Bicho-papão de papel-moeda: relações entre escolas de samba e patrocinadores a partir do caso Impera

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X SEMANA DE HISTÓRIA POLÍTICA Minorias Étnicas, de Gênero e Religiosas VI SEMINÁRIO NACIONAL DE HISTÓRIA Política, Cultura e Sociedade

ISSN 2175-831X

2015

ANAIS 2014 Programa de Pós-Graduação em História da UERJ


ISSN 2175-831X

X SEMANA DE HISTÓRIA POLÍTICA Minorias étnicas, de gênero e religiosas

VI SEMINÁRIO NACIONAL DE HISTÓRIA: POLÍTICA, CULTURA E SOCIEDADE

ANAIS

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Rio de Janeiro 2015


Semana de História Política / Seminário Nacional de História: Política, Cultura e Sociedade. (x: 2015: Rio de Janeiro)

Anais / X Semana de História Política: Minorias étnicas, de gênero e religiosas / VII Seminário Nacional de História: Política, Cultura e Sociedade; Organização: Eduardo Nunes Alvares Pavão, João Paulo Lopes, Layli Oliveira Rosado e Rafael Cupello Peixoto - Rio de Janeiro: UERJ, PPGH, 2015.

3323 Texto em português ISSN 2175-831X 1.História Política – Congresso. 2. Cultura – Sociedade. 3. Relações Internacionais


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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

Reitor: Ricardo Vieiralves de Castro Vice-Reitor: Paulo Roberto Volpato Dias Sub-reitora de Graduação – SR1: Celly Cristina Alves do Nascimento Saba Sub-reitora de Pós-Graduação e Pesquisa - SR2: Monica da Costa Pereira Lavalle Heilbron Sub-reitora de Extensão e Cultura - SR3: Regina Lúcia Monteiro Henriques Diretor do Centro de Ciências Sociais: Léo da Rocha Ferreira Diretor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH): Dirce Eleonora Nigro Solis

Programa de Pós-Graduação em História (PPGH) Coordenadora geral: Márcia de Almeida Gonçalves Coordenadora adjunta: Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves Coordenador do Doutorado: Ricardo Antônio de Souza Mendes Coordenadora do Mestrado: Érica Sarmiento da Silva Coordenadora da Linha Política e Cultura: Maria Regina Candido Coordenadora da Linha de Politica e Sociedade: André Luís Vieira de Campos


X SEMANA DE HISTÓRIA POLÍTICA Minorias étnicas, de gênero e religiosas VII SEMINÁRIO NACIONAL DE HISTÓRIA: POLÍTICA, CULTURA E SOCIEDADE

Comissão Organizadora Eduardo Nunes Alvares Pavão, João Paulo Lopes, Layli Oliveira Rosado e Rafael Cupello Peixoto Realização Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – PPGH/UERJ Apoio CNPq - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico FAPERJ - Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro IFCH - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UERJ SR-2 - Sub-Reitoria de Pós Graduação REDES - Redes de Poder e Relações Culturais NUCLEAS - Núcleo de Estudos das Américas NEA - Núcleo de Estudos da Antiguidade LEDDES - Laboratório de Estudos das Diferenças e Desigualdades Sociais NUBHES - Núcleo de Estudos sobre Biografia, História, Ensino e Subjetividade NIBRAHAC - Núcleo de Identidade Brasileira e Historiografia Contemporânea LABIMI - Laboratório de Estudos de Imigração IHGB - Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro APERJ - Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro AGCRJ - Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro ABHR – Associação Brasileira de História das Religiões ACESSO LIVRE – Revista da Associação dos Servidores do Arquivo Nacional RHBN – Revista de História da Biblioteca Nacional Faculdade de Comunicação Social - UERJ Instituto de Letras da UERJ Livraria República


Bicho-papão de papel-moeda: relações entre escolas de samba e patrocinadores a partir do caso Imperatriz Leopoldinense 2002 Leonardo Augusto Borai

RESUMO: O trabalho propõe uma leitura da relação entre patrocinadores e escolas de samba, tema espinhoso do carnaval contemporâneo. Para isso, investiga o caso Imperatriz Leopoldinense 2002, considerado um símbolo da problemática. A análise dos discursos tecidos sobre o enredo Goitacazes: Tupi or not Tupi, in a South American Way!, patrocinado pelo município de Campos (RJ), não apenas ilustra uma conjuntura conflitiva, mas dialoga com episódios do passado da festa - como os concursos financiados pela Coca-Cola, nos anos 50. Palavras-chave: escolas de samba; patrocinadores; carnaval.

