Edição: Marcelo de Mello Conselho Editorial: Nilcemar Nogueira, Aloy Jupiara e Rachei Valença Jornalista Responsável: Nilcemar Nogueira Registro n° 24992- RJ Fotografia: Acervo Centro Cultural Cartola Diagramação: Bruno Monteiro Design Tiragem:
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Caderno Depoimentos
Editorial Palavras o vento leva. Mas o registro cuidadoso delas fica para sempre. Por isso, a série Depoimentos, do Centro de Referência de Documentação e Pesquisa do Samba Carioca (do Centro Cultural Cartola), convocou 20 personagens fundamentais na criação e consolidação do mais carioca dos ritmos para darem os depoimentos que constam nesta publicação e estão disponíveis para o público, em DVD, no acervo da Instituição. São compositores, mestres-salas, portabandeiras, ritmistas e dirigentes que contribuíram para a afirmação da cultura e da identidade brasileiras. Eles têm uma experiência rica, que precisa estar acessível ao conhecimento de todos os cidadãos do país, da atual e das futuras gerações. Nas entrevistas, realizadas de janeiro de 2009 a novembro de 2011 pelo jornalista Aloy Jupiara, esses artistas abriram seus corações, falando das dificuldades comuns na trajetória de sambistas e da luta para "ser alguém" e conquistar o respeito dos seus pares e da sociedade. Cada um dos 20 depoentes é um exemplo disso. O imortal mestre-sala Delegado contou como driblou o preconceito racial; a porta-bandeira Maria Helena lembrou o abandono da migrante recémchegada ao Rio; Zé Katimba disse como deu a volta por cima, órfão de paí e mãe ainda adolescente. No caso de Aloisio Machado, a entrevista revela que seu talento vai muíto além da autoria, em parceria com Beto Sem Braço, de "Bum bum paticumbum prugurundum", já que ele foi passista, mestre-sala e ritmista. Assim como Djalma Sabiá, que é compositor de seis sambas do Salgueiro, mas contou muito mais, uma vez que criou um acervo pessoal sobre a história da vermelho e branco, da qual foi um dos fundadores. O testemunho dos entrevistados é uma viagem ao passado. Símbolo da azul e branco de Oswaldo Cruz, a eterna porta-bandeira Dodô recebeu o pavilhão das mãos do lendário Paulo da Portela. Nelson Sargento conviveu com Cartola e Carlos Cachaça. A leitura vai matar a curiosidade de quem quer saber mais sobre Edeor de Paula, o discreto autor do samba-enredo "Os Sertões". Já "Festa para um rei negro", mais conhecido como "Pega no ganzê", não é uma unanimidade, mas seu autor, Zuzuca, rebateu, com bons argumentos, a crítica de que sua obra banalizou o gênero. O mangueirense Ed Miranda ganhou o respeito de todo o mundo do samba por sua batalha em favor das velhas guardas. Uma luta tão digna de reconhecimento quanto a de Zeca da Cuíca, que fez o possível para
impedir que calassem seu instrumento. A iniciativa do Centro Cultural Cartola surpreende ao trazer a público a memória de escolas que, supostamente, não são tão tradicionais quanto as mais antigas mas suaram a camisa para chegar até aqui. É o que contou Tia Nadyr, baluarte da Beija-Flor, anterior à chegada de Joãosinho Trinta. E a trajetória de Wilson Moreira mostra como o samba urbano tem forte influência rural. O pioneirismo de Dona Ivone Lara é um dos destaques da edição. A primeira mulher a ganhar concurso de samba-enredo foi convidada por Silas de Oliveira para ser sua parceira e agradeceu a formação recebida da professora Lucília Villa-Lobos, mulher do maestro Villa-Lobos. No caso de Jorginho do Império, o dom é hereditário, já que seu pai, Mano Décio da Viola, foi o autor do clássico "Tiradentes", gravado por Elis Regina. Jorginho não seria "do Império" se Sebastião Molequinho não tivesse iniciado o movimento que resultou na fundação da verde e branco, conforme o pioneiro contou em sua entrevista. A marca dos depoimentos portelenses é o sentimento. Monarco foi lírico até ao se referir à separação dos pais. Noca falou do orgulho de ter ido para a azul e branco a convite de Paulinho da Viola. Tia Neném se lembrou do vestido de casamento com Manacéa e Waldyr 59 se emocionou ao narrar o sofrimento do amigo Candeia. São histórias de vida e arte, cujos protagonistas nem sempre têm a chance de contar ao grande público mas que, nesta ação de salvaguarda, ganham voz, com a chancela do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), órgão do Ministério da Cultura que tem a missão de preservar o patrimônio cultural brasileiro. Gente sofrida, mas de grande talento. Por isso, suas narrativas também trazem a alegria de muitas notas máximas, o prazer de receber prêmios e a possibilidade de ser sucesso, ganhar dinheiro e virar o jogo fazendo samba. A edição do texto buscou preservar, dentro do possível, o jeito próprio com que cada um falou de sua vida. Parte dos depoentes teve a ajuda de familiares mais jovens para reavivar a memória, já comprometida pela idade. Alguns falaram em suas residências; outros foram ao Centro Cultural Cartola, na Mangueira, onde todo sambista fica à vontade. Estavam em casa para contar a sua história.
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Vozes,do Samba: . memonae identidade dos sambistas cariocas Nilcemar Nogueira
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Maria Lívia de Sá Roriz Aguiar
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Regina Gloria Nunes Andrade
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Resumo Este texto apresenta a metodologia de resgate de memona realizado pelo Centro Cultural Cartola e sua importância, no momento em que a nova historiografia alargou as possibilidades de análise de novas fontes documentais, como a geração de um acervo a partir de depoimentos. relatos pessoais que possibilitaram conhecer uma memória coletiva, analisar suas contínuas mudanças, as interferências do contexto social, trazendo à tona o pensamento dos detentores de uma expressão cultural reconhecida como patrimônio imaterial brasileiro - o samba carioca - sem filtro, resgatado pela própria comunidade. Uma ação relevante, principalmente no momento em que a memória tradicional tem suas vias de conservação e transmissão abaladas. Palavras-chave: samba, história oral, memória, patrimônio imaterial
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Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da UERJ.
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Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da UERJ.
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Doutora em Comunicação. Professora Titular da Universidade da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ.
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Introdução o
registro da história do samba carioca sempre foi um dos interesses do Centro Cultural Cartola (CCC). Dessa forma, a partir do ano de 2005, a instituição iniciou um trabalho de pesquisa e coleta de depoimentos, com o objetivo de preservar a memória do samba e dos sambistas do Rio de Janeiro. Esse trabalho contou com apoio de sambistas, historiadores e agremiações, resultando assim no Projeto Memória das Matrizes do Samba no Rio de Janeiro, apoiado pelo Ministério da Cultura por intermédio do IPHAN - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Desde 2009, o CCC passou a ser reconhecido pelo Ministério da Cultura como um Pontão de Cultura, o que permitiu a criação de um Centro de Referência de Documentação e Pesquisa, com o objetivo de (re)construir o universo em que se produziu e ainda se produz o samba no Rio de Janeiro. Criou-se, assim, um programa para resgatar a memória coletiva do samba carioca, a partir da preocupação com as perdas de valores essenciais de uma das principais referências culturais da cidade, o samba, uma tradição permanentemente reelaborada, que apresenta ainda mudanças no processo de transmissão dos seus saberes fundamentais. Há que se considerar ainda a pouca preocupação de registro dessa cultura, respeitando-se o protagonismo de seus atores sociais. Não havia, até então, um programa de perpetuação da memória do samba carioca, uma vez que o que existia eram ações isoladas em algumas agremiações carnavalescas e instituições públicas, como a Fundação Museu da Imagem e do Som (FMIS). O projeto objetiva trazer a memória do samba carioca a partir das vozes daqueles que construíram esse patrimônio cultural e imaterial da cidade.
o projeto Para a preparação do projeto usou-se como referência metodológica a mesma utilizada pelo Centro de Pesquisa e Documentação (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas (FGV), instituição que deu os primeiros passos no Brasil na constituição de fontes orais (1970). A escolha dos entrevistados se deu a partir de sua contribuição ao universo do samba. A escolha da equipe teve como requisito principal o conhecimento do objeto de estudo e o envolvimento no trabalho de pesquisa desde o processo de instrução do dossiê para o registro do samba, facilitando assim a pesquisa prévia biográfica dos depoentes. Apesar de se pensar nas temáticas (dança, música), o tipo de entrevista escolhido foi o de história de vida, enfocando aspectos da infância, fatos presenciados e vivenciados. As entrevistas tiveram, em média, de duas a quatro horas de duração. A parte inicial da entrevista procurou registrar a origem, onde nasceu o depoente, sua infância, formação e como o samba entrou na sua vida. A entrevista foi guiada por uma pauta, elaborada após pesquisa bibliográfica sobre os escolhidos. Em seguida foi elaborado um roteiro para a entrevista, com o objetivo de orientar cronologicamente os momentos (etapas, fases) da vida do entrevistado. Como já foi mencionado, esse projeto foi criado em função da falta de registros sobre o que estamos denominando mundo cultural do samba pela ótica memorável dos sambistas. Em alguns casos não havia nenhum registro sobre os depoentes e, diante da inexistência de fontes, foi necessária a realização de uma entrevista prévia
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para preparação de um roteiro. A equipe foi constituida por um pesquisador, um assistente de pesquisa e um entrevistador, além de ter sido contratado um grupo para captação de áudio e imagem. Após a coleta, foi realizado tratamento técnico dos depoimentos, gerando um resumo biográfico, acerto da pauta de acordo com a ordem do depoimento e transcrição, ficando pendente o serviço de copidesque e pesquisa complementar. A entrevista gravada passou por edição de ruidos e foram retiradas outras interferências, tendo cada uma gerado um DVD com a íntegra da entrevista. O material passou por um processo de edição final e foi publicado sob a forma de DVD. As fitas magnéticas (mini DV) foram armazenadas no Centro de Documentação e Pesquisa do CCC em arquivo deslizante, devidamente identificadas com dia e hora da gravação, nome do entrevistado e duração (tempo de gravação). Antes do início de cada gravação uma ficha de identificação foi lida pelo entrevistador - Aloy Jupiarci' -, na qual se identificava o dia, o local, a hora da entrevista, o nome completo e o apelido do entrevistado. Ao final da entrevista, foi também registrado o horário do encerramento, bem como a finalidade do depoimento, sobretudo pelo fato de ficar disponivel para consulta, reforçando oralmente o que ficou também documentado pelo termo de cessão assinado pelo depoente imediatamente após a coleta do material. Em muitas entrevistas, os depoentes cantaram, fizeram citações a outros sambistas, o que demanda levantamento do nome completo e qualificação das pessoas citadas; classificação completa das letras e autores das músicas, principalmente quando o entrevistado não deixa isso claro, pesquisa a ser realizada posteriormente, por ter sido evitado a interrupção do entrevistado, cortando sua emoção ou raciocínio. Após a realização do copidesque e da pesquisa complementar, as entrevistas serão disponibilizadas online no banco de dados da instituição. Está prevista em uma segunda etapa a digitalização do arquivo documental de cada depoente, a fim de constituir um fundo arquivístico de cada entrevistado. É preciso deixar registrada a emoção dos sambistas, pois esse trabalho pode ser considerado uma resistência ás regras vigentes, a uma história apresentada por interlocutores, pesquisadores que costumam traduzir e/ou descrever os fatos a partir da própria subjetividade. A importância desse projeto está em quebrar a invisibilidade, "dar voz aos excluidos", e com isso participar do processo de preservação de tradições, apesar de toda a dominação imposta a estes depositários. Os depoimentos demonstraram a riqueza dos temas presentes nas letras de samba, seja ele manifestado num partido-alto, em um samba de terreiro ou de enredo, além de revelar, através das narrativas, as trajetórias de vida de personalidades consideradas referências dessa história, o legado deixado para futuras gerações nas variadas maneiras que compõem a cena da principal referência cultural do Rio de Janeiro: os modos do bailar dos corpos, de tocar os instrumentos, de preparar os alimentos, de cantar, de sorrir, de contar as histórias e satirizar as desigualdades sociais vivenciadas cotidianamente. As narrativas de cada depoente confirmaram que o samba tomou uma proporção na cultura popular brasileira que ultrapassa o limite de uma modalidade musical, tornando-se um modo de ser e viver de seus adeptos. O samba é aqui apresentado como sentido de vida de muitos entrevistados, como meio de ascensão social, formação identitária, prazer, lazer, profissão, instrumento de denúncia, anúncio e possibilidade de experimentar a liberdade de criação e a representação de histórias e personagens apresentadas através dos carnavais.
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Jornalista. membro do júri do Estandarte de Ouro, uma premiação promovida pelo jornal O Globo aos melhores do carnaval. Os integrantes desse júri acabam por ter uma afinidade com o cotidiano dos sambistas que vai muito além da avaliação da performance no dia do desfile.
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Centro Cultural Cartola se constitui assim em uma ponte para se preservar a memória, podendo, nesse sentido, ser pensando como um "lugar de memória" (NORA, 1986), através dos relatos, depoimentos dos sambistas fundadores desse universo carnavalesco carioca. Os narradores, no caso os "notáveis" do samba, se constituem em mediadores que controlam o acesso à história,-sendo detentores dos saberes para tornar possível a construção da história do samba carioca. São eles homens-memória. E no ato de rememorar ligam a memória coletiva do samba à memória familiar e à da sociedade. Os relatos são como quebra-cabeças, onde uma história se encaixa na outra e assim se vai criando, armazenando a memória do samba carioca. O programa se constitui em umas das ações de salvaguarda do samba carioca, demonstra preocupação em manter viva a memória de um grupo que historicamente esteve à margem dos processos politicos da elite brasileira e que no presente desponta como fundamental compreensão para a formação social, cultural e política do país. Desta forma, justifica-se o esforço dos sambistas em registrar suas vivências num universo que outrora foi perseguido pelo Estado e hoje é identificado como parte da cultura nacional, com o apoio do mesmo Estado.
Considerações finais A transmissão do samba se dá pela oralidade e pela vivência. Este aspecto presencial é fundamental. A 5 oralidade é uma forte marca na cultura popular. Inicialmente essa transmissão se dava nos terreiros , depois nas quadras das escolas de samba, que se constituem em espaços de transmissão de saberes e fazeres, lugares onde é compartilhada e socializada, de geração para geração, uma rica cultura, impregnada de simbolismo, trazendo a marca da cultura afro-brasileira. A oralidade revela a importância dos mais velhos, verdadeiros griots , responsáveis pela transmissão dos saberes, guardiães da memória. O acervo produzido pelo CCC inclui relatos preciosamente recontados, é a própria identidade do grupo materializada. Mostra como as mudanças sociais e políticas foram impondo transformações na forma e nas condições de criação, circulação e transmissão do samba como expressão cultural. A preocupação de salvaguardar o modo de produzir o samba carioca expressa nos depoimentos de sambistas evidencia movimentos das memórias coletivas. Portanto, a escuta das vozes desses sambistas, com o apoio do Centro Cultural Cartola e do Instituto de Patrimônio Histórico Nacional, é um movimento atemporal: do passado para o futuro.
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terreiro. nome dado ás casas de candomblé em todo o país, local de transmissão de conhecimentos, rituais de iniciação e integração. foi incorporado ao espaço do samba. A expressão terreiro remete á idéia de comunidade, dez grupo familiar extensivo. Simbolicamente. pode ser entendido como o quintal dos sambistas, o terreno de ensaios das agremiações carnavalescas e outros lugares onde se cria, se canta e dança o samba.
Griot é um termo do vocabulário franco-africano, criado na época colonial, para designar o narrador, cantor, cronista e genealogista que, pela tradição oral. transmite a história de personagens e familias importantes ás quais, em geral. está a serviço.
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Bibliografia ALBERTI, Verna. Manual de história oral. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas, 2005. CAIXETA, Juliana Eugênia. Guardiãs da memória: tecendo significações de si, suas fotografias e seus objetos. Brasília: UNB/ Instituto de Psicologia, 2006. CANDAU, Joêl. Memória e identidade.
Tradução Maria Letícia Ferreira. São Paulo: Contexto, 2011.
DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. História oral: memória, tempo, identidades. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006. JOUTARD, P. História oral: balanço da metodologia e da produção nos últimos 25 anos. In: Ferreira, M. M.; Amado, J. (Org.) Usos e abusos da historia oral. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas, 1996. p.57. LOPES, Nei. Enciclopédia
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NEVES, Luiz Felipe Baêta. A construção
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Eduerj, 1998. NORA, Pierre. Entre Memória e História: a problemática dos lugares. In: Projeto História. São Paulo: PUC, n. 10, dezembro de 1993, p. 7-28. POLLAK, M. Memória, esquecimento, silêncio. In: Revista Estudos
Históricos,
Vol. 2, n. 3. Rio de Janeiro:
CPDOC, FGV, 1989 . . Memória e identidade social. Revista Estudos 1992. p. 200-212.
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POR DELEGAÇAO DE PAULO DA PORTELA, GUARDIA DA BANDEIRA Maria das Dores Alves Rodrigues recebeu, na década de 30, a bandeira das mãos de Paulo da Portela, mais que fundador, um exemplo de elegância de que os portelenses se orgulham até hoje. Ainda mais quando o assunto é o pavilhão azul e branco, que Dodô defendeu durante décadas. No depoimento em 7 de fevereiro de 2009, ela conta que começou dançando após o almoço da fábrica em que trabalhava, fazendo o guarda-pó de bandeira. Uma amiga viu, gostou e a levou para a Portela, onde aprendeu com o mestre-sala Antônio, que disse: "Vai ser uma grande porta-bandeira" . Estava certo.
Onde?
Seu pai ficou lá?
Barra Mansa.
Ficou. Só vinha no final de semana para cá.
Seus pais eram de lá e trabalhavam em quê?
E sua mãe veio para trabalhar?
O meu pai trabalhava na estrada de ferro. Era feitor e comissário de policia.
Não, meus irmãos. Eram três homens.
E sua mãe?
Três homens da parte do meu pai, que minha mãe criou. Agora, da parte da mamãe, eram dois homens e quatro mulheres.
Eram quantos homens e quantas mulheres? Era dona de casa. Depois virou lavadeira.
Nasci em 1920. Sou mais velha que a Portela três anos.
Qual o nome deles? Otília Alves de Souza.
É a mais nova, a mais velha? A terceira.
E dele? Tibúrcio Alves de Souza. Por que vocês vieram para o Rio? Porque a minha mãe tinha seis filhos, mais três que o meu pai levou para ela criar, que perderam a mãe quando ele se casou. Eles ficaram rapazes lá e a cidade.era pequena e não tinha emprego. Foi por isso que nós viemos para cá. Mamãe veio, papai ficou.
Como era a vida nessa época, na sua infância? Era difici/? Bom, eu não tive infância ruim, porque quando a mamãe veio morar aqui no Rio eu tinha quatro anos. Mas depois, ela me botou para ser ama-seca (babá) quando eu tinha nove anos. A senhora começou a trabalhar então muito cedo?
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Com 13 anos. Depois de ser ama-seca, cuidar de crianças, a senhora foi para um trabalho? Fui trabalhar na fábrica, cartonagem, na Rua Visconde da Gávea. Vocês se mudaram para qual bairro no Rio? Saúde. E a senhora até hoje mora na Saúde? É, fui criada lá. Tenho 85 anos de morro.
o morro
já era cheio de barracos?
O primeiro habitante do Morro da Providência foi um marinheiro. Ele fez o barraco lá em cima. Aí, os outros marinheiros foram fazer também, porque ficava perto do navio. Depois, os habitantes foram portugueses, italianos. Como eram esses primeiros anos de trabalho na cartonagem? A gente fazia caixa de sapato, estojo. Tudo quanto era qualidade de caixa a gente fazia, entendeu? Quantos anos mais ou menos a senhora trabalhou na cartonagem? Eu me aposentei na cartonagem. A senhora estudou na Escola José Bonifácio até que série? Primeiro ginásio. E por que parou? Por causa do trabalho? Está pensando que era agora, é? O negócio era trabalhar, rapaz. Quando o samba entrou na vida da senhora? Foi quando eu fui trabalhar nessa cartonagemo Que a senhora conheceu ... A Dora, que era a rainha da Portela. Estava com que idade?
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segunda-feira, o samba era dobrado. Os homens batiam na mesa e as mulheres sambavam. Outras dançavam gafieira, porque tinha muita gafieira, muito clube, entendeu? Outros davam rasteira. Cada um fazia o que queria. Eu, não; ficava parada lá.
deira. Quando ele (mestre-sala) me entregou para o Paulo da Porteia, falou: "Olha aqui, Paulo, a Dodô vai ser uma grande porta-bandeíra."
Por que ficava parada?
Os compositores fizeram cadeirinha e eu fuí sentada da Praça XI até a Central. Toda vez que a Portela ganhava, eles não me deixavam andar até a Central.
Porque eu ainda não tinha entrado no fandango, entendeu? Eu ia almoçar em casa, porque, quando acaba a rua, a Visconde da Gávea, entra a rua em que eu moro, a Ladeira do Faria. Era perto. Eu fui criada lá, né? Ai, eu ia almoçar em casa. Mas depois que eu me acostumei com eles lá dançando, eu falei com a minha mãe: "Mamãe, eu vou levar marmita. Mas por que você vai levar marmita? É porque tem baile lá, tem festa, na hora do almoço." Então, a gente acabava de comer, batia para sambar. O patrão escutava embaixo. Ai, o que eu fiz quando eu comecei a levar marmita? Eu apanhei o meu guarda-pó e coloquei na vassoura e comecei a dançar. Eu não sabia, né? Eu fazia o que eu queria fazer. Então, essa Dora, que era rainha da Portela, dizia assim para mim: "Dodô, quando faltar uma porta-bandeira, eu vou te levar e você vai ser a nossa porta-bandeira". Ah, eu chegava em casa, meu filho, mamãe falava: "Olha o meu santo!" Aí, o cabo da vassoura: "Pá!!!!!". Era luz, era quadro ... Ih, eu apanhei tanta varada na perna, entendeu? Mas eu estava ensaiando na frente do espelho. Ai, a Andrelina, que era a porta-bandeira em 1934, não pôde sair porque ficou doente e entregou a bandeira para o Paulo da Portela. ADora me levou. Foi lá em casa, pediu á mamãe. A mamãe foi com a gente. Eu não podia andar sozinha na época, era menor. Aí, chegou lá, o Paulo da Portela falou que eu era nova para ser. Realmente, criança não saia no samba. Falou para a Dora: "Que pena, ela é nova. Uma criança, 14 anos." Ai, a Dora mandou ele dar o jeito dele. O que ele fez? Mandou o seu Antônio, o mestre-sala, ver se eu ia dar para porta-bandeira. Aí, o seu Antônio me levou para a rua, pois a gente ensaiava na rua. Porque o lugar em que eles guardavam os instrumentos, bandeiras, era uma casa de família. O samba começava 8 horas e acabava meia-noite. Aí, o Paulo da Portela levou a bandeira para me entregar. Eu já estava com o seu Antônio. O laço que ele fez no pescoço, ele botou um laço, entendeu? No meu mastro, depois a águia. Ele falou: "Dodô, esse laço do meu pescoço é o laço que você tem na bandeira." Aí, o Paulo aumentou a minha idade para eu sair em 35. Nós ganhamos.
Como foi? É porque na hora do almoço tinha muitos sambistas, mesmo de outras escolas, que iam trabalhar lá, viravam Portela. Domingo era dia de ensaio na Portela. Então, na
Como foi o teste da senhora para o seu Paulo, para ele aprovar a senhora? Ele levou a bandeira e falou para o mestre-sala para ver se eu dava para ser porta-ban-
A senhora lembra do seu primeiro desfile, em 35?
Quando o Paulo da Portela disse "Você vai ser a porta-bandeira", como a sua mãe reagiu? Ela que tinha de me levar, eu era menor. Eu tinha que rezar um terço, porque a minha mãe sempre foi católica e eu também. Eu chegava do trabalho, tomava banho, jantava e tinha que rezar o terço. Quando eu rezava sozinha, pulava, para andar mais depressa para a gente ir. A sua mãe nessa época acompanhava a senhora a todos os ensaios? Tinha que acompanhar. Tanto que o Grande Otelo ia fazer uma peça só de crioulo. Então, falaram para ele que eu morava lá na Providência. Ele foi lá em casa pedir á minha mãe para eu ir ao Cassino da Urca dançar com ele. Aí, a mamãe mandou que eu escolhesse e eu andei também no rádio cantando. Ai, mamãe falou: "Você escolhe o lugar para você ficar, porque nesses três lugares eu não vou te levar." Larguei tudo e escolhi aParteia. Enquanto eu não fiquei maior, ela me levou. Quais foram os mestres-salas com quem a senhora dançou? Bom, o nome eu não estou me lembrando, mas eu gostei de dançar com todos eles. Mas não lembra o nome de nenhum? Seu Antônio, o primeiro! É, tinha um que veio da Tamarineíra. Chamava-se, como é? E esse dançava bem á beça. Agora não vem na memória, mas esse dançava bem á beça. Tem vários.
o Antônio ensinou?
foi o seu professor,
foi quem
Seu Antônio. A senhora que fazia a sua fantasia? Eu que fazia a minha ... Eu que faço a minha roupa. Até hoje?
Eu que faço. Na época de porta-bandeira, bordava?
a senhora
Bordava.
mens tiravam o chapéu. É isso, era o respeito. Então, a gente não podia pegar a bandeira mal vestida. Não podia ter roupa decotada. Tinha que estar decente para pegar uma bandeira. Se não, o diretor não entregava a bandeira. Ainda mais o Paulo, que gostava de andar direitinho.
Fazia tudo na fantasia. Bordava, bordava. Quando eu me casei, o meu crioulo não deixava ninguém bordar. Ele bordava, ele cozia para me ajudar.
A senhora dançou até que ano como por. ta-bandeira?
Qual era o nome do seu marido?
A senhora estava na época em que a Portela foi campeã sete vezes seguidas (1941 a 1947)? Como foi?
Aloisio. E ele ajudava a senhora a fazer a fantasia. Ajudava em tudo. Era um bom marido, mas morreu.
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que era mais importante na fantasia naquela época? Ah, era a lantejoula, não era paetê. Lantejoula, brilho. Tinha umas fazendas, um gorgorão, entendeu? Que a gente botava ... Não, que a gente comprava. Quando não podia comprar, fazia em casa. A gente botava assim (faz como se estendesse o tecido sobre uma superficie), botava cola e salpicava. Brilhantina, aquilo brilhava. O primeiro vestido meu aqui, os desenhos foram todos assim. A gente inventava. Fazia cola cozida, entendeu? Botava na barrica ou então na touceira. Aí, quando secava, já vinha o formato. Mas não podia chover. Se chovesse, a cola, a goma, a perna da gente ficava toda escorrida de goma. Ou então, outras botavam arames grossos. Mas tudo isso era a senhora quem fazia?
E a bandeira, era a escola ou era a porta-bandeira? Ah, era a escola. E ficava na escola. Tanto que nos meus retratos, os meus primeiros retratos, eu não estou com a bandeira. Estou com o talabarte na mão. A bandeira ficava na escola. Só quem dava para a gente era um diretor ou uma diretora. Qual é a importância da bandeira para a escola e para a porta-bandeira? Bom, a porta-bandeira é a rainha da escola. Quando eu passava com a bandeira, os ho-
Ah, ele não podia vir, que eu estava craque. Não roubavam a senhora?
Foi lá na Praça XI. Ninguém mexeu lá no meu ponto. Nem no meu nem no do meu mestre-sala. Ah, e a Portela tinha uma coisa. Se a gente não ia para primeiro, ia para segundo ... Quando a gente ficava em terceiro, era puxão de orelha. Agora terceiro é vitória. Na época da Praça XI, a Portela vinha de Madureira para cá no trem. A senhora vinha no trem com eles ou saia de casa?
Lá vão roubar! E eu vou querer? Sai fora! A senhora sabia como evitar? Ué, eu ia dar a mão para o outro mestre-sala? O meu mestre-sala era mestre-sala, não era boboca, não. A porta-bandeira Sapatilha?
calçava
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quê?
Sapatilha, sapato baixo. A gente podia ir para a quadra com sapato alto, mas na hora de dançar, mudava.
Eu esperava na Central. Por quê? A porta-bandeira dançava?
também cantava, ou só
No meu tempo não podia cantar. Quais são as qualidades que uma sambista precisa ter para ser porta-bandeira? Primeiramente, tem que ter educação. Segundo, amor à escola. Terceiro, tem que ser elegante, entendeu? Tem que saber pegar a bandeira.
Porque porta-bandeira não dança de sapato alto. Agora dança. Até de Luis XV. Quem botava sapato assim era passista! O passo não é passo largo, não era passo largo. O passo era miudinho. E o que acontece com o mestre-sala e a porta bandeira quando a bateria corre? Ora, é o que você vê. É essa dança corrida. Perde a graça do bailado.
Poderia mostrar?
Tudo a gente fazia. E tudo com o nosso dinheiro. A escola não dava nada.
A senhora fez alguma visita em que o mestre-saia de outra escola ...
Muitos anos. Eu dei 18 campeonatos.
Eu sempre fiz as minhas coisas. Mesmo a goma para acertar a anágua?
-bandeira. Quando ela volta para a direita, ele vai para a esquerda. Quer dizer, nessa hora que eles roubavam. Eles (os outros mestres-salas) vão para a quadra, esticam a mão para a porta-bandeira. Ela pensa que é o mestre-sala (dela). Aí, roubou.
A gente bota (a bandeira) aqui no talabarte e a mão da gente fica assim. Mão nas cadeiras. A gente só tira a mão das cadeiras para agradecer palmas ou se o mestre-sala pedir. A mão da gente assim. Agora não, elas pegam assim (muda a posição da mão). Cansa, sacrifica elas.
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mestre-sala podia se afastar da porta-bandeira? Podia ele dançando.
Bom, para quem começou agora, está bom. Mas para nós, que viemos do tempo em que o samba era samba, perdeu a graça.
o mestre-sala e a porta-bandeira dançavam o miudinho na época no desfile? Bom, depende do compasso. Porque o mestre-saia não podia levantar o pé assim Ó, só passista. Levantou o pé assim, perdia ponto. Era rasteiro.
Mas se afastava muito ou só ficava em volta?
Há um passo do mestre-sala em que ele dança com os braços abertos em torno da porta-bandeira.
Não, ficava perto assim, mas quando ele estava dançando. E quando ele protege a porta-bandeira, tem a dança, né? O mestre-sala gosta de roubar a porta-bandeira para dizer que é mais malandro que o dono da porta-
Mas pode fechar o braço também, não precisa abrir. O braço mais aberto assim é quando ele está fazendo a proteção. Aí, ele abre e brinca mesmo na ponta do pé tá-tá-tá-tá. Depois, ele só trabalha com leque ou lenço.
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o mestre-sala se aproximava da senhora para que se segurasse a bandeira ... Mas ele já estava ali a pouca distância, rapaz! Agora eles vêm ... Olha, quando eu fui (risos), não, não vou falar isso aqui. Fala, conta. O mestre-sala, ele fica lá. A porta-bandeira ainda está rodando, ele já está pedindo a mão para tomar a bandeira. Pode? Não pode. É problema, sabe? Não vê esse menino da Mangueira? Como ele dança bonito. Ele não cansa a porta-bandeira. Marquinhos e Geovana. O mestre-sala primeiro e com ela. Hoje eu me lembro da Neide. A Neide quando vinha com o Delegado, entendeu? A senhora citou a Neide e o Delegado da Mangueira. Poderia citar outros grandes mestres-salas e porta-bandeiras? Falei no Peninha. Tem o Edson Santos, que dança o samba no minueto. Não está mais dançando. A Wilma substituiu não foi?
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tre-sala que saiba dançar, que saiba conduzir, a dança fica muito bonita. No desfile há algumas coisas que não podem acontecer. O mestre-sala não pode escorregar e cair, a bandeira não pode enrolar no mastro, certo? Há técnicas para evitar isso?
Não gosto! E a bandeira não era beijada conforme é agora não. E quando beijava, botava a mão e beijava. Ninguém deve tocar com os lábios a bandeira, deve só aproximar? Mas toca.
A gente só podia abrir a bandeira depois que a gente dava a terceira rodada. A gente tinha que fazer assim (usa o dedo indicador da mão direita para dar o exemplo): primeira, segunda, na terceira abria. O lado esquerdo: primeira, segunda, terceira, a bandeira já estava aberta. Era assim, não era esse negócio de tururu-tururu-tururu, não. Esse negócio de ficar rodando toda vida não.
Eles não tocavam, porque a minha bandeira... Quando elas vêm para beijar, eu dou uma volta. Eu não estou dando bandeira para beijar. A porta-bandeira tinha obrigação. Por isso, ela não levava a bandeira para casa. Já vinha lavada direitinha para elas.
E como fazia para só abrir a bandeira na terceira rodada?
Se uma jovem chegar hoje e bater na sua porta de casa pedindo para lhe ensinar a ser uma porta-bandeira, a senhora ensina como era a porta-bandeira da época tradicional?
No meu tempo eu fiz isso. Como era a apresentação para o jurado?
da bandeira
Era toda aberta, porque a bandeira contava ponto. Eles pegavam na bandeira. E tinha que ter a data.
Mas, na verdade, não tocavam.
É, depois ela pega o jeito dela. Eu falo para ela: "Você larga e ...". Eu ainda falo para ela dançar na frente do espelho para saber qual é o pior e qual é o melhor. Se ela faz o pior e ela vê na frente do espelho, é para não fazer. Eu aprendi assim ...
a senhora na escola,
É. Dei a bandeira.
Vocês saiam do centro da escola, iam até
o local onde estava o jurado e davam a bandeira para ele segurar?
A senhora pode contar como é a Wilma dançando? Só posso contar que ela foi uma grande porta-bandeira. Agora, o passado dela em outra escola ...
Péra ai, eu disse a você que os jurados faziam assim tipo uma roda e a gente dançava ali, entendeu? Depois que acabou isso, que eles ficaram cansados e tinham que cochilar, o mestre-sala leva a porta-bandeira para abrir a bandeira e os jurados darem o ponto.
A senhora ensina a dançar com o dedo mindinho segurando a bandeira sozinha? Ensino, mas elas dizem que dói. Mas tem que ser, tem que ser. Mas é isso, elas botam aqueles sapatões altos assim. Como é que pode? Tem que dar passo largo e no meu tempo, não. O sapato era baixo, a gente trocava, entendeu?
Na Portela ela foi boa. Mas tem jurado que acha que está ruim. Você sabe que eu não entendo?
O jurado nessa época, ele segurava no tecido da bandeira, ele via ...
Mas a senhora lembra de como foi a passagem da bandeira para Wilma e como se sentiu?
Segurava até a minha roupa.
Não, mas eu não passei a bandeira para ela.
Mocinha da Mangueira a senhora lembra?
Ele via se o tecido era de boa qualidade, se estava bem bordado?
Não? Eu pensei que a senhora tivesse passado.
Até a roupa.
Não, porque antigamente que passava.
Não, na Portela.
A Mocinha. Não estou dizendo a você, rapaz, tem muita ... Acho que é sobrinha da Neide (Patricia) ou ... Ela saia lá em Niterói, na Viradouro. Agora não está mais saindo. Ela dança igual à Neide. Tem essa também que sai na Mocidade.
A franja da bandeira, ele se preocupava se estava bem costurada?
É.
A minha franja era assim, ó (com os dedos polegar e indicador demonstra a largura da franja) desse tamaninho. Não troco nada! Paulo da Portela que me deu. 1935! Sai fora!
E dos antigos, 8enicio, por exemplo?
A senhora tem a bandeira até hoje?
O Benicio dançava com a Wilma. Ele veio do Império, era o segundo do Império, foi ser o primeiro da Portela. Quando você vê um mes-
Eu tenho, eu que guardo, eu que lavo, eu que ... Não gosto que mulher beije a minha bandeira. Por causa de batom. Não gosto!
Marcela?
era o presidente
Ah, era o presidente que passava ... Mas como a senhora se sentiu? Eu deixei lá no Portelão. Acho que foi o Seu Natal que entregou para ela. Mas como a senhora se sentiu? Eu não ligo para essas coisas não. Você não vê? 89 anos! Ainda estou vindo puxando ala na frente. Fui madrinha da bateria com 84 anos.
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__ E ganhou o Estandarte de Ouro por ser madrinha da bateria.
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Depois de mim foi a Mangueira que ganhou. Também senhora. Ah, não estou dizendo que nós somos nós? É isso, tu nunca viu uma velha na frente da bateria. Viu eu.
e acompanhava. Quando ela ia lá para o Rio ver as sociedades, os blocos, ranchos com a minha tia, que saia no rancho Recreio da Flores, eu não ficava em Barra Mansa com ninguém. Eu vinha com ela, minha mãe e o meu pai.
Até hoje a senhora gosta de dançar?
Dodô, o que é a Portela na sua vida?
Ah, eu acho que já nasci dançando, sabe? É, porque a minha mãe falava que quando ela ia no baile de sanfona com o meu pai, eu não ficava com ninguém, eu segurava na saia dela
Um lugar onde eu aprendi a dançar de porta-bandeira. Aprendi a lidar com as pessoas, de todas as raças.
. .
.
-
1_
A Portela é um dos amores da sua vida? Nem é amor, porque amor às vezes acaba. É tudo.
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A GRANDE DAMA DO IMPERIO SERRANO E DA MUSICA I'
São muitas as razões que fazem de Ivone Lara Costa uma figura de grande importância na história da cultura carioca e brasileira. Primeira mulher a assinar samba-enredo numa agremiação, Dona Ivone Lara é compositora inspirada e cantora de voz inconfundível. Gravou com os principais nomes da música popular brasileira, como a amiga Maria Bethânia, e foi convidada por Silas de Oliveira para ser sua parceira. Conviveu com a música em casa na infância e aprimorou a técnica nas aulas com Lucília Villa-Lobos, mulher do maestro, conforme contou no depoimento de 15 de dezembro de 2010.
A senhora nasceu em Botafogo?
Logo a seguir ele faleceu.
Em Botafogo. Faleceu ... Em 1921? Isso (13/04). Qual é o nome dos seus pais? João da Silva Lara e Emerentina da Silva Lara. Eles gostavam de carnaval?
Ele me fazia todas as vontades. Minha mãe achava um absurdo ele me levar pra esses lugares. Dizia assim: "Não deve botar a menina já desde pequena, da maneira que é, já no fandango!". Quando seu pai morreu a senhora estava com nove anos? Nove.
A familia toda. Qual a lembrança que a senhora tem dele? E seu pai era violonista de um bloco? Os Africanos. E a sua mãe cantava no rancho Flor do Abacate?
Muito pequena. Meus familiares me contavam que ele tocava violão sete cordas, saía nos Africanos e via mamãe cantar muito. Eu ouvia muito a minha mãe cantar.
Isso!
E depois que seu pai morreu, como foi a vida com sua mãe?
Desde pequena os seus pais levavam a senhora pra sair no carnaval?
Boa, porque ela era muito responsável. E me levava pra tudo quanto era canto. Vivia naquele meio musical, que eu gostava muito.
Meu pai, depois. Em pequena, ele não levava não.
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E sua mãe faleceu também pouco tempo depois? Com 50 e poucos anos.
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dida entre a música popular e a erudita?
Quem deu mais força para a senhora cantar?
Não. Porque eu vivia no meio de músicos que eram toda minha família, todos eram carnavalescos.
Eu era elogiada era pela dona Lucilia, que dizia: "Olha, esta menina é um contralto. Vamos aproveitar a voz dessa menina?" E ela cantava junto comigo, pra ver. Ela me ajudou muito a ver a diferença dos ritmos.
E ai a senhora foi pro colégio? Colégio interno Orsina da Fonseca.
I
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Qual foi a importância do seu tio Dionisio para sua musicalidade?
E a senhora disse pra ela que queria ser cantora?
Apesar de ficar longe dos meus familiares, era muito bem tratada e fiz logo uma grande amizade.
Além de ter me ensinado a tocar cavaquinho no acompanhar as composições que fazia, ele adorava o carnaval, adorava música. Tudo quanto ele compunha, fazia nós aprendermos que era pra quando ele quisesse se lembrar.
Mas o colégio interno não é um local onde tenha carnaval ...
Foi a senhora que quis aprender o cavaquinho ou ele quis ensinar?
Ela me incentivava.
Eles não deixavam cantar música de carnaval. Agora, o rádio era ligado o dia inteiro. E se por acaso eu gostasse de alguma música de carnaval, eles não se opunham de eu cantar.
Não, foi ele. Compunha, ás vezes esquecia. Então ele me ensinava e, quando queria se lembrar, me chamava.
A senhora saiu do colégio aos dezessete anos (...)
E como foi esta experiência?
Ah! Eu dizia sempre, porque eu achava que cantora era rica, ganhava muito dinheiro. E o que ela dizia para senhora?
Faltando dias para fazer 18. Até esse momento, a senhora só pensava então em cantar?
A senhora continuou cantando ... Tinha as festas da escola, que eu fazia parte. Eu ia me apresentar pras minhas colegas cantando música de carnaval que eu aprendia. E elas conheciam as músicas?
Até esse momento ... Cantar. E o seu tio Dionisio passeava por um grupo de chorões, era um dos grandes da época ... Isso. Muitos chorões, Cândido Pereira da Silva e ...
Ah! Elas cantavam tudo.
A senhora quis sair? Não. Eu concluí. Eu me afastei porque já tinha alcançado a idade que aceitava o aluno no internato. Depois da escola, o que a senhora fez? Fiz concurso para enfermagem. Estudei, me formei enfermeira. Tive a oportunidade, então, de fazer um concurso, passar e nos três primeiros lugares.
Pixinguinha também? E, além de cantar no colégio, o que a senhora gostava mais de estudar lá dentro?
Também ... Era amigo de Pixinguinha.
Mas a senhora tinha desistido de cantar? Não. Eu continuava cantando nos clubes.
Geografia. E a senhora ia com ele assistir aos chorões? E lá dentro a senhora pensava assim: "No futuro eu quero cantar?"
As vezes ele me levava.
Sempre tive vontade. O meu caso era trabalhar, ganhar dinheiro, pra ajudar a minha mãe a acabar de criar meus irmãos. A maneira mais fácil que eu achava era ser cantora.
É um grupo um pouco diferente do grupo de samba ...
Foi lá na escola que a senhora teve contato com a esposa do maestro Vil/a-Lobos?
A primeira composição da senhora foi feita ainda muitojovem? No colégio ainda. Qual é ela? É "Tiê"?
Era, mas só tinha uma coisa, eu ia e eu via só. Não cantava.
"Tiê".
la só pra ouvir?
o que inspirou
a senhora a compor?
Fui aluna da Dona Lucília Guimarães Villa-Lobos.
Só pra ouvir.
Como ela era?
Ainda. Eu podia ter 14 anos, por aí.
Um pássaro que ganhei. Eu tinha um primo que gostava muito de caçar passarinho. Ele me fez de presente. Era preto e branco, preto, preto e vermelho, eu achei extraordinárias as cores.
Além do cavaquinho, teve algum instrumento que a senhora tocou?
Comecei a compor para o tiê que eu ganhei.
Violão, que o meu pai é que tocava. De sete cordas, e eu adorava ver meu pai tocar.
Antes a senhora já tinha pensado em compor?
Fazer diferenças de ritmos e ser afinada.
E depois que ele morreu, essa admiração pelo violão de sete cordas passou?
Não. Eu só pensava em cantar.
Tendo aula com a mulher do maestro mais importante do pais, a senhora ficava divi-
Passou.
Ainda estava no colégio nessa época? Ótima. E ele não era ruim não. Era um pouco zangado. Tinha que fazer a pose dele, para que nós seguíssemos o que ele queria. E qual foi a grande ajuda que ela deu?
E ai a senhora resolveu compor ...
E assim que a senhora compôs, mostrou
pra alguém?
las de samba?
as minhas composiçõezinhas.
Pra todo mundo que era meu amigo ...
Eu tive a oportunidade de ir em companhia dos meus primos pra ver os ensaios das escolas.
A senhora que fazia suas fantasias?
Por que a senhora foi pra Madureira? Eu já era órfã de pai, ai fiquei órfã de mãe e fui morar na casa deste meu tio Dionísio.
E a primeira foi a Prazer da Serrinha? Prazer da Serrinha.
De onde veio este desejo de bordar a fantasia?
Como foi chegar na Prazer da Serrinha?
Eu vi muitas bordadas e ai tive a vontade. Ai todo mundo passou a bordar as fantasias.
Ele morava na Serrinha? Não, ele morava ali ...
Isso.
Fiquei entusiasmada. Isso já foi no primeiro ano do Império?
(Parente de Dona Ivone) Tia Ivone? Hein?
Era um ambiente bem diferente dos chorões, não é?
Foi.
(Parente de Dona Ivone) A senhora foi morar em Madureira com Tia Cota.
Completamente. Então eu ia com aquela curiosidade de querer ouvir cantar e aprender a cantar.
Mas e a composição surgiu?
É antes de tudo, eu quando fiquei órfã de pai ... E o primeiro desfile de uma escola, foi também no Prazer da Serrinha? (Parente de Dona Ivone) Em Vicente Carvalho.
Foi.
Eu fui morar com uma tia, esta tia que acabou de me criar.
Como foi o sentimento do primeiro desfile?
Depois que a senhora foi morar.
Tia Cota.
A lembrança que eu tenho é o pessoal todo cantando. Eu então me interessei em aprender e a cantar. Quando a senhora fala que se interessou
em aprender, aprender a compor? A compor foi depois. Foi depois.
E depois que foi morar com Tio Dionisio. Depois com Tio Dionisio. (Parente de Dona Ivone) Ao contrário: primeiro com Tio Dionisio e depois com a Tia Cota
Era só homens que tinha, mas eu achei que podia entrar na ala dos compositores. Tive bastante incentivo porque eu mostrei umas composiçõezínhas e todo mundo gostou. Mas não eram machistas naquela época?
Justamente. Então, a senhora primeiro foi morar com Tia Cota?
dos sambas, como
Passei a me interessar depois que eu sai no Prazer da Serrinha. E foi pro Império? Foi.
O machismo deles terminou quando cheguei lá e me apresentei como compositora. Mas eu tive a meu favor os meus primos que eram presidentes das alas de compositores e gostaram do que eu fiz. Fizeram uma surpresa pra mim. Num dia de ensaio, apresentaram uma das minhas composíções. E ai nunca mais sofreu resistência? Não, porque os meus primos todos faziam parte da diretoria das alas dos compositores. Quiseram botar uma pedrinha em cima, mas depois não. Mas nas outras escolas não havia mulheres compondo? Não havia.
É. A senhora chegou a compor lá? Tio Dionisio era em Vicente Carvalho e Tia Cota em Madureira?
Sim.
Era. Madureira.
A senhora levou o "Tiê" para o Prazer da Serrinha?
E quando a senhora chegou em Madureira já devia ter 17 anos?
Levei e todo mundo aprendeu a cantar. Fizeram uma propaganda enorme.
Já tinha quase 18. Ejá estando lá a senhora compôs outros? E o ambiente musical em Madureira? A gente ouvia muito rádio em casa. Meu padrasto trabalhava em uma casa de música e fazia propaganda das que saiam no rádio. Ele botava a tocar. E é nesta época que a senhora vai às esco-
A senhora ajudou a abrir a porta para todas as mulheres. Ajudei. Mas foi um processo muito longo? Bom, foi um processo longo, porque eles não aceitavam de jeito nenhum. Eu tive um contra, sofri um contrazinho no principio ...
Aí depois foi seguindo, fui fazendo outras. Fala um pouco sobre o Império Serrano dessa época. Eu tive oportunidade de me fantasiar. Nunca tinha saido fantasiada, de fantasia rica, cheia de bordados. Aquilo me entusiasmou de tal maneira que eu tive vontade de fazer também
Preconceito. Aí eu digo: "Por que eu não posso entrar na ala dos compositores?" Aí meus primos: "Ela pode entrar sim. Você já ouviu alguma coisa feita por ela?" Foi quando meu primo então abriu a porta pra mim, fazendo eu cantar um dos sambas que eu havia feito pra escola.
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E a senhora cantou ... Eles ficaram admirados. "O samba dela tá melhor do que o de muito compositor aqui do Império". Compositores se apresentaram também quando viram que eu ia me apresentar com o samba-enredo. Foi quando eles não foram aprovados e o meu foi. Como era Silas de Oliveira? Muito inteligente. Quase sempre ele estava cantando, ganhando samba-enredo. Aí, me lembro que, quando eu cheguei, disseram assim: "Ela fez um samba-enredo. Vai deixar ela se apresentar?" Ai, outro disse: "Vou deixar. O samba dela está melhor que o teu". Saiu até briga.
histórico, escrevi. Eu fiz uma espécie de redação e cantei. Aí foi que pegou.
Se cantasse desafinado, estragava a escola toda, atravessou.
Como foi a emoçãojá no desfile?
Se canta um verso e o povo canta outro.
Foi o máximo.
Ih, quebrou! Aí, era horrível mesmo.
A senhora tinha consciência de que naquele momento estava escrevendo uma página na história do samba?
A senhora sente uma diferença muito grande nos sambas que eram compostos nos anos 60, anos 70 e os de hoje?
Perfeitamente.
Demais, porque, em primeiro lugar, era a harmonia. Hoje o pessoal, se deixar desafinado, não procura correr pra corrigir. Eles deixam pra lá.
Ser a primeira mulher a colocar letra de samba-enredo. Foi.
Como era compor com Silas?
E no desfile, a senhora achou que o Império podia ganhar?
Era ótimo. Desde aquele dia em que eles abriram mão pra eu apresentar meu samba-enredo, Silas tornou-se meu parceiro. Ele me convidou pra ser parceira dele.
Quando vi a escola formada com as fantasias e o entusiasmo dos componentes, não tive certeza, mas disse: "Não é possível que a gente não vá trazer ao menos uma tacinha".
Como foi compor "Os cinco bailes da história do Rio"?
Muita gente lembra até hoje do desfile, do samba da senhora.
Eu depois de ler... (pausa)
Todo mundo lembra. Agora, não ganhamos nada. Aí o meu primo disse: "Não fica triste. Continua fazendo porque você já deu o primeiro passo."
O enredo? O enredo, como ia ser. Eu li todo. Todo o texto. Depois eu fiz uma espécie de ...
Qual foi a importância deste samba pra carreira da senhora? Começaram a procurar a senhora pra ir pro rádio ou ... Eu fiz muitos programas de samba, de rádio.
Resumo? Justamente. Meu primo chegou perto de mim: "Olha lá em que você vai se meter. Tá todo mundo contra e você quer fazer agora até samba-enredo". Digo: "Eu vou fazer". Quem chamou a senhora para a parceria dos "Cinco bailes"? Silas de Oliveira. Elejá tinha alguma parte do samba pronto? Ele não tinha nada. Ele e o Bacalhau. Bacalhau. Este foi demais, porque, além de botar o samba pra cantar, fazia propaganda. E um samba como "Os cinco bailes", a senhora trabalhava mais, primeiro a letra, primeiro a melodia ou surgia tudo junto? Não, surgiam juntos. Depois que eu decorei o
A senhora acha que seria possivel hoje reeditar "Os cinco bailes da história do Rio" no andamento que merece ter? De jeito nenhum! Tem que cantar dentro do ritmo. Não pode correr de jeito nenhum. Se correr, acabou o samba. E o Império foi e é até hoje um celeiro de grandes compositores. Isso. O que reuniu ali tanta gente boa ... Justamente por causa dos sambas, das melodias cada vez mais bonitas. E não era só samba-enredo, a escola pr~duziu partido-alto. Já, sendo que hoje, se der uma festa no Império Serrano, pode sair um partido-alto, mas o andamento era completamente diferente.
