Livro: Coração do morro - Histórias da Mangueira

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Coração do morro histórias da mangueira


Casa das Artes da Mangueira Coordenação geral Sueli de Lima Administração Maria das Graças Fortunato Produção Leila Moreno Vivien Pereira Realização Moledo Produções e Consultoria Ltda Pedro Nin Ferreira Assessoria de imprensa Palavra e Companhia Assessoria de Imprensa Nádia Ferreira

Núcleo de Registro Audiovisual Reportagem e criação de texto Alexandre Medeiros Fotografia Vantoen Pereira Jr. Gilson Lessa e Noélia Albuquerque (assistentes) Prática de laboratório fotográfico Gilson Lessa Vídeo Marilisse Navarro Gilson Lessa (assistente)

Núcleo Pesquisa Artística Capoeira - Associação de Capoeira Arte e Expressão Jean Lourenço (Corisco) Jader Shwuenk (Batman), Adriano Moreira (Glummy), Adriano Alves (Duende), Roberto Martins (Injuriado), Fabiano Pereira (Estalinho), Carlos da Silva (Kong) e Leonardo da Silva (BG) – assistentes Arte da reciclagem Sérgio Luiz Cezar

(copyright) © 2001 Moledo Produções e Consultoria Ltda moledo@ism.com.br

Patrocínio

Apoio

Realização


Coração do morro histórias da mangueira

Rio de Janeiro, 2001



O compromisso da Xerox do Brasil com os projetos sociais da Mangueira já faz parte da vida da companhia há muitos anos. Desde a sua fundação, pelo nosso saudoso dr. Henrique Gregori, a Xerox compreende a importância da hoje denominada "responsabilidade social corporativa". Fomos pioneiros. Além dos investimentos na política de recursos humanos e relacionamento com fornecedores e clientes, que nos distinguiu como uma das melhores empresas do Brasil, tornamos o Projeto Olímpico Mangueira / Xerox um paradigma de investimento social privado, reconhecido internacionalmente. Com o projeto da Casa das Artes, inauguramos o nosso investimento cultural na Mangueira. Também na área da cultura, a Xerox possui grande experiência. Do elenco de realizações podemos destacar o projeto Biblioteca Reprográfica Xerox, que publicou diversos livros de elevado valor cultural, e a edição de A Carta de Pero Vaz de Caminha – Documentos e Ensaios sobre o Achamento do Brasil, fruto de magnífico trabalho de pesquisa e uma homenagem da empresa aos 500 anos do Descobrimento. Há que se destacar que essas publicações foram feitas, integralmente, com a tecnologia Xerox de impressão, atingindo altíssimo padrão de qualidade como demonstramos com o livro A Carta de Pero Vaz de Caminha. Também neste livro Coração do Morro – Histórias da Mangueira estão impressas as marcas da nossa companhia: alta tecnologia de impressão e empresa socialmente responsável. Aos realizadores meus sinceros cumprimentos pela valorosa iniciativa. Às crianças da comunidade do morro de Mangueira, meus parabéns pelo sensível registro das suas vidas. Projetos como este nos renovam a esperança de um futuro melhor para o Brasil.

Guilherme Bettencourt Presidente da Xerox do Brasil

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A Casa das Artes da Mangueira consolida a iniciativa da Xerox em investir em ações culturais com propósitos de desenvolvimento social. Como uma empresa pioneira no investimento social privado no Brasil, através do Projeto Olímpico Mangueira / Xerox, aprendemos muito nes-ses 20 anos de ações sociais. Ações que nasceram com o mágico encontro de pessoas como Carlos Dória, Chiquinho, Inalda, Agrinaldo, Tia Alice e João Carlos Quintanilha que merecem nossa admiração e agradecimento pela capacidade de transformarem nosso sonho em sucesso. Acreditamos que a atividade esportiva contribui para a transformação da vida de milhares de jovens que vivem em situações de risco social e, visando atingir este objetivo, erguemos e mantemos com grande êxito há 15 anos, juntos com o comunidade da Mangueira e o Estado, o maior complexo esportivo para o desenvolvimento social da América Latina. Da mesma forma, acreditamos que as atividades artísticas e culturais possuem enorme potencial transformador das precárias condições de vida enfrentadas pelos jovens da comunidade do morro da Mangueira. Um paralelo com o Projeto Olímpico impõe-se pela determinação da Xerox em desenvolver todo o potencial da ação cultural na comunidade da Mangueira. A Casa das Artes veio para ficar, e se multiplicar. Com apenas dois anos de trabalho, a ação cultural da Xerox na Mangueira nos presenteia novamente. Agora com uma verdadeira pérola que é este livro criado pelos próprios jovens da comunidade. Sem falar nos vídeos que eles fizeram e que serão apresentados em centros culturais, ONGs, empresas e entidades de classe. Nos dá muita alegria acompanhar o desenvolvimento dessas cri-anças. Mas isso também nos lembra a enorme responsabilidade que temos em manter e ampliar, incansavelmente, as ações de desenvolvi-mento social das empresas. Sob diversas denominações e conceituações essa consciência vem crescendo rapidamente em todo o mundo. E a Xerox do Brasil orgulha-se de ter assumido esse compromisso desde a sua fundação. Parabéns, Mangueira de ontem, de hoje e do amanhã! Viva eterna Mangueira! José Pinto Monteiro Diretor de Assuntos Corporativos Xerox do Brasil

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...E a família mangueirense continua crescendo e se fortalecendo. Agora temos a Casa das Artes a cuidar do lado artístico das crianças e jovens da nossa comunidade. O resultado do trabalho artístico realizado ano passado, ainda como Núcleo de Cultura Nação Mangueirense, já demonstrou como o trabalho da Casa das Artes é importante para a família mangueirense. Hoje, a Mangueira não é só uma Escola de Samba, é uma escola de vida. Há muitos anos vimos realizando diversos projetos sociais de grande importância para a nossa comunidade. Essa experiência me faz ter a certeza de que também colheremos muitos frutos com a nova iniciativa. O exercício da criatividade e da liberdade de pensamento sempre foi alimento dos grandes mestres e baluartes da querida Mangueira. A ampliação dessa possibilidade para os nossos filhos só faz engrandecer a alma de todos os mangueirenses. Por isso, eu saúdo a chegada da Casa das Artes da Mangueira, motivo de mais uma alegria para a imensa família verde e rosa.

Álvaro Caetano Presidente do G. R. E. S. Estação Primeira de Mangueira

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Novamente a mulher! Mais uma vez uma ação social da Mangueira a coloca em destaque, agora com a atividade artística. A Casa das Artes da Mangueira já mostrou a que veio e ganhou o reconhecimento e o respeito da comunidade. O sensível trabalho de Sueli de Lima e a dedicação de Maria das Graças Fortunato às crianças do morro inspiraram-se no exemplo de mulheres como vovó Lucíola, tia Alice, tia Zica e tia Neuma, símbolos da força feminina em nossa comunidade. Força também cultivada pelo Departamento Feminino da Escola de Samba Estação Primeira da Mangueira, do qual Graça é uma das integrantes. Conhecer e respeitar os símbolos da nossa querida Mangueira é o melhor caminho para a formação das nossas crianças. E o resultado do trabalho que vem sendo desenvolvido não poderia ser outro. Acredito firmemente que essas sementes agora plantadas irão germinar com força e beleza em nossa comunidade verde e rosa. Com a minha experiência de coordenadora dos Projetos Sociais da Mangueira posso dizer que cada um deles tem a sua personalidade e a Casa das Artes já mostrou a sua. À mulher mangueirense, o reconhecimento de sua importância na condução dos nossos dias presentes e na construção do futuro de nossa comunidade.

Célia Regina Domingues Coordenadora do Programa Social da Mangueira

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Leis de incentivo: um caminho para a democratização da cultura Diversos projetos como a Casa das Artes da Mangueira vêm se tornando realidade graças ao apoio das leis de incentivo à cultura. Essas leis permitem que parte dos impostos devidos seja aplicada diretamente pelas empresas em projetos culturais credenciados. Hoje, este benefício fiscal já envolve o imposto de renda, através da Lei Rouanet, o ICMS e o ISS de alguns estados e municípios brasileiros. Esses instrumentos são fundamentais para a democratização do investimento do poder público na cultura, ao possibilitar que projetos culturais não comerciais sejam viabilizados num espectro muito mais amplo de relações da sociedade, não dependendo mais da decisão exclusiva de um órgão de governo. Através das leis de incentivo à cultura, variados projetos podem ser viabilizados a partir de articulações de interesses entre contribuintes, profissionais da cultura e o público. Apesar de ser uma experiência ainda recente em nosso país, caminhamos para a crescente institucionalização desses instrumentos de incentivo, com o aperfeiçoamento dos seus mecanismos e a ampliação do seu uso por governos e empresas. Ano passado, com o incentivo da Lei Municipal de Cultura, produzimos o projeto Núcleo de Cultura Nação Mangueirense, primeira ação cultural patrocinada pela Xerox na Mangueira. Em 2001, nossa ação cultural no morro de Mangueira ganhou corpo com a criação da Casa das Artes. Vimos promovendo histórias de sucesso como esta em diversos outros lugares. Há três anos produzimos projetos semelhantes em comunidades de baixa renda na região do Capão Redondo, zona sul de São Paulo. Em 2002, estaremos iniciando uma ação cultural nos morros de Vila Isabel, no Rio de Janeiro. Para tudo isso ser possível, foi indispensável o apoio das leis de incentivo à cultura e o firme interesse da Xerox em patrocinar projetos dessa natureza. Nessa experiência, nossa maior constatação é o quanto realmente imenso é o abismo que separa a oferta de possibilidades de desenvolvimento cultural das comunidades de baixa renda do restante da sociedade. Por isso, nessas comunidades a demanda cultural é sempre explosiva e a ação cultural potencialmente transformadora. Felizmente, a mensagem que vem se espalhando pelo país inteiro é que não dá mais para depender apenas das ações governamentais para acabar com o abismo cultural existente. A cada um de nós cabe uma parcela de responsabilidade para a mudança radical dessa situação. E, agora, ainda podemos contar com as leis de incentivo à cultura para ajudar neste processo.

Pedro Nin Ferreira Diretor Executivo Moledo Produções e Consultoria pedronin@ism.com.br

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sumá rio Quebrando o silêncio Primeiro capítulo Segundo capítulo

Terceiro capítulo Quarto capítulo

Sueli de Lima

Educação

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Família

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Saúde

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Arte

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A terceira margem do morro Olhares... da Mangueira

Alexandre Medeiros

Vantoen Pereira Junior e Noélia Albuquerque

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crianรงas brincando


I nt rod ução

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silên cio

Sueli de Lima*

Coordenadora da Casa das Artes da Mangueira

A Casa das Artes da Mangueira e este livro nasceram simultaneamente neste ano de 2001. São fruto de um trabalho iniciado há três anos – como Núcleo de Cultura Nação Mangueirense – quando, junto com os moradores da comunidade, procurou-se elaborar as bases do que viria a ser um projeto cultural da Mangueira. Nas nossas andanças pelo morro, conversando e, principalmente, ouvindo seus moradores, destacamos dois pontos de interesse que foram estruturais para a elaboração do trabalho que seria desenvolvido na Casa das Artes da Mangueira/CAM. Havia um grande interesse pelas próprias histórias e memórias da comunidade e um enorme desejo dos moradores por aulas relacionadas às diferentes linguagens artísticas, como música, dança e artes plásticas. Um aspecto curioso na Mangueira, que não deixa de estar presente também na CAM, é o fato de a comunidade possuir uma forte intimidade com a arte e ter, na sua história, a presença marcante de grandes educadoras e artistas que, pioneira e intuitivamente, também utilizaram a arte e as manifestações folclóricas no trabalho com as crianças. Foi, portanto, para apoiar os moradores e ajudar a suprir seus interesses e necessidades que a Casa das Artes da Mangueira foi inaugurada, em fevereiro deste ano, com dois núcleos básicos: o Núcleo Audiovisual e o Núcleo de Pesquisas Artísticas. O Núcleo Audiovisual, com oficinas de fotografia, vídeo e reportagens, é responsável pela pesquisa das histórias da comunidade. Já o Núcleo de Pesquisas Artísticas é responsável pela pesquisa de arte e conta com uma oficina de artes plásticas e oficinas de capoeira em quatro pontos da comunidade – Chalé, Três Tombos, Pedra e Metrô. O Núcleo Audiovisual se dividiu em dois grupos: as oficinas de fotografia e reportagem, que trabalharam diretamente para a realização deste livro, e o 15


grupo de vídeo, direcionado para a produção de vídeos sobre a comunidade. No início dos trabalhos, a integração entre os dois grupos foi grande. Porém, à medida que o trabalho foi avançando, outros desafios foram se impondo e os grupos acabaram por tomar caminhos diversos. O objetivo do Núcleo Audiovisual foi o de dar voz aos jovens. Era preciso quebrar o silêncio, ouvi-los. Sobre o que queriam falar? Que assuntos seriam mobilizadores de uma pesquisa em que iriam dedicar alguns meses seguidos de trabalho? No início, o trabalho não foi fácil. Todos queriam falar de tudo, como se quisessem "tomar o mundo feito Coca-Cola": tudo era importante e tudo interessava. Durante dois meses, professores e alunos discutiram sobre a vida no morro, sobre a Casa das Artes, sobre a cidade, sobre o mundo. Juntos, fomos bebendo essa Coca-Cola e amadurecendo as idéias. Nessa convivência, fomos nos tornando "uma família", nos conhecendo, estabelecendo regras, discutindo nossos limites de atuação, elaborando um plano de trabalho. E foi assim que, de dentro e "em família", pudemos arrumar a nossa Casa, adquirindo os equipamentos que realmente precisávamos para o nosso trabalho. A escolha dos temas para as pesquisas se deu em uma reunião entre os professores e os representantes das turmas. Surpreendentemente, ou como era esperado, visto que tudo já tinha sido bastante discutido, os temas escolhidos pelas turmas tinham poucas diferenças. Os grupos haviam avançado em suas discussões de tal maneira que não foi necessário votar, chegou-se a um consenso: Família, Educação, Arte e Saúde. A escolha dos temas revelou o quanto as diferenças, que muitas vezes as condições socioeconômicas insistem em marcar, são apenas uma das faces do problema entre os jovens habitantes do morro e os do asfalto. Família, educação, arte e saúde são temas que atingem pessoas de diferentes grupos sociais. Precisamos pensar que a vida no morro e a vida no asfalto são os dois lados de uma mesma realidade, que é a vida do homem na cidade. Precisamos também parar de pensar na favela como um lugar que se caracteriza pela falta, para que morro e asfalto se aproximem e possa haver uma troca cultural que alimente a vida dos jovens tanto da classe média como a dos habitantes dos morros da cidade. Não quero de forma alguma esconder as desigualdades dramáticas que existem nos direitos e na qualidade de vida de quem vive no morro e daqueles que vivem em algumas áreas privilegiadas do asfalto, mas quero, sim, chamar a atenção, ou reforçar o debate travado por vários intelectuais, de que todas essas questões são problemas de um mesmo homem contemporâneo, habitante de uma mesma cidade. Todos nós, 16


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cidadãos cariocas, independente de onde moramos, estamos nos habituando à criminalidade, à violência em geral e somos, de certa forma, obrigados a encontrar formas de convivência com o problema. Não é só na favela que se encara situações de perigo, como também não é só na favela que adolescente não tem voz.

Casa das Artes da Mangueira

Orientamos nosso trabalho pela constatação de que a criança e o jovem precisam ser reconhecidos como agentes culturais de grande importância para o desenvolvimento de uma cultura saudável, viva e em constante transformação. O papel da arte (no nosso caso, através do domínio de mídias contemporâneas, como o computador, o vídeo e a fotografia) e seu poder de despertar no jovem o interesse na discussão sociocultural são muito relevantes, como já é do entendimento de todos. O que se observa neste trabalho é o quanto a aproximação entre a arte e a vida é fundamental para a elaboração de uma formação artística capaz de participar ativamente dessa silenciosa "revolução" que o terceiro setor vem realizando em diversas iniciativas pelo Brasil afora. A experiência da arte parece potencializar as possibilidades do homem neste mundo, onde a transformação se torna algo tão banal e cotidiano. Podemos nos aproximar um pouco do filósofo Walter Benjamin e lembrarmos que a função política da arte é garantir o encontro com a liberdade e, conseqüentemente, com a dignidade humana. Esta ação, portanto, não possui a lógica que muitas vezes domina o mercado cultural, ao buscar no morro a autenticidade da cultura popular, seja no samba ou nas manifestações folclóricas. Não é também mais um trabalho sobre a Mangueira escrito por quem não é de lá. O que pretendemos é promover as iniciativas dos moradores, com assessoria de pessoas de fora da comunidade, para resgatar a história do morro da Mangueira, aproveitando não apenas a fala de alguns moradores mais antigos, mas também as confrontando com o discurso da juventude que fará a Mangueira amanhã.

