllmos e as !scnleas de execuyao dos instrumentos musicals . Na at;:ao coletiva func;oes sao estabelecidas entre as membros do grupo, para haver ganho de produtlvldade , 0 Que tambem

acorria na oUcins de muSica da Cruzeiro, principaimente publicas.

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vesperas das apresentac;oes

Em resume, a aOcina de musica da Vila Cruzeiro pode ser entendida como uma atividade educativa cuja pro posta baslca era construir a conhecimento par meio de tecnicas de trabalho em grupo. que se detlniam par conven~6es e estrategias de 8((80 negocI8d8S entre meninos e meninas da Cruzeiro e Paulo Romeu, a partir de suas culturas. Etnogra'ia e Educac;ao Musical A partir do contato com moradores-aprendizes de musics de bairros populares da cidade em que habito, a adoc;ao dos principios processuais da pesquisa etnografica (compreensao interpretativa, relativiza'1ao cultural, familiarizar 0 estranhol estranhar 0 familiar, dialogicidade) colaborou para ampliar minha visao do mundo social - com suas dinamicas de negociaCao e transfonnaC;ao cultural e suas complexas redes de significa.;ao e produt;ao cultural - e dos "metodos" de construcao cultural implicados em diferentes form as de educacao musical. Com minha gradual aproximacao cultura da comunidade da Cruzeiro, pude me familiarizar com a experiencia musical que se construfa, compreendendo algumas das estrategias de ensino e aprendizagem acionadas na oficina de musica • baseadas na oralidade e tambem na corporalidade (a imitac;ao sonora somando-se imitac;ao gestual), na resistencia e for'1a Hsicas e na acao coletiva organizadora e congregadora da diversidade etana e de diferentes competencias musicais, adquiridas em vanadas experiencias musicais anteriores - suas motiva9f>es e suas rela90es com 0 entomo. A oportunidade de eslar junto ao grupo musical da Vila Cruzeiro me fez renetir sobre a relatividade dos processos educacionais em musica. Em contraponto as oficinas desenvolvidas em oulros bairros populares do Porto Alegre, a da Cruzeiro produziB B sua marca, seu perfil especfflco. suas conven~oes e convic~oes conforme a cultura dos oficinandos, demandas comunitarias, oficineiro, interpreta~o das exigencias da politica cultural do projeto. A pesquisa etnogratica produz iu uma importante transformayao pessoel pelo exercicio de observer e participar da realidade da oficina de

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musica, como uma viajanteMsilante que incorpora inicialmente habitos de cortesia para se comunicar e sobreviver em terra estrangeira, mas que no decorrer da estada, quase sem se dar conta, comec;a a compartilhar habitos , introjetando novos comportamentos e modelos de pensamento. No retorno a terra de origem , 0 distanciamento vern ao encontro da produ~ao de reflexoes, analises e comunica~ao com seus pares, como um · reconhecimento" de sua anliga forma de ser, porem uma mudanca passoal efetiva/afetivamente incorporada, posslbilitando novos olhares sobre 0 antes familiar e uma relacao de maior compartilhamento de significados com a que antes soava estranho, par vezes ~ex6tico~. Tendo como premissa a encontTo intercultural, a fazer etnografico torna-se urn intenso exercicio dial6gico a partir do qual pensar alternatives de InvestigaCao e de a~ao na Educa~ao Musical que se pretende tamMm diaJogica.