Repórteres de jornais? Demais. No dia seguinte meu retrato estava nos jornais. Ganhadora do samba-enredo do Império Serrano. Qual a importância da harmonia pra escola naquele tempo? Muito grande. Uma escola desafinada é horrível, né? O samba tem que estar muito bem cantado, e o entusiasmo dos componentes é sagrado, porque isso é a máquina. E era uma época que não tinha as caixas de som, instrumentos. Era voz mesmo, na garganta, no gogó. Muito entusiasmo era o essencial de um samba-enredo. Uma arte fundamental daquela época era evitar que o samba atravessasse.
Isso aconteceu por que os tradicionais partideiros do Império não conseguiram passar esta tradição adiante? Eles queriam passar isso adiante. Os componentes da escola não aceitaram. Mas hoje não se escuta mais partido-alto nas escolas de samba. Porque tem uma coisa, partido-alto, o ritmo é completamente diferente, está mais perto do samba do que ... Do samba que é feito hoje? Do samba que é feito hoje. A senhora acha que o partido-alto chance de desaparecer?
tem
Não, agora tem o seguinte. Os partideiros que tratem de se unir pra fazer esta diferença.
Rio de Janeiro
A senhora acha que jovens das comunidades próximas às escolas de samba estão interessados em conhecer a tradição do partido-alto, samba de enredo e samba de terreiro? Alguns, não todos. Por que não são todos? Porque tem o seguinte: devia ser, como eu direi, obrigado eles saberem, por que este samba é partido-alto, este samba assim, assim, assim, por causa do ritmo.
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Eu tenho saudades daquele carnaval, mas do carnaval de agora não.
E o seu parceiro mais constante?
Não tem vontade de voltar a desfilar?
Como surgiu esta parceria, que é uma história tão bonita de composições?
Quero desfilar com aquela alegria que eu tinha, quando a escola saia bonita, debaixo de palmas, e era outra coisa. Agora a gente passa e nem ... Só escuta dizendo: "Vai pro Grupo de Acesso". Acha que vou ficar ouvindo isso? Paralelamente à sua história no Império, a senhora realizou o sonho de virar uma
Délcio Carvalho.
Nós nos encontramos numa festa e eu cantei um samba pra ele, que disse assim: "Quer ser minha parceira, me dá este samba pra mim". Eu digo: "Não, vai fazer o mesmo que eu fiz, vá atrás dele, procura cantar com sinceridade, ter um bom parceiro e você terá a possibilidade de me ter como parceira".
grande cantora? Qual o tipo de um ritmo diferente do outro. Isso, completamente diferente, mas é que ainda não apareceu um professor pra botar isso em pauta. Quem deveria ser este professor? As diretorias das escolas de samba. E por que elas não fazem isso?
Bom, isso sim.
Graças a Deus. Ganhou o Prêmio Shell, a senhora é reconhecida. Bom, eu fiz o seguinte, já que começou, vamos em frente. Aproveitei, ganhei meu premiozinho, tirei vários retratos na revista, eu fui página de revista, né? Graças a Deus, mas isso tudo eu agradeço á minha apresentação no Império.
Porque não interessa, não interessa. Qual foi a sua participação na ala das baianas do Império Serrano?
E nestes anos todos a senhora gravou com um monte de cantores, compositores importantes da música popular brasilei-
Sair e fazer uma roupa trabalhada, toda bordada.
Ah, são meus amigos.
Nestes anos todos, qual o desfile do Império que mais lhe tocou?
Como é lidar com essas pessoas, e seu trabalho com toda essa gente importante da música popular?
Foi o primeiro carnaval. Fiz samba-enredo. Hoje o Império está no Grupo de Acesso. Como a senhora sente isso por uma escola que é tão importante?
Maria Bethãnia, por exemplo, uma criatura extraordinária. Pra mim, ela não existe. É muita delicada a moça, sabe o que é bonito, o que é ver, dar valor. É minha amiga de verdade.
o que
a senhora diria para um jovem que
De quem?
quer ser compositor de samba?
Ué! Dos diretores. Eu não tenho nem saido. Fiz tanto, cantei tanto, fiquei muitas vezes rouca e, quando acaba, vejo a minha escola no Grupo de Acesso? Por quê?
Ser sincero. A primeira coisa que eu digo pra ele: "Não vá atrás só de Paiminhas e Tapinhas nas costas porque isso não existe, viu? Enquanto você tiver dando o dinheiro, você está bem. É tapinha nas costas, uma porção de coisa, mas, depois disso, desapareceu o tapinha nas costas, adeus. Tu não tem mais nada. É só da gravadora, ela que é a dona de tudo". Eu não gosto nem de falar nisso, sabe por quê? Porque eu já estou cansada. Eu já fiz uma reunião com meus colegas para ver se nós modificávamos esta situação, mas está muito difícil.
Eu não estou saindo na escola já há mais ou menos ... (Parente) Há dez anos. Dez anos, né? Não tem saudades?
Como é compor com ele? Ótimo. É um compositor integro, não me canso de elogiá-lo, é muito inteligente e sincero. Tem sentimento. E nestes anos todos de carreira de compositora e cantora de sambas, qual foi o momento de maior emoção pra senhora? Foi quando eu fiz a minha primeira composição, "Tiê".
ra...
Falta de vergonha.
Há quanto tempo a senhora não sai na escola?
E acabou tendo
Mas a senhora tem esperança? Eu não.
Dona Ivone, se o Império chamasse a senhora pra desfilar, agora no próximo carnaval 2011, sabendo que ele está no Grupo de Acesso tentando subir para o Especial, a senhora iria? Eu ia ajudar a minha escola. Eu gosto do Império de coração. Não sou destas só porque está ganhando.*
o
que representa a bandeira do Império Serrano pra senhora? É a minha joia, representa muita coisa. Vi nascer, discuti muito por causa desta escola. Mora aqui no coração. * Em 2012, ela foi o enredo do Império e desfilou, no Grupo de Acesso.
,
A PERSONAGEM DE UMA HISTORIA QUE COME OU ANTES DE 1976 Como era a BeijaFlor antes de Joãosinho Trinta? Nadyr Amâncio sabe contar essa história, porque foi fundadora da escola e viveu os tempos difíceis, em que a azul-e-branco de Nilópolis era um bloco modesto. No depoimento de 31 de outubro de 2009, ela lembra, na companhia da filha Dinéa, como trazia novos componentes para a agremiação e pedia a colaboração do comércio local para fazer as fantasias das baianas. Engomava a saia e depois a colocava ao sol para chegar ao formato desejado. Tia Nadyr faleceu em dezembro de 2011.
Dona Nadyr, onde a senhora nasceu?
É. E eu fui pra casa da minha avó, em Bangu.
No Engenho de Dentro. Em que ano?
A senhora falou que nasceu no Engenho de Dentro, mas agora se referiu a Madureira.
Ah ...
Madureira (foi onde) a minha mãe ficou morando.
1918?
Qual era o nome da sua avó?
Acho que sim.
Perciliana Amâncio.
Qual o nome do seu pai e da sua mãe?
E ela morava em Bangu?
Justina Amâncio da Silva. Meu pai era João Amâncio.
Morava.
A senhora ficou com a sua mãe até que idade?
Cresci e ela morreu comigo.
E a senhora cresceu com ela? Eu não fiquei não, ela me entregou pra minha avó, eu estava com seis meses. Porquê? Porque ela tinha que trabalhar. Ela já tinha casado com meu pai e já tinha um filho. Aí, ela linha esse filho, trabalhava fazendo marmita. Ela não podia levar criança, levava ele pra ajudar ela a carregar. Levava ele para ajudar a carregar as marmitas?
Como foi a infãncia com a sua avó? Muito boa. Só tinha eu dentro de casa, tudo era velho (todos os demais moradores da casa eram adultos). Eu era mimada. Brincava de que nessa época? Na rua, porque a minha avó não tinha estudo e achou que não precisava estudo. Comer, tomar banho, me levar pro açude pra tomar banho é que ela
,
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fez. Colégio, não.
Heitor.
Ela não levou a senhora pro colégio?
Como a senhora conheceu ele?
A senhora tem filha, neta e bisneta, todas gostam de samba?
Não. Depois, eu fui um pouco pro colégio, mas eu já estava com uns 12 anos. E assim foi indo a vida.
Foi no samba assim.
Todas, aqui em casa todo mundo.
No bloco?
Elas sambam bem como a senhora sambava?
Quando a senhora e a sua avó vieram para Nilópolis? Eu vim com cinco anos pra Mirandela Batista das Neves. Não tinha estação ainda, era tudo oco ainda. Aqui não chamava Nilópolis, chamava São Mateus. Nilópolis chamava São Mateus. Tanto que ainda tem a igreja de São Mateus.
Ai, ele passou a ser o baliza. E uma colega minha era a porta-bandeira dele. Ele foi baliza do bloco Beija-Flor? Foi. Ele dançava bem? Dançava à beça. A mãe dela também, ela era porta-bandeira do bloco. Era a segunda.
A sua avó era de onde? Entre Rios.
E a senhora não quis dançar com ele, não quis ser porta-bandeira?
Ah, não sambam não. Eles agora não têm mais samba no pé. Tem? Acho que não. Têm nada. Estão sambando e olhando pro pé. Sambista não olha pro pé pra sambar, ele trabalha com a mente e o pé. Tá catando tostão? Sambar é uma coisa que vem de dentro ou dá para ensinar para outra? Não dá para ensinar. Você, se tiver o sangue para aquilo, você vê no outro e vai fazer.
Aqui (Nilópolis) era muito pequenininho, tinha pouca gente?
Não dava pra isso não.
Era o Seu Miranda, que era o Mirandela (nome da principal avenida de Nilópolis, onde se concentra o comércio), a Dona Maria da Burra, que era a mulher que tinha dinheiro; o Seu Lúcio, que era o prefeito, que se matou em Niterói, no mar.
Do que a senhora mais gostava no samba?
Nessa época nem se falava em quadra, se falava em terreiro?
Sambar e beber. Era comigo mesmo.
É.
Sua avó gostava de samba?
Era terra de chão batido? Conta como era.
Gostava. Lá em casa todo mundo.
Era chão de barro vermelho.
Na Baia, na praia?
A senhora viveu com seu marido quanto tempo?
E a poeira subia?
É. Era pouca gente. Médico só tinha o doutor Mário, um preto. Andava com a malinha.
Quatorze anos.
A senhora queria ter estudado?
E a senhora namorou muito depois?
Podia ser uma coisa na vida ou nenhuma. Eu tô na nenhuma.
Eu? Claro! O corpo não tá aí pra isso? A gente tem que viver é essas coisas mesmo, é namorar, comer, beber, tomar banho, andar cheirosa no meio dos outros.
A senhora é muito importante, a senhora fundou a Beija-Flor. Ah, isso é. A gente pra fundar a Beija-Flor, a gente fazia o samba na esquina. Tinha o Fontes, que era um restaurante. A gente deixava ele acabar de vender lá as comidas, vender tudo, pra emprestar uma mesa pra gente fazer tudo. Ali mesmo, na esquina da Mirandela. Depois é que Dona Júlia, mãe do Anisio (Aniz Abraão David, banqueiro do bicho que comanda a escola desde a década de 1970), é quem vestia o pessoal. A purpurina ainda era aquela que tinha de catar um por uma. E assim a gente viveu e tamos ai. Primeiro, a Beija-Flor de Nilópolis era um bloco, não é isso?
Como era o nome do seu marido?
o seu marido foi baliza e gostava de dança. E instrumentos musicais, a senhora gostava? Naquela época as mulheres não tocavam. Não, era tudo homem. De primeiro as mulheres não se metiam na bateria não.
Sambar. Sambar? Não perdia um.
No começo o bloco da Beija-Flor era só feito por homens. A senhora foi a primeira mulher a entrar?
Quando a sua filha (Dinéa) nasceu, a senhora levava ela pro samba já pequena?
Foi.
Já pequena. Tinha aquelas caixas de cerveja, ali eu botava ela na cama (improvisada) pra eu dançar.
Não teve nenhuma resistência, não disseram: "Mulher não pode"?
Que idade ela tinha nessa época? Um ano. Ela começou cedo também, tinha que começar cedo. Negócio tarde é bobagem. A gente morre e larga tudo ai, né? Você hoje faz questão de uma casa. Você morre, vai ficar aí?
É, de tamanquinho e de sainha, todo mundo. Sainha azul e branca pra rodar na Praça Onze. Dona Júlia é quem vestia a porta-bandeira, vestia o baliza (folião com função semelhante à do mestre-sala). Ela tinha armarinho, né?
Subia. A gente ia de manhã lá pra molhar, a gente passava a mão e ficava toda amarela do barro. É um caso sério.
Não, era todo mundo unido, muito unido mesmo. Mas primeiro eram só homens.
É. E como as outras mulheres foram entrar?
E a sua filha desde pequena gostou do samba?
Por causa de mim. Eu chamava.
Ah, gostou, gostou. A que não vai muito é a minha bisneta. Mas ela não sai da Beija-Flor, passa a noite toda lá.
As suas amigas? Chamava, fui chamando, chamando. Botando de baiana até formar um grupo. Depois, for-
Rio de Janeiro ~u,
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mando a ala da velha guarda. Aquelas duas que já estavam cansadas ficavam na velha guarda. Por que antes as mulheres não iam pro bloco da Beija-Flor? Era medo, os pais não deixavam? Medo.
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número 4 _
do a Beíja-Flor vinha chegando do lado de cá, porque ele era do lado de lá (da linha do trem), mandava apagar a luz do coreto. E por que ele foi para Beija-Flor depois? Ele gostou da falecida Eliane (Müller David), a mulher dele que morreu. Eliane era Mangueira, ele trouxe ela pra Nilópolis.
Medo de quê? Era vergonha?
Mas foi ela quem fez ele virar Beija-Flor?
Acho que sim. Mas aí eu fui chamando. Ai, a gente corria no armarinho da Dona Júlia. Mas também era tudo chitão pra poder colorir. Aí, botava umas tiras azuis e umas brancas e o chitão por baixo. Botava a saia na goma no sol assim. Agora tem bambolê (para armar a saia de baiana), mas não tinha não, era goma.
Não, Nelsinho (Nelson Abraão David), o falecido irmão. Nelsinho é que era Beija-Flor mesmo. Tem muito fundamento essa Beija-Flor aí, fundamento que leva o dia inteiro. Mas a gente vai levando a vida.
Colocava na goma e deixava secar pra ficar armada é isso? É. Era a senhora mesmo quem costurava a sua baiana?
o que a senhora acha do jogo do bicho e da sua influência nas escolas? Desse negócio eu não entendo não. Mas quando o Anisio entrou e a familia dele entrou, foi melhor ou pior pra Beija Flor?
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esse levantamento. A senhora gostava do Joãosinho aqui na Beija-Flor?
Trinta
Adorei ele. Eu conheci Portugal por causa dele. Como foi? Nós fomos desfilar em Portugal. Esses passeios todos pela Europa, Agora a Beija-Flor não tem mais essas coisas. O João Trinta cavucava o miolo, tirava de nós e levava a gente. Quando a Beija-Flor foi campeã pela primeira vez (em 1976) com o enredo do Joãosinho Trinta, o "Sonhar com rei dá leão", como é que a senhora se sentiu? Ah, me senti orgulhosa. A gente foi desfilar lá pra fora. Não era pra estar, não? Abraçava o João, a gente só não jogava ele pro alto porque ele não era bola.
Quem entrou mesmo foi o Nelsinho. Anisio agora é que ele tá com o nome, mas, assim mesmo, para aparecer como presidente,
Antes do desfile, a senhora achava que a escola podia ser campeã?
E também passava a goma e deixava no sol?
Como o bloco virou escola de samba?
Não. Aí, cada uma delas levava (a sua).
Ah, foi na Praça Onze, avenida. No primeiro ano ela desfilou na Praça Onze, no segundo ano, o homem lá da Praça Onze mandou uma carta pra cá.
Não, mas antes desse carnaval do Joãosinho Trinta, quando estava preparando o desfile do "Sonhar com rei dá leão", a senhora olhava e dizia: "Esse ano a Beija-Flor vem pra ser campeã"?
Costurava a delas todas.
Toda sambista pode ser uma boa baiana? Tem muitas que enganam no pé. Mas tem que sambar bem. Agora não estão procurando samba mais não. Estão procurando o quê? Estão procurando só querer sair. Agora tem avenida pra sair no jornal dando cabeçada conforme você estão dando aqui. Isso é o que elas querem. Antes tinha amor pelo samba? A gente tinha amor e passava o dia todinho no terreiro onde a gente ensaiava. Ai, o pessoal do comércio ajudava (assinava o livro de ouro, registrando a quantia doada para a agremiação) pra gente passar o dia todinho lá. Não é amor?
Dizendo o que na carta? Pra ser escola de samba, não bloco. Aí, teve que virar. Teve que virar de bloco pra escola de samba. Aí, foi onde o Heitor, meu marido, era presidente, também foi. Mas o agarrado mesmo com a Beija-Flor era o Nelson. O Anísio não, o Anísio era Centenário. E como era desfilar na escola de samba Beija-Flor nos primeiros anos? Era difícil levar a escola para a Avenida, botar a escola ... Nós fomos primeiro para a Praça Onze.
Ah, dali pra cá ela subiu à beça.
Vem. Todo mundo já tinha, pelo samba a gente sabe, Esse ano a gente já sabia. A senhora disse que quando ouve o samba na quadra, sabe se vai dar pra ganhar ou não. O samba é o mais importante na escola de samba? Ah, é. Porque pelo pessoal todo de longe assim você vê com aquele entusiasmo, com aquele orgulho. Não é não? Eu ainda não fui a ensaio esse ano. Primeiro porque, vou escutar o quê? Nada (Referindo-se à deficiência auditiva). Apanhei essa gripe agora, até estou me agarrando com o santo aí que é pra ele me dar de novo que eu não posso ficar aí.
E depois pra Avenida. Era difícil? Não, era mais fáCil do que agora.
Qual é o santo? Qual é o nome do santo? (para Dinéa) Frei Galvão (Dinéa responde). É. Ele é muito bom, eu tenho ele ali na cabeceira assim. De ontem pra cá já melhorou.
A senhora é de uma época da Beija-Flor muito antes de o Anisio entrar.
Quais eram as escolas de samba de que a senhora gostava mais e que a senhora pensava: "Ah, a Beija-Flor ainda vai ser como essa escola"?
Anísio nem era Beija-Flor.
Ah, eu nunca pensei nisso não.
A senhora é muito religiosa?
Não? Era o quê?
Nunca pensou?
Desde pequena?
Dinéa, onde o Anisio saía? (Dinéa, filha) Era num bloco chamado Centenário. Ele era de um bloco e implicava com a Beija-Flor. Quan-
Não, de ser maior do que (outras escolas), não. Só tivemos lucro mesmo quando o João Trinta veio pra Beija-Flor, que nós tivemos
Ah, não tinha outro quiabo pra gente se escorregar, vai fazer o quê? Não é? Minha avó era.
Macumbeira. Sou.
Rio de Janeiro
Qual era o terreiro aqui que a senhora ia?
Abril 2013
ano 5
número 4
tem que fazer, que é pra contentar todo mundo.
O nosso, até a minha filha tá reformando. Então, a sua avó tinha um terreiro? Perciliana.
A senhora disse que a Beija-Flor tem muitos fundamentos.
I'
21
reza a ladainha toda. Mas, nas quadras das escolas não cantam mais muito samba de terreiro, né? Não, mas aqui cantam.
Tem. No seu terreiro.
E ela passou o terreiro pra quem?
E que as pessoas hoje não sabem dos fundamentos.
Passou pra minha tia. Aqui é assim, vai sabendo que vai morrer, passa pra aquele, depois passa pro outro, passa pro outro.
Ah, não.
Passou pra sua tia. Qual o nome da sua tia?
Vem dos antigos que estão morrendo e vão deixando. Mas não é mais aquele entusiasmo. Porque de primeiro, a gente já pisava no chão com aquele entusiasmo. Parece que levou carreira e tá com medo, né? O que é que a gente vai fazer?
De onde vem a força da Beija-Flor?
Maria. E ai, a tia Maria passou pra senhora agora? Ela foi pra uma casa agora pra passar o terreiro pro homem. A vovó (preta-velha, entidade da umbanda) tinha dito a ela. Ai, chegou lá, o moço disse assim: "Dona Maria, a senhora tá enganada. Tá tudo na sua mão mesmo, vai ficar em família." E assim tá.
E quem vai passar pra novas gerações os fundamentos? Eu vou dizer pra você. Não vou te enganar, não. De dois anos pra cá, eu tô meio silenciosa na Beija-Flor.
E está com a senhora agora? Agora a minha filha está mudando o telhado todo. Aí, eu dou doce de Cosme e Damião, faço uns docinhos. O Anisio me ajudava de primeiro, me dava uns brinquedos pra eu trazer pra dar pras crianças. Mas lá tem um puxa-saco do Anísio que cortou. Você com um terreiro cheio de crianças, o que você vai fazer com 50 sacos? Não dá nenhum. Aí, ele me telefonou dizendo que só podia me dar 50 sacos pras crianças. Aí, eu disse que ele guardasse pros filhos dele, que eu não precisava não, que as crianças do morro sabem o que é doce. Eu também sou meio atrevida, pela cara você tá vendo,né? E é a sua filha quem cuida do terreiro.
Porquê? Não sei, vem de dentro de mim. Desde esses sacos dos doces. Pra mim, pronto. Porque se você bater numa criança, você é mais errado do que a criança, porque você já passou por aquilo que ela tá passando.
Dinéa, olha ela lá. Ela disse que só cuida da arrumação, mas não das coisas do santo. Mentira, ela gosta do brinquedo também. Quando acabar, você deixa o teu telefone aí, quando der a feijoada do Ogum, eu vou ligar pra você pra você vir (diz ao jornalista Aloy Jupiara). Me liga, eu venho sim. Mas não é feijão preto que Ogum come não, é feijão-manteiga. Santo ainda tem isso, né? Você gosta? As almas também têm, tudo tem. Você não gosta de fubá, aquele já gosta. Você
Mas cantam aqueles sambas de terreiro bem antigos dos compositores? É. Bem antigos e do falecido Jairo Cabana. Até tem um colégio aqui atrás e um cemitério que tem o nome do Cabana (provavelmente se refere à lápide do túmulo do compositor Silvestre David dos Santos, fundador da escola). Para a senhora, o que representa o beija.flor, simbolo da escola? Pra mim? Pra mim representa humildade e lealdade. Agora, pros outros eu não sei. Eu corria e matava quase um por causa desse Beija-Flor. Agora a gente já vê gente que entrou hoje e já está fazendo pouco. Você deixa, não preciso disso, não vivo disso. Pra eu almoçar e jantar tem meu genro que me dá feijãozinho pra eu comer. Eu vou lá pra Beija-Flor pra quê? Atrás do sapato de Anísio? Eu não, não dou nem bola. Mas a Beija-Flor é muito importante na história da senhora e a senhora na história dela, né?
Mas a senhora não pode passar pras novas gerações os fundamentos?
Você acha?
Passo, se eles tiverem aquele amor que eu tenho, eu passo.
Eu acho.
A quadra da Beija-Flor tem uma imagem enorme de São Jorge hoje. O que significa? Que Anísio é guerreiro.
Ela tá ajeitando. Qual é o nome dela?
Na Beija-Flor canta.
E a Beija-Flor? Pra Beija-Flor o Anísio é guerreiro. Mas o São Jorge que era da Eliana, a finada mulher dele, tá aqui comigo. É pequenininho assim, não é grande, tá aqui. Tá tapado porque o pedreiro tá trabalhando lá, mas quando estiver bom, eu te chamo pra você comer o feijãozinho. Convido, né? Convido você.
A Beija-Flor veio de dentro de mim, eu não fui pra dentro dela não. Eu não fui ser Beija-Flor depois que Anísio entrou. Eu já era, de tamanquinho. Se lembra? Tamanquinho assim. Fui formada assim, então, nós fomos. Não tinha lugar pra gente, a gente ia pra casa do Seu José Sena (Senas), que hoje a filha (Marlene Senas David) é casada com o Nelsinho (Na ocasião do depoimento, Nelson já tinha morrido. Marlene veio a falecer em março de 2012). E a senhora vai desfilar, é claro. Eu? É.
A senhora começou a entrevista cantando um samba de terreiro. E a senhora disse que gosta mais de samba de terreiro do que de enredo, é isso? Ah, gosto. Samba de terreiro tem mais animação. Agora, enredo não, enredo é pra aquele dia. Terreiro, não. Tanto que quando abre, abre com samba antigo. Canta, chama, quase que
Seí não. Porque não? O ano retrasado eles ... Eu não posso subir em escada de madeira. Eles me botaram escada de madeira pra subir. O santo (entidade de sua religião) não deixou. Aí, eles me tiraram e,
quando foi esse ano agora, eu também perdi a vontade de ir.
putado que tinha aí. Ele não era Beija-Flor não. A família era, ele não.
Os desfiles antigos e os sambas antigamente eram mais gostosos?
Dona Nadyr, o que a senhora diria para um jovem que quer entrar no samba e quer ajudar a Beija-Flor?
A vida toda a senhora é Beija-Flor.
Aí? Não sei, não sei.
Eu saio pra onde? Pra 93 anos. Já chega.
E se fosse antigamente, o que ele precisaria?
Eu queria que a senhora falasse sobre o seu amor pela Beija-Flor.
É a presença ali, não é puxação de saco. Nós não tínhamos. Era do tamanco ao que estava de sapato, era uma coisa só pra gente. Hoje em dia não, hoje em dia são mesas escolhidas. Neguinho. Quem viu aquilo lá em Nova Iguaçu é que sabe. Era Neguinho da Vala, né? Ele morava perto da minha irmã, lá em Nova Iguaçu. Agora Neguinho tá com cordão (de ouro).
Ah, é demais. Eu adoro a Beija-Flor. E hoje, eu vou ficar o dia inteiro com isso na minha cabeça. Tem horas em que eu sento e eu mesma fico cantando aqueles sambas antigos, esqueço um pedaço, mas eu adoro muito a minha Beija-Flor. Porque foi, veio de raiz, veio de raiz mesmo, que nós cavamos lá a raiz pra vir trazendo com aquele cuidado. Agora tá brotando.
Ah, era.
Foi Anísio quem deu, relógio que Anísio deu. Falar é uma coisa, mas a gente ter dentro do peito é outra. Eu sou Beija-Flor, eu sou, morrendo eu sou.
Porquê? Era muito gostoso e muito unido. Era uma família a Beija-Flor. Hoje em dia não é. Hoje em dia eles só querem estar para o lado de quem está com o dinheiro. Você tanto beija o pobre quanto beija o rico. O rico em segundo lugar, o pobre em primeiro. Eu acho assim, no meu ver. Mas eles acham que aí tem que estar beijando o que Anísio faz. Eu digo: "Anísio nunca foi Beija-Flor não". Eu falei na cara dele lá. Anísio nunca foi Beija-Flor. Anísio juntava com um de-
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UMA PASTORA QUE ALIMENTA O SAMBA NÃO SÓ COM A SUA VOZ Viúva de Manacéa, um dos pilares da tradição portelense, Yolanda de Almeida Andrade, a Tia Neném, há décadas alimenta o samba de duas maneiras. A primeira é com o canto de pastora, fundamental, no passado, para o bom desempenho de qualquer compositor nos terreiros. A segunda é com a comida, antes restrita aos convidados das festas em sua casa - entre os quais Cristina Buarque, que gravou "Quantas lágrimas", sucesso de seu marido - , e depois acessível ao público na Feira das Yabás, encontro de culinária e samba em Oswaldo Cruz. No depoimento de 14 de fevereiro de 2009 em sua casa, em Madureira, ela estava com a filha Áurea, pastora igual à mãe.
A senhora nasceu em 1925? 25. Onde? Na Praça da Bandeira. Qual era o nome dos seus pais?
Era meu irmão, Lincoln, a minha irmã, Helena, e eu. E desde cedo a senhora teve contato com o samba de Madureira? Eu morava ali na outra rua, meu pai morreu ali na outra rua. Quando mamãe recebeu o montepio dele, comprou aqui. Posso continuar?
Ana Pereira de Almeida e Artur de Almeida. Pode. Vocês vieram para Madureira em que ano? 1930. Como era Madureira nessa época? Bem atrasado. A Rua da Portela era de barro vermelho.
Mamãe comprou aqui. Então, eu, desde cinco anos morando em Madureira, com 14 anos, comecei na Portela. Mas já morava aqui. Aí, comecei a frequentar a Portela. Sair na Portela. Quem levou a senhora pra Portela foi Tia Flauzina. É, tia do Manacéa.
Era um bairro com muitas árvores? Muitas árvores e poucas casas.
A senhora estudou aqui em escolas de Madureira? Estudei.
Eram quantos irmãos? Três.
A senhora lembra o nome da escola? Escola Paraná, em Campinho.
A senhora e quem mais?
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Rio de Janeiro -
E a senhora parou de estudar para trabalhar? Pra ir trabalhar. Como foi a chegada da senhora à Portela, como era a Portela naquele tempo? Quando eu conheci, já era Portela. Antes era Vai Como Pode. E como era a Portela? Um bloco pequeno com corda. Acho que todas as escolas eram pequenas. Não tinha equipamento de som, eram as pastoras que cantavam? As pastoras que cantavam. Desfilava? Desfilava junto com a Dona Flauzina, as filhas dela, Nadir e Neuda, e o seu Nicanor.
o Seu Paulo
da Portela pegava a senhora
aqui? Pegava, porque ele ficou muito amigo do meu irmão. Quando subia à noite, ele subia sempre com o meu irmão. Ai, vinha aqui, jantava aqui. Ficou muito amigo do meu irmão. Tanto que o meu irmão tem dois sambas, tem a primeira (parte), a segunda é do seu Paulo. Todos dois, a segunda é do seu Paulo. Como começou a amizade da família da senhora com o Paulo da Portela? Foi o irmão do Manacéa, o Aniceto, que apresentou meu irmão ao Seu Paulo. E como era o Paulo da Portela? Muito simples, mas muito elegante. Antigamente, homem de escola de samba era chinelo Charlotte. Seu Paulo não tinha nada disso. Era terno, gravata, muito bem vestido. E muito educado. Logo depois que a senhora deixou o estudo, foi trabalhar como costureira, é isso? É. Como a senhora chegou a esse trabalho? Eu fui onde morava uma amiga nossa e ela pediu para eu ajudar a chulear um vestido dela, que era costureira também. Eu fui. Ai, quando acabou esse vestido de noiva, uma amiga, uma pequena que trabalhava com ela, disse assim: "Yolanda, aí embaixo, no quarto andar, a moça precisa de pessoas para trabalhar com ela". Aí, eu fui. Mas eu não sabia que lá não trabalhavam pessoas escuras. A senhora tinha que idade nessa época?
Abril 2013
Vinte e um ... Dezessete para dezoito.
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número 4 I
anos! Dezessete
Essa experiência de chegar a um local de emprego que não aceitava negros, ela foi muito dura para a senhora, foi chocante? Não, não foi. Só me olhavam muito, né? Me olhavam muito. Teve até um dia em que começou a sumir dinheiro na bolsa dela. Elas não me diziam nada, mas ficaram desconfiadas comigo. Aí, um dia eu passei mal e faltei ao serviço, não fui trabalhar. Liguei para ela dizendo que eu não estava passando bem. Aí, sumiram cem reais da bolsa dela. Parece até que foi bom eu não ter ido naquele dia. Aí, quando eu voltei para trabalhar - fiquei dois dias em casa - uma amiga minha disse: "Yolanda, a Dona Domingas estava desconfiada de que você apanhava dinheiro na bolsa dela, mas quem apanhava era o sobrinho do seu Azevedo. Mandou ele embora". Nessa época, a senhora sentia que havia muito preconceito com relação aos negros? Havia, né? Tanto havia que lá no meu trabalho era assim. E depois que eu trabalhei lá - trabalhei cinco anos - , quando eu estava para me casar, ela fez o meu vestido de noiva, comprou lá na ... eu estou tão esquecida ... Aquela rua estreitinha. Ouvidor! Até esqueço o nome da casa. Vinte metros de pano para fazer o meu vestido. Cetim duchese, aquele cetim bom. Meu vestido teve vinte metros. As meninas que fizeram. E as meninas me deram o véu, um véu enorme. Um vestido enorme, um véu enorme também. Foi feito tudo lá. A Dona Domingas virou minha comadre, ela batizou uma filha minha. A Margarida, a outra escura que entrou, batizou a Áurea. Aí, tive outra menina e Dona Domingas batizou. Depois, a senhora saiu de lá e foi para outros ateliês? Não, depois que eu sai de lá, já estava casada. Ela veio no meu casamento. Eu já estava casada. Aí, quando a Áurea nasceu, eu passei mal, tive tétano. Ai, fui para o hospital, fiquei muito ruim. Quando eu voltei, não trabalhei mais. Ai, me aposentei. Fiquei cuidando de casa.
mulheres sambistas? Para as mulheres. E como era que as sambistas deveriam se vestir naquela época? Porque na Portela, pelo Seu Paulo, tanto os homens quanto as mulheres sempre gostaram de andar melhor, porque dizem até hoje que a Portela gosta de andar bem vestida. Nem tanto. Nem todos. Só anda quem pode. Isso foi Seu Paulo quem criou. Como foram os primeiros encontros com o Manacéa? Em que época mais ou menos? Nós fomos a bem dizer criados juntos. Ele morava aqui na Rua Sérgio de Oliveira, onde tem um busto do Seu Paulo. Eu morava na outra rua, nessa rua aqui detrás, onde meu pai morreu. Aí, quando a minha mãe comprou aqui, o Lincoln já se dava com o irmão dele, o Aniceto. Ai, o Aniceto vinha muito aqui, porque ele tocava cavaquinho e o meu irmão, o violão. E o meu padrasto também tocava cavaquinho. Quer dizer que aqui ficava sempre uma música tocando nos domingos. O Aniceto deixava sempre o cavaquinho dele aqui. Aí, o Manacéa ainda pequeno vinha buscar o cavaquinho. Levava o cavaquinho e o Manacéa trabalhava no geleiro, aqui em Oswaldo Cruz. Já pequeno ele trabalhava. É, 14, 15 anos. Ele trabalhou no geleiro. Mamãe mandou eu comprar gelo. Engraçado que, naquele tempo, tinha, eu acho que vocês não pegaram, uma geladeira de pau. Eu ia comprar o gelo e o Manacéa mexia comigo. Eu dizia: "Mamãe, eu não vou mais comprar o gelo. Toda vez que eu vou comprar o gelo, o Manacéa mexe comigo". Ele também vinha buscar o cavaquinho do irmão. O irmão deixava o cavaquinho aqui. Quando ele estava na fábrica de gelo, fazia graça com a senhora? Ele mexia comigo: "Vou casar com você." "Vai nada!" Eu chegava aqui por conta, porque ele dizia que ia casar comigo. Acabou casando mesmo. E quando começaram a namorar?
No ateliê, a senhora aprendeu a costurar, desenvolveu a costura ... Eu já sabia um pouco. Aprendi mais.
o Paulo da Portela era muito preocupado com a roupa, com o uso da roupa. Sendo costureira, a senhora ajudou nisso?
Ah, com dezoito anos, assim. E o que atraiu a senhora nele? O que nele atraiu a senhora?
Não, eu só fazia vestidos.
Minha mãe dizia: "Você quer namorar, você namora. Ele tem profissão, o Manacéa é uma pessoa decente. Você vai casar com uma pessoa que não tem profissão?"
A senhora só fazia vestidos, mas para as
Nessa época, ele já
estava na Portela
Rio de Janeiro
como compositor?
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Grande.
E a senhora decorava imediatamente sambas dele?
Por que em Campo Grande?
Decorava, porque ele cantava tanto que a gente tinha que aprender, né?
Como compositor. A senhora disse num momento antes que o irmão dele, o Aniceto, vinha pra cá porque era amigo do Lincoln. Em algum momento ele se juntou a esse grupo e eles faziam rodas de samba ou compunham aqui nessa casa? Compunham muitas vezes, mas o Aniceto e o Lincoln que faziam os sambas. Faziam samba. É, Manacéa começou a fazer samba depois.
Porque Campo Grande tinha coreto. Todo ano a Portela ia em Campo Grande. E como era? Evidentemente, diferente do que é hoje em dia. Ah, bem diferente, porque era com corda. O pessoal segurando na corda, empurrando para não "ajuntar" . Na frente vinham o mestre-sala e a porta•bandeira ...
os
E nesse momento, ele para de fazer sambas-enredo e passa a fazer mais sambas de terreiro. Sambas de terreiro. O que a senhora prefere, os sambas-enredo ou os sambas de terreiro? Agora quase não tem mais samba de terreiro. Agora é mais samba-enredo .
E a gente vinha atrás. A senhora consegue citar um samba que ele tenha feito para a senhora? Como é aquele samba que a Surica diz que ele fez pra mim (pergunta a Áurea). Áurea: "Eu sem você jamais teria o prazer de viver ...! Eu imploro, Criador/ Que não separe de mim/ Este grande amor/ Eu sem você, minha querida/ Jamais terei alegria na vida."
O Manacéa compôs sambas já na década de 40 e também na década de 50 pra Portela desfilar.
Por que a senhora acha que aconteceu isso e os sambas de terreiro passaram a desaparecer das quadras?
É, final dos anos 40 ele já compôs.
Eu acho que saiu muito samba-enredo e também para ganhar o dinheiro. Porque quando o Manacéa fazia samba, o Alvaiade e até Candeia, eles nunca ganharam nada. Faziam samba por amor. Até no tempo do Candeia era samba por amor.
Em 48 eu acho que ele fez "Princesa Isabel".
Na feijoada cantam samba de terreiro.
Em 48?
Os antigos. Muitos sambas do Manacéa esse menino canta. "Quantas lágrimas" é a primeira que sempre sai.
Quarenta? Final dos anos 40.
o
samba era o lazer principal de vocês aqui em Madureira? O que mais vocês faziam aqui em Madureira nessa época? Era samba e cinema. Mas eu gostava muito de cinema.
Em 48, pode ser? E como era ser pastora naqueles primeiros anos de Portela?
Talvez.
O menino, a senhora se refere ao Marquinhos de Oswaldo Cruz?
A Portela não era muito iluminada. A gente levava um negócio assim na mão para clarear, as mulheres, os homens. Acho que tinha lâmpada ali.
Em 50, "Riquezas do Brasil", certo?
Não, é o Sérgio Procópio. Mas o Marquinhos também canta. Mas o Serginho é quem fica cantando mais.
E não atrapalhava carregar e cantar? Não, a gente carregava sambando. O nome era gambiarra.
Certo. Que foi regravado recentemente pelo Zeca Pagodinho, isso? É. E ele tinha muitos amigos compositores e parceiros também?
E os desfiles mesmo da Portela, vocês saiam daqui de Oswaldo Cruz, pegavam o trem, ou de Madureira e iam ... Pra cidade. E vocês iam cantando daqui pra lá? Cantando. É, ia cantando. Vários sambas ou o samba que vocês iam cantar no desfile? Cantava um samba e depois o que ia cantar no desfile. Mas, a essa altura, já estavam todos ensaiados e todo mundo sabia. É. Ai, terça-feira a gente desfilava em Campo
Não, ele sempre fez os sambas sozinho. Como foi essa decisão dele de parar de fazer samba-enredo? Porque ele sabia que não podia competir com cinco pessoas, não é? Quatro, cinco pessoas fazendo samba. Por que ele preferia fazer samba sozinho? Porque ele achava que dava para fazer sozinho. Quando não era samba-enredo, era samba de terreiro ... Terreiro ele também fazia sozinho.
quando
Agora, vamos falar sobre a sua vida com Manacéa aqui. A senhora realizava festas no quintal, ele reunia as pessoas? Muitas pessoas. Como eram as festas? Começavam ele, meu irmão, meu padrasto, começavam a cantar. Ai, vinha juntando pessoas. Acabavam saindo sambas, muitos sambas. Cristina Buarque sempre veio. E outras mais sempre vieram aqui cantar. Tinha algum dia da semana? Não. Vinham mais assim em aniversários, meu, de Manacéa. Eram feitas embaixo das mangueiras? No quintal todo, enchia muito. Aí, depois, eu fiquei um pouco cansada e disse: "Manacéa, para um pouco com isso. Muita gente". Aí que começou daqui ir pra casa da Doca.
26
Rio de Janeiro
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Além de samba de terreiro, também se cano tava partido-alto quando tinha reunião?
monstrar interesse pela música, foi desde pequena?
Era sempre partido-alto.
Não, conta como é que foi, Áurea.
É isso, e ISSO, o samba não crescia tanto. Quando elas gostam, o samba cresce, né?
Era mais samba de terreiro?
A senhora é que tem de contar.
Era muito mais difícil do que é hoje?
Mais samba de terreiro.
Eu é que tenho de contar?
Era, porque hoje tem o microfone para cantar, ajudar e tudo. Naquele tempo tinha só a gente cantando, né?
o filme "Partido-Alto", foi feito aqui?
do Leon Hirszman,
É. Porque, ela tem um samba com o Manacéa.
Foi. Qual é o samba? Qual é o nome do samba?
o Paulinho da Viola bem jovem veio. Veio todo mundo da Portela, veio Casquinha, Candeia ... É, primeiro foi feito na casa do Candeia. Aí, depois, foi feito aqui. E como foi criar os filhos nesse meio musical? Bom, o Manacéa não gostava muito que elas fossem. Aí, eu levava. Onde? (Áurea) Pra Portela. Por que ele não gostava? Ele nem gostava muito nem que eu fosse (risos).
"Volta, meu amor". Aí, o Manacéa ... Esse samba era antigo, mas ele nunca botou a segunda, sempre teve vontade de botar a segunda (parte) no samba, mas nunca conseguiu botar. Aí, um dia, ele falou: "Poxa, eu queria tanto botar a segunda nesse samba, mas não consigo botar". Aí, ele estava tocando cavaquinho e cantou. A Áurea foi lá nos fundos e quando voltou: "Papai, eu acho que botei a segunda." "Botou nada ..... "Eu acho que botei. Quer ver como eu vou cantar?" Ai cantou e então tá. "Puxa, mas você! Que segunda bonita! Então, vai ficar essa mesmo".
É uma menina e quatro meninos.
Um casal de netos e cinco bisnetos.
Quantos filhos vocês tiveram?
Tia Neném, a pastora era uma personagem muito importante nos primeiros anos das escolas de samba, porque o canto das escolas não existia sem ela.
Três meninas.
Até hoje.
Áurea ... Ana, Áurea e Heloísa.
Mas hoje, por exemplo, o som da quadra e o som do desfile abafam a voz dos sambistas propriamente ditos.
Estudaram aqui onde a senhora estudou?
Antigamente, tinha de ser a gente mesmo no gogó.
Eu estudei no Campinho, na Paraná. Mas elas estudaram aqui em Oswaldo Cruz e depois onde? (falando com Áurea). Depois, Nossa Senhora da Piedade, aquela escola de irmãs. Não é? E depois você foi para a faculdade. Crescendo numa casa musical, as suas fi. lhas, todas as suas filhas, desenvolveram interesses musicais?
O diretor de harmonia, ele ia igual a um maestro para dar força e cantando também, né? Manacéa, Waldir 59 também foram diretores de harmonia. Tudo isso para evitar que o samba atravessasse durante o desfile. É, que o samba não atravessasse.
Iam lá, voltavam.
Mas tinha muitos para ir levar a escola e trazer. E para trazer o samba até a bateria, até as alas, para corrigir se a ala estivesse cantando errado. É. Para corrigir se a ala estivesse cantando o samba errado, estivesse cantando o samba mais a frente, estivesse atravessando a escola? É. Agora, vamos falar de "Quantas lágrimas". Ele foi gravado primeiro por Paulinho da Viola, é isso? Cristina Buarque.
Além disso, era muito importante, porque era a aprovação das pastoras que dava a sustentação de um samba. Se o samba fosse para a quadra e as pastoras não gostassem, elas não cantavam e o samba não acontecia. Era isso mesmo? Quando elas gostam do samba, o samba até cresce na voz delas.
Só essa (Áurea). E como foi que a Áurea começou a de.
Qual era o papel do pessoal da harmonia, do diretor de harmonia no desfile?
Voltavam trazendo o samba ...
São quantos netos e quantos bisnetos?
Eu deixava ele ir, depois que ele ia, eu me aprontava e ia atrás.
O pessoal da harmonia ajudando.
Na Filhos da Águia, quatro.
Não. Não gostava também que eu fosse. Porquê?
E o pessoal da harmonia ajudando.
Eles iam até... Os seus bisnetos desfilam hoje.
Na escola mirim da Portela. Ele não gostava que a senhora fosse?
elas...
A senhora viu muitas situações assim, em que sambas que pareciam que iam virar sucesso, as pastoras não adotavam para
Cristina Buarque ou foi Paulinho quem gravou primeiro em "Portela, passado de glória"? Foi Cristina que gravou primeiro. Como foi que Cristina teve contato com o samba? Uma vez, ele cantando para o Paulinho, falou que tinha vontade de gravar. Aí, o Paulinho falou: "Dá pra Cristina Buarque." Ai, ele cha-
mou a Cristina e a Cristina quis gravar. E tem alguns outros sambas, sambas de terreiro que a senhora citaria? Tem "Carro de boi", que a Beth gravou. "Manhã brasileira".
não tem grande dinheiro, sempre é pouco. Eu acho que pra viver só de dinheiro de samba, só quem tem muitos sambas gravados que pode viver.
das tias da Portela tem uma ligação muito intima com a cozinha e com preparar alimento para as festas. Como é que foi isso, foi natural, foi alguma coisa que a senhora quis fazer?
A vida do sambista é uma vida dura? Foi uma vida dura?
Minha mãe e minha irmã cozinhavam. Eu não ia ficar só olhando, tinha que aprender também. Foi assim que eu aprendi a cozinhar.
Martinho e Luiz Carlos da Vila gravaram.
Pro Manacéa foi. Agora, eu não sei para os outros.
Zeca Pagodinho gravou de novo "Manhã brasileira".
Para o Manacéa foi?
É? Manacéa tem uma parceria com Monarco, não tem? (Áurea) Tem. Qual? (Áurea) "Obrigado pelas flores". Era possivel para o Manacéa e para a senhora viver só do samba? Viver só do samba, do que o samba produzia de dinheiro nas gravações, nas gravações dos outros sambistas? O dinheiro veio. Agora, é pouquinho. Você vê, antigamente não tinha dinheiro, até no tempo do Candeia não tinha dinheiro. Quer dizer que agora que passou a ter dinheiro,
Mas também, o Manacéa tinha o emprego dele. O Manacéa trabalhou, se aposentou, mas tinha um pouquinho, mas tinha o emprego dele, né? A senhora acredita que os jovens compositores da Portela e de outras escolas poderiam aprender ouvindo mais os sambas-enredo de antigamente? Podiam, mas do jeito que estão fazendo os sambas agora, eu acho que vai continuar assim mesmo.
Foi o Marquinhos de Oswaldo Cruz quem pediu à senhora para participar da Feira das Yabás? Foi. Eu comecei com 25 quilos, de 25 passei pra 30, de 30 a 35, agora chegou a 60. Chega, não faço mais de 60 quilos de rabada. Ele sabia que a senhora fazia rabada boa? Já tinha comido a rabada? Não, eu acho que ele nunca tinha comido a rabada aqui em casa. Agora eu faço ... Não tem samba sem comida. Sem comida e bebida. Tem que ter.
A senhora falou da rabada que faz. A senhora cozinha há muito tempo? É, cozinho. Quando tinha coisa aqui, eu sempre fiz comida. A história das tias das escolas de samba e
Tia Neném, a última pergunta, o que a Portela representa para a senhora? Uma paixão mesmo. E eu acho que essa paixão eu vou deixando pros filhos, pros netos, pros bisnetos.
Rio de Janeiro
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número 4
.. - ~-~---_--""""""'~"""""""'~:I
E O SAMBA FEZ UMA PORTA-BANDEIRA, FINALMENTE, SORRIR o sorriso foi uma conquista difícil para Maria Helena Rodrigues. Na vida e no samba. Sem pai nem mãe aos nove anos, ela chegou a morar na rua com seu filho. Por não ter onde ficar, ia para o bloco Cometas do Bispo. Um dia foi ao ensaio da Mangueira e, ao ver a porta-bandeira Neide dançar, decidiu que queria fazer o mesmo. Mas, ao ser treinada pelo mestre-sala Bagdá, foi advertida de que era preciso sorrir, conforme contou no depoimento de 13 de novembro de 2009. Após correr várias escolas, consagrouse na Imperatriz Leopoldinense, ganhando o Estandarte de Ouro em 1994. Com o samba, superou as dificuldades. Já pode sorrir naturalmente.
romoveu,
na Praça Onze.
enriqueciment e reunindo amo Paulo da PorteI. , . A popula que vir
Você nasceu onde?
ão n 'rol ti
ímb
Minas Gerais, cidade de São João Nepomuceno.
Com uma irmã de criação (e outra irmã), mas, quando ela chegou, se descartou. Aí eu fiquei.
Em que ano?
Ela era mais velha?
Não tenho nem ideia. Só se olhar na certidão.
Bem mais velha.
E o dia e mês?
Seus pais trabalhavam com o quê?
2 de maio.
Na enxada.
Como é o nome de seus pais?
E, depois que sua mãe morreu, o seu pai não ...
Maria do Carmo e Manoel Vitalino.
Antes de a minha mãe morrer, o meu pai já tinha desaparecido.
Como foi a sua infância? Péssima. Nem sei te dizer o que é infância.
Os seus dois irmãos eram mais novos? Três irmãos. Uma que hoje mora em São Paulo e os outros dois mais novos, já falecidos.
Por quê? Minha mãe morreu eu tinha nove anos. Fiquei tomando conta de dois irmãos. Aí me meti a vir para o Rio e, quando eu cheguei, não tinha espaço e fui ser mendiga. Arrumei um filho. Com mais uma responsabilidade. Você veio com os seus irmãos?
Quando chegaram ao Rio de Janeiro, para que bairro vocês vieram? Rio Comprido. Quando o samba entrou na sua vida? Foi nesse momento ou mais tarde?
Rio de Janeiro
Foi acontecendo lá onde eu estava rondando. Eu não morava, porque mendigo não tem casa. Então, eles formaram um bloco. Isso no Rio Comprido? Isso. No Morro Cento e Dezessete. Eles formaram um bloco. Eu não tinha onde ficar, ia para o bloco. Sai dois anos nesse bloco de passista. Todo mundo debochando. Ai eu disse: "Me aguarda". Um belo dia conheci uma menina lá do Morro do Pavãozinho, que me convidou: "Eu te arrumo uma roupa, você toma um banho e vamos pra Mangueira". Cheguei e a falecida Neide (porta-bandeira) dançava daqui pra ali: "Hum, já escolhi minha profissão no mundo do samba". Aí eu comecei a me dedicar. Nesse meio tempo, arrumei meu filho. Dormi com meu filho muitas noites na rua. Depois arrumei uma moradia. Nesse meio tempo, ninguém chegou perto pra te apoiar? Quando chegou, eu já não estava tão apagada.
Já estava sendo conhecida? O que me deu a maior força mesmo se chama Bagdá (mestre-sala). Teve um problema com a primeira porta-bandeira de um bloco lá da Pavuna. Ai, ele resolveu me treinar. Eu já dançava, mas sem responsabilidade nenhuma. Ele deu força a meu filho também pra ser mestre-sala. Eu tinha uma cara feia. Sou invocada. Aí, ele: "Você tem que rir". "Eu não quero rir, não sou palhaça." Eu era terrivel. Parecia mesmo um bicho do mato. Perfeita foi a Neide. Quando você saiu pela primeira vez? Nos anos 60? Mais ou menos por aí. E como era o nome do bloco no Rio Comprido? Cometa (Cometas) do Bispo. Verde e branco. Depois você virou a Maria Helena e foi enredo do bloco? Fui. Um menino que naquela época (em que morava no Rio Comprido) a mãe dele me ajudou muito foi assistir a um programa que eu fui fazer na (Rede) Globo, uma entrevista. Ai, eles me viram e foram me procurar onde eu moro e fizeram enredo. Tinha pessoa (antigos vizinhos) que falava: "Quem? Maria Helena? Maria Helena é uma doida que vive por ai jogando pedra, brigando com os outros". Eu
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brigava com todo mundo.
passou depois de sair da Imperatriz?