*suelima@ism.com.br

Antes que passemos às páginas deste livro, gostaria de ressaltar o apoio fundamental dado pela Xerox do Brasil que, além de ser a maior investidora nos projetos sociais da Mangueira, viabilizou este projeto. Gostaria também de agradecer a toda a equipe da Casa das Artes da Mangueira, especialmente a Maria das Graças que me dedicou tanta confiança, aos amigos que sempre colaboraram e às famílias dos nossos queridos 300 alunos pelo carinho. 17


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E quip e de Ed u caç ão Amanda Alves Cruz, 14 Ana Paula Vieira de Souza, 12 Daniela Ferreira Paiva, 13 Luana do Carmo Jesus, 12 Maybe Andreza Perez Soares, 13 Monique Paula dos Santos T. de Oliveira, 14 Natália Almeida de Souza, 11 Renan Portilho Lemos Bastos, 14 Samanta Alves Cruz, 13 Marcos Paulo Soares, 16 (crônicas sobre os quatro temas do livro)

Dona Gerci Donato


e d uca ç ã o As duas pontas da vida longe da sala de aula Luana do Carmo e Monique Paula

Luciene Gomes Alves é o nome de uma menina tímida de dez anos que não sabe ler nem escrever e se atrapalha para dizer o próprio sobrenome. Todos na Saloba, onde a menina mora, a conhecem pelo apelido de Moranguinha. Dona Gumercinda Gonçalves Pinto, de 65 anos, moradora dos Três Tombos, também não sabe ler e nem escrever. Quando tem que assinar o nome, numa loja, por exemplo, ela apresenta a sua carteira de identidade com o carimbo “analfabeta”. Moranguinha e dona Gumercinda não se conhecem, mas têm uma coisa em comum: passaram a vida inteira longe de uma sala de aula. No caso da criança, a professora Vera Lúcia Pires Ferrão, diretora da Escola Municipal Uruguai, a mais antiga da região da Mangueira, reconhece o grande problema que a comunidade enfrenta: “Deixar as crianças fora da escola é muito preocupante para nós, porque o aluno fica exposto a todos os tipos de problemas que só levam o mal para as crianças”. Moranguinha está longe de uma sala de aula contra a vontade: ela quer estudar e tem a vida inteira pela frente para isso. Também no caso de dona Gumercinda, apesar da idade avançada, nem tudo está perdido. A Escola Municipal José Moreira, na Pedra, cede salas e professores no horário noturno para adultos que queiram aprender a assinar seus próprios nomes. Nunca é tarde.

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Os primeiros erros Luana do Carmo, Maybe Andreza e Monique Paula

Pablo da Silva

É muito comum ver crianças brincando soltas no morro de Mangueira em qualquer horário do dia ou da noite. O triste é que muitas delas fazem isso o tempo inteiro porque não estudam. No dia 22 de junho de 2001, a Equipe de Educação foi até o bairro da Pedra, na parte alta do morro, e lá encontrou duas famílias com crianças e adolescentes fora de sala de aula.

Maria de Jesus Santos, de 61 anos, moradora da Mangueira há duas décadas, é avó de Antônio Manoel, de 14 anos, e de um menino conhecido como Gameleiro, de 12. No final de 2000, ela tentou matricular os dois na Escola Municipal Marechal Tompowsky, na Quinta da Boa Vista, mas não conseguiu vagas. Os dois meninos estão sem estudar desde o final do primeiro semestre de 2000. Maria de Jesus não soube dizer até que série eles cursaram, mas garantiu que os dois não fazem atualmente nenhum curso. “Eles não moram comigo, passam aqui de vez em quando e vivem de biscates”, disse ela. Um dos meninos disse que quer ser jogador de futebol. Os dois têm vergonha de falar sobre o assunto. A mãe dos meninos, segundo Maria de Jesus, teve um derrame há 16 anos e, desde então, é paralítica. Ela tem 37 anos, cinco filhos – três não estudam – e recebe o chequecidadão e uma aposentadoria para viver. É uma das cinco filhas de Maria de Jesus – há também cinco homens, totalizando dez filhos vivos. Outros cinco filhos de Maria de Jesus já morreram. 4

Marli da Silva mora bem perto de Maria de Jesus. Ela tem 52 anos e é tia de três meninos que não estudam. São filhos de uma irmã dela. Pablo, Felipe e Marcos Vinícius têm dez, nove e cinco anos. A história é a mesma. A mãe deles não conseguiu vagas nas escolas perto do morro. Os meninos brincam o dia inteiro. Os três são vizinhos de Juliana, que tem 15 anos. Ela já é mãe de um bebê de um ano e quatro meses. Parou de estudar quando ficou grávida, mas tem vontade de voltar aos estudos. Cuida sozinha do filho, com a ajuda da mãe Elisabete, e diz que não tem tempo de procurar vaga em escola.

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Maria de Jesus e filho

Moranguinha e seu desejo: estudar Douglas de Souza Galvão (Da Equipe de Família, em participação especial)

Luciene Gomes Alves

Luciene tem dez anos e não sabe dizer o sobrenome. Envergonhada, corre para casa e pede a uma vizinha que leia em um documento. Lá está o nome todo: Luciene Gomes Alves. Ela não sabe ler nem escrever. A última vez que pisou em uma escola foi em 1998, segundo a tia Simone, com quem passa a maior parte do dia, já que a mãe trabalha fora. “Ela tem que recomeçar do zero, do Jardim de Infância, não sabe fazer o a,e,i,o,u”, diz a tia, enquanto lava roupa no tanque coletivo da Saloba, na manhã de 14 de agosto de 2001. Comendo pão com mortadela e tomando um copo de café, a menina balança a cabeça para um lado e para o outro quando lhe perguntam se sabe ler ou escrever, mas diz que tem vontade de voltar a estudar: “No próximo ano, eu quero voltar a estudar de qualquer jeito, mas pena que vou começar do jardim”, diz Luciene, conhecida na comunidade pelo apelido de Moranguinha.

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A tia Simone diz que Luciene estudou pela última vez na escola da Vila Miséria, no alto do morro, já demolida: “A professora deu a ela o papel de transferência para a escola do Buraco Quente, mas ela perdeu o documento e desde então parou de estudar. Acho que a professora tinha que ter dado o papel para a mãe da menina e não para uma criança”, lembra a tia. Como não está na escola, Moranguinha tem tempo de sobra para brincar do que mais gosta: pular elástico. “Todo mundo por aqui conhece ela, a Moranguinha fica solta por aí, ela morou e costuma ir até hoje na Vila Miséria para brincar”, diz a tia Simone. Hoje, Luciene mora na Saloba. 21


Dona Gerci Donato

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O fim da linha Maybe Andreza e Monique Paula Na Mangueira há muitos adultos que nunca foram à escola. A maioria passou a infância na roça, no interior do Rio, de Minas Gerais ou do Espírito Santo, e veio mais tarde para a Mangueira. Em alguns casos, os pais chegaram a incentivar o estudo. Foi o que aconteceu com dona Gumercinda Gonçalves Pinto, de 65 anos, que perdeu a mãe muito cedo e foi trabalhar na roça com o pai. Ela ficou tão arrasada com a morte da mãe, sentiu-se tão sozinha, que preferiu trabalhar no lugar de estudar. A escolha foi dela. O pai já tinha até comprado cartilha, lápis, uniforme, tudo o que uma criança precisa para começar a estudar. Ela só tinha oito anos quando a mãe morreu e o pai, vendo que ela só ficava triste e não queria sair do seu lado, não a obrigou a ir para a escola. “Ele ficou com pena de mim”, lembrou dona Gumercinda. Ela não sabe ler, nem escrever o próprio nome. Casou cedo. Conheceu um rapaz aos 17 anos e foi mãe pela primeira vez aos 18. Teve nove filhos. “Estudaram até quando quiseram”, ela disse, confessando que não forçou nenhum deles a estudar. Já com os netos, é diferente. Dona Gumercinda faz questão de demonstrar que se arrepende muito de não ter estudado. “Digo a eles que eu tive uma oportunidade e desperdicei. Hoje me arrependo. Devia ter agarrado aquela chance com todas as forças. Quem tem mãe viva, deve zelar por ela. Quando a perdemos, só aí vemos a falta que faz.” 22


Um outro exemplo triste de analfabetismo é o de Gerci Donato, de 75 anos. O caso dela chama mais atenção por causa da solidão e das péssimas condições em que vive. Dona Gerci mora sozinha numa casinha de estuque, que nem banheiro tem, nos Três Tombos. No mesmo cômodo, ela dorme, faz comida, vê TV. Tem uma cama, uma geladeira velha, um fogão, TV em preto e branco. Companhia só a dos ratos, que não param de infernizar a vida dela. “Eu pego uma vassoura e dou neles, mas não desistem. Parece que eles conhecem a gente,” ela contou, em entrevista à Equipe de Educação no dia 20 de julho de 2001. Dona Gerci é mais uma velha moradora da Mangueira – chegou ao morro com 21 anos – que veio da roça sem estudo e assim ficou até hoje. Capixaba de Mimoso do Sul, ela trabalhava com os pais João Donato e Maria do Carmo em plantação de café e milho. Quando a mãe morreu, veio para o Rio de trem para ficar na casa de uma irmã que já morava na Mangueira. Foi no morro que conheceu o primeiro e único namorado, com quem se casou e teve um filho. O marido morreu há 12 anos. O filho único se chama Paulo César Donato, tem 33 anos e está preso há quatro anos no presídio da Água Santa. Dona Gerci não sabe muito bem o motivo que levou o filho para a cadeia, mas fala que ele se envolveu “em negócio de morte”. Paulo César chegou a estudar, mas não foi adiante por causa de uma doença mental progressiva. Ela disse que o filho vai sair em breve da cadeia porque já está no final da pena: “Se Deus quiser, ele vai construir um banheirinho aqui fora para mim”. Dona Gerci toma banho na casa de um outro irmão que mora na Mangueira. Tem que andar um bom pedaço de morro para isso. Ao contrário de dona Gumercinda, que teve o incentivo do pai, mas desperdiçou a chance, dona Gerci não recebeu em casa o menor apoio para estudar. “Meu pai

dizia que mulher aprende a ler e escrever para escrever carta para namorado e não me deixou ir para a escola. Guardo alguma mágoa dele por isso. Eu seria outra pessoa se soubesse escrever,” ela contou. O analfabetismo não a impediu de trabalhar. Na Mangueira, dona Gerci trabalhou numa fábrica e num botequim. Foi também doméstica em casa de família, mas perdeu muitos empregos porque não sabia nem assinar o nome. Da família, dona Gerci recebe pouca ajuda. Alguns vizinhos a auxiliam e amigos do filho preso todo mês doam a ela duas cestas básicas e R$50,00. Não tem direito à aposentadoria porque lhe informaram num posto do INSS que ela teria de ir até a cidade natal, no Espírito Santo, para tirar um registro de nascimento e dar entrada no pedido. Com problemas para andar e enxergar por causa de um derrame que sofreu há pouco tempo, dona Gerci desistiu da aposentadoria. Vive muito sozinha, mas não pensa em ir para um asilo. “Só quando eu não conseguir mais caminhar por mim mesma,” ela disse. Mesmo com tanta tristeza, ela ainda ri de algumas histórias de sua vida, gosta de conversar e continua a viver com um entusiasmo incrível.

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As lições da professora... Ana Paula Vieira e Natália Almeida

Dona Amélia, diretora da Escola Uruguai

Amélia Moreira Maurício Pinto poderia estar bem longe do trabalho, vivendo como milhões de aposentados, depois de 25 anos de serviços prestados à educação. Mas ela adora o que faz – e gosta muito da Mangueira. Por isso, nada de deixar o batente. Amélia é coordenadora pedagógica da Escola Municipal Uruguai há quatro anos e uma pessoa muito otimista. Segundo ela, a educação na Mangueira vive um momento fantástico: “Os projetos sociais e educacionais estão melhorando a vida de crianças e jovens, tirando-os das ruas, da violência e das drogas e levando-os para o caminho certo, que é o da educação”. Como diferença entre o ensino do passado e o de hoje, a professora destaca a liberdade, mas diz que o aluno deve saber usá-la. “Na minha época de estudante, os alunos não podiam dar sua opinião. Hoje, o aluno se coloca mais, fala mais, participa mais. Antes, o professor era o dono da verdade. Hoje, não. Sabendo colocar sua opinião, sem ser grosseiro e sem parecer que está contra o professor, o aluno pode contribuir para o processo educacional. É um avanço, não há dúvida,” ela lembra. A grande quantidade de adolescentes que engravidam e param de estudar é uma preocupação constante de Amélia. “Eu acho uma precipitação, uma imprudência. Tudo tem a sua hora. Eu realmente fico triste porque acho que elas deixam de viver uma parte importante da vida delas.” Na Escola Uruguai, a professora tenta convencer as adolescentes grávidas e jovens mães a não abandonar os estudos, mas nem sempre tem sucesso. Ou melhor, quase nunca. Outras duas questões que preocupam muito a professora Amélia são as crianças fora da escola e o trabalho infantil. Principalmente a última. “A questão do trabalho infantil é muito delicada. Às vezes, para uma família, a necessidade do trabalho fica maior do que a escola. Temos que estudar cada caso. Nós chamamos a família para conversar e tentamos mostrar a importância do estudo para a criança. Mas muitas vezes somos vencidos pelo mercado de trabalho, pela necessidade de dinheiro. Diante da sobrevivência, a educação perde. Mas isso não é legal, não. É um problema social muito sério em nosso país.” Para a professora, há muitos desafios a serem vencidos na educação. “Tem muita coisa para a gente mudar. Acho que a educação às vezes fica fora da realidade. Ela tem que acompanhar o desenvolvimento social e econômico do país. Muitos professores não enxergam isso, precisam mudar de postura, ter outra cabeça,” ela diz. Segundo ela, os projetos educacionais da Mangueira são importantes para a comunidade. “Quanto mais projetos puderem fazer com que a criança e o adolescente cresçam como cidadãos, melhor para todo mundo. Essas pessoas vão estar em breve participando e criando na sociedade.” Amélia gosta tanto de ser professora que nem se imagina em outra profissão. “Sempre quis ser professora. Às vezes é duro, mas é a vida que escolhi.” 24


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... E o reforço da explicadora Ana Paula Vieira e Natália Almeida Aline Gonçalves

Ela encontrou em casa a inspiração para seguir carreira na educação. Aline Gonçalves, de 22 anos, é neta de dona Neuma, uma educadora que fez escola na Mangueira. “Minha avó não foi uma educadora formada, mas ela ensinava aos seus filhos e às crianças do morro com um método próprio e muito eficiente. Tomei dela a inspiração de ser professora,” disse Aline, em entrevista no dia 22 de maio de 2001. Formada em pedagogia e cursando a pós-graduação em psicopedagogia, ela exerce uma função muito procurada no morro: é explicadora. Aline acha que há muitas explicadoras na Mangueira porque o ensino regular nas escolas da região tem muitas falhas “Infelizmente, as explicadoras são muito necessárias. Os alunos têm imensa dificuldade em português, por exemplo, porque o processo de alfabetização é deficiente. Participei durante dois anos de um projeto na Vila Olímpica e lá encontrei crianças de 11 a 14 anos, na 4ª série do colégio, e eles mal sabiam escrever o próprio nome,” contou Aline, na varanda da casa onde mora com sua tia, dona Chininha. A casa é a mesma onde viveu dona Neuma, na rua Visconde de Niterói, a poucos metros da quadra da Estação Primeira. A professora e explicadora responsabiliza também os pais pelo mau desempenho dos alunos nas escolas. “Poucos acompanham o aprendizado dos filhos, não cobram das escolas um melhor ensino. Eles têm que conversar mais com as crianças. Não basta matricular o filho em uma escola para dar a ele educação,” disse ela. Aline acha que o grande número de crianças fora da sala de aula se deve em grande parte ao desleixo dos pais. “Se a criança tem um responsável, ele tem responsabilidade sobre isso.” Assim como a professora Amélia, da Escola Uruguai, Aline acha o problema do trabalho infantil muito delicado na Mangueira. “A realidade social daqui é muito dura. As crianças que trabalham em vez de estudar com certeza estão perdendo uma chance de evoluir. Mas, às vezes o trabalho delas é uma necessidade da família, uma questão de sobrevivência.” Por outro lado, Aline condena as mães que impedem filhos de ir à escola para ficarem em casa cuidando de irmãos menores: “Isso não dá para engolir. Se você fez o filho, tem que cuidar”. Como explicadora, Aline cobra R$25,00 por semana. São três aulas de reforço semanais, com uma hora e meia de duração cada uma. “Muitos pais que não tiveram chance de estudar, mas hoje dispõem de alguns recursos, contratam explicadoras para que seus filhos possam aprender mais,” ela disse. 25


Ivanir dos Santos

Visões do preconceito Ana Paula Vieira, Daniela Ferreira e Renan Portilho

Subsecretário de Estado de Direitos Humanos e Cidadania e presidente do Centro de Articulação de Populações Marginalizadas (Ceap), Ivanir dos Santos conhece a Mangueira como poucos. E sabe que o preconceito, principalmente contra os negros e os pobres, tem que ser combatido desde a infância. Mas ele quis falar também de outros tipos de preconceito. Por exemplo, contra as meninas que engravidam cedo. “Eu mesmo tinha preconceito de minha mãe, porque ela era prostituta. Uma amiga de minha mãe mudou minha cabeça. Ela disse que minha mãe era uma grande mulher, que às vezes deixava de comer para nos alimentar. Então percebi que minha mãe era uma grande pessoa,” lembrou Ivanir numa entrevista aos alunos da Oficina de Reportagem da Casa das Artes, em 12 de junho de 2001. Era Dia dos Namorados e o assunto de namoro foi muito comentado. Ivanir lembrou que a mãe dele, Sônia Regina, engravidou quando tinha de 13 para 14 anos. “Isso acontece muito hoje na Mangueira, mas é coisa que vem de muitos anos atrás,” disse ele. Ivanir conversou com as alunas sobre preconceito contra as meninas que engravidam cedo. “Não adianta querer recriminar, tem que ser amigo. Pode acontecer com qualquer uma de vocês.” A entrevista acabou virando uma conversa bem legal. Algumas alunas contaram que são criadas pelas mães ou avós porque os pais saíram de casa. Ivanir disse que alimentar o ódio não leva a nada e, se os pais devem tentar entender os filhos, os filhos também devem tentar entender os pais. “Se os filhos pedem o que querem aos pais e eles fazem o possível e o impossível para dar o que essas crianças querem, quando os pais não podem dar, os filhos ficam com raiva dois pais. Acho que não pode acostumar assim.” Ivanir dos Santos disse que está 100% feliz por ter algumas pessoas que ele gosta, e se sente muito bem ao lado delas. “É muito bom ter essas pessoas na comunidade da Mangueira.” 26