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Recorte de cena tres: "0 ouvido do menino fica no bat/do do congo!" (noite de 03/11/95) A pequena igreja do Rosario, que vista durante 0 dia sob urn sol escaldante de um azul intenso, localiza-se no centro de Uberlandia, em meio a ediffcios fuxuosos. Naque/a noite, in/cia de minha inservao no campo, do seu adro ainda vazio e iluminado, vi um palco de madeira A direita e, atraves da porta frontal aberta, reparei la dentro haver poucas pessoas, a maioria afro-brasi/eiros. concentradas na reza e canto, sob fuz palirlrJ. Com 0 r.Offl(,.aO rli.<;f1rJrnrin comn quando se enfrenta 0 desconhscido, entrei na pequena igreja e sentei-me timidamente no ultimo banco. As pessoas entoavam cantiCOS cat6licos altemando-os com a reza do ter90. Mais tarde, soube que, em cada um dos nove dias que antecedem a Festa do Congado de Uberiandia, a reza era conduzida par um grupo de pessoas, as novenarios - muitas vezes uma familia - devotos de Nossa Senhora do Rosario e lou Sao Benedito, os santos louvados no ritual. Os cantos s as rezas sram repetidos inumeras vezes, em ritmo arrastado que combinava com a Juz pouco intensa do interior da igreja. 0 tempo passava lento e eu pensava na imagem de 'grande acontecimento' que a fala de Capela, chefe da Pasta Afro da Secretaria de Culture do municipio havia estimufado em mim, quando 0 procurei durante a tarde l4 • Dissera que naquela noite, ultimo dia de novena, lodos os temos de congado la se encontrariam e dan~ariam. Entretanto, sua descri~ao entusiasmada nao correspondia aquela atmosfera no Interior da Igreja. As portas faterais da igrejinha estavam abertas, e aos poucos outras pessoas foram chegando e integrando-se aos cantos e as rezas. Em meio a ladainha, de repente dei-me conta de que algo quebrava sua monotonia. Alga lange ainda, mas ja podendo ser identificado: um temo estava se aproximando da igreja, anunciado por seus

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batidos15 • A cada passo, ia-s9 fazendo ouvir mais e mais, e, maior sua aproxirnaq8o, rnais a potente sonoridade de suas caixas e chocalhos encobria a reza no interior da igreja. Ja no adro, as batidos faziam tremer a chao, as bancos, corpo . Foi impressionante viver aquela contraposiqao de atmosferas. Meu coraqao disparou pela emor;8,o desencadeada par aquele momento de encontro de dois mundos - 0 cat6fico e 0 afro - que S9 fundiam de modo intenso. Terminada a reza, um primeiro temo danr;ou defronte a porta da igreja. Meninas a !rente do grupo, cantando e danyando; meninos entre os hom ens do ferno, todos cantando e tocando instrumentos!o. Outros temos foram chegando e, urn a urn, foram marcando suas presenr;8S com a Danr;8 dos Congas. Capela tinha razao: foi um 'grande aeonteeimento'. Convivi com este mundo congadelro de 1!::1!::1tl a 1999. Dos doze temos vinculados a Irmandade dos Homens de Gorde Uberla.ndia (Louren90, 1987, p.27), inseri-me etnograficamente nos dois grupos denominados Marinheiros: Marinheiro Nossa Senhora do Rosario e Marinheiro de Sao Benedito. A razao de tal escolha esteve pautada no fato de 0 primeiro Marinheiro ter sido fundado para formar congadeiros . A inclusao do seg undo Marinheiro ocorreu para servir de contraponto ao observado e vivido no primeiro temo. A Danc;a do Congado e uma performance mulliexpressiva de cores, formas, movimento, sons, palavras, gestos, suores, cheires, premessas, disputas, uniao, reciprocidade, competitividade. Os dam;adores, que no periodo ritual sao meninas da bandeira, capitaes, caixeiros, madrinhas, donas e donos dos ternos, no dia-a-dia sao pedreiros, babas, motoristas, mecanicos, estudantes, a maioria afrobrasileiros moradores de bairros populares da cidade. Dam;ar 0 congo significa participar desta totalidade e estuda-Io e possivel a partir de varios pontos: tomar lodos os aspectos da performance, alguns deles, ou apenas urn. A questao-chave colocada pela Antropologia e nao perder de vista a articulaltao do todo, islo e, cada elemenlo s6 tern sentido no ambito do "fato social total". Quando focalizo 0 fazer musical na Dan9a do Congado e, mais especificarnente, 0 ensino e aprendizagem desse fazer musical, fa90-0 lendo esla ideia em mente, ou seia, toeo de aten~o nao se restringe aos produtos sonoras, mas em como 0 fazer musical, incluindo af 0 ensino e aprendizagem de musica, enquanto processo e produto, participa ativamente e articula uma ordem social. A musica ocupa um papel de destaque no ritual do Congado. Sao os batidos nas caixas que anunciam 0 injcio deste periodo nas noites de setembra a cada ano. Os batidos e os cantos sao ouvidos por varias semanas nas noites quentes e secas desta epoca do ano, culminando com 0