De lá você foi para a Pavuna?
Lembro. Império da Tijuca, Unidos da Tijuca, Unidos da Ponte, Arrastão de Cascadura, minto, Arrastão de São João. Depois a (União da) Ilha.
Ai, pulei para a Imperatriz. Antes de ir para o bloco da Pavuna, você foi para a Imperatriz? Fui para a Imperatriz de segunda porta-bandeira.
o bloco
e a Imperatriz foram juntos?
Misturou tudo. Os blocos e a Imperatriz na mesma época. Como você chegou ao bloco da Pavuna? Fui andar em São João (de Meriti, municipio da Baixada Fluminense vizinho ao bairro da Pavuna). Passei na estação, vi uma batucada. Ai, entrei. Aí, você chegou e eles estavam precisando de uma porta-bandeira? Não. Ainda teve muita confusão. Eu comecei a me enturmar. Ai, me deixavam pegar a bandeira e rodar. Fui continuando. Quando faltou a primeira porta-bandeira, que teve um problema (de saúde), aí me colocaram como a primeira. Eu vinha de segunda. E como era o nome do bloco? Quem Quiser Pode Vir. A gente foi só campeão, campeão, campeão. Resolveram me botar como primeira na Imperatriz (era a segunda, mas não chegou a assumir o posto de primeira naquele momento). Aí, mudou a diretoria. Como você foi para a Imperatriz? Instinto. Eu apareci de supetão, do nada. Daqui a pouco, eu era a segunda, daqui a pouco me expulsaram, me mandaram embora.
Nessas todas como segunda? Não. Nelas todas como primeira. O que me consagrou mesmo foi a União da Ilha. Eu vim desfilando como porta-bandeira em cima de um carro. Fiquei três anos. Ai, mudou a diretoria, tiraram o Paulo Argolo. Ele perdeu a eleição. Eu resolvi dar tchau porque (com) quem ia entrar a gente não ia se dar bem. Fiquei de bobeira em casa. Ai o Bagdá,quando ele saiu da Portela e foi para a Imperatriz, me convidou para a Imperatriz a mando do patrono (o banqueiro do bicho Luiz Pacheco Drumond). Estou até hoje dentro da escola que eu passei a amar. Meu coração de vermelho virou verde (uma das cores da Imperatriz). Antes de o Bagdá entrar na sua vida, você falou que pegava o cabo de vassoura para quê? Pra imitar a Neide. Como eram esses treinamentos? Eu pegava a vassoura e saia rodando, quebrando tudo, caindo por cima do sofá. A última casa (onde trabalhava como doméstica) que eu destruí tudo foi um lustre de cristal (foi mandada embora por isso). Quando você ensaiava assim, era só com
o cabo da vassoura ou você botava algum pano? Não, eu botava um paninho, botava um pano de chão. Se não, não tinha graça, mas era divertido. Então, eu não tive aula assim de porta-bandeira. Apenas olhei elas todas que eu vi na época. A única que eu copiei foi a falecida Neide.
Foi nessa mudança de diretoria?
o que
Foi. Eu já era a segunda. Aí inventaram um concurso de porta-bandeira. Falei: "Não vou entrar em concurso. Já estou aqui. Por que vou concorrer com outra que vem de fora pra ser a primeira?" (depois disso, saiu da escola)
A garra. Agora, mestre-sala, o Bagdá, o Nelson (Élcio) PV, o Delegado, o Roxinho. Todos eu conheci, mas o que eu mais gostei era a classe do Bagdá. Eu me sentia enorme dançando com ele por causa da postura. Cada um escolhe o seu ídolo, eu escolho o Bagdá.
Quantos anos você já estava como segunda da Imperatriz? Três anos.
você via na dança da Neide?
Você só a viu ensaiando na quadra? Na avenida, não? Só vi na quadra.
Você lembra as outras escolas em que
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Rio de Janeiro
E as aulas com Bagdá? Qual a importância de ter um mestre-sala como ele te dando dica, dizendo "sorria"? É porque a minha cara era muito feia. Ele ficava: "Sorri. Você tem que fazer isso". Ai, no primeiro ano em que a gente saiu junto, foi (nota) dez em tudo, campeã do carnaval.
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avisa. Ai você olha.
Por que a barra fica muito próxima pés delas?
Se a barra da saia estiver muito leve e ela descer, fica mais dificil?
É.
O aço (armação) enverga e você tenta voltar e não tem mais como. Pesada não, ela bate ali e fica. Aí é o tempo que você tem de voltar, de chutar, de fazer qualquer coisa.
que uma jovem sambista precisa para ser uma boa porta-bandeira?
Mas o que ele falou para você? A postura de colocar a mão na cintura. A elegância da porta-bandeira é aqui (na cintura).
Mas alguns elementos que os carnavalescos põem na fantasia impactam negativamente na dança ...
A mão na cintura e a outra sustentando a bandeira?
A pluma é um veneno. É lindo, mas quando toma chuva vira um perigo infernal. Eu já desfilei um ano com água pra dedéu. Quando chegava na hora de andar, eu parava aqui e dava dois passos pra trás e vinha com ela chutada. Ela só me dava estabilidade rodando. Eu só andava assim, chutando.
No mastro da bandeira. (A outra) mão na cintura, que é a postura de uma porta-bandeira. Essa postura foi o Bagdá que lhe passou? Foi. Agora, o resto eu criei por minha conta. Como foi a sua primeira vez como primeira da Imperatriz? Teve medo? Qual a diferença em relaçâo à Ilha? Engraçado, eu nunca tive medo de nada naquela época. Tinha a falecida Neide, Wilma Nascimento, Juju. Não me lembro daquela que foi do Império ...
Você se preparava fisicamente quando começou para dançar com roupas pesadas ou isso era natural seu? Natural meu. Eu sempre trabalhei com peso. Então, pronto. Pra mim, nunca me preparei. Por que você prefere a roda da saia tão mais larga? Eu acho bonito.
A Rita veio depois, né? São tudo (todas) porta-bandeiras de nome. Falei assim: "Se elas são de peso, eu também sou". Nunca tive medo de nada. Tanto que as minhas roupas são as mais pesadas. Roupa leve tira minha elegância. Roupa pesada dá mais postura. Você roda, quando você vira, ela tá sempre no lugar. As roupas eram mais leves no inicio da sua carreira? Bem mais leves, mas eu chegava em casa e até pedra eu já botei em minha roupa pra desfilar.
Mas não atrapalha, por exemplo, a aproximação com o mestre-sala? Não, porque você já tem a jogada. Porque a saia vai pro ... A saia vai pro outro lado e ela vem bem no que tá ali. Não pode ficar muito próximo pra não pisar na pluma. A distância dele (mestre-sala) pra mim é só a parte da saia. Ele cai (fica no chão quase deitado) e eu rodo. Aquele peso dele tá todo em mim e não me atrapalha.
Pedra mesmo?
Quando você começou, a roda da saia era um pouco menor, não é?
Pedra de paralelepípedo. Botei na barra da saia. Cheguei em casa, vesti a roupa, rodei e vi que ela quase levantou. Meti pedra nela.
É. Eu não podia exigir, estava começando. Depois fui criando as coisas que eu achava que podia.
Para aumentar o peso?
No final dos anos 60, inicio dos anos 70, a saia da porta-bandeira não era enorme ...
Pra aumentar o peso, pra roupa ficar no seu lugar sempre, elegante. Você acha que esse peso ajuda, inclusive na rodada? Ajuda em tudo. Quando bate no chão, já te
Não era. Como não é hoje em dia. São poucas que usam roupa grande. Pra mim, a roupa maior é de sete ou oito metros só de roda. Não tenho problema de pisar na saia. Já você com essas rodinhas pequenas ... Vê as roupas das baianas que têm menos roda. Elas, do nada, coitadas, pisam na barra da saia.
o
dos
ter
Responder pros outros é muito difícil. Quando aprendi, foi com homem (Bagdá). Então, eu, além do que ele me ensinou, eu quis criar mais alguma coisa. Agora, as outras já não sei. Como foi ver seu filho querer ser mestre-sala? Mas ele não quis. Não quis? Eu é que intimei. Ele queria mesmo era sair na bateria. Eu falei: "Como você vai sair na bateria e eu como porta-bandeira, garoto? Pare de show. Você vai ser mestre-sala." Com que idade ele saiu com você? Não me lembro a data. No momento, ele desfilou com 40 graus de febre. Ele falava: "Mãe, eu não tê aguentando". Eu falei: "Você tem que aguentar, passar na Avenida rindo". Eu só me lembro que o enredo vinha falando da Dalva de Oliveira (1987). Aí ele: "Mas, mãe, não sei o quê". Eu disse: "Vai fazer e vai dar certo". Eu falei: "Olha, tu vem na tua câmera lenta e outras coisas mais que você faz e deixa o resto que eu faço". E não é que deu certo? Quarenta graus de febre. O furúnculo tava que nem fechava o braço. Um baita furúnculo daqueles debaixo do braço dele. Dizem que foi Michael Jackson que inspirou o passo do mestre-sala (Chiquinho). E agora todos eles fazem. Não é a mesma coisa. Eu tenho certeza que, se fosse fazer na época perto do Michael, não ia ser igual ele faz. Como fui eu a primeira, que inventei, foi maravilhoso. Primeiro que foi o passo dele que deu as quatro notas dez e o Estandarte de Ouro, com quarenta graus de febre. Então, tem coisa que você vê assim e diz: "Será que vai dar certo?" Tem que tentar. Você tem que praticar. E quando é que o Chiquinho deixou de dançar porque a mãe estava mandando para dizer: "É isso mesmo que quero"? Se ele pensou, não expressou. Ele sabe que eu quis fazer dele um mestre-sala. Nunca reclamou, que eu tava chata, que não queria fazer.
E, quando começou, você já pensava: "Ele vai crescer e um dia vai ser o meu mestre-sala"? Foi de repente, por problemas com mestre-sala. Então, eu pensei: "Vou acabar com isso, com esta festa". Ele tinha qual idade quando dançou com você pela primeira vez na Avenida? Acho que era 20. Não sei se era 18 ou 20. Você disse que não teve medo em momento algum. E ele teve? O Chiquinho tem aquele problema. Sempre confiou muito em mim. Eu não sei se algum dia ele tremeu na base. Eu vou nos lugares, ele nunca quer ir. É porque não quer dançar com outras porta-bandeiras. Só comigo.
E o Chiquinho? Acho que Chiquinho esconde alguma coisa. Ele acha maravilhoso ter saido, mas eu acho que no fundo ... Não sei ficar fingindo, não vou fingir. Machucou. Como é que eu vou dizer que não machucou uma coisa que eu sempre amei fazer e queria. A Wilma (Nascimento) não botou a Danielle (sua filha)? Bicho Novo (antigo mestre-sala da Estácio, ex-Unidos de São Carlos) não botou netos e bisnetos? E como você consegue sobreviver hoje? Eu trabalho pra caraca. Não vou dizer que minha escola nunca me ajudou em nada porque eu estaria mentindo. Eu dou aula aqui, vou pra Cidade do Samba dançar, tenho ala, vivo fora das aulas. Eu me viro. Você dá aulas onde?
Ele não gosta de dançar? Pra dançar, é só comigo. E agora nem comigo, porque ele diz que tá velho. Eu digo: "Se tu tá velho, eu tô onde nesta história?" Mas ele se decepcionou muito com esse negócio (de ter sido afastado do posto de primeiro mestre-sala). Igual à minha filha. Ela foi minha segunda três anos. Quantos anos como primeira porta-bandeira da Imperatriz? Na Imperatriz, de volta (considerando a primeira fase), eu tenho 39 (nem todos como primeira porta-bandeira). Como foi viver o momento em que a diretoria da escola pediu para você passar a bandeira para outra que não era a sua filha? Como você imaginava que seria? Nunca passei. Você estava na escola quando a diretoria decidiu que não era mais a primeira e ai sua reação foi não entregar a bandeira à sua sucessora? Eu fui pra entregar a bandeira pra minha filha. Ela já era da escola, nasceu ali dentro, saiu três anos como minha segunda. Já não tava tão crua como eu comecei. Então, eu achei que ela teria uma boa chance. Minha tristeza mesmo é só essa. E ela desistiu completamente de ser porta-bandeira Ela não quer nada com samba. Não vou dizer que ela não quer nada. Ela me ajuda a fazer fantasia.
Na comunidade (do Alemão).
E você é a professora Maria Helena. Tem hora que é durona, tem hora que é calma. É aquilo do dia a dia. Criança muito pequenininha você tem que ter uma paciência ... Até que pra ensinar eu sou calma. E como são os alunos da professora Maria Helena? São ótimos. Tem umas criancinhas lá que são uma paixão. Ainda ensino uns passos de passista. Mestre-sala, não. Só ensino os passos de passista. Tem umas senhoras que vão lá e saem na ala de baianas. Vai lá pra rodar porque, se tiver problema, eu ensino tudo isso, eu explico. Nessa geração nova, você enxerga um futuro no carnaval com bons mestres-salas, boas porta-bandeiras? Você acha que esta arte vai prosseguir, vai pra frente? Eu acho que muita coisa depende do professor. O professor tem que exigir. Ai ele vê lá uma menina, por exemplo. Você é meu aluno e vai numa escola dessas e vê o mestre-sala fazendo um passo lá que eu acho que não é ali (como deve ser). Você vai fazer o mesmo e eu vou falar pra ele. "Você vai aprender lá com ele, porque aqui você vai fazer isso. Isso é o que eu quero e isso é que tem que ser." Eu me consagrei como uma grande porta-bandeira. Eu não tive padrinho para botar a mão (e dizer) assim: "Vamos encaminhar Maria Helena e Chiquinho". Pra lugar nenhum não. Eu fui sozinha e Deus. Lutei pra conseguir este espaço. Imitação, nem pensar. Eu digo: "Vocês aprendem assim, mas criem. Vocês não vão ficar a vida toda imitando Maria
Helena e Chiquinho não. Você tem que criar seu espaço." Como é desfilar na Imperatriz para você hoje? Você vem como destaque, é reconhecida, as pessoas gritam o seu nome, as pessoas te aplaudem e você não está com a bandeira. Como é que você se sente? Que maravilha! Eu me sinto no universo porque o carinho do povo é tão divino e tão lindo. Portanto, não adianta. Em qualquer lugar que eu vou, eu vou rodar. Se me botar em cima de um queijo (espaço onde ficam destaques no carro), vou rodar, porque o povo me conhece rodando. Então, eu, com a bandeira ou sem a bandeira, sou reconhecida. Quando me tiraram, eu falei: "Meu Deus, o que vai ser de mim agora?" Eu me acabei. Aí, uma menina que é destaque e se chama Maria Helena também me mandou um convite pra festa dos destaques. Eu me arrumei lá em Ramos e fui pra festa. Quando cheguei lá, nem parecia festa. Não tinha chegado ninguém ainda. Ai, eu olhei pras minhas crianças e falei: "Ai, meu Deus, que decepção! O que eu vim fazer aqui?". No final da festa, o locutor, escondido, pega o microfone e começou a falar (de Maria Helena). Fala daqui, fala dali, e eu que nem uma besta. Ai, meu Deus! O que ele tá falando? Ai, ele começou a falar e, quando ele falou no meu nome, a Mangueira levantou. Pena que eu não pude completar a festa porque a Geovana (na época porta-bandeira da Mangueira) esqueceu de me falar que eu ia passar a bandeira. Eu levei saia, eu levei talabarte (base para encaixar o mastro, junto à cintura), levei sapato, mas eu fui de calça comprida. Então, ela não me avisou nada. Quando ela veio com a bandeira, eu tava de calça comprida. Eu, uma veterana velha, vou dançar de calça comprida? Ai, eu não aceitei a bandeira. Mas que coisa linda! Acho que, se não tivesse acontecido isso (o reconhecimento do público), eu teria morrido de desgosto. Você não sabe como é a dor que dá aqui dentro. Mas o povão não deixou eu cair. Na Imperatriz, pareço até a Luiza Brunet (ex-rainha de bateria) de tanta foto (que pedem para tirar com ela nos ensaios). Tira foto daqui, tira foto dali. É sinal que ninguém me esqueceu.
o que é a Imperatriz
pra você?
Tudo na minha vida. Sem essa bandeira, eu não ia a lugar nenhum. Maior amor que eu tenho pela bandeira.
Rio de Janeiro -
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A CUíCA QUE LUTA PARA SER OUVIDA COM O DEVIDO RESPEITO Ele percorreu vários países, ganhou o Estandarte de Ouro de Destaque Masculino do jornal O Globo, em 1982, e foi diplomado pelo presidente Lula, como reconhecimento de sua tradição no samba. Mas não conseguiu que a sua escola, a Estácio de Sá, providenciasse cadeira e microfone para que toda a Marquês de Sapucaí ouvisse o instrumento que incorporou a seu nome. José de Oliveira, o Zeca da Cuíca, falou no depoimento de 31 de janeiro de 2009 do sucesso, das adversidades e das muitas lutas, inclusive para que o som grave da cuíca não desapareça. Eu sou José de Oliveira, Zeca da Cuíca. Nascido em 11/06/1934, na cidade de Macuco (interior do Estado do Rio). Vim com três anos para o Morro de São Carlos. Sou casado com Carmimar de Oliveira. Não sei se há 40, 50 anos.
Por que o senhor veio para cá? Vim com meus pais para a cidade por melhores condições de vida. Perdi minha mãe quando tinha nove para dez anos; meu pai, já faz muito tempo. Qual o nome dos seus pais? Antônio Justino de Oliveira e Maria de Lourdes de Oliveira.
o senhor
era filho único? Éramos sete. Só ficou eu. Em Macuco, seus pais trabalhavam em quê? Lavoura. Aqui, meu pai trabalhou como carpinteiro, mestre de obras. Trabalhou na obra do Maracanã. Qual a lembrança do Morro de São Carlos na infância? Eu me lembro das três escolas. Paraíso das Morenas, Cada Ano Sai Melhor e o Recreio de São Carlos, que o apelido era Vê Se Pode. E a descida da Mangueira, que todo ano ia lá pro Estácio.
o
senhor ia às três escolas, ou tinha uma
preferida? Eu ia a todas. Mas preferia a Mangueira, que era a última a terminar (o samba).
o senhor começou a trabalhar muito cedo? Com 13 ou 14 anos, como sapateiro. Fui também metalúrgico. A primeira vez em que viu a cuica foi no Salgueiro? No Salgueiro, com o Moacir e o Birolho. Quem mais o influenciou na descoberta da cui. ca e no aprendizado? O falecido Boca de Ouro, Ministro da Cuíca, Germano e outros mais.
o senhor
aprendia ouvindo, pedia ajuda? Eu aprendia ouvindo. Tive um aprendizado com cordas, por exemplo, com o Manoel da Conceição, o Mão de Vaca. Estive tocando bastante tempo com o Baden Powell. De piano, toquei com o Sérgio Mendes. E teve essas grandes vozes que entraram no meu ouvido, como Jamelão. Acompanhei o Paulo Moura, no sax.
Rio de Janeiro ,
.J
1
.
Foram dois aprendizados, um no mundo do samba e outro quando o senhor começou a tocar com os músicos e foi aprendendo a juntar a sua cuica com os instrumentos deles? E com a voz deles também. Toquei bastante tempo com a Clementina de Jesus e também com a Jovelina Pérola Negra. Também toquei com a Elis Regina, toquei com a Marisa Monte, toquei com Dona Ivone Lara. tocou macumba? Toquei macumba com a cuíca também. É a sua religião, o candomblé? 'Nem sei qual é a minha religião. Eu sou todas as coisas, respeito todas. Mas como o senhor foi levado a tocar na macumba? Sempre gostei de ir por causa da dança. Fui bailarino da Mercedes Baptista. Fui manequim do Denner, o costureiro. Quem deu a primeira cuica para o senhor? Chama-se Miguel Massabiá, é um dos diretores antigos lá do Salgueiro. tocou
no Salgueiro
nesse
33
número 4
Eu trabalhei 14 anos com o Martinho.
o senhor
estudou? Fiquei quase uns vinte anos no primário. Eu lia muito, Jorge Amado, Fernando Sabino, José Lins do Rêgo, e queria muito saber sobre a minha origem, o negro. Eu li aquele livro, "Raízes", vi o filme e depois li aquele do Gilberto Freire, "Casa-grande & senzala".
E quantos fílhos? Três.
Cada Ano Sai Melhor e a Recreio de São Carlos. Nós fundamos a Unidos de São Carlos. As cores eram azul e branco. Depois, teve uma confusão quando mudaram de azul e branco pra vermelho e branco. Venâncio Velloso era das Casas da Banha. Era pertinho da minha casa ali no Morro de São Carlos. Eles começaram distribuindo mantimentos ali no morro, começaram a encher o burrinho. Aí foi se alastrando as Casas da Banha. Foi por causa das Casas da Banha que mudaram as cores? Foi, as Casas da Banha eram vermelho e branco. Aí mudou a cor de azul e branco para vermelho e branco. Depois foi outra confusão para passar para Estácio. O senhor se transferiu imediatamente da batería do Salgueiro para a da São Carlos?
E o senhor tem quantos netos e bísnetos? Vai interar cinco bisnetos e 15 netos. Seu Zeca, qual foi seu prímeíro emprego? Foi metalúrgico. Fazia pulseira de relógio, pulseira de aço. Depois, fui trabalhar na Faet. Depois, fábrica de sapatos.
o senhor
se aposentou como metalúrgico? Não, me aposentei como (funcionário) da limpeza urbana.
Eu estava no Salgueiro, mas sabia de todo o desenrolar que acontecia ali (na São Carlos). Então, o senhor nessa época saíu nas duas baterías? É. E o senhor participou da São Carlos?
da primeíra bateria
Sempre. E quem era o mestre de bateria?
Na bateria? Na bateria. Eu conheci todos os diretores de bateria do Salgueiro. Inclusive esse que está agora, o Marcão. Ele é filho do primeiro diretor de bateria meu, o Bira. E na Mangueira, eu tive o privilégio de conhecer o grande Mestre Waldemiro. Ele me ensinou a tocar cuíca. A primeira escola em que o senhor tocou cuíca foí o Salgueíro? Foi.
o senhor tem uma ligação forte com a Mangueíra? Com a Mangueira e com a Portela. Eu conhecia muita gente na Portela, como o falecido Manacéia, Monarco, Cabana, Noca, Paulinho da Viola, João Nogueira, muita gente. Em quais baterias de escolas de samba o senhor tocou, além do Salgueiro? Em todas elas, gravei o CD. Eu gravo os discos das escolas de samba desde o começo. Mas e em desfíle, em quaís o senhor tocou? Salgueiro, Estácio e uma vez na Vila, por causa do Martinho.
o Martinho
ano 5
E aí, o senhor começou a trabalhar? Comecei a trabalhar. Eu adquiri familia muito cedo. Eu quis dar aos meus filhos o que eu não tive.
o senhor
E o senhor momento? Toquei.
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convidou o senhor?
Mas o senhor conseguia concíliar o trabalho de metalúrgíco com a cuíca? Não, eu não estava mais de metalúrgico. Eu já estava na limpeza urbana. Mas dava para conciliar, porque os chefões davam uma colher de chá.
o senhor foi baílaríno. Viajei muito tempo com a Mercedes Baptista. Também com o Carlos Machado para San Juan de Puerto Rico. Na inauguração da Globo, eu também estava ali dançando. Como foí na Mercedes Baptista? O senhor já sabia dançar naturalmente? Já sabia dançar naturalmente. Aprendeu no morro? Aprendí nos passos assim do samba, né? E, depois da Mercedes, eu trabalhei naquele grupo que eu sou fundador, Os Originais do Samba. Quem botou o nome fui eu. Eram Os Modernos do Samba. Então, nós trabalhávamos ali na Globo, o coreógrafo da gente era um argentino, o Juan Carlos Berardi. Ele foi muito tempo coreógrafo do balé da TV Globo.
Como foi a fundação da Unídos de São Carlos no morro? Eram três escolas:
Paraiso das Morenas,
Era o Hélio Macadam.
Como foi a prímeira experiência em desfilar com a Unidos de São Carlos? Olha, o São Carlos nunca saía daquela ralé ali da Praça Onze. Eu participei da primeira vez em que saiu dali. O senhor quer dizer, subiu de grupo, não? Isso. Nós saímos dali com 10 em tudo. E aí, quando subiu de grupo, o senhor contínuou na bateria? Continuei. Eu sempre gostei de sair na bateria A bateria da Unidos de São Carlos daquela época era forte? Sempre foi. Baterias que sempre foram fortes: do Estácio, do Salgueiro e da Mangueira. A Mangueira tem aquela diferença, né? É tradicional. Ô, que beleza! Tocar cuíca numa bateria de escola de samba é díferente de tocar em um show? Muito diferente, outra coisa.
O senhor teve de criar um naipe de cuícas na Unidos de São Carlos e ensinou os jo-
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vens a tocar?
o senhor tocou com Ismael Silva? Como foi?
Sim, muita gente.
Eu estava acompanhado. Ele tocou como convidado de uma noitada de samba ali no Teatro Opinião. Os grandes poetas da Mangueira, da Portela, de tudo quanto é escola de samba passaram ali no Teatro Opinião, nas noitadas de samba. Eu trabalhei ali 14 anos. Acompanhei muita gente ali. Gilberto Gil, Caetano Veloso, Bethânia, Gal Costa, Dona Ivone Lara, Silas de Oliveira, Nelson Cavaquinho, Cartola, Babaú, Padeirinho, Preto Rico, Leléo, Darcy e outras pessoas.
Do morro? E do mundo do samba. Como a Unidos de São Carlos virou Está. cio de Sá? Era por causa do bairro. Eles achavam que não tinha que ser São Carlos, que era o nome do morro. Quando o senhor chegou lá, já havia muitos barracos e casas? Não tanto quanto tem agora. Muitas pessoas do Estado do Rio colado com Minas Gerais, Espírito Santo, as primeiras a chegarem. Tinha muita ladainha, rezadeira, macumba, samba de roda. E o senhor quando chegou lá tinha tudo isso? Tinha. Muita pastorinha, sabe? Festa de reis, folia de reis. Havia muitos terreiros? Tinha, eu ouvia o toque do tambor. Bonito, né? Mas o senhor nunca se envolveu? Não. Mas o senhor contou que tocou uma vez para ... Eu toquei para uma festa do Zé Pelintra (entidade da umbanda). Eu toquei cuíca.
o
toque de cuíca era necessaríamente diferente? Não. Era no ritmo do tambor. Dos atabaques. É, dos atabaques.
o
senhor lembra como foi? Lembro.
o senhor
poderia tocar?
Vocês quase não vão sentir. É o andamento dos ata baques. É igual ao andamento de outra música que não seja de macumba. Da antiga escola de samba? Da antiga escola de samba. A batida é outra, mas o acompanhamento da cuíca é o mesmo. É o mesmo do samba. O toque deles é diferente do samba, mas o acompanhamento é o mesmo, só que estou seguindo o andamento deles.
Como foi a entrada do senhor na música popular brasileira? Fui fundador dos Originais do Samba. Eram Jonas, Dimas e outro. Eram Modernos do Samba. Ai fundou os Originais do Samba e quem escolheu esse nome fui eu. A gente estava trabalhando no Copacabana Palace no "Rio de 400 janeiros", show do Carlos Machado. Aí falaram: "Zeca, vamos mudar esse nome do grupo de Modernos do Samba?" Então, como tinha aqueles grandes craques do basquete, os originais Harlem Globetrotters do basquete, eu falei: "Vamos botar Originais Harlem Globetrotters do Samba?". Mas só quiseram Originais. E ficou. Os Originais tiveram de fazer uma viagem e eu tive de sair, pois eu estava trabalhando na limpeza urbana. E a música era imprevisivel naquele tempo, né? O emprego era mais garantido.
o senhor parou de tocar nessa época? Tocava sozinho, era freelancer. Entrou o Bidi no meu lugar. Eles foram para o México, ficaram lá bastante tempo e depois voltaram. Depois eu voltei (para o grupo). Foi nessa época que os cantores começaram a chamar o senhor para gravar e se apresentar em shows com eles? Eu era muito solicitado. Fiquei muito tempo com Antônio Carlos e Jocafe. Depois, gravei aquele "Samba do crioulo doido", do Stanislaw Ponte Preta, com o Quarteto em Cy, que foi lançado no programa do Haroldo de Andrade, que gostou muito. Ali, eu tive a oportunidade de mostrar um pouquinho da cuíca. Depois, gravei também com o Herminio Bello de Carvalho e com o Délcio Carvalho. Acho que "A corda e a caçamba". Depois, aquela música do Sérgio Cabral (e Rildo Hora), "Os meninos da Mangueira", com o Ataulphinho (Ataulpho Alves Jr.).
o senhor
acompanhou Cartola, como foi?
Foi no Teatro Opinião e no Zicartola, na (Praça) Tiradentes. E como era Cartola? Tranquilo. Nós conversávamos muito pouco. Para tocar com esses cantores famosos, tem que adaptar o toque da cuica à voz deles?
I
É, à voz deles. Eu não consigo tocar assim, por exemplo, se tiver alguém cantando ali e eu não escuto a voz dele.
o senhor pode explicar isso, por exemplo, como era tocar com a Clementina de Jesus ou com a Elis Regina? Com a Clementina. a gente tinha que esperar ela cantar e ir acompanhando. E com Elis, era diferente? Ah, a Elis Regina brincava, né? Assim como Elza Soares, assim como Jovelina. Como é tocar com Martinho da Vila? Bom. Mas o senhor tem que acompanhar? Tenho que acompanhar, mas ele já sintonizou. O Martinho já canta quase falando. Quase conversando, como se falasse? É. Ele conversa assim com uma música, é o jeitão dele.
o
senhor gravou também no exterior? Eu gravei num programa na Aerovisão, em Portugal, com o The Platters. Em quem o senhor se inspira? Eu me inspiro nos instrumentos, num piano, num violão, num pandeiro, num tambor, num tamborim, num agogô. O som que eles tiram dali, eu vejo como posso acompanhar. Ou a pessoa cantando, eu vejo como dá pra eu acompanhar.
o
senhor acha que o aprendizado da cuíca pelos jovens está diminuindo? Nas gravadoras e até mesmo nas escolas de samba, você não escuta mais cuíca. É pouquinho. Os jovens do Morro de São Carlos e da Estácio de Sá não procuram o senhor para aprender? Os grupos lá de samba, a maioria, nenhum deles traz cuíca. Quando tem é um que toca tudo. Ele toca tudo, mas não toca nada direito. O senhor tem medo que a arte de tocar cuíca desapareça se não houver jovens interessados? Não. Tem sempre na lembrança de um. Um que vai procurar. Mas a maioria dos grupos não tem. E nas baterias das escolas de samba? Tem, mas muito pouco.
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Mas quando o senhor vai à quadra da Estácio ... Eu não fui. Era para eu sair na Estácio, eles me convidaram pra sair.
que eu tenho que entrar na conversa, sair. A hora em que eu tenho que pontuar, a hora em que eu tenho que alinhavar. Mas ela, sozinha, não aguenta nem meia hora.
"O tititi do sapoti", em 20017
A cuica precisa dialogar? Precisa, pois ela sozinha vai enjoar, vai repetir muitas coisas. E ela, tendo quatro cordas, sete cordas, um pandeiro ou até mesmo uma flauta, vai conversar, mas ela não vai se intrometer. Vai entrar no momento em que chamarem ela. Fica a noite toda, vai ser notada, o pessoal vai querer, vai sentir saudade.
Quando eu cheguei, falaram que eu podia chegar ali que o carro do som ia ter uma cadeira e um microfone. Cheguei lá, tinha cadeira, mas não tinha som. Da segunda vez, disseram que não ia acontecer como da outra vez. A Estácio foi a primeira a desfilar. Eu cheguei e ai não tinha nem cadeira nem microfone. Nesse ano eles chamaram e eu falei que não ia.
O senhor já deu aula de percussão?
Nem me atrevo. E isso deixa o senhor triste com a escola? Eu fico triste porque eu estou querendo tocar direito, ser acompanhado direito e mostrar o que é a cuíca pra muita gente e colocam dificuldade com uma coisa simples, um microfone. O que custa botar naquele carro de som pra passar ali um microfone pra mim? Sua familia viu a foto do senhor abraçado com o presidente Lula lhe entregando o diploma de reconhecimento como um sambista tradicional e como reconhecimento do samba como patrimônio do Brasil? Agora eu quero uma da Dona Zica com o busto do Cartola pra eu mostrar para os meus em casa. O senhor tem algum neto que se interesse pela cuíca? Eles gostam de ouvir eu tocar, mas não se interessam. Tem o meu filho. Ele toca aquela terceira (surdo) na escola de samba. O senhor fica feliz? Eu fico, pois ainda não vi ninguém fazendo aquilo. Eu vi um amigo meu que tocava repique, lá da Mocidade. Ele é do tempo do falecido André, que dava aquelas paradinhas. Mestre André? Mestre André. Aquele foi meu amigo bastante tempo. Ele teve um cuiqueiro chamado Germano, que foi meu professor.
O jeito de tocar mudou depois da sua deficiência visual? Não. Porque já era uma intimidade de longa data, não? É. O pessoal não aguenta ficar ouvindo cuica por muitas horas, enjoa. Mas se tiver um cavaquinho, um violão, uma bandola, um banjo, com as pessoas dedilhando, se divertindo ... Eu posso tocar até uma besteira ali que a cuica não vai enjoar. Porque eu sei a hora em
O senhor não gostaria de ensinar para os mais jovens? Não, nem me atrevo. De cuica sim; mas, de percussão, não. E aula de cuica, o senhor já deu? Já, no Museu da Imagem e do Som. Lá na quadra da Estácio. E ali onde tem a escola, Menina do Estácio. Ele (o aluno) veio com vontade de aprender mesmo, um maestro, não sei de onde, para eu dar três aulas. Ele ficou todo feliz da vida. E ainda levou uma fita gravada de cuica. Qual mensagem o senhor daria para os jovens sambistas que estão em dúvida sobre um instrumento ou que estão querendo procurar a cuíca para tocar? Eu digo que a pessoa que quer só cuica, ela tem que se aperfeiçoar mais. A pessoa às vezes toca o grave e o agudo. Pensa que já está tocando e não está. E as cuícas estão todas com uma afinação agora no agudo. A afinação que eles estão tendo nesses agudos, eles estão fazendo o grave e o agudo. E o grave não é aquele que eles estão fazendo. Eles não fazem o grave? É, eles não fazem o grave (toque). É desse agudo que eles tiram o grave. Não está dando. Você não vê o baixo, não vê eles usarem o contrabaixo no toque dessas cuícas hoje. O senhor acha que a causa são as cuícas que estão sendo fabricadas? Ou é a maneira de tocar das pessoas? Não, são as pessoas que estão usando. Eles nem percebem isso. Tanto que eles dão seguimento. E às vezes apresentam assim, gravam. E isso é um canal para o Brasil todo. E às vezes chega errada a cuica para as pessoas. Mas o senhor acha que isso tem relação com a fabricação da cuíca ou são as pes-
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soas que não estão mais sabendo tocar? Não, é da fabricação também. Desde que eles fazem a cuíca para vender, eles fazem nesse tom mesmo. Às vezes, a cuíca mesmo desapertada, ela já está neste som aqui (toque). O senhor acha possivel explicar para os mais jovens a importância do grave na cuica? São pequenos detalhes assim. As aulas que eu dou sempre têm essa explicação. Todas as escolas de samba agora estão vindo com uma ala de cuica, mas eu ainda não tive a oportunidade de ouvir para poder falar. Na maioria das vezes em que eu escuto, quando me convidam para ír a determínado lugar para eu ir tocar, pra eu dar canja, não aparece (o grave). Ai, quando eu vou tocar, antes de tocar, eu vejo alguém que está com aquela cuíca ali e não tem nada a ver.
E o senhor fala isso para eles? O senhor explica para eles a forma tradicional de tocar? Se eles me dão a oportunidade e quiserem ouvir, eu falo. E o que acontece, eles pedem para ouvir a explicação? Às vezes, eles me ouvem. Às vezes vêm me pedir explicação e eu falo: "Procura ouvir mais o grave". O grave, eu aprendi muito com um amigo meu, o Ministro da Cuíca, da Mangueira. Ele só tocava o grave em qualquer lugar, na Mangueira, na Avenida. Teve uma vez, ele sozinho, a cuica e um tamborim. Ele veio sozinho pela Avenida Rio Branco. Ele só tocava assim, só nesse "gravão". Na Mangueira também tinha um menino, o Tião, o falecido Tião da Cuica, ele morreu. Ele também só tocava no grave.
O senhor disse que a sua cuica é como se fosse um caso de amor. É. Eu tenho mais ciúme dela do que da minha mulher. O senhor não deixa que ninguém toque. Ninguém, ninguém, ninguém!
UM SABIÁ QUE COMPÕE MELHOR DO QUE CANTA Djalma de Oliveira Costa é conhecido como Djalma Sabiá, mas seu forte não é cantar, e sim compor. Nascido em 13 de maio de 1925, ele guarda em casa recortes de jornal, revistas, fotos e documentos da história da Acadêmicos do Salgueiro, da qual é um dos personagens principais. Fundador da vermelho e branco, contou no depoimento, prestado em 7 de fevereiro de 2009, que assinou seis sambas-enredo para a escola: "Brasil, fonte das artes" (1956), "Navio negreiro" (1957), "Exaltação aos Fuzileiros Navais" (1958), "Viagem pitoresca e histórica ao Brasil" (1959), "Chico Rei" (1964) e "Valongo" (1976).
Nasci na Rua Uruguai, entre Andaraí e Tijuca. Meus pais são Emanuel de Assis e Alzira de Oliveira Costa.
E quando vocês foram para o Salgueiro? Em 1937.
o
que levou vocês para lá?
Minha mãe, que era porta-bandeira da Unidos da Tijuca. Por sinal, ela ganhou um campeonato rodando a bandeira, em 1936. Então, como ela queria curtir o samba, me botou na companhia da minha avó. Aí, fui morar na Rua Desembargador Isidro, onde minha avó era proprietária de uma tinturaria. Vivendo ali com a minha avó, eu passei a estudar numa escola pública, a Prudente de Morais, na Rua Enes de Sousa.
terreirinho que eles tinham de samba, um Paulo da Portei a , um Cartola, todos com violão. E tinha os da casa, que também eram respeitados: Sinval Silva, Nelson de Morais, Henrique Mesquita.
o
senhor estudou na escola Prudente de Moraes até... Só o terceiro ano, porque depois tive de trabalhar.
o
senhor começou a trabalhar com que idade e em quê? Ah, eu com 11, 12 anos, já estava trabalhando. Em quê?
Sua mãe foi porta-bandeira em alguma escola no Morro do Salgueiro? Não, ela foi sempre da Unidos da Tijuca.
o senhor
foi muito influenciado por ela?
Por ela, alguma coisa. Porém, mais pelo Antenor, por esses compositores da antiga. Mesmo lá na Casa Branca, onde era a sede da Unidos da Tijuca, tinha épocas que visitavam a escola, um
Comecei entregando marmita. Depois eu aprendi a profissão de ... Essa profissão que é o nosso presidente da República. Torneiro mecânico? Não, metalúrgico. Ai, trabalhei em três ou quatro (metalúrgicas).
o senhor
se casou com uma porta-bandeira?
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Com uma porta-bandeira do Verde e Branco (a escola de samba Depois Eu Digo, que, com mais duas agremiações, deu origem ao Salgueiro).
o senhor
teve seis filhos com a Jurema?
Meia dúzia, seis.
até de uma escola lá no Largo da Segunda-Feira, que tinha acabado, a Deixa Malhar, cujo presidente, dissidente da escola, levou até a bateria lá para a Serrinha, onde fundaram o Império Serrano. Era Elói Antero Dias, do Sindicato do Cais do Porto. Então, escolheram as cores vermelho e branco. Ficou o branco das duas: do azul e do verde; e o vermelho, da Deixa Malhar.
Quais são os nomes deles? Jorge, Djalminha, Luis, Lúcia, Robson, Ruy. E é só. Quando o senhor chegou ao Morro do Salgueiro, havia quantas escolas lá? Tinha o Principe da Floresta, que depois se transformou na Azul e Rosa (Unidos do Salgueiro); a Azul e Branco e a Verde e Branco, que se chamava Depois eu Digo. Quando o Salgueiro foi fundado, o senhor já estava morando novamente no morro? Já. Quando foi fundado, houve esses debates, porque houve um resultado ruim para as três escolas do morro. E a pior colocação foi da Azul e Branco. Então, o pessoal fez um bloco de embalo com as três escolas. Juntaram bateria, baianas, isso tudo, e fizeram uma concentração ali na Rua Bom Pastor, uma passeata de protesto, descendo ali. Deu uma volta pela Praça Saens Pena, cantando um samba do Geraldo Babão, que eu não lembro mais. "Balançando a roseira", não sei o que mais. Então, isso resultou em quê? Os velhinhos botaram a cabeça no lugar e resolveram entrar em conversações para ver se faziam uma escola só no morro. Quem escolheu as cores vermelho e branco? Um diz que foi fulano e outro diz que foi beltrano. Eu não posso dizer com certeza, eu não sei. Um diz que foi Noel. .. Noel Rosa de Oliveira? Isso. Outros dizem que foi o Totico. Ele foi um cidadão que, quando acabou a reunião para a decisão para formar a Acadêmicos do Salgueiro, saiu com um saquinho na mão recolhendo dinheiro para comprar os livros de ata e de frequência. A escola não tinha dinheiro. Colhia o dizimo do pessoal: "Ajuda aqui pra comprar". Mas o que ficou patente foi que foi o Noel. E qual a representação do vermelho e do branco? Tem relação com Xangô e os terreiros do morro? Não, nada disso. Foi escolhido para não ficar as cores de ninguém. Essas cores eram
Quem mais participou desse momento de fundação do Salgueiro? A diretoria que foi aclamada pela gente foi o Seu Paulino, como presidente. Depois veio o Mané Macaco também. E no plenário estávamos eu, minha falecida esposa, Diva, Dona Semiramis, Dona Maria Romana, a Paula. Não, a Paula não estava não, era outra, Dona Adelaide, da Azul e Branco. Tinha uma parte da Azul e Branco e uma parte da Verde e Branco que estavam ali. E como é que era a vida nessa época? O senhor trabalhava? Eu participei da escola de samba quase como uma terapia. Por quê? Porque eu estava doente. Para não ficar entediado dentro de casa, eu ia pra sede, pra encourar instrumentos. Foi onde o presidente, o senhor Paulino de Oliveira - eu ás vezes ia no centro dele pra tomar uns passes, essas coisas falou: "Seu Djalma, o senhor gosta de tudo organizado. Por que o senhor não quer ser diretor da escola? Não, eu não nasci pra ser diretor de escola de samba, nem sei como funciona". "O senhor vai ser diretor de patrimônio." Tá bom, mas eu nem sabia o que era ser diretor de patrimônio. Quando eu fui ver o patrimônio da escola. Cadê? Eram uns banquinhos, uma geladeira velha. Os instrumentos a gente tinha que pedir emprestado á folia de reis para completar. Ai, eu passei a me interessar por isso e comecei a pedir a A, B e C para ajudar. Quando eles iam á rua para pedir no livro de ouro o dinheiro, eu ás vezes acompanhava. Ai, ficava no ouvido: "Pede a eles pra comprar umas peças para a bateria". E assim foi constituindo alguma coisa. Fiquei como organizador da bateria, mas nunca fui diretor para apitar. Depois, por uma questão de compor samba-enredo, foi um acaso também. Porque o carnavalesco escolheu um tema lá e todo mundo achava que aquele tema não podia ser, coisa e tal. Eu estava só espiando. Inclusive o (Geraldo) Babão, que era um senhor compositor: "Esse samba, não!" e foi embora zangado. Ai, eu peguei um papel, não era uma sinopse. Estava um troço escrito. Eu olhei. "Olha aqui, dá pra fazer um samba sim". Ai, fiz meu primei-
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ro samba, em 1956. Não era nem de Ala de Compositores, nem nada. E ganhei. Era "Brasil fonte das artes"? Sim. Ai, depois vim a ganhar em 57, 58 e 59. Ai, em 60 me deram uma volta. Perdi. Só fui ganhar em 64, junto com o Babão, e em 76. No caso de "Brasil, fonte das artes", o senhor falou que havia os cobras da época, os bambas da época. O senhor não teve receio? Eu fui encorajado pelo filho do presidente da escola, que era compositor também, o falecido Duduca. O samba foi gravado pela Emifinha e foi sucesso depois. É. Samba de escola de samba não era muito chegado para negócio de gravar comercialmente, mas começou a despertar as gravadoras. E o Caxinê (compositor) era muito chegado ao meio do rádio. O Caxinê e o Anibal. E eles concorreram esse ano contra mim. Ai ele falou assim: "ô Caxinê, não adianta não, o samba do moleque é bom pra danar. Esse samba é tão bom que eu vou mostrar para a Emilinha". Eles mostraram o samba para a Emilinha, ela adorou, mas falou: "Eu não vou cantar ele por inteiro, vou cantar o estribilho e uma parte". Ela não gravou por inteiro. Foi um sucesso. Inclusive, quando o Brasil ganhou a Copa do Mundo, não sei de que ano ai. De 58. Ela recepcionou os jogadores cantando "Brasil, fonte das artes". E como foi isso para o senhor, ter um samba seu, o primeiro samba-enredo que escreveu para o Salgueiro ... Ah, me deu orgulho, satisfação. É igual a futebol amador e profissional. Naquele tempo, o sambista amador não ganhava dinheiro não. Só foi ganhar depois de 70 pra cá, através da (gravadora) Top Tape. Começou a dar um adiantamento substancial para o compositor. Ai gerou um olho grande, uma rivalidade. Não era igual no meu tempo. No meu tempo um ajudava o outro com dificuldades num samba: "Por que você não põe um pedacinho assim, assim". Um ajudava o outro sem interesse, não havia interesse de dinheiro. Quais foram os seus mestres? Foi na Unidos da Tijuca, Nelson de Morais, Henrique Mesquita e Waldemar Trabuco. Depois, no Salgueiro, foi Antenor, Pindonga e Caxinê.
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'Rià'de janeiro' -- ~'Abrif2Õ1~ãnor5~;I'~:~númérõ4" ~.
Em 57, o senhor compôs "Navio negreiro". Como foi compor um samba-enredo de temática negra, o que não era uma tradição nas escolas de samba? Isso foi porque eu li o tema, né? Eu tenho uma coisa que eu gosto muito de ler, eu estou sempre com um livro na mão, guardo. Qualquer coisa eu guardo e meu barraco é um museu. Guardo coisas da História do Brasil. E aí fui lendo coisas sobre a história, coisa e tal. Olhando os versos de Castro Alves, fui montando, fui criando. Até que chegou ao ponto de sair a obra.
É uma marca do Salgueiro cantar personalidades negras que fizeram a história do Brasil. Qual a importância disso para o senhor? É muito forte, porque tudo serviu como espelho, como eu disse, um aprendizado para a gente refletir, de luta por liberdade e esta chama jamais será extinta devido ao espelho de um Chico Rei, de um Zumbi dos Palmares etc. Como foi esse momento para o Salgueiro? Muito bom. Foi a chegada do (Fernando) Pamplona, do artista erudito, formado na Escola de Belas-Artes, convidado pelo Nelson de Andrade para fazer esse enredo de 60 ("Zumbi dos Palmares"). Mas o Fernando fez uma espécie de colegiado; ele não montou isso sozinho. Escolheu o casal de carnavalescos que fez o enredo anterior, que foi o Debret, e trouxe a Maria Augusta, a Rosa Magalhães, Joãozinho Trinta, o Viriato.
o
senhor acha que compositores como o Anescarzinho estariam felizes hoje? Ah, nada. Os compositores são uma ala em extinção. Porque hoje um é compositor, ores. to é sócio. São "comprousitores", para entrar no samba, pagar a anuidade à escola para poderem entrar na ala. Vamos falar agora de "Chico Rei", de 1964. Como foi compor e como foi o sucesso para o senhor? Bom, "Chico Rei" não foi totalmente comigo. Foram uns trechos lá que eu entrei. Outros trechos já vinham com o Binha e com o Babão. Para fechar é que um dia sentamos eu e o Babão. Foi um litro de conhaque. Mas terminamos.
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era muito chegado a estar sempre viajando para a África. Quando ele levou esse samba para lá, foi um show. Para mim, o número um para a divulgação foi o Martinho. E ele não fez só uma gravação, ele fez várias do mesmo samba, apresentou em teatro. Inclusive, fez uma exibição no Teatro Municipal do Rio. O Babão já tinha até falecido. Nesse dia o Martinho não cantou o samba, ele declamou. Mas, antes, me apresentou à plateia. Nesse dia eu fiquei ... Ele falou assim: "Eu não vou cantar, vou interpretar um samba aqui. Pra mim, um dos maiores sambas-enredo de todos os tempos, 'Chico Rei', do qual um dos autores está aqui, Djalma Sabiá. Levanta aí, Sabiá". Levantei e no teatro foi aquela ovação. Eu falei: "Ai, meu Deus do céu ...". Aí, ele declamou a letra do samba. Como eram a amizade e a parceria com Geraldo Babão e a história do leite de onça? Ah, com o Babão era uma amizade gostosa. Eu tomava uns gorós, ele tomava uns gorós e ficava tudo certo. A outra pergunta? A história da batida leite de onça. É uma batida que foi inventada na sede da Verde e Branco com leite condensado e um pozinho que a gente comprava na farmácia com gosto de coco e aquela cachaça bem braba. Batia aquilo e ficava gostoso. E nego caia dentro. Tinha gente que até encomendava antecipadamente. "Eu quero um litro", "Eu quero dois litros no dia do samba, hein!". O uísque da escola era o leite de onça. E vendia pra caramba. Eu fiquei conhecido como o criador do leite de onça, mas acho que não foi não. Acho que já existia por aí. E Sabiá, como veio o apelido? Sabiá é um negócio de futebol, não tem nada a ver com samba. Ficava jogando pelada lá no campo do Boa Vista, lá no Alto da Boa Vista. Eu jogava de lateral. Mas, para passar por mim, era uma parada. Eu era magrinho, mas era uma parada. Aí, o técnico lá do clube ficou invocado. Toda hora vinha um atacante dele e eu tomava a bola. "Quebra a perna desse sa. biá aí. Esse cara aí, joga esse cara na vala!" Quando acabou o jogo, o pessoal do meu time veío me gozando: "ô, Sabiá! Ô, Sabiá!".
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Esse período marca também a transição do samba-enredo tradicional, longo, cadenciado, para um samba-enredo mais em cima do estribilho, mais em cima da preocupação com fazer o público pular e cantar e se comunicar. .. Não, antes já havia começado isso. Em 1969 "Bahia de todos os deuses"; e em 1971, "Pega no ganzê" (como ficou conhecido o samba-enredo "Festa para um rei negro"). Exatamente, em 71, "Festa para um rei negro", de Zuzuca, pode ser marcado como esse ponto de virada dos sambas? Exatamente. Foi aí.
o que o senhor acha da composição do Zuzuca? Deu muita discussão. Era um samba-reisado, ele começava como samba, mas, num certo trecho, era como se fosse reisado, um troço meio doido. Foi ai nesse ano que o Almir Guineto, que era o diretor de bateria, invocado para subir a empolgação do samba, gritou: "Aí, rapaziada! Agora virou. Agora é a furiosa! É a furiosa!" Foi daí que saiu derivado o nome de furiosa (da bateria do Salgueiro). Foi em 71 por causa do "Pega no ganzê". Pra subir o andamento, pra empolgar o andamento do samba, porque tinha uma hora em que ele fi. cava dolente demais. Como o senhor se adaptou a essa nova moda? Eu não me adaptei. Você vê que de lá para cá eu nunca mais ganhei um samba-enredo. Eu me acostumei com esse meu padrão, esse meu gênero. Ás vezes, eu ajudo os outros. Dou sugestão. "Por que você não faz isso assim assim?" "Entra, amigo". Eu não vou entrar em parceria. Primeiro, você tem que ter uma reserva de capital forte pra aplicar, pra pagar bebida pra torcida, pra pagar ônibus, fita no estúdio, aluguel do estúdio. É muita coisa. No nosso tempo não tinha isso. Eu posso é ajudar, dar uma paletada. É o que eu faço, colaborar com meus parceiros, meus amigos; mas entrar, eu não entro mais não. Como foi a história de "Valongo " e por que
o senhor acha que ele foi campeão nesse momento em que se cantavam sambas mais curtos e marcheados?