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Outra pessoa que foi até a Casa das Artes para conversar sobre preconceito foi a professora de arte e pedagoga Maria Lúcia de Carvalho, conhecida como Malu Carvalho, moradora da Mangueira. Ela disse que a discriminação é fruto da falta de informação. Segundo ela, se as pessoas procurassem se informar melhor, haveria menos preconceito no país. “As pessoas acham mais fácil

fazer galhofa e discriminar do que se informar. Se as pessoas tivessem mais conhecimento das diferentes falas, vocabulários, costumes e culturas de cada região, não haveria discriminação.” “Temos que mostrar aos nossos alunos o que é regionalismo. Algumas coisas são conhecidas no Nordeste de uma forma, e no Sudeste de outra. Cada região tem um sotaque,” ela explicou. Malu Carvalho falou da prostituição infantil. Ela acha que muitos adultos ficam usando a criança na prostituição. Sobre as adolescentes que largam os estudos quando engravidam, ela disse que o Estatuto da Criança e do Adolescente garante o direito para que essas alunas continuem estudando. “Eu acho que as adolescentes não podem largar os estudos por estarem grávidas. Elas deveriam utilizar os seus direitos, para amanhã não dizer que pararam de estudar por culpa do filho.” A professora disse que não se deve discriminar o analfabeto adulto que não teve oportunidade de ir à escola, porque se ele é analfabeto na questão das letras, pode ensinar muito em outras áreas. Disse também que muitas vezes o aluno que abandona a escola sofre preconceito. “É um absurdo. Muitas vezes o aluno larga a escola porque o ensinamento não está bom e a professora discrimina o aluno que não consegue aprender.”

crianças da Mangueira

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Elas resistem Uma fica lá no alto, outra está no Buraco Quente Luana do Carmo e Monique Paula

Situada no lugar mais alto da Mangueira, a Escola Municipal José Moreira é muito importante para a formação das crianças e dos adultos da comunidade. No dia 3 de julho de 2001, a diretora-adjunta da escola, professora Marli, deu uma entrevista à Equipe de Educação e contou que a escola José Moreira não atende só alunos na faixa etária de 4 a 8 anos, mas também atende adultos e idosos. Ela disse que a escola tem três turmas de alunos de idade avançada, e nessas turmas as professoras ensinam os adultos a pelo menos escrever seus nomes. A escola tem no total 200 alunos matriculados. Ela disse que na escola tem uma turma de aceleração. Nessa turma estão alunos que têm maior capacidade de aprender, ou seja, os alunos mais inteligentes. Tem também a turma da progressão, onde ficam os alunos que não conseguiram alcançar sua alfabetização completa e têm idades avançadas. Ela é diretora há seis anos, mas é professora da escola desde 1986. Disse que a prefeitura tem projeto de ampliar a escola. O primeiro turno é das 7 às 11h30min, o segundo turno é das 12 até às 16h30min. A professora Marli disse que a escola só tem problemas em dias de passeio, porque a condução é um pouco difícil de chegar na localidade onde fica a escola. Lá é muito alto. “Para levar as crianças em algum passeio temos que ir até a rua de baixo e alugar uma Kombi.” Para compensar, a escola tem o privilégio de ver o Jardim Zoológico com a maior facilidade. Dá para ver onde ficam os elefantes e as girafas. Na parte baixa do morro, fica a Escola Humberto de Campos, também mantida pela prefeitura. Seu endereço é o Buraco Quente, o lugar mais conhecido da favela, principal entrada e de muito movimento. A diretora Arlinda Félix de Souza está na escola há 23 anos e conquistou a confiança dos pais dos alunos. “Eles elogiam o nosso método de ensino.” Ela é muito sincera e franca, fala o que pensa e sempre que precisa chama os pais para conversar sobre problemas com os alunos. Um desses problemas é o trabalho infantil. “A criança desanima de ir para a escola, pois está muito cansada e acaba saindo por ser obrigada a trabalhar. Às vezes dá para conciliar, mas nem sempre acontece,” ela contou. 28


Dona Arlinda sabe que a escola fica em uma área de tráfico de drogas, mas aprendeu a conviver com isso. “Não é nada bom, mas as crianças já estão acostumadas com essa situação. Tentamos mostrar a elas que não tem só isso.” Segundo ela, o pessoal do movimento tem respeito pela escola. “Pedi a eles para não ficar em frente da nossa porta e eles saíram. Eles respeitam a escola.” A Equipe de Educação quis saber qual é a regra quando acontece um tiroteio nas proximidades da escola e a professora Arlinda explicou: “Eu não deixo ninguém sair e mando todos mergulharem no chão.” A diretora disse também que nunca houve casos de alunos mais velhos fazendo ato sexual com crianças mais novas. A escola tem uma biblioteca e as crianças gostam de freqüentá-la.

Dois pesos-pesados Uma é a mais antiga, outra é a maior Ana Paula Vieira, Daniela Ferreira, Natália Almeida e Renan Portilho

Com 73 anos de existência, a Escola Municipal Uruguai é a mais antiga que atende à comunidade da Mangueira. Várias gerações já passaram por suas salas de aula. Há 15 anos na diretoria, a professora Vera Lúcia Pires Ferrão está preocupada com o grande número de crianças fora da escola. “Esse problema de deixar os alunos fora da sala de aula é muito preocupante para nós porque o aluno fica exposto a todos os tipos de problemas que só levam o mal para a criança,” diz a professora. Por outro lado, Vera Lúcia está otimista com os projetos sociais da Mangueira: “A Mangueira está tirando o aluno da rua e colocando-o nos seus projetos para aprender diversas coisas da parte cultural, desenvolvendo um trabalho que vai ser de grande proveito para o aluno.” Ela disse que tem uma filha de 30 anos de idade que também é professora de história e dá aulas para crianças e jovens. A filha dela se chama Andréia. Ela disse que “a educação está sempre boa à medida que o aluno, a escola e a comunidade trabalham juntos.” Para ela, “no momento em que a gente se une, a comunidade, a família e o aluno, para o bem da própria comunidade e da sociedade, esse trabalho vai ficar sempre melhor e a educação vai crescer bastante.” Ela também disse que a educação de antigamente era mais rígida do que a de hoje, mas não melhor. “As matérias eram dadas para serem decoradas. Graças a Deus a educação de hoje está bem melhor.” Para a diretora, o maior problema da escola é a gravidez das adolescentes. “Com a televisão passando filmes pornográficos dia e noite, incentivando mal as crianças, é 29


difícil. Elas já aprendem sem televisão, imagine com a televisão passando indecência toda hora. Antigamente, muito antigamente, a gente não via aluna grávida, mas com a televisão que está aí, com propagandas de sexo a qualquer hora, sem se preocupar com idade, quem agüenta?” A diretora explicou que a escola orienta as alunas sobre gravidez. “Desde o professor de ciências, que explica os métodos que podem ser usados para evitar gravidez, até as palestras que fazemos alertando sobre o que é colocar uma criança no mundo quando se tem 13 ou 14 anos, elas são preparadas.” Ela lembrou de casos em que a chegada do bebê só trouxe problemas para a mãe. “Como uma jovem dessa idade não tem ainda condições de tratar do seu próprio filho, acaba sobrando para a mãe, a avó, a tia ou qualquer pessoa com quem essa jovem viva. Há casos em que a mãe vai até para a rua. Tive alunas nossas que realmente foram para a rua, os pais não aceitaram, a comunidade não aceitou. Fica difícil a vida.” A Vera fica triste quando dizem que a jovem que engravida sempre larga a escola. Ela disse que é possível continuar a estudar. “Tem aqui uma aluna que já teve o segundo filho. Ela teve o primeiro e continuou a estudar, engravidou de novo e continua aqui na oitava série. Isso não é impossível. É mais difícil. Você vai ter toda a atividade de mãe fora da escola, que é tratar do seu filho. Vai ter que procurar um emprego para sustentar a criança. Geralmente, o homem não assume a paternidade, só faz o filho e depois a jovem é quem fica com a criança nos braços e vai ter que cuidar.” Vera contou que sempre gostou de trabalhar com o ser humano. “Desde criança eu sempre brinquei de bonecas. Elas eram minhas alunas ou pacientes. Vi logo que seria professora ou médica,” lembrou ela. A Escola Uruguai é tombada pelo Patrimônio Público, quer dizer, não pode ser demolida nem ter sua fachada mudada. Por isso ela tem a mesma cara há 73 anos. Mas Vera lembrou que a região mudou muito. “O muro ali na frente era pequenininho, rasteiro do chão. A rua não tinha trânsito, era uma rua só de pedestres, bem tranqüila.” No final, Vera falou de novo da educação de antigamente. “Os alunos, se não soubessem a matéria, ficavam de castigo. Muito antigamente, na época dos nossos avós, ficavam de joelhos no milho, tinha a palmatória. Isso a gente escuta de antigamente”, ela lembrou. Ainda bem que era antigamente. Outra escola que todo mundo conhece na Mangueira é o Ciep Nação Mangueirense. Ele fica ao lado dos trilhos da Estrada de Ferro Central do Brasil, é o maior colégio da comunidade e pode ser visto de praticamente todos os lugares do morro. Administrar uma escola tão grande não é fácil. Foi o que disse em entrevista à Equipe de Educação o diretor do Ciep, Tony Menezes. Ele acha que o Ciep, como todas as escolas, tem bagunça. “O colégio tenta recuperar o aluno rebelde com uma série de procedimentos. Mas às vezes não dá e tem que usar a disciplina. Outro dia expulsamos um aluno que soltou uma cabeça-de-negro no pátio. Não teve refresco, foi expulso na hora. Se não expulsasse, amanhã outro aluno poderia jogar uma bomba e achar que ia ficar tudo bem.” 30


Para o Tony, o que mais preocupa atualmente é a evasão escolar. “São as meninas que engravidam cedo e os rapazes que gostam de ganhar dinheiro fácil. E tem pais que não se preocupam com os filhos, nem sabem como eles se comportam na escola ou fora dela. Isso é uma falta de responsabilidade”, disse ele. O diretor acha também que o analfabetismo é ruim para todo mundo, porque uma pessoa que não sabe ler nem escrever não consegue trabalho, não consegue progredir de nenhuma forma e isso atrapalha o crescimento do nosso país. “Na Mangueira, o ensino é muito bom. Aqui temos o Colégio Tia Neuma, que tem o primário; o Ciep, que tem o ensino médio e o fundamental; e a faculdade com o curso de informática,” contou Tony. Ele disse que o Ciep foi inaugurado no dia 28 de abril de 1994 e que hoje é respeitado como uma boa escola. “Temos professores que foram os primeiros colocados no concurso de 1993. O nosso ensino está muito bom. No ano de 2000, 45 de nossos alunos passaram no vestibular para faculdades públicas.” O Tony é professor de educação física e diretor do Ciep.

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Alunos da Escola Uruguai


A segunda casa Daniela Ferreira e Renan Portilho As creches da Mangueira são muito importantes para a comunidade. Elas abrigam crianças de até quatro anos. Se elas não existissem, muitas mães não poderiam trabalhar para sustentar seus filhos ou procurar emprego. A Mangueira tem muitas creches e uma delas fica pertinho da Casa das Artes. É a Creche Vovó Lucíola, inaugurada em 14 de setembro de 1999, em homenagem a Lucíola Ribeiro de Jesus, a mais velha parteira e moradora de Mangueira, com 101 anos completados em setembro de 2001.

Com 19 funcionários, a creche cuida de 85 crianças de três meses a quatro anos. De lá, elas já saem preparadas para serem alfabetizadas em uma escola. As crianças têm três refeições por dia – café da manhã, almoço e jantar – e tomam banho antes de ir embora. O horário é das 7 às 17h30min. A creche precisa de reformas. Quando chove as salas ficam molhadas por causa das goteiras e os alunos têm que ser retirados às pressas. Isso atrapalha o desenvolvimento das crianças. A creche é de responsabilidade da prefeitura. Alguns problemas já foram solucionados, como o do bebedouro. Outros, não: o teto é pintado de preto para esconder as infiltrações de água e isso deixa o ambiente escuro. As escadas estão descascando por falta de pintura. A funcionária Luisa de Sousa disse que as mães que deixam seus filhos na creche estão desempregadas ou trabalham fora. Além da Creche Vovó Lucíola, outras creches foram batizadas com nomes de grandes mangueirenses, como a tia Neuma e a tia Alice.

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Para sempre dona Neuma Ana Paula Vieira, Natália Almeida e Renan Portilho

foto cedida pela família

Dona Neuma

O nome de dona Neuma está sempre ligado ao samba. Não é para menos. Seu pai, Saturnino Gonçalves, foi um dos fundadores e primeiro presidente da Estação Primeira de Mangueira. E ela seguiu os passos, sendo um dos baluartes da escola. Mas, o que muitos não sabem é que dona Neuma foi também uma grande educadora de crianças em sua comunidade.

Aline, neta de dona Neuma é uma educadora também. Ela seguiu os passos de sua avó e lembra como ela educava as crianças na base do palavrão. Dona Neuma achava que a criança poderia aprender fora da escola tradicional, com base nas suas condições de vida, e não do que vinha de fora. Ela criou um método em que usava as gírias das crianças, com muitos palavrões, para ensiná-las a ler e a escrever. Fazia isso na casa dela mesmo, com um quadro-negro. Com sua intuição, ela criou um sistema de alfabetização que muitos pesquisadores comparam ao método de ensino de um grande educador brasileiro, o professor Paulo Freire. O jeito de dona Neuma ensinar foi reconhecido pelo MEC como de grande valor. O ministério registrou o método com o nome dela e tudo. Neuma Gonçalves da Silva nasceu em 8 de maio de 1922, em Madureira, subúrbio da Central. Ela veio para a Mangueira com dez anos. Era filha de Saturnino Gonçalves e de Orestalina Gonçalves. No dia 28 de junho de 1941, casou com Alcides Bernardino da Silva. Teve quatro filhos. Estão vivas Eli, a Chininha; Eucy, a Cici; e Márcia, a Guezinha. Todas são casadas e têm papel de destaque, como a mãe sempre teve, na Estação Primeira de Mangueira. No dia 2 de fevereiro de 2001, foi inaugurada na Mangueira a Escola Tia Neuma. A diretora da escola, Marta Brandão, disse à Equipe de Educação que 360 alunos de seis a 14 anos estudam lá. Depois, passam para o Ciep. 33


O exemplo de Alice Daniela Ferreira e Renan Portilho

Não há como falar em educação na Mangueira sem lembrar o nome de Alice de Jesus Gomes Coelho, a tia Alice. Hoje muito debilitada, ela não pôde dar entrevista, mas sua vida foi contada pela filha Iara. Tia Alice começou a dedicar a vida a projetos sociais em 1967, quando trabalhava como enfermeira no Hospital Menino Jesus. Seu último trabalho antes de se aposentar foi criar o Camp Mangueira, um centro de ensino profissionalizante para jovens.

foto cedida pela família

O esporte foi a grande paixão da vida de tia Alice. Mas quem chamou a atenção dela para isso foi um vizinho. Um dia, ele pegou Alice pulando o muro para apanhar fruta e disse que ela tinha um jeito para o esporte. Aos 13 anos, Alice iniciou sua vida esportiva. Iara contou que sua mãe sempre gostou também de danças folclóricas. “Ela ia nas lojas pedir panos para fazer roupas para as crianças participarem das festas e competições,” lembrou Iara. Em 1985, Alice ganhou o prêmio Estandarte de Ouro como personalidade feminina por seu trabalho com as crianças. Alice começou dando aula de folclore debaixo do viaduto da Mangueira e depois de um tempo foi para dentro da quadra da escola de samba. Iara ajudava em alguns projetos porque era professora de educação física. A filha quer guardar da mãe uma imagem bonita e disse que o exemplo de vida de Alice é a melhor herança que ela pode receber. “Ela me ensinou que a gente deve correr atrás do que quer para conseguir,” disse Iara, que é mãe de dois filhos. Alice teve dois derrames que deixaram o lado esquerdo do corpo paralisado e vive sob cuidado médico permanente há três anos.

Tia Alice


Discriminação racial Marcos Paulo Soares Muitas pessoas são discriminadas no nosso Brasil. Principalmente os negros. Eles estão sempre escutando ofensas, o tempo todo. Hoje em dia tem até uma lei sobre discriminação que ajuda os negros a lutarem pela sua cor e pelos seus direitos de ser humano. O Brasil está uma pouca vergonha, quando será que isso vai acabar? Os negros têm os mesmos direitos que os brancos. Eles têm o direito de ser alguém na vida e de lutarem pelos seus direitos. A discriminação não vem de agora. Os negros são discriminados desde a escravidão. Tinham que trabalhar de graça para os brancos. Quando será que algumas pessoas vão se conscientizar que a discriminação é uma coisa sem sentido algum, que ao humilhar um negro você está discriminando a si próprio? Cada vez que você discrimina um negro está contribuindo para o lado das pessoas que não têm cabeça nem senso do ridículo. O que as pessoas ganham discriminando outras pelo que elas são ou deixam de ser? Isso tudo é porque as pessoas hoje em dia não têm respeito umas pelas outras. Não se pode colher sem plantar.

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E quip e de fa mília Aline Soares da Silva, 19 Douglas de Souza Galvão, 12 Marcelo Marques Magalhães, 15 Marcus Vinícius Moura Sebastião, 12 Sávio Barbosa Souza, 16 Sérgio Luiz Monteiro da Silva, 12

Família de Florisvaldo Cândido da Silva


f a m ília

Alegrias e tristezas da grande família

Marcelo Marques e Sávio Barbosa É tio pra lá, tia pra cá, primo pra cá, prima pra lá. A orgulhosa nação mangueirense, cantada pelo mundo afora, tem fortes laços de parentesco, por sangue ou por afinidade, que fazem da comunidade uma grande família. Os moradores do morro batem no peito para dizer “eu sou Mangueira”, e muitos vizinhos se tratam como irmãos. Mas, como acontece em qualquer família, a nação mangueirense tem suas alegrias e suas tristezas. Neste capítulo, vamos falar de algumas delas. Ser uma mãe adolescente, por exemplo, coisa muito comum na comunidade, pode trazer confusão em uma família que vive em harmonia. Joyce Parente, de 14 anos, sabe disso muito bem. Quando seu pai soube que ela estava grávida, aos 13 anos, quis lhe dar uma surra. A mãe parou de falar com ela e a avó tentou convencê-la a abortar a criança, tomando uns chás fortes. Joyce resistiu a tudo sozinha, largou a escola e teve o bebê. Hoje com seis meses de vida, Joyciane é o xodó da família – que está unida outra vez. Outras famílias enfrentam juntas uma dura realidade na Mangueira: o desemprego. Dona Rose e seu Florisvaldo moram com os quatro filhos numa casa humilde no largo do Careca e a renda da família vem da atividade da mãe: ela é catadora de latas. Uma irmã de dona Rose ajuda no que pode. Muitas pessoas se ajudam no morro e é bom ver que há solidariedade. As mães de leite são um exemplo disso. Outro exemplo é o trabalho da psicóloga Andréa Chaves, da Vila Olímpica: ela está sempre andando pelo morro para conversar com as famílias que têm problemas e tentar ajudar. A gente não podia falar em família sem visitar uma casa na rua Visconde de Niterói, onde moraram Saturnino Gonçalves, o primeiro presidente da Estação Primeira, e sua filha dona Neuma. Lá entrevistamos a dona Chininha, filha de dona Neuma e vice-presidente da escola de samba. E como não tem família sem avó, fechamos o capítulo com uma entrevista com a Vó Lucíola, de 101 anos. Ela tem uma história de vida muito legal. A benção, vovó!