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encontro de todos os batidos e cantos que se fazem soar simultaneamente no domingo e na segundafeira de Festa, ia novembro, quando os ternoS dan9am 0 congo em frente a igreia. Como disse um dan(fador: 0 batido e tudo! ritual marcada par diferentes tempos e diferentes espa(fos, onde as intera90es sociais acontecem: 0 tempo das campanhas, 0 da novena, da Festa, aquele fora do per(odo ritual, a Festa em aulras cidades; os espa(fos dos quarleis, das ruas, das casas dos devotos, dos bares, dos bairros da cidade, do centro da cidade, da igreia de Nossa Senhora do Rosario . Na linha interpretativa do ritual como veiculador de mensagens, conforme Leach (1992), estas sao constitufdas e constituidoras naquele cenario cultural. Esla dialetica de constitui~o traz implicito um pracessa de aprendizagem em permanente a9ao. A teo ria ritual aponta para 0 seu carater pedagogico. Por exemplo, Robeno DaMatta ressalla que "( ... ) 0 ritual e um dos elementos mais importantes nao s6 para transmitir e reproduzir valores, mas como instrumento de parlo e acabamento desses valores ( .. .)" (1990, p.26). Segundo Carlos Rodrigues Brandao "tudo 0 que acontece (no ritual) ensina~ (1984, p.35). Neste campo interpretativo todos os tempos e espa(fos rituais congadeiros comportam en sino e aprendizagem. o mito fundador da Festa do Conga do, 0 qual se refere a versoes distintas da aparic;:ao da imagem de Nossa Senhora do Rosario aos congadeiros e moc;:ambiqueiros (Brandao, 1985; Martins. 1997: Arroyo, 1999), e sua articula98.0 com as a90es e discursos dos atores desvelam mensagens, tais como: a contraposic;ao de culluras, de etnias, de poderosos e nao poderosos, mensagens que atuam no processo de forma98o e revigora9ao das identidades intra e intergrupo. Nesse contexto, 0 fazer musical aparece como elemento de destaque, tornando-se urn dos simbolos dominantes do ritual. Como s'mbolo, ele participa do processo dialetico de veicula9ao de mensagens. Por meio das acoes de tocar, cantar, danyar, fazer musica, sentidos de continuidade, identidade, resistencia, pertencimento sao constituidos, reafirmados e aprendidos.

o

e

Ums etnopedsgogia congadeirs Pude observar em inumeras ocasioes que a ideia de que "tudo no ritual ensina" parecia ser reconhecida pelos atores do Congado, pois as crian(fas estavam integradas aos atos rituais desde bebes, recebendo aten(fao dos adultos desde suas primeiras incursoes congadeiras. A inserCao de membros a esse mundo acontecia por caminhos diferentes: ou porque eram membros de familias de congadeiros, ou porque seus familiares fizeram promessa aos santos fizeram votos - ou porque se viram comprometidos com as santos em sonhos, ou ainda, simplesmente, por gostarem de congado. Urn destaque nesta

i§ 15


--------- -- -- - - -- -- - - - - -- - - - - -- -inser9ao

ea atra9ao que os batidos dos maracanas

e ripiliques exercem sabre as crian<;8s e

adolescentes. (ee/so, danyadore tocadordechocaJho, 4Oanos): congado ia passando na porta de casa e eu ache; 0 balido bonito e af eu disse que eu tinha que participar. A princfpia meu pai toi contra, Pedi pra minha mae e sla deixou. No primeiro ana

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ne.