ABSTRACT: The work proposes a reading about the relationship between sponsors and samba schools, a complicated topic of the contemporary carnival. For this, investigates the “Imperatriz Leopoldinense 2002 case”, considered a symbol of this problem. The analysis of some speeches about the narrative plot Goitacazes: Tupi or not Tupi, in a South American Way!, sponsored by the municipality of Campos (RJ), not only illustrates a conflictive situation, but dialogues with past episodes of this festivity - as the competitions financed by Coca-Cola in the 50s. Key-words: samba schools; sponsors; carnival.

Poucos poderiam imaginar que o desfile de 2002 da escola de samba Imperatriz Leopoldinense, a então campeã do carnaval carioca (e que entraria na Marquês de Sapucaí fazendo jus à fama de “bicho-papão”, disposta a conquistar um inédito tetracampeonato), terminaria nos autos judiciais. A agremiação do bairro de Ramos, sob as pinceladas criativas da carnavalesca Rosa Magalhães (que já conquistara cinco títulos para a escola – 1994, 1995, 1999, 2000 e 2001), apresentou o enredo Goitacazes: Tupi or not Tupi, in a South American Way!ii, sobre a antropofagia (física e cultural) e as transformações pelas quais a figura do índio passou ao longo da história brasileira – dos relatos dos cronistas europeus (as “manifestações literárias” ou “literaturas de informação”) à arte contemporânea, passando pelo Romantismo de José de Alencar, pelo Modernismo de Oswald de Andrade e Tarsila do

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Amaral, pelo cinema de Joaquim Pedro de Andrade (que levou para as telas o Macunaíma de Mário de Andrade) e pelas letras lisérgicas de Caetano Veloso e Gilberto Gil. Ao final, uma homenagem a Carmen Miranda, “musa” dos tropicalistas e símbolo da “pátria das bananas”, mix de “pequena notável” e “brazilian bombshell” – e, portanto, considerada um ícone dos ideais antropofágicos. Se a “primeira artista multimídia brasileira” encerrava o cortejo, quem abria a apresentação era uma criativa Comissão de Frente fantasiada, justamente, de “Bichopapão”, brincadeira debochada com a fama da escola e adequação perfeita à temática. Em linhas gerais, não faltaram garras, dentes e línguas à mostra.iii Um enredo inquestionavelmente rico do ponto de vista visual, cronologicamente longo (varre os pouco mais de 500 anos da “história oficial” brasileira, sendo que a abertura mergulhava mais fundo e apresentava um cenário pré-histórico, com dinossauros em meio a ossadas - um ritual de “grande comilança”, com acentos escatológicos) e intelectualmente denso (o que incomodou o corpo de jurados) rendeu à escola, terminada a apuração de quartafeira de cinzas, um discreto (se comparado aos resultados dos anos anteriores) terceiro lugar. Rendeu, também, uma demanda judicial que se tornou “folclórica” no “mundo do samba” – um exemplo utilizado repetidas vezes para ilustrar os polêmicos debates entre artistas e patrocinadores, tema espinhoso do carnaval contemporâneo. De certa forma, o julgador do quesito “enredo” Clécio Quesado, que atribuiu a nota 9,8 à Imperatriz Leopoldinense, tocou nesse ponto delicado ao argumentar o seguinte, em sua justificativa (disponível para consulta no Centro de Memória do Carnaval da Liga Independente das Escolas de Samba – LIESA): “De um tema pobre (Campos), extraiu um assunto rico (antropofagia). Pena ter trabalhado com tantas reduplicações internas: 03 índios goitacazes, 04 pescadores, 02 tropicalistas, 02 Carmens... Merecia maiores variações...” Para além das punições justificadas por Quesado, salta aos olhos a ideia de que a carnavalesca extraiu um “assunto rico” de um “tema pobre”, a cidade de Campos dos Goytacazes, localizada no Norte fluminense. Reportagens anteriores ao desfile já indicavam que as escolhas narrativas de Rosa Magalhães poderiam não agradar à administração do município, responsável pelo apoio financeiro concedido à escola. Na Folha de S. Paulo de 11 de fevereiro de 2002, o dia do desfile, a jornalista Sabrina Petry, da sucursal do Rio, redigiu, na matéria intitulada Imperatriz tenta o tetracampeonato hoje: A Imperatriz tenta hoje o tetracampeonato, com o enredo Goytacazes... Tupi or not Tupi, In a South American Way!, dedicado à cidade de Campos, reduto eleitoral do governador Anthony Garotinho (PSB). A escola costuma ter desfiles corretos, mas que não empolgam o público, e os campeonatos vencidos acabam provocando polêmicas. A Imperatriz recebeu R$ 1,8 milhões da Prefeitura de Campos para falar das "belezas" da