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Mães ao amanhecer Sávio Barbosa e Marcelo Marques

Joyce e Joyciane

É difícil caminhar pelo morro da Mangueira sem esbarrar com alguma adolescente grávida ou com bebê de colo. Nas escolas, nos pagodes, nas festas, nos sambas da quadra, nos bares, nas ruas e becos, em todos esses lugares é possível encontrar exemplos dessa situação. Na maioria dos casos, a gravidez na adolescência cria problemas para a gestante, que fica isolada na família, sofrendo pressão dos responsáveis para abortar. Quando a menina decide ter a criança, o parto é, em geral, doloroso, já que não há um acompanhamento médico anterior. Esse foi o caso de Joyce Denis Pinto Parente, de 14 anos, que deu à luz a filha Joyciane aos 13 e sofreu muitas dores no parto. "Achei que ia morrer," disse Joyce, em entrevista à Equipe de Família no dia 12 de abril de 2001, na Casa das Artes. Ela levou a filha Joyciane, com dez dias de vida, no colo. Durante a entrevista, a Fabiana, da Equipe de Saúde, pediu para ficar tomando conta da menina para a Joyce e ela deixou. A entrevista começou com a Joyce contando que nasceu na Mangueira mesmo, morou no Chalé e hoje vive nos Três Tombos. Foi nesse lugar que ela passou boa parte da infância brincando solta pelas travessas, principalmente jogando queimado. Ela disse que começou a namorar bem cedo e que sempre achou que fosse ser mãe cedo também.

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Joyce teve o bebê na maternidade Fernando Magalhães e lembrou que a dor no parto foi muito forte. O parto foi normal, não teve anestesia e Joyce chorou muito. Quis até fugir da sala de parto, mas foi segura pelos médicos. A mãe dela, uma tia e um tio a acompanharam ao hospital. "Eu pulei da cama na hora que o bebê estava com a cabeça saindo porque estava doendo muito, aí minha mãe ficou nervosa e me bateu. O médico tentou acalmar a gente. Não vou esquecer nunca essa dor," ela disse. Joyciane nasceu às 9 horas do dia 2 de abril de 2001. Durante a madrugada, Joyce teve muitas contrações e, quando amanheceu no morro, percebeu que estava perdendo líquido. "Minha mãe falou que aquilo não era


normal, aí fomos para o hospital. Lá eles viram que eu estava com dilatação e fui direto para a sala de parto," lembrou. Na hora do parto, não tinha pediatra na sala. "Só depois que nasce o bebê é que eles mandam subir." Ela nem lembra direito quando o médico colocou Joyciane no colo dela. "Eu estava muito fraca." Joyce não quer ter outro filho de jeito nenhum. Disse que preferia mesmo uma menina, porque menina fica mais arrumada quando coloca um vestido. Se por acaso engravidar de novo, ela diz que vai tirar a criança. "Mesmo com sofrimento, vou fazer isso." Por ter só 14 anos, talvez Joyce ainda mude de idéia. A reação da família foi terrível quando soube que Joyce estava grávida. "Minha avó não aceitou, queria que eu tirasse de qualquer maneira. Ela me encheu de chá, mas quando viu que não tinha jeito deixou pra lá", disse Joyce. Os chás que a avó deu para ela eram de maconha, canela, cachaça quente e outros. A família dela chegou a arranjar uma clínica de aborto em São Cristóvão para ela tirar a criança, mas Joyce resistiu e não foi. O pai tentou lhe dar uma surra, a mãe parou de falar com ela. No princípio, só uma tia ficou ao lado dela, mais ninguém. O pai da criança tem 17 anos e mora no Chalé. Ele não vive com Joyce, mas dá alguma ajuda para o sustento da menina. Joyce contou que, de início, o rapaz não acreditou que a menina fosse filha dele. "Mas a neném saiu a cara dele e não teve como negar," disse a mãe. Ela disse que os dois sempre transavam sem camisinha. Joyce começou a tomar pílula com 11 anos. Logo depois que engravidou, Joyce largou de vez os estudos. Ela fazia um curso na Vila Olímpica, mas já estava longe de escola desde os nove anos. "Briguei com uma menina na escola e fui expulsa", ela lembrou. Alguns dias depois desta entrevista, Joyce se animou e fez matrícula na Casa das Artes. Mas só foi uma vez. Os alunos da Oficina de Reportagem sempre encontram com ela pelo morro e Joyce garante que vai voltar a estudar um dia. Mas por enquanto não dá porque Joyciane é muito pequena. Assim como Joyce, a adolescente Danúbia Marques não planejou sua gravidez. "Quando descobri que estava grávida, me senti normal porque eu sabia que iria assumir. Quando engravidei tinha 12 anos, tive o bebê com 13, e hoje estou com 15", lembrou a menina. O parto também foi normal e, como Joyce, Danúbia não pensa em ter outro filho. Cassiane, a filha de Danúbia, tem dois anos. O pai de Cassiane tem 18 anos e é separado de Danúbia. Ela contou que os pais ficaram tristes quando souberam que ela estava grávida, mas superaram a tristeza e hoje adoram Cassiane. Danúbia disse que não tem vergonha de dar de mamar à sua filha na rua: "O meu peito é duro e eu posso mostrar."

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Santos & Filhos Ltda. Marcelo Marques e Sávio Barbosa

Parece nome de loja, mas é nome de família. Seu Santos é muito conhecido no morro porque foi um dos primeiros comerciantes a prosperar na Mangueira. E hoje toda a família ainda é ligada ao comércio. Um dos filhos de seu Santos tem uma loja de material de construção e outro, chamado Roberto, tem um mercadinho. As duas casas ficam na rua Visconde de Niterói, uma na Joaquina, outra na Olaria. Foi em frente ao mercadinho do filho Roberto que seu Santos deu uma entrevista à Equipe de Família, no dia 26 de junho de 2001, para falar de sua vida.

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Santos é apelido. O nome de batismo dele é Marinho da Silva. “Quando eu era pequeno, era muito quieto. Aí minha mãe me chamava de Santo. Acabei virando Santos”, contou ele. Nascido em Minas Gerais, seu Santos tem 80 anos e chegou ao Rio com 17. Antes de baixar na Mangueira, em 1940, passou por Coelho Neto e por Nilópolis. Trabalho é coisa que seu Santos conhece desde a infância. Ele cursou até a terceira série do primário. Aos nove anos, já ajudava os pais na roça de café, arroz e feijão. Os 12 irmãos seguiram o mesmo caminho. Quando chegou ao Rio, trazido por um irmão que veio na frente e anunciou que a vida por aqui era melhor, já sabia fazer roupa. Na Mangueira, firmou-se como alfaiate e teve entre seus clientes alguns bambas do samba, como Cartola, Nelson Cavaquinho e Padeirinho. Do ofício de alfaiate, seu Santos passou para o comércio. “Comecei vendendo galinhas, depois abri um comércio que vendia de tudo. Fui um dos primeiros a vender animais aqui. Matava porco de madrugada para vender de manhã”, lembrou ele. Os 12 filhos de seu Santos sempre ajudaram no comércio. Seu Santos fala com orgulho que foi pioneiro em muitas formas de vender no morro.“Quem foi a primeira pessoa a vender gás, leite e verdura, quem foi? Eu, Santos,” ele bate no peito. Hoje aposentado, seu Santos ajuda os filhos no comércio com sua experiência, mas sempre reserva um tempo para passear. Como passatempo, gosta de jogar buraco. “O primeiro campeonato de buraco na Mangueira fui eu que ganhei,” conta orgulhoso. Ele não tem vontade de voltar para Minas e nem pensa em sair da Mangueira.“Já voltei ao lugar em que nasci e não mudou nada. Aqui na Mangueira, muita coisa evoluiu. Melhora cada vez mais.” 40 Seu Santos


Unidos na batalha Sávio Barbosa, Marcelo Marques e Marcus Vinícius Moura

A família de Florisvaldo Cândido da Silva, conhecido na Mangueira como Calém, é um exemplo de união. Apesar de todas as dificuldades por que passam, o pai, a mãe e os filhos estão enfrentando juntos o desemprego e as péssimas condições financeiras. A Equipe de Família esteve na casa de Florisvaldo, no largo do Careca, no dia 29 de maio de 2001, e lá encontrou uma família feliz. Florisvaldo nasceu em 1943 e mora na Mangueira há 58 anos. É nascido e criado no morro. A mulher dele se chama Rosimar Novaes da Cruz e tem 34 anos. O casal tem quatro filhos: Rosivaldo, de 11 anos; Rejiane, de sete; Marcos Vinícius, de seis; e Daniel, de dois. Quando a equipe perguntou como sustentava a família estando desempregado, Calém foi sincero: “Uma irmã da Rose ajuda, eu recebo duas cestas básicas por mês e minha mulher cata latinha.”

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Ele só enxerga com uma vista, e assim mesmo muito mal, por causa de um problema de glaucoma. Não pode trabalhar por causa disso. Mas já trabalhou muito. Começou aos sete anos. Teve uma infância muito rígida, porque foi criado pelo pai num regime militar. Hoje, tenta ensinar aos filhos o que é certo ou errado de acordo com sua experiência de vida. “Eu incentivo sempre a estudar. Qualquer curso é melhor do que ficar aí na rua, sem fazer nada,” ele disse. Já bebeu muito, mas hoje não bebe mais. E sempre ajuda a mulher no que é possível. Dona Rose é quem cuida da casa e dos filhos, cata latinhas na rua e ainda luta para tentar uma aposentadoria para o marido. Ela é uma batalhadora e toda a família tem orgulho dela. “Eu não tenho vergonha de catar latinha porque é com isso que a gente come em casa,” ela afirmou. Dona Rose recolhe as latas no samba da quadra, na saída dos jogos do Maracanã, nos bailes, em lugares onde há eventos e festas. Juntando isso com o trabalho em casa, não sobra tempo para nada. Nem para fazer o que ela mais gosta: passear. “A gente de vez em quando ainda leva a turma toda para a Quinta, mas tá cada vez mais difícil fazer isso.”

Florisvaldo Cândido da Silva e família

Depois da entrevista, o Rosivaldo perguntou se podia se inscrever na Casa das Artes para fazer a Oficina de Reportagem e o professor disse que claro que podia. Hoje, o Rosivaldo, que todo mundo chama de Valdo, faz parte da Equipe de Arte. 41


O alimento da vida e da alma Douglas de Souza Galvão e Marcelo Marques

A Mangueira ainda preserva uma tradição que resiste em poucos lugares: a mãe de leite. Elas não só amamentam os filhos de mães que não têm leite materno, como são também conselheiras da comunidade. A mais antiga mãe de leite do morro é Rita da Silva, de 74 anos. Ela é capixaba de São José do Calçado e chegou à Mangueira com 15 anos. Trabalha como merendeira na Escola Municipal Humberto de Campos, no Buraco Quente. “Meu primeiro filho de leite se chamava José do Anjo. Parecia mesmo coisa de Deus. Foi em 1945,” lembrou ela na entrevista à Equipe de Família, em 12 de junho de 2001, na Casa das Artes. Aos 15 anos, dona Rita já era mãe. Sempre teve muito leite. E foi naturalmente sendo procurada por mães da Mangueira para amamentar crianças. “Mãe de leite é uma pessoa que ama os seus filhos, que tem muito leite, que ama os filhos dos outros e que gosta de dar de mamar a quem precisa,” ela disse. Ser considerada a mãe de leite mais antiga da Mangueira é motivo de orgulho para dona Rita. Como boa conselheira, ela acha que as meninas devem se prevenir para não engravidar cedo.“Nenhuma mãe quer que sua filha engravide cedo, mas é o que está acontecendo muito por aí por falta de informação”, ela explicou. Mãe de oito filhos, dona Rita contou que a maioria das mães que a procuravam eram pessoas que tinham leite, mas que saíam para trabalhar e não tinham tempo para amamentar. Ela lembrou que a função da mãe de leite caiu muito de uso com a chegada do leite em pó. “Mas ainda hoje há mães de leite que atuam muito na comunidade. Nada é melhor para uma criança recém-nascida do que o leite materno. Para quem recebe o leite é um alimento para vida. Para quem amamenta é um alimento para a alma,”disse dona Rita, que parou de amamentar há muitos anos, mas permanece como conselheira do morro no assunto. Outras mães de leite mais novas seguem os passos de dona Rita. Ana Paula de Oliveira é uma delas. Com 30 anos, ela empresta seus seios a crianças da comunidade que precisam de leite materno. “Eu me sinto muito feliz fazendo isso. É como se estivesse ajudando a criar outros filhos, além dos dois que eu tenho,” afirmou Ana Paula, em entrevista no dia 5 de junho de 2001. Ela teve filhos bem jovem, o primeiro aos 15 anos, mas disse que hoje há muitas formas de se informar e fazer um bom planejamento familiar. Ana Paula falou que as mães que tiram o filho do peito com um mês de nascidos não pensam na conseqüência desse ato. “Elas só pensam na beleza delas, dizem que os seios vão cair. É pura vaidade e despreparo.” Para Ana Paula, o leite materno é algo divino. “Já vem por Deus com as substâncias certas de que a criança necessita.” A Organização Mundial de Saúde não recomenda a amamentação por mães de leite para evitar a possibilidade de transmissão de doenças para os bebês, como a AIDS por exemplo.

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Desse parente todo mundo gosta Douglas de Souza Galvão e Marcus Vinícius Moura

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Ele é uma das pessoas mais conhecidas na comunidade. Muitos o consideram como se fosse da família, mas ele mora bem longe da Mangueira, em um apartamento em Padre Miguel. Todos na Mangueira já sabem quando ele está chegando e grita: “Correio!” Pode ser notícia boa ou notícia ruim. Ele prefere as boas e por isso as pessoas do morro aprenderam a gostar dele. Wellington da Silva Rocha, de 31 anos, é o carteiro da Mangueira. O lugar que ele mais gosta de entregar cartas é o bairro União, no alto do morro. Pai de um filho de um ano, Wellington fica longe da Mangueira quando o assunto é samba: ele torce pelo Salgueiro. Apesar de ser salgueirense, disse que aceitaria um convite para desfilar na verde-e-rosa.

Wellington da Silva Rocha

Trabalhou em vários lugares, como o Jacaré e a avenida Suburbana. Já fez cursos de inglês, mas pouco usa o idioma no serviço. Muito conhecido na comunidade da Mangueira, Wellington não lembra de ter entregue alguma carta com má notícia para moradores: “Eu prefiro acreditar que sempre trago notícia boa,” ele diz. Por estar sempre de bom humor e com disposição para subir em qualquer lugar do morro para cumprir seu trabalho, Wellington é muito querido. “Meu dom é cativar amizades,” afirma. Muitos moradores o consideram da família e oferecem café e até almoço. Wellington tem quatro irmãs e um irmão. O time de coração é o Flamengo. O carteiro cita como o fato que marcou a sua vida o nascimento do filho Lucas, no feriado de 1º de maio de 2000. Nunca viajou para nenhum outro país e seu primeiro emprego de carteira assinada foi de office-boy. A comida que ele mais gosta é carne de porco. Na entrevista, Wellington elogiou a Casa das Artes da Mangueira. “Fui um dos primeiros a saber do projeto. Passo em frente todos os dias,” contou. Ele diz que os lugares da Mangueira que mais recebem cartas são Olaria, Buraco Quente, Hospital Barata Ribeiro, Joaquina e Três Tombos. 43


A árvore e suas raízes Armando Mendes, Roberto Firmino e Wagner Silva (da Equipe de Arte, em participação especial)

Vice-presidente da Estação Primeira, Eli Gonçalves, a dona Chininha, tem 55 anos de Mangueira. Nascida e criada no morro, ela é da terceira geração de uma família que virou sinônimo de Mangueira. Seu avô, Saturnino Gonçalves, foi um dos fundadores e primeiro presidente da escola de samba. Sua mãe, dona Neuma, grande baluarte da verde-e-rosa, dedicou sua vida à escola e à comunidade, sendo uma educadora pioneira. Dona Chininha deu entrevista na casa dela, na rua Visconde de Niterói, na varanda, debaixo de uma grande árvore. Ela contou muita coisa de sua vida e de sua família, disse que nunca foi muito arteira quando era criança, e que a única arte que faz é tomar sua cerveja.

P.: Desde quando a senhora freqüenta a quadra da Mangueira? R.: Desde 1965. P..: Como pintou a vaga de vice-presidente da Mangueira? R.: Fui apontada por outras pessoas para ser vice-presidente da chapa 1 e quando me convidaram, aceitei. Eu tenho mais de 20 anos trabalhados na secretaria da Mangueira.

P.: Qual foi o fato mais triste e o mais alegre na sua vida? R.: Triste foi a perda da minha mãe. Alegre foi quando descobri que estava grávida com 40 anos. P.: Quantos filhos a senhora tem? R.: Tenho um.

P.: Como se sente como vice-presidente da Mangueira? R.: É maravilhoso e é uma responsabilidade muito grande. Na falta do presidente, sou eu que resolvo tudo.