dance; escondido do meu pai, a seu Ze Rafael, dono do (tema) Sainha, toi quem me deu a roupa.

porque sle sompre enfusiasmav8, incentivav8 as

crianyas a dancar pra nao morrer 0 congado. Eu tinha nesta 8poca uns seis ou sete anos. Meu interesse em focalizar 0 ensina e a aprendizagem de musica neste cenario congadeiro esla respaldado na necessidade, como educadora

musical, de compreender a constitui y8.o sociocultural da

oduc3~ao

musical. Meu caminho neste inlenlo

foi 0 de .. ao me inserir etnograticamente entre os congadeiros, desvelar os sentidos do ritual, os sentidos do S8U fazer musical e como ambos participavam cia constitui~ao de uma etnopedagogia musical. Tendo esse objet;vo geral em mente, elabore; algumas questoes que contribufram, nas etapas iniciais do trabalho de campo, para 0 mapeamento das a~oes nos cenarios: Quais sao as representaqOes socials solJle f(:lÂŁt;H IIlusical construldas, compartilhadas e disputadas entre os congadeiros? 0 que e considerade conhecimento musical - nao s6 por quem "ensina", mas tambem par quem "aprende'? Como 0 conhecimento musical e reproduzido e produzido? Quem ensina e quem a~rende? Como as nOQoes de ensinar e aprender sao representadas neste cenar io? Por que 0 con hec im ento musical reproduzido? Qual a relaQao entre as representaQoes socia is sobre faz~res musicais e as concepQoes e praticas de enSlno e aprendizagem de musica congadeira? coletivo, oralidade, Aprendizado corporalidade, imita~a.o sao os procedimentos marcantes nesta pratica de educar;:ao musical. Adensados pela teia de sentldos que comp5em este cenano eongadeiro, essa etnopedagogia desvela a consti tulc;:ao sociocultural do ensi no e da aprendizagem de musica. Esse quadro interpretativo foi eonstituldo a partir de varias cenas, uma das quais focalizo a seguir, cena cujo personagem principal e Nene, manino de dais anos, filho do capitao de urn dos lemos de Marinheiro.

e

o ouvido do menino fica no batido do Congo! (27/10/96) Em um ensaio de domingo do Marinheiro de Sao Benedito - a Marinheirao - tive a oportunidade de observar 0 menino mais novo de Moises, Nene, com seu ripilique pequeno a mao. Enquanto as crian~as vizinhas improvisavam seus inslrumenlos com lalas de 61eo e pote de iogurte,

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crian~as

eongadeiras tinham instrumentos apenas menores, compativeis com 0 tamanho dos pequenos. Era fim de tarde, e as meninas cia bandeira, cerca de 20 adolescentes e criancas, ensaiavam na rua com Selma, madrinha do temo, os passos de uma eoreografia que fariam na Festa, frente do grupo. As calcadas, como de costume, estavam cheias de observadores: membros da grande familia que toea 0 Marinheirao e vizinhos. Nene, de chupeta na boca e ripitique e baquela a mao, acompanhava, com domlnia, a marcat;ao do maraeana e de um ripilique, executadas por dam;adores, fazendo um batido de congo para as meninas ensaiarem. o menino, que acompanhava de modo preciso o batido do maracana, exibia nos seus dois anos grande domfnio motor e mostravaja ter internalizado a organ i za~ao sonora congadeira, 0 que se evidenciava ainda no batido de marcha que seguiu a de congol7, aeima deserito. Assim que 0 ripmque atacau¡, imediatamente o menino respondeu no seu ripiliquinho com a marcavao feita pelos maracanas. Como observei s6 a ripilique alaeau e permaneceu sozinho por bo~ tempo. Enquanto isso, 0 manino do Maises reproduziu a estrutura sonora interiorizada, segundo enlendi, em seu visivel dominio sintatico: ~aquele batido vem acompanhado daquela marcatrao ". Nene, embora distante uns 6 metros de so/dado que batia 0 ripilique, permaneceu todo 0 tempo observando-o. Pouco antes do maracana entrar com seu batido, 0 manino parou de bater, sacudiu um po~co 0 corpo no ritmo e, olhando para 0 rapaz que batla, passou a fazer 0 batide do ripilique. Bateu na pele do instrumento e depois no corpo de metal deste, tambem uma pratica corrente. Ate af, Nene esteve envolvido e concentrado no batido do rapaz que tocava e no seu pr6prio batido. Depois dispersou-se um pouco, mas sempre com 0 ripiliquinho a mao u . A seguir, as caixeiros passaram a bater urn terceiro batido. Nene, sempre com a instrumento a mao, ora se envolvia em segurar 0 ripilique de diferentes modos - talvez parque estivesse pesado - ora se e~volvia com as passos das meninas, ora se ligava dtretamente aos calxeiros batendo. Naquele momento, bateu apenas trechos do que estava sendo executado, demonstrando nas a¢es que se seguiram prov8vel processo de interiorizac;ao de um outro batido. No processo, 0 menino imitava alguns fragmentos ritmicos e parava. Chegou a bater uma estrutura ritmica de marcha e a imitar os pulos com ca;xas (a dam;a de caixas e feita somente pelos dan~dores dos Marinheiros). Pera organizar meu olhar e minha observa~ao sobre as varies possibilidades de en sino e ap rendiz agem nesse cenar io, recorri a duas categorias de captat(ao e analise do vivido e observado: as sjtuac6es em que aconteciam e os processos que envolviam. Na definitrao desses dois instrumentos de pesquisa, recorri sugeslao de as

