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5.2 A transmissão da lei simbólica
posição do analisante: quem ensina é o sujeito dividido” (QUINET, 2009, p. 55). Aquele que transmite também é sujeito dividido sob a rubrica da falta e, por conseguinte, o ensinante “é um trabalhador cuja construção de saber é ordenada por aquilo que não sabe, mas interroga” (QUINET, 2009, p. 55). Para o autor, ter o não-saber como uma referência não:
[...] implica um estímulo à ignorância, mas ao saber que leva a cingir o não-saber como produto e não ponto de partida. Este é da ordem do saber e não da ignorância crassa, pois a acumulação de saber é necessária à formação do psicanalista (QUINET, 2009, p. 56).
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É essa perspectiva que, segundo o autor, localiza a formação do psicanalista em lugar radicalmente diferente da “formação profissionalizante, como em uma escola de engenharia” (QUINET, 2009, p. 56), por exemplo. Depois de estabelecer os parâmetros que delineiam a posição ética da psicanálise como um saber não-todo, o autor destaca que a transmissão da mesma também ocorre pelo saber textual, por meio do comentário, interpretação e questionamento da obra freudiana: “deixar-se conduzir pela letra de Freud por meio de seu comentário literal é o método que Lacan propõe e que igualmente podemos usar em seus escritos” (QUINET, 2009, p. 57). Antes de continuarmos é preciso trazer outro âmbito da transmissão na psicanálise. Se com Quinet (2009) trouxemos um panorama que enfoca a transmissão no ensino da psicanálise, atentar-nos-emos agora à transmissão da lei simbólica.
5.2 A transmissão da lei simbólica
Prates Pacheco (2004), em seu artigo “Que destino dar à mensagem recebida? Apontamentos sobre a questão da transmissão na psicanálise”, traz-nos uma consistente reflexão sobre o tema. Apesar da problematização do artigo chegar até os seminários de Lacan da década de 1960, restringir-nos-emos às reflexões de Prates Pacheco (2004) referentes aos seminários “A relação de objeto” (LACAN, 1956-57/1995) e “As formações do inconsciente” (LACAN, 1957-58/1999), pois são os apontamentos que condizem com o recorte do presente estudo.
A autora nos lembra que, para além das heranças genéticas, existe a transmissão de uma herança simbólica efetuada através da linguagem e é justamente essa que nos possibilita a construção das nossas normas sociais e nos diferencia dos outros animais.
Para refletir sobre essa herança simbólica, Prates Pacheco (2004) destaca que a existência do humano só é possível a partir da linguagem. A autora relembra Vygotsty, que em seus estudos reivindicava que a constituição do homem resulta exatamente de relações mediadas por uma linguagem que opera em um plano diferente das interações presentes entre os organismos e o meio ambiente. A partir desse prisma, o qual demarca que a diferença do humano para os animais deriva justamente da constituição de um aparato linguístico e simbólico específico, a autora aponta também a grande importância da obra “Estruturas elementares de parentesco”, de Lévi-Strauss (1908/1982), que deixa claro que a “própria linguagem que se transmite é, por sua vez, o meio de transmissão” (PRATES PACHECO, 2004, p. 150), assim como esclarece, no que toca a relação social entre os sujeitos, a “função exercida pelo sobrenome de “marcar um lugar simbólico e sexual na estrutura familiar e social” (PRATES PACHECO, 2004, p. 150). Outra articulação que compõe o panorama proposto nesse artigo é a diferenciação que faz Saussure entre a fala e a linguagem, algo essencial para pensarmos a transmissão:
[...] se por um lado temos a língua como aquilo que “já está dado”, ou seja, algo que cada novo indivíduo recebe pronto ao nascer; por outro lado, a fala, sendo a vertente individual da linguagem, inclui a dimensão da criação desse indivíduo, na medida em que ele tem poder de criar a partir do código estabelecido, ao qual deve se submeter para se fazer compreender por seus pares. A dimensão da fala, entretanto, afeta aquela da língua, transformando-a continuamente (PRATES PACHECO, 2004, p. 151).