P.: Qual é o nome dele? R.: É Júlio César.

P.: Antes de ter a quadra da Mangueira, aqui era um campo de futebol? R.: Não, esta rua tinha um comércio grande com carvoaria, padaria, armazém, açougue e algumas residências.

P.: A senhora viajou para quantos países? R.: Para cinco: Espanha, Portugal, Itália, Holanda e França.

P.: Tem muitos cursos na quadra? R.: Tem uma base de 18 cursos. P.: Tem curso de informática? 44

R.: Não, só na Vila Olímpica.

P.: Quantos anos ele tem? R.: Tem 15 anos.

P.: Desses cinco países qual foi o melhor de vida? R.: Holanda. P.: E o mais alegre? R.: A Itália.


Dona Chininha e família

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P.: A senhora sofreu racismo em algum deles? R.: Não. P.: Em qual a senhora ficou mais tempo? R.: Na Holanda. P.: Qual foi o país que mais gostou? R.: Portugal. P.: A sua infância foi muito difícil? R.: Foi porque nós não tínhamos a chance que vocês têm hoje. Era muito mal a escola pública e era difícil ganhar um brinquedo porque os pais não tinham condições financeiras. P.: Quem teve a idéia de fazer o Centro de Memória da Mangueira? R.: Tínhamos vontade de guardar a história da Mangueira, só que não tínhamos capital. Aí a Fundação Roberto Marinho nos patrocinou e concretizou o nosso sonho. P.: A senhora morou em outro lugar sem ser a Mangueira? R.: Eu sempre morei aqui na Mangueira, nasci nesta casa.

P.: Quem fez o seu parto? R.: Foi a dona Lucinda, a mãe da vovó Lucíola, aqui nesta casa. P.: Com quantos anos morreu a sua mãe? R.: Com 78 anos. P.: Com quantos anos morreu o seu pai? R.: Morreu com 55 anos. P.: Tem irmãos? R.: Tenho duas irmãs. P.: Como se chamam? R.: Cici e Guezinha. P.: Tem quantos sobrinhos? R.: Legítimos, tenho quatro; e sobrinhos-netos, tenho três. P.: A senhora já trabalhou em escritório? R.: Eu trabalhei 32 anos e me aposentei. P.: Como a senhora se sente vendo uma de suas sobrinhas seguir o seu caminho, sendo diretora de ala? R.: É um orgulho. A Neuci é presidente da ala 45


das baianas, toma conta de 120 integrantes e nem 30 anos ela tem. P..: Como a senhora se sente por ter duas sobrinhas professoras? R.: Me sinto muito feliz, principalmente porque elas dão aulas nas escolas da comunidade.

P.: Com quantos anos sua mãe teve o primeiro filho? R.: Com 20 anos.

P.: Quantos troféus a Mangueira tem? R.: Isso está difícil de saber porque outras diretorias não cuidavam dos troféus e alguns sumiram.

P.: Seu pai era compositor? R.: Não, meu pai ajudava minha mãe e fazia uma bela de uma batida que ninguém fazia igual.

P.: Mas naquela sala lá na quadra tem quantos? R.: Tem uns 500.

P.: As suas irmãs estão envolvidas na Mangueira? R.: Sim, a Cici foi eleita presidente da Mangueira do Amanhã e a Guezinha é a presidente do Departamento Feminino da Mangueira.

P.: Qual foi o troféu que mais marcou a senhora? R.: Foi em 1984, quando a Mangueira foi supercampeã do carnaval, na inauguração do Sambódromo. P.: Qual é o melhor curso que tem na quadra? R.: É o curso de dança e de mestre-sala e porta-bandeira porque ensina comportamentos. P.: Quem patrocina a Mangueira? R.: Temos vários patrocínios, entre eles a BR, a Xerox e o Leite de Rosas. P.: Quantos funcionários a Mangueira tem? R.: Uns 150. P.: Tudo isso na quadra? R.: Na quadra, temos cinco funcionários. P.: Qual é o seu time? R.: Flamengo. P.: Se a senhora não fosse Flamengo, o que seria? R.: Botafogo. P.: Se não fosse secretária de profissão, o que gostaria de ser? R.: Eu seria professora. P.: Com quantos anos a senhora começou a trabalhar? 46

R.: Com 17 anos. Trabalhei na Cerâmica do Brasil 26 anos, de 10 de agosto de 1961 a 10 de abril de 1987.

P.: Com quantos anos a senhora começou a ir aos ensaios da quadra? R.: Com três ou quatro anos já ia porque minha mãe colocava todos os filhos para acompanhá-la. P.: Onde eram os ensaios? R.: No Buraco Quente, na Associação dos Moradores da Mangueira. Depois passaram a ser no campo da Cerâmica e finalmente vieram para a rua Visconde de Niterói. P.: Se a senhora não fosse Mangueira, que escola seria? R.: Não seria nada. P.: Quando a senhora tinha seus 12 anos era muito arteira? R.: Não, nessa minha vida a minha arte foi só tomar cerveja. P.: Com quantos anos começou a namorar? R.: Com 15 anos.


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Psicologia de trincheira Sávio Barbosa e Marcelo Marques

Toda família tem um monte de problemas e a psicóloga Andréia Moreira Chaves está sempre disposta a ajudar a resolver. Ela tem 31 anos e trabalha no Posto de Saúde (PS) da Vila Olímpica da Mangueira, mas é difícil encontrar ela por lá. Andréia gosta de circular pelo morro, indo nas casas das famílias para ver de perto o problema. No dia 20 de junho de 2001, a Equipe de Família conseguiu entrevistar a Andréia na Vila e ela falou um pouco sobre o seu trabalho. Quando Andréia chegou ao PS da Vila, há quatro anos, o trabalho era interno. Hoje, ela faz questão de ficar mais tempo na comunidade do que no consultório. “A gente está mais próximo da comunidade, vamos até a casa do paciente quando ele marca uma consulta e falta duas vezes. Nós vamos lá para saber o que está acontecendo,” informou Andréia, que é a responsável pela coordenação dos agentes comunitários de saúde do PS da Vila. Ela sobe o morro pelo menos três vezes por semana: “Eu me sinto como se estivesse em casa.”

Andréia Chaves

Andréia disse que se não fosse psicóloga, seria pediatra. Ela se define como alguém que sempre corre atrás do que quer. É muito animada e gosta de sambar na quadra. Uma das coisas que ela acha errada na comunidade é que as crianças têm muita responsabilidade de adulto. “Gostaria que elas tivessem menos responsabilidade

e mais espaço para serem crianças. Muitas vezes, elas largam os estudos para trabalhar. E quase sempre não têm escolha.”

A psicóloga convive de perto com adolescentes grávidas da Mangueira, que a procuram para conversar. “Temos uma grande massa de adolescentes grávidas entre 15 e 19 anos. Acho que um quarto das meninas da comunidade nessa faixa etária está grávido. O que fazemos aqui é orientar para uma gravidez com menos riscos para a mãe e o bebê. Sempre que nossos agentes comunitários descobrem uma menina grávida no morro, tentam convencê-la a vir ao posto.” Andréia começou a namorar com 17 anos. Ela acha que a gravidez na adolescência é uma precipitação. “Acho que a menina pode esperar mais um pouquinho, adolescente tem mais o que fazer do que ficar grávida.” Ela disse que não tem uma idade certa para engravidar, que isso varia de mulher para mulher e que cada uma deve descobrir a sua hora. Andréia é divorciada e tem uma filha de nove anos chamada Ana Carolina. 47


A mais longa caminhada Sávio Barbosa, Marcelo Marques e Marcus Vinícius Moura Conversar com vovó Lucíola é aprender lições de vida. Ela foi a primeira entrevistada pelos alunos da Oficina de Reportagem da Casa das Artes, em abril de 2001. Gostamos tanto que voltamos lá outras duas vezes, uma delas apenas para falar sobre partos, um assunto que a mais velha moradora da Mangueira, com 101 anos, conhece como poucas pessoas. Em todas as vezes, vovó Lucíola nos recebeu em sua casa, no Buraco Quente, com muita paciência e alegria. Ela impressiona pela memória fantástica e por sua filosofia de vida. A entrevista a seguir foi feita na manhã de 27 de abril de 2001, começou na pequena sala da casa de vovó Lucíola e terminou no pátio externo porque os alunos da Oficina de Fotografia chegaram e não tinha lugar para tanta gente lá dentro. Mesmo com tanta confusão, vovó Lucíola manteve a calma e apenas pediu ajuda para levantar do sofá e caminhar até lá fora. Ela é um barato.

P.: A senhora veio de São Paulo com que idade? R.: Com um ano e pouco.

P.: Na sua época, como as pessoas tinham filhos? R.: Nasciam em casa com parteira.

P.: Como era a Mangueira na sua infância? R.: Tudo isso era mato. Só tinha a casa do meu pai, a do Simião e a do Chico Porrão. Eu pegava preá no mato para comer. Meu pai matava porco e a carne ficava conservada na gordura. Ficávamos comendo a carne de porco o ano todo.

P.: Qual era a sua profissão? R.: Era parteira e lavadeira.

P.: Quantos filhos, netos, bisnetos e tataranetos a senhora tem? R.: Tenho 14 filhos, 64 netos, 39 bisnetos e 28 tataranetos. P.: Em que ano a senhora se casou? R.: Casei no dia 10 de janeiro de 1917 e fiquei viúva em 1970. 48

P.: Como era ser parteira? R.: As pessoas tinham as contrações e me chamavam. Eu ia ver e se já estivesse para nascer ficava com a pessoa. Se fosse demorar, eu voltava para casa porque trabalhava lavando roupa. Quando a criança nascia, cortava o umbigo, passava álcool e amarrava com linha de costura. P.: Onde as pessoas pegavam água antigamente? R.: Aqui na frente tinha uma bica. Eu carregava umas dez latas por dia.


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Vov贸 Luc铆ola, a mais velha moradora da Mangueira


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Fabiana Silveira

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P.: Onde era essa bica? R.: Na entrada do Buraco Quente. A água era muito forte. P.: Tinha lugar para comprar mantimentos aqui? R.: Pra gente comprar alguma coisa tinha que ir na São Francisco ou no Jóquei, tinha que atravessar a linha do trem. P.: Que manifestações culturais tinham aqui no morro? R.: Tinha malha, tinha macumba, tinha jogos de pastorinhas. P.: O que é jogo de malha? R.: É um jogo que se joga com umas placas de ferro. P.: Como foi sua infância? R.: Meu pai trabalhava onde tem o quartel. Nossa primeira casa foi de tábua coberta com folha de zinco. Depois ele fez uma casa de sopapo, quer dizer, de barro. Era uma casa grande. Nunca fui na escola e sei ler e escrever. Sei fazer croché. Eu tinha quatro irmãos, mas eu era a mais velha. Nunca tive infância, trabalhei com 12 anos na fábrica de chapéus da Mangueira. Meu pai me ensinou tudo. P.: Quando a senhora era pequena colecionava alguma coisa? R.: Não, eu só fazia muitos chapéus de todo o jeito. P.: A senhora trabalhava fazendo chapéu para a escola de samba? R.: Nesse tempo não existia escola de samba. Tudo começou como bloco de sujo e depois as pessoas se vestiam com papel crepom, fantasiavam as crianças. Aí eu ajudava a fazer as roupas. Os homens vinham de pijama. A primeira ala que teve na Mangueira foi de mestre-sala e porta-bandeira. Sempre teve essa ala, mesmo sendo bloco. Era o Marcelino e a Raimunda o primeiro casal. Depois veio o Delegado e a Neide. Essa turma eu conheci toda.

P.: A senhora sempre gostou de samba? R.: Até hoje eu não gosto de samba. P.: Todo mundo na sua família vive muito? R.: Eu tive quatro irmãos e todos já morreram, mas parece que a família vive muito. A minha avó era filha de africano, o pai da minha mãe era italiano. Eu, minha mãe e meu pai somos paulistas, e o pai do meu pai era alemão. A raça é muito misturada. P.: A senhora tem alguma receita para viver muito? R.: Não tenho não. Mas sempre tive respeito pelos meus pais. Na minha época, mãe conversava com os olhos com o filho. Só no olhar, a minha mãe mandava a gente sair da sala para conversar. Eu tinha 12 anos quando comecei a fumar cachimbo e minha mãe morreu e nunca me viu fumar. Isso era respeito. Fumo cachimbo até hoje, e bebo vinho também. P.: Vovó, o que a senhora acha das garotas que estão ficando grávidas cedo? R.: Isso é uma falta de respeito. As mulheres estão muito desvalorizadas. Antes eram os homens que iam até as mulheres. Agora mudou, as mulheres é que vão até aos homens. P.: Com quantos anos a senhora teve o seu primeiro filho? R.: Com 18 anos. P.: O que a senhora acha da Mangueira de antigamente comparada com a de hoje? R.: Prefiro a de hoje. Não tem mais barracos, as casas são de tijolos, tem água, as condições de vida são melhores. Só acho que a educação era mais rígida antigamente, melhor do que a de hoje. P.: A senhora tem alguma coisa que a senhora guarda até hoje de valor? R.: Tenho a saudade de meus pais.

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P.: Do que a senhora não sente saudade? R.: Não tenho isso, não fico remoendo nada, não coloco nada na cabeça. Por isso estou viva até hoje. P.: O que a senhora faz quando fica em casa? R.: Eu lavo roupa, arrumo casa, faço comida e tomo conta de criança. Vejo televisão, ela é a minha amiga. P.: Quem lhe deu esse medalhão que a senhora usa? R.: Foi o meu filho que já morreu. É o nome de uma cabocla, uma proteção. P.: A senhora quer viver quantos anos? R.: Se me levasse agora eu gostaria. P.: A senhora até hoje freqüenta o candomblé? R.: Não, porque com o que eu sei não preciso mais sair de casa para ir a lugar nenhum. Ninguém pode viver sem uma fé, seja ela qual for. Em todos esses anos vividos, um dia se vive bem e o outro se vive mal. A gente vai vivendo e vai levando. P.: É verdade que a senhora fez o parto do Elmo José dos Santos, ex-presidente da Mangueira? R.: É, dele e de um monte de gente. P.: Qual a idade que a senhora mais gostou na sua vida? R.: Meus quinze anos. Teve uma festa linda, meu pai matou porco e cabrito. Tinha poucas pessoas porque morava muito pouca gente aqui. P.: A senhora lembra do Carlos Cachaça? R.: Sim, era meu compadre, foi quem trouxe Cartola para a Mangueira. P.: A senhora tinha muita amizade com dona Neuma? R.: Ela era minha sobrinha.

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P.: Há quantos anos a senhora vem conservando esses vidros na cristaleira? R.: Desde quando eu me casei, em 1917. Minha cristaleira e minha cama são as peças que eu conservo até hoje. P.: As pessoas pagavam para a senhora fazer o parto? R.: Algumas pagavam, outras me agradavam com alguma coisa e outras não tinham como dar nada e eu fazia o parto da mesma forma, igual aos outros. P.: A senhora casou com o seu primeiro namorado e ficou noiva direitinho? R.: Foi o meu primeiro e único namorado e marido. Foi um grande homem e um grande marido. P.: A senhora nunca se separou dele? R.: Não. P.: A senhora gosta de repórter e de fotografia? R.: Gosto, e o melhor é quando acaba tudo e vocês vão embora, não ficam aqui me perturbando (ela mesmo caiu na risada e todo mundo foi junto). P.: O que a senhora deseja para os seus filhos, netos, bisnetos e tataranetos, outros parentes e amigos? R.: Quero que todos tenham juízo e que trabalhem. P.: Qual a profissão que a senhora gosta? R.: Médico pediatra. P.: O que a senhora acha dos idosos? R.: Não é o meu caso, mas eles ficam sozinhos.