"Chico Rei" foi gravado por. muitos cantores da MPB. Isso foi importante para a divulgação do samba e para o senhor?
Depois de "Chico Rei", o senhor só volta a ganhar um campeonato no Salgueiro, quando?
Financeiramente, não. Foi importante para a divulgação, porque aquilo que o Martinho (da Vila) canta vai para o mundo afora. E ele
Doze anos depois.
Foi a participação da familia Serra. Inclusive, um dos filhos, o Zé Borracha, gostou do samba. Nesse tempo, eu nunca gastei dinheiro com esse negócio de alegoria, essas coisas. Mas ele chegou ao ponto de pegar lençol da casa dele pra fazer estandarte, fazer uma homenagem ao samba e apoio ao samba. E
Rio de Janeiro
aconteceu outro fato também. O Osmar (Valença, presidente da escola) proibiu a molecada de entrar no ensaio. Ele sabia que estava sendo preparado um grupinho para dar força ao samba. Mas não só por isso, pois o samba estava bem adequado ao enredo. Ai, o que o Zé Borracha fez? Nós já estávamos no Maxwell (onde eram os ensaios). No meio do clube, passava um riacho, mas esse riacho não tinha água. O que o Zé Borracha fez? Ele fez igual àquela história do Cavalo de Troia. Botou toda a molecada dentro do rio. Entraram pelos fundos não sei de onde e ficaram todos là. Nesse tempo, a Elizabeth Nunes era a comunicadora. Ela comunicou a vez do meu samba ser cantado e começou a aparecer o pessoal que estava me apoiando. Mas a garotada estava là malocada. Quando entrou no samba mesmo a Dinalva, uma mulher que era puxadora de samba, aquela molecada saiu de dentro do rio coisa e tal e deu aquele desvario na quadra. Não teve jeito.
o
senhor em 1978 foi vice-presidente. Como foi ser dirigente da escola de samba? Foi ruim, a escola estava sem dinheiro. Fizeram até um complô contra o presidente e o derrubaram na véspera do carnaval. E eu fiquei segurando ali as pontas, coisa e tal. Houve muitas falhas na administração por
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parte do presidente, também por confiar em certos diretores que falharam.
o senhor
se afastou da escola?
Não. Estou na escola. Só que eu não tenho mais gás para trabalhar e nem tempo. Porque na escola eu tenho vários titulos. Sou fundador, sou remido, sou membro do conselho.
o senhor é um patrimônio vivo do Salgueiro. Coleciona recortes, folhetos, tudo que sai sobre o Salgueiro e conhece a história porque viveu. Onde está essa memória? Està dentro de um baú, de uma mala. Algumas estão expostas num mural que eu tenho no quarto. Mas só marcando aqueles pontos mais importantes. Inclusive, eu tenho um retrato lá no meu mural, que perguntam: "Por que o retrato dele está aqui? Porque ele fez alguma coisa pelo Salgueiro. E essa aqui? Também fez." O senhor acha que seus companheiros daquela grande época, como Anescarzinho, estariam felizes com o que veriam hoje no mundo do samba? Estariam como eu, decepcionados. Nós demos nossa mocidade por esse Acadêmicos do Salgueiro e, hoje, nossos descendentes são humilhados com a seguinte resposta: "ô,
. 'I
r ~'"
,r
B
raiz aqui já era. Mete a mão no bolso pra pagar não sei o quê". Mas também, porque a escola se desgarrou do morro e ai acabou. Quando era no morro, a gente saia do barraco e estava dentro da escola. A hegemonia era toda nossa. Acabou essa hegemonia, vieram outras culturas se juntando, mas com outras ideias, achando que a escola de samba é isso, é aquilo, é aquilo outro. "Vai ser uma empresa, nós vamos ganhar dinheiro". A escola chama o senhor para se apresentar ou cantar os seus sambas históricos? Não. Eles estão vivendo o momento, e o momento é esse que está ai. Seus sambas são cantados na quadra? Uma vez ou outra cantam. O senhor pode deixar uma mensagem de esperança para os novos sambistas, a nova geração de sambistas que vem ai? A mensagem que eu deixo é que eles continuem lutando, porque o Salgueiro chegou até agora não foi por caminho de flores. Houve muito sofrimento, muita luta. O que eles têm é que manter aquela garra que nós tinhamos antigamente. Cantar o samba lá embaixo e desfraldar a bandeira do Salgueiro com amor. Só isso.
40
Rio de Janeiro
Abril 2013
ano 5
número 4
I
-
DEPOIS DAQUELE REFRAO, O CARNAVAL NUNCA MAIS FOI O MESMO Ele criou um refrão que mudou o nome oficial de um samba, sua própria vida e a história do carnaval. Depois que todo o país cantou "Ó-Iêlê/ Ó-Iá-Iá/ Pega no ganzê/ Pega no ganzá", em 1971, quase ninguém mais chamou o samba-enredo do Salgueiro de "Festa para um rei negro", o ex-mecânico Adil de Paula não voltou a sujar as mãos de graxa e os compositores passaram a buscar sempre um refrão forte para empolgar o público. No depoimento de 19 de setembro de 2009, Zuzuca conta como foi sua vida desde a infância pobre ao sucesso, que inclui quatro sambas-enredo para a vermelho e branco e "Vem chegando a madrugada" .
Como é que foi a infância em Cachoeira do Itapemirim? Pobre, mas feliz. Minha mãe era lavadeira. Até que um dia ela cismou de vir para o Rio. Na sua infância, o senhor já teve contato com
a música? Não tinha aquela coisa de samba no interior. Mas eu gostava do samba, as músicas do Ataulfo (Alves), do Roberto, Roberto Pereira (...) Geraldo Pereira.
E por que sua mãe resolveu vir pro Rio? No interior, se falava assim: "Rio de Janeiro, terra da grana, vida melhor". Ela veio ser cozinheira. Ela e meu irmão. Vocês vieram morar onde? O Rubens foi morar com ela na casa onde ela trabalhava, eu fiquei lá (em Cachoeiro do Itapemirim). Depois ela mandou uma grana pra eu vir. O senhor chegou com que idade ao Rio? 13 pra 14 anos.
Ouvia pelo rádio?
Sou Zuzuca, do Salgueiro, 73 anos, e de Cachoeira do Itapemirim.
Aqueles rádios antigos ainda ...
E ai, nesta época, já aqui no Rio, o senhor continuou estudando ou só trabalhou?
A familia era grande? Era eu, minha mãe e meu irmão, o compositor Rubens da Mangueira. Era assim a minha infância. Fui engraxate. E seu pai? Não conheci, porque ele me pôs no mundo e foi embora.
Eu vim pra cá com o segundo ano primário. Um certo tempo depois, eu fui fazer supletivo. Do supletivo eu fiz o técnico e parei no segundo, terceiro ano. E como foi o seu primeiro encontro com o universo do samba? Tínhamos um bloco, se chamava Independente da
Silva Telles. Um ano depois que a minha mãe faleceu, fui para o bloco. Ai o bloco acabou. Eu fui o último a sair do bloco e ir para o Salgueiro e no Salgueiro comecei. Até antes de a sua mãe morrer o seu envolvimento era ... Não tinha nada a ver com o samba. Era só mecânica (profissão). Era só trabalho ...
Sempre gostei de música, mesmo no interior ouvindo rádio. Ataulfo Alves, Geraldo Pereira, e eu queria ser um, mas não tinha aquela pretensão de ser compositor do Salgueiro ou Mangueira ou Império ou Portela. Eu queria ser compositor pra botar a minha música no rádio? Aliás, eu queria ser é cantor. Cantar eu fui até nas coisas por aí, levei uns gongos ai, fui cantando ... Concurso?
Foi uma coincidência. Fui ser compositor na escola, eu gostava de música, botaram de compositor. .. Mas, antes de ser compositor mesmo, o que levou o seu irmão ao mundo do samba? Ele foi o compositor do bloco e o bloco acabou e ai todos, a maioria dos amigos, fomos pro Salgueiro. Antes do bloco, elejá compunha? Não, não ... Foi negócio de garoto de esquina, igual a time de futebol. Como se fosse um lazer... Como lazer. O bloco acabou, nós levamos a sério: "Vamos pro Salgueiro, escola de samba". Eu só fui porque minha mãe tinha falecido, porque, se ela não tivesse, jamais iria. Ela, pessoal do interior, meio sistemático, com medo, aquela coisa ...
É, concurso de música. Em Cachoeiro também me lembro de uma marcha uma vez, "Espanhola". Rateei, ai o cara, "pimba", batia o gongo. Como o senhor entrou na ala de compositores? Fez concurso? Não! Eu cheguei, me filiei e aceitei a norma. Mas o senhor já tinha composto alguma música? Não tinha nada, eu fiz lá no bloco um negócio, uma água com açúcar.
o senhor começou já trabalhando em parceria ou sozinho? Eu tinha um parceiro no Salgueiro, mas eu fazia samba com ele e fazia sozinho. Foi o Bala (João Nicolau Carneiro Filho), um esteio pra mim.
o senhor mostrava seus sambas para figuras maiores e pedia pra eles ajudarem?
Em que ano foi isso? Vamos dizer que 61 pra 62, por ai, 62. E seu irmão foi na frente do senhor pro Salgueiro? Ele foi na minha frente, abriu caminho pra mim.
Não. Eu fazia e levava para o terreiro e cantava. O compositor todos os anos fazia o samba de terreiro pra apresentar. Eu fiz "Vem chegando a madrugada". O Pamplona era meu amigão e falava: "Você vai longe!" Fernando Pamplona, carnavalesco?
Ele foi convidado por alguém? Não. O Salgueiro ensaiava na quadra Calça Larga e todo mundo subia o morro. Foi ele que botou meu nome na ala, um ano até pra desfilar, quando eu cheguei. Deu uma confusão porque tinha um senhor lá que se chamava Duduca e ele era o presidente da ala dos compositores. E o apelido Zuzuca, o senhor trouxe do Espirito Santo? Foi minha tia e madrinha que me pôs este apelido.
o que moveu o senhor a ser
compositor?
Fernando Pamplona foi o precursor de tudo, porque tudo que eu consegui no samba foi através dos temas que ele apresentou no Salgueiro. Por exemplo, este samba ai "Pega no ganzê" é uma história de um rei negro que foi a Pernambuco. Os irmãos na África estavam em guerra e ele estava aqui. Eu me inspirei dentro do enredo e mexia um pouco com meu passado no interior com a folia de reis. Juntou uma coisa com a outra. Minha mãe cantarolava certas coisas, e as coisas foram, veio aos poucos. Este samba nem era, era outro samba, eu me lembro que tinha feito o estribilho "Ganga Zumba hê, hê, hê a é. É filho do Congo, é neto do congá". Digo: "PÔ, não quero entrar por ai não. Isto ai é religião e vou ficar nesta." Então, eu me inspirei no tema do
Pamplona. Fiz a cabeça do samba "Nos anais da nossa história ..." Um dia, saltando do ônibus na (Avenida) Presidente Vargas, esquina de Rua Uruguaiana, caiu a ficha. Ai veio "Personagens que iremos recordar. Sua vida sua glória " Ficou. Ai quando chego lá, justamente que saltei do ônibus, veio aquela coisa "Que beleza, a nobreza que visita o congá". Porque eu encaixei o congá pensando na cultura negra. É justamente também na folia de reis. Ai que entrou "Ô-Iê-Iêl Ô-Iá-Iá". Tinha o ganzá, não tinha o ganzê. "Ô-Iê-Iêl Ô-Iá-Iá", eu não podia falar (para rimar, no final do refrão) "Pega no ganzê", (e sim) ficar com "Pega no ganzá". Pintou "ganzá". Ai fechei. "Que beleza" ai matou. Ficou fácil. Eu já comecei a fazer em partes e botei o refrão como sempre ... Ai foi o trem da história que era o que o Pamplona queria "Os anais da nossa história, hoje tem festa na aldeia" que é a parte da folia de reis: "Senhora dona de casa". Deu no que deu. Hoje em dia ele está pelo mundo afora. Gravei no mundo inteiro. Parece que eu gravei esta música pra mais de 25 paises, todos os paises da Europa, América do Sul, América do Norte. Quem vê pensa: "Este cara tá rico!" Tem o estrangeiro que me paga bem, paga normal. Agora, aqui no Brasil, é duro.
o senhor falou que começou puxando corda. Em que momento, o senhor percebeu assim "Eu consigo fazer samba"? O meu batismo foi com uma resposta de um samba do Anescarzinho, que tinha um samba que falava "Água do rio". Eu fiz uma resposta (para mostrar que era tão bom ou melhor que Anescarzinho): "És a que ficou agora é tudo alegrial Porque você voltou, não existe mais .... existem flores". E qual o primeiro samba de terreiro que efetivamente aconteceu para o senhor? Este ai foi o precursor. Qual foi a primeira vez que o senhor foi concorrer com samba de enredo. Agora me esqueci do enredo, mas eu fiz um samba com uma parceria, na minha casa. Na hora de apresentar, só apresentou o nome dele e do Bala. Ele se chamava Chocolate.
o
senhor 1964)?
tentou com "Chico Rei" (em
É mas, não deu em nada. No ano seguinte a Chico Rei... Eu ganhei samba de enredo (para 1966,
"Amores célebres do Brasil", com Bala e Nilo da Conceição), ganhei carnaval de rua, aí carnaval do Rio de Janeiro. Um samba bonito: "Brasil, oh meu Brasil, revivemos neste enredo seus mistérios e segredos, suas paixões imortais ..... Ai eu tinha um samba de terreiro, "Vem chegando a madrugada oi. O sereno vem caindo ..." O morro pegava fogo, o Rio de Janeiro. Este aí eu estava com saudades da minha esposa, que estava em Pernambuco. Dei uma parceria a Noel Rosa (de Oliveira). Até a gravação, o samba estava circulando só no Morro do Salgueiro ou outros morrosjá cantavam? Ele (Noel Rosa de Oliveira) arrumou uma gravação no LP da escola, e este samba veio incluído com os outros. Mas este samba já estava sendo cantado nos morros. Ele entrou na parceria, mas valeu. E se não fosse ele, eu não seria hoje o compositor. Eu gravei, Jair Rodrigues regravou, o samba estourou mesmo. Aí foi, entramos no carnaval "Vem chegando a madrugada", que é um samba de terreiro, é do ano posterior ao seu primeiro samba-enredo? Não foi no ano. Era "Amores célebres do Brasil", ba-enredo que é de 1966?
o sam-
66 E ai este samba de terreiro estoura e ai começam a falar mais de Zuzuca? Foi aí que as coisas foram fluindo, e a gente querendo fazer coisas melhores.
o "Pega no ganzê" tem uma estrutura diferente da clássica dos sambas de enredo daquela época. Não lembra nem de perto o seu samba-enredo anterior ("Amores célebres do Brasil") ...
Não era o favorito.
ele não lembra
um
Aí que eu digo a você. Por isso que eu saí fora do tema do Pamplona. No bom sentido. Tanto é que quando meu samba chegou no terreiro, ele era um samba diferente. Ninguém levava fé. Durante o concurso pra escolha do samba? É, quando apresentei o samba.
"Tengo Tengo" ("Nossa madrinha, Mangueira querida", em parceria com Noel Rosa de Oliveira e Laíla, em 1972).
Ele nem apareceu como favorito? O favorito era o Bala, que tinha ganho com "Bahia de todos os deuses" (com que o Salgueiro foi campeão em 1969). O que garantiu foi o refrão "Ó-Iê-Iê! Ó-Iá-Iá! Pega no ganzê". Aí nego falou "A data de cortar o samba é amanhã. Vamos prolongar mais um pouco". O plano era assim. Vamos ver o que vai dar disso aqui, porque ele pode crescer. E foram me dando tempo. Dei sorte, porque a banda do Bola Preta frequentava o Salgueiro. O (maestro) Sodré apanhou a minha música e botou na banda dele. Ele já começou a se espalhar pela cidade antes mesmo de o concurso ter terminado? Aí foi espalhando. Como foi a final do samba? Eu tinha uma corrente a meu favor e tinha uma corrente contra. Foi uma guerra terrivel. Eu tinha um grande amigo lá, o Laíla, ele fez tudo pra ser o samba do Bala. Aí aconteceu uma coisa. Eu tinha um amigo na TV Globo, chama-se Cícero de Oliveira. Tinha um festival. Ele queria que eu cantasse o samba "Vem chegando a madrugada" no Maracanãzinho no intervalo do festival. E o Haroldo Costa era um dos jurados, e jurado também no Salgueiro. Mas quando eu cheguei pra cantar no festival, na hora em que me anunciaram, o Maracanãzinho em peso cantou "Pega no ganzê". Aí, meu chapa, eu aproveitei também e já canteí logo. Aí o Haroldo saiu dali, ele ia para o Salgueiro: "Pamplona, o samba é este, não tem jeito".
o
senhor falou que a censura chegou a ir lá no Salgueiro por causa do seu samba de 1971? Pra cortar o meu samba.
Não tem nada a ver. Até melodicamente samba-enredo ...
Ele não era o favorito?
Mas porquê? Porque o pessoal cantava o meu samba em palavrão: "Ó-Iê-Iê! Ó-Iá-Iá! Pega no ganzê! Bota pra gozar". E justamente no dia em que o cara (da censura) foi lá, todo mundo cantou direito. Ai, o cara falou assim: "Não posso fazer nada. Não tem nada com o samba do rapaz". Depois da vitória, a escola se uniu em torno do seu nome? Aí, pronto. Eu sai ganhando tudo. Aí, veio
Antes de falar no "Tengo Tengo", como foi o desfile do "Pega no ganzê"? E qual foi a emoção de ver a avenida toda cantando o samba? Eu fiquei em cima do carro (de som), não era Rio Branco não. Presidente Vargas? Presidente Vargas. Eu no carro com o microfone, os garotos, eu fui cantando com as críanças. Consagração geral, o Rio de Janeiro todo.
o
senhor já teve um samba pronto transformou em samba-enredo?
que
É um samba que eu perdi e na minha mágoa, sem entrar em guerra, sem brigar com ninguém, meu modo de desabafar, desabafei em samba ("Boi da cara preta", gravado por Jair Rodrigues, que diz: "Eu não chorei! Porque eu não sei chorar! Nem reclamei! Porque não sou de reclamar! Só exaltei Eneida, amor e fantasia ... Boi, boi, boi. Boi da cara preta! Pega essa criança que tem medo de careta"). Entendeu? Que era exatamente "Eneida, amor e fantasia" (1973). Aí, me cortaram, eu fíquei chateado. Porque já era o segundo samba, "Tengo Tengo", o segundo (seguido, depois de "Pega no ganzê"). Ganhou o Geraldo Babão (em 1973), o samba até não deu em nada. E eu fiquei chateado e fui pra casa. Mas eu já estava (famoso) através do passado do "Ganzê", do "Tengo Tengo", essas coisas, eu fui contratado pela CBS com o conjunto 5 Só.
o senhor
começou a trabalhar com o grupo?
Com o grupo e com o Salgueiro. Aí, fiz esse samba da Eneida e me cortaram. Então, eu trabalhando na CBS, fui trabalhar uma outra música. Aí, eu já estou me retirando um pouco da escola, já estou mais no carnaval de rua, que foi o "Cafuné": "Ê cafuné! Ê cafuné! Na pontinha da orelha! E na solinha do pé". Bom, não ganho lá (na escola), vou trabalhar aqui, que é para defender o leite das crianças. "Pega no ganzê" foi um ponto de mudança no desfile porque muita gente repetiu o modelo de um samba mais curto e com refrão forte. Muitos compositores acham que um samba não precisa de um refrão forte pra ser bom e antigamente vários foram feitos sem. O "Aquarela brasileira" do
Silas de Oliveira não tem. O que o senhor acha do papel que o seu samba teve nessa mudança? Eu acho que (houve) uma influência muito grande. A mudança foi benéfica, porque os compositores não ganhavam nada. Foi através desta mudança que o samba-enredo passou a dar dinheiro. Eu me lembro que o Amaury Jorge (Jório) veio me procurar porque eu tinha ganho com o "Ganzê" e queria fazer um LP de samba-enredo. Falei: "Tem que me pagar alguma coisa." Dali pra cá, a idéia foi vendida pras gravadoras. Ai, passaram a dar (dinheiro). Começou comigo. Sambas-enredo começaram a entrar nos bailes de carnaval. Mas o senhor já ouviu ... Tá complicado. Pessoas dizerem que eu fui o causador da (descaracterização). Mas eles estão todos querendo fazer igual. Meu samba era diferente, era um azarão que estava ali no meio de dez, 20. Calhou de dar certo. Podia não dar, porque a escola tinha a caracteristica dela, o ritmo cadenciado. O "Pega no ganzê" descaracterizou samba-enredo ou não? Não tem descaracterização
o
nenhuma.
O senhor acha que essa critica é injusta? Bobeira de quem fala isso. A minha música não fugiu aos padrões. Tem um principio, um meio e um fim. O senhor consegue compor um samba-enredo nesse modelo de hoje? Já tentei há uns dois anos e foi péssimo, uma tristeza. E ai, o que aconteceu com o senhor quando o "Pega no ganzê" estourou e começou a ser gravado por todo mundo? O senhor paga as suas dividas? Primeira coisa que eu pensei foi isso, ter uma casa pra morar pra acabar aquele sofrimento de saber onde eu vou morar amanhã ou depois. Comprei uma casa. E o senhor mecãnico?
parou
de trabalhar
como
Não trabalho mais de mecânico. Eu vivo como compositor. (Depois do) "Vem chegando a madrugada", eu voltei pra oficina. Não aguentei a bola e voltei. Mas depois do "Pega no ganzê", engrenei mesmo (como compositor), com "Boi da cara preta", "Tengo Tengo" e outras mais.
Como foi no ano seguinte, quando o Salgueiro decidiu fazer um enredo homenageando a Mangueira. O senhor sentiu a obrigação de fazer outro samba tão popular, tão forte, tão comunicativo quanto o "Pega no ganzê"? Eu tinha um amigo na Mangueira chamado Pelado, grande compositor. Eu chamei o Pelado: "O nosso enredo é Mangueira. Mas como eu vou fazer esse samba? Todo mundo vai falar no 'Barracão de zinco', no Jamelão, falar em Cartola, Babaú, Padeirinho". Eu queria criar alguma coisa. Ai, sentado lá tomando uma Brahma, ele falou pra mim: "A Mangueira é o mundo de zinco, mas ela é dividida. Tem Buraco Quente, Dona Zica, Tengo Tengo, Santo Antônio, Chalé. O quê? É por ai. Fala outra vez. Tengo Tengo, Santo Antônio ..." Ai, botei: "Minha gente! É muito samba no pé", que é a Mangueira, e fechei o samba. E dava pra viver nessa época, nos anos 70, de compositor?
var vantagem. Agora é dificil, porque são poucos cantores de samba. Quando o senhor compõe um samba, o senhor envia para alguém, para algum cantor? Eu não tenho mais pra quem enviar, a maioria dos cantores já tem os esquemas deles, os grupos deles, e os que têm já são poucos. Não é música pra ficar. Eu tenho uma música que tem 50 anos! ("Vem chegando a madrugada"), esse "Esse pega no ganzê". Estou recebendo os meus direitos autorais até hoje. Coisas que os caras gravaram ontem, anteontem aí, não recebo mais nada, morreu, parou. O senhor está gravando um CD agora? É, eu estou preparando um CO novo. Eu vou até entregar ao maestro Ivan Paulo pra ele fazer os arranjos. Vamos ver ai. São sambas inéditos ou ...
Comprei casa, carro, comprei tudo. Naquela época, 70, num ano eu ganhei 100 mil, no outro 80. Pra quem não ganhava nada e estava pedindo dinheiro no banco, é dinheiro pra chuchu.
É tudo inédito. Tem um ou dois sambas, um samba que eu vou regravar, mas os sambas são todos inéditos.
Depois de 1980 ("O bailar dos ventos. Relampejou mas não choveu'J, o senhor parou de concorrer no Salgueiro?
Não, eu componho sozinho, sempre compus sozinho. Só tive dois parceiros: Noel Rosa de Oliveira e um outro rapaz lá...*
Ah, parei (Ganhou em parceria com Zé Di, Edinho, Haydée, Moacir Arantes e Pompeu).
E o senhor tem composto mais em parceria ou sozinho?
O Bala? Ah, o Bala.
Por quê parou? Porque as coisas mudaram. Agora não adianta chegar com um samba de enredo lá que já é tudo marcado, esquematizado, trabalhado, tudo na base do dinheiro.
o
O que o senhor diria para um jovem que quer entrar numa escola de samba e ser compositor como o senhor um dia olhou para uma ala de compositores e decidiu fazer parte? O que o senhor diria hoje pra ele?
O Salgueiro eu amo de coração, mas eu nunca fui de frequentar o morro, pois eu perdi meus amigos, a maioria.
O ideal seria o cara confirmar com ele mesmo se tem talento pra não ficar iludido e cair dentro. E gostar do samba, ele tem que amar, tem que gostar.
Mas o senhor continua Morro do Salgueiro?
frequentando
O senhor é um compositor gravou CDs...
profissional,
Gravei, e muitos LPs. O samba tradicional criado pela geração anterior à sua e pela geração do senhor ainda tem espaço na indústria de discos? A indústria é meio covarde. Uma hora ela está, outra ... Ela está naquilo em que vai le-
* Há registro de outras parcerias.
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Rio de Janeiro
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SAMBISTA COM A ALMA ROMÂNTICA DA PORTELA Filho do marceneiro José Felipe Diniz e da dona de casa Altair, Monarco é lírico até ao narrar a separação dos pais, marcada por "Saia do caminho", de Custódio Mesquita e Evaldo Rui. Aproximou-se da Portela quando a família, de seis irmãos, foi para Oswaldo Cruz, em 1946. O estilo, tão romântico quanto a escola azul e branca, caiu no agrado dos maiores nomes da MPB, que gravaram suas músicas: "Tudo, menos amor", "Passado de glória" e "Lenço", entre outras. E foi herdado pelo filho Mauro, que estava a seu lado no depoimento prestado ao Centro Cultural Cartola em 7 de março de 2009.
Meu nome é Hildemar Diniz. Tenho o apelido de Monarca. Nasci em Cavalcante, no dia 17 de agosto de 1933. Fui morar em Nova Iguaçu e, com dez, doze anos, fui morar em Oswaldo Cruz, perto da Portela.
Quais as suas lembranças de Nova Iguaçu? Jogar bola, que eu gostava muito. Fazia umas parodiazinhas. Na minha meninice, eu já fazia uns bois com abóbora, como o Cartola falava quando era um samba malfeito. O primeiro samba que eu fiz, eu andava com um escurinho, chamava-se Sabu, o apelido dele, e com Luís. Aí, éramos três: Monarco, Sabu e Luís. Aí eu: "A Liga da Defesa Nacional! Vai contratar o criou linho Sabu! Para cantar lá no Rio Grande do Sul! Também vai contratar Monarco e Luís! A garotada vai pedir bis". Esse foi o primeiro samba que eu fiz. Eu tinha sete pra oito anos. A influência musical vinha do seu pai ou da sua mãe? Do meu pai. A parte poética, porque ele era poeta com um P grande. Só era desconhecido, mas fazia poesias com rimas riquíssimas, compreendeu? Ele deixou pra mim. Eu fui ver, quando cresci um pouco, o valor que as rimas dele tinham. Ele chegou a ter publicado (um texto) uma vez numa revista que tinha na Praça Mauá, Jornal das Moças. As pessoas mandavam seus poemas pra lá. Então, muitos mandavam e ele também mandou, com o pseudônimo de José do Patrocínio. O nome
dele era José Felipe Diniz. Nasceu em Ubá. Essa parte poética das rimas foi dele que eu peguei. Musicalidade ele não tinha. E da sua mãe, o senhor herdou o quê? Minha mãe era do lar, lavava pra fora. Mas ela gostava de música? Gostava das músicas que tocavam no rádio. Ela aprendia e cantava. Tinha o dom de aprender e cantava passando roupa. Cantava muito (Carlos) Galhardo. Eu me lembro quando ela cantava: "Junte tudo que é seu! Seu amor, seus trapinhos", com a Aracy de Almeida. Até uma vez houve um problema, pois meu pai ouviu ela cantar isso e quis até bater nela. Eles já não vinham bem. Como foi a dificuldade de estudar dessa época, da sua mãe criar vocês? Eu estudei só até o terceiro ano primário. Quandoestava tomando gostinho pelo estudo, nós mudamos para Oswaldo Cruz. Aí, em Oswaldo Cruz, me meti em negócio de samba, vendia palha de aço na feira. De noite eu não tinha vontade de estudar, chegava cansado.
Rio de Janeiro
o apelido Monarco veio do tempo de Nova Iguaçu? De Nova Iguaçu. Quem deu esse apelido foi um tal Noca, até xará do meu compadre Noca. Esse camarada jogava muita bola. Ele estava lendo uma revistinha e pronunciou essa palavra perto do campo do Iguaçu. Estávamos eu, o Bira, outros coleguinhas. Aí, começaram a me dar tapa nas costas porque eu achei gozado o nome. Mônaco, não tinha erre. Esse erre entrou depois em Oswaldo Cruz, não sei como. Ele (Bira) estava lendo esse negócio e pronunciou isso, eu me lembro disso: "Mônaco". Ai eu falei: "Ih, que nome gozado. Tá rindo por que, seu Mônaco?" Os colegas que estavam por perto começaram a bater nas minhas costas: "Mônaco! Mônaco!" Aí, entrou até pra dentro de casa, pois os meus irmãos passaram a me chamar de Mônaco também. Depois até me chamaram de Naco. A mãe dele (o filho Mauro) me chamava de Naco, abreviava. Ai, depois, não sei se foi um cachaça que não soube falar direito. "Monarco". Aí, entrou esse erre. Por que a familia se mudou para Oswaldo Cruz? Depois que meu pai se separou da minha mãe, ela conheceu um senhor que gostou dela. O que vai se fazer? Ela não era assim tão jogada fora. Gostaram-se e ele pegou, alugou essa casa aqui pra ela. E nós viemos morar aqui. O samba e o seu interesse por blocos de carnaval vêm de Nova Iguaçu? De Nova Iguaçu. Mas ele se cristaliza em Oswaldo Cruz? Em Oswaldo Cruz que eu me aperfeiçoei mais na parte da música, que eu fiquei pegando contato com aqueles bambas, Alcides, Alvaiade. Ai, eu ficava assim, eu desfilava na Portela, puxava corda na Praça Onze. Eu não tinha dinheiro pra comprar fantasia. Ia para a Praça Onze e era uma maneira de eu desfilar. E, quando acabava, eles iam todos para a igreja de Santana, que está lá até hoje. Eu via Alcides cantando, Ventura, Alvaiade, cantando um samba para o outro. Eu ficava olhando, com aquilo na minha cabeça: "Um dia, eu queria fazer um samba pra Portela. Poxa, se eu fizesse um samba ..." Eu olhava aqueles camaradas entrarem no centro da roda pra cantar pras pastoras e ficava com aquela vontade de fazer um samba. Ai, consegui fazer. Fiz um, mas não deu certo. Esse eu nem gosto de lembrar. Mas o outro, um colega meu falou. "Esse samba é teu?" "É." "Que é isso, Monarco! Esse samba tá muito bonito! Vamos lá na Portela." Chamava-se Denilson, um escurinho. Ai, nós fomos lá pra Portela.
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Chegamos lá, o botequim estava cheio. Aí, ele chamou o Seu João da Gente. Estavam outros malandros lá, o Doce de Leite estava lá. O Seu João chegou: "Monarco, canta aquele samba que tu fez ai". Ai, eu cantei. Quando eu cantei o samba, ele disse: "Puxa vida, que coisa bonita, rapaz." Ai, nessa altura, vinha chegando o Natal também. Ai, ele chamou o Natal, eles brincavam muito. Ele chamou: "Vem cá, ô siri sem unha, guaiamu", sacaneando o Natal. Vem escutar o samba do garoto aqui. Aí, o Natal chegou e escutou. "6 João, tem que aproveitar esses garotos. Por que não cantam o samba lá dentro, no ensaio?" Eu disse: "Eu cantei para o Alvaiade, ele gostou, mandou eu cantar depois. Mas mandou fazer uns papeizinhos". "Canta sem papel mesmo. Tem que aproveitar essa garotada." Ai, quem me ajudou muito foi Alcides, um malandro histórico. Quando eu fui cantar, o Alcides entrou na roda, ajudou. O Alvaiade pegou o cavaquinho, o Chico. Eu me senti, com a ajuda daqueles bambas ... Porque eles gostaram do samba. O primeiro meu na Portela, em 1952. Antes da Portela, o senhor passou por blocos da região de Oswaldo Cruz. Ia para os blocos ou foi direto para a Portela? Tinha uns bloquinhos de sujo ali em que eu saia. Tinha o Cananeia, mas no Cananeia eu não chegava a sair não, eu fui lá ver. Tinha a Dona Ester, né? Mas eu não era muito de acompanhar bloco.
Era improviso mesmo? Era improviso. Na Praça Onze tinha aquelas batucadas pesadas onde o malandro dava pernada, derrubava. A policia vinha dissolver á porrada. Eram aqueles versos que muitos deles foram até surrupiados. Sabe como é, malandros que ficavam escutando aquilo e, quando você via, no ano seguinte, ouvia o samba no rádio com aqueles versos. As diretorias das escolas não estimulam as alas de compositores a comporem sambas de terreiro como antigamente? Não. Às vezes eles fazem um festivalzinho de samba de terreiro. Acaba dali, não canta. No terreiro não adianta nada. Tinha que fazer o seguinte. "Quem foi que ganhou?" "Foi o fulano." "Agora você vai cantar o samba antes de o ensaio começar." O que trouxe o samba de terreiro, felizmente, agora, um pouco, foram essas feijoadas. As feijoadas e o renascimento da Lapa, onde sambistas tradicionais cantam, fomentaram o samba de terreiro. Mas não fortemente a produção de novos. O que se canta, em geral, são os clássicos. O que está faltando para essa nova geração compor sambas de terreiro?
Ah, eu fui morar em Oswaldo Cruz e foi um prato cheio. Eu morava na Rua Taubaté 22, descendo a Rua Taubaté, a Portei a era ali. Era no 412. Mas quando eu mudei para Oswaldo Cruz, em 46 para 47, ela estava vindo para o 446, estava saindo. Então, eu ainda cheguei a pegar ela no 412, no final.
Eles é que têm de criar. Mesmo que a escola não faça festival, não ajude, eles fazem e botam nos bauzinhos deles guardados. Não é por isso que eu vou deixar de compor. Agora mesmo eu estou compondo um samba novo. Ele (Mauro) está me ajudando. É novo. Então, que eles continuem a criar e guardem para eles. Amanhã ou depois, quando chegarem numa esquina, tem uma rapaziada com um pandeiro na mão, um tantanzinho. Ai, ele canta pra um, um canta pra outro e, quando vê, está todo mundo aprendendo. Se não cantar dentro da escola, canta na esquina. Se não tocar no rádio, a gente canta na esquina ai, compreendeu?
O senhor tem lembranças de João da Gente compondo versos de partido-alto com Manacéa no cavaquinho? Como era esse momento de ver o partido-alto acontecer?
Vamos dar uma volta no tempo e falar no inicio da sua participação na Portela. O senhor falou que era segurador de corda e depois saiu em ala, na Amigo Urso.
Ah, era bom, né? Tinha muito partideiro. João principalmente. João era do primeiro time. Versava de improviso muito bem, tinha uma voz! Cartola adorava o João da Gente. Ele foi no enterro do João lá em Irajá. Falou pra mim: "Vocês perderam uma voz de responsabilidade". Então, pra mim, o João da Gente foi um dos maiores ...
Sai na ala Amigo Urso. Foi a primeira ala em que eu sai, em 1951.
E o que ou quem levou o senhor para a Portela?
O que se perdeu no partido-alto? Hoje, as pessoas versam muito o verso decorado. Antigamente era feito na hora.
E como eram os desfiles nessa época? O contingente eram 200, 300 pessoas. E eu desfilava no domingo. Segunda-feira, ela (Portela) ia para Madureira, para Oswaldo Cruz, passava pelas ruas de Oswaldo Cruz e ia andando pela Carolina Machado até Madureira. Quando chegava a Madureira, a ponte estava cheia, esperando. E, no terceiro dia, nós iamos para Irajá, Rocha Miranda.
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Rio de Janeiro
Qual era a importância terreiro nessa época?
das cabrochas no
Ah, se elas não gostassem, não adiantava. Elas é que eram ...
o termômetro? Responsáveis, porque você chegava e cantava um samba no terreiro, cantava, cantava, cantava. Se elas não ligassem, não adiantava, podia levar para casa que não ... Agora, elas é que aprendiam. Começavam a cantar, cantar, faziam com que aquele samba botasse a cabeça de fora e ficava reconhecido. E tinha uma coisa interessante, que a gente não cantava samba do rádio. Eu me lembro que, uma vez, o Zé Keti já estava fazendo sucesso com "A voz do morro". O Jorge Goulart já tinha gravado, o samba já estava na rádio. Quiseram cantar isso aqui. A Portela formou ali na igreja pra sair e quiseram cantar. O nosso diretor de bateria não deixou, chamou o Natal. "Natal, isso aí é do rádio, não pode. Não pode, não pode." "Não canta." "É, eu não canto isso aqui não, isso é do rádio". Aí, cantaram um samba meu, "Portela, quem te fala é um sambista". Estava nos ensaios, estava sendo cantado. Eles iam buscar lá pra levar pro rádio, não vinha do rádio pra dentro não.
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compunham juntos? Eu sempre fiz a segunda. Porque eles me mostravam a primeira."Eu tê com um corozinho ai, quer ouvir, Monarco?" "Quero sim. Canta aí, Alcides." E ele cantava. Ai, eu gostava, aquela linha. Ai, eu botava a minha segunda parte. E os parceiros da sua geração? Da minha geração, Walter Rosa também. "Tudo que quiseres ..." ("Tudo, menos amor") foi com o Rosa. Depois, fiz "Vai amor", com ele também. Fiz com o Hélio do Império, Tio Hélio, fiz uns dois ou três sambas com o Hélio. Fiz com o Zé Keti. .. Com o Candeia eu fiz uma música só, "Portela, família reunida", e com o Zé Keti eu fiz "Tarde demais". Monarco, como são os seus parceiros de hoje em dia? Ah, da minha geração ... Não, agora dessa geração. Agora, agora. Agora tem o Ratinho ... O seu filho. Meu filho. Tenho feito muita coisa com ele.
Monarco, você se casou Como foi o casamento?
muito
cedo.
Casei com 18 anos. Eu não tinha nem servido o Exército. Casei com a mãe dele (Mauro) em 27 de outubro de 1951. Dava pra viver do samba nessa época? Não. Alguém já vivia, mas eu não, porque eu não gravava. Não conseguia gravar. Não tinha nem como mostrar as músicas. Depois é que começou, quando Martinho gravou: "Tudo que quiseres te darei. .." (''Tudo,menos amor"). Dali pra frente, aí sim, eu comecei a gravar. Mesmo assim, não fui viver de música. Ainda trabalhei um pouco no Jornal do Brasil. Depois eu saí. Passei por maus momentos. Mas depois começou a dar uma clareada. Eu comecei a gravar bem, gravei com Clara (Nunes), Roberto Ribeiro, João Nogueira.
o
senhor podia falar sobre alguns dos seus parceiros? Primeiro foi o pessoal da antíga: Alcides Dias Lopes, Alcides, o malandro histórico; Chico Santana; Alvaiade; Mijinha; Manacéa. Fiz samba com eles todos. Com o Alcides eu fiz mais.
o
senhor entrava com a primeira, o senhor entrava com a segunda? Os senhores
E como é compor com seu filho? É uma coisa muito bonita, porque, além de estar perto dele, já é uma satisfação. E ele coloca direitinho. Também, se não colocasse, eu diria: "Aqui não está". Porque de vez em quando ele também me chama no eixo. "Papai, por que o senhor não faz isso aqui?" Mauro, como é compor com oseu pai? É difícil e, ao mesmo tempo, fácil, por eu ter todos esses subsídios em relação áquilo que ele gosta. Eu costumo dizer que o papai é aquele compositor bem genuíno, um composítor que faz esses sambas que não se fazem mais hoje em dia. Quando você era pequeno, foi você que procurou no seu pai a música ou ele que levou ela pra você dando o cavaquinho? Na realidade, foi ele, né? Porque eu cheguei à música influenciado pelo papai. Eu vê-lo cantando, compondo, eu acho que isso me influenciou bastante. Mas, na realidade, ele não queria que eu fosse músico. (Monarco) Eu não queria. Estava mal nos estudos também. O professor veio reclamar dele. Aí, veio um camarada convidar pra fazer negócio de conjunto e eu disse: "Sai daqui! Eu já estou aqui. .. Ele não está indo à escola,
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não está indo bem". Mas já tinha que ser o destino dele, não adiantava. O senhor se afastou da Portela durante um tempo e foi pra Jacarezinho. Isso aí é mentira. Eu não me afastei. Eu fui morar no Jacarezinho, levado lá por um rapaz chamado Norato. Fui lá ver a fusão das escolas de samba. Ai, cheguei lá, acabei, me deram o tema do negócio do enredo, eu acabei fazendo um samba e a escola foi campeã. E "A execução de Frei Caneca", que o senhor compôs para a Jacarezinho em 1967? Eu comecei a fazer. Eu ajudava o Jacarezinho e saía na Portela. Então, em minuto algum o senhor deixou a Portela? Não abandonei a minha Portei a de jeito nenhum e não abandono. Mas não se aborreceu? Eu ganhei muito esporro de Natal por causa disso. Inclusive, o samba que ganhou repercutiu pela cidade. "Ih, o samba é do Monarco!". A Portela tinha tirado em sexto, ele já estava p da vida. A Mangueira tinha ganho. Foi em 67, a Mangueira tinha ganho com Monteiro Lobato. Aí, o meu samba era "A execução de Frei Caneca". Ai, ele ia passando e eu falei: "Ih, Norato, Natal, na boca. O que é que a gente vai fazer?" Eu tentei voltar, não dava. Já estava em cima. Nós fomos. Talvez ele não vá me ver. Mas ele me viu e chamou "6, Seu Monarco!" Eu disse: "Ih, vem chumbo grosso ..." Ele estava injuriado ... "Você fez samba pra escola do Jacarezinho? É, Seu Natal, a escola de samba do Jacarezinho é pequeninha, não faz frente à Portela em nada. Eu tenho uns amigos lá". E o Norato do lado. Aí, ele disse assim: "Tá bom, eu seí que o samba é bonito. Pros outros você faz bom, pra nós você faz merda." Depois ele me chamou. Dois dias depois ele me chamou. "Eu quero você aqui". Não foi uma briga e nem descontentamento na Portela? De jeito nenhum, porque o Jacarezinho não desfilava com a Portela. Errado está quem sai da Portei a pra fazer samba com escola que disputa com a Portela. Ai, é uma coisa que eu não concordo. Até concordo que a pessoa saia e vá procurar outra escola. Não tem problema. Agora, o camarada perde o samba na Portela. Esse aqui (Mauro) perdeu o samba ano passado, ele não saiu. Mas não saiu em lugar nenhum também. Paulinho passou 25
anos sem sair na Portela e também não foi pra lugar nenhum. Esse é portelense, tem bandeira. Agora, aquele que sai, vai fazer samba aqui, faz acolá, um profissionalismo. Esse não é Portela. No Jacarezinho o senhor fez um samba que muita gente aponta como um clássico, que é "Geraldo Pereira, eterna glória do samba". Fiz "Geraldo Pereira", "Frei Caneca", "Cultura nacional", "Vila Rica do Pilar". Fiz quatro sambas-enredo ou cinco. Até de carnavalesco eu dei ali. No ano do Gerado Pereira, eu bati o corner e cabeceei, porque o tema é meu. Eu sugeri fazer uma homenagem ao Geraldo, que era o meu ídolo. Paulo da Portela eles fizeram e ganharam também. Sugestão do senhor. Sugestão minha. Candeia. Então, três carnavais eu dei para o Jacarezinho, e o Jacarezinho foi campeão. Dei uma de carnavalesco,
não desenvolvi enredo nem nada, mas dei a ideia. Para encerrar, o senhor podia falar sobre a importância da Velha Guarda da Portela e de Paulinho da Viola? Paulinho foi um dos responsáveis pelo nosso conjunto musical, porque a Velha Guarda já tinha, o pessoal antigo era Velha Guarda. Toda vez que passava um velho da antiga: "Aquele é Velha Guarda, é Velha Guarda!" Mas o conjunto musical foi Paulinho, através de um disco que ele fez em 1970, "Portela, passado de glória". O sonho dele era registrar aquelas coisas que estavam morrendo por ali. Cantava-se ali e por ali mesmo terminava morrendo. Tem muitas coisas lindas lá, como Mangueira. Eu acho que são as duas escolas que têm os maiores acervos de sambas de terreiro. Os baús bem recheados são Portela e Mangueira. Então, a preocupação do Paulinho era essa, e ele conseguiu. O sonho dele tornou-se realidade, o disco foi feito. E foi feito o grupo e estamos aí. Mas muitos já se foram,
Alvaiade foi, João da Gente, Alcides, Ventura. Vicentina, que era a nossa única pastora. E o Paulinho ... Se eu for falar do Paulinho, eu acho que um dia não dá. Porque, além de ser o retrato do Paulo (da Portela), na educação, na elegância, não se afoba com nada. Você chega perto do Paulinho meio nervoso, o astral vai lá em cima. Ele te põe, aquela maneira dele conversar contigo, aquela maneira toda. Eu sei que ele ama também a nossa Portela. Este ano saiu com a gente no nosso carro. Então, se eu for falar sobre o Paulinho, sobre a benfeitoria dele no samba, a elegância dele, a paciência dele esperar as coisas fluirem naturalmente, é um exemplo. E uma das razões por que eu fiz até um samba pra gratificar isso tudo que ele mereceu e merece. Eu fiz um samba com o Chico Santana pra ele.
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~J,_
UM SAMBISTA EM SINTONIA COM A TRADI AO DA PORTELA Waldir de Souza foi diretor de harmonia da Portela e parceiro de Candeia em clássicos como "Legados de Dom João VI", com que a escola foi campeã em 1957, gravado por Martinho da Vila numa antologia. Conviveu com Paulo da Portela e desfilou na escola desde o início, ainda criança. Quando seu parceiro criou a Quilombo, para valorizar a cultura negra, foi junto e, com sua morte, assumiu a agremiação. No depoimento de 28 de março de 2009, Waldir 59 conta com saudade como criou a Ala dos Impossíveis, referência de luxo e belas coreografias, e critica o desfile atual.
Eu, Waldir de Souza, nascido em 1928, na Estrada Henrique Melo, Oswaldo Cruz. A Portela é de 25. e eu nasci em 28. Quando ela se registrou em 35, eu já era considerado fundador da Portela. Aí, formamos a Ala dos Impossiveis e eu era o coreógrafo. A Portei a tinha uma águía só. Era um carro. E baiana de roda, bateria, a ala das crianças - que era o meu caso - e a bateria. No máximo 150 pessoas. E tinha um que era cabeça de tudo, Paulo da Portela. Tinha Alvaiade como diretor de harmonia, Ventura, Doce de Leite. Alberto Lonato era conhecido como Alberto da Casseta e fazia parte da comissão de frente, onde eles vinham todos de cartola, fraque. Como foi sua infância como era o bairro?
tela" (por causa da Estrada do Portela). O samba era perseguido demais naquela época. Sambista era vagabundo, sambista era ladrão, sambista era isso, era aquilo. Mas em Oswaldo Cruz não tinha isso não, só tinha sujeito integro ali. Era o Paulo, Alvaiade, todos funcionários públicos. Portela era uma escola de samba ... Lá não tinha morro, era um pessoal humilde, amor próprio, tá entendendo? O delegado botou o nome de Portela e o Paulo foi levando pra frente a escola. Até hoje está ai a Portela. Como era a sua familia? Meu pai, Francisco Pedro de Souza; minha mãe, Olga Maria de Souza.
em Oswaldo Cruz e Eram quantos irmãos?
Era pobre. Todo mundo conhecia todo mundo. Era tudo deserto. Foi quando nasceu a Portela.
Quatro.
O nome da escola antes era outro?
E seus pais trabalhavam em quê?
Era um bloco com três nomes: Come Mosca, Baianinha e Vai Como Pode. Aí, depois acabou esse bloco. Paulo, Alvaiade, Ventura, eles formaram a Portela. Ai, quando nós fomos •• registrar, em 1935, o delegado: "Portela, escola de samba Por-
Meu pai era professor e funcionário do Ministério dos Transportes. Morreu com 28 anos, tuberculoso. Minha mãe, quando morreu, estava com cem anos.
Rio de Janeiro
Ela era dona de casa? Era dona de casa e Filha de Maria, muito católica. Na minha família teve até padre. Até hoje eu vou a uma igreja. E como foram os estudos? Comecei em escola pública e depois faculdade. Sou formado em Administração. Comecei a trabalhar como funcionário público na Centrai do Brasil. Estudei na escola profissional Silva Freire, me formei como marceneiro.
o senhor
se aposentou na Central?
Na Central do Brasil. E trabalhando no escritório? Sempre. Burocraticamente, despachando processo, informando, redigindo. Como o senhor lidava com o trabalho e o samba? Eu me formei na faculdade Souza Marques, em Cascadura. E aí, tinha aquela hora nossa do samba. Formamos a Ala dos Impossíveis. Aí que surgiu o Waldir 59, porque tinha três Waldir e o número da minha casa era 59. No trabalho, o senhor era Waldir ou era Waldir 59? Era só Waldir. No samba é que era Waldir 59? No samba. E como foi a criação da Ala dos Impossiveis? Fomos falar com o presidente que queríamos formar uma ala porque queríamos sair de terno. Era terno paisano, de tropical inglês, linho SS120. Só tinha gente estudiosa. Era a ala dos funcionários públicos, por isso que era Impossiveis. Eram trinta homens e trinta mulheres, eram Las Girls e Os Impossíveis. Tinha o Natal (Natalino José do Nascimento), mas ele era do futebol. Tanto que eu sou mais velho do que o Natal na Portela. Nós fomos em cima dele, para ele bancar o carnaval. De lá pra cá, ele passou a patrocinar a Portela e ficou aquele líder que mandava em Madureira. A minha mulher era filha do presidente. De 52 até 58, a minha mulher foi porta-bandeira da Portela e foi campeã; eu também, com Candeia. A gente fazendo samba, só ganhávamos eu e ele. Pra ganhar da gente era difícil, porque a gente era de colégio. Ainda mais que, naquela época, os enredos eram todos históricos.
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Existia uma escola chamada Três Mosqueteiros, em Realengo. Essa escola veio com um enredo sobre macumba. Era só ponto de macumba que eles emendaram um no outro. Na Praça Onze. Aí, eu ouvi e falei pro Candeia: "Que samba bonito!" "Isso aí é tudo ponto de macumba" "Então, agora a gente vaí fazer samba sem ser ponto de macumba."
o senhor
teve inspiração de algum mestre?
O Paulo da Portela. Era moleque, mas eu acompanhava ele. Alvaiade, Ventura, os feras da Portela. Alberto Lonato. E o samba-enredo era escolhido no terreiro, não tinha negócio. Primeiro a gente entrava na roda com um surdinho, ficava pum-pá-pá-pá. Quando a escola - também, naquela época eram só baianas, não tinha esse monte de alas que tem hoje em dia - estava cantando, aí que a gente ia pra cima do palco e ali quem escolhia o samba eram elas.