~reais",

a

a


Anthony Sggggr de, ao Inlelar urn estudo etnograllco, utilizar 0 que ele chama de "questt5es jomalfsticas basicas~ "'0 que, onda, como, quando, quam, para quem e por que" (Seeger, 1988, p.83). As ¡sifuafoes de ensino 6 aprendizagem de muslca~ estao relacionadas as questoes uonde, quando e quem". Elas sao vistas em urn primeiro momento como retratos instantAneos, possibilitando urna impressao inicial das suas praticas em diferentes tempos e espat;os rituais. Os ''processos de ensino e aprendizagem de musica" estao relacionados as questoes "'0 que, como, quem, para quem, por que"', que propiciam urn olhar mais detalhado e denso das situa~5es onde e quando ocorrem. A seguir, analiso esses processos. A cena de Nene batendo acontece em situayao de ensaio na rua numa tarde de domingo, com urn grupo grande de participantes: os que estavarn dlrelamente envolvidos com 0 ensaio menlnas dancando, calxelros batendo - e 0::; lIue assistiam; tad os, porem, em situaCao de aprendizagem dos batidos, das musicas, da danca, do mundo congadeiro. Eu me colocava ali como mais uma aprendiz, na epoca (1996) em que comec;sva minha inser~ao no Marinheirao. Misturei-me as varias pessoas que assistiam ao ensaio e, sentada a beira da calc;ada, coloquei a cAmera de video perto do chao, de modo a nao chamar tanto a atenc;:ao. Apeser de estar atenta para apreender as acaas de Nene, concentrava-me na densidade de articulayoes envolvendo aquela situat;ao de ensino e aprendizagem. Como esM descrito aeima, ensaiavam as meninas da bandeira, batiam os dois caixeiros. Mutheres e homens, ocupando cada um seu determinado espa~o, desempenhavam seu papal espee/fico. Nen~ nao era a unico em siluac;ao de aprendizagem. Estavam ttt suas primas menores, seu inna.o, crianc;:as da vizinhanca. Selma nao era a (mica a ensinar. As meninas que sabiam mais enslnavam a Inlciantes. Nena nao aprendia de alguem propriamente, mas de lodes e de tudo aD masmo tempo. Seu olhar se dirigia aos caixeiros batendo, as meninas danc;:ando; enquanto olhava, batia, mas eom a owindo atento. Nao ouvia s6 seu instrumento, ouvia 0 ripiJique, ouvia 0 maracana. 0 othar, os bracos, as pernas tambem eram canais de aprendizagem. Seus gestos me induziram a pensar que ele relacionava aquetes batidos com 0 que ja sabia - congo e marcha. Mas lambam demonstrou estar apreendendo novas estruturas. Ele nao aprendia apenas as batidos, aprendia sobre a condi y 80 de hom em e mulher, sabre pertencer aquela classe social, aqueta vizinhant;a, aquela familia. Aprendia a ser congadeiro. Os batidos, que enchlam a rua e a vizinhan~ de som potente, invadindo casas e corpos, eram, naquela situaCao, investidos de uma rede de significados, participando ativamente da ~criar;ao da vida soclal"(Seeger, 1988, p.83). A situac;:ao de aprendizagem â‚ŹI uma situayao coletiva de periormance. Nene esta no meio dessa