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Uma vovó enxuta Marcos Paulo Soares

Ela tem 101 anos, mas com a mente de 15. Já foi parteira e fez de tudo um pouco. Teve 14 filhos, mas só cinco estão vivos. A sua vida foi muito corrida, ela teve alegrias e tristezas. Vovó Lucíola continua viva e muito forte. Adora um vinho bem geladinho. E gosta de falar um belo palavrão de vez em quando. Vovó Lucíola é mais uma pessoa que tem vontade de viver com intensidade. Assim como é uma pessoa alegre, também já chorou muito em sua vida. Foi casada com um operário e trabalhou fazendo chapéus. Fez partos de gente que já até morreu. Além do vinho, gosta de seu cachimbo, que fuma desde os 12 anos. Será que a natureza fez com que vovó Lucíola fosse um anjo da guarda das pessoas? Então ela é um anjo com muita luz e prosperidade. Vovó Lucíola será sempre uma velhinha 100% sagaz. Será muito difícil alguém não gostar dessa senhora que já conquistou os corações dos mangueirenses. Ela é uma pessoa verdadeira, que não tem medo de dizer o que pensa, e não tem costume de mandar recado. Vovó Lucíola nunca desfilou na Mangueira e não gosta de lugares barulhentos. Adora bichos. Nas suas entrevistas, mostra que é uma pessoa muito corajosa e que tem um gênio muito forte. Ela é chamada de parteira de todo mundo! Se eu fosse escolher uma frase para vovó Lucíola, escolheria essa: “Os caminhos da vida são muito curtos para quem não sabe caminhar.” 54


Ser alguém na vida Marcos Paulo Soares Muitos lugares são perigosos. Principalmente dentro de casa. Muitos pais espancam seus filhos sem ter a menor piedade e nem noção do que estão fazendo. Garotos de hoje em dia só querem saber da vida do crime. Não têm a menor responsabilidade pelo que estão fazendo. Da mesma forma, garotas entram para a vida fácil. Os pais colocam seus filhos para trabalhar para eles como se fossem seus escravos. Será que esses pais ou responsáveis não têm pena de seus filhos? Pessoas que fazem isso não são dignas de respeito e precisam ter uma lição. Isso faz com que meninos e meninas se estraguem na vida do crime. Quem tem a cabeça no lugar procura se livrar o quanto antes dessa coisa que se chama droga. Hoje em dia temos muitos projetos sociais que ajudam as crianças a batalharem por um emprego melhor e a ser alguém na vida. Ajudam as crianças a não se entregarem a uma vida que só leva à morte e à destruição para todos nós. Porque quando você perde uma criança é mais uma vida que termina com tristeza e rancor. É disso que os pais têm que se dar conta. E nunca, jamais, explorar os seus filhos. Por mais que ele esteja numa pior, jamais deixe seu filho na mão. Muitas vezes é a sua mão que pode tirar o seu filho daquele buraco em que ele se encontra. A vida é tão boa para quem sabe aproveitá-la intensamente. Nós temos que aproveitar cada minutinho de nossas vidas, porque a vida é muito preciosa. Precisamos de um Brasil melhor e com mais dignidade para viver. O Brasil está precisando de pessoas com coragem para mudar esta nação. São os caminhos que levam aos piores lugares que podem nos levar para o encontro com a morte. A humanidade precisa se conscientizar. Eu termino esta crônica na esperança de um mundo melhor. 55


sa úd e Por uma geografia saudável Marília Costa e Pâmela Oliveira

A Mangueira tem muitas casas caindo, os esgotos correm a céu aberto e os ratos entram a qualquer hora, causando doenças e até mortes. Ainda há muita falta de água no morro, isso sem falar das pessoas que desperdiçam. Tem gente, como a dona Gumercinda, nos Três Tombos, que bota barreiras dentro de casa para evitar que a água da chuva e do esgoto entre e espalhe doenças. Foi um jeito que ela arranjou de proteger sua casa e sua família. Andando pelo morro, a Equipe de Saúde descobriu muitas coisas que precisam ser mudadas para melhorar a saúde das pessoas. É muito lixo jogado pelos cantos, onde os insetos e os ratos fazem a festa. Mesmo com todos os cuidados de higiene, muitas pessoas acabam adoecendo com febre alta, gripe, dengue, doenças de pele e alergia. Um caso muito comum é o das crianças que ficam com o corpo cheio de bolinhas e vão ao Posto de Saúde da Vila para se tratar com o dermatologista. Às vezes o posto da Vila não dá conta de atender todo mundo e as pessoas acordam de madrugada para pegar senha no INSS da Mangueira. As senhas começam a ser distribuídas às quatro da manhã e muita gente dorme na fila para conseguir uma. Nos Três Tombos, nos Telégrafos e na Pedra está cheio de crianças com doenças de pele. Na Olaria, os moradores reclamam muitos dos ratos. É que a urina dos bichos se mistura com a água da chuva e leva doenças para as crianças que brincam descalças. A enfermeira Cínthia Maia, do posto da Vila, explicou que uma dessas doenças é a leptospirose e que ela é muito grave se não for tratada rapidinho. Muitas mães ficam apavoradas com essa doença e correm com os filhos para os hospitais Souza Aguiar, no Centro; ou Pedro Ernesto, em Vila Isabel, quando as crianças começam a ter febre alta. As pessoas têm que entender que saúde não é brincadeira, que para ter uma vida saudável é preciso viver num lugar saudável, mesmo que esse lugar tenha muitas carências, como é o caso da Mangueira. As pessoas têm que tentar se proteger dentro de suas casas, inventando barreiras ou outras soluções improvisadas, mas devem exigir que o governo faça obras para melhorar a vida no morro. A Mangueira tem muitas doenças, como tuberculose, AIDS, sífilis, gonorréia e pneumonia; tem muitas crianças que brincam em lugares muito sujos, mas as pessoas que vivem aqui querem ser felizes e ter uma saúde melhor. 56


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Telégrafos

Telégrafos O morro dos Telégrafos é uma das partes mais altas da comunidade. Enfrenta muitos problemas de acúmulo de lixo. Segundo o presidente da Associação de Moradores, José Roque Ferreira, o lixo fica acumulado nas ruas quando chove e isso causa muitos problemas de saúde para os 15 mil moradores do lugar. O lixo jogado nas ruas atrai ratos, embora todos os dias os lixeiros venham limpar tudo,” explicou José Roque. Ele disse que há um outro grave problema social nos Telégrafos: as pessoas entre 12 e 14 anos que não querem trabalhar e acabam entrando para a vida do crime. “Os jovens que tem 12, até 14 anos não querem trabalhar e gostaria que alguém tirasse essas crianças da vida do crime e desse um emprego para elas. Porque dessa idade ninguém quer aceitar para trabalhar,” ele disse.

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Três Tombos e Barreira da Poló Dona Gumercinda Gonçalves Pinto, de 65 anos, mora há quase 50 anos na travessa São Sebastião, número 4, em Três Tombos. Sua casa fica bem embaixo de uma encosta. Quando chove, o lixo acumulado faz pressão sobre a casa. Dona Gumercinda teve de abrir um buraco na parede para deixar que a água passasse por dentro de sua casa. “Tive que fazer isso, ou então perdia a casa numa enxurrada,” ela contou. Além disso, ela construiu uma mureta na sala, para evitar que a água chegasse aos outros cômodos. É como se um canal passasse pela sala da casa dela. “O lixo cai lá de trás, os ratos entram por aquele buraco, mas foi o jeito que eu encontrei porque a casa poderia desabar em dia de chuva forte. Desce tudo quando chove: barro, terra e lixo. A água passa pela sala como se fosse um rio e escoa para a travessa. Mesmo com essa mureta, eu tenho que ficar vigiando porque a água pode transbordar. Aí, eu uso a vassoura para tirar ela de casa. Outro dia fui a Niterói, choveu muito e quando voltei a casa era água pura. Eu tinha vontade de levantar uma mureta maior, mas aí ia ser difícil chegar no tanque de roupa, que fica dentro da mureta. Antes de fazer essa mureta, eu cavei muita terra para abrir esse canal. Depois é que jogamos o concreto,” lembrou dona Gumercinda. As obras do projeto Favela-Bairro nos Três Tombos e na Barreira da Poló trouxeram melhorias aos dois lugares. Pelo menos isso é o que disseram alguns moradores entrevistados. Outros acham que ainda há muitos ratos causando doenças e problemas diversos, como roer roupas de crianças e estragar a comida nas panelas. Esses moradores dizem que muito entulho de obra deixado pra trás pelo Favela-Bairro virou moradia para os ratos. A moradora Meri, de 18 anos, mora há quatro anos nos Três Tombos e acha que mudou alguma coisa. Agora, o lixeiro passa todo dia. Ainda tem muitos ratos, mas eles não entram na casa dela. A água cai todo dia. O morador Rodrigo, de 19 anos, acha que o Favela-Bairro mudou tudo: tinha muitos ratos e hoje não tem mais. Além disso, segundo ele, o lixeiro passa todo dia. Já o morador Pedro, de 52 anos, mora há 15 anos na Barreira da Poló e acha que o Favela-Bairro mudou mais ou menos. Os ratos invadem a casa dele pela laje, os esgotos entopem e ele já ficou doente por causa disso. A água cai um dia sim, outro não. 60


Três Tombos

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Três Tombos


Elvis e Chalé

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Elvis e Chalé O Elvis se chama assim porque o dono de uma birosca que tinha lá era fã do Elvis Presley, um cantor americano que já morreu. Os moradores mais velhos dizem que o cara se vestia com casaco de couro e cortava o cabelo igual ao do cantor. Ele já se mudou do morro e a birosca foi fechada, hoje está abandonada e serve de abrigo para os ratos. Quem mora ali perto reclama muito. A prefeitura começou a construir um viaduto no Elvis, mas as obras estão paradas. A estrutura de ferro está abandonada e é um lugar perigoso porque as crianças querem brincar de se equilibrar lá. Como tem entulho de obra, a poeira sobe para o Elvis quando venta e os ratos invadem as casas. Quem mora por ali tem sempre ratoeiras espalhadas para pegar os ratos, mas como eles são muitos não tem ratoeira que dê jeito. O viaduto vai dar lá no Chalé, mas lá em cima já colocaram o concreto, por isso o problema é menor.

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Candelária A travessa São Jerônimo é conhecida na Candelária como Canal da Sujeira. A moradora Rute Luisa Marinho Silva explicou: “Para sair de casa, tem que sair de chinelo e lavar os pés lá fora antes de botar o sapato. Porque fica tudo cheio de água suja”. Ela contou que a mureta de 30 centímetros na porta de sua casa é para impedir que a água do esgoto entre. “Quando chove, o canal transborda e inunda tudo, atravessa a mureta e vira um rio. Moro aqui há 47 anos. Esse canal já foi muito mais fundo e limpo. Cabia um homem em pé aí dentro.”

Candelária

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alunos da Casa das Artes

Dona Rute contou que o seu falecido marido costumava limpar o canal. “Mas o povo deixou de limpar porque rapaz novo não quer nada. Os velhos foram morrendo, outros mudaram daqui e foi ficando assim. Mulher não pode fazer esse serviço. O que a gente faz é catar o lixo por cima. A água desse canal vem lá de cima e, quando chove muito, as sacolas de lixo ficam boiando. É preciso a gente pegar uma pá ou uma vassoura velha para ir tirando e botando em um canto. Eu já não faço mais isso porque não agüento, mas algumas mulheres da vizinhança ainda fazem.” Os ratos e mosquitos são velhos conhecidos de dona Rute. “É cada ratazana que a gente fica doida. E tem aqueles camundongos abusados, que depois que entram na sua casa é um custo para tirar. Eles sobem pelos fios, pelos galhos das árvores, entram por todo o buraco. São malabaristas. Os vizinhos e eu colocamos sempre remédio, mas tem dia que o senhor vem aqui e tropeça nos ratos,” ela disse. O mau cheiro no local é insuportável, em dias de sol é pior porque a vala fica rasa e a água, estagnada. “Tinha risco também das crianças caírem no canal, muitas caíram, mas colocamos essa porta velha para fechar a passagem. Se a gente pagar, vem uma turma aí da Comlurb e limpa, mas é só por cima, uns dois dias depois volta tudo.” Longe da travessa São Jerônimo, na parte alta da Candelária, o cenário é outro. Os prédios construídos pela prefeitura são todos coloridos e estão novinhos. Muita gente diz que ali moram os que têm mais dinheiro ou são apadrinhados de pessoas do governo. Nem parece que é a Mangueira. 63


A ponta da linha Laila Magalhães e Thamires Silva Mesmo não sendo um hospital, o Posto de Saúde da Vila Olímpica da Mangueira é o primeiro lugar em que as pessoas da comunidade pensam quando alguém fica doente. A diretora Ana Isabel Brum e a enfermeira Cínthia Maia são duas profissionais de saúde que aprenderam a conhecer a Mangueira pelo contato com seus habitantes em situações difíceis, como a doença. Elas contaram como é o trabalho no PS da Vila. Para Ana Brum, o caso mais triste é o de violência contra crianças. “Violência contra crianças são ‘n’ coisas. Às vezes, o agressor é o próprio pai ou a mãe. Violência é torturar, imobilizar, agredir com pau, desvalorizar, manter presa a criança. Muitas vezes, a família não tem estrutura para manter esse filho. E tentamos aqui ajudar de todas as formas,” disse a diretora. O sonho de Ana Brum é construir um posto de vacinação na comunidade. Atualmente, o PS da Vila cuida de 800 casos de pressão alta e 150 casos de diabete. Se não forem acompanhados, são casos que podem levar à morte. Para Ana Brum, a doença mais grave que o posto atende é AIDS em gestantes. O posto também atende muitos idosos que não têm a atenção dos familiares e por isso vão procurar um pouco de atenção com as pessoas que trabalham no PS. A enfermeira Cínthia Maia faz atendimentos de adolescentes, crianças e adultos. Ela mora em São Gonçalo, lá do outro lado da ponte. É casada há dois anos, não tem filhos, mas pretende ter no ano que vem. Ela coordena grupos de mulheres que vão ao posto para falar de seus problemas com violência doméstica, alcoolismo e outros problemas. É um trabalho que ela gosta muito. Também é supervisora do programa de agentes comunitários. Cínthia contou que no posto chegam muitas adolescentes grávidas e a recomendação que ela faz é que ela mude alguns hábitos de vida, como não andar de bicicleta como andava, não ir ao baile funk e outras medidas. Nos primeiros três meses de gravidez, a gestante é orientada e fazer exames e testes para saber da existência de doenças. “Se tiver, toma logo o medicamento. No caso da AIDS, a criança nasce com uma possibilidade de ser saudável mesmo que a mãe seja HIV positivo.” Ela explicou que a gravidez na adolescência é de alto risco. “Pode causar até um câncer de útero futuramente. Quanto mais jovem for a menina mais perigo ela corre. O corpo dela ainda está se formando. Quando ela engravida, o corpo interrompe essa formação. Isso pode causar vários problemas.” A enfermeira falou que algumas doenças na Mangueira têm muito a ver com as condições de moradia. “Na comunidade, quais são os bichos que nós vemos? Rato, mosquito, lacraia, barata. Os mosquitos são transmissores de algumas doenças, os ratos também.” Ela disse que os agentes comunitários circulam pela comunidade para orientar as famílias a ter uma vida mais saudável. Cínthia disse que sua convivência com famílias da Mangueira mostrou que tem muitas crianças fora do peso porque são desnutridas, muitos adolescentes sem ocupação e muita gente analfabeta. 64


Contra todos os males Laila Magalhães e Marília Costa

Elas são procuradas por muitas pessoas da Mangueira para curar doenças, tirar mau-olhado, encosto, quebranto e outros males. Não são médicas e não usam remédio. São as rezadeiras, senhoras respeitadas na comunidade por seus conhecimentos e sabedoria. Uma delas é dona Mila, de 56 anos, que mora há 36 anos na Mangueira. Foi no bairro de Piedade que essa carioca, aos 14 anos, aprendeu a rezar e a curar. Tudo começou como uma brincadeira. Ela tinha uma vizinha doente e, um dia, colheu no mato algumas ervas e começou a rezar a moça. Ela ficou boa e, desde esse dia, dona Mila passou a rezar as pessoas. Em sua família, só ela reza. A mãe dela é macumbeira. A maioria das crianças que são levadas até a casa de dona Mila, perto do largo do Careca, está com mau-olhado, ventre virado e quebranto. A única coisa que dona Mila não reza é espinhela caída. Os ingredientes utilizados para as rezas são: boldo, saião e as palavras. Para rezar quebranto é utilizada uma vela e a reza Ave-Maria. Ela diz para que o menino Jesus de Praga a ajude a aliviar esse mau-olhado dessa criança.

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Dona Mila


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Dona Celina e Camila Lima


Dona Mila reza muitas pessoas por dia; são tantas as pessoas que a procuram que ela não tem tempo nem de fazer suas coisas pessoais. Ela se sente muito bem ao tirar a dor de uma pessoa, e não cobra para fazer isso. Além de rezar pessoas, dona Mila não exerce nem uma profissão. Ela não faz trabalho de amarração, pois diz que isso não existe. Dona Mila ensinou como trazer a pessoa amada para o seu lado. “Escreva num papel o nome da pessoa, a data de nascimento e o dia que você escreveu. Coloque num copo de água com açúcar e acenda uma vela para o anjo da guarda. Reze um Pai-Nosso e uma Ave-Maria. Isso deve ser feito na sexta-feira, no sábado e no domingo,” ela ensinou. Outra rezadeira muito respeitada no morro é dona Celina. A casa dela é de Exu da Força da rua. “Os santos são Zé Pelintra do Morro, seu Malandro das Sete Encruzilhadas, Manezinho, Maria Mulambo, Tranca Rua do Baile, Pomba Gira, Maria Padilha das Sete Catacumbas, Rainha do Cabaré e a Cigana,” explicou ela, que segue a linha angolana. Dona Celina tem 70 anos de idade e 53 anos de rezadeira. Os santos foram deixados de herança por sua mãe. “Eu sou neta de índio e de africano, a minha avó foi pega no laço. Nasci em fazenda no Ceará,” contou. Dona Celina é a baiana mais velha da Mangueira e tem até faixa que recebeu no Dia das Mães. Ela começou a desfilar como baiana na escola em 1950. “Fui mãe de 11 filhos, tenho 15 netos, 23 bisnetos e 1 tataraneto.” Um assunto que deixa triste a dona Celina é a morte de um de seus filhos. Ela disse que foi a polícia que matou o rapaz. “Tem três anos que ele morreu e os assassinos estão soltos. Ele não era vagabundo, era doente da cabeça. Mas a polícia não quis nem saber e assassinou ele”, contou dona Celina, que até hoje chora muito quando lembra do filho.

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E quem não tem plano? Marcos Paulo Soares O que acontece com as pessoas que não têm plano de saúde? Ficam sempre correndo de hospitais para outros hospitais. Isso faz com que as pessoas fiquem mais doentes do que já são. Idosos morrem na fila de hospitais por falta de médicos. Onde estão os médicos e os nossos hospitais? Estão em greve esperando os seus pagamentos. Muitas vezes ficam até três meses sem ver a cor do dinheiro. Hospitais fecham porque estão sempre em greve. A minha opinião é que esses governantes não têm a menor responsabilidade dos seus cargos e usam isso para humilhar a população que não tem condições financeiras para pagar um plano de saúde. Mas os únicos responsáveis por tudo isso são as próprias pessoas que votam nesses governantes. Enquanto essas pessoas estiverem nos cargos sempre estaremos em segundo plano em tudo. O Brasil tem muitos médicos que têm capacidade de se expandir e também expandir seu trabalho com dignidade e sabedoria. As pessoas têm que se mobilizar e compreender esses ideais. Sabedoria não é só você ensinar as pessoas, mas sim você aprender cada dia mais com outras pessoas. Não se pode colher sem plantar. 68


A realidade do morro Marcos Paulo Soares Muitas pessoas moram em morro por conta de suas condições financeiras. São pessoas humildes e de bom coração. Apesar de sofrer muitas coisas, as pessoas que moram no morro estão sempre de bem com a vida. As ruas são sem calçamento, esgotos a céu aberto, ratos e bueiros sujos em todos os lugares. Será que algum dia as pessoas que moram no morro vão ter o mesmo direito que as pessoas que moram no asfalto? Ou será que vão continuar sendo humilhadas e esperando uma condição de vida melhor? Na Mangueira, muitas pessoas reclamam disso a toda hora. Uma moradora chamada Gumercinda, que vive há anos na Mangueira, reclama do esgoto que alaga a sua casa em dias de chuva. Isso prejudica não só a dona Gumercinda, mas também seus filhos e netos. Ela diz que o cheiro é insuportável e que ninguém suporta a lixeira que fica na porta. Dona Gumercinda pergunta quando nós vamos poder viver com dignidade e igualdade, como outras pessoas. Ela diz: “Nunca roubei nada que fosse de alguém, sempre trabalhei para não faltar nada aos meus filhos.” Pessoas que moram no morro são pessoas muito boas, mas infelizmente algumas pessoas não enxergam isso de jeito nenhum. Em que Brasil nós estamos, onde tudo para os pobres sempre é mais difícil? Mas se Deus é por nós, quem será contra nós? A justiça é o escudo dos pobres.