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I
tava de trocar idéias? Famosos como o Nazareno; o Fuleiro, do Império Serrano; Bem-Te-Vi do Estácio; e aquele menino, o Djalma Sabiá, do Salgueiro. Era um time ... Se eu for recordar, tem muita gente que era importante no mundo do samba. Daqui (Mangueira) tinha o Xangô, Preto Rico, Pelado. Do Império tinha Mano Décio, Silas de Oliveira. E da Portela sempre teve um monte, pois a Portela sempre dava show com negócio de compositor, né? Tinha também o pessoal da Ilha do Governador, tá entendendo? Eu me lembro que a Portela é madrinha da maioria dessas escolas de samba. Foi a Portela que batizou. Inclusive, ela não tem. Sabe quem é o padrinho da Portela? São Sebastião. Dia 20 de janeiro sempre tem uma festa lá. O Betinho sempre fazia, ele era o diretor de bateria e registrou esse 20 de janeiro. Todo ano tinha uma feijoada, o couro comia. Tinha missa, procissão. A missa de manhã e depois a procissão, porque o padroeiro da Portela é São Sebastião.
o
senhor na Ala dos Impossiveis e compositor de sucesso deve ter namorado muito, não? Eu acho que o cara que teve mais namoradas na Portela fui eu. Mas depois que eu casei, não. E como foi o namoro e o casamento? Rapaz, o meu namoro começou na Festa da Penha, tá entendendo? Naquela época existia um tal de rabo de peixe que a mulher fazia, uma saia plissada toda bonitínha. E a Ivone, que era a minha mulher - no caso, depois -, ela vinha de lá pra cá e eu ia de cá pra lá. Mas eu estava num terno de linho SS120, sapato branco, eu sempre gostei disso, gravata. E ela vinha de lá pra cá e eu dei-lhe um beliscão. "Saliência!" "Mas você gostou, como é que é saliência?"
Como o senhor conheceu o Candeia? A gente era vizinho. A mãe dele também era Filha de Maria e o Candeia foi coroinha. Aí, um dia, ele veio cantando: "Que samba é esse aí?" "Eu 'tô fazendo." "Você é compositor? Não sabia." Aí, eu descobri e nós começamos a fazer parceria e pronto, nasceu uma porção de sambas bonitos entre mim e ele. Fora os sambas-enredo. Como era a pessoa Candeia? Um cara muito humilde, tá entendendo? Mas de uma personalidade tremenda. Quando ele cismava com um troço, tinha que fazer aquilo. Ele mudou muito depois do tiro que o deixou em cadeira de rodas? Aí que ele começou a fazer samba.
Não sabia nem de quem ela era filha? Ela era filha do carnavalesco da Portela, do Seu Lino.
Mas ele se recuperou como pessoa.
Quantos filhos os senhores tiveram?
Quais são as grandes parcerias Candeia que o senhor destaca?
Seis. Quatro mulheres e dois homens. A Festa da Penha era um momento em que sambistas trocavam, ouviam os sambas uns dos outros. E tinha partido-alto, pagode, esteira. Vagabundo subia, tá entendendo? E pernada, tá entendendo? E o senhor era bom de pernada?
Ele não se entregou não. com o
Eu gosto de uma que diz assim: "A dor da paixão nunca dominou meu coração/ Não cedi ao rancor, nunca sofri o mal do amor ..." De onde vem a inspiração do sambista pra compor sambas assim? Às vezes se inspira em alguma coisa e, ás vezes, é naturalmente. Sem querer a gente vai aperfeiçoando.
Bota bom nisso. Como o senhor começou a compor e quando o senhor percebeu que gostava de compor samba?
E os temas de amor nos sambas? Com quem o senhor encontrava lá e gos-
Ah, tema de amor pra gente é mais fácil, porque a gente convive com aquele negócio de
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amor, amor. Quantos sambas o senhor fez em parceria com Candeia? Mais de 50. Samba-enredo nós fizemos dez e fora esses sambas de quadra que a gente ficava cantando de bobeira lá.
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Em 1979. Era Arlindo Rodrigues o carnavalesco. O Arlindo me trouxe pra Imperatriz (quando saiu da Mocidade). Como diretor de harmonia. Nós ganhamos em 1980 e 81. Em 1980 foi um empate, Imperatriz, Portela
e Beija-Flor foram campeãs. As três.
E quantos parceiros? Quem foram os outros parceiros do senhor? Picolino, Walter Rosa, Avelino. Isso depois que o Candeia morreu, pois primeiro era com ele. Aí que eu comecei. É muito diferente compor samba-enredo e samba de quadra? O enredo tem uma história. Você tinha que fazer o samba descritivo. Então, a escola botava na Avenida, nos carros, tinha que estar na letra do samba e nas fantasias. Hoje em dia, samba-enredo é mais na base de refrão, quase não se fala na letra, não se fala no enredo. Depois que o Zuzuca botou aquele negócio ("Pega no ganzê", como ficou conhecido o samba-enredo "Festa para um rei negro"), aí acabou a graça do samba-enredo. Eu parei até de fazer.
o senhor
não se anima de fazer samba-enredo de novo? Eu não. Porque hoje em dia, sabe o que acontece? Tem que ter ó (dinheiro). Tem que pagar entrada, tem que pagar ônibus pra levar a torcida organizada, que não é nada da escola. É cerveja. Pagar o cantor. Já pensou os caras para defender o samba? Eu fiz um samba ano passado pra Portela, muito bonito, sozinho, né? Aí, fui falar com um cara e ele disse: "Waldir, pra você eu faço por R$ 4 mil." Pra defender o meu samba R$ 4 mil, tá entendendo? Eu digo: "Não, não, não vou pagar porra nenhuma. Vou concorrer a isso e se eu não ganhar? Se eu ganhar, tudo bem." Hoje em dia é um condomínio no samba. Primeiro eram dois, eram eu e o Candeia, eram o Walter Rosa e outro parceiro. Agora, não, são dez. Por quê? Por causa da grana, pra dividir entre eles.
o senhor
se afastou da Portela um tempo.
Um bocado de tempo! Eu fiquei afastado 30 anos, porque briguei com o Carlinhos Maracanã.
o bicheiro
que ficou no lugar do Natal.
Então, eu falei pro Carlinhos: "Enquanto você estiver aí, eu tô fora." Aí, o André me levou lá pra Mocidade.
o Mestre André.
E em 1981, o senhor continuava como diretor de harmonia da Imperatriz, e ela foi campeã, sozinha, com o enredo sobre Lamartine Babo? É, mas aconteceu o seguinte. Nós ganhamos o carnaval em 81 e ganharíamos em 82. Mas houve o negócio de proibir figura viva em cima do carro e o Luiz (Pacheco Drumond, presidente da Imperatriz) cismou que tinha que trazer figura viva dentro do carro. (Por descumprir o regulamento, a escola perdeu pontos que lhe dariam o titulo) Quando o senhor saiu da Portela, na verdade, foi um movimento em que vários sambistas históricos sairam juntos, porque discordavam do que estava acontecendo na escola. Perfeito, perfeito. Uma parte até foi fundar a Tradição e a outra parte foi fazer um movimento isolado. A Tradição é o seguinte: portelense de fato e de direito nenhum foi pra Tradição. O Carlinhos Maracanã, quando estava na cadeia, ele botou o Nésio (Nascimento, filho de Natal) como presidente. O Nésio ficou de salto alto, se empolgou, bá-bá-bá. E o Nésio era desse negócio de torcida organizada, Flamengo, Fluminense, Vasco. E aquele time que ele levou pra Portela, justamente foi o time que foi com ele pra Tradição. Portelense mesmo, de fato, não foi. Então, ele estava mandando na Portela. Trouxe aqueles caras de Vasco, Flamengo, Fluminense, aqueles times lá, pois ele era desse negócio e botou na Portela. Aí, quando o Carlinhos chegou, houve um abaixo-assinado pra tirar o Carlinhos Maracanã e o Nésio que tinha que ser o presidente. PÔ, quando ele saiu da cadeia, veio ele, Castor de Andrade com os seguranças. O Nésio estava reunido lá com a diretoria. "Bota as carteiras todas aí." Aí, expulsou eles. Esses caras é que foram com ele. Portelense mesmo, não. Ele veio em cima de mim: "Waldir..." "Não, rapaz, eu sou Portela, pra mim não existe isso". Como foi ficar fora da Portela trinta anos, como é que o senhor se sentia? Porque o senhor continuava portelense ... Ah, todo ano eu saía. Eu fazia a minha roupa por minha conta, né? Eu não queria nada deles. Eles não podiam me barrar, né? Mas eu não ia à quadra.
I
o grupo
que saiu da Portela liderado pelo Candeia com a sua ajuda fundou a Quilombo. Como é que foi a fundação? O Candeia estudou muito sobre esse negócio de cultura negra, né? Inclusive, ele que me dava aula sobre essas coisas - eu tava por fora disso, né? Aí, ele fez o Grêmio Recreativo de Arte Negra Escola de Samba Quilombo. Mas era sobre a arte negra. E então fui eu, foi Paulinho da Viola, foi Martinho da Vila, Elton Medeiros. Depois que o Candeia morreu, eu assumi. Mas eu gastei muito dinheiro e o pessoal de lá, a comunidade, não prestigiava (os shows). Não vendia dez caixas de cerveja naquilo lá. Fiquei um ano e disse: "Pedro (que era o cabeça lá), tô fora. Faz uma eleição aí que eu não vou ficar. Tô gastando dinheiro a troco de nada aqui."
o senhor falou que Candeia ensinava o senhor sobre a arte negra. Ele pesquisou muito sobre arte negra. Eu não tinha muita visão desse negócio. Tanto que quando eu assumi o negócio de Quilombo, eu disse: "Eu não sou pra esse negócio de arte negra. O meu negócio é escola de samba." Os caras queriam que a gente desfilasse na Marquês de Sapucaí, mas o Candeia não aceitava. Ele escreveu a respeito disso e a respeito da luta dele pela preservação do samba verdadeiro no livro "Escola de samba: a árvore que perdeu a raiz", no qual fazia essa defesa da manutenção das matrizes do samba que já estavam se perdendo naqueles anos 70. O senhor acha que esse legado, essa herança do Candeia, ela continua viva entre os sambistas mais tradi. cionais? Continua, mas nem tanto, sabe? Porque agora misturaram muito. Como foi a morte de Candeia e como o se. nhor se sentiu perdendo um grande amigo? Ah, aquilo acabou comigo. A gente era carne e unha. (Candeia passou o fim da vida em cadeira de rodas após levar um tiro. Waldir estava com ele quando o sambista foi baleado.) Olha, a mulher do Candeia era irmã da minha mulher. Eu fui padrinho de casamento do Candeia e ele foi padrinho do meu filho, o primeiro. Não só o negócio do samba, como de família mesmo, a mãe dele com a minha mãe, tudo da mesma igreja católica lá em Oswaldo Cruz. Qual é a sua avaliação sobre o desfile das escolas de samba hoje em dia? Eu não gosto. Eu gostava quando era solto, não tinha cronometragem, tu vadiava com a escola na Avenida.
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Era mais gostoso assim?
Waldir, são 73 anos de samba, é isso?
Ah, eu gostava mais ... Então, na época do tablado ... Você chegou a pegar o tablado aqui na Presidente Vargas? PÔ, ali que era gostoso, tu chegava: tum-tum-tum. Pô, a Portela andava era show, era ruim de ganhar da Portela. Todas vaidosas, aquelas baianas, a rapaziada orquestrada bonitinho, samba todo bom.
Com muita honra.
E como se aprende harmonia?
a ser diretor
de
Não existem mais diretores de harmonia. Porque a harmonia é o seguinte, é o entrosamento, é o casamento da dança, o canto e o ritmo. E hoje em dia, como o senhor vê os diretores de harmonia? Dá pra fazer harmonia em um desfile em que as caixas de som são tão fortes? Não dá, não dá, não dá. Não dá mesmo. E tem outra coisa, tem muita gente que não é sambista envolvida no meio. O cara sai da frente da ala pra tirar foto em pleno desfile, passando em frente ao jurado (o que pode tirar pontos da escola).
o samba
é tudo na escola?
É tudo mesmo. Se a escola fez 40 pontos em harmonia, não pode perder ponto no samba, nem na bateria. Então, por isso que eu digo, os caras fazem 40 na harmonia, então, o samba estava bom.
o que é a Portela
número 4
para o senhor?
Portela pra mim, eu não vou dizer que é a minha mãe, mas vou dizer que é uma parte do meu eu. Porque eu fui pra lá criancinha, tá entendendo? Eu vi já de tudo lá na Portela. Conheci tudo que foi diretoria da Portela, eu vivi a Portela. E ela também, eu faço muita falta pra Portela. Modéstia á parte. Mas eles sabem disso. Tanto que eles mandam me buscar em casa, pra isso e pra aquilo. Esse ano eu desfilei em cima do carro, porque eu não estou com vista, podia cair. Então, eu vim em cima do carro, mas era um carro especial pra mim, tá entendendo? Que é o da Velha Guarda, mas é Portela. Eu estive afastado da Portela, da diretoria - enquanto Carlinhos Maracanã era presidente lá. Mas todo ano eu desfilava, eu fazia uma roupa por minha conta, um terno bonito, caro, isso e aquilo. Eu estava sempre no desfile da Portela. Marquinhos aí veio me chamar. Eu disse: "Ó, malandro, 'tô fora. Você não vai sair esse ano. Eu vou. Mas não quero saber nada dessa diretoria de vocês ai. Eu 'tô fora. Eu sou portelense, não sou diretor da Portela como vocês ai." Mas eram eles que dependiam de mim. Olha quem eu trouxe pra Portela. Tem muita gente importante que quem trouxe foi Waldir 59: Clara Nunes, João Nogueira, a (Nega) Pelé. Eu conheci a Pelé na Festa da Penha. Ela ia pra lá, porque morava no Morro do Alemão. Ela ia pra lá, pois tinha batuque. Aí, o Nazare-
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no falou assim pra mim: "â, Waldir, quer ver essa neguinha sambar aqui? Ela é boa. Tu vais ver." Ai, meteram o couro lá. Porra, quando eu vi a neguinha, Marilda (Marisa) era o nome dela, eu disse: "Cacete ... eu vou levar pro meu show". Eu tinha um show montado na Portela, terminava o ensaio com aquele show. E a Pelé foi, na época em que surgiu o Pelé. Uma mensagem para osjovens portelenses. A mensagem é que todo portelense de fato e de direito dê tudo o que for possível pela Porteia, porque nós precisamos ganhar o carnaval. Ano passado, tiramos quarto; este ano, terceiro. Vamos ver, se Deus quiser este ano a gente emplaca o primeiro lugar. Porque a Portela está há muitos anos sem ganhar um carnaval. O que adianta ela ter heptacampeonato, ter 21 vitórias e estar ... Porque a Mangueira agora está com 18, está por três para pegar a gente. E a Portela está parada. *
A data oficial é 11/04/1923.
** Ele tinha sete anos na época. Possivelmente se refere a um relato que ouviu na infância.
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ano 5
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NOCA DO CATETE, DO TUIUTI E, FINALMENTE, DA PORTELA o apelido
Noca surgiu na casa dos pais, Ernesto e Feliciana. Mas Oswaldo Alves Pereira se tornou Noca da Portela por determinação de Natal, ao chegar à azul-e-branco a convite de Paulinho da Viola. O encontro com Paulinho foi numa Festa da Penha, onde, em outubro, grandes sambas eram lançados para o carnaval. No depoimento de 14 de março de 2009, ele falou da experiência de começar a carreira aos 14 anos na Unidos do Catete, ser fundador da Paraíso do Tuiuti, integrante do Partido Comunista, autor de seis sambas da Portela e secretário estadual de Cultura.
o senhor
nasceu em Leopo/dina, Minas Gerais?
Leopoldina, Minas Gerais, em 12 de dezembro de 1932. Vim para cá com cinco anos. Fui morar no Catete. Tinha a escola Irmãos Unidos do Catete, que desfilava ali na Praça Onze. E lá, com 14 anos, eu ganhei meu primeiro samba ("Grito do Ipiranga"). Por que a familia veio de Minas para o Rio? Meu pai trabalhava no L10yd (Brasileiro). Era embarcadiço. Foi transferido para o Rio. Então, ele veio morar aqui com a família. Eu, o caçulinha de dez irmãos.
o seu pai
era professor de violão também?
Também.
Francisco Alves. Como era a sua mãe e as lembranças desses primeiros anos no Rio? Ela me incentivou muito para que eu continuasse a compor, continuasse a tocar meu violãozinho. Nunca fui um profissional, mas, para compor, sempre usei o violão e minha mãe foi a primeira incentivadora. Nessa época, o senhor estudou em qual escola? O bairro foi mesmo o Catete? Eu estudei no Catete. A escola era a José de Alencar. Fiz até o segundo ano ginasial ali. Depois, fui morar em Botafogo, onde fiz o segundo grau. Tive que parar no segundo grau porque tive que ajudar a familia. Fui feirante, tipógrafo, uma porção de coisas, mas o samba esteve sempre junto comigo.
Ernesto Domingos de Araújo? Exato. A influência musical já vinha de casa, ouvindo o seu pai tocar? Na minha casa se reuniam muitos cantores e compositores daquela época, como Patricio Teíxeira, que também era violonista, professor de violão, e
O senhor estudou teoria musical e violão na Ordem dos Músicos do Brasil? Na Ordem dos Músicos do Brasil, em 1967, quando eu fui convidado para a Ala de Compositores da Portela, indicado pelo Paulinho da Viola, e fui fazer parte do Trio ABC, no lugar do pai do Celsinho, Jorge do Violão. E quando eu cheguei na Portela,
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fui obrigado a fazer um teste, apesar de ser indicado pelo Paulinho da Viola, pelo Colombo, pelo Picolino do Trio ABC e do aval do Seu Natal. Mas o Candeia me obrigou a fazer um teste e eu fiz um samba chamado "Portela querida". Com Colombo e Picolino. Antes da Portela teve a Unidos do Catete. Como foi a entrada na Unidos do Catete? Eu, com 14 anos, sempre ia com o meu pai nos ensaios. Ai, certo carnaval, falei com o presidente que queria fazer um samba para a escola. "Claro que você pode!" E todo mundo achava um absurdo um garoto de 14 anos querendo disputar samba-enredo. Ai, antigamente, existia quem realmente escolhia o samba. Na Mangueira, no Tuiuti, na Portela, eram as pastoras, né? Não tinha microfone, tinha que ser no gogó. Quando eu lancei meu samba na quadra, reuni as pastoras. Cantou dois, três, acho que o meu foi o quarto. Aí, as pastoras me deram a nota, todo mundo me deu a nota máxima. Levaram meu samba para a Avenida, na Praça Onze, e eu tirei nota 10 lá também. De lá, fui para Botafogo, me tornei compositor no Foliões de Botafogo. Fizemos uma ala de compositores, uma das grandes alas de compositores de que fiz parte. Tinha Paulinho da Viola, Geraldo Babão, Anescarzinho do Salgueiro, Mauro Duarte, Walter Alfaiate, Niltinho Tristeza. Era um Butantã de grandes poetas de Botafogo. De lá, vim morar no Tuiuti, em 1952.
o
senhor ajudou a fundar a Paraiso do Tuiuti?
Exatamente. Quando cheguei lá, tinham três escolas na comunidade. Eu dei a sugestão para que fizéssemos uma só para que ficasse fortalecida. E lá, eu ganhei bastante sambas-enredos. Fui um dos maiores ganhadores de sambas de lá. E através do Tuiuti eu fiquei conhecido em todos os lugares do Rio. Principalmente na Festa da Penha. Nós tínhamos barraca lá. Tinha do Tuiuti, da Portela, da Mangueira. E foi lá que o Paulinho da Viola me conheceu e me convenceu a virar portelense. Apesar de que eu tinha um carinho muito grande pela Mangueira. Morei 23 anos no Tuiuti. Como foi o encontro com Paulinho da Viola na Festa da Penha? Paulinho em 1965 (1966) ganhou seu primeiro samba-enredo e único, "Memórias de um sargento de milícias". E a gente estava cantando na barraca do Tuiuti. Estávamos cantando o "Sargento". Então, o Paulinho passou com o irmão dele, o Chiquinho, e parou. "Escuta aqui, você aprendeu esse samba onde?" "Lá em Madureira, na Portela. Você é de lá? Eu sou do Tuiuti". Ele ficou parado ali, eu comecei a cantar, pois eu fazia muito samba de terreiro. Comecei a cantar uma porção de sambas e ele perguntou: "Poxa, meu irmão,
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não quer ir pra Portela?"
professores, engenheiros. Eles ensinavam a garotada da época.
Nessa época o senhor já era o Noca? Eu era Noca só. Mas quando cheguei na Portela, o Seu Natal perguntou de onde eu tinha vindo. Ai disseram: "É do Tuiuti." "Que é isso?" "É uma escola de samba." "Mas Noca do Tuiuti não vende. De hoje em diante você vai ser o Noca da Portela. Tá bom assim?" De onde vem o apelido Noca? Quando eu nasci, meu pai tinha vindo de uma viagem. Então, ele olhou pra mim quando chegou em casa e disse: "Esse menino é a cara da Noca." Ai, a minha mãe quase que abre o casamento com ele. "Quem é essa tal de Noca?" "É uma senhora que, quando nós desembarcamos em Alagoas, abastece a gente." Resumindo, os meus irmãos mais velhos começaram a brincar comigo: "É a cara da Noca." Quais foram as três escolas que juntas deram origem à Paraiso do Tuiuti? Tinha a Unidos do Tuiuti, tinha a Paraiso das Baianas e tinha um bloco chamado Brotinhos. Então, acabamos com todas e fizemos o Paraiso do Tuiuti. Foi lá que eu também conheci a minha esposa, a Conceição. Quem deu a cor do Tuiuti fui eu, porque eu estava vindo do Catete, que era amarelo cor de ovo e azul-pavão. Como ninguém dava sugestão, eu disse: "Vamos botar amarelo cor de ovo e azul-pavão." Todo mundo gostou. Nessa época, como o senhor compunha? Fazia música e letra? Não, antigamente, os sambas de quadra, o cara tinha uma primeira (parte) e a gente botava uma segunda. Mas de onde vinha a inspiração? Eu já tocava um violãozinho. Então, nos meus sambas, sempre procurei motivos para compor. Todos eles sempre tinham um pouquinho de realidade das coisas. Tanto é que eu fui considerado o compositor mais politizado. Fiz tantas músicas, da Campanha das Diretas ... Vindo do Partido Comunista, meus temas eram sociais. Dificilmente eu fazía um samba falando de amor. Em que época o senhor entrou para o partido? Meu pai foi do Partido Comunista. Ele deve ter morrido quando eu tinha 18 ou 19 anos mais ou menos. A data eu ... Eu me filiei no Tuiuti. Em 64, eu já era liderança e muitos meninos que seguiram os nossos ideais se escondiam lá em cima. E lá, eu fiz uma espécie de um quilombo para que nós pudéssemos esconder os meninos, os idealistas contra a opressão da época da ditadura. Eram estudantes de engenharia, medicina,
No Paraiso, o senhor compôs "Apoteose à Academia Militar das Agulhas Negras, "Os imortais da música popular brasileira", "Rio, carnaval e batucada", "Vida e obra de Cecilia Meireles", entre outros sambas-enredo, enquanto compunha sambas de terreiro. Tem uma diferença grande entre fazer um samba-enredo e um samba de terreiro? O samba de terreiro antigamente era o ensaio para que esquentasse a escola, ensaiasse a escola para o carnaval. O melhor samba de terreiro era cantado no esquenta. na passarela principal. E o samba-enredo, normalmente, era História do Brasil.
Já nessa época, como o senhor fazia pesquisa para compor o samba-enredo? Você ia na biblioteca da escola, pegava o livro, por exemplo, o tema "Apoteose da Academia Militar das Agulhas Negras". Ganhei esse samba contrariado porque eu era comunista e tinha que elogiar os milicos. Nas bibliotecas das escolas nas proximidades de São Cristóvão? Quase todos. A Cecilia Meireles, tive que ir à Biblioteca Nacional para pegar o livro. Foi outro samba que também foi nota 10. Inclusive, na época, Tuiuti estava no Grupo de Acesso e Jamelão fez um disco com os dez melhores sambas-enredo de todos os tempos. Incluiu "Vida e obra de Cecilia Meireles". Como era a Festa da Penha e qual a importãncia dela para a difusão do samba? Bom, a Festa da Penha foi um reduto de encontros de confraternização de todo o samba. Cada escola tinha uma barraca com suas comidas típicas e existia uma grande união. O carnaval começava na Penha, em outubro. Grandes sambas fizeram sucesso em carnavais, sairam da Penha. Você tinha a oportunidade de mostrar um samba, ouvia sambas fantásticos. Na Portela, o senhor já encontra uma Ala de Compositores forte e o Candeia, que era uma liderança. Como era ele? Um grande mestre de quem eu tive a honra de ser parceiro. Nós fizemos três sambas no dia em que eu fui na casa dele. Um ele gravou no último disco que fez, chamado "Mil réis". O senhor acha que as figuras históricas de Candeia e de outros baluartes da escola são reconhecidas pela história oficial? Está acontecendo no pais um grande resgate cultural desse nosso samba de raiz. Eu tenho viajado por todo o pais e estou percebendo
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que a juventude está querendo saber dessa história que sempre foi escondida. Essa história nossa do samba, esse sofrimento, essa coisa de fugir da polícia, que era proibido batucar nos bares, tantas proibições. E o Candeia é o Estandarte de Ouro desse conhecimento para quem quer saber da história do nosso samba. Então, o Candeia é o simbolo dessa luta, da resistência, inclusive o Quilombo, que ele criou, está voltando. Está voltando, eu estarei presente, novamente Jorge Coutinho, Waldir 59, eu, tantos outros sambistas quilombolas que lutaram com Candeia. Bom, vamos dar uma volta no tempo para esse inicio de Portela. O senhor, logo no inicio, foi integrar o Trio ABC, com Colombo e Picolino. Como foi essa amizade, essa parceria? O negócio é o seguinte, no Trio ABC tinha o Jorge do Violão, que é pai do Celsinho, que hoje é puxador da Portela. Ele quis sair para a carreira solo e ficou um espaço vazio ali no Trio ABC. Como o Paulinho já me conhecia ali da Penha, ele falou com o Colombo: "Tem um menino ali do Tuiuti que, além de tocar um violão razoável, é um grande compositor. É o cara ideal para o Trio ABC". A (minha) primeira música na Portela foi um grande sucesso, "Portela querida". Estourou, toda hora tocava nas rádios, foi o primeiro grande dinheiro que eu ganhei com música. Estourou no carnaval de 67, é isso? Foi 67, foi primeiro lugar na UBC (União Brasileira dos Compositores), na sociedade, né? Na voz da Elza Soares. E como foi esse sucesso? Foi a mesma emoção de ouvir o primeiro samba-enredo cantado pela escola do Catete? Foi muito mais, porque esse sucesso foi nacional. Do Catete não, foi só na passarela ali, uma grande emoção por ser o primeiro samba. "Portela querida" não, o Brasil todo cantou. E ai, com o estrondoso sucesso de "Portela querida", o senhor se muda do Tuiuti? Claro, o pessoal disse: "Noca, você não pode mais ficar lá em cima do morro". Na época, eu ganhei, só de carnaval, 800 mil cruzeiros. Era dinheiro à beça. Só de execução. Então, eu fui morar numa casa lá no Engenho Novo, três anos. Só fui comprar uma casa muito depois. Aquela casa em que eu moro até hoje, com uma música. Olha só. Com tantas músicas gravadas por gente da MPB, Maria Bethânia, MPB-4, Elizeth, Nelson, tanta gente, fui fazer sucesso com um cantor chamado Chico da Silva. E ele gravou uma música que eu fiz chamada "É preciso muito amor", em 1978. E, em 1983, o Paul Mauriat gravou
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essa música. Na época eu ganhei um milhão de direitos autorais, um milhão de cruzeiros. Ai, eu comprei uma casa ... Já sabia o que fazer com o dinheiro. Entre o primeiro grande sucesso e as gravações de vários sambas, passaram 15, 20 anos, até o senhor conseguir comprar uma casa. Exatamente. Apesar de ter gravado com tanta gente maravilhosa, mas dinheiro mesmo pra valer foi quando o Paul Mauriat regravou "É preciso muito amor". De direito autoral da França veio um milhão, eu comprei uma casa por 600 mil cruzeiros. No Trio ABC, antes de o senhor começar uma carreira solo, foram vários sucessos. "Chorei, sofri, penei" e vários outros. Até quando o senhor ficou com o trio? De 1967 até 76. E por que acabou o trio? Sabe como é que é, uma cabeça pensa bem, duas pensam mais ou menos e três já fica dificil. São muitas cabeças a pensar e, normalmente, nem todas são iguais. Em 1976, o senhor ganhou pela primeira vez samba-enredo na Portela com "O homem do Pacoval". Exato, ainda usávamos o nome Trio ABC da Portela. Quais são as memórias que o senhor tem de "O homem do Pacoval"? Foi um enredo que me fascinou muito, porque a história era muito bonita, de uma tribo indigena nos tempos coloniais. Em 1968, o primeiro samba-enredo que concorri na Portela era "O tronco do ipê", também uma história de cultura. Então, eu fazia samba e, quando veio esse enredo, chamei o Edyr, que estava no lugar do Picolino, que havia saido. Resolvemos concorrer. O que mudou na composição do samba-enredo e na disputa daquela época para cá? Bom, a cronometragem atrapalhou bastante as escolas, pois antigamente não tinha limites, né? A escola que tinha mais gente eram 600 pessoas, 700. Agora são cinco mil. Então, o samba teve que ficar marcheado para ter ligeireza; o samba teve que ter refrões fortes para conquistar a plateia. Não tem mais o lirismo, a melodia não precisa mais ser apurada. O senhor ganhou seis sambas na Portela. Em 1985, "Recordar é viver" ...
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Em 95, "Gosto que me enrosco", em 98 ... "Olhos da noite". Em 99, "Pelos caminhos de Minas" e em 2005, esqueci. Essa memória ... Tenho que tomar chá de macaco pra ficar com a memória boa. Alguém lembra do enredo? Aconteceu um desastre na Portela, quebrou carro. Eu pensei: "Será que eu desagradei ao meu orixá?" Foi aquele em que a Velha Guarda não entrou ("Nós podemos: oito ideias para mudar o mundo!"). Bom, vamos falar então de "Gosto que me enrosco", de 1995. Meu primeiro Estandarte de Ouro. Como foi a composição do samba? Bom, os parceiros, o Colombo, que já faleceu, e Gelson, que também já faleceu. Depois de dez anos sem fazer samba: de 85 a 95, eu não fiz samba para a Portela. Mudou a diretoria, saiu o Carlinhos Maracanã. Eles me chamaram: "Você não vai mais voltar a fazer samba?" "Vou". Foi o samba que teve a sua consagração na Avenida. Eu lembro que, em 95, todos os portelenses que estavam afastados voltaram, como Nega Pelé, Maria Lata D'Água, Paulínho da Viola, Waldir 59, uma turma imensa de portelenses que estavam brigados com a diretoria. Nas disputas dos sambas-enredo hoje em dia, a presença das torcidas e a indústria e o comércio que se formaram em torno estão atrapalhando a seleção? A maioria do pessoal da Velha Guarda já desistiu de competir, porque é uma luta desigual. Porque você tem que alugar ônibus, tem que pagar cerveja, tem que fazer churrasco, tem que comprar ingresso, você tem que levar a galera. São tantas coisas ... Tem que ter até patrocinio! Uma coisa incrivel, a maioria dos caras que está ganhando atualmente tem patrocinio. Gente patrocinando o samba-enredo. Então, a qualidade nessa hora vai pro espaço. Hoje fala-se muito nos escritórios, que seriam grupos de compositores que, sem assinar, compõem sambas para diversas escolas e ganham em várias. Isso estaria pasteurizando os sambas, fazendo com que estivessem muito iguais. Então, agora, já que existe isso, eu não tenho certeza, porque eu não posso provar nada, se existe ou não o tal do escritório. Mas tem compositores ai que só vivem de samba-enredo. Você não vê um samba dele no meio de ano na voz da Beth Carvalho, na voz da Alcione, do Paulínho, do Martinho, do Zeca. Você não vê ... Eu acho que a direção da escola
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tem que fazer uma grande lavagem. Vamos formar a nossa Ala de Compositores: "Vocês vão fazer samba de terreiro primeiro, vai ter um grande concurso aqui na escola. Depois, o samba-enredo vai ter que ter parceiro da escola. Da sua escola, não pode ser gente de fora." Aí, de repente pode até melhorar.
o
samba de terreiro, o samba de quadra, de meio de ano, perdeu espaço nas escolas? Outra coisa errada. O samba de quadra era uma espécie de vestibular. Em todas as agremiações, tinha um samba de quadra pra você ficar bem dentro da familia.
o senhor
acha que festivais que algumas escolas, como a Portela, estão promovendo, estão realmente ajudando a estimular os jovens compositores a fazer sambas de meio de ano? É uma oportunidade de descobrir novos valores, né? E quantas obras magníficas podem acontecer num festival? Os grande sambas de terreiro da Portela foram mais de cem. Fo-
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ram todos gravados! Pela Clara Nunes, Beth Carvalho, Roberto Ribeiro, João Nogueira. Então, o samba de quadra é uma necessidade para dar estrutura à escola. Quando o senhor assumiu a Secretaria de Cultura do estado, houve preconceito? Foi o momento mais importante da minha vida, porque um sambista de origem pobre chegar a esse cargo de grande responsabilidade ... Mas, preconceito existe, mesmo não sendo autoridade, não sendo secretário.
o senhor contou que uma das coisas mais importantes que estão acontecendo nesse momento é a transmissão do samba para as novas gerações, de toda parte, de qualquer classe, cor, religião. Mas isso se dá muito dentro de casa também e a sua casa é uma que transmite o samba. Meu filho mais velho, o Noquinha, ganhou samba na Caprichosos, ganhou comigo na Portela e em vários lugares aí. Meus netos maiores, um é o Diogo, que faz parte do DNA do Samba. Tem o neto do Martinho, da Dona
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Ivone Lara, do Silas de Oliveira, o filho do Nelson Sargento, o filho do Nei Lopes, tem tanta gente ... o sobrinho do Roberto Ribeiro. E agora eu tenho meus bisnetos, um de três anos, o pai dele, casado com a minha neta, que é porta-bandeira, é o mestre-sala da Mocidade Independente. Então, o filho deles de três anos já é um eximio mestre-sala. Ele é de parar, de todo mundo parar para ver uma criança de três anos. E a minha neta, filha do meu filho mais velho, uma temporonazinha, tem três anos também, já está pegando a vassoura e já estão brincando os dois. A gente fica babando. A bisavó, que é a Dona Conceição, e eu também, quase chorando de ver aquela exibição de duas criancinhas de três anos. Deus foi muito generoso comigo. Obrigado.
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NOS 'SERTOES' DE EDEOR DE PAULA, UM FINAL FELIZ PARA O SAMBA Ele é conhecido pela obra-prima "Os Sertões", da Em Cima da Hora, de 1976. O sambaenredo é uma belíssima tradução, na letra e na melodia, da triste saga do Arraial de Canudos, que, naquele desfile, se encontrou com o drama da escola, rebaixada. Mas a trajetória de Edeor José de Paula não se resume a isso e tampouco é melancólica. Na juventude, ele foi fundador e mestre de bateria dos Cubanos da Gávea, bloco de havaianos, e tocou maraca num conjunto de mambo, conforme contou no depoimento de 18 de abril de 2009.
Aqui é Edeor de Paula, compositor de "Os Sertões", nascido na Gávea, na Rua Marquês de São Vicente, 59, em 1932.
o senhor
é filho de Francisco José de Paula e Carmen Diniz de Paula? Positivo. Como foi a sua infância na Gávea e como eram os seus pais? Minha mãe foi operária da fábrica América Fabril, na Gávea; meu pai, armador de obra. Naquela época, chegava nos bailes aos sábados, a mamãe cantava e ele acompanhava com um cavaco. A família do meu pai, quase toda, foi de músicos. A primeira requinta (instrumento de sopro) que teve aqui no Rio foi de um primo meu. O único compositor da familia fui eu. Comecei num bloco de havaianas de saco. Formamos um bloco que teve o nome de Os Cubanos da Gávea. Passou a ser a sensação na (Rua) Pacheco Leão. Foi fundado em 1951.
o senhor
tinha que idade quando o bloco foi
1951. Foi a hora em que mudamos e fizemos a ala de compositores. Começou a ganhar vulto e foi aumentando de ano pra ano e chegou a ter trezentas pessoas. No domingo de carnaval, íamos até Copacabana. Os turistas ficavam. Passaram a esperar todo ano os Cubanos da Gávea. E passamos a fazer sambas a cada ano, tendo disputas como tem hoje nas escolas. Na sua familia teve alguém que o influenciou? Meus primos eram músicos das Forças Armadas e, fora das Forças Armadas, faziam bailes de carnaval. Fui compositor fazendo música para bloco e, quando gravei a primeira música, foi com a MarIy Sorel, que na época era a rainha do cinema brasileiro. O disco era 78 rotações. Quando terminou o Cubanos? Eu gravei em 55 e levou mais dois anos, vamos dizer mais três, por aí.
fundado? 12 anos.
o problema
Entâo foi lá pelos anos 40.
Depois da minha saída. Porque, enquanto eu estive, eu não aceitava. Vinham pessoas de longe para assistir à nossa saída, trezentos e poucos
Mas esse bloco tomou mesmo envergadura em
foi permitir a entrada das mulheres?
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homens, todo mundo vestido igual, direitinho. Mas por que as mulheres não podiam participar?
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Isso. Depois de havaianos. nós começamos a fazer umas mudanças. Já eram umas fantasias de cetim.
Você tinha uma namorada. não gostava de carnaval. ela gostava de bloco. Já começava por aí. E vice-versa. A rapaziada também não estava de bobeira. Então. eram só conflitos. E nesses conflitos. foi acabando. E eu permaneci. Então. já no primeiro ano, em 1955. gravei com a Marly Sorel. Em 1956. com Orlando Dias. Uns três anos consecutivos.
Os seus pais morreram muito cedo.
No momento em que o senhor começou a se profissionalizar, afastou-se do Cubanos?
Péssima.
Com certeza. Antes da profissionalização, o senhor montou com um grupo de amigos de infância um conjunto de mambo, Los Negritos. Como foi essa descoberta do mambo? Na época apareceu o mambo jambo e o finado Batista era bongozeiro. Ele disse: "Olha só. vamos fazer um conjunto de mambo. mas nós não queremos rumba". Então. nós começamos. Faltava um acordeom de 120 baixos e um pistom. um saxofone. Eu era o maraqueiro do conjunto. E arrumar uma moça bonita pra ser a rumbeira. Nossa rumbeira fez até um filme com o Grande Otelo. Chamava-se Malu. Fomos disputar o "Dia do Mambo" no programa "Sequência 3". do Wilton Franco. e fomos campeões.
o
senhor compôs outros sambas para o Cubanos?
Fui campeão com outros sambas.
o senhor
falou que era o compositor da familia, mas também tocava instrumentos? Ah. de percussão. Como o senhor aprendeu, havia um mestre? Aprendi com o tempo mesmo. E a sua base foi no Cubanos? Foi meu inicio de carreira. Comecei pelo primeiro degrau mesmo.
o senhor aprendeu tudo numa bateria. Qual o instrumento que o senhor gosta mais? Se eu for voltar. vou tocar tamborim. Eram sempre fantasias de havaianos nos Cubanos?
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Meu pai. com 39 anos.
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O senhor mora onde? Na Estrada do Gabinal (em Jacarepaguá). Eu me separei em 76, ano de "Os Sertões", quando conheci a mãe das minhas duas filhas. No dia 17. fizemos 33 anos que ela me atura. Como foi esse encontro que gerou o segundo casamento?
E o senhor tinha 7. E minha mãe com 98. Como ficou a situação na sua casa quando o seu pai morreu?
Eu ganhei o samba-enredo e. às vezes, quando você ganha. o puxador oficial vai pra televisão. E você vai pra quadra. canta dois sambas de quadra e o samba do ano. Então, eu ficava pra cantar o samba do ano. Porque o Nando (puxador) estava na televisão com o Chiquinho.
A sua infância, o senhor estudou onde? Estudei na Olavo Bilac. Quando o senhor parou os estudos na série, foi logo trabalhar?
Presidente da Em Cima da Hora?
sa
Não. Fiz o admissão e fui para o Amaro Cavalcanti. Passei com 7,5. Mamãe disse: "Eu não tenho condições de botar você. tem que ter passagem. uniforme. Como é que eu vou comprar uniforme?" Foi falar com meu tio e ele disse que ela queria doutor na vida dela. Assim mesmo. ainda estudei lá dois anos no sacrifício. E quando não deu mais. eu disse: "Agora vou procurar uma profissão". E a minha profissão foi trabalhar em automóvel. Foram anos e anos trabalhando como mecânico e exposto ao metanol, que prejudicou sua saúde. E ao mesmo tempo seguindo a carreira de compositor? É, fazia samba e marcha de carnaval. Fiz muitos sambas para os cantores. Marlene ... Gravei com Ary Cordovil. Blecaute. Como era conciliar o trabalho como mecânico e a vida de compositor? Quantas vezes que eu trabalhei pernoitado? Porque. ainda mais na época de carnaval, que você tinha que correr clubes. E eu nunca deixei de trabalhar.
Isso. Tio do governador (Sérgio Cabral). Toda a familia do governador é Em Cima da Hora. Quando eu acabava de cantar. descia pra falar alguma coisa. já não via mais. Quadra cheia. vou dizer o quê? Acabou o carnaval. acabou o desfile. A Em Cima da Hora recebeu um convite do Japão. Ai. vai quem vai. vai quem não vai. No final. o cara que ganhou o samba-enredo nem ia mais. Mas depois, nós fomos para o Monte Libano fazer a festa. Ai. a moça estava sentada - essa que é a minha esposa - com um moço ao lado dela. Eu falei assim: "Olha só, moço. Eu acho que você está no lugar errado. Vai trocar comigo. Pode levantar que ela é minha namorada e eu vou sentar aqui." E não deu outra. Então. eu estou sentado até hoje. Com a Dona landir. É uma pessoa que torce muito por mim. Quem foi que levou o senhor para a Em Cima da Hora? Um moço já é finado e o outro é o Julinho. meu vizinho. Ele me levou para eu participar de samba de quadra. Quem foi a primeira pessoa?
Quando o senhor deixou a Gávea, o que aconteceu com aquelas pessoas que participaram do bloco? Como é a ligação disso com a força jovem do Horto e com os blocos que surgiram depois?
Nós o chamávamos de Cabrinha. O nome dele é Geraldo Larossal, ou coisa parecida. Ele disse: "Vamos lá para a Em Cima da Hora, porque os caras estão muito cheios de marra. Eu falei que conheço um compositor bom e eles: 'Traz mesmo ....
Quando estreou a força jovem. eu não estava mais na Gávea. Até porque a mamãe. com a minha irmã. tinha ido morar no Grajaú. Eu não tinha quase o que fazer lá na Gávea, com as outras ocupações. Quando ganhei o samba-enredo ("Os Sertões"). eu estava onde eu moro hoje.
42. O camarada que era o presidente da Ala dos Compositores. o Eliezer ... Só eu apareci para a reunião, pois caiu uma tempestade. "Não precisa fazer o enredo não. Faz o seguinte. faz um samba da tua cabeça e vem. Tema livre." E eu fui campeão.
O senhor tinha que idade?
Mas era um teste? Para entrar na Ala dos Compositores.
Cima da Hora em 75 para 76, foram vinte anos. Nesse periodo, o senhor trabalhou mais criando samba, não sambas-enredo ... Ah, não, só samba de carnaval. Marcha e samba.
Era samba de quadra, de terreiro? De quadra. Você tinha 30 compositores. Tu tinhas que entrar até o 5° lugar. Pra samba de terreiro, como era mais difícil, dez, até o 10° lugar.
Como foi encarar depois de vinte anos: "Eu vou fazer um samba-enredo"? O senhor teve que se adaptar
75 para 76. Então, veio o samba de quadra, que era preparatório para o samba-enredo. Então, a rapaziada disse: "O cara veio ai, fez um samba e ganhou. Eu quero é ver se ele é bom mesmo, samba de terreiro. E fiz um samba de terreiro, fui campeão
Não. Alguém disse assim pra mim: "Hoje pra ser compositor nota 10 tem que só fazer samba-enredo. Porque a rapaziada de fazer samba e marcha é fácil. Samba-enredo é que é difíciL" Esse moço, também finado, por nome Jair Amorim. Ele era o presidente da minha sociedade (musical). E realmente, o primeiro que eu fiz, eu acho que agradou a todos, que foi "Os Sertões".
Nesses testes pra Ala dos Compositores, quem participava da escolha?
Mas o senhor teve dúvidas quando ele lhe falou isso?
Eles apanhavam jurados. Começaram com pessoas da escola, depois, pra negócio de armação, manteve pessoal de fora. A armação ficou muito pior. Muito pior, porque você, conhecendo os jurados, podia ... Tanto é que eu fiquei numa diferença com o meu amigo, meu irmão, o Baianhinho, uma diferença de 20 e poucos pontos. Então, no sábado, quando chegou a decisão, fui o primeiro a cantar. Teve uma outra música que cantou. Foi quando o Chiquinho chamou os compositores e disse assim: "Minha gente, tá ai, cerveja, uisque, terminou tudo. O ganhador desse carnaval é Edeor de Paula." Houve aquele silêncio, aquele baque. "Mas tem um bocado de cerveja pra vender ainda e o povo vai ficar. Vou chamar todo mundo de volta pro samba não acabar agora". Então, foi assim. Quando já estava quase amanhecendo é que foi dar o resultado. Então, esse Cabrinha, ele fez uma promessa, que, se nós ganhássemos o samba, nós iríamos à igreja da Penha. Olha, não vou te enganar não, depois de uma noite de disputa final, você subir a igreja da Penha, 365 degraus, é um grande alimento. Agora, bacana foi quando chegou lá em cima. Estava na metade da missa. Terminou a missa, Cabrinha foi falar com o padre. E o detalhe que eu não sabia, o cara comprou uma vela da minha altura, foi a promessa que fez. E o bacana foi que todo mundo cantou "Os Sertões" lá na igreja. E o padre só dizia assim: "Continua". Tem uns lances maravilhosos que acontecem na vida, né? Todo mundo cantando o samba. E o padre só mandava continuar, todo mundo na missa.
Não, a única dúvida que eu tinha era onde ser aceito. A burocracia era muito maior do que hoje. Você tinha que passar nas baterias para disputar um samba-enredo no primeiro grupo. Nas outras escolas, você fazia dois anos de estágio fazendo samba de quadra e samba de terreiro. E samba-enredo você ficava assistindo. Mas como abriram uma fornada diferente, em termos, em que os cinco primeiros novos, se chegasse entre os cinco, teria o direito de fazer o samba-enredo. Como eu fui campeão duas vezes num ano só, ficou tudo tranquilo.
Isso foi em que ano?
De 1955, quando teve a primeira gravação de um samba seu, até a sua entrada na Em
na reunião. O que você botou no samba?" Eu cantei: "Sertanejo é forte/ Supera a miséria sem fim/ Sertanejo homem forte/ Dizia o poeta assim". "Depois você volta". Saí, fui no bar tomar uma cerveja, bater um papo. Eu subi e, então, ficou resolvido bem assim. Tem horas em que você não consegue. Ou então não faz remendo na casa, bota a casa toda abaixo. Mas o tempo já estava curto. A minha sorte é que eu tinha uma melodia na cabeça. Na sinopse, havia outros trechos obrigatórios? Muitos, palavras obrigatórias. Mas essa aí, não deu, "Sertanejo é ...". Eu vi samba lá com "Sertanejo antes de tudo é um forte". Você não tem divisão pra isso. Então, você tem que criar alguma coisa. Eu só tive essa saida. Então, eu acho que a música ... Primeiro, você tem que ter o dom. Qualquer cidadão que esteja nessa terra aqui faz uma letra. O ruim é a melodia. E o pior é a concordância de letra e música. O senhor não leu o livro de Euclides da Cunha?
É.
Eu vim a ler depois do samba ganho. São 219 páginas. E agora essa música está num filme, que é "A paz é dourada", em que trabalha o Grande Otelo. Ele ainda estava vivo. Olha há quanto tempo estão fazendo esse filme! E a música "Os Sertões" encaixou certinho na vida de Euclides da Cunha, desde o nascimento. E o samba entra certinho, direitinho, maravilhoso. Esse filme deve ser lançado lá para o mês de agosto. Já teve algumas prévias, mas é que essas prévias vão cortando aqui, tirando ali e melhorando pra cá e tal. Eu tenho participação no filme.
Como foi a inspiração de "Os Sertões"? A sinopse era muito grande, 42 páginas.
Qual a reação na quadra quando foi cantado pela primeira vez?
Eu só tive 17 dias pra fazer. Por quê? Os outros começaram na minha frente porque já tinham uma situação decidida. Um por estágio, outro por tempo de casa. E eu, que vinha chegando ... Minha felicidade foi quando ganhei o samba de terreiro. E ainda tinha um problema. Era que a música não entrava. Na sinopse estava escrito o seguinte ... Todo samba tinha que ter palavras obrigatórias ou frases obrigatórias: "Sertanejo antes de tudo um forte". Na minha música não estava entrando isso, não dava. Faltava uma semana para a entrega, eu fuí à reunião da diretoria. "Olha, o meu samba não está dando pra entrar 'Sertanejo antes de tudo um forte'. Não está dando. Mas você botou alguma coisa? Eu botei. Agora não sei se vocês vão aceitar. Pra eu não ficar perdendo tempo, eu vim aqui
Tirado o sorteio, eu fui o 23° samba. O Nando, que era o puxador e foi campeão comigo, no samba de terreiro, não pôde se apresentar nesse dia. Então, começou a chover. E a quadra não era coberta. Então, nego foi embora. Tinha nego dormindo na quadra, essas coisas todas. Quando estiou, já estava no 20° samba, dando 4 horas da manhã. E eu tô esperando. E foi a apresentação do samba e eu só disse que eu não era cantor. E eram duas (passadas) sem e duas com.
Esse foi o seu começo na Em Cima da Hora?