O que parece estar em total consonância com Lacan quando este afirma que: “a análise consiste em jogar com os múltiplos alcances da divisão que a fala constitui nos registros da linguagem: daí decorre a sobredeterminação, que só tem sentido nessa ordem” (LACAN, 1953/1998, p. 292). Essa divisão que a fala constitui na linguagem está também presente na ideia de que “através da linguagem, o inconsciente passa” (PRATES PACHECO, 2004, p. 151), pois, se os mecanismos da linguagem pelos quais o “inconsciente passa” são conhecidos, a metonímia e a metáfora, a maneira como isso sucede é da ordem da criação do indivíduo, da ordem da fala. E o destino desse movimento do inconsciente não é outro senão o grande Outro, lugar da rede simbólica que sobredetermina o sujeito. O próprio início da análise, segundo a autora, é um convite ao analisante fazer uma transmissão, a dizer sobre si (PRATES PACHECO, 2004, p. 151). Mas é nas formações do inconsciente – o sintoma, o sonho, o chiste e o ato falho – “que ‘algo’ da verdade do sujeito
passa” (PRATES PACHECO, 2004, p. 151). São as formações do inconsciente que trazem as mensagens do sujeito endereçadas ao Outro. A autora então se questiona: “será que, quando se trata da constituição de um sujeito, a carta sempre chega a seu destino? Como se recebe o Nome-do-Pai – essa passagem/bilhete que dá acesso ao simbólico?” (PRATES PACHECO, 2004, p. 152). É no seminário “A relação de objeto” (1956-57/2008), segundo Prates Pacheco (2004), que Lacan trabalha acerca do complexo de Édipo e seu papel de instaurador da ordem e da proibição do incesto, elucidando como a neurose tem seu ponto central relacionado à incapacidade da criança lidar com o complexo de Édipo. Dessa perspectiva, a neurose seria “uma suplência à insuficiência paterna” (PRATES PACHECO, 2004, p. 153), como no exemplo do “caso do Hans”, que precisou de seu objeto fóbico para amparar a insuficiência paterna. Entretanto, é no seminário seguinte, “As formações do inconsciente”, que Lacan (1957-58/1999) desenvolve em definitivo a ideia do pai como portador da lei (PRATES PACHECO, 2004). A metáfora paterna seria esse “nome no lugar propriamente simbolizado pela operação da ausência da mãe” (PRATES PACHECO, 2004, p. 153). Segundo a psicanalista, Lacan, no Seminário “As formações do inconsciente”, coloca o pai não como criador da lei, mas como mediador da lei que já está historicamente estabelecida; o pai, ou outra pessoa que eventualmente for exercer a função paterna, transmite a lei à criança ao interditar seu acesso ao desejo da mãe e inscrever a metáfora paterna na ausência dessa.
Assim, o pai castra a criança e circunscreve a falta no campo do Outro. Ele o faz
fornecendo o falo “enquanto significação possível para o significante da falta do Outro S ()” (PRATES PACHECO, 2004, p. 155). Completa a autora:
[...] o falo do qual o pai é o portador fará uma suplência simbólica à falta representada pelo enigma (x) do desejo da mãe. Nesse momento da teoria, é a mãe desejante do falo (uma mãe histérica, por assim dizer) que instaura o pai real como agente da castração. Assim, retomando os comentários que fiz sobre o seminário 4, eu diria que o que “passa” na metáfora paterna é a significação fálica (PRATES PACHECO, 2004, p. 155).
É a inscrição da metáfora paterna que, ao instaurar a falta no campo do Outro, inaugura a cadeia significante na qual o sujeito sempre se situará naquilo que um significante representa para outro significante. Esse mesmo sujeito sempre se movimentará na direção de tentar restituir a completude originária e sempre fracassará diante do rochedo da castração,