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E quip e de a rte Alana de Oliveira Donato, 12 Armando Roberto C. Mendes da Silva, 12 Roberto Firmino dos Santos Sobrinho, 13 Ronaldo Ladeira de Araújo, 12 Ronilson Ladeira de Araújo, 12 Rosivaldo Cândido da Cruz, 11 Wagner Silva e Santos, 13

José Campos


a rt e Muito além do samba Alana Donato Mangueira é sinônimo de samba em qualquer lugar do mundo. Quando visitou o morro, em 1999, o presidente norte-americano Bill Clinton até tocou tamborim. O Palácio do Samba é parada obrigatória para qualquer visitante. A comunidade tem muito orgulho do samba, mas temos outras formas de arte no morro. São artistas pouco conhecidos fora da Mangueira que queremos apresentar. Zequinha das Pipas é um deles. Com sua mulher Simone, o funcionário de laboratório José Maria da Silva, de 33 anos, faz pipas nas horas de folga em uma oficina na parte de baixo de sua casa, no Buraco Quente. No mesmo pedaço do morro mora Dulcinéia de Oliveira Paz, mas quase ninguém conhece esse nome. Tem que perguntar por dona Néa, costureira e bordadeira famosa. Ela lidera uma equipe de artistas que faz fantasias de alas da escola de samba. Também costureira, Guaraciara Vieira, a Guará, faz roupas para crianças e adultos em um pequeno ateliê na laje de sua casa, no Chalé. Neste capítulo, vamos conhecer um pouco da arte dessa gente que enche a Mangueira de orgulho e mostrar que a comunidade não vive só de samba.

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Artur e Rodrigo

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Bola, fama e dinheiro Artur e Rodrigo, jogadores de futebol Armando Mendes Eles estão começando a realizar um sonho que é o mesmo de uma galera na Mangueira: ser jogador de futebol. Artur da Silva, de 18 anos, e Rodrigo Cardoso, de 17, começaram a jogar futebol na Vila Olímpica e hoje estão treinando em clubes. Artur está no Flamengo e Rodrigo, no Madureira. Para chegar lá, tiveram que driblar muitas dificuldades, com força de vontade. Nessa caminhada, foi fundamental a ajuda de um amigo comum, hoje empresário dos dois no mundo do futebol: Washington Fortunato. Nascidos e criados na Mangueira, os dois se conheceram em peladas de rua no morro e na Quinta da Boa Vista. Rodrigo sempre gostou de jogar no ataque e, no Madureira, atua como atacante e meia ofensivo. Artur, que está treinando no Flamengo, é volante e sabe jogar nas duas laterais. Eles sabem que os meninos mais novos sempre pensam que jogar bola num clube grande pode trazer dinheiro e fama, mas têm a cabeça no lugar. “Isso é conseqüência de um trabalho duro,” diz Artur. Rodrigo concorda: “É um mundo muito disputado, você tem que ter cabeça pra segurar.” Artur e Rodrigo já passaram por uma peneira. No Flamengo, os dois foram selecionados num grupo de dez jogadores para treinar no juvenil. Eram 4.200 candidatos para dez vagas. Rodrigo optou por ir para o Madureira para disputar o Campeonato Brasileiro de Juniores com chance de ser titular. “Estou no grupo dos 25,” disse ele. O Artur continua no Flamengo. Rodrigo contou que o futebol já ajudou bastante na sua vida. A morte do pai, que estava incentivando o filho a seguir a carreira, foi um baque. “Com a morte dele, eu fiquei revoltado e virei a cabeça. Até marginal eu fui, mas depois voltei à razão e consegui voltar a ser jogador,” lembrou ele, com lágrimas nos olhos. Quando o pai dele era vivo, Rodrigo freqüentava a igreja Batista. “Depois que ele morreu eu não fui mais.” Artur tem muitos irmãos. São sete homens e cinco mulheres. Ele contou que, além dos amigos, alguns irmãos o criticaram por tentar seguir a carreira de jogador. “Meu irmão perguntava por que eu estava jogando se sabia que não ia dar em nada. Tive que resistir a todas as críticas porque quase ninguém acreditava em mim.” Artur cursou até a terceira série, enquanto Rodrigo chegou até a sétima. Como conselho a quem quiser seguir a carreira, os dois dizem a mesma coisa: “Que não desanime com as críticas, que tenha fé e que corra atrás”. No final, os alunos da Casa das Artes quiseram saber se os dois pensam em casar e eles ficaram tímidos, dizendo apenas “não”. Depois, tiveram que dar autógrafos para todo mundo. 72


A música no sangue Bira Show,músico e compositor Wagner Silva e Marília Costa (da Equipe de Saúde, em participação especial)

Filho de Padeirinho, um dos maiores compositores da história da Mangueira, Bira Show seguiu os passos do pai. Mestre da percussão, ele é muito chamado para shows e gravações por grandes artistas da MPB. Morador da rua Saião Lobato, no Buraco Quente, Bira Show já morou na Joaquina e tem muito orgulho em ver que um de seus filhos, Ubiranei, já está no caminho da música: ele toca cavaquinho e já formou um grupo de pagode que se apresenta na comunidade.

Bira Show

Bira Show toca pandeiro, cuíca, surdo e outros instrumentos de percussão. Quando perguntamos quem o ensinou a tocar, ele respondeu: "Foi um mangueirense que se chama Carlinhos Pandeiro de Ouro e que hoje está morando em Miami". Bira Show é um cara antenado com as últimas novidades, mas disse que não gosta de piercing e que, no que depender dele, seus filhos não vão usar. Ele tem quatro filhos, sendo uma mulher e três homens. Bira Show é mangueirense até a alma e disse que nunca pensou em torcer por outra escola de samba que não fosse a Estação Primeira. Ele já fez sambasenredo campeões para a Mangueira, mas hoje não participa mais das escolhas na quadra. Ele é um cara muito ocupado com gravações em estúdio para discos e com ensaios de shows e apresentações, mas conseguiu um tempo na agenda para receber os alunos da Casa das Artes em sua casa no Buraco Quente e até cantou uns sambas de sua autoria.

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A primeira a gente nunca esquece Ediléia, primeira rainha eleita de bateria Wagner Silva e Roberto Firmino 39

Ediléia de Araújo Oliveira foi a primeira rainha de bateria eleita da Mangueira, supercampeã no primeiro título do Sambódromo, em 1984. Naquele ano, Ediléia chegou a desmaiar no fim do desfile e nem viu quando a Mangueira deu a volta na praça da Apoteose e voltou à pista, para delírio da arquibancada. Ela contou que seu marido é muito ciumento e que fazia de tudo para ela não ir aos shows da Mangueira. Por causa desse ciúme e da gravidez – ela ficou grávida aos 17 anos –, Ediléia largou de vez o trono. Uma de suas sobrinhas, a Tânia Bisteka, é a atual rainha de bateria da escola. Também em 1984, Ediléia ganhou um concurso de mulatas no Rio de Janeiro. Ela disse que o fato que mais marcou a sua vida foi o nascimento da sua filha. A carreira de Ediléia começou na ala das crianças, pelas mãos da dona Neuma. Ainda nem existia a Mangueira do Amanhã. Hoje, com 34 anos, ela diz que a filha Jeanne já segue os seus passos e é uma ótima passista. Ediléia trabalha confeccionando bolsas de couro, mas gostaria de ser psicóloga. "Mas sempre gostei de dançar. Quando eu era pequena, tinha mania de dançar na frente do espelho," contou ela à Equipe de Arte, no dia 10 de Agosto de 2001. Ediléia de Araújo Oliveira

Ela lembra o nome do primeiro namorado. Foi o Valdir, quando ela tinha 13 anos. Mas depois mudou logo de assunto porque o marido é ciumento. Disse que gosta de batom vermelho, que usa tinta preta para pintar o cabelo e que faz lamba-aeróbica em academia de ginástica para manter a forma. 74


Valtinho

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A vida antes do Funk’n Lata Valtinho e Ivo Meireles, músicos Ronilson Ladeira, Armando Mendes, Roberto Firmino e Rosivaldo Cruz

Luís Antônio Zacarias Pereira, o Valtinho, tem 32 anos e é um dos integrantes do grupo Funk’n Lata. Apesar da fama, é um cara simples que mora na Mangueira e não esquece alguns fatos marcantes de sua vida. Pai de Carina, de sete anos, e Igor, de um ano e dois meses, Valtinho lembrou que desde os seus sete anos gostava de música. Com o Funk’n Lata já está há seis anos e conheceu nove países. "O país que eu mais gostei foi Estados Unidos. Mas o show mais legal que já fizemos foi na Dinamarca. Na Alemanha, expulsam as pessoas por motivo de dinheiro, mas com a gente não houve isso. E na Bélgica teve uma confusão no show e a polícia jogou uma bomba com uma substância que ardia nos olhos," lembrou ele. Muito antes da fama, Valtinho ralou na infância. Vendia pipoca no trem e foi preso uma vez. Esse fato o marcou para sempre por causa da injustiça. "Fiquei preso cinco horas só porque estava tentando ganhar a vida vendendo pipoca no trem." Assim como Valtinho, Ivo Meireles, de 35 anos, também teve uma infância difícil. "No passado não tínhamos recursos, hoje vocês têm umas coisas que eu não tive na minha infância, como por exemplo, a Vila Olímpica. Na minha infância, eu não tinha o morro pavimentado, era tudo vala negra. Eu acho que no passado, por falta de recursos, a gente não tinha essas facilidades que hoje vocês têm." Ele lembrou que o grupo nasceu de uma idéia dele de misturar instrumentos de samba com funk, rock e pop. "Peguei os instrumentos da bateria, coloquei guitarra, baixo e instrumentos de sopro e aí nasceu o Funk’n Lata," lembrou Ivo. 75


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Guaraciara de Araújo Vieira

Guará, costureira Ronilson Ladeira

Guaraciara de Araújo Vieira, de 38 anos, muito conhecida como Guará, tem que vender roupa de porta em porta para conseguir o seu sustento. Ela faz as suas próprias roupas, num cômodo que construiu na laje de sua casa, no alto do Chalé. O seu objetivo de vida agora é colocar barracas em vários lugares do morro. Por enquanto, ela tem uma barraquinha na porta de sua casa, às sextas, sábados e domingos. Com dois filhos, Alexandre e Gerson, Guará trabalha com malha e gosta mais de fazer roupas para crianças. Ela já trabalhou em uma fábrica chamada Railane como arrematadeira. É costureira desde os 18 anos de idade. Em um dia de trabalho, nas três máquinas de costura de seu ateliê, ela consegue fazer 20 conjuntos de malha. Na entrevista que deu à Equipe de Arte, em 17 de julho de 2001, Guará disse que estudou até a oitava série e que parou quando engravidou pela primeira vez. Ela contou que dá para sobreviver com o que ganha com a costura. "Mas eu tenho que fazer as roupas e ainda levar em porta em porta para vender," disse ela. O preço das roupas dela varia de R$8,00 a R$12,00. Ela acha que a Mangueira tem potencial para ter uma cooperativa de costura, como tem em outros morros. "Tem gente que trabalha com malha e com tecido. Só precisamos da maquinaria e de um lugar com espaço. Não é muita coisa." Guará disse que, uma vez por mês, compra a matéria-prima a quilo no Rio Comprido e na Penha, depois de fazer uma pesquisa de preço. Ela mesma costura as blusas que seus filhos usam. "Só as calças eles compram em loja." 76


Ela entende do riscado Dona Néa, bordadeira e costureira Alana Donato

Dulcinéa de Oliveira Paz, a dona Néa, vai trabalhar muito até o carnaval. Todo ano é assim. Quando chega agosto ou setembro, ela muda sua rotina de vida e passa a maior parte do tempo na parte de cima de sua casa, no Buraco Quente, onde mantém um ateliê de costura. Ela é uma das mais conhecidas costureiras e bordadeiras de fantasias do morro de Mangueira. E não trabalha sozinha. Fazem parte de sua equipe Maria Nizete Mendes Doval, Edson da Costa Santos e Eneidina. A costureira tem 63 anos e nasceu na localidade de Três Tombos. Maria Nizete tem 68 anos e é de Minas Gerais. Chegou à Mangueira com 16 anos. O trabalho de fazer fantasias começou há 35 anos, quando dona Néa passou a ser presidente de uma ala na escola de samba. Hoje, essa ala tem 75 integrantes e ela também é responsável por uma outra ala na Mangueira do Amanhã. Na verdade, a inspiração começou em casa. O pai de dona Néa, Manoel de Oliveira, o Gasolina, foi baluarte da Mangueira e fazia chinelos para algumas alas. Ele morreu com 89 anos. Todas as fantasias de suas alas são feitas por dona Néa e sua equipe no ateliê do Buraco Quente. Ela segue modelos de figurinos fornecidos pelo carnavalesco da escola, mas cria algumas modificações de acordo com sua inspiração "para ficar mais bonito". O trabalho mais pesado no ateliê vai do início de dezembro até poucos dias antes do desfile da Mangueira. As fantasias de adultos saem em média por R$300,00. As da Mangueira do Amanhã ficam de graça. Depois do carnaval, dona Néa só costura para ela: "A velha está cansada." Para fazer as fantasias, o trabalho começa bem antes do corte e costura. Logo depois que chega o protótipo, ela e sua equipe vão pesquisar preços de materiais para chegar ao valor final da fantasia. Como tem bom nome no mercado, dona Néa consegue crédito em lojas como O Babado da Folia. Ela pega o material e pode pagar depois de arrecadar o dinheiro com a venda das fantasias. Para o carnaval de 2002, a fantasia que o ateliê de dona Néa vai produzir é a de Bumba-meu-boi, nos tamanhos P, M e G. O enredo da Mangueira fala sobre o Nordeste brasileiro. As fantasias para crianças merecem carinho especial da equipe de dona Néa. Ela ainda guarda uma fantasia que o pai de uma passista mirim não foi pegar. Um vestido verde e rosa de lantejoulas. "Guardo porque até hoje dá uma dor no coração. Se um adulto não vier pegar a fantasia, eu nem ligo muito. Mas uma criança que fica por falta de fantasia me deixa triste". O mesmo sentimento é compartilhado por outros membros da equipe, como Edson da Costa Santos, de 48 anos. Ele é o responsável pela modelagem. A inspiração veio da esposa Celina, que tinha uma ala na Mangueira. Se não fosse costureira, dona Néa, que tem quatro filhos e sete netos, seria cozinheira, porque adora um fogão. A comida que ela mais gosta é angu à baiana. 77


Alta costura no Chalé Raimundo, estilista Alana Donato e Rosivaldo Cruz

A mãe costureira foi a grande inspiração de Raimundo da Costa Santos para seguir a carreira de estilista. Desde pequeno, em Fortaleza, onde nasceu, ele já se interessava por agulhas, panos e linhas. Só que ele queria ir mais longe do que a mãe. Ela só fazia roupas simples e pequenas. "Eu queria fazer alta costura e logo que acabei o segundo grau em Fortaleza, vim para o Rio de Janeiro fazer uma faculdade de moda. Eu me formei em estilista pela Faculdade Cândido Mendes," lembrou Raimundo, de 34 anos, em entrevista à Equipe de Arte em 3 de agosto de 2001. A Mangueira foi o lugar que ele escolheu para morar: "Gostei e fiquei morando no morro, já estou aqui há 12 anos. Adoro viver aqui, subo e desço a Mangueira a qualquer hora, deixo a casa aberta, não tem perigo". Mas tem um problema que pode fazer com que Raimundo se mude do morro. É que suas clientes, a maioria de classe alta, não sobem até seu ateliê no bairro do Chalé – montado na laje de sua casa. Como ele tem que ir às casas dos clientes para fazer as provas de roupa, perde muito tempo e dinheiro. Caso decida mesmo se mudar, já escolheu o destino: o Bairro de Fátima, no Centro do Rio. Entre as clientes famosas de Raimundo estão as atrizes Ângela Vieira e Dercy Gonçalves e a cantora Elza Soares. Antes de ter seu próprio ateliê, Raimundo trabalhou em lojas logo depois de formado. Mas como ganhava muito pouco, desistiu. Ainda na época da faculdade, Raimundo trabalhava em um hotel como mensageiro e costurava para fora para custear os estudos. Hoje, com seu trabalho de estilista, Raimundo ganha o suficiente para pagar suas dívidas e diz que, se tivesse mais dinheiro, ajudaria algumas famílias da Mangueira. Nas horas vagas, Raimundo se transforma. Ele gosta de participar de concursos de transformismo e diz que isso gera muito preconceito das pessoas. "Não ligo porque não me aborreço por pouca coisa, isso não me atinge". Raimundo se prepara sozinho para esses concursos, menos o penteado: ele vai ao salão um dia antes. Já desce o morro arrumado para o concurso. Os seus colegas de transformismo da noite carioca são a maior parte da clientela do ateliê. "Uma das coisas que me deixa muito feliz é quando faço uma roupa para um transformista e ele ganha o prêmio de melhor traje. Eu me sinto o máximo." O sonho de Raimundo é abrir uma loja com suas próprias roupas. Disposição é o que não falta. Para fazer um terno, ele leva um dia de trabalho. Já para fazer um vestido sofisticado, o prazo é uma semana. Ele se inspira nos costureiros europeus para criar suas roupas – ele tem noções de francês e espanhol – e usa a imaginação. Não gosta de alguns tipos de roupa muito usados na Mangueira, como as de cotton e as calças Saint-Tropez. Raimundo mora sozinho e diz que a sua religião é Deus. 78


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79 Raimundo da Costa Santos


Ela é campeã Tânia Bisteka, rainha de bateria da Mangueira Armando Mendes

Tânia Bisteka

Tânia Bisteka já foi eleita duas vezes rainha de bateria da Mangueira e é filha da Graça, que foi uma grande passista e mulata do Sargentelli. O pai dela, conhecido como Menininho, foi um passista muito respeitado no morro. Todo mundo na comunidade gosta dela, principalmente os caras da bateria, que têm o privilégio de ver a Bisteka sambando na frente deles o tempo todo. Ela já foi casada, mas agora está só namorando. Tem 28 anos e pretende ter um filho. No dia 17 de abril, ela deu uma entrevista à Equipe de Arte. Nem sabia que, em outubro, iria estar participando de No Limite 3, no Fantástico da Rede Globo. Ela foi desclassificada na primeira rodada, mas não importa. Para a galera da Mangueira, a Bisteka é a campeã. O nome dela mesmo é Tânia de Fátima de Lima Fortunado. Ela mora em uma casa no Engenho de Dentro, mas está sempre na Mangueira. O time dela é Flamengo e a religião, espírita. Bisteka já sofreu discriminação fora do Brasil. "Foi em Portugal. Fiquei com tanta raiva que não quero mais pisar lá," lembrou.