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cidade, mas a carnavalesca Rosa Magalhães preferiu contar a história dos índios goitacás, primeiros habitantes da região, porque, segundo ela, não havia nenhuma beleza no local. Apesar do marketing frustrado, o prefeito da cidade, Arnaldo Vianna, vai desfilar ao lado da mulher, Ilsan Vianna, sobre um dos carros alegóricos.iv

Claramente, o excerto jornalístico objetivava despertar fagulhas - a afirmação de que “Rosa Magalhães preferiu contar a história dos índios goitacás, primeiros habitantes da região, porque, segundo ela, não havia nenhuma beleza no local” é bastante categórica e reducionista; da mesma forma, a ideia de “marketing frustrado” não deixa de ser um préjulgamento. Em entrevistas e debates realizados posteriormente, a carnavalesca deixou claro que o enredo não foi produto de uma escolha imediatista, mas de vasta prospecção bibliográfica iniciada com a leitura de documentos oficiais (as atas da Câmara dos Vereadores): a justificativa para falar de índios e antropofagia estava na tentativa de fugir do óbvio, ou seja, representar as “coisas da cidade” (poços de petróleo, canaviais e engenhos, o doce chuvisco), belas ou não, sob o ponto de vista turístico e/ou empresarial. Sobre o processo criativo (artístico), narrou, em seu livro O inverso das origens (no qual divide relatos pessoais com análises histórico-literárias de Maria Luiza Newlands): Decididamente, o açúcar tinha de sair do tema sobre Campos, porque fazer duas vezes o mesmo enredo era impraticável. No ano anterior, já havia falado da cana-de-açúcar, da sua trajetória até chegar ao Brasil, do refino do açúcar pelos venezianos, dos engenhos e moendas, da arte barroca, da Inconfidência Mineira e da cachaça. Como poderia voltar ao mesmo assunto? Algumas pessoas desprovidas de imaginação aguardavam um desfile baseado no doce típico de Campos, o chuvisco, no açúcar e no melado. E o que é pior, externaram essa ideia. Pois fui exatamente para o lado oposto. Comecei a viagem do enredo pelo nome da cidade – Campos dos Goytacazes. Li até debates da Câmara de Vereadores sobre o nome, como deveria ser escrito, se com i ou com y.v

Pouco depois do desfile, na madrugada de 12 de fevereiro de 2002, a página virtual da GloboNews abordou o tema, em matéria intitulada Imperatriz Canibal: No Carnaval de 2002, a vitoriosa carnavalesca Rosa Magalhães ganhou um patrocínio da cidade de Campos (RJ). Para não ter que falar em petróleo e chuvisco, acabou desencavando a curiosa história dos índios antropófagos goitacazes. Trouxe para a avenida a história de sua resistência à aculturação numa boa, no estilo South American Way. O Abre-Alas, Comilança, é baseado no Manifesto Antropofágico (sic), de Oswald de Andrade. O carro, que seguia a comissão de frente de bichos-papões, foi feito com restos de outros, usados em anos anteriores. Ora, afinal, como diz o samba-enredo, o "índio virou anarquista". Assim, essa imensidão de índios brasileiros se derramou pela Marquês de Sapucaí - com referências ao tropicalismo e, como disse Rosa Magalhães, à rainha da cafonice, Carmen Miranda, na pele de Luíza Brunet - e fez (mais) um desfile voraz. Será que a fome de títulos da escola da zona da Leopoldina será saciada?vi

Afora os pontos mal apurados (Luiza Brunet não representava Carmen Miranda; o carro baseado no Manifesto oswaldiano não era o Abre-Alas, mas a quinta alegoria – que

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também reproduzia telas de Tarsila do Amaral), a matéria apresentou um panorama do desfile e deixou o julgamento para o corpo de jurados. Críticas impiedosas, porém, ganharam as páginas jornalísticas nos dias que se seguiram ao desfile. A prefeitura de Campos, descontente com o que viu na avenida, deflagrou guerra à agremiação e não poupou adjetivos negativos para o trabalho de Rosa Magalhães. Sobre isso, a jornalista Débora Batista, do portal de notícias UOL, escreveu, em 15/02/2012:

CAMPOS, RJ - O Carnaval 2002 não está sendo dos melhores para a Imperatriz Leopoldinense. Além de não conseguir o tão sonhado tetracampeonato, a diretoria da escola ainda pode ser alvo de um processo da prefeitura de Campos. Isto porque o prefeito Arnaldo Vianna não gostou do que foi apresentado na avenida. Ele, que conseguiu a quantia de R$ 1,8 milhão para a carnavalesca Rosa Magalhães, teme que a população, descontente com o que foi mostrado na TV, reclame que nenhuma medida foi tomada. "Ainda não decidimos processar a Imperatriz", afirmou o procurador do município de Campos, Élson de Oliveira. Ele diz que quer analisar fitas do desfile para conferir se o que foi mostrado através de carros alegóricos e alas está em conformidade com o que a prefeitura pediu e foi assinado em contrato com a Imperatriz. O secretário de Comunicação de Campos, Hélio Cordeiro, faz questão de esclarecer que, apesar do município ter dado à escola quase R$ 2 milhões, o dinheiro não saiu só dos cofres públicos. "A prefeitura colaborou com uma parte e o restante conseguiu com um grupo de empresas, como o Banerj e a Petrobras". Hélio Cordeiro disse que o prefeito considerou que seria um grande marketing para Campos apostar na Imperatriz Leopoldinense, tricampeã do carnaval. Mas não foi o que aconteceu. Não foi mostrado na Sapucaí que a cidade foi a primeira da América do Sul a contar com energia elétrica, ou que o presidente Nilo Peçanha e o abolicionista José do Patrocínio nasceram no município. "Eu vi muita banana e tubarão na avenida. Nunca soube que Campos tivesse essas coisas", comentou o técnico de informática Rodrigo Pessanha de Souza.vii

Também a versão digital do Jornal Nacional, na matéria Confusão no carnaval do Rio, igualmente publicada no dia 15 de fevereiro, tratou da polêmica – confrontando diretamente as visões da prefeitura e da carnavalesca: A prefeitura não gostou do que viu. "Só os índios goytacazes, aquele aspecto do canibalismo dos índios goytacazes frustrou todos nós", declarou Fernando Leite, representante da prefeitura de Campos. "A gente deve ter muito orgulho desse DNA indígena e não rejeitar e achar que não tem nada a ver com a cidade, quando ela mesma se chama Campos dos Goytacazes", diz a carnavalesca da Imperatriz, Rosa Magalhães.viii

O jornalista Carlos Eduardo Machado, natural da cidade de Campos, redigiu uma coluna (quase um manifesto) sobre o assunto, em 18 de fevereiro de 2002. Intitulado Campos, sinônimo de riqueza, história e calor humano, o texto foi publicado no jornal O Documento, de Cuiabá, “tomando as dores” do “município traído”. O seguinte trecho demonstra a nãocompreensão da proposta de Rosa Magalhães:

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Neste carnaval, Campos foi homenageada pela Escola de Samba Imperatriz Leopoldinense, com a representação da tribo Goytaca (primeira civilização do local). Percebi um destaque maior à figura de Carmen Miranda, o que não tem nada a ver com a história do índio Goytacá, da tribo valente e persistente como o suor de sua gente. Curiosamente o apagão chegou e o fato de Campos ter sido a primeira cidade da América do Sul com luz elétrica nem sequer foi mencionado.ix

O protesto da prefeitura ganhou maior projeção no sábado das campeãs: prefeito, primeira-dama (que fora destaque da terceira alegoria do desfile oficial), vereadores e demais políticos da cidade não participaram do desfile da Imperatriz Leopoldinense, que, debaixo de forte chuva, reapresentou o “delírio tropical” (modo como o enredo foi chamado pela edição especial de carnaval da extinta revista Manchete). A transmissão televisiva da rede Bandeirantes enfatizou a polêmica e conseguiu arrancar poucas palavras da carnavalesca: “Eu falei de Campos, sim!” A controvertida apresentação terminou, mas a confusão judicial apenas começava. Os discursos tecidos ao redor do desfile da Imperatriz Leopoldinense revelam pontos interessantes para se pensar a relação entre patrocinadores e agremiações carnavalescas, algo mais antigo do que parece. Se o enredo sobre a antropofagia apresentado em 2002 se tornou icônico, é fato que a dita “mercantilização do samba” pode nos levar a episódios um tanto nebulosos da história do ziriguidum, como os concursos financiados pela Coca-Cola, em parceria com o jornal Última Hora, no final da década de 1950 (o evento ocorreu de 1957 a 1962). O tema foi investigado por Guilherme José Motta Faria, no artigo Uma tradição esquecida: os desfiles patrocinados pela Coca-Cola e Jornal Última Hora, publicado nos Anais da VII Semana de História Política da UERJ. No texto, o autor analisa as reportagens jornalísticas que se ocupavam de divulgar o curioso concurso de desfiles extra-oficiais (que ocorriam no período pré-carnavalesco, originalmente na Praça Barão de Drumond, antiga Praça Sete e Jardim Zoológico de Vila Isabel - lugar historicamente ligado ao universo das escolas de samba, uma vez que ali nasceu o Jogo do Bicho x) em que agremiações como Unidos do Cabuçu, Unidos do Salgueiro, Unidos de Vila Isabel, Estação Primeira de Mangueira, Unidos do Deserto, Portela, Império Serrano, Paraíso do Tuiuti, Unidos da Tijuca, Unidos de São Carlos e Acadêmicos do Salgueiro cantavam jingles publicitários (em “homenagem” à Coca-Cola, evidentemente) em ritmo de samba-enredo.xi O tema é verticalizado no artigo Isto faz um bem!: as escolas de samba, a Coca-Cola e a “invasão da classe média” no carnaval carioca dos anos 50, de Danielle Kiffer e Felipe Ferreira. Os pesquisadores, observando o mesmo fenômeno que despertou a curiosidade de Guilherme José Motta Faria, entendem que a análise do concurso revela que os anos 50 foram