Duas sem a bateria e duas com? Eu cantei as duas sem bateria. Mas tinha uns meninos que acordaram. Talvez tenham sentido o samba e já pegaram à vera. Então, quando eu saí da quadra, eu tenho a experiência de ver se os prospectos (com a letra) ficaram no chão. Ou se teve alguém que
levou o prospecto. E eu estou procurando e não estou vendo os meus prospectos. Eu distribuí. Então, levaram pra casa. Dali eu já comecei a ter uma situação um pouco melhor, a acreditar. "Os Sertões" ganhou rapidamente o públi-
co e a critica? Não foi bem assim. A Top Tape na época gravava todos os sambas-enredo, era uma gravação normal pra todo mundo. Esse samba só cresceu mesmo quando o Adelzon Alves, produtor da Odeon, chamou a mulher dele, a Clara Nunes. Ela disse: "Eu não vou gravar, mas vou dar para os meus afilhados". Era o conjunto Nosso Samba. O sucesso maior veio pelo Nosso Samba. Gravação da Odeon e o produtor, Adelzon Alves. A que o senhor atribui a gravação da Top Tape não ter tido impacto? A gravação da Top Tape era uma gravação pra samba (enredo). Uma duração mais ou menos de dois minutos e pouco. Porque eram 14 escolas no Primeiro Grupo. Se fosse o normal de 12, nós teriamos mais chances de mostrar o trabalho. Tive a felicidade de a Odeon regravar o samba com o Nosso Samba, que estava no auge. Juntou as duas coisas, o Nosso Samba, afilhado da Clara Nunes, produtor Adelzon Alves. E o samba, dentro de uns 15 dias com o compacto na rua (era compacto), começou. O pessoal começou a escutar. O arranjo maravilhoso, aquelas As Gatas. Uma coisa sensacional e diferente, aquele coral maravilhoso. Quando o senhor chegou na Avenida para o desfile com "Os Sertões", o que sentiu? Olha, eu não senti quase nada, porque esta-
va anestesiado. Como anestesiado? O médico da minha mãe veio com uma garrafa de uisque. Eu estava na casa da minha mãe. Ele disse assim: "Dona Carmen, eu trouxe um remédio aqui pro seu filho. Ele tá ai?" "Tá. Tá descansando pro desfile". "Não, acorda ele." Acordou. "ô de Paula, eu trouxe ai pra você tomar umas doses de uísque. Mas por quê? Eu não sou chegado. Não, não, isso é um remedinho pra você desfilar tranquilo". Ele já sabia o estrondo que ia ser no desfile. Aí, eu comecei a tomar umas doses. Quando eu cheguei na concentração, caiu o temporal. E eu fiquei na TV Globo. E lá, linha de cachaça até uísque. "Vamos nessa. Olha, tem que beber, se não, vai ficar resfriado". Então, eu desfilei, desfilei já bonito. Desfilei bonito, o coração não parou. Eu sentia uma coisa diferente de você cantar uma música numa quadra e você ver milhões de pessoas cantarem. Você fica meio perdido. Há colegas (em) que as lágrimas começam a descer. Não aguentam. Eu estava mesmo anestesiado. A chuva que caiu no desfile ... Ah, caiu no desfile. Antes do desfile. Não entristeceu o senhor? Não, porque ... O senhor não tinha uma expectativa grande de a Em Cima da Hora acontecer? Eu tinha expectativa de fazer um grande carnaval. Mas quando o meu cunhado, que estava no barracão, falou que cortaram muita alegoria pra poder passar ... Eu não entendo como um fulano vai fazer um carro e não vai
medir a saída. Ainda pra ficar maravilhoso, choveu. Aconteceu tudo, só uma coisa não aconteceu. O samba foi o melhor do ano e a escola desceu. A escola desceu, mas não foi por má administração. Alguma coisa aconteceu. "Os Sertões" era um samba com forte teor político em defesa das camadas populares no momento em que estávamos em pleno regime militar. Justamente. E ainda vou te contar, eu ainda fui chamado. Nessa época, eu trabalhava de mecânico. E o coronel mandou vigiar o Edeor de Paula. O senhor acha que o teor politico do samba pode ter influenciado no resultado? Acredito que não. Primeiro que, pra sair do barracão, já teve que cortar alegoria. Ora, é a mesma coisa se você está com o braço quebrado, só tem um na ativa, correto? A escola não teve a Guerra de Canudos, os carros passaram, passaram. Não teve a Guerra de Canudos. E nos ensaios lá no barracão, ia ficar lindo. Quando entrasse aquele pedaço "Os jagunços lutaram até o final", ia ter os tiros, essa coisa toda, a guerra. Não houve nada disso. Desfilamos sem um adereço de mão. A chuva acabou com os adereços de mão. E ainda fomos a primeira escola a desfilar. Então, vou brigar com quem? Ninguém. Aconteceu, paciência.
o SUCESSO
NA IMPERATRIZ TEM NOME E APELIDO
José Inácio dos Santos veio da Paraíba para o Rio com a família tentar a sorte aos 10 anos. Filho único, aos 15 já era órfão de pai e mãe. Mas, na Imperatriz Leopoldinense, onde está desde a fundação, em 1959, Zé Katimba (apelido de infância, porque era brigão) representa vitória. Seu "Martim Cererê", de 1972, com Gibi, levou o nome da escola a todo o país, na trilha da novela "Bandeira 2", da Rede Globo. -"O teu cabelo não nega - Só da Lalá", de 1981, com Gibi e Serjão, embalou o primeiro título da verde-e-branco sozinha. O sucesso vai além do carnaval com parceiros como Martinho da Vila, conforme o depoimento em 14 de março de 2009, na companhia do filho Inácio.
Meu nome é José Inácio dos Santos, sou paraibano. Nasci em Guarabira e vim pra cá com 10 anos. Tem um fato curioso que é eu ter duas idades. Uma no documento, que é 1942, e a outra em que tenho 10 anos a mais para não servir o Exército. Eu tenho, nascido, no documento, 1942, 11 de novembro de 42. Vim pra cá e a minha primeira experiência com o samba foi carregando água, descendo o morro e a garotada tocando. Porque o meu pai era sanfoneiro, cantava desafios e fazia literatura de cordel. Mas eu fui picado pelo samba.
no campo, na lavoura? Na lavoura. E ao mesmo tempo ele fazia cordel? Fazendo cordel. Quais são as suas lembranças no sertão ouvindo o seu pai?
Por que a familia veio para o Rio?
Apesar do sofrimento, a criança sofre, fica na alma, né? Mas tem uma lembrança muito boa, que é ouvir meu pai cantando, tocando, e inclusive essa herança musical, minha e do Inácio, é do meu pai.
Lá é muito difícil até hoje. O sertão da Paraiba ainda continua com os mesmos problemas, falta d'água, falta de recursos. E o meu pai veio primeiro e depois veio a família. Eu sou filho único.
o senhor acha que ele ser repentista, violeiro, influenciou o seu samba?
o seu pai
Com certeza. E eu percebo que nas minhas melodias tem aquele som da sanfona, da viola. Ouvi muitos anos, né?
era João Inácio dos Santos.
José Inácio dos Santos. E sua mãe? Josefa Francisca dos Santos. Lá na Paraiba, em Guarabira, eles trabalhavam
Ele ensinou o senhor a tocar alguns dos instrumentos que ele tocava, a ser repentista? Não. Nunca tive curiosidade. Achava bonito o som - achava não, ainda acho - da sanfona. Ele tinha uma sanfona que se chamava pescoço de égua,
Rio de Janeiro
que era de oito baixos, aquela pequenininha. E aquilo, o som é muito maneiro, o som da viola também é fantástico e eu fiquei com isso. Acho que isso ai está registrado na minha mente, na minha alma, no meu sangue.
o senhor acompanhava o seu pai às feiras e às festas onde ele se apresentava? Muitas vezes. Eu ficava orgulhoso, achava um grande barato. Inclusive, a viola do meu pai era cheia de fitas. Porque eu nem sabia da importância daquelas fitas, achava cafona. Mas nâo, cada vitória, ele amarrava uma fita, todas as pessoas. Depois, eu fiz até uma música para o meu pai, que é "Viola de fita". Até hoje o senhor mantém contato com a literatura de cordel. Costuma voltar para ler? De vez em quando, não tem uma constância, porque a gente vai perdendo o hábito. E como era a sua mãe? Uma dona de casa, simples como as pessoas da roça. Bonita, bem branca. Meu pai negro. E eu nasci desse fruto, dessa miscigenação. Ela gostava de música, gostava da música do seu pai? Gostava de música e do meu pai. Era apaixonadíssima pelo meu pai. Antes de vir para o Rio de Janeiro, a família foi para o litoral da Paraiba, certo? É. Como é que foi a vida ali? Uma mudança total. Mas assim ficamos tipo vida cigana, ficando pouco tempo em cada lugar. Porque a intenção mesmo era chegar ao Rio. E ai, o senhor estava com 10 anos quando desembarcou no Rio. Dez anos. Pra que bairro vocês foram? Pra Niteróí, pro Largo da Batalha, que tinha uns amígos do meu pai. De lá eu fui pro Morro da Formiga. Depois, o Morro de São Carlos. No São Carlos, eu fiquei mais tempo e, depois, fui para o Morro do Adeus.
Abril 2013
ano 5
número 4
Meu pai trabalhou de servente de pedreiro e terminou sendo vigia de obra. E a sua mãe? A minha mãe morreu cedo. Logo que chegamos aqui.
E teve algum professor no morro, alguém que o senhor tenha como referência ou não?
E aí, ficaram o senhor e o seu pai. Em seguida meu pai também faleceu.
o senhor
tinha que idade nessa época?
Eu acho que tinha uns 15. Foi tudo muito rápido, não tenho muita noção assim, porque, inclusive, eu fiz um tratamento e esqueci muita coisa. Eu esqueci a música, esqueci tudo. Porque eu, filho único, perdi a familia por parte de pai, toda. E, no ano seguinte, perdi por parte de mãe todos.
o senhor
fez tratamento onde?
Descobri depois ...
um
médico
no Antônio
samba? Assim, eu descendo o morro pra pegar água e a garotada descia batucando, cantando o samba e eu fui naquela ali e estou até hoje. Bendita lata.
Não, a minha referência é Silas de Oliveira, Cartola, Nelson Cavaquinho. Fomos amigos, eu andava muito, tomava porres e mais porres com o Nelson. Nunca fiz um samba com o Nelson. Quando o senhor pensa em criar um samba, a melodia vem junto com a letra? Às vezes sim, ás vezes não. Às vezes rola uma letra, depois eu coloco a música. Mas normalmente, já vem música e letra, e já vou fazendo.
Pedro,
o seu primeiro samba, o senhor compôs aos 12 anos, não é isso?
Niterói.
É, foi ... Eu nem sei, rapaz, direito.
Niterói. Depois, eu fui a Copacabana, eu não lembro agora a rua. E depois, Niterói. E fiquei 13 anos fazendo tratamento.
o senhor lembra como foi o primeiro samba ou ele ficou para trás?
Isso desde a adolescência vida adulta?
até iniciar a
É. Depois eu voltei novamente a tomar aqueles remédios pesados, porque deu uma recaída. Eu já estava até casado com a mãe do Inácio. Mas foi só uma giletada no casco do navio. Quando os seus pais morreram, o senhor foi trabalhar? Trabalhei de camelô. E ai, comecei a correr, porque eu achei que tinha que mostrar as minhas músicas. Mas era muíto difícil, porque, hoje é difícil, mas antigamente era muito mais difícil porque você tinha que mostrar uma música, tinha que conseguir um músico ou um maestro pra escrever a partitura e, aí, esse cantor se interessar e mandar um cara tocar um piano pra tocar a melodia e o cara aprender a música. Era muito difícil, muito dificil. E eu fiquei dez anos correndo atrás pra gravar a minha primeira músíca e vim gravar através da Imperatriz, que foi o "Barra de ouro, barra de rio, barra de saia".
O primeiro samba foi o Martim Cererê, que era uma outra música. Não, esse dos 12 anos. É.
Já era o Martim? Não era o Martim Cererê, mas era a melodia. É, porque em 72 tinha uma novela na Globo, que ia ser "Bandeira 2", e eu fui num samba que tinha em Bonsucesso, no clube e, com o samba pronto que ia apresentar no dia seguinte, ai cantei pro João Nogueira. "João, ouve aqui". Era um samba grande e o tempo era curto. Eu falava "Fala, Martím Cererê" uma vez só e passava batido. O João falou: "PÔ, rapaz, se eu fosse você, eu falava aqui mais vezes "Fala Martim Cererê". Eu fiquei com aquela pilha. Fui embora, fui lá pro barraco e, ai, fiz um outro samba, que era essa melodia que já estava pronta, dos 12 anos, que eu botei a letra. Então, o samba dos 12 anos vira o "Martim Cererê", mais tarde, anos mais tarde.
ao Morro do
Foi o samba-enredo que o senhor ganhou na Imperatriz.
Mais tarde, a melodia.
Ah, eu acho que eu já estava com uns 12, 13 anos.
É, Imperatriz, em 71. E dali, comecei a gravar, as portas se abriram.
E a melodia o senhor guardou esse tempo todo, desde os 12 anos, até 71?
o seu pai
Mas como é que o senhor descobriu
Guardei, porque quando você é criança, jovem, hoje é que fica. Às vezes volta a melodia, ás vezes não. Eu preciso de um grava-
Com que idade Adeus?
chegou
trabalhou em quê nessa época?
o
dor, porque tem tanta coisa na cabeça, que você acaba ... Mas, com a mente fresca ... Como foi a fundação em 1959 da Imperatriz? Eu parava ali naquela esquina, acho que era Rua 4, depois passou a ser Euclides Faria. E eu parava ali, mas as pessoas já eram de bem mais idade e eu sempre gostei de conversar com as pessoas mais velhas. Eu aprendia muito e continuo aprendendo e eu fui ali ... Quando fundou a Imperatriz, não é que eu fundei e dei a idéia ("Vamos fundar"). Eu estava na hora certa no lugar certo e frequentava ali, era amigo das pessoas. E assim surgiu. Eu dei a minha mocidade, dei a minha vida ali, empurrando carro numa época em que não tinha nenhuma empresa pra buscar alegoria. Às vezes, todo mundo fugia e eu ia com meia dúzia de amigos empurrando pela Avenida Brasil até chegar. E o senhor segurou a corda pra Imperatriz? Fui puxador de corda, passista, mestre-sala. Como era a experiência de ser passista e mestre-sala? Uma maravilha. Mas entre o Zé Katimba da dança e o compositor, o senhor acabou fazendo uma opção pelo compositor? Pelo compositor. Ai, em 1969, o senhor entrou para a Ala de Compositores e, em 1971, ganha o primeiro samba-enredo, "Barra de ouro, barra de rio, barra de saia ". Foi a primeira mudança nos sambas-enredo, pois os sambas eram grandes, 50 linhas, 45 linhas. E eu mudei esse samba e acho que ele tem 19 linhas. Eu recebi muita crítica na época, mas foi a única nota 10 da escola. Aí, em seguida, eu fiz o "Martim Cererê", que foi um sucesso na novela e todo mundo passou a fazer o samba menor.
o
samba de 1971 foi uma parceria com o Niltinho Tristeza? Com o Niltinho. Qual a lembrança que o senhor tem dessa composição, de dividir a parceria com ele? Ah, antigamente era bem legal. Porque não tinha grana. Então, era tudo prazer, era tudo festa. Como é que foi ter um samba-enredo ("Martim Cererê'?, que é para ser cantado no desfile, de repente tocado na TV Glo-
bo para todo o Brasil como um tema de novela? Muito legal. Seria bom que acontecesse outras vezes. Porque o samba tem que estar em todos os lugares. Tem que estar na novela ... Onde tem luxo, ele tem que estar no luxo, porque o samba é nobre. Ele tem que estar em todos os lugares porque ele é nobre. E ele é simples, como a rosa é simples. Todas as coisas simples, as palavras, as palavras mais fortes, as coisas que mudaram o mundo foram coisas simples. Escritas, ditas de maneira simples, mas profundas. O samba, ele é profundo, ele é o senhor todo-poderoso. Então, eu acho que ele deve estar sim. Tem uma novela, bota o samba lá. Se tiver chance de botar ... onde tem "Aqui só entra clássico". Então, vou colocar meu samba aqui, porque o meu samba é clássico.
não gostava muito não. Quer dizer, nem sei se é gostar. Ele não respeitava. O senhor pode dar um exemplo? O tratamento. Perdoem-me os parentes, os amigos, as pessoas que adoravam, mas era muito estrela, muito vedete, acima até do talento dele. Então, ele falava com você, você estava falando e ele ia andando. Falta de respeito ... O senhor disse então que ele não queria que seu samba fosse escolhido. Ele falou porquê? Não, eles não dão muita explicação. Dizem que não querem e pronto. Mas a escola quis, a quadra quis.
Na novela tinha um personagem inspirado no senhor. É, o Grande ateio.
o
Grande Otelo viveu o personagem. Como foi a emoção de ter um ator da grandeza do Grande Otelo ... Uma emoção muito grande. Ser representado pelo Grande ateio é uma coisa de Deus. E fizemos amizade. "Martim Cererê", espalhado e cantado no Brasil todo, deu dinheiro para o senhor? É, deu um dinheiro, não deu o que deveria dar, mas deu.
o
senhor tem uma sucessão de vitórias de sambas-enredo na Imperatriz: "Só dá Lalá"; "Estrela Dalva"; "Conta outra, que essa foi boa"; "Terra Brasilis"; "Eu sou da lira, não posso negar". Tem "ABC do carnaval á maneira de literatura de cordel". Eu ganhei e uma semana depois trocaram. Outro samba do senhor que estourou e até hoje é cantado é "O teu cabelo não nega - Só dá Lalá", homenagem a Lamartine Babo, o primeiro campeonato sozinho da Imperatriz, de 1981. Qual a lembrança que o senhor tem desse samba e daquele desfile memorável e com um grande carnavalesco, Arlindo Rodrigues, que costumava respeitar o sambista. Eu acho que nem tanto. Eu achando que o Arlindo era um bom carnavalesco pros sambistas e o senhor tendo dúvidas. Ele era um bom carnavalesco, as alegorias eram muito bem feitas. Mas o sambista, ele
É, o povo quis, a quadra quis. E aí, as esquinas, os lugares. Na época, a gente tinha condições de tocar fitinhas no rádio. Eu saí tocando, fiz uma gravação boa e tocava. Começou a tocar e ai o samba disparou. E aí, não houve como cortar o samba, porque o outro que ele queria, que era do Dominguinhos, não cresceu. O samba-enredo, depois do estouro dos anos 70 e dos 80, tomou um espaço tão grande dentro da escola que tirou o espaço do samba de terreiro. Qual é a falta que faz para uma agremiação ter essa produção e como foi para o senhor lidar com isso? Quando explodiu o samba-enredo, as pessoas só gostam de ouvir o fácil, a moleza. Você vai num ensaio, é cantado o samba de outras escolas, os sambas que eram sucesso. E aí, não teve espaço pro samba de quadra, entendeu? E o que não renova acaba. Tem que renovar. De repente, você nem descobre grandes talentos, tem jovens aí fazendo sambas belíssimos, músicas belíssimas em todos os ... Mas fora das quadras. É até na escola, mas ele não tem a oportunidade de mostrar, de colocar na quadra, cantar, porque não tem espaço pra ele. E o senhor, como compõe os seus sambas de meio de ano depois de a quadra ter virado um espaço que é praticamente só do samba-enredo? Eu não fiz. Não tinha como cantar. Eu continuei fazendo uma coisa que eu sempre fiz que é ... A minha obra basicamente é sobre a mulher. Porque eu tenho uma admiração muito grande pela mulher, um ser especial. Então, da recém-nascida á mais velha, eu tenho esse espírito, porque até Cristo nasceu
da mulher. E essa produção é muita reconhecida pelos cantores que gravam muito o seu trabalho, gravam muito o senhor. Entre eles um de seus parceiros, que é o Martinho da Vila. É o meu parceiro mais constante. Como é compor com Martinho? É muito prazeroso, muito bom. O barbudo é danado. E a gente tem uma afinidade, tanto é que somos os parceiros mais constantes um do outro. Por isso, às vezes a gente faz por telefone. Ele faz a primeira e o senhor bota a segunda, ou o senhor faz a letra e ele faz a melodia? Às vezes sim, às vezes não. Às vezes eu jà deixo uma espinha pronta e ele vai lá e completa. E é assim, uma troca muito legal. Poucas vezes nos sentamos e fizemos um samba juntos, sentados, escrevendo. Juntos, acho que umas duas vezes, três vezes só esses anos todos. Essa força de resistência e de reunião do samba que aparece nessas composições, o senhor já passou para o seu filho Inácio. Apresente o Inácio para a gente e fale como é essa transmissão de... O Inácio é como eu disse no inicio, das minhas criações é a minha melhor criação. Ele é meu parceiro. Eu disse: "Procura outros parceiros, se não vão dizer que eu estou fazendo para você". Inácio, fale do seu pai então. Eu sou muito fã de tudo o que ele faz e é gostoso você poder se meter um pouquinho na vida de quem você é fã. Então, eu vivo essa felicidade de hoje ouvir isso tudo que ele já construiu, essa história e, de repente, hoje, quando ele vai criar alguma coisa, me pedir uma opinião. Quando você precisa pesquisar alguma coisa de que você não tenha conhecimento direto a partir da experiência de vida com o seu pai, ou com os amigos do seu pai, com os companheiros ilustres, onde você busca informação? Eu procuro perguntar. Se o meu pai não souber responder, ele vai me dizer alguém que vai responder. Então, eu tenho essa enciclopédia viva em casa. Mas, se não, eu acho que a internet é um grande meio de pesquisa, porque tem uns sambistas apaixonados que são donos de blogs.
Mas você, Inácio, sente falta de não haver um ou mais núcleos, seja nas escolas de samba, ou seja centralizado, que registre a história, que registre a fonografia, as gravações, as fotografias, os depoimentos desses sambistas tradicionais? Com certeza, falta e eu acho que esse material está sendo feito para isso. Eu queria agradecer a oportunidade à Nilcemar, que faz um trabalho maravilhoso que eu acompanho desde o inicio aqui no Centro Cultural Cartola e vejo o sofrimento que ela passa para conseguir que as coisas aconteçam. Porque tudo precisa de dinheiro e nem sempre se tem dinheiro para comprar um livro, para ... Então, essas iniciativas têm que ser aplaudidas de pé por todos nós, brasileiros, que temos que amar o samba, que é nosso patrimônio cultural. Como é ser parceiro do seu pai? É bom, mas é ruim também. Eu vou pedir uma opinião a ele. Se ele discordar e eu achar que estou certo, vai ser meio complicado. Mas é uma delicia. Zé, como é hoje a sua relação com a Imperatriz? Hoje, está muito boa. Eu estou lançando um livro, a minha biografia, que o Fernando Paulino escreveu e coincidiu com a comemoração dos 50 anos de Imperatriz e eu falo muito da Imperatriz. A minha relação é muito boa. Fui até homenageado, sai no último carro e está muito legal. Eu me afastei em 1999. Esse periodo em que esteve afastado, o senhor passou pela Viradouro? Passei pela Viradouro. Falei: "Eu vou brincar de fazer samba aqui". Fiz um samba na Beija-Flor. A Imperatriz é um pedaço da minha vida, uma sementinha que ajudei a plantar. (Inácio): Eu continuo lá e vou ver se este ano arrasto ele pra disputar comigo. Vai escrever samba? Vamos ver, vamos ver. Zé Katimba, uma mensagem para as novas gerações de sambistas. A minha mensagem é a seguinte: não desista nunca, não vá pelo caminho mais fácil, Isso aqui não estaria sendo realizado se tivesse ido pelos caminhos fáceis. Exatamente, o mais dificil é falar de cultura, fazer cultura, esse trabalho para dar uma condição para os jovens, para as pessoas todas, para todos nós. Então, não desista. Vá á luta e acredite nos seus sonhos. E união, entendeu? Precisa de mais união. Foi criada a Liga, a Liga organizou o carnaval. Ai o carnavalesco veio e
são unidos. Mas o sambista não está unido. O sambista é a força maior e a parte maior. Mas não estão unidos. Eu acho que o jovem tem que pensar nisso e se preparar. Prepare-se. Vá tocar uns instrumentos, vá estudar, vá se preparar. Estude. Amanhã, se for preciso ele administrar sua escola, está preparado para administrar. Criar uma consciência política, social, econômica. Ter uma visão e focar em cima do samba, que a nossa melhor oração é o nosso samba. Uma mensagem para as mulheres que o senhor canta nos seus sambas. Que continuem lindas, maravilhosas; continuem sendo esses seres especiais, uma maravilha.
Rio de Janeiro
Abril 2013
ano 5
número 4 .
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UM QUILOMBOLA DE INFLUÊNCIA RURAL NA CIDADE GRANDE Antes de dizer o nome, Wilson Moreira Serra lembrou seu sucesso "Senhora liberdade", no depoimento em 17 de outubro de 2009. Faz sentido. A música fala por esse carioca de Realengo, de 12 de dezembro de 1936, que traz no sangue o jongo e o calango do interior do Estado do Rio, além de vivência na Zona Rural da cidade na década de 1950. Autor de "Ao povo em forma de arte", clássico da Quilombo, agremiação fundada por Candeia, levou sua tradição à mídia na voz de cantores de sucesso como Clara Nunes ("Candongueiro" e "Coisa da antiga") e outros tão comprometidos com o samba quanto ele.
"Senhora liberdade" é uma música minha com Nei Lopes. Ele era advogado; eu trabalhava no presidio em Bangu: "Vamos fazer uma música sobre o nosso lance? Eu advogado; você, agente penitenciário. Como é que a gente faz?" "Faz a letra que depois eu vou botar a música. Depois, o que faltar a gente vai fazer juntos." Foi o que aconteceu. Um dia, eu estava fazendo um confere, contando a massa. Ai, um daqueles presos disse: "Ih, o caido fez uma música legal". Ai, o outro disse pra ele: "Caido, nada! Essa música é do chefe, eu já ouvi". "Que do chefe, nada! O chefe lá ia fazer uma música assim!" Ai, quando terminou, falou o meu nome e o do Nei. Ele veio correndo e me deu um abraço e disse: "Chefe, tenho música também. Pode me dar uma força?" "Quando você sair daqui a gente vê qualquer coisa". Ai, no banho de sol ele me mostrou umas letras dele. Aí, eu falei pra ele: "Quando você sair daqui, vou mandar você ir num lugar aonde vai muito artista, o Ponto dos Compositores". Sabe que ele foi lá e gravou com o Bezerra da Silva?
coisa, aquela "Coisa da antiga" ("Na tina ...") foi muito difundida por ai. Tem até nome de casa de espetáculo em Niterói, uma casa chamada Coisa da Antiga, que é muito boa, em Itaipu. Eu vou até trabalhar lá em novembro. É o aniversário da casa. Tem o "Candongueiro", que é um jongo, um misto de jongo e samba. Ojongo é uma referência muito forte para a formação do samba, não? É. SOU neto de jongueiro. O meu avô jogava caxambu, dançava jongo. Minha avó ficava muito apavorada com ele, minha mãe contava. Dizia que ele saia com a sanfona nas costas e só voltava dois, três dias depois. E ele era baiano. Onde e quando o senhor nasceu? Eu sou Wilson Moreira, nascido e criado em Realengo. Muita gente pensa que sou mineiro. E aí, em 12 de dezembro de 1936 ... Seu pais são mineiros?
A cultura afro-brasileira trabalho, não?
é importante no seu
É. Graças a Deus. A Clara Nunes gravou muita
Minha mãe, mineira; meu pai, do Estado do Rio, de Rio Bonito.
Rio de Janeiro
Abril 2013
ano 5
número 4
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Qual o nome deles? Francisco Moreira Serra e Hilda Balbina da Conceição. A sua mãe veio pro Rio com que idade? Muito novinha. Meu pai pegou, se casou com ela e trouxe pra cá. E ela não perdeu o sotaque.
muito simpática. Todo mundo ia pra lá. Ai, o Seu Natal era sócio-proprietário da Mocidade e não saia de lá. O Jamelão ia pra lá, uma coisa de louco. Tinha grandes compositores. Eu fazia parte daquele planteI. Tinha o Toco, Seu Eurico Costa. Mestre André.
Como foi a sua infância em Realengo?
Era a coqueluche da época. Todo mundo ia lá pra cima pra ver a bateria da Mocidade, a bateria nota 10.
O maior barato. Joguei muita pelada, vendi muita laranja nos campos de futebol.
Ai, o Seu Natal ouviu o senhor.
o
senhor e os seus irmãos? Quantos irmãos? Quatro.
o senhor é o mais
velho?
A mais velha era a Julieta. Na boa época, eu joguei meu futebol lá em Realengo, fui beque central. Cheguei a jogar com um cara que se tornou profissional, chamado Canário, criado com a gente em Realengo. Jogou aqui no Olaria e foi para o América. Depois, pra Espanha.
o seu
(E disse:) "Vem cá, garoto, você não quer ir para a Porleia, não?" "Seu Natal, eu gosto muito da Porteia, desde criança, mas sou daqui. Um dia, quem sabe eu apareço lá?" Foi o que aconteceu. Um dia, houve um problema comigo lá na Mocidade.
sonho era ser jogador?
O meu pai era desportista. Eu cheguei a treinar no Bangu. Era molequinho. Mas não deu. Jogar bola é dificil. É bom, mas você entrar num clube grande é difícil. Cheguei a treinar no Bangu.
Aborrecimento? É. Aí, eu fui assistir a uma reunião na Porlela a convite de um diretor amigo meu e eles me receberam de braços escancarados. O Seu Natal estava sentado ali. Era o presidente de honra. Ele falou: "Esse é o garoto que eu convidei pra vir pra cá". Aí, o Seu Natal falou assim: "Vai assistir á reunião dos compositores". Aí, eu fui assistir. O presidente da Ala dos compositores era o Picolino. "O senhor veio nos visitar?" "Visitar e ficar." E eu estou lá na Portela até hoje. Saio com a velha guarda.
o senhor
tinha que idade naquela época?
na mesma rua em que eu morava. Aí, o irmão da noiva dele disse: "Wilson, você fez um negócio bonito aí. Por que você não mostra ao Paulo? Mostra ao Paulo pra ver o que ele fala". Aí, eu peguei e mostrei. Ele apareceu lá um dia. "Paulo, eu estou com um negócio aqui. Não sei se dá pra mostrar pra alguém." "Canta aí pra eu ver." Eu cantei: "Bahia, me recordo com amor/ Quando vejo alguém falar/ Terra de São Salvador". "Isso é muito bonito. Você não canta isso aí por quê?" "Sabe o que é, Paulo? Eu não sei. Será que o pessoal vai achar legal?" "Vai achar sim". Eu, então, era da Unidos da Água Branca, mas lá eu tocava somente. Aconteceu o seguinte: um dia, um diretor da Mocidade Independente chegou lá na Unidos da Água Branca e falou assim: "Boa noite, gente! Vim assistir á reunião de vocês. Escuta, a Mocidade vai desfilar na cidade. Como vocês são verde e branco ... Vocês desfilam em Realengo, não?" "Desfilamos." "Por que, depois que vocês acabarem de desfilar, não se juntam com a gente, descem e a gente faz um grupo só pra ver se traz o carnaval aqui pra Padre Miguel?" "Tá legal." Ai, o presidente da nossa escola, a Unidos da Água Branca, concordou. Acabamos de desfilar e todo mundo desceu no trem. Fomos pra Praça Onze nos juntar á Mocidade. Aí, eu já fiquei integrado na Mocidade. É por isso que eu me considero um dos fundadores. Foi em 52,53. Mas a Água Branca continuou a existir? Acabou. Porque todo mundo gostou da Mocidade e foi indo pra lá.
40 e poucos. Com que idade? Meus 17,18 anos. A familia era musical? Era de gostar de música, mas não de sair tocando. Quem saiu mais pra música fui eu. Os meus outros irmãos, não. Eles gostavam de ir me ver, quando eu fui um dos fundadores da Mocidade Independente de Padre Miguel. Então, eu cheguei a ganhar samba-enredo lá. Cheguei a ganhar dois, em 62 e em 63, eu com uns parceiros lá. Nós bisamos. Teve um ano - eu já estava deixando a escola que tinha um samba de terreiro chamado "Até breve". Esse samba foi o maior barato. A Mocidade desceu pra desfilar. O desfile estava sendo da Candelária pra Central do Brasil, naquela época. Foi nos anos 60. Ai, eu estava com o samba de terreiro, a escola com o enredo, que eu não lembro qual era, e o povo gritava "Até breve!". Um samba de fechamento de desfile: "Até breve, amável povo da cidade/ Que tanto me orgulha/ Venho de lá das quebradas ..." Ai, o povo todo cantando e a gente se despedindo com um lenço branco na Central. A Mocidade era uma escola
E a sua mãe era carnavalesca também? Lá em Realengo, onde eu fui criado, as pessoas faziam bloco de carnaval, a vizinhança saía brincando. A minha mãe gostava, ia pra rua e começava a sambar. Qual foi o seu primeiro música?
contato com a
Eu ia assistir muito ensaio. Lá em Realengo tinha umas escolas chamadas Unidos da Coritiba, a Voz do Orion, Unidos da Água Branca, onde eu me identifiquei mais. Comecei tocando tamborim e surdo. Tinha também uma escola em Realengo chamada Os Três Mosqueteiros, num lugar chamado Largo do Golfe. Eu ia assistir muitos ensaios lá e via aqueles caras fazendo os sambas. Quando voltava, eu vinha cantarolando. Um dia, me vem na mente a ideia de fazer um samba. Eu fiz aquele negócio e mostrei a um amigo. Ele morava no Engenho Novo, chamava-se Paulo Brasão. Esse cara foi diretor, compositor da Vila e ficou conhecido como presidente eterno da Vila Isabel. Tinha uma noiva em Realengo,
Havia sambas cujo refrão a escola conhecia, mas que tinham um improviso pelo mestre do canto? Exatamente, era o mestre de canto. Tinha o refrão, que as pastoras, todo mundo cantava. Lá em cima, o outro respondia. Aí, veja só, depois que eu tomei coragem, fui conversar com o Seu Eurico Costa sobre aquele samba que o Paulo Brasão me falou. "O que o senhor achou do samba?" "Muito bom. Você tem cópia?" "Não." "Eu vou mandar fazer as cópias e você pode cantar no terreiro aí. Mas você tem que se associar à Ala dos Compositores". Isso em 50 e pouco. Entrei para a Ala dos Compositores da Mocidade, onde tinha Seu Eurico, Ary de Lima, Seu Aloísio, Toco, que era o vencedor de samba-enredo lá todo ano. Tinha o Arsênio Isaías. Tinha um rapaz que tinha o mesmo problema meu. Estava com vergonha de cantar. "Eu não sei cantar direito, você pode ser o meu parceiro. Vamos fazer uns sambas aíT "Vamos." Eu não sabia como fazia samba de parceria, não sabia como era esse negócio. Eu já tinha feito aquele e ele me convenceu a ser parceiro dele. O apelido dele era Da Volta.
Antes de ser compositor, o senhor foi da bateria. Como foi esse contato com os instrumentos e qual o senhor gostou mais? Eu gostei mais do tamborim e do surdo. Você sabe que eu andei treinando no surdo da bateria do Mestre André?
samba do Rio precisa?
E tinha uma musicalidade própria lá?
Sou um dos fundadores da Quilombo. Foi o seguinte. O Candeia ficou muito contrariado, muito chateado com o rumo que as escolas de samba estavam tomando, aquela Hollywood.
Tinha muita sanfona, rolava muito calango. Eu fui a um casamento de calango lá em Campo Grande, baile de calango, desafio de calango. Um dizia para o outro. Foi aí que veio aquela "Coité e cuia" minha ("Na coité bebi cachaça .....), que eu fiz com o Nei Lopes. Influência que eu tive de parentes meus que eram calangueiros em Paraíba do Sul. Meu tio tocava sanfona de oito baixos, cantava um calango bom, rapaz. Meu primo Paulo de Paraíba do Sul tocava viola de quatro cordas, cavaquinho e sanfona.
A alegoria substituindo Ao compor, letra e melodia nascem sempre juntas ou já aconteceu de uma letra vir primeiro? Sempre juntas. Se bem que eu sou muito melódico, mas nascem sempre simultaneamente.
o
terreiro das escolas era um espaço muito importante até do ponto de vista da energia que fluia entre as pessoas por conta dessa ligação com o chão, com a terra. A poeira mesmo. E a árvore. Muitas escolas se formaram em torno de árvores. É. Era Unidos da Tamarineira, era linda essa escola. E não só as escolas, terreiros de samba. Se a gente pensar no Cacique de Ramos, que tem uma árvore. Se a gente não pensar que tem uma árvore, não é o Cacique. É o símbolo. E não é só um simbolo visual. É um simbolo de energia. Porque a árvore, aquilo planta a raiz e isso cresce, abre copa e frutos. Maravilha. Você sabe que eu chegava em casa (vindo da Mocidade) com os pés todos cheios de poeira. Minha mãe falava: "Vai tomar um banho, tirar essa sujeira. Não vai deitar assim não". E os pés das pastoras batendo no chão de terra produziam um som que casava, porque era mais cadenciado, com o de uma bateria mais consistente, que ainda usava pele de animais, de som menos agudo que o de hoje, de material artificial. Você sabe que tinha um camarada na Portela chamado Jaburu. Era um diretor de harmonia e partideiro. Ele era chão mesmo. Andava com uma varinha na mão e na hora de cantar, com uma varinha, ele só: "Não tira o pé do chão". Qual a importância da Quilombo (escola fundada por Candeia) para o senhor? E há a possibilidade de uma nova Quilombo? O
o sambista.
Aí, teve a necessidade de querer competir com a Beija-Flor. Nunca chegou lá. O que aconteceu? Fez a Quilombo, que foi a maior coisa que apareceu naquela época, nos anos 70, 75. Um dia, eu estava na casa do Candeia e a Raquel Trindade, filha do Sola no Trindade ... Ele falou: "Estou esperando uma mulher aqui. É filha do Sola no, que vai trazer um tema pra gente desfilar". Aí, a mulher chegou com "Ao povo em forma de arte". Eu falei: "Candeia, eu vou lá pra Ala dos Compositores e fazer esse samba com o Nei, tá legal?" Bom, fizemos e fomos competir com um bocado de sambas. Ganhamos. O Candeia ficou em casa. Ai, o Jorge Coutinho ligou pra ele: "Candeia, quem ganhou o samba foram o Nei e o Wilson. Maravilha. PÔ, vou gravar." Aí, nós fomos pra dentro do estúdio lá, eu e Nei. O Roberto Ribeiro regravou, todo mundo gravou esse samba. A Quilombo virou coqueluche. E a gente desfilava em Rocha Miranda, Coelho Neto, e arrumou um jeito de desfilar na Rio Branco nos dias alternados das escolas de samba. Era um estouro. E aí, veja só, de repente, em 79, o Candeia morre. Ninguém soube como ia fazer aquilo, como ia ser. O senhor falou que viajava para visitar os seus parentes no interior do estado e muitas vezes lá surgiam as músicas. A melodia dos seus sambas lembra muito músi. cas rurais. Quando era pequeno, morei num lugar lá em Realengo chamado Raul Leite. Tinha umas fazendas, era bem rural. Tinha porteira, tinha muita vacaria. Eu tenho uma música chamada "Canção de carreiro", uma canção rural, gravei no disco "Okolofé". Quem participou da gravação, gostou muito e falou pra botar a música no disco foi o Maurício Carrilho e o Rafael Rabello. Fizeram um trabalho tão bonito de harmonia e eu cantando.
Desde criança o senhor convivia com esses parentes seus e com essa música. Antes até de entrar nas escolas de samba? Bem antes. Eu ia com a minha mãe lá para visitar. Aí, eu tô vendo eles cantarem, apreciando, e isso vem na cabeça da gente. E deu vontade de o senhor, criança, ser calangueiro? Não. Engraçado. Eu aqui no Rio e a lembrança sempre lá. E como foi misturar essa herança de musicalidade afro.brasileiro, africana, o calango, o jongo do interior do estado, com o samba? A influência eu acho que veio de todos os meus parentes mesmo. Eu, quando era pequeno, ouvia muito rádio, muito Pixinguinha, muito João da Baiana. Ouvia muito mesmo. Eu cheguei a gravar. O Henrique Cazes fez uma gravação na orquestra Brasilia. Aí, me perguntou: "Seu Wilson, o senhor quer gravar duas músicas do Pixinguinha e Gastão Viana?" "Gravo." Como é a sua relação com a religião, com
a fé? Eu sou católico e espírita. Gosto muito de rezar e gosto muito de bater o meu tambor.
Como era o nome do lugar?
Quando o senhor compõe um samba de fundo religioso, de exaltação às entidades, aos orixás, que tipo de pesquisa ou pedido de licença o senhor faz pra essa composição?
Raul Leite. Sabe aquele lugar onde tem o (hospital) Olivério Kraemer? Era ali. Aquilo tudo era fazenda, eram laranjais. E tinha uma porteira logo ali na Rua Nilópolis, que vai para o Olivério Kraemer. Eu morava lá no fundão. Na época, era Avenida das Bandeiras. A fazenda desembocava assim como quem vai para a avenida, barro puro. Isso em 40, mais ou menos.
Tem coisa que a gente não pode estar cantando. Jongo, por exemplo, é uma coisa muito séria. Depende do jongo. Tem ocasião em que gente vai cantar um jongo e cai no chão até se manifestando. O caxambu é sério pra caramba. A minha mãe contava muito isso pra gente. Ali no Império, o Seu Aniceto, quando via o Darcy, Mestre Darcy, cantando, ele falava. "Esse moleque tá brincando. Isso aí é
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'Rio de Janeiro
coisa muito séria. Ele vai vendo só. Tem que saber como é que canta isso". É verdade. O jongo que a gente faz, eu e o Nei, é uma coisa mais festiva. "O candongueiro", por exemplo, é um negócio muito bonito que a gente fez, eu e o Nei. Wilson, por que não se ouvem mais sambas de terreiro e partido-alto nas escolas? Eu acho que o pessoal está naquela ânsia de fazer samba-enredo e faz uns sem pé nem cabeça. Eu não faço mais samba-enredo. A minha linha não dá. Não dá, porque eu vou chegar e cantar daquele jeito? A bateria não vai saber me acompanhar. Já houve isso. Eu fiz um samba com o Mauro Duarte, eu falo Mauro Bolacha. Eu, ele e Walter Alfaiate, um dos últimos sambas que eu competi na Portela. Quando a gente foi cantar, dava até medo. A bateria (imita o som de bateria acelerada). Eu parei. "Péra ai, rapaziada, por favor." O diretor de bateria me esculhambou: "Que é isso, Wilson?! Você não vai cantar o samba, não?" "Desse jeito, não." "Mas é assim". Cortaram o nosso samba.
Abri12013'
ano 5
númeró 4
com o samba-enredo de hoje em dia? Sabe o que veio atrapalhar isso tudo? Cronometragem. Eles querem que a gente faça um samba rápido, corrido. Vê que a bateria mudou de ritmo, a bateria não é mais cadenciada como era. O último samba-enredo cadenciado parece que foi "Os sertões". Mas e se mudarem a cronometragem? Vai mudar como? Eles acham que está atrasando. Não vê que eles empurram as pessoas? Não tem mais uma coreografia bonita do mestre-sala. O mestre-sala agora é corrido, atropelando a porta-bandeira. E o passista, mesmo bom, passista legal, tem que fazer uma coreografia bonita, o homem faz um pião. Não tem mais isso não, acabou. Por quê? Porque a cronometragem não deixa. As alas de compositores e as velhas guardas não podem, de alguma maneira, fazer com que as diretorias acordem para essa necessidade de levar de volta o samba de terreiro para a quadra?
Quando foi isso?
Seria muito bom, mas eu não sei. Se começar devagarzinho ... Lá na Portela, a gente canta na feijoada os sambas da gente.
Nos anos 80.
Mas nos ensaios não se canta. Nos ensaios não canta.
E de lá pra cá o senhor não quis mais compor samba-enredo? Não tem condição.
A escola de samba está deixando de ser escola de samba?
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Até parece, dá impressão. Sabe o que é? É negócio de midia. Atrapalhou tudo.
que o senhor acha que está de errado
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I'
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o que
o senhor diria para um jovem que quer começar a compor samba de terreiro ou que quer aprender a improvisar o partido-alto? Esse negócio de improviso, rapaz, esse negócio vem de berço. Eu, por exemplo, não faço improviso. Faço partido-alto com ele já montado. O improviso, eu gostava de ver. Ficava perto daqueles antigos, como Padeirinho, Jorge Zagaia, Xangô da Mangueira. Então, eu nunca me atrevi a cantar. De repente, eu vou cantar um verso dos outros, vou cantar errado, não dá. Então, eu faço os meus sambas românticos, assim de terreiro. Mas, se um jovem procura o senhor pedindo um conselho sobre quem deve procurar para fazer um partido-alto, um samba de terreiro. O que o senhor aconselharia? O que eu falo é o seguinte: faz sim, faz um samba de terreiro, um samba de raiz, e canta nessas rodinhas que tem. Na escola de samba não vai não.
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Rio de Janeiro
Abril 2013
ano 5
número 4
A DETERMINAÇAO
DO HOMEM QUE CRIOU UM IMPÉRIO DO SAMBA
Quando se revoltou contra os desmandos de Alfredo Costa no Prazer da Serrinha, Sebastião de Oliveira organizou um abaixoassinado em favor da fundação de uma nova escola de samba, o Império Serrano. É de autoria dele também o samba lembrando o episódio que foi o estopim da criação da verde-e-branco: em vez do samba de Mano Décio da Viola e Silas de Oliveira, a escola cantou, por imposição de Alfredo, outra composição. Num grande esforço de memória, Sebastião Molequinho prestou seu depoimento em 28 de novembro de 2011. Na época com 91 anos, ele precisava da ajuda das filhas para se lembrar do passado.
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A Serrinha em Madureira?
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Era instrutor de obras, construía casas.
É. E lá o senhor passou toda a sua infância? Toda a minha juventude.
Sua mãe trabalhava fora também? Não.
o senhor E qual foi o dia do seu nascimento?
tinha irmãos?
Muítos.
Dia 23 de outubro. Quem eram os seus irmãos?
Eu nasci na Serrinha.
De que ano? 1920? 1920 (O entrevistador havia pesquisado a data). Como é o nome do seu pai? Francisco (Zacarias) de Oliveira. E a mãe? Etelvina ... (as filhas ajudam a lembrar o nome). Eles vieram de Minas e se localizaram em Madureira. Aí é que foram se casar. Lá em Minas eles não eram casados. Eles vieram a oficiar (oficializar) a vida deles aqui no Rio. Seu pai trabalhava em quê?
(Filha responde pelo pai) Os irmãos do meu pai eram João Gradinho (Gradim), que era o mais velho, que foi presidente do Império também; Alcides, que era o 8ita, que foi diretor de bateria, foi o que fez as baterias; tia Maria, tía Eulália; tia Símplícia; tia Conceição, que era tia Ceição; e tio Tinoco, que eu não conheci, e um outro tio que eu também não conheci. Quais são as suas lembranças do Morro da Serrinha? Tinha rodas de samba, de batuque, como era? No terreiro da minha casa, que o meu pai organizou, a gente de noite cantava as modinhas. Graças a Deus, eu cantava também muito bem. Eram rodas em que se cantavam muitas modi-
nhas? Canções? Cantava modinha e depois fiquei fanático também nas músicas das escolas de samba. Naquele tempo não havia escolas. Eram blocos, não? O meu pai formou três blocos: O Três Jacarés, o Bloco da Lua e o Primeiro Nós. Então, tinha as batalhas de confete, e eram organizadas pelos políticos do lugar, como Edgard Romero. Então, meu pai dava ordem no coreto: "Enquanto o bloco do Chiquinho não passar, vocês não podem encerrar o julgamento." Tinha concurso dos blocos? Tinha. E o nosso bloco é que ganhava. Não só era muito organizado, mas também muito famoso. "Enquanto o bloco do Chiquinho não passar, vocês não encerram". Ai depois que o nosso bloco passasse, ia a batalha de confete. Iniciava a batalha de confete?
Arranjava pra trabalhar no Cais do Porto, fazer descarga e carga e embarque no navio. E nós ficamos muito conhecidos no Cais do Porto e muito estimados, porque as pessoas que se aproximavam tinham motivo. Chegou a um ponto em que o Aniceto fez uma greve. E naquela época não podia fazer greve. Ele fez uma greve, parou o Cais do Porto e ele venceu a greve. Conseguiu o que queria? Conseguiu.
A maioria trabalhava na Resistência (Sindicato dos Arrumadores). A estiva era um sindicato e a carga era movimentada pela estiva e pelo Sindicato dos Arrumadores. Então, em Madureira, na Serrinha, tinha muita gente que trabalhava no Cais do Porto, nos Arrumadores, e era um grupo muito forte. Nem só naquela organização do Cais do Porto, como dali saiu pro carnaval. Como foi a fundação do Império Serrano?
O senhor foi pra escola?
Eu fui pra escola, mas ...
Seu Alfredo era o dono da Serrinha (escola de samba Prazer da Serrinha). Por motivo de ele ser dono, a família dele mandava na Serrinha. Tudo o que organizava lá...
Pouco tempo? Estudei até o quarto ano, quinto ano. E quando o senhor começou a trabalhar? Fui trabalhar depois de muitos anos, porque a orgia não me deixava procurar um trabalho. Só ficava nos batuques da noite? É. Nas rodas de samba? Samba, macumba, jongo, tudo isso eu frequentava. E eu era muito popular, porque, independente disso, eu cantava muito. E as minhas irmãs vieram também e depois cantando, a Eulália e a Conceição. E quando o senhor foi arrumar trabalho? É justamente pelo conhecimento do politico nosso (Edgard Romero). Ah/ Mas o senhor foi trabalhar primeiro na estiva no Cais do Porto? Não aí. Depois, nós passamos a trabalhar na estiva. Primeiro eram empregos que o politico arrumava. Mas que empregos ele arrumava?
E os sambas eram curtinhos? Eram.
A maioria desses integrantes, do Morro da Serrinha, trabalhava na estiva?
Aí, encerrava com a batalha de confete.
o senhor estudou?
do rapaz. Seu Alfredo escolheu descer com esse samba? Ele mandou cantar esse porque andava aborrecido com Mano Décio. E o Mano Elói era presidente da Associação das Escolas de Samba (Federação Brasileira das Escolas de Samba). Quando a escola de samba entrava, cantava um samba, aí parava ... Aí cantava o segundo, aí cantava o terceiro e saía.
Tinha que passar pela familia do Seu Alfredo. É. Tinha que passar pela organização do Seu Alfredo. E a rua onde tinha a organização do Seu Alfredo, a gente chamava de ninho das cobras, porque era um lugar muito manifestado de briga. Partiu do senhor com os seus irmãos fazer uma nova escola de samba? É. Muito embora, nós ficamos todos na Serrinha quando perdeu nosso cartaz. Mano Décio da Viola. Ele era do Prazer da Serrinha? Era. Bom compositor. E tinha o Fuleiro, que escrevia bem, mas o Mano Décio era muito popular. O Jorginho (do Império) era (é) filho de Mano Décio, e foi casado com uma filha minha. Seu Alfredo não era muito simpático ao Mano Décio (que fez um samba para o carnaval de 1946, preterido em favor de "Alto da colina", de Albano). Mas eu, graças a Deus, ainda mandava também lá. Aí, eu disse: "Seu Alfredo, qual o samba do concurso? " Então, tinha um samba de um rapaz novo que era o seguinte: "Eu vivo numa colina! Numa casa pequenina! Onde ninguém quer morar"'. Essa era a letra que tinha o samba
Tinha versos improvisados
na hora?
Tinha. Então, eu ... Ai, chegou uma hora em que vocês resolveram sair do Prazer da Serrinha? Aí, eu fiz esse samba: "Quase que eu chorei! Quando a nossa escola desfilou! Senti uma grande emoção! O meu coração quase parou! Porque o samba do concurso não era aquele! Era um samba harmonioso! Que o Mano Décio escreveu ..." Quando terminou o desfile, aí eu disse pra rapaziada: "Estou com um samba aí, pesado." Aí, cantei lá pro pessoal e pegaram, muitos gostaram. Ai eu disse: "Vamos fundar uma escola de samba?" "Ah! Que nada, você não tem condições de fundar uma escola de samba, tem que ser um elemento que tenha prestígio e tal". Eu ai eu peguei um caderno e fui tomando o nome das pessoas que ... Queriam se juntar. Aí ... Porque tinha lá o Prazer da Serrinha e tinha o Prazer, tinha outro sem ser Serrinha. Tinha era ... Raiz da Serra ... Aí, eu levei lá pra casa, falei pras minhas irmãs: "Vou fundar uma escola de samba". "Que escola de samba, nada! Você não tem condições. O seu negócio é jogar baralho". Aí, eu organizei os coroas. Os coroas eram os trabalhadores da estiva que trabalhavam no café. Falei: "Eu quero derrubar o Seu Alfredo". E ai, quando o senhor chegou em casa e disse que ia derrubar o Alfredo. Aí ...