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foto cedida pela família

Depois de ficar conhecida no Brasil inteiro por causa de No Limite 3, Bisteka espera realizar mais rápido o sonho de posar para uma revista masculina. "E vou fazer as fotos na Mangueira".


José Maria da Silva, o Zequinha das Pipas

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Sempre olhando pro céu Zequinha das Pipas, artista do bambu e da cola Armando Mendes, Alana Donato, Ronaldo Ladeira, Ronilson Ladeira e Rosivaldo Cruz

Zequinha é um cara muito simples e sensível. Na hora em que fomos fazer com ele uma rapidinha, Zequinha se emocionou ao lembrar do pai e chorou. Ficou um silêncio, mas aí o professor encomendou a ele uma pipa com o escudo do Botafogo e o clima voltou ao normal. Foi uma entrevista tão boa que o professor pagou uma pipa para cada um dos alunos. E tudo acabou bem, ficou tudo legal, e o Zequinha ficou famoso. A entrevista foi no dia 10 de agosto de 2001, na casa do Zequinha, na subida do Buraco Quente. Foi assim:

P.: Qual é o seu nome? R.: José Maria da Silva, vulgo Zequinha. P.: Quantos anos você tem e há quantos anos faz pipas? R.: Tenho 33 e faço pipas desde 15 anos de idade. Eu tinha 15 anos quanto fiz para meu uso próprio e só passei a revender há dois anos. P.: Nasceu aonde ? R.: Na Paraíba, mas com 8 meses de vida vim para o Rio e ingressei na comunidade mangueirense.

P.: Quem deu a idéia de fazer pipas? R.: Partiu de mim. Eu comprava pipas no Mercadão de Madureira e minha mãe viu que as pipas eram de má qualidade. Então resolvi fazer as minhas. P.: É fácil fazer pipa? R.: É fácil quanto tudo é feito com amor e carinho. P.: Precisa de que para fazer uma pipa? R.: O bambu para fazer a vareta, a linha, papel fino e cola. 81


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P.: Quando está na época, quantas pipas e linhas você vende? R.: Pipa simples de 40cm, média de 8 mil a 10 mil pipas. Linha varia o preço que cada uma tem. P.: Onde você compra o seu material? R.: Com fornecedor. Muitos entregam em casa, mas eu costumo ir buscar em Anchieta, Jacarepaguá , Madureira e Rocha Miranda. P.: Você já teve algum prejuízo? R.: Já, em alta temporada pegaram algumas linhas. P.: O que é temporada? R.: Durante o período de 12 meses existem duas temporadas. Uma começa na última semana de novembro e vai até uma semana depois do carnaval. A segunda começa no final de maio e vai até 15 de agosto. Corresponde mais ou menos às férias escolares.

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P.: Qual linha é mais segura para soltar pipa? R.: É a linha Roca, que é mais espessa. P.: Quanto esta custando a linha 10? R.: Depende. A mais barata custa R$10,00 e a mais cara, R$16,00. P.: Você já foi em mato cortar bambu? R.: Sim, quando eu tinha entre 15 e 17 anos tinha um bambuzal em frente à minha casa, e eu ia até lá cortar bambus para fazer as varetas. P.: Hoje você já tem mais facilidade para fazer a pipa? R.: Sim, tem uma pessoa que fornece o material, só tenho o trabalho de repassar as varetas, isto é, passar numa peça de ferro chamada afinador. Com a ajuda do alicate pego na ponta e puxo e ela fica na medida certa. P.: E quando a vareta vem fina demais? R.: Eu seleciono as finas demais e jogo fora porque não pode estar muito fina e nem muito grossa. Tem que ter a medida ideal.


P.: Qual o tipo de pipa que você mais faz ? R.: O tezinho, em forma de T, é a que mais vendo. Dizem que é a melhor pipa. Pra mim são todas iguais. P.: Você usa três varetas por pipa? R.: Todas elas são de três varetas, é o básico. P.: Você aceita encomenda se chegar alguém pedindo uma pipa diferente? R.: Sim aceito, mas é raro. P.: Qual o preço da pipa mais cara? R.: Custa R$1,00. P.: Porque a pipa de um real é mais cara, o papel é especial? R.: A medida da vareta é bem maior e o papel especial já vem pintado. P.: Como você chama esse lugar onde faz as pipas? R.: De pequena empresa. P.: Quem trabalha com você? R.: Somos eu e minha esposa Simone.

P.: Você já vez alguma pipa ruim? R.: Sim. P.: Quando chega uma pessoa e pede para você ensinar a soltar pipa, você ensina? R.: Ensino. P.: Você já fez alguma pipa de plástico? R.: Já, geralmente faço no período de junho porque o tempo está nublado. Ela resiste mais debaixo de chuva. P.: Qual a pipa mais demorada para se fazer? R.: A menor. Quanto menor for, mais difícil é para ser feita. P.: Em um dia quanto você ganha? R.: Se fizer 200 pipas ganho R$50,00. Vendo no atacado e no varejo, mas o meu forte é no atacado. P.: Quanto tempo você leva para fazer uma pipa? R.: Um minuto. P.: Você se inspira na realidade da Mangueira para vender suas pipas? R.: Sim, é na realidade do dia-a-dia.

P.: Você ainda solta pipa? R.:. Sim, mas muito pouco. P.: Quando você era criança alguém te chamou de fominha de pipa? R.: Sim, porque eu soltava pipa até à noite.

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Memória verde e rosa Equipe de Arte Os livros sobre escolas de samba costumam registrar que as cores verde e rosa da Mangueira foram sugeridas por Cartola. Seriam as mesmas cores do Rancho Arrepiados, que o compositor conhecera na infância, quando era morador de Laranjeiras. Bom, vovó Lucíola contou outra história aos alunos da Oficina de Reportagem. Eis a versão dela. P.: Como surgiram as cores da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira? R.: Foram dois irmãos conversando. Um deles, o Serafim, estava chupando uma manga e perguntou ao outro: "A manga é que cor"? E o irmão respondeu: "É verde e rosa". Aí o Serafim decidiu: "Pois então, a partir de hoje, as cores da escola vão ser verde e rosa e o nome vai ser Estação Primeira de Mangueira".

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A arte está no sangue Marcos Paulo Soares Todos nós sabemos o que é arte. Arte é você conhecer um mundo de cores, de várias coisas, como música, samba. Arte é você sentir tudo de bom que está ao seu redor. Muitas pessoas fazem arte, arte de criança, arte da criatividade. Muitas pessoas na Mangueira fazem arte como ninguém. Dona Neuma, Nelson Sargento, dona Zica e muitos outros artistas, alguns que só estão presentes na memória de todos nós. Arte é tudo de bom que uma pessoa pode ter. Algumas pessoas fazem da arte a sua vida. Tem pessoas que gostam de mexer com tinta, outras gostam de outros tipos de arte. A arte está no sangue. Não podemos virar as costas para ela.

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A t er c e i r a m a r g em d o

m or ro

Não é coisa que se explique, posto que é sentimento. Mas os 20 anos dedicados ao jornalismo impõem ao menos uma tentativa. Que seja, vamos lá. Em março de 2001, topei um convite para ser professor da Oficina de Reportagem da Casa das Artes da Mangueira. Dar aulas era função para lá de esporádica em minha vida até então. Uma palestra em faculdade aqui, um curso de curta duração para iniciados ali, mas nada que me credenciasse a estar diante de 40, 20 alunos em cada turma – adolescentes da Mangueira. Uma galera de 12 a 18 anos, com toda a pinta de estar ali mais por imposição dos pais do que por interesse próprio. Um a zero para eles. Todos voltaram na segunda aula, e na terceira. Começaram a montar textos a partir de vivências próprias no morro, escritos a mão em folhas de caderno. Guardo alguns como se fossem diplomas. Muitos sentiam vergonha de mostrar o que escreviam, mais por causa do português claudicante do que pelo que tinham a contar. De um parágrafo nos primeiros textos, passaram a fazer dois, três, quatro. Logo vi que as aulas teóricas, aquilo de ensinar que um texto deve ter princípio, meio e fim, estariam fadadas a uma vida curta. Eles queriam sair pelo morro, ávidos para contar histórias que nós, experientes jornalistas, desconhecíamos ou cometíamos a tolice de relegar. Dois a zero para eles. Trouxeram suas vidas para a sala de aula. E levaram a sala de aula para o morro. Este repórter, de tantas incursões pregressas ao mundo verde e rosa, cantado em samba e verso, foi apresentado a lugares e personagens fascinantes. Lá fomos nós, morro acima, a vista da Quinta no alto da Pedra, o Maracanã como um postal na janela do barraco do Chalé, os contrastes da Candelária, a subida movimentada do Buraco Quente. Zequinha, o artista das pipas, a rezadeira Celina, a solidão de dona Gerci, a Joyce menina e sua filha de colo. Ficaram lá atrás, no asfalto, a minha visão míope, os lugares-comuns das páginas de jornais. Goleada. Olé. Essa galera me ensinou um novo caminho para o jornalismo, longe das redações, fora das grandes empresas. Um jornalismo mais chegado à guerrilha, mais perto do front. Muitos deles me passaram a lição até com a sua ausência. Uma aluna saiu do curso porque arranjou um emprego de cozinheira e babá. Até chorou na despedida. Outra arrumou um estágio, com direito a crachá. Uma terceira, que escrevia tão bem, fugiu do morro por causa de uma paixão. Teve uma que largou a oficina para cuidar da filha recém-nascida. Aquela loirinha da turma da tarde cortou um dobrado para convencer a mãe desempregada que não tinha sentido parar de estudar para tomar conta do irmão mais novo. Foi um sufoco. A gente entende tudo isso. A vida é assim. Em um de seus contos mais primorosos, "A terceira margem do rio", o escritor João Guimarães Rosa narra a saga de um pai que abandona a família e embarca solitário em uma canoa para uma viagem rio afora. O filho passa a vida inteira buscando a explicação, mas acaba descobrindo que um sentimento muito mais forte do que a razão o vai empurrando aos poucos para o mesmo destino: a busca de uma terceira margem apenas imaginada, infinita. Os meninos e meninas da Mangueira tiveram a gentileza de me convidar a conhecer uma terceira margem. E eu, como o filho do conto de Rosa, vou embarcando nessa canoa: morro abaixo, morro afora, morro adentro – o morro.

Alexandre Medeiros 86


O lh ar e s . .. d a m an g u ei r a ... Mangueira seu cenário é uma beleza que a natureza criou... ... Quando amanhece que esplendor... Esses versos nos remetem a uma imagem repleta de emoção traduzida em rostos e movimentos, e quando, de fato, passamos a conviver com as pessoas da Mangueira e, com elas, compartilhamos esse cenário, nos sentimos também parte dessa nação. Uma nação, Estação Primeira, com sua geografia que aprendemos a conhecer com os alunos da oficina de fotografia, assim como, eles aprenderam a observar a formação da imagem através da câmara escura, a perceber o mundo fotográfico, o encontro, a fascinação e sua própria descoberta, onde o "velho e o novo" têm seu lugar comum: a sua imagem e seu esplendor. O projeto da oficina de fotografia nos mostrou talentos, imagens e descobertas surpreendentes. Cada jovem através do encontro com um "novo olhar" foi decodificando os sentidos mágicos da imagem que viam. Em nossa Casa das Artes, em um pequeno laboratório, dos reveladores surgiam pequenos fragmentos de imagens em preto e branco com emocionais nuanças de cinza, se entregando ao desejo colorido dos alunos. Gilson, fotógrafo dedicado à comunidade, vibra com toda sua energia, pois, especialmente ele viveu as dificuldades de abarcar sua profissão e agora se faz instrumento facilitador ao desenvolvimento desse trabalho. Como uma música – a exemplo da beleza do samba – tão cantada nesse lugar, a forma se expressa e se materializa, gerando novas possibilidades de reflexão, jamais restrita a forma, sobre o significado, oculto em nossa cultura. Esta oficina de fotografia ainda vai dar muito "pano pra manga..." A Mangueira é diversa e fabulosamente criativa!

Vantoen Pereira Júnior e Noélia Albuquerque

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Créditos do Livro Coordenação editorial Sueli de Lima Coordenação, edição e organização dos textos Alexandre Medeiros Coordenação, edição e organização das fotos Vantoen Pereira Jr. Noélia Albuquerque e Gilson Lessa (assistentes) Entrevistas, textos e fotografias Alunos da Oficina de Reportagem e da Oficina de Fotografia Projeto e produção gráfica Zot Design - Rara Dias e Tatiana Cerveira Padronização e revisão de texto Rosalina Gouveia Impressão Fábrica de livros – Senai, Xerox e Funguten Fotos Vantoen Pereira Jr. (1, 2, 21, 22, 32, 34, 35) Gilson Lessa (15, 18, 24, 40) Equipe da Oficina de Fotografia Alan Paulo Germano da Silva (3, 7, 13, 14, 16) Alexsandro Silva de Souza (20) Ana Lúcia Caetano (12) Anachellen Cristina Araújo Gomes (6) Andréa Pereira de Macedo (10, 27, 28, 29, 36) Angela Silva Nobre (6) Bruna da Silva Agra (19, 33) Bruna de Oliveira Santos (19, 33) Carine Souza Gomes Barbosa (13, 14, 16, 17, 19, 33, 38) Clelson Leonardo de Deus da Silva (3, 7, 13, 14, 16, 42, 43, 44)

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Daiana Barbosa dos Santos Tanes Daiana Mendes Vera Cruz (27, 28) Daiane Ferreira de Souza (37) Danielle Ferreira Duarte (10) Dayana de Souza Modesto Dhiego da Silva Pereira (43, 44) Diogo de Souza (3, 7) Eduardo Procópio Souza de Melo Graice Kelly de Oliveira Alves Ingrid Ferreira de Souza Ingrid Santos da Silva Jaiza Castro Machado Jean Pierre de Oliveira José Ramos Juciara de Souza Paulino Juliana Paula Afonso Kelly Carvalho de Brito (30) Leomir Melo da Conceição Luiz Eduardo Batista Feitosa Luiz Emanuel Alves de Assis Maurício Alves Silva Nilson Santana Machado Priscila Bruno da Silva Rafael de Oliveira Reinaldo Santos da Silva Renato Junior Miranda Carvalho (17, 25, 26, 38, 41) Roberta da Silva Marques (42) Rodrigo Jesus Rodrigues Rony Portilho Paulino Rosana Reis da Silva (37, 39, 42) Sidney Moreno Miranda (17, 25, 26, 38, 41) Talita do Nascimento Gonçalves Tamirys Gomes de Souza (12, 25, 26) Ubirani Conceição de Oliveira Valdicéa Oliveira Washington Silva do Espírito Santo Wézia Pereira Santos (20, 29, 36)


Agradecimentos Adair Rocha – Núcleo de Comunicação Comunitária / Puc Aloysio Augusto da Costa Álvaro Luiz Caetano Anselmo Monteiro – Associação de Moradores do Buraco Quente Antônio Carlos Ferreira Lopes Associação de Moradores da Candelária Célia Regina Domingues Claudete Borges Colégio Santo Inácio/Núcleo de Mídia Educação Conjunto da Velha Guarda da Mangueira Departamento Feminino do GRESEP de Mangueira Diana Tubenchlak Peres Dona Zica e família Eli Gonçalves da Silva Elmo José dos Santos Equipe da Comissão Carioca de Promoção Cultural/ RioArte Equipe da Fábrica de Livros Equipe da Vila Olímpica da Mangueira Equipe do Camp Mangueira Fátima de Sá Francisco de Carvalho Gabriel Pache Guilherme Bittencourt Guilherme Vergara e Equipe do Departamento Educativo do Museu de Arte Contemporânea de Niterói Hégio Laurindo da Silva (Delegado) Heitor Chagas de Oliveira Hernani da Silva Teixeira e família Iara Gomes de Souza Ivanir dos Santos Ivo Meireles José Roque Ferreira – Associação de Moradores do Telégrafo Lúcia Bittencourt Lula Buarque de Holanda

Márcia da Silva Machado (Gueisinha) Marcos Vinícius e Equipe do DPC/Xerox Maria Balalaica Maria Catarina de Souza dos Anjos Maria Helena Pereira Mário José Bello Raymundo Maurício Andrade – Ação da Cidadania/Comitê Rio Miguel Pereira – Departamento de Comunicação/Puc-Rio Oficina Cine Escola Onir Santos Melo Sandra Damasceno Sônia Bonfim Sônia Kramer Vivi Fernandes Vovó Lucíola Ribeiro de Jesus Walesca de Souza Rocha Walter Firmo William Alves Oliveira

Este material foi produzido em equipamento Xerox

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