totaJidade, participando alivamenle. Ele esla com 0 inslrumento a mao, tocando junto aos que jii dominam esse fazer musical . ObselVadas as suas ac;:6es, identifiquei dois processos de aprendizagem. Durante 0 batido de congo e 0 batido de marcha, Nent!' evidenciou jii ter internalizado essas organizacoes sonoras. No terceiro batido, obselVei mais urn processo: ele estava interiorizando outra organizac;:ao sonora. Conforme disse Moises, "0 ouvido dele - Nene - fica no batido do congd'. Mas essa descri~ao mostra Que seus olhos e corpo tamMm. Os othos apreendendo a simultaneidade de acontecimentos e 0 corpo movido pelo sam que a penetra e impulsiona. Como em varias culturas musicals orais, a cultura musical congadeira e auditiva, visual e tatil. Ha outros aspectos presentes nessa descriG80 e em outras sltuac;6es de ensino e aprendizagem de musica no cenario. Alem de serem elas de I.HUuu.,-:ao coletiva - :;;ituayoes de peliormance acontece ali tamMm a aprendizagem aliva, isto e, aprendizagem centrada no proprio aprendlz. Vale observar que as dimensoes socia is, cognitlvas e pSicomotoras estao integradas na experi~ncia musical. A aprendizagem de musica nao impliea apenas tornar-se tecnicamente competente, mas interiorizar representa<;oes sociais que Ihes dao sentido, como cultura. As organizac;:oes sonoras nao sao neutras, mas investidas de redes de significados. Esses significados dao sentido ao fazer musical e parece constituirem-se no estfmulo basico para a pr6pria aprendizagem. Psicol6gica e socialmente fazem sentido. Etnopedagogia congadeira e concep~oes e pratlcas academico¡escolares de educa~ao musical: algumas reflexOes exercicio antropot6gico de insercao em um contexto cultural estranho, como 0 cenario do Congado era para mim, exercfcio sustentado por olhar instrumentalizado te6rica e um metodologlcamente (Antropologia, Etnomuslcologia e etnografia), propiciou alargar minha visao sobre ocampo da Educayao Musical. Ao compreender de modo mais denso a teia de significados Que constituem as situac;:oes de ensino e aprendizagem de musica, de volta ao meu campo de atuac;:ao profissional - espat;os escolares e academicos de educat;B.o musical - pude perceber uma realidade que antes me passava desapercebida. Quando aprofundamos a reflexao sabre a rela9ao educac;:ao musical e cultura, muitas perguntas emergem de como concretamente lidar com 0 potencial dessa relaceo. Na literature, algumas dessas quest5es t~m sido levan tadas por educadores musicais e por etnomusic610gos. Recorro a alguns deles para disculir as implicacoes deste estudo sobre a ensino e a aprendizagem de musica entre congadeiros na pratica da educa~ao musical escolar. A primeira implicac;:ao e a maneira de lidar com

o


a bagagem musical dos alunos. Essa bagagsm OU biografia musical traz implicita maneiras de compreender 0 mundo e esM. vinculada constrw;:ao de identidades sociais e culturais, sendo, portanto, significativa para os alunos. etnomusic61ogo Timothy Rice faz alguns questionamentos a respeito, ap6s comentar que a pratica da "musica aprendida, mas nilo ensinada" observada em uma aldeia da Bulgaria, seu campo de estudo, tambem aconlece nas sociedades industrializadas:

a

a

"e

6bv;o qua muito das masmas observayoes poderiam ser feitas sobre as nossas criam;as, particufarmente na maneira de elas absorverem musica popular e musica "tefevisiva n• Elas vern para as escolas com uma quantidade tremenda de 'conhecimento musical', para conhecer cany6es, identificar grupos musicais palo SauS sons, Gte. Uma d3S qUGstOGS para 0 Gducador musical e como fazer usa desse reservat6rio de conhecimento. Ou ensinamos nossa versao do conhecimento musical G fingimos que os jovans sao como paginas vazias? 0 que constitui 0 "conhecimento musicar? A li y80 aqui e que cartamente 0 ambiente musical um dos principais professores de musica e muito pode ser aprendido dele. Estamos utilizando nosso proprio ambiente musical tifo afativamente quanto poderfamos? Os professores poderiam tomar-se 'facilitadores' das habilidades musicais e 8xpressoes ja presen tes mais do que 'transmissores ' do campo particular de conhecimento musical do pr6prio professor? ~ (Rice, 1985, p.1f8).

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Essas quest6es impoem a necessidade de revisoes das concep((oes e praticas de EducaQ8.o Musical e de tomar consciencia do porque da hegemonia de determinados procedimentos. 0 dlalogo interdiscipllnar, especiatmente com as ciencias sociais, pode prom over esta conscientizaQao. Outra implicaQao diz respeito ao papel do educador musical nesse intanto, pois passa a ser de sua competencia intermediar criticamente as expectativas do aprendiz com relaQao ao fazer musical e aos "programas" (Douglas, 1998) das instituiQoes escolares. Este papel pode ser exercido com a transforma<;§.o e amptiaQao do othar desse educador sobre 0 que constitui as situaQoes e os processes de ensine e aprendizagem musical. Entendo que a EducaQao Musical tem estabelecido urn dialogo limitado com outros campos de conhecimento, em especial com aquetes que me parecem diretamente a ela vinculados: pedagogias e musicologias. Considero esse dialogo limitado, pais a EduC8980 Musical transporta desses campos uma gama de conhecimentos de modo acritico e os incorpora na sua produQao especifica . Dessa maneirs, squele dialogo toma-se de mao (mica: os conhecimentos de outras areas sao transportados

18

para 0 campo da EducaQao Musical. Os estudos atnograficos tern papel de destaque nesta reconceitualiz8QaO da area da Educaqao Musical. Desvelar varias "16gicas" que sustentam a relaQao aprendizes e fazeres musicais devera conceder uma base segura para a area assumir urn espaqo mais expressivo no campo do conhecimento cientfficoacademico.

, Esle artigo deriva de um relat6rio coletivo apresentado no XU Encontro Anual da ANPPOM (Salvador, UFBa, 1999) sobre alguns aspectos dos processos de pesquisa de tres trabalhos desenvolvidos entre 1995-1999 na area de Educa<;:Ao Musical no PPGMUSICNUFAGS, sob a orienta<;:ao da Proia. Maria Elizabeth lucas: "Saberes em uma. esco/a de samba: uma etnografia entre os 8ambas da Orgia de Luciana Prass (1998): "Oficinas de musica: uma elnografia de processos de ensino e aprendizagem musical em bairros populares d8 Porto A/egre", de Manli~ Stein (1998) ; "Representat;Oes sociais sabre praticas de ensino e aprendizagem musical: urn estudo etnognU;co entre congadeiros, professQres e estudantes de musica em Uberl8ndia, MG", de Margarete Arroyo (1999). N