Já tinha derrubado, já tinha fundado ... Aí, sim. Nós fomos nos reunir pra fundar a escola de samba. Mas como lá na Serrinha tinha o Prazer da Serrinha e não se encontrava um nome popular, mas tinha o Império da Tijuca ... Então, o nome do Império da Tijuca inspi-
rou o nome do Império Serrano? Sim. E as cores, como escolheram essas cores? O verde e branco veio de onde? Verde e branco era o seguinte. O Seu Antenor (que escolheu as cores) era um senhor que morava na Rua Lambari e, quando foi fundar a escola de samba, já tinha essa dele lá, que era o Leão das Serras. O Antenor lá da Rua Lambari fez (o samba): "O branco é paz! O verde é a esperança/ Diz o ditado/ Quem espera alcança/ Eu esperei e alcancei! Império tudo por ti farei." Foi uma música da fundação do Império. A gente ia se apresentar no cinema, então se cantava essa música. Ficou muito popular.
de Madureira eram um ponto de organização da Mangueira. A Neuma da Mangueira, a ... eu já nem lembro mais, esqueço o nome das pessoas ...
O senhor tem muita saudade dessa época? O samba era melhor nessa época? Ah, era.
A Zica? É, a Dica. É Zica? Era Zica, Neuma e ... Então, frequentavam muito a barraca do Império, cantavam os sambas lá da Mangueira. Mandava na situação, era a Mangueira que mandava. Nós passávamos a noite toda na Mangueira. Eu tive uma amizade muito forte com o pessoal da Mangueira. Uma escola visitava muito a outra, não? É, uma amizade.
Por que, hein? Por que é diferente hoje? Hoje não tem mais nada de samba. O samba hoje é morto. O samba naquela época se apresentava em circo, muito circo. Dava os desfiles de samba, os clubes de primeira davam muitos desfiles de escolas de samba, convidavam. Império, Portela, Mangueira. Então, tudo isso acabou. Acabou essa junção, aquela coisa de irmãos assim que era. É.
E de quem era o primeiro samba que o Im. pério desfilou?
E como se dava essa visita, quem é que ia visitar?
O Império Serrano desfilou com o primeiro samba, foi esse mesmo ...
Era um grupo.
Era uma grande familia, acabou essa familia do samba?
Compositores?
Era uma família do samba. Eu tinha o meu compadre Fuleiro, que batizei todos os filhos dele e ele batizou todos os meus filhos.
Que falava das cores? É. Mas depois foram aparecendo os compositores, foram organizando muitos sambas.
Compositores iam organizados, fantasiados com roupa de carnaval ou a roupa que se oficializava naquele local. Ia lá visitar.
Quem foram os grandes compositores Império, quem mais se destacou?
E às vezes se compunham sambas pra essas visitas, não era?
do
Mano Décio da Viola. Foi o grande compositor do Império. E o Silas de Oliveira, que era meu primo e que era um fundador do Império também. O Silas de Oliveira, a mulher dele era a Elaine (Elane) , minha prima. Então, era um grupo que formava a representação do Império Serrano.
Ah, era.
O senhor só era versador? Eu era versador, mesmo porque eu versava muito bem e...
E qual era a escola que o Império mais gostava de visitar? O Império visitava poucas escolas, porque ele era muito visitado. A sobra naquele mês pra ... vago pra ... (Poucos dias da agenda da agremiação ficavam disponíveis)
O Império foi fundado então na sua casa? Na minha casa, no meu terreno. Eu tinha essa avenida de casas lá, que o Império não tinha onde ensaiar.
Porque tinha muita gente pra receber. E como se dava esse recebimento, acontecia uma roda de samba? Como é que era o encontro?
E ensaiava lá na sua casa?
O encontro era a organização das bandeiras que vinham pra visitar a outra escola de samba. Era uma apresentação de bandeira e fui eu que criei. Eu criei porque as bandeiras vinham, a porta-bandeira, o mestre-sala, dançavam, trocavam as bandeiras. E as pessoas de mais representação, diretores, é que iam fazer aquela apresentação ali.
Eu cheguei lá e disse pra minha mãe: "Mamãe, vou derrubar essas duas partes aí pra arranjar um lugar pro Império ensaiar." Então, ela era muito carnavalesca e disse assim: "Vocês mandam aí". Aí, eu derrubei dois quartos e transformei naquela sala grande pro Império ensaiar e lá que ficou a sede dos ensaios do Império. Depois disso, o Império passou a ensaiar no Madureira Atlético Clube, que era um clube de organização popular. Ai, com o tempo, os politicos arranjaram para ceder os mercados pras escolas de samba. Aí, o Império foi organizado no Mercadinho de Madureira. Aí, ficou uma coisa grande, popular, comércio organizado. A minha mãe foi trabalhar no mercado na minha organização. Então, mudou aquilo tudo da disputa das escolas de samba. Então, as barracas
O senhor teve parceiros nas suas músicas? Não.
E o senhor achava o samba nessa época mais livre, criativo? Mais forte. O que o senhor acha do samba hoje, o samba das escolas hoje? Hoje o samba não tem mais nada. Quando falecia um sambista, tinha aquelas recepções, o sambista homenageava o outro sambista que faleceu, tudo mais. Tudo isso era muito importante. E de onde vem o seu apelido Molequinho? Foi o seu tio Manuel quem botou? Não, é qualquer coisa assim. Manuel era irmão do seu pai?
Fazer a recepção da outra? É. Fazer aquela recepção da outra. E abrir uma garrafa de champanhe. Aí, bebiam, jogavam ...
Era irmão do meu pai e era amigo da nossa familia. Aí, existia a mulher dele com um nome que eu esqueço o nome dela ... E ai, o tio Manuel que botou o seu apelido?
Batizava-se? Batizava. Acontecia aquilo. E eu fui organizador daquilo.
Ele chegou e disse: "Esse molequinho vai ser muito levado". E eu fui na dele, pois quando eu fui pequeno, já naquelas coisas em que botavam as crianças, naqueles berços, eu
era um caboclo chorão e ali eu me desenvolvi também em falar, eu me desenvolvi muito ali.
dele. "Não, eu não vou casar com ela não, não fiz mal a ela".
o tio Manuel
Ai foi preso? Ai, ele arranjou outra intimação. Eu fui ao juiz. Que na época não era obrigado a casar. Então: "O senhor não quer casar, vai para a escola de reforma". Eu fui para a escola de reforma da Ilha do Governador.
era português?
Não, ele era mineiro. Ele e a minha mãe, era todo mundo mineiro. Então, ele a toda hora chamava o senhor de Molequinho? É. Dizia: "Esse molequinho vai ser muito levado". Eu de qualquer forma entrei naquela dele, porque eu fui muito levado, eu fui namorador, eu fui jogador de baralho, negócio de jogo de ronda, fui muito sambista. Então, eu conheci muitas escolas de sambas.
voltar! Mas, eu disse que só quando o carnaval chegar". Então, o Fuleiro era um grande versador, fazia muitos sambas assim. Qual a mensagem, qual o conselho, que o senhor dá para os sambistas de hoje? Eu acho que ... era copiar um pouco das músicas, do samba do passado. Então, copiar as coisas que o sambista fazia na época passada, porque o samba de hoje está muito morto, mas podia acompanhar, renascer aquelas músicas bonitas, isso eu aconselhava.
Mas se casaram, não? Casar, não.
Copiar um pouco da beleza dos sambas de antigamente. E a dança do samba como é que está a dança do samba hoje?
Quantos filhos o senhor tem? Eu devo ter dez, né?
Ela é comum. Então, o senhor chegou a ser presidente do Império Serrano? Não, nunca fui presidente do Império Serrano não.
Onze? O senhor tem 11 filhos? E o que é o Império Serrano para o senhor?
Eu devo ter mais, né? Que o senhor conheça, 11?
Mas no ano de 1959 o senhor não presidiu o Império Serrano? Não, não era não. Mas o senhor mandava no Império. Mandar, eu mandava. Mas não ... E o senhor se casou com que idade? Casei na mesma época que a minha comadre Doralice casou. Tinha uma moça que se chamava dona ... me esqueço o nome dela, uma dona que casou. Mas como era o nome da sua esposa? Etelvina. Etelvina é a sua mãe. E a sua esposa? A minha primeira esposa foi Doralice. Com quem o senhor teve as suas filhas? Qual o nome da mãe das suas filhas? Eu casei com uma mulher brigona da Serrinha, a Irene". Brigava, a familia dela era atrapalhada. Eu fui preso, estive na escola de reforma por causa dela. Então, ela tinha o apelido de Irene Tirrim. Irene o quê? Irene Tirrim, porque o tirrim era uma coisa que os ônibus tinham quando se aproximava uma pessoa na frente. O motorista apertava lá: "Tirrim, tirrim!" E ela então apanhou esse apelido de Irene Tirrim. Eu fui preso, eu fui intimado pelo delegado de Madureira e ela tinha lá um tio que era investigador detetive. Ai me enrolaram que eu ia casar com a sobrinha
Eu tenho a Cleuza, essa aqui é a minha filha mais velha. Cleuza, Cléa, Clenir, Clenice e ... Amaury ... Acontece que quando elas nasceram, a parteira, eu botei esses nomes ... "O senhor troca de opinião, pois se o senhor continuar botando os nomes delas assim, o senhor vai botar até o fim. O senhor vai ter que botar o nome delas até o fim". Ai, nos meninos o senhor variou? Aí, variei e eu botei o nome dela de Nancy. Aí, quando a minha patroa ficou grávida, aí ela disse: "Vai nascer gêmeas". Aquele tempo era fantástico, a parteira conhecia. Aí, veio Cosme e Damião. Foi a minha alegria na minha vida de orgia, porque o batizado dos meus filhos virou terreiro de samba na minha casa. E aí, quando chegava Cosme e Damião, eles diziam: "Vou lá pra casa do Molequinho. Os meus colegas passavam (chegavam) a ficar uma semana na minha casa, porque eu já tinha os conhecidos de Minas Gerais ... E como o senhor define o partido-alto, que é o partido-alto?
o
É a minha vida. Essa aqui (uma das filhas), essa me levou pra desfilar. Eu desfilar, pra mim, é uma obrigação. Então, eu fazia tudo, eu faço tudo. Eu disse a ela: "Eu vou desfilar". "Papai, o senhor está saindo arrastado, não sei o que ..." "Ah, mas assim mesmo eu vou, eu chegar lá eu vou arranjar uma maneira de alguém me puxar". Então, eu ... na última vez que eu desfilei, eles fizeram um enredo (alegoria, sobre a qual desfilou) ... "Ah, seu Sebastião, o senhor vai lá, que a gente fez um enredo pro senhor, um carro, um enredo". Fizeram um carro grande, branco, com uma (pomba da) paz. E o senhor gostou de participar do desfile? Eu queria desfilar mesmo, porque a minha obrigação era desfilar. Aí, o negócio foi todo o contrário. Nós tivemos que desfilar com pessoas que tiveram a deficiência de pernas. coisa e tal, essa dificuldade. A minha comadre Olegária, que era uma grande porta-bandeira (refere-se a Olegária dos Anjos, a primeira a vestir fantasia de destaque em escola de samba) que apresentava o Império todo ano. Quando chegou na hora, tiveram que jogar ela por cima da entrada do barco, porque não dava para ... Tinha que ir andando devagar ...
Partido-alto é cantado, é versado. Está muito corrido o desfile hoje em dia. E samba de terreiro, o que é um samba de terreiro? É a mesma coisa, o samba de terreiro é aquele samba que se escolhe pra se cantar, abrir o ensaio. O samba de partido-alto é cantado fora do ensaio de terreiro, numa apresentação ... na roda. Então, o meu compadre Fuleiro era um grande compositor de terreiro ... e de partido-alto. Ele tinha umas letras assim: "Aí, ô nega! Já bebeu demais! Agora chega! Eu encontrei com aquela criatura! Os olhos vermelhos de tanto chorar! Ela me pediu para
Mas, eu disse a ela (filha): "Enquanto eu viver, eu desfilo. Eu vou desfilar".
• A letra correta é "Eu vivo/ No alto de uma colina/ Bem distante e pequenina/ Vivo no samba e na batucada ..." •• A mãe das filhas de Molequinho se chamava, na verdade, Carlinda de Oliveira.
UM SAMBISTA DE MULTIPLOS TALENTOS ,
Poucos como Alcides Aluisio Machado, o Aluisio Machado, podem se dizer sambistas com tanto direito. Conhecido como autor, em parceria com Beta Sem Braço, de "Bumbum paticumbum prugurundum" (Império Serrano, 1982), um dos maiores sambasenredo da história, ele já foi passista, ritmista e mestresala. Discípulo de Silas de Oliveira, acumula uma sucessão de vitórias na verde-e-branco, sendo autor de 12 sambas-enredo e ganhador de seis Estandartes de Ouro*. No depoimento prestado em 18 de abril de 2009, falou de sua trajetória de artista da noite, da paixão pela escola da Serrinha desde a infância e da briga pela valorização do sambista.
Eu sou internacionalmente desconhecido como Aluisio Machado. Meu pai é Alcides Machado e minha mãe, Maria Augusta Machado.
o senhor
nasceu em 13 de abril de 1939.
Isso, em Campos. E fiz 70 anos agora, dia 13 de abril. Como foi a sua infância? Ah, infância de pobre, né? Fazendo o primário na escola pública. Com 14 anos, já ia para o trabalho. Não tinha condições de estudar em escola particular. E o meu pai, pedreiro, né? Às vezes, me levava para virar massa. Mas aí, com 15 anos, eu conheci o Osório de Lima, que foi um grande compositor também. Ele era estofador e eu comecei a trabalhar com ele como aprendiz de estofador. Eu ia na casa das madames com a pastinha, desmanchava poltronas. Mas desmanchava para no dia seguinte ele ir e montar. Isso até deu uma música ("É aí que eu deito e rolo"). Nessa época o senhor já estava no Rio? Já. Na tapeçaria Venkt, na Nossa Senhora de Copacabana, esquina com Santa Clara.
o
senhor tinha que idade quando veio para o Rio? Um ano e pouco. Aqui no Rio de Janeiro, a familia veio morar onde? Primeiro em Ricardo de Albuquerque. Mãe, pai e sete filhos. Sete. Eu sou o caçula. Em casa, o senhor já tinha um espelho musical, que era o seu pai. O seu pai tocava sanfona. Era aquele nheco-nheco só, não fazia muita graça não. E como é que o samba, a música, foi entrando na sua vida? Acontece o seguinte: eu no colégio já fazia música, naquele negócio de bilhetinho pra namorada. Eu fiz um bilhetinho que virou música. Na escola pública ainda. Eu estava na quarta série ainda e denominei "A carta".
A familia veio de Campos ... Veio, com a finalidade de melhorar de vida.
Quantos anos o senhor tinha quando compôs? 14.
o que despertou a paixão do senhor pela música?
pra aqui, faz pra ali, entendeu? Foi dificil pra mim entrar na Ala de Compositores.
O meu irmão mais velho, que tinha o meu porte, começou a desfilar no Império. Eu ia atrás e ele me dava cascudo e me mandava pra casa. Ai, eu entrei na minha e comecei, num ano em que ele saiu. Ele era aquele que guardava tudo que era fantasia. Ai, quando chegava um carnaval, eu pegava de um ano que tinha passado, me vestia e ia para o Império. Mas naquele tempo tinha corda, né? Mas eu ia virando a corda e quando dava uma colher, eu ia pro meio. O (Mestre) Fuleiro (diretor de harmonia), quando via: "Vai pra trás da corda!"
Então, qual a primeira área que deu espaço pro senhor?
Fez tudo ... Fiz tudo no Império. E eu estava sempre atrás do meu idolo, que era Silas de Oliveira, que andava muito com o Walter Rosa. E eu, sempre que podia, estava atrás dele. Porque eu gostava das mensagens que ele passava, entendeu? Vamos voltar um pouquinho para a adolescência. O senhor teve contato com o Grêmio Recreativo Unidos do Araçá, lá de Ricardo de Albuquerque? Unidos do Araçá era uma escolhinha que existia lá no bairro mesmo. E eu tive contato ali.
A primeira área foi passista, depois bateria. Compositor foi o último. Como foi entrar como passista? Passista foi porque eu sabia sambar. O Império viu que eu era Império e sai na Portela. Porque o Natal, o presidente, bancava. Ficaram com ciúme os imperianos? É. Ai, no outro ano me chamaram e me deram roupa.
Nunca.
Nunca? Ele achava que era o mais velho, que mandava. Eu é que ia por minha conta. Que idade o senhor tinha? Ah, uns 10 anos. O que veio primeiro? A composição, tocar instrumentos, dançar como passista ou veio tudo junto? Veio tudo junto, mas eu só pude penetrar naquilo que me deu abertura primeiro. Porque, naquela época, para entrar numa ala, não era igual é hoje assim não. Agora qualquer um de fora entra. Chega gente de fora e entra. Faz
Teve um ano em que a Vera Lúcia Couto ganhou como a primeira Miss Mundo, Miss Universo, não sei ... Foi a primeira Miss Brasi/ negra.
Não, antes, antes dos 60. Foi ai que o senhor conheceu Si/as de Oliveira?
Nessa época, a ala tinha Si/as de Oliveira, tinha Mano Décio, era como é hoje, uma...
É, comecei a andar, a ouvir os negócios dele. Eu comecei a absorver a forma dele escrever, entendeu? E achei legal e cai dentro da ala também.
É, mas eu não entrei já fazendo samba. Eu fazia mais terreiro. Porque nem tinha microfone, não tinha nada disso. Samba numa roda ali, prospecto na mão, cantava e as pastoras iam aprendendo. Sem microfone, sem nada, entendeu?
Isso mais ou menos o quê? Nos anos 60?
Na bateria, como foi entrar? Na bateria é mole, porque eu peguei o reco-reco e fiz: tique-tique-tique. Ai, não teve problema. Além do seu irmão mais velho, outros irmãos seus ... Os outros todos são trabalhadores.
A influência do seu irmão mais velho, do Milton, ele em algum momento leva o senhor para o Império.
Como foi a entrada na Ala dos Compositores do Império? Teve teste?
É. Ai, ela foi visitar e eu fiz um samba pro Império e nenhum compositor imaginou, pensou em fazer uma homenagem. E eu fiz um "boizinho" (samba despretensioso) só pra ela. Aí, deixaram eu entrar na ala.
Foi a sua primeira escola? É, mas era tipo um bloquinho, só desfilava lá na praça do bairro.
de samba S.A., superalegoriasl Escondendo gente bamba ...". Isso já era um protesto. O Beta Sem Braço não queria que botasse essa frase. "PÔ, vai mexer com o Joãozinho (Trinta)". Quê Joãozinho?! Jogo é jogo, não tem nada disso não.
Mas sambista é trabalhador. Não, naquele tempo era vagabundo. Eu tenho até uma queixa. Aqui não é pra fazer depoimento? Eu já dei depoimento várias vezes falando sobre isso. Não tem muito tempo não, foi no ano em que eu ganhei com "E verás que um filho teu não foge á luta", do Betinho (1996). Nós estávamos ali na entrada da passarela, onde tem um portão já lá dentro, com um câmera da Rede Globo que me viu. Ele me conhece, mora ali em Jacarepaguá. Chamou a repórter: "Entrevista o autor do samba" Aí, ela com essa pomba desse negócio ai, esse microfone ai, fala com um diretor que fica numa cabine: "Estamos aqui com o autor do samba-enredo. Vamos fazer uma entrevista com ele?" E o diretor diz pra ela que não, que o tempo do Império já havia sido gasto com a Suzana Werner. O que é isso?! Ai ... Não me leve a mal, né? Ela não sabe nem onde é a quadra do Império Serrano, entendeu? Isso eu já falei em 1982. "Superescolas
Tem algum daquela época que o senhor lembre? Ter, tem, mas, no momento, eu não estou lembrando. Eu não contei a história da Mangueira? Contou a história da Mangueira. Mas não cantei? Não cantou. Não, porque eu cheguei a fazer o samba. Mas não cantei não. Eu fiz, mas eu fui cortado, não deixaram eu entrar na ala. Na ala de compositores do Império, nesse primeiro momento, o senhor não pensava em ir pra lá pra compor samba-enredo? Não. Porque não? Acho que ainda não estava preparado pra escrever samba-enredo, entendeu? Eu queria fazer aquilo que vinha na minha cabeça. Mas, nessa época, presta atenção, quando eu fui cortado, foi porque eu me apresentei na "Grande chance" e ganhei como compositor. No programa do Flávio Cavalcanti. Eu fui
o primeiro colocado como compositor, porque era misturado, ator, compositor, atriz. Eu ganhei e, aí, comecei a fazer shows na Sucata, Colt 45, na noite ai com Roy Sugar, que era do jornal "Última Hora" e tinha um grupo que fazia shows. Tinha a Adele Fátima, a gente fazia show juntos. E eu, cantando na noite, cantando negócio de Teatro Opinião, Degrau. No Teatro Opinião eu cantei no tempo da Nara Leão, desse "Carcará, pega, mata e come", esqueci o nome dele (João do Vale). Cantei com o Nelson Cavaquinho. Tudo no Teatro Opinião, que era uma coisa que a estudantada, o pessoal da UNE, só ia esse pessoal. E ai, era o lugar do pessoal do protesto, do pessoal da ... Sabe, era dito subversivo.
Foi nessa época que o Marlinho convidou o senhor para ir para a Vila?
Brasão, Arroz ...
É.
O que essa experiência trouxe para o senhor?
O senhor foi pelo convite ou não estava se sentindo bem no Império?
Eu fiquei muito querido ali. À hora em que eu chego, eu sou benquisto mesmo. Mas eu sou Império, não tenho saudade nenhuma.
É porque eu estava relegado mesmo. Com o Martinho, eu cresci, achei: "PÔ, vou me dar bem". Uma parceria. Que nada, chegou lá: "Vem pra cá, fica aqui". Eu fiquei, eu gosto de samba. Samba tem em todo lugar. Ai, logo que eu cheguei, eles fizeram um festival de samba que tinha samba-canção, partido-alto, samba solto. De terreiro. E eu fiz todos eles. Aí, ganhei nove troféus.
O senhor, nessa época, voltava ao Império pra dar uma olhadinha ou ficou dez anos afastado? Não, não voltei não. Dez anos sem pisar na quadra. Sem aparecer em Madureira.
Estamos aí na virada dos anos 60 para os 70. O Brasil no regime militar e o senhor ali no Opinião com os estudantes.
Na Vila?
É. Ai, mandaram eu calar a boca.
Aí, fiquei na Vila uns dez anos. Fazendo samba e eles não deixando eu ganhar de jeito nenhum. Aí, o Jamil foi lá ...
Quem mandou?
O Jamil Cheiroso?
Ora, me levaram pra (Rua) Barão de Mesquita.
Mas ainda não era com o Beto. O Beto, nesse tempo, ainda era da Vila mesmo.
Foi preso?
O Beto sem Braço?
Não, fui convidado a comparecer.
Da Vila mesmo, mas metido em bateria. Aí, como ele trabalhava em feira e conhecia o Jamil, o Jamil chamou a mim e a ele. Chegamos no Império: "Vamos fazer com quem?" E já tinham as parcerias arrumadas. Aí, fizemos nós dois, em 1982 ("Bumbum paticumbum prugurundum").
Quem convidou? Fui convidado a comparecer. Mas acontece que eu sou da Marinha. Aí, eu chamei um major que trabalhava comigo. Ele não foi não, mandou a mulher dele ir comigo. Aí, nós entramos, fomos lá pra dentro. E chega um sentinela, um sargento que estava lá de sentinela. Eu entrei lá, ele me deu uns papos, me aconselhou. "Você é trabalhador, não é de partido. Qual o teu partido?" "O meu partido é o partido-alto. Eu não tenho, o meu partido é o partido-alto." "O que você sabe do movimento do samba?" "O movimento do samba é assim (começa a gingar)." "Então, vê se para, vê se muda de lado e canta música diferente." "Obrigado, desculpe". Quando o senhor voltava dos shows para o Império Serrano de madrugada, o se. nhor ficou dividido? Dividido porque os outros compositores me chamavam de artista. "Chegou o artista ..." Eu vinha de show. O Roy Sugar tinha uma coluna no "Última Hora" e toda semana estava eu lá na coluna, nos jornais. E isso machucava, pois antigamente, quem aparecia nos jornais, nas colunas, na revista "O Cruzeiro", nessas todas que já acabaram, essas revistas, eram os sambistas.
Dez anos depois, o senhor volta e... Foi aquele estrago que era até pra ser o samba deste ano (em 2009 a escola pensou em reepitar "Bumbum paticumbum prugurundum", em vez de "A lenda das sereias rainhas do mar", de 1976). Sabia disso? Não era esse. Tu conhece a história? Tu não conhece a história. Eu não vou falar, porque o meu anjo da guarda pode ficar desempregado. É, cara, presta atenção, o andamento do samba "Bumbum" dá pra este ano. "Lenda das Sereias". Então, alguém disse (de "Bumbum paticumbum prugurundum"): "Esse samba não pode entrar, porque esse samba está indo contra as grandes escolas, está indo contra os patronos." Dessa experiência em Vila Isabel, antes de o senhor voltar para o Império e estourar com o "Bumbum", o que o senhor guarda da convivência com a azul-e-branco? O senhor ainda pegou o Paulo Brasão ...
E o senhor sofreu? Sofri. Mas quando eu comecei a aparecer, eles é que mandaram me chamar de volta. Durante esse período em que o senhor esteve afastado do Império, gravou o seu primeiro LP. Eu gravei meu primeiro LP, apesar dos pesares, logo que eu sai de "A grande chance", entendeu? Foi até a convite do Arthur Farias e Osmar Frazão. Porque eles eram jurados do "A grande chance". Em 1981, o senhor está voltando para o Império Serrano para o carnaval de 82. E se encontrando com um parceiro que é o Beto Sem Braço. Como foi? Encontrei um pessoal mais arredio a gente. Eu já era de lá, mas o Beto estava chegando pela primeira vez. Mas o importante é que quem chamou foi o presidente e a sinopse, o título não é esse. Sabia, ou não? Esse carnaval é do (Fernando) Pamplona. Quem escreveu foi a menina, a Rosa (Rosa Magalhães). Mas era "Candelária, Praça Onze e Sapecaí, os três templos do samba". Mas ai, numa entrevista com Sérgio Cabral, o pai, o Ismael Silva havia dito que a batida do surdo era assim: "Bumbum paticumbum prugurundum; primeira, segunda e terceira". O centro é a terceira, que a Mangueira já vai direto. Bumbum paticumbum prugurundum é a que faz o contratempo. É, aí, a Rosa exigiu que todos os compositores botassem essa frase. E mudou o título, o título passou a ser "Bumbum". Então, nós fizemos o samba e tivemos a sorte de ser mais felizes. Porque ninguém botou esse "Bumbum paticumbum prugurundum". Ninguém. É difícil falar certo, botar dentro da divisão e dar certo. Porque o samba é grande, difícil. Mas, antes do carnaval, ele já era. E em pleno meio-dia, na Avenida, onze e meia, um sol do cacete, eu digo: "Abana!" O
cara falou pra mim assim: "PÔ. as baianas do Império sambam pra caramba". "Sambam é o cacete. É o chão que tá quente. cara!" Eu sei que a gente não veio com essa roupa (fantasia) toda. mas o samba ganhou o carnaval. Ele colocou que parte? Como é que vocês se sentaram pra pegar a sinopse, discutir, falar "Vamos assim"? Não, ele me ouvia muito, na hora da caneta ele me ouvia muito. Tanto que ele não queria botar "superescolas de samba". porque ia machucar o Joãozinho Trinta e o Anisio não ia gostar. Foram quantos dias ou semanas pra compor o "Bumbum"? Fizemos o bruto mais ou menos em uma semana. Porque a gente faz um trabalho e daqui a pouco já pinta outro ai ... Pra dizer mesmo, em dez dias nós fizemos. Teve alguma dificuldade em algum verso ou passagem que era exigida pelo enredo? Não, porque nós ficamos muito á vontade. não ficamos muito presos á sinopse. "De uma barrica ..." Isso tudo não está na sinopse. Nós é que botamos. "De uma barrica se fez uma cuica ..." porque naquele tempo era com uma barriquinha mesmo. Os tamborins tinham que esquentar. Faziam fogo no jornal e tinham que esquentar. Eu achava que o termo "Superes colas de Samba S.A. " estava na sinopse, eu não sabia que não. Não, isso aí fui eu. Desculpa eu falar assim, porque ele já morreu. mas ele brigou pra não botar isso, porque achava que ia ferir. Não estava na sinopse. Na sinopse estava o "Bumbum" Rosa pediu pra colocar.
que a
E contar as três fases do samba, da Candelária, Praça Onze e. inclusive, falava-se Marquês de Sapecai. Como vocês se sentavam pra compor, melodia e letra vinham juntos? Cada um trazia uma parte de casa? Vinha junto.
O sucesso do "Bumbum" trouxe dinheiro, mudou a vida, a sua e a do Beta? Trouxe. mas não trouxe a verdade. Porque aqui no Rio. eu fui ver a planilha - eles mostravam uma planilha pra gente -, tocou mil e não sei quantas vezes. Em São Paulo, tocou mil e não sei quantas. No carnaval. nas quatro noites de carnaval. Na Bahia tocou quatro vezes. Nem que a Bahia tivesse um clube só iria tocar quatro vezes. Então, você não pode controlar, cara. Tu imagina o Brasil todo. Até hoje, ainda ganho dinheiro com ele. Então, eles continuam metendo a mão. Mas deu pra comprar apartamento, carrinho. tudo. Em 83... "Mãe Baiana". Vocês bisaram, campeã ... Campeã e Estandarte de Ouro. Esses dois foram Estandarte de Ouro.
Luiz Carlos do Cavaco Como é compor com outros parceiros dentro do Império, que não são o Beta Sem Braço? É mais difícil. Por quê? Porque cada cabeça é uma cabeça. não é? Tem uns que absorvem mais, entendeu? Eu gosto de ousar, entendeu? Em algum momento o senhor parou de compor com o Beta Sem Braço? Ele morreu. porra!
Dois anos seguidos.
Antes da morte, vocês brigaram?
Dois anos seguidos. eu ganhei cinco (Estandartes de Ouro). Foi com "Eu quero", também. Mas "Eu quero" já não foi com o Beto, foi com Luiz Carlos do Cavaco. Quando subimos, no Grupo de Acesso dá Estandarte também.
Brigamos não. É que uma ex minha e a filha dela. filha da mãe, né? andaram espalhando por aí que eu que era o caneta, que o Beto não fazia nada. Ele ficou danado da vida. Porque ai, ele frequentava essas malandragens todas e falavam: "Dizem que o caneta é o Aluísio. que você não faz nada." Eu cheguei até a chorar. "PÔ. Beto, eu não fiz nada." "Não interessa. faz o teu que eu faço o meu! Vou ganhar!" E ganhou. Aí. no outro ano eu ganhei com o Luiz Carlos, "Eu quero". Ai, ele teve a dignidade de subir no palco e cantar comigo.
Em 93. Ai. nós ganhamos também. Aí. já foi com o Arlindo. "Império Serrano - Um ato de amor". "Um ato de Amor". "Eu quero", "Mãe Baiana" e, agora, "O Império do Divino". Os seus sambas-enredo têm fortes referências ao candomblé e à umbanda. Com 16 anos. saí de casa e fui trabalhar com o senhor Lano Trindade. Não sei se você é estudioso e sabe disso. Era um teatro folclórico. dança folclórica. A Mercedes (Baptista) era estilizada e o senhor Trindade era chão mesmo. Então, com eles eu aprendi muita coisa de dança folclórica. Dentro do teatro, nós fizemos um auto "Bumba-meu-boi'. um auto dramático. Eu era o Tião Baixão, Mateus Baixão. E ai, no candomblé. eu fazia Ogum. Ai, aprendi com ele essas coisas do afro. entende? Arlindo Cruz hoje é um parceiro. É um parceiro gordo.
Onde, na casa de um? Na casa dele. eu ia pra casa dele. Mas ele era mais melodia. era da roça. calangueado. E eu mais letra, eu sou mais letrista. Ele era mais na melodia. entendeu?
E no Império, depois que o senhor deixou de fazer sambas com o Beta sem Braço, e a gente vai falar disso daqui a pouco, o senhor fez outros sambas como o "Eu quero", com outros parceiros.
Diferente do Beta Sem Braço. Mas pesa pra caramba. Ele anda assim (imita o jeito desengonçado de Arlindo andar). Muito bom de harmonia e é mole fazer com ele
Mais uma vez, quase dez anos depois, o senhor voltaria a compor um samba com um tom muito político e muito de protesto que era o samba em homenagem a Betinho, "E verás que um filho teu não foge à luta". Fez um monte de gente chorar na Sapucai. A escola passando muito pobre, com um monte de dificuldades pra botar aquele carnaval na rua. Mas com um samba ... Muito bom. * Após o depoimento, Aluisio assinou "A bênção, Vinicius". Estandarte de Ouro de melhor samba-enredo do Grupo de Acesso de 2011.
HERDEIRO DE MANO DÉCIO, ABEN OADO POR MARTINHO Jorge Antônio Carlos sofreu fortes influências. Filho de Mano Décio da Viola, conheceu o sucesso com a bênção de Martinho da Vila, com quem tem semelhanças na voz e na aparência. Mas voou com as próprias asas em 21 LPs e três CDs, shows em vários países e puxando o samba do seu querido Império Serrano na Sapucaí. No depoimento de 12 de setembro de 2009, Jorginho do Império falou da relação com o pai, da infância, do título de Cidadão Samba e do trio Pelés do Samba, no qual mostrou toda a sua habilidade de dizer no pé.
Como foi a sua infância em Madureira? Como a de qualquer garoto daquela época. A gente brincava de carniça, pique, de fazer uns campinhos de futebol. Como era a familia?
Sou Jorge Antônio Carlos, Jorginho do Império, filho do Mano Décio da Viola, Décio Antônio Carlos, e de Leonor do Nascimento. Eu nasci em Madureira, bem pertinho da Serrinha. Na Rua Itaúba, até um certo tempo. Depois a gente trocou pra colocar Rua Mano Décio da Viola, meu pai.
Eram umas 50 pessoas que desfilavam no Império. Tia Dulce, tia Ida, tia Loureira, tia Olga, tia Hercília, meu pai, meu tio Jaime, Waldemar, meu tio Lineu, meu tio Julinho, meus irmãos Buzena, Zé Paulo, Conceição, Sinhá, minha avó - como é que eu vou viver uma vida sem falar da avó? Não pode. Minha avó Maria, ela não ia no Império, mas fazia nossas fantasias. Os pais do Mano Décio eram de Santo Amaro da Purificação, Bahia. Era isso?
Você acha que essa passagem pelo Morro da Mangueira de alguma maneira influenciou o fazer o samba do seu pai? Essa estada do meu pai no Morro da Mangueira com esses compositores - o Padeirinho era um cara muito próximo do meu pai; o Cartola, eu lembro do Teatro Opinião, 1967/68, nessa época a gente viveu lá; Preto Rico, o Jajá da Mangueira; Carlos Cachaça foi um cara que viveu bastante com o papai. Quando o papai saiu do Morro de Mangueira e foi para Madureira, levou uma bagagem muito grande, uma grande colaboração que ele pôde captar com essas pessoas. Ele levou pra lá e fortaleceu mais ainda, pela cultura da própria Serrinha. A Serrinha até hoje tem coisas, eu lembro que eu era garoto, tinha caxambu no terreno da Dona Marta, numa casa que depois o papai foi quem herdou essa casa da Dona Marta. Tinha caxambu, jongo e macumba!
Não, meu bisavô. Por parte de pai? É. Depois é que eles vieram de Santo Amaro da Purificação e passaram por Juiz de Fora. Essa história que eu sei é Santo Amaro, Juiz de Fora. Ai depois o papai se desgarrou da família, veio pra Mangueira.
Qual foi o momento em que você começou a perceber o samba do teu pai como um grande artista, um lider em torno de uma escola de samba nova e de uma organização nova? Quando eu comecei a caminhar com minhas próprias pernas. Eu comecei a chegar e diziam: "Esse
cara ai é filho do Mano Décio". E você bem pequeno ainda pegou a coisa do carnaval, da folia? Eu já nasci dentro, cara. Você nasceu em fevereiro? Dia 13 de fevereiro, um domingo de carnaval, de 1944. Cheguei nove e pouco da noite. Minha mãe tinha a baiana pronta pra desfilar na Cidade Alta. Era da Serrinha. Você desfilou pela primeira com oito anos de idade? Em 1952. Qual a lembrança que você tem desses primeiros desfiles? Nós vinhamos formados lá da Serrinha até Madureira. Entrávamos no trem, desfilávamos, pegávamos o trem e voltávamos pra Madureira. Qual o samba do seu pai que você mais gosta? São tantos ... Mas tem um chamado "61 anos de República" que eu gosto muito. Um samba enorme. Como era a pesquisa que o seu pai fazia pra pegar um tema histórico e colocar no papel? O carnavalesco chegava pra eles e dizia que o enredo era, digamos, Bárbara Heliodora. Eles saiam procurando a biblioteca, iam nos museus, procuravam saber da história, de tudo. Depois iam levar a história que eles escreveram para o professor de português, que já corrigia as letras do Império, em particular, as letras do Silas (de Oliveira) e do papai. "Tiradentes" é um exemplo brilhante de sintese, pela possibilidade de contar de maneira tão simples, direta, objetiva e poética ao mesmo tempo, uma história com a força dele. Com certeza. É gravado até hoje por todos os cantores da música popular brasileira. Como se sente com isso? É curto e o grande samba-enredo da história. Uma história tão bonita, sintetizada, que as pessoas hoje, nos lugares em que eu vou, me pedem pra cantar. O Chico Buarque gravou. Elis Regina levou pra fora das quadras com
a gravação que fez. É o samba-enredo dos sambas-enredo.
Ele era político no sentido maior da vida não daquele momento específico. Mas po: dia ter essa leitura.
Quantas gravações Você tem idéia?
Claro, veja bem, quarenta anos, quarenta anos. Você vê, os jovens hoje fazem questão de ouvir esse samba. Rapaz, pra mim que lido com todo tipo de público, quando um jovem vem e me pede pra cantar isso, cantar esse samba, eu vou te dizer uma coisa ... É uma coisa muito séria pelo que essas pessoas passaram, o Silas e o papai passaram, e o próprio Império Serrano. Eu lembro que eu fui contratado pra cantar num casamento na Barra da Tijuca, bem recente, e o samba que me levou a esse casamento foi o "Heróis da liberdade". O rapaz queria ... "Eu tenho que mostrar para os meus convidados esse samba".
Tiradentes já
teve?
Roberto Silva foi o primeiro cantor a gravar, em 1949. Depois, eu me lembro de uma fase em que ele gravou com o maestro Peruzzi lá em casa. Tem muita regravação. Graças a Deus. Porque teve um dia em que as netinhas do meu pai não sabiam como iam passar o Natal. Aí, passamos ali na Sadembra (Sociedade Administradora de Direitos de Execução Musical do Brasil), o seu Haroldo, meu camarada: "Ó, Jorginho, tu tem alguém que tenha uma procuração do teu pai? Tem um dinheirinho aqui." Mano Décio, onde você estiver, aquele Natal foi salvo por você. Pela tua obra. Mano Décio e Silas de Oliveira são os dois grades nomes de compositores do Império e da história do samba carioca. Como era a relação dos dois? Melhor do que pai e filho. Os dois se completavam. O Silas pelo respeito e carinho que tinha pelo meu pai, até mais velho do que ele. Foi o papai quem trouxe o Silas (para o samba). Foi lá e falou com o Seu Assunção, pai do SiIas. "Heróis da liberdade" virou um hino oficial do Império Serrano. Com certeza. Hoje, o primeiro samba cantado (no ensaio) é "Heróis da Liberdade". E depois, o Natal (da Portela), antes de morrer, disse que o "Heróis da Liberdade" era o samba-enredo de todos os mortos do samba. Todo mundo que morresse, de onde fosse, tinham que cantar "Heróis da Liberdade" (no enterro). E é um grande samba como obra de arte e como obra política também. Ele foi o samba do carnaval de 1969, portanto, meses apenas depois da decretação do AI-5. Um samba que foi censurado. Papai e o Silas foram lá no Dops na época, dar depoimento.
Seu pai se sentava com você pra mostrar como fazia? Não, eu não tive essa chance e nem essa oportunidade, porque: "Ó, sai pra lá, isso aqui é negócio de adulto!" O meu pai, todas as coisas que ele viu do Jorge, ele viu com as pessoas mostrando. "PÔ, teu filho samba pra caramba. É mesmo?" Conheci Martinho da Vila na década de 70, disputei o concurso Cidadão Samba do Estado da Guanabara sai de lá do Clube da Light como o Jorginh~ C.idadão Samba. Ai: "Quem é o Jorginho?" "E lá do Império, filho do Mano Décio." Ai, de repente, eu gravei e cheguei em casa com aquele LP e mostrei pra ele. "Tá legal, mas precisa melhorar." Ai, o tempo foi passando até que um dia melhorou mesmo, em 75. Ai: "Na beira do mar todo mundo brinca" (sucesso de Jorginho). Então, quando ele viu, as coisas aconteceram da rua. Até o ponto de dizer: "Desculpa que você estava do meu lado e eu não vi nada disso acontecer". Ele não viu, mas participou, curtiu junto comigo. Os poucos anos de vida que meu pai teve depois que eu fiz sucesso, foram legais. A gente viajou bastante. No momento em que ele disse essa frase pra você, você estava com quantos anos mais ou menos? Uns 35, por ai.
Por conta do samba.
E como calou dentro?
Na época, o cara lá que mandava entendeu, quando conheceu eles pessoalmente, conversando, entrevistando, percebeu que eles não tinham nada a ver com o que rolava na época. Eles não fizeram aquele samba nem o enredo para falar mal do que existia naquela época.
Foi uma fase em que eu podia dar tudo pra ele, em que eu quis dar tudo e ele não aceitou nada, porque ele falou: "Eu não posso aceitar nada de você porque eu não te dei nada". "O que é isso? Tu me deu a vida". Como apareceram os Pelés do Samba?
Como vocês se formaram, como veio a idéia e como você descobriu que queria sambar? Já estava no sangue da gente. Só que a gente não sabia que éramos aquilo tudo, as pessoas é que foram descobrindo. A gente não tinha maturidade para: "Nós vamos inventar o futebol no samba. Vamos desfilar no Império jogando isso, esse futebol imaginário e ai nós somos os Pelés do Samba". O Brasil tinha ganho a Copa de 1958 e no carnaval de 59 ... Fomos receber o prêmio de melhores passistas do ano. Chegamos lá e fomos apresentados como Trio Pelés do Samba, porque a gente inventou o futebol imaginário. Vocês três sambavam como se estivessem ... Jogando futebol. Depois, já era o Pelés do Samba, a gente era tudo garptada, 17, 18 anos. Aí nós começamos: "Vamos fazer um time de futebol". Mas acontece o seguinte, nem todo mundo sambava com a qualidade que a gente sambava. Então, o que aconteceu? A gente começou a pegar a quadra do Império e fazer uma partida de futebol. Daí, a gente fazia um time jogando com o outro sambando. E a gente ensinava os garotos, nossos colegas que não sabiam sambar. A gente começou a ficar esperto. Ai, começou a arrumar um dinheirinho, fazer show. Quando terminou essa fase nossa do Trio Pelé, veio essa coisa do passo marcado. A gente criou a ala Sente o Drama. No primeiro ano nós saímos com 18 componentes. Depois passou a ter duas alas Sente o Drama no Império. Uma vinha representando uma coisa e a outra vinha representando outra. Aí, a partir do momento em que o Império escolhia o samba, dentro do samba a gente criava o restante da coreografia. Qual foi o primeiro ano da ala Sente o Drama? Foi "Aquarela Brasileira". 1964. Você seguiu um caminho específico. Primeiro, o caminho da dança, depois o caminho da música. Nunca desfilou numa bateria. Nunca. Você fez uma escolha por algo que foi o seu dom ou algo que te realizava internamente? Primeiro, a dança, e depois cantar, compor? O cantar e compor, eu posso te dizer que surgiu de 1971 pra cá, quando eu fui eleito Cidadão Samba. A coisa do tocar, tocar profissio-
nalmente com Martinho da Vila, fui trabalhar com ele. Fui tocar pandeiro, tamborim, surdo, agogô. Aí, semelhança física e, podemos até dizer, uma coisa paterna entre a gente, a relação que a gente tinha, o amor que eu tinha pela obra do Martinho - tinha, não, eu tenho pela obra do Martinho - e as oportunidades que ele me deu. A Rosinha de Valença, que Deus a tenha, foi fantástica. A gente fazendo uma temporada no Norte e no Nordeste, terminava o show do Martinho, a gente ia pra praia tomar água de coco e bater papo. Eu descobri que a Rosinha era imperiana. Virou pro Martinho e disse: "Dá uma oportunidade pro Jorginho, que ele sabe cantar. Ontem ele cantou um montão de sambas do Império lá na praia". Aí, todo mundo começou a dar aquela força, até um momento do samba em que o Martinho falou: "Tem um momento lá no show em que eu canto aquele samba 'Vou-me embora, vou-me embora, prenda minha'. Eu vou sair do palco no meio do pessoal e tu fica no palco cantando. "Vou-me embora", até eu desaparecer. Ai, tu fica". Aí, ele, lá do palco, falou: "Tá aqui um cara que é filho do Mano Décio da Viola". Vieram as oportunidades de outros lugares, outros shows. O falecido Haroldo de Andrade na TV Tupi. O Martinho da Vila foi cantar um dia lá e estava afônico. Começou a cantar e eu terminei. De noite a gente fazia um show ali no Belvedere, no Méier. Aí o cara da gravadora falou: "PÔ, tu toca com o Martinho da Vila e canta igual a ele. Por que você não vai segunda-feira pra gravar um LP lá na Equipe?" Então, as coisas aconteceram assim. Eu não fui buscando. Quando se referiu ao Martinho, você falou a palavra paternal. Mas vocês são da mesma geração. Porque o Martinho era amigo do meu pai. Mas era um garoto em relação ao teu pai. Eu sei, mas acontece que ele era o Martinho da Vila. Ele era o cara que dizia: "Mano Décio, o Jorginho está trabalhando comigo". "Com você eu confio". Como foi gravar o primeiro LP e como foi virar um cantor profissional? O primeiro LP foi em 1974. Eu estava com o Martinho da Vila e o Américo Nogueira Lima, o Oswaldo Cadache. Era um selo chamado Equipe, que gravava muito samba naquela época. Eles foram lá no Belvedere, me contrataram, me levaram pra lá e a gente fez dois LPS lá com eles. Mas o grande lance aconteceu em 1975, quando eu participava de uma roda de samba no Arranco do Engenho de Dentro e o Ailton e o Toninho, dois divulgado-
res da Polygram, da Polydor, da Phillips, apareceram porque disseram: "Tem um cara que canta igual ao Martinho da Vila lá no Arranco do Engenho de Dentro - no Arranco não, no Vai se Quiser (bloco que originou a escola). Eles foram lá e no dia seguinte, isso foi num sábado, domingo, eles foram na minha casa em Madureira. A gente conversou e ai, na segunda, eu estava lá no Flamengo, no Jairo Pires. Ai, a gente fez o grande, aconteceu tudo isso, tive que parar de tocar com Martinho da Vila e seguir a minha vida. Quem influenciou a sua maneira de fazer samba? Moacir Rodrigues, falecido presidente do Império. E ele fazia assim: "Vocês têm que fazer igual ao Paulinho da Viola, fazer que nem o Martinho da Vila. Vocês têm que fazer". Aí é que a gente começou a pensar nisso. Não foi nem o meu pai. Você gostaria de falar de algum samba, algum momento de LP? Tem "Eu e meu pandeiro", por exemplo. Eu gravei o primeiro em 1973; depois, 1974 pela Equipe. Em 75, eu fui contratado pela Polydor e foi ai que aconteceu a história do Jorginho do Império. E desse LP, dessa época, estouraram nove músicas. Foi um negócio, uma febre do Jorginho do Império pra tudo quanto é lado. E a gente começou a viajar e assumir essa coisa do fazer show, porque eu estava acostumado a tocar meu pandeirinho e meu tamborim lá com o Martinho da Vila. Mas eu não tinha o compromisso que ele tinha de se apresentar para o público e tal. Depois de uns dois anos é que eu fui entender que eu tinha que cantar com o olho aberto, ver as pessoas que estão à minha frente. Mas era uma dificuldade. O Jorginho do Império chegava, fechava o olho e cantava o show todo com o olho fechado. Até o dia em que eu me flagrei e vi que o povo estava ali pra me ver e eu tinha que chegar e ver todo mundo. E o partido-alto, partido-alto?
o que aconteceu com o
O partido-alto, a essência do partido-alto, morreu com os caras que faziam isso. Aniceto, Preto Rico, o meu pai ... Não, o meu pai ... Ele e o Silas falavam que era samba de quem não sabia compor. Só tinha aquele refrãozinho ... Jorginho, você poderia falar sobre Mestre Fuleiro? Um marco dentro do carnaval, dentro do samba, dentro do Império Serrano. É uma figura que até hoje é citada e falada dentro do Impé-
rio porque as pessoas tinham um respeito por ele muito grande, um carinho muito grande. Ele conhecia a escola desde o abre-alas até o último carro alegórico. Deu a vida dele para o Império chegar ao ponto que chegou. E Seu Molequinho? Seu Molequinho era meu sogro, meu parceiro. Ele foi o primeiro cara que me deu a oportunidade de ser diretor do Império Serrano. O número um do Império Serrano. Jorginho, o seu amor pelo Império Serrano... É infinito. É infinito, é total. Mas teve um momento
em que você deu uma saida e foi até a União da Ilha. Pois é, cara. Por quê? Foi porque eu levei uns amigos que eu conheci lá no Rio Grande do Sul. Eles eram donos da marca Ali Star. Achavam que escola de samba era igual a time de pelada. Tu dava a fantasia pra um, pra outro e depois dizia: "Vai todo mundo pra lá". Então, eu estava passando pra eles que não é isso, que existe uma sede, existe o presidente, o vice-
-presidente, o diretor disso, o diretor daquilo. Eu fui dando toda a formação do que era a escola de samba. Bom, fiquei lá com esse amigo. Isso foi em novembro. Em dezembro eles viriam pra cá fazer uma exposição de calçados. Eu consegui alugar dois camarotes no Império e levei a familia, alguns funcionários. E fiquei impossibilitado de mostrar pra eles o que eu queria, que era a sala do presidente, apresentar o presidente, mostrar a nossa reunião, banheiro masculino, feminino, a nossa quadra, o camarote. Eu fiquei impossibilitado de apresentar porque o Cheiroso, Jamil Salomão Maruff, grande presidente que o Império já teve ... Mas eu fiquei impossibilitado de mostrar a essas pessoas a quadra do Império. Ai, conclusão, quando deu umas três horas da manhã, o Oswaldo Maguila, até hoje vivo lá no Império, disse: "Tá liberado pra você mostrar lá a sala pro pessoal". "Agora eles já foram embora. Eles não são iguais a gente de chegar nove horas da noite e sair nove da manhã. O negócio deles era vir aqui pra conhecer e eu vim aqui pra apresentar. Não deu, tudo bem. Cadê o presidente?" "Tá lá dentro." Eu fui lá e falei com ele: "Eu' que te trouxe pra ser presidente do Império, porque nós éramos muito amigos. E a partir de hoje eu estou te avisando o seguinte: por causa de você, enquanto você estiver aqui no Império, eu não venho mais aqui." E aí, eu tinha uma aproximação muito grande com o pessoal da
Ilha. Estava sempre por lá conversando com o pessoal, Peixinho, Beto Maia. E eu fui ficando na Ilha. Mudou depois a diretoria, teve eleição. O Marquinhos foi candidato a presidente (do Império), ganhou e me convidou pra voltar e eu voltei. Como é viver a vida toda numa escola tão importante na vida da cidade e dentro do samba e que hoje se debate ali, caindo um ano, subindo o outro, não disputando e não conseguindo ganhar um titulo? O que aconteceu com o Império ou com o carnaval? É uma coisa dolorosa pra gente, porque o Império cai e as pessoas dizem que não merecia. Ai, a gente ouve que o Império não tem uma política boa na Liga, que o Império não tem um banqueiro de bicho, que o Império não tem um patrocinio forte. Tudo bem, mas e a escola de samba em si, cara? Mas não tem nada. Está tudo bem, a nossa hora vai chegar. Jorginho, que mensagem você daria para os jovens imperianos? Que eles procurassem saber da história da escola para que pudessem se situar no que é ser imperiano. Ser imperiano na alegria e na dor.
o SARGENTO QUE NO MUNDO DO SAMBA É GENERAL No samba, Nelson Sargento tem patente de general. Oriundo do Salgueiro e cria da Mangueira, ele conviveu com os mestres da verdee-rosa, como Alfredo Português, Carlos Cachaça e Cartola. Sua trajetória tem a marca do pioneirismo. Compôs sambaenredo ("O Vale do São Francisco", em 1948, e "As quatro estações do ano", em 1955) numa época em que o gênero ainda não tinha se popularizado. E integrou o elenco de shows em que a classe média conheceu o que o morro tinha de melhor, conforme contou no depoimento de 7 de março de 2009. Meu nome é Nelson Mattos, com dois T, nome artístico, Nelson Sargento. Nasci a 25 de julho de 1924, na maternidade da Santa Casa de Misericórdia, situada na Praça XV.