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muito dinâmicos, no contexto das escolas de samba: a “invasão da classe média” mencionada no título do artigo (costumeira e levianamente associada ao advento da figura do “carnavalesco profissional” oriundo de outras esferas artísticas, inclusive da Academia – visão personificada em Fernando Pamplona e na “escola” que ele encabeçou, formada por nomes como Arlindo Rodrigues, Maria Augusta, Joãosinho Trinta, Rosa Magalhães e Renato Lage –, e à mercantilização dos desfiles) não se deu de uma hora para a outra, ao contrário – foi produto de um longo e multifacetado processo de conflitos e negociações. Além disso, consolida-se a ideia de que a capacidade que as escolas de samba possuem de dialogar com entidades privadas e marcas de produtos não é de hoje: nos anos 50, associações que, sob o olhar “tradicionalista” e/ou “purista”, parecem injustificáveis e terrivelmente prejudiciais ao “correto” tratamento que se deve dar o samba já eram feitas, sem muita cerimônia. Dizem os autores:

Mais do que expressão de um imperialismo globalizante e totalitário, a estreita relação estabelecida entre um dos maiores símbolos do americanismo – a Coca Cola – e as grandes representantes da “pureza” e criatividade do “povo brasileiro” – as escolas de samba cariocas – foi um momento de intenso diálogo no qual se discutiram conceitos básicos para a afirmação desses grupos carnavalescos como “o maior espetáculo da Terra”.xii

A confusão ocorrida em 2002, portanto, está inserida em uma duração histórica maior e mais enovelada. O que parece claro é que, no caso do enredo concebido por Rosa Magalhães, a compreensão de parte do público leitor (aquele que esperava ver as “belezas, as riquezas e os sabores” do município de Campos na avenida) restou prejudicada. É possível identificar, a partir dos fragmentos jornalísticos coletados, uma instantânea oposição entre o imaginário trabalhado no desfile (com símbolos como tubarões, bananas e Carmen Miranda) e o imaginário que os defensores da prefeitura de Campos acreditavam verdadeiramente dizer respeito ao município (com símbolos como energia elétrica, cana-de-açúcar, chuvisco e plataformas de petróleo). Na visão governamental, o lugar somente seria homenageado se exaltado enquanto tesouro histórico, polo energético, boa mesa e berço de personalidades notórias. Fica subentendido, ainda, que no contrato de patrocínio havia especificações sobre a temáticaxiii, ou seja, um dirigismo estatal, com vistas à divulgação de um produto e ao enaltecimento deste a partir da ótica mais convencional possível, qual seja, a da “história oficial” nua e crua (“primeira cidade da América do Sul com luz elétrica”, “terra de engenhos de açúcar”, etc.) utilizada a favor da propaganda política.