,

• As pesquisas de Arroyo e Stein estao parcial mente aprcsanladas neste artigo. Ambas desenvolveram-se em dois cenarios simultaneos, mas no ambito desls relalo serAo focalizados apenas os espayos vinculados a cultura afro-brasileira. 3 A FESEM, anliga Funda(,':ao Educacional para 0 Sem Eslar do Menor, e hoje a FASE , Funda<;:ao de A<;:ao Social e Educacional, 6rgao publico do Eslado do Rio Grande do SuI. ~ A partir do referencial da Elnomelodologia, descrito per Coulon (1995) como 0 estudo das alividades cotidianas, das solu90es que os atores conslroem para resolver seus problemas de lodos os dias, utilizei a expressao etnopadagogia para nominar os processos de ensino e aprendizagem compartilhados pelos Sambas da Orgia, criados a partir do contexto de suas praticas musicals, por meio dos quais este grupo cultural se organiza para transmitir suas crenvas e seus valores associados ao fazer musical (Prass, 1998). ~ Como a escola de samba constitui um cenario de aprendizagem coletiva, calcada na oralidade, na lenlaliva de desvendar 0 lazer musical da baleria dos Sambas da Orgia, dialoguei com alguns Irabalhos em Elnomusicologia realizados em cenanos com caracterfsticas semelhantes a essas. E 0 caso do esludo de John Blacking (1990a, 1990b, 1995) a respeito das caov6es das crian9as Venda, na Africa do Sui; de Anthony Seeger (1988), entre os indios Suya, do alto Xingu: e de Timothy Rice (1994), sobre 0 ensino e a aprendizagem da musica tradicional na Bulgaria e as relayoes de genero imbricadas neste processo. 6 A a/a do. harmonia e composta pelos puxadores e instrumentislas da escola, em geral vio/ao, cavaquinho e leclado. E coordenada pelo diretor de harmonia, que quase sempre e tamt>em 0 primeiro puxador da escola. Junto com a ala da bateria, €I responsavel pela musica do desfile carnavalesco. 7 Vinhe/a e como era chamado cada trecho de uma paya s6 de percussao interpretada pele baleria dos Sambas da Orgia na epoca da pesquisa.

8A expressao "musickingN e usada por Small, 1996.


I:ISagundo Souza. ·00 acordo com as leonas cognitivas. 0 terma 'aural' rel ere-se it escuta interna de sons ou melodias. isla criar;ao de estruluras auditivas intemas ou constru~o mental do discurso muslcal~ (Souza, 1998,

e. a

symposium on the perspectives of social antropology In the teaching and leaming music, 6, 1985, Reston. Proceedings... Reston: (s.n.], 1985. p. 43-52.

p. 214). Em mlnha dlsserta9!10 dialoguel com trabalhos voltados ao estudo da percussao em varios coniextos culturais, como ode Nketia (1974), sabre a musica africana; 0 de Chernoff (1996), sobre a percussao em Ghana. na Africa; a lese de doulorado de Samuel Araujo (1992) sobre 0 samba no Rio de Janeiro; e. recentemente, a pesquisa de Luis Ferreira (997), sobre os lambores de candombe do UruguaL A interlocuyao com lais aula res foi fundamental a InterpretalfAo da musica dos Bambas, 10

" Relere-se ao Grupo Camavalasco Imperadores do Samba de Porto Alogre. '2 Termo adotado no Rio Grande do Sui para relerir reli9iao afro-brasileira do candomble,

a

'3 Breque refere-se na musica popular a uma parada no desenvolvimento de levada ou a uma allerat;ao rilmica bem conlr8stame com 0 que vlnha senoa execulado, que tende a provocar uma sensar;ao de surpresa no QUvinle, U

Os nomes dos atores do congado sao reais em funyao

a pesquisa. termo emico referente as estruturas Titmicas

des suss expectativas com relat;io

15 Batidos: executadas nas caixas - maracanSs, surr1inhos, ripiliques, basicamente.

,e Inslrumentos de percussao: maracanas. surdinhos, ripifiqU8S, chocalhos; instrumentos melOdiCDs e harmOnicos: violAo, cavaqulnho, sanfona ($Omente alguns tamos). 17 Os dant;adores dos temos de Marinheiro nomearam qualro balldos diferenles: MARCHA, CONGO, ROJAO E PRORROBO.

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