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Em outro plano de análise, diante da complexidade teórica e visual do espetáculo apresentado pela escola de Ramos, causa estranhamento o fato de os governantes de Campos não terem utilizado o desfile a seu favor, afinal, da mesma forma que é possível a afirmação (restritiva) de que tubarões, bananas e Carmen Miranda são elementos estranhos ao local “homenageado”, é possível expandir a visão (exercitando o olhar dialético, portanto) e enxergar Campos dos Goytacazes enquanto berço de uma das mais extraordinárias facetas da vida cultural brasileira, aquela profundamente associada ao indianismo e ao conceito desdobrável de antropofagia. A verdade é que, passados treze anos, Goitacazes... Tupi or not Tupi, in a South American Way! é mais lembrado pela polêmica do patrocínio que pelo conjunto visual desenhado por Rosa Magalhães. Cada vez mais, enredos sobre cidades, estados e países desenvolvidos pelo prisma das homenagens institucionalizadas (popularmente chamados enredos CEP) são mal vistos pela crítica carnavalesca. Cada um à sua maneira, os carnavalescos tentam vestir os temas geográficas com roupas diferenciadas, o que às vezes surte efeito contrário: a narrativa convencional (alicerçada em uma sequência de acontecimentos cronológicos: primeiros habitantes, colonizadores, belezas naturais, costumes variados - culinária, festejos, música, dança, artesanato, artes em geral -, personalidades famosas, “progresso” e industrialização, futuro e final festivo) permanece à vista, apenas “maquiada”, o que tende a confundir a leitura. Isso ocorre porque a relação entre patrocinadores e artistas continua problemática, turva, gerando discussões exaltadas e por vezes infrutíferas. Felipe Ferreira, no texto Bumba meu Fusca, originalmente publicado em O Pasquim 21, nº 95, de 17 de janeiro de 2004, lamenta a maneira como a propaganda é feita (utiliza como exemplos os desfiles de Salgueiro e Beija-Flor de 2002, patrocinados, respectivamente, pelas empresas aéreas TAM e Varig) e levanta questionamentos: Não seria mais digno e simples se a veiculação de anúncios nas escolas fosse permitida e regulamentada? Por que não se fazer como nos teatros, onde o patrocínio de uma peça não implica elogio do patrocinador durante o espetáculo? Não dá nem para imaginar a Fernanda Montenegro tendo que se vestir de bomba de gasolina e representar um texto em louvor à Petrobras para obter patrocínio da empresa. Ao contrário, o patrocinador paga somente para veicular seu nome a algum projeto da atriz, e todo mundo lucra com isso. (...) Por que o mesmo não pode acontecer com, digamos, a Mocidade Independente de Padre Miguel? Um enredo sobre Arlindo Rodrigues podia ser patrocinado pela TAM, outro sobre circo poderia ser “gentilmente oferecido ao público” pela Varig. E por aí vai. As escolas e as empresas só teriam a lucrar com essa visão mais moderna da relação entre mercado e cultura. Por outro lado, os enredos se libertariam das constantes “homenagens” que muito mal disfarçam a grana oferecida pelos “homenageados”. É claro que isso tudo teria de ser discutido, com limites, regras e espaços de publicidade muito bem definidos. (...) O patrocínio precisa urgentemente deixar de ser visto como um bicho-papão e um limitador dos desfiles, para se transformar num elemento de libertação e de apoio à imaginação dos sambistas. Só assim vamos nos livrar de regras

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que desclassificam uma escola por causa de um único logotipo, mas aceitam enredos inteiros exaltando as qualidades dos serviços de bordo de uma empresa aérea.xiv

O jornalista Fábio Fabato e o professor de História Luiz Antonio Simas também contribuem para o debate, fazendo coro a Fernando Pamplona (notório antagonista dos temas patrocinados e defensor ferrenho da postura de Rosa Magalhães) e citando o enredo de 2002 da Imperatriz Leopoldinense como exemplo de “lençol” dado pela carnavalesca no patrocinador dirigista. No texto A era do samba-jingle (cujo título revela uma escolha lexical semelhante àquela realizada por Diogo Mainardi para nomear a coluna publicada na edição da revista Veja de 13 de fevereiro de 2002, O jingle-enredo, texto em que os goitacazes são mencionados e os compositores do samba ironicamente criticados por alguém que parece não conhecer nem apreciar o carnaval carioca – logo, a “semelhança” fica restrita ao títuloxv), publicado na edição de O Globo de 26 de agosto de 2012, os autores apresentam o enredo de 1985 do Império Serrano, Samba, suor e cerveja, o combustível da ilusão, desenvolvido pelos carnavalescos Renato Lage e Lilian Rabello, como aquele que primeiro recebeu “aporte corporativo” – no caso, patrocínio de uma cervejaria. O acordo não teria sido bem recebido pelos “patronos” (lideranças do Jogo do Bicho) que investiam fortunas nas demais escolas temiam eles perder espaço para o capital privado. Dessa disputa simbólica mediada pelo dinheiro teria surgido a proibição de qualquer merchandising explícito em desfiles de escolas de samba, algo que permanece até hoje (2015), salvo nas camisas dos empurradores das alegorias (algo cada vez mais raro na era dos carros motorizados). Nos anos 2000, porém, consolidou-se a prática do “patrocínio (mal) maquiado”: no caso de produtos, a marca não é apresentada explicitamente em fantasias e alegorias, ainda que menções claras (para não dizer óbvias) sejam feitas (caso dos citados desfiles de Salgueiro e Beija-Flor, no ano de 2002, ou do emblemático enredo da Unidos do Porto da Pedra para o carnaval de 2012, sobre o iogurte; intitulado Da seiva materna ao equilíbrio da vida, a logomarca da empresa patrocinadora, Danone, não foi apresentada na avenida - porém figurava em todo o material de divulgação da escola de São Gonçalo). No caso dos patrocínios provenientes de lugares, por meio de acordos políticos, a resolução é mais simples: não há logomarcas a serem “vendidas”, mas uma tabela de atrativos turísticos e empresariais. Fabato e Simas se debruçam sobre tal conjuntura e criticam os patrocínios “sem fins culturais” (o que está expresso no seguinte trecho: “Não se trata de patrocínio cultural (...), mas sim a quase completa abertura para marcas, países, raça de cavalo e até mesmo uma campanha ligada à divisão dos royalties do pré-sal (...)”xvi) e afirmam: “poucos se dignaram a pensar se a lógica de associação das escolas com o capital empresarial está estruturada de 1660


forma correta. A coisa passou a funcionar, grosso modo, assim: o cara paga, compra um enredo, e leva de brinde uma hora e meia de exposição.” O caso Beija-Flor de Nilópolis 2015 reacendeu a discussão, gerando grandes debates nas redes sociais. A escola teria recebido o estrondoso montante de 10 milhões de reais para louvar as belezas naturais e a história da Guiné Equatorial, país africano governado pelo ditador Teodoro Obiang. Em coluna sobre o debate ético envolvido nisso, o jornalista Ricardo Noblat, no jornal O Globo de 11/02/2016, usou o caso Imperatriz 2002 como contraponto:

Carnaval patrocinado não quer dizer necessariamente carnaval chapa-branca, um tributo a quem paga as despesas. O carnavalesco dá corda à imaginação e explora o que pode render de mais atraente. Uma vez a prefeitura de Campos pagou para que a Imperatriz exaltasse suas realizações. A carnavalesca Rosa Magalhães falou dos índios Goitacazes que viveram em Campos. Teve gente na prefeitura que queria o dinheiro de volta. Depois desistiu.xvii

Campeã do carnaval de 2015, a escola nilopolitana decidiu mudar as regras do jogo para 2016: ciente da repercussão negativa do acordo realizado com o governo de Obiang, disse não a uma ainda mais astronômica proposta de patrocínio para homenagear o jogador Ronaldo Fenômeno. Optou por falar da história do Marquês de Sapucaí, personalidade histórica que dá nome à Avenida dos desfiles. Ao final dessa visão panorâmica sobre um terreno tão movediço brotam questionamentos que, alimentados pelo artigo de Danielle Kiffer e Felipe Ferreira, parecem longe das respostas prontas: como determinar o caráter cultural de um tema a ser patrocinado e transformado em enredo de escola de samba? Quais os riscos do dirigismo estatal? Os reais desdobramentos de 2002, é possível mensurá-los? Percebe-se, pois, que a relação entre patrocinadores e escolas de samba é um enredo de difícil digestão – e que, certamente, os goitacazes de Rosa Magalhães continuarão a ser invocados por muitos e muitos carnavais. O bicho-papão permanece no telhado.

Mestre e doutorando (bolsista CNPq) em Ciência da Literatura – Teoria Literária (UFRJ), Bacharel em Direito (UFPR) e Licenciado em Letras Português-Inglês (PUCPR). Orientador: Prof. Dr. Frederico Augusto Liberalli de Góes. Co-orientador: Prof. Dr. Luiz Felipe Ferreira (UERJ). E-mail: leonardobora@gmail.com. ii A sinopse (texto escrito que serve de base para a composição do samba-enredo) do referido enredo está disponível para consulta no sítio http://www.galeriadosamba.com.br/carnavais/imperatriz-leopoldinense/2002/6/. Acesso em 12/09/2015. iii O desfile em questão, os desdobramentos dele e os seus antecedentes temáticos são o centro reflexivo da dissertação “A Antropofagia de Rosa Magalhães”, por mim defendida em fevereiro de 2014, no Programa de PósGraduação em Ciência da Literatura – Teoria Literária da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Este trabalho é um pequeno fragmento da pesquisa, sobre o qual procuro lançar novas luzes. Ver: BORA, Leonardo Augusto. A Antropofagia de Rosa Magalhães. Dissertação (Mestrado em Letras – Ciência da Literatura) –Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, 2014. i

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Disponível no sítio http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1102200225.htm. Acesso em 10/11/2013. MAGALHÃES, Rosa; NEWLANDS, Maria Luiza. O inverso das origens. Rio de Janeiro: Editora Novaterra, 2014. vi Disponível no sítio http://ww2.sescsp.org.br/sesc/hotsites/paisagem0/pesquisa_ver.cfm?ItmId=19. Acesso em 10/08/2013. vii Disponível no sítio http://noticias.uol.com.br/ajb/2002/02/15/ult741u3289.jhtm. Acesso em 19/11/2013. viii Disponível no sítio http://jornalnacional.globo.com/Telejornais/JN/0,,MUL540397-10406,00CONFUSAO+NO+CARNAVAL+DO+RIO.html. Acesso em 18/11/2013. ix Disponível no sítio http://www.odocumento.com.br/artigo.php?id=36. Acesso em 18/11/2013. x Sobre as relações entre o Jogo do Bicho (a chamada “contravenção”) e as escolas de samba cariocas, ver CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro. Festa e contravenção: os bicheiros no carnaval do Rio de Janeiro. In: CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro; GONÇALVES, Renata (org.). Carnaval em múltiplos planos. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2008, p. 91/124. xi Ver FARIA, Guilherme José Motta. Uma tradição esquecida: os desfiles patrocinados pela Coca-Cola e jornal Última Hora. Artigo publicado nos Anais da VII Semana de História Política da UERJ – 2012. Disponível no sítio http:// semanahistoriauerj.net/wordpress/wp-content/uploads/2014/06/Anais-2012-Semana-de-HistoriaPolitica-PPGH-UERJ.pdf. Acesso em 10/06/2015. xii FERREIRA, Felipe; KIFFER, Danielle. Isto faz um bem!: as escolas de samba, a Coca-Cola e a “invasão da classe média” no carnaval carioca dos anos 50. Mimeo. xiii É o que se deduz a partir da notícia Imperatriz pode ser processada por quebra de contrato, publicada no portal Diário OnLine, em 15 de fevereiro de 2002. O texto afirma: “A escola de samba Imperatriz Leopoldinense, terceira colocada no Grupo Especial deste ano, pode ser processada por quebra de contrato. A agremiação desfilou com o enredo Goytacazes... Tupi or not Tupi (sic) e recebeu metade de seu orçamento (R$ 1,8 milhão) da Fundação Municipal Jornalista Oswaldo Lima. Segundo o contrato, a escola deveria abordar a história e personalidades de vulto nacional oriundos da cidade, mas citou apenas os índios no título. O procuradorgeral de Campos, no Rio de Janeiro, decide nesta segunda-feira se processa a escola ou não. A direção da Imperatriz alega que a sinopse estava pronta em julho, e, mesmo, assim, o dinheiro foi repassado. (...) Disponível no sítio http://www.dgabc.com.br/Noticia/119443/imperatriz-pode-ser-processada-por-quebra-de- contrato. Acesso em 26/11/2013. xiv FERREIRA, Felipe. Bumba meu Fusca. In: FERREIRA, Felipe. Escritos carnavalescos, p. 194/195. xv O autor diz: “O pessoal do Carnaval é inventivo para bolar apelidos, mas fica muito a dever quando decide transformar sambas em jingles publicitários. Um jingle publicitário é feito para vender. Nesse caso, as empresas que financiam o Carnaval deveriam ter contratado diretamente profissionais do ramo para compor os enredos. (...) Com o intuito de homenagear a cidade de Campos, terra do governador Garotinho, a Imperatriz Leopoldinense exalta o canibalismo dos índios goitacazes: "São ferozes, são vorazes, vida de antropofagia, índio come gente, quem diria. (...) Alguns tradicionalistas reclamam da transformação do Carnaval num veículo de marketing empresarial e político. Mas são uma minoria. A tendência é que cada vez mais empresas e governos invistam no negócio, inclusive porque não lhes custa nada, já que podem usufruir das leis de incentivo cultural. Pelas regras atuais, é proibido expor marcas de produtos nos carros alegóricos, mas tenho certeza de que, em breve, a proibição será contornada, tornando o investimento ainda mais oportuno.” Disponível no sítio http://veja.abril.com.br/130202/mainardi.html. Acesso em 19/11/2013. xvi Disponível no sítio: http://opiniao.galeriadosamba.com.br/post/a-era-do-samba-jingle/85/opt/1/. Acesso em 19/11/2013. xvii Disponível no sítio http://oglobo.globo.com/rio/carnaval/2015/presidente-da-guine-equatorial-da-10-milhoespara-desfile-da-beija-flor-que-exalta-pais-15303852. Acesso em 12/09/2015. v

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