Os seus primeiros anos de vida foram no Morro do Salgueiro?
gangrena e morreu.
Sim. Minha mãe era doméstica e trabalhava numa casa de família portuguesa. Então, ela tinha um barraco no morro e, aos sábados, ia pro barraco. Eu ia junto. Fiquei nisso até 10, 12 anos. Mesmo assim, ainda deu para eu desfilar numa antiga escola chamada Azul e Branco do Salgueiro.
Mas todo esse tempo o senhor morou com a sua mãe?
O senhor morava no morro com os seus pais, e sua mãe era Rosa Maria da Conceição, certo? Sim, mas eu só vim a conhecer meu pai muitos anos mais tarde. O seu pai era Olimpio José de Mattos? Isso. Quando a minha mãe saiu da maternidade comigo, o registro de nascimento era de graça. Então: Nelson Rosa, de Rosa Maria da Conceição. Depois que eu conheci meu pai, adotei o nome dele. Aí, fiquei Nelson Mattos. O senhor conheceu seu pai com que idade? 14, 15 anos, mas ele já estava bem doente. Era cozinheiro profissional. Quando faleceu, trabalhava num botequim na Rua Bom Pastor e acidentou-se com uma panela de água quente. Teve uma
Sempre. E o senhor tinha algum irmão? Segundo meu irmão por parte de pai, ele me disse que nossa familia era grande. Mas eu não conheci nenhum deles. Anos mais tarde é que eu vim a conhecer uma irmã aqui no Morro da Mangueira, chamada Penha. Filha do Olimpio. Filha do Olímpio com outra "senhôra". E como foi a sua vinda para o Morro da Mangueira? Minha mãe estava vivendo com um senhor chamado Arthur. E esse Arthur era muito amigo do Alfredo Português, o Alfredo Lourenço, que soube que ele estava doente lá no Salgueiro. No barraco a situação financeira era além de péssima. Trouxe ele pra Mangueira e eu e mamãe viemos junto. Eu tinha entre 12 e 13 anos. Passados uns três meses,
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ele faleceu. Então, não havia mais condição de a minha mãe voltar para o Salgueiro. Ai, ela começou a lavar roupa pra fora, morando já aqui em Mangueira. Onde vocês moravam em Mangueira? Numa localidade chamada Morro Santo Antônio. E, ao mesmo tempo, o senhor já trabalhava? Não, eu fui trabalhar depois. Fui trabalhar numa fábrica de vidro na Rua Gonzaga Bastos, 314. Aí, quando o senhor vem pra cá com a sua mãe, o senhor larga os estudos e... Eu fui trabalhar numa fábrica de vidro. Trabalhei lá entre 14 e 17 anos. Porque o Alfredo era empreiteiro de obra, certo? Mas encarar aquele serviço de obra, eu fui desconsolado. Carregar escada, tinta, eu achava aquilo um saco. Eu não tive coragem de dizer pra ele que não queria aquilo e fiz o seguinte. Fui voluntário do Exército com 20 anos. Ai, me livrei da obra, tudo bem. Cheguei a sargento, porque, naquela época, não tinha a Escola de Sargento das Armas. Tudo isso era feito na tropa, o sargento, o cabo eram feitos na tropa. E foi o que aconteceu comigo. Eu fui promovido a terceiros-argento no dia 13 de setembro de 1946. Como é que aparece o seu apelido? Quando eu dei baixa, era o Nelson simplesmente, o Nelson que foi sargento. Tentavam me chamar de Nelson Sargento e eu não aceitava. Nesse tempo, eu já fazia samba, tocava um pouco de violão e quando o Herminio (Bello de Carvalho) fez aquele musicai chamado "Rosa de Ouro", ele falou com o Elton Medeiros que precisava de mais um sambista no elenco. Então, ele se lembrou de mim. E por causa do "Rosa de Ouro" que eu ganhei o nome de Nelson Sargento, porque o livreto tinha uma descrição da peça e a fotografia do elenco. Na minha fotografia estava escrito embaixo: "Nelson Sargento". Vamos voltar para a sua adolescência no Morro da Mangueira. Como era a Mangueira naquele tempo? Fui colega de adolescência de Delegado, Cicero, Marreta, Jurandir não, Jurandir, depois. E tinha o Nelson da Viola, com quem fiz um conjunto com o Zagaia. Era eu, Nelson e o Zagaia. Fizemos um conjunto ai, um conjunto mambembe que tinha um nome formidável, Os Terriveis do Ritmo. O que era uma realidade (risos). E nessa época, ficava ao lado uma escola chamada Unidos de Mangueira. E o Alfredo fazia parte dessa escola.
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O Alfredo Português? É. Porque quem frequentava a casa do Alfredo eram Cartola, Carlos Cachaça, Aloysio Dias, Babaú, Geraldo Pereira, a nata da Mangueira. Porque o Alfredo era festeiro e ele sempre reunia essas pessoas em casa ... Foi ai que eu comecei a ver samba. O Alfredo foi levado á Mangueira pelo Carlos Cachaça. Quer dizer, aonde o Alfredo ia, eu ia junto. Era a corda e a caçamba. E então, foi por isso que eu conheci esse pessoal, o Elton, muita gente da(s) (escolas de samba) Lira do Amor, Filhos do Deserto. O Alfredo Português foi muito importante na sua vida? Eu aprendi muita coisa com ele, principalmente em matéria de música. Não é que ele me ensinasse música, mas ele me ensinou a entender de samba. E como o senhor definiria o que ele lhe ensinou? O que é o samba? O samba é letra, o samba é uma poesia musicada, começa por ai. Então, ele é uma poesia sem métrica, claro. Mas, por exemplo, me ensinou a ver assuntos, uma espécie de redação: "Você vai descrever um passeio". Aprendi muita coisa com ele, aprendi também a ver samba com harmonia, discutir a letra, certo? Discutir o ritmo. E outra coisa, independente do Alfredo, eu tive um outro mestre, que eu aprendi com ele e ele não sabe que me ensinou, mas aprendi muito com ele, um cidadão chamado Cartola. Eu lidei tanto com ele que aprendi músicas, cantei pra ele músicas que ele já tinha esquecido. Cheguei a esse ponto. E depois, com o consentimento da falecida Zica, as músicas que não tinham segunda parte, eu terminei quatro. E com quem o senhor aprendeu a tocar violão? Olha, a primeira pessoa que me deu aula de violão, que me deu uma sequência de acordes, foi Dilermando Reis. Porque ele morava ali na Rua Visconde de Niterói e, na época, tinha uma escola de violões. Mas, na realidade, acontece o seguinte, com esse pouco que eu aprendi, eu cheguei a acompanhar Ângela Maria, Elizeth Cardoso, Cyro Monteiro e até o fabuloso Patativa (do Assaré), Augusto Calheiros. Quando ele veio aqui no Buraco Quente.
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E o que vem primeiro, a música, o samba, ou eles sempre vêm juntos? A letra ou a melodia? Normalmente, eu costumo fazer tudo junto. Se eu fizer letra pra musicar depois, eu dificilmente pego para musicar. Aí, eu vou procurar parceiro. Como o senhor entrou na Ala de Compositores da Mangueira. Foi levado por Carlos Cachaça, não foi? Eu entrei porque ele levou o Alfredo e eu fui junto. Mas o Alfredo era um bom ietrista, ele tinha músicas, três musicadas pelo Nelson Cavaquinho. Tinha uma música dele com o Cartola que o Cartola gostava muito. Com o titulo de "Os teus olhos cansam de chorar". Então, eu vim junto e comecei a "desemburrar". Tanto que, em 1948, o enredo da Mangueira era o Rio São Francisco. O Alfredo fez uma letra e eu musiquei. Isso em 1948, você (o jornalista Aloy Jupiara) não tinha nascido. Ainda não. Era uma época em que o samba-enredo não era quesito. Até 50, o samba-enredo não era quesito. Mas, a partir dai, algumas escolas faziam samba concernente ao enredo, mas a maioria não fazia. Agora, a partir de 48, a Mangueira sempre fez samba concernente ao enredo. Dois anos depois, o senhor fez o "Cãntico
à natureza"? O "Cântico á natureza" é de 54 (apresentado no carnaval de 1955). Que diferença o senhor vê na forma de fazero samba-enredo hoje e na forma como o senhor compôs o "Cântico à natureza" e "O Vale do São Francisco"? O samba-enredo sempre teve uma sinopse, uma pequena descrição do enredo. Hoje ela tem cinco laudas. Era uma pequena descrição do enredo e, nessa descrição, não pedia para você colocar que o jacaré cantou de galo, que a cobra voou porque ganhou asa. Olha, era assim, o compositor ia pra lá fazer samba. Fazia samba com lirismo, muito bem feito. Veja bem, eu não quero dizer que os compositores de sambas-enredo de hoje não são bons. Eles são bons, mas sofrem uma coisa, eles sofrem aquelas quatro laudas. E há carnavalesco que quer ver tudo aquilo que ele escreveu.
O senhor compõe com violão? Com ou sem violão. Se eu fizer uma música sem violão, depois eu vou conferir no violão. Uma parte de harmonia, né? Mas não tenho aquilo de sentar e pegar o violão para fazer.
O senhor acha que a riqueza melódica e lirica dos sambas dos anos 40 e 50 se mantém? Pra você botar música boa nesse catatau de
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40 frases fica dificil. Mas tudo por quê? Essa mudança se fez por causa do tempo de desfile. Então, você tem 80 minutos, 82, sei lá, pra desfilar cinco mil pessoas. Se você não botar, não tiver uma música que faça você andar, nem em duas horas a escola passa. É uma tragédia, mas dentro do contexto que é o tempo de desfile. Mas que obrigou uma mudança na cadência da bateria. Você precisa fazer a escola andar e o que faz andar é o ritmo. Quem sofre muito com isso? Passista, porta-bandeira e mestre-sala. Vamos voltar para o momento em que o senhor entra para a Ala dos Compositores. Teve teste? O senhor, entrando com Carlos Cachaça, levando o Alfredo Português, teve teste, o senhor teve de cantar algum samba? Não, não tive que apresentar nada. Naquela época, os ensaios eram no Buraco Quente, na sede velha. E tem uma coisa, o Cartola era diretor de harmonia. Então, os sambas tinham introdução. Não era abrir a boca e sair cantando não, tinha introdução de violão, cavaquinho, e eu estava lá com o meu violão caidinho fazendo também. E quando o samba terminava, repetia a introdução. Então, era um negócio mais cadenciado. Vamos falar dessas pessoas que formaram a Mangueira. Eu queria que o senhor falasse um pouquinho do Cartola. Ele deu as cores, deu nome e saiu cantando a Mangueira pelo mundo. Foi o grande patrocinador da Mangueira, foi o Cartola. Ele e Paulo (da Portela) foram a São Paulo, foram á Bahia, andaram popularizando suas escolas. A Mangueira, o Cartola; o Paulo, a Portela. Cartola consertou muito samba aqui. O compositor chegava com o samba meio quebrado, ele consertava e não botava o nome dele. Agora, os da minha época são Marreta, Cícero, Pelado, Jorge Zagaia, Hélio Turco. O senhor disse no inicio que teve a felicidade de colocar a segunda parte em quatro letras, quatro sambas inéditos do Caro tola. Quais foram esses sambas? "Eu vim lhe pedir", "Velho Estácio", "Deixa" e "Ciúme doentio".
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soa do Estácio vai vir aqui amanhã". Então, ele fez o samba. "Muito velho, pobre velho/ Vem subindo a Mangueira/ Com uma bengala na mão/ É o Estácio, velho Estácio ..." Então, nessa época, ele não cogitou de fazer a segunda, porque as pessoas faziam versos de improviso, ou com relação ao Estácio, ou com relação á Mangueira. Centenas de anos depois, um produtor estava fazendo um show com relação ao Estácio. Eu ia participar do show. "O senhor conhece alguma música do Estácio que a gente não conheça?" "Olha, eu conheço uma música do Cartola, mas não tem a segunda parte." Então, ele olhou pra minha cara e disse assim: "Faz." "Então, tá bem." Ai, eu fiz a segunda parte: "Estácio, pioneiro de samba/ Reduto de bambas/ Teu nome é tradicional ..." Como era a sua relação com Nelson Cavaquinho? Nelson foi o boêmio mais perfeito desse Rio de Janeiro. Ele tinha a Mangueira como escola, mas ele era de todo o Rio. Você o encontrava nos lugares mais estapafúrdios do mundo. E ele esteve morando na casa do Alfredo, ele morou seis meses. Então, eu vi ele lá tocando com o Alfredo, Cartola. Mas eu ainda não estava enfronhado nisso não. Eu era um mero espectador.
E Carlos Cachaça? Uma pessoa muito importante na Mangueira. Ele era o orador da escola. A sua carreira começa a crescer a partir dos anos 60. O senhor já falou do "Rosa de Ouro", de 1965, e o senhor frequentou muito o Zicartola. Como é que era o Zicartola? Pra você ter uma ideia, a peça "Rosa de Ouro" começou lá, o Opinião começou lá, porque o Zé Keti era o arregimentador do Zicartola, ele que levava os compositores. Apareciam lá Jackson do Pandeiro, Linda Batista, Cyro Monteiro, Paulo Marquês, todo o pessoal que trabalhava no rádio foi pro Zicartola. Como foi a temporada do "Rosa de Ouro"? Um sucesso. Acho que ficou uns três ou quatro meses num teatro ali em Botafogo. Esteve três semanas em Curitiba, quatro semanas em Salvador.
O "Velho Estácio" era um samba que o Cartola fez numa época em que Estácio e Mangueira confraternizavam tanto que uma pastora importante da Mangueira casou-se com um malandro do Estácio. Foi Nininha Chochoba. Eu disse para o Cartola: "Uma pes-
Eu tinha um trabalho paralelo, eu trabalhava em construção civil. E, como diz o Martinho, uma porção de filhos pra criar. O senhor já estava casado e tinha quantos filhos nessa época? Eu não estava casado. Eu casei faz seis anos. Seis anos. E não tenho filho (risos).
E não tem filhos? Calma, rapaz, da minha primeira ajuntação eu tive cinco filhos homens. E da segunda, eu tive dois filhos homens. Então, são sete filhos. Sete. E criei mais quatro.
E ai, deu pra largar o trabalho na construção civil com essa virada, com a mistura das artes plásticas com o samba? Hoje eu não tenho mais condição física pra estar trabalhando em obra, rapaz. Então, eu fui investir em música. Sou um pouco ator, um pouco escritor, um pouco sambista, um pouco artista plástico. Vamos voltar um pouquinho antes das artes plásticas. Como foi a participação no "A Voz do Morro"? No "Rosa de Ouro" você tinha Paulinho (da Viola), Elton (Medeiros), Jair, Anescar e o Nelson Sargento. Mas o A Voz do Morro já tinha feito um disco com esses quatro elementos, mais o Zé Cruz e mais o Oscar Bigode. Bom, quando o Zé Keti foi fazer o Opinião, ele largou o conjunto A Voz do Morro. E o quarto elemento de A Voz do Morro foi fazer o "Rosa de Ouro". Então, praticamente o conjunto ficou desmantelado. E então, como eu já estava lá, quando fizeram o segundo disco do "A Voz do Morro", eu participei. Eu participei do segundo disco e do terceiro. E depois, começa a sua carreira solo. Começou em 1979. Fiz um disco na Eldorado, lá em São Paulo. Qual foi o disco?
E nessa época, já dava pra viver do samO senhor podia cantar pra gente o "Velho Estácio" e o "Eu vim lhe pedir".
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"Sonho de um sambista".
ba? Ou não dava pra viver do samba? Há quem consiga viver de música. Roberto Carlos (risos), Zeca Pagodinho. E outros dão soco em faca de ponta. Como o senhor fazia pra se sustentar nessa época?
E qual é o sonho de um sambista? É ficar rico (risos). Não é só isso não, é? Não, o sonho de um sambista é ver o samba sempre numa situação superior e ver a sua
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escola se exibindo bem.
Mas existe alguma produção e as rádios não tocam.
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Existe onde?
"Sonho de um sambista" foi editado como LP e depois como CO. As gravações ajudaram o senhor a melhorar de vida. O que é que você chama de melhorar de vida?
Alguma produção. Existe alguma produção de samba e as rádios não tocam. Olha ...
Deu uma ajuda?
Por que as rádios não tocam?
Bem, eu vivo decentemente, graças a Deus. Mas no sacrifício. Todo fím do mês é aquela luta: telefone, água, luz.
Todo sambista é profissional, o sambista de escola de samba hoje é profissional. Por quê? Porque ele ganha dinheiro cantando samba. Eu, Monarco, Wilson Moreira, Nei Lopes, o falecido Luiz Carlos da Vila. Então, no fundo, nós somos profissionais. Agora, nós somos um profissional dificil de penetrar na camada. Por quê? Então, você vê, fulano vendeu um milhão de discos. O samba está bem. Está bem por quê? Porque dois ou três artistas venderam um milhão de discos? Agora, não tem mais ninguém vendendo um milhão de discos. A não ser na propaganda do Faustão: "Dois milhões de cópias vendidas!". Quando eu fiz "Samba agoniza, mas não morre", era na década de 60, porque estava acontecendo um ritmo que estavam jogando em cima da juventude, chamado iê-iê-iê.
Quantos CDs e LPs o senhor gravou? Três. Gravei um no Japão só com músicas do Cartola, gravei outro CO no Japão de músicas de show que fiz lá, gravei em 86 um CO patrocinado por um japonês, gravei um CO patrocinado pela Cultura, mas com apoio particular, e fiz agora um apoiado pela Natura. Isso com mais de 40 anos de carreira. Por que a indústria fonográfica grava tão pouco e dá tão pouco apoio aos sambistas tradicionais? Ah, todo sambista tradicional gravou. Sinval Silva, Ismael (Silva). Agora, gravou para reconhecimento, não gravou para ficar abastado, entendeu? Agora, se projetaram numa época em que a divulgação era a sua presença. Você precisava estar nos redutos e cantar. "O fulano esteve aqui", "o fulano cantou ali". Era mais presença.
Nesse periodo, o senhor acha que o samba vive um periodo de agonia? E quem é que vai socorrê-lo? Através de gravações, vive. Através de música ao vivo ele está muito bem. Você tem agora um grande recinto que se chama Lapa.
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Você tem agora renascendo uma cidade chamada Maricá, essa cidade neste carnaval levou os artistas do Rio, eu, Monarco, Wilson Moreira, Walter Alfaiate, e fizemos o carnaval deles durante quatro dias. Sábado, domingo, segunda e terça. Então, os blocos também estão dando uma vida ao samba. Agora, comercialmente, que é o samba gravado, esse é pra uns e alguns. E quem pode socorrer o samba? Alguém deveria fazer uma firma pra distribuir disco independente. Bem organizada, ia ganhar dinheiro. Porque o que existe de disco independente por ai e de qualidade ... Não falta. Porque o cara faz disco independente, investe, faz dez mil cópias ou 15 mil cópias, tira o dinheiro que ele empregou, mas não tem lucro. Pelo menos tem o ressarcimento do que ele investiu.
o senhor poderia falar sobre a importância do Centro Cultural Cartola em resgatar a memória dos sambistas tradicionais? Felizmente, uma pessoa remanescente de Cartola (Nilcemar Nogueira) cuida da imagem de Cartola com afinco. Agora, quem cuida da imagem do Ismael? Será que ele não tem um parente que também possa fazer isso? Quem cuida da imagem do Candeia? Quem vai cuidar da imagem de Jair do Cavaquinho? Então, a pessoa que cuida de permanecer o Cartola, deixar o Cartola mais vivo que nunca ...
Rio de Janeiro
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ano 5
número 4 I
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PAIXÃO E ARTICULAÇÃO POLíTICA A SERVI O DO SAMBA Ed Miranda Rosa chegou a ser diretor da Unidos da Matriz, no Engenho Novo. Até que um dia foi a uma feijoada na casa de Carlos Cachaça no morro e nunca mais deixou a Estação Primeira. Era sensível quando se tratava de samba. Ficava emocionado ao ver a Mangueira sem o seu verde e rosa e foi compositor. Mas sua atuação era, sobretudo, política. Ex-presidente da verde-e-rosa e da Associação das Velhas Guardas do Rio e policial, combateu a perseguição aos sambistas e, até o fim da vida, lutou pelo respeito aos veteranos que abriram o caminho, conforme o depoimento prestado em 28 de março de 2009, pouco mais de um ano antes de falecer, em 10 de maio de 2010.
Nasci em 12 de dezembro de 1916. Estou viúvo, aposentado como funcionário público.
Onde o senhor nasceu? Na estação Sagui de Realengo. Mas eu me criei mais no Engenho Novo e vim pra Mangueira em 1943, a convite de amigos. Eu era da Matriz. Me chamaram aqui, fizeram uma feijoada e, naquela época, eu bebia bem. Fizeram a feijoada na casa do falecido Carlos Cachaça. Aí, eu entrei lá e nunca mais voltei na Matriz. Moro lá há 50 anos, mas não convivi mais com o pessoal lá de cima. E o que encantou o senhor na Mangueira? Eu era jovem na época e vim para sair nos (Ala dos) Periquitos. Não me deixaram porque eu era jovem. Então, criaram uma Ala dos Boêmios. Então, eu comecei a participar dessa Ala dos Boêmios. Como era o desfile nessa época em que o senhor estava na Ala dos Boêmios? O desfile daquela época não se pode comparar. Mas eu posso dizer o seguinte: tinha mais liberdade pra se brincar o carnaval. Hoje não. Hoje é tolhido, pois tem o rigor das alegorias. E como foi a passagem do senhor das alas
para a diretoria? Quem convidou o senhor e por que o senhor foi convidado? Naquela época foi o Cartola e o Carlos Cachaça. "Você tá se perdendo nesse meio. Vem ajudar a gente na diretoria." Em 1957-58, mais ou menos, eu fui para a diretoria. E na diretoria, eu passei ao cargo de presidente em 1975-77. No começo, o que o senhor fazia na diretoria da Mangueira? O cargo era na harmonia, subordinado ao Xangô, harmonia, na época. Ah, subordinado ao Xangô ... Subordinado ao Xangô, ajudava ele. E aprendeu muito com o Xangô? Ah, demais. Ele era o exemplo da coisa, saía apitando pelas casas, pelos barracos afora, quando estava na hora do ensaio. Aí, as pastoras vinham descendo pra poder ensaiar. Ainda era no Buraco (Quente). Não era na quadra. Naquela época não tinha quadra, a quadra surgiu ... Quer que eu conte essa história?
Rio de Janeiro
Claro. A quadra surgiu da seguinte maneira. Juntou o falecido Cartola, eu, Sinhozinho e Guilherme Rodrigues. "Vamos lá pedir pro Seu José da Cerâmica (fábrica perto do morro) para a gente ensaiar?" Fomos lá. "O que vocês vieram fazer aqui?" "Nós viemos lá da Mangueira e queríamos que o senhor desse um espaço para a gente ensaiar aqui na Cerâmica." "Aqui?! Eu não quero samba aqui, não!" Quando ele falou "Eu não quero samba aqui não", quem vem saindo de lá para cá? Quem? Roberto Paulino. "Pera ai, 90% da nossa firma é de pessoal ai do morro. Não é nada demais a gente dar alguma coisa para eles. Não é nada demais. O que é isso?" "Já que você falou, então você resolve." "Tá resolvido que eu vou dar uma quadra pra eles." Ai, nós começamos a ensaiar na Cerâmica. Foi um sacrificio tremendo, pois nós tínha.mos que carregar nas costas bebida daqui da Saião Lobato (no Buraco Quente) para lá. Saia naquela correria, o pessoal carregando na sexta-feira para armar para sábado a gente já fazer. Eu me lembro bem ainda, o falecido Hermes disse assim: "Já que o Roberto Paulino deu esse lugar pra gente ensaiar aqui, vamos peitar ele e pedir para trazer uns brancos pra cá, pra ajudar a gente". "Não vai dar certo." "Vamos". Ai, fomos. "Doutor, o senhor podia no próximo sábado trazer uns vizinhos seus do seu prédio pra aqui pra ver a gente. Nós não somos nenhum bicho." "Pode deixar". Ele trouxe uns seis casais. No outro sábado, apareceu o Albino Pinheiro (fundador da Banda de Ipanema), com mais de 20 casais. Ai, pronto! Enfeitou a Cerâmica. Naquele feito da Cerâmica, é Rodrigo novamente: "Vamos fazer uma conta, botar uma barrica ai na porta". Todo mundo que passar, todo mundo é doutor: "Doutor, ajuda o nosso enredo. Qualquer moeda serve". Aí, todos já cheios de leite de onça ... Leite de onça pegava mesmo, jogava no chão. É docinho, bom, mas começa a beber. .. derrubava. Então, resultado: começaram a jogar dinheiro na barrica. Ih, ficava a quadra no domingo, quase a gente não via negro. Encheu de branco. Outra vez, esse aqui, Sinhozinho, com o Hermes Rodrigues me chamaram: "Vamos chamar ele pra ser o presidente nosso." "Ele quem?" "Doutor Roberto Paulino." "Ele não vai aceitar. É um homem que tem suas obrigações sociais para estar aturando sambístas." "Vamos tentar". Ai, fomos lá. "O que os senhores desejam?" "Nós viemos aqui para lhe convidar, o senhor foí eleito, está a ata escrita aqui, presidente da Estação Primeira de Mangueira." "Eu?" "É, o senhor mesmo." "Eu não tenho tempo pra isso." "Não precisa ter tempo não, nós estamos aqui para lhe ajudar." Ah, coitado! Aceitou. Aceitou, se empolgou e o primeiro enredo
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número 4
logo, "Casa Grande e Senzala", ele gastou o que não tinha para gastar. Então, eu tenho o maior respeito por ele até hoje, Roberto Paulino.
ca não se manifestava não. A partir daquela época que começou a aparecer, mas só o Djalma Arruda que fez meu carnaval por dois anos.
Naquela época em que o senhor veio para a Mangueira, o samba ainda era muito perseguido pela policia?
o senhor
A gente entrava na Praça Onze. Quatro, cinco escolas na Praça Onze. Ai, doutor Dulcidio Gonçalves e um tal de Monteiro, um investigador bruto .... Deus me livre me comparar a um patife daqueles. Eu fui policia 40 anos, mas sempre maneiro, sempre sambista, sempre consciente do outro lado da vida. Um tal de Monteiro: "Olha a revista! O senhor continua no meio". "Continuo, o que é que tem? E o que é que tem eu estar no meio?" "Preciso fazer uma comunicação ao chefe de policia para o senhor sair desse meio." "Pode fazer o que quiser, eu sou sambista e carioca." Ai, passou. Ai, Cartola disse: "Sabe de uma coisa? Vou acabar com isso." "De que jeito?" "Vou acabar." Foi na Casa da Moeda, convidou uns trinta da Casa da Moeda. Ai, vieram só vinte, de terno, gravata, tudo certinho. No ano seguinte, todo mundo à frente. "A revista!" Uma carteirada em cima dele, esse Monteiro se assustou. "Doutor, a coisa mudou, doutor. A coisa mudou." "Mudou por quê?" "Só funcionários do Ministério da Fazenda. Todos de gravata, colarinho." "Então para com essa revista." Então, Angenor de Oliveira, Cartola, essa passagem é dele. Botou eles na frente (da escola) e você vê que naquela época só cumprimentava. Até eu já sai na frente, só cumprimentando, ninguém dançava. Depois é que veio a época da dança, melhorou um pouco mais, mas tirou aquele elo daquela oportunidade. Dessas mudanças todas daquela época para cá, mudaram a comissão de frente e a harmonia da escola. Agora, a bateria continua com a caracteristica dela. A bateria, nós temos orgulho. É o mesmo som de 50 anos passados. E hoje em dia, existe preconceito contra sambista? Pelo contrário, eles até respeitam mais. A Policia Militar em frente à quadra botou um posto.
foi presidente em 75?
1975.
E
76?
Não, 77 a 80. 77 a 80. Como era fazer carnaval naquela época? Era a mesma época de agora. Dependia de ter condições financeiras. Tinha menos dinheiro pra fazer. Eu fiz um carnaval meu e fui até criticado. A carnavalesca não gostou do verde e rosa e botou tudo branco. Inclusive bananas, bananas brancas. É banana-prata. A danada me botou tudo branco e rosa só na bateria. O resto todo branco. Ai, fui criticado à beça. Não sai bem por causa disso. Quando acaba, fui malhado á beça e não tinha culpa nenhuma. Quem estava pagando era o Djalma. Mas o senhor fez carnavais que gostou? Cheguei a sétimo lugar, sexto lugar, por ai. Fui sétimo, oitavo lugar, não fui para mais do que isso. Nunca tive carnaval pra primeiro lugar não. Qual a importância das Velhas Guardas para as escolas de samba? É um respeito à dignidade do passado. Quem na época correu da policia, foi espancado, aquela coisa toda. Foi um prêmio que foi dado. Por exemplo, Angenor de Oliveira, uma vez pegaram ele pra jogar no Mangue. Pegaram quatro ou cinco. "Ei, o que é isso ai?" Gritei, gritei, gritei. Ai, chegou uma porção de baianas em cima e tiraram ele do meio. Porque ele era assim meio folgadão mesmo. Não engolia muita coisa não. Ai, queriam jogar ele dentro do Mangue. Então, é um passado triste. Mas no presente, agora, a gente se alegra de ver aquela beleza de desfile.
Como foi a sua chegada à presidência da escola?
As Velhas Guardas são respeitadas dentro
Na minha época, era uma época mais pobre. Eu agradeço ao saudoso, um homem só que me ajudou. O resto, a imprensa daquela épo-
São. Nem toda escola, mas na Mangueira é bem respeitada. Até a roupa é dada pela diretoria. Vila Isabel já está dando a roupa
das escolas?
também. Mas a Portela não dá a roupa. Muitos estão passando a deixar de sair porque são 875 reais uma roupa pra sair na Velha Guarda. O que é isso?! Não dá pra isso. Com um salário-mínimo, vai fazer o quê? Muitos deixaram de sair. A Liga Independente das Escolas de Samba respeita as Velhas Guardas? Respeita. Tanto é que, nessa semana agora, eu pedi uma audiência pra ir lá conversar com eles pra fazer o ofício depois. Porque eles me dão 40 ingressos por dia. Vê lá quantos a Velha Guarda não tem. Depois do carnaval é uma porção de cara feia comigo, xingando a minha mãe e tudo. Eu não tenho culpa, quem vem pedindo eu vou dando. Ai, chega na hora, não dá certo. Quarenta ingressos pra mil componentes.
É, o andamento do samba. Ah, o samba! Samba eu gosto mais do passado. Os compositores do passado, eles eram mais habilidosos, mais preocupados com a melodia, do que os de hoje em dia? Tinham muito mais inspiração do que os da época atual. Os da época atual recorrem muito a livros. Naquela época, era a inspiração mesmo do individuo. Onde estão os sambas do senhor? Estão gravados? Gravado só tem um partido-alto que eu fiz há pouco tempo, um compositor da Mangueira gostou e gravou.
Mas até hoje não se preocupou em fazer? O senhor acha que tem quantos samba na sua memória? Ah, tenho uma meia dúzia deles, eu me lembro de vez em quando. De vez em quando eu me lembro de um e começo a cantar sozinho. Por que não grava? Não tive oportunidade. Depois, ficou muito difícil a gravação. Ficou muito difícil. Tem que ter dinheiro ou ter amizade. Se não, não chega lá. Qual dos seus sambas o senhor gosta mais? "Amor, adeus Foram estas frases que nos separaram Ai, nunca mais
Por que o senhor é tão pouco conhecido como compositor?
São mil associados? Não, de todas as escolas. A Associação da Velha Guarda é quem patrocina, quem domina. A associação onde eu sou o presidente, ela é quem domina e faz a distribuição (de ingressos). Quantos sambistas tem associados na... Na Associação da Velha Guarda?
Gozado, eu tive uma época em que cismei e disse: "Eu vou escrever um samba-enredo". Mas, pensei bem: "Não vou me meter nessa briga não, não vai dar certo, vou ficar no meu lado mesmo". Fiquei no lado de cá. Mas gosto de ver a melodia. Quer letra mais bonita que "Mangueira, teu cenário é uma beleza"? Isso é letra eterna, não é pra amanhã ou depois não.
Nem eu pensei, nem tu pensaste em reviver o nosso amor Tudo acabado entre nós Já não posso nem ouvir a tua voz Quando você pensou Em ser fiel para mim e a nossa vida Transformou em tormento Foi inevitável a separação Para aliviar o meu e o teu coração Porém, amor, adeus."
Isso.
O senhor fez samba de terreiro, então?
Todas as escolas de samba são filiadas.
Só samba de terreiro.
Mas quantas ideia?
pessoas?
O senhor
tem
E onde estão esses sambas, estão gravados em fita cassete? O senhor anotou?
Ah, não tenho ideia não, entende? Na minha Mangueira, nós temos 116 componentes. Eu acho que bem mais altas aqui são Vila Isabel, Mangueira, Portela e Império Serrano.
Eu tenho comigo. Tem até uma meia dúzia que eu entrei de sócio pra SBACEM (Sociedade Brasileira de Autores, Compositores e Escritores de Música). Eu fazia essa música de carnaval.
Quando foi criada a associação? Em 1970.
Mas só meia dúzia? É, só meia dúzia.
E qual o objetivo? Dar um amparo melhor à Velha Guarda. Mas até agora não teve um caminho pra chegar até lá. Queria fazer um retiro mais ou menos igual ao Retiro dos Artistas, mas até agora não chegou até lá, porque não há condição.
E os outros? Eu parei. Está na memória? Tá, tá aqui.
O senhor gosta dos desfiles de hoje? Algumas coisas mudaram, como o andamento muito acelerado por causa da cronometra. gemo O que o senhor acha disso?
Mas não seria bom se o senhor gravasse uma fita cassete pra deixar para os outros mangueirenses os seus sambas?
O andamento que você quer dizer, a ginga de corpo?
O meu filho está cansado de falar isso comigo e eu não faço.
Esse ainda foi gravado. Arrumei uma parceria com aquele bicho lá do Largo do Machado. Ele: "Eu vou gravar". E gravou mesmo. O senhor cantava esses sambas para Cartola, Nelson Cavaquinho? As letras de Nelson Cavaquinho e Carlos Cachaça têm que ser um símbolo para a História do Brasil. Mas o senhor mostrava os seus sambas pra eles? Eu respeitava eles, pois são de uma instância e eu sou de outra instância. É vaidade minha eu querer igualar, não dá condição. Por que o samba de terreiro perdeu tanto espaço nas escolas? O samba-enredo invadiu de uma maneira tal que os compositores não cantam mais sambas de terreiro. A coisa mais linda que tinha era samba de terreiro, a coisa mais linda da época era samba de terreiro. Por que os dirigentes das escolas não promovem mais rodas de samba de terreiro?
o interesse
deles é sair com o pires na mão, pedindo subvenção por ai afora. E os sambistas, eles continuam compondo samba de terreiro? Compondo, mas para gravar. Grava direto? Grava direto.
Os seus filhos estão na Mangueira? O meu filho? É. Faleceu, o que saia na Mangueira. O outro está até na França. É engenheiro e está na França. É mangueirense, essa coisa toda, mas não chega pra cá não. Agora, a minha filha é baiana da Velha Guarda.
Os banqueiros de bicho. Foram eles que começaram a fazer essa transação. O nosso era o Júlio Matos, que fazia carnaval de graça. Quinze anos, vinte anos, fazia carnaval de graça. Júlio Matos, até o meu carnaval foi ele quem fez. Júlio Matos fazia de graça. Dava uma Coca-Cola pra ele e estava bom, tudo de graça. Mas, depois, vieram os banqueiros oferecendo vantagens e foram arrastando os carnavalescos por aí, dando razão a eles. Até chegar ao ponto em que chegaram.
É baiana?
Não canta nas quadras. Grava direto.
Baiana da Velha Guarda. É psicóloga e baiana da Velha Guarda.
O senhor acha que tem um caminho de volta pra se respeitar as cores das escolas de novo?
o samba de terreiro era importante para aquecer.
Qual o nome dela?
Não, não volta mais não. Daqui pra frente, cada vez mais.
Naquela época passava na escola, agora não. Grava, vão direto, vão cantar lá nas esquinas da cidade e de lá gravam.
o
senhor acha que esses sambas de terreiro que deixaram de ser cantados nas quadras e que não foram gravados, eles podem também ser esquecidos? Podem, eu concordo. Tem um samba do Cartola que eu canto e ninguém sabe disso.
Alaide Paula Miranda Rosa. É baiana da Velha Guarda, tem 30 e poucos anos. Mas quer sair só de baiana. E a Mangueira pro senhor, o que ela representa? É meu segundo lar. Primeiro o meu lar da minha casa, depois a Mangueira. Tanto que eu estou meio triste, encabulado, de não ter tido eleição esse ano. Não teve eleição, não teve nada, está um rebuliço pra cá, que ninguém quer.
Qual é? É do Cartola, do Angenor.
Qual a importância para o senhor?
"Maria, vem chegando a Mangueira
. Pra mim, o que eu me lembro bem é que essa grande carnavalesca, essa grande carnavalesca que não está fazendo carnaval mais ...
Nossa escola primeira Não convém demorar Se queres ver Mangueira passar Não convém demorar"
Maria Augusta.
Mas ninguém canta isso. Mas, hoje em dia, não é uma pena esses sambas não serem cantados e estarem se perdendo na memória das pessoas? Não adianta, os compositores atuais compõem samba-enredo e o samba de quadra não é com eles, não.
o senhor
acha que os compositores fazem samba-enredo hoje ...
da cor verde e rosa
que
Eles são culpados, eles têm condições de fazer ... Têm condições de fazer samba de terreiro, mas não fazem. Não fazem, ficam naquela esperança de fazer pra ganhar o carnaval e acabam não fazendo porcaria nenhuma
Ela disse: "Não leve a mal não, mas é muito ruim pra fazer a Mangueira por causa da cor. A cor verde e rosa é ruim á beça". Eu disse: "Como é que o azul e branco é bom e o verde e rosa não é?" Tanto que eles têm essa pinimba, que o Max Lopes que ganhou três campeonatos ai, mas respeitando um pouco o verde e rosa. Provando que quanto mais branco e rosa e ouro, aquela coisa toda, o verde e rosa vai lá pra trás. Se eles fazem a Portela azul e branco, fazem o Salgueiro vermelho e branco, não podem fazer a Mangueira verde e rosa? O que o senhor sente vendo a Mangueira desfilando sem as cores verde e rosa tradicionais? As lágrimas vêm nos olhos. Quem deu tanto poder aos carnavalescos dentro das escolas?
Mas o senhor não vê pessoas lutando pela manutenção das tradições das escolas? Lutar é uma coisa. Por exemplo, quer mais tradição do que o Império Serrano? Ficou desacreditado. Pegaram o pobre do Império e jogaram pra baixo Quando o senhor estava na Matriz, antes de vir para a Mangueira, já estava envolvido com o samba? Cara, naquela época eu era o que se chamava de leão de chácara de gafieira, no Fogão, no Engenho Novo. E muitos da Mangueira frequentavam lá. Eles começaram a avacalhar. "PÔ, isso ai é bloco, não é escola de samba". Eu era da diretoria da Matriz. "Mas eu gosto daqui". Até que fizeram essa feijoada que eu sempre conto, na casa do Carlos Cachaça, e eu fui nessa feijoada. Naquela época eu bebia bem mesmo, me perdi. Me botaram no carro pra eu ir embora pra casa. Ai, nunca mais eu quis saber da Matriz. E moro lá na Matriz, ali perto. E nessa época o senhor estudava? Estudava. Estudou até que série? Eu tenho dois cursos, Administração de Empresas e Relações-Públicas. Seu Ed Miranda, uma mensagem para os jovens mangueirenses, para os jovens sambistas. O que o senhor diria pra eles? Vamos nos unir cada vez mais, sem preconceito de cor nem de raça, todos nós somos iguais, somos mangueirenses. Vamos dar as mãos e não deixar a nossa Mangueira cair. Peço a Deus: "Mantenham a tradição do passado! Respeitem Cartola, gente!"
A DIGNIDADE DE UM MESTRE-SALA CHAMADO DELEGADO Quando se fala em mestre-sala, Hégio Laurindo da Silva, o Delegado, é a principal referência. Não só pela sua história no samba, que começou na década de 1930, como também pela qualidade, comprovada por notas máximas em carnavais seguidos. Filho de dançarino, sobrinho de mestresala e integrante do balé de Mercedes Baptista, ele sempre mostrou completo domínio do corpo esguio, seja na Avenida seja como jogador de futebol, carreira na qual enfrentou obstáculos por ser negro, conforme contou no depoimento de 14 de fevereiro de 2009. Morreu no dia 12 de novembro de 2012.
Nasci em 1921*,29 de dezembro.
No Rio de Janeiro? Rio de Janeiro, Mangueira. Quais eram os nomes dos seus pais? Maria das Dores e Miguel Laurindo da Silva.
o que eles faziam
no morro?
O meu pai era um dos maiores dançarinos. Valsa, não tinha quem dançasse como ele. Minha mãe não, ela não gostava muito. Mas meu pai, podia contar que ele, quando entrava no salão, era fogo. Só dava ele. Quantos irmãos o senhor tinha? Oito.
o senhor
era o mais velho?
Buraco Quente, na Estudantina. Ai, me deu aquela oportunidade, aquela vontade de também aprender a dançar. Também comecei a dançar na Estudantina, na Praça Tiradentes, onde tinha aquele baile. Sempre eu estava naquele baile, com 18 anos. E ali eu fui dançando muito bem. Dançava tudo, tango, podia vir que eu rasgava. Valsa, eu estou aí, boleros, eu estou aí.
o seu pai
dançava tudo isso também, dançava
valsa? Dançava tudo. Com que idade ele começou a levar o senhor para a Estudantina e para outras gafieiras? Com 17 anos eu já estava na Estudantina Eu ai fui ver ele dançar, ele me levava: igual ao teu pai". Só que foi uma coisa ferente, ele ficou na dança e eu fiquei no
com ele. "Vai ficar muito disamba.
O mais velho. Como foi a influência do seu pai sobre o senhor? Ele dançava e eu também. Na minha idade de 5, 6, 8, 9 anos, eu via ele fazendo aquilo no salão, no
E a sua mãe, que não gostava de sambar, o que ela achava disso? Não podia falar nada. Os filhos todos gostavam de samba, ela só podia ficar do lado, só apreciando a gente.
Rio de Janeiro
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número 4
Ela gostava de ver, então?
riam mais novos?
Ela gostava de ver a gente dançando.
É, todos menores. Dai eu fui, né?
Ela apoiava?
Essa experiência que o senhor teve no Fluminense de não poder jogar por ser negro marcou o senhor e houve outros momentos da sua vida em que isso apareceu?
Aturava, aturava. Ao mesmo tempo em que o senhor dançava, o senhor gostava muito de futebol quando garoto. Perfeitamente. Eu fui um dos maiores center-forward (centro-avante). Eu já trabalhava na Cerâmica (fábrica perto do morro) e lá tinha o nosso time. Isso com que idade mais ou menos? Comecei futebol com 16, com 17, 19. Aí, quando entrou a oportunidade, chegou um rapaz e disse assim: "Delegado, vou levar você para o Fluminense." Aí, eu disse: "ó, rapaz, você vai me levar para o Fluminense?". O Fluminense nessa época era um time que não gostava de preto. "O que é que eu vou fazer lá? Não, não tem nada disso, você está jogando bola, vai chegar lá e ser bem recebido." Então, eu fui. Fui, entrei, me deram a camisa. Nessa época, eu fiz três gols. De cabeça, de rabanada, bicicleta. Ai, chegou no final, disseram: "Aí, Delegado, é triste. Você joga bem, gostamos de você, mas da cor não dá para jogar". Naquele tempo, o Fluminense não aceitava preto. Aí, eu disse: "Tá bom, não tem nada. Agora, eu garanto que fiz meu nome aqui no Fluminense". "Você fez muito bem. Mas tem que a cor não ajudou".
o senhor
saiu triste de lá?
Saí tríste de lá. Aí, fiquei mesmo no meu time, jogando mínhas bolinhas para lá e pra cá. Aí, fomos campeões, não tinha quem batesse na Cerâmica. Fomos campeões várias vezes. Onde nós chegávamos, não tinha time que batesse a gente.
o senhor passou por
outros times, fez teste?
Fui ao São Cristóvão, cheguei no São Cristóvão, a idade já tinha passado. Naquele tempo, o juvenil era novo, com 14, 15 anos é que ele recebia a gente para ficar. Mas ali, a minha idade já estava avançada. No Flamengo foi a mesma coisa, eu estava avançado também. Com que idade mais ou menos o senhor estava? Eu estava com 19. Com 19. E eles acharam avançada, que-
Marcou lá dentro. Marcou porque eu gostaria de estar jogando futebol, pulando e tal. Eles não me receberam porque eu era da cor. O que eu vou fazer? Não vou fazer nada, né? Por que o senhor deixou de jogar futebol? Levei uma bolada e operei o estômago. Eu fiquei abalado e pensei: "Vou entrar novamente e posso me prejudicar". Já não jogava na escola. Ai, eu disse: "Não, depois que eu ficar doente, quem é que vai me sustentar?" Aí, eu abandonei o futebol e fiquei no samba.
"Está bem". Ele vinha sempre na Mangueira para ver o ensaio, via como eu fazia, gostava de mim. Ai, ele me deu um emprego na prefeitura, eu fiquei empregado na prefeitura, na fiscalização de feira. Mas esse não foi o seu primeiro emprego? Meu primeiro emprego foi na Cerâmica. Depois da Cerâmica é que eu fui nomeado para o estado. Eu me aposentei. Mas, em matéria de samba, eu corri o mundo todo. Em 70, fui representando o mundo do samba, na Copa de 70. Era eu, (Wilson) Símonal, Jorge Ben, todos lá. Fui para a Argentina, fui para a França, fui para a Alemanha. Isso tudo foi o samba que levou o senhor? Tudo o samba que me levou.
o senhor
o senhor começou a trabalhar cedo, na adolescência, não foi? Comecei a trabalhar cedo.
o senhor
estudou até que ano?
Eu quase não estudei, porque eu era um menino lá do morro. Com esse nome de Delegado, então, eu prendia todas as meninas, compreendeu? E aí, na escola, no terceiro ano eu sai. Aí, meu pai disse: "Você não está bom na idade nâo, não está bom. Eu vou internar você." Aí, me levou e me botou no asilo. O asilo ai é que estragou o meu estudo. Eu fui para Mínas. Chegava lá não tinha estudo para a gente. Só tinha enxada, que eles davam pra gente arrancar tiririca das couves, plantar. Mas estudar mesmo, nada. E eu fiquei lá internado. Aí, fiquei lá uns três anos. Aí, eu disse: "Quatro anos eu não vou aguentar mais não, eu vou fugir". Aí, eu vim e fugi. Nunca mais fui pra lá e fiqueí na minha onda de samba.
o senhor
tinha que idade quando foi para
o asilo e depois que fugiu? Eu estava com 19. Essa situação aconteceu só com o senhor na sua família, ou com outros irmãos?
trabalhou na fábrica de cerâmica
e fazia o que lá? Eu era colador, colava os ladrilhos que vinham para colocar nas paredes. Como é que veio o apelido Delegado? Eu prendia todas as meninas, tá? Todo sábado eu vinha com duas, três. Aí, eles mesmos falavam: "Meu Deus do céu, como é que pode ser? Ele dá uma sorte danada. Uma vez ele tá com uma, ai, pega uma e pega outra. Vamos botar ele como Delegado." Mas eram namoradas dançar?
ou moças
para
Namoradas, eu "prendia" mesmo no namoro e tal, né? Vamos falar agora da fundação da Estação Primeira de Mangueira. O senhor cresceu no morro ... Sou um dos fundadores. Viu crescer, viu a escola surgir? Perfeitamente. O senhor então deve ter pegado ... A Unidos da Mangueira.
Só comigo. Só com o senhor? Aí, eu fui pro samba, né? No samba, eu comecei, entrei com 19. Naquele tempo o governador era Bertrano Marinho (em 1930 era Manoel Duarte), que disse: "Delegado, eu vou dar um emprego para você". Eu disse:
Depois do Bloco dos Arengueiros, seria a Unidos da Mangueira?
o que
A Unidos da Mangueira era do outro lado, porque aqui tinha duas escolas: Unidos da Mangueira e Estação Primeira. A Unidos da Mangueira ficava de qual
lado, do Telégrafo? Ficava pegada à estação de trem. Pegada à estação ferroviária? Mais embaixo, onde eu nasci. E aqui tinha o Buraco Quente, que era a Mangueira. A Estação Primeira. A Estação Primeira. Então, o Chico Porrão, que era um dos maiores diretores de harmonia e era banqueiro de bicho nosso aqui, disse: "Aqui vai ficar uma escola só. Vamos unir Unidos da Mangueira. Passa a ser uma só escola". Ai, ficou sendo Estação Primeira de Mangueira.
Foi desde os primeiros anos do século até quando a Mocinha morreu. A Mocinha morreu nos anos 80, não é? Mas eu fiquei ainda. Ainda fiquei no tempo do Braguinha ("Yes, nós temos Braguinha", enredo de 1984). Depois do Braguinha que ela faleceu. Vamos voltar um pouco no tempo e falar do seu aprendizado de ser mestre-sala. Qual foi a influência de seu tio Jorge Rasgado para o senhor? Também era mestre-sala. Era da Estação Primeira e eu era da Unidos da Mangueira. Mas ele não influenciou dançar?
Antes disso, o senhor estava mais para o lado da Unidos da Mangueira ou da Estação Primeira? Do outro lado, da Unidos da Mangueira. Como foi o momento em que o senhor se apresentou para ser mestre-sala da escola? Para ser mestre-sala houve uma disputa entre mim e o Ailton.
Ele influenciou a minha forma, eu gostava de ver ele. Mas depois eu fui melhor do que ele.
o
lembra quem?
A melhor porta-bandeira minha foi a falecida Nininha. Mas o teste foi com a Nininha? O teste foi com a Nininha. Depois, a Nininha faleceu e eu peguei a mesma coisa, parente dela, a Neide. Essa, pra mim, foi uma das maiores porta-bandeiras da minha época. Dançou comigo até ... Ela faleceu, aí veio a Mocinha. Ai, eu dancei com a Mocinha. A Mocinha faleceu. Eu disse: "Eu vou parar, as maiores porta-bandeiras estão morrendo". Então, o senhor dançou quase 50 anos como mestre-sala, é isso?
Ele precisa ter calma, ter vontade mesmo. Chegar em casa, ele começar a fazer os passos dele, ali e tal. Sempre, sempre, sempre fazendo e dançando, para poder me assumir. Porque todos esses mestres-salas que você está vendo ai, quase todos foram meus alunos. E o senhor gosta de ser professor e de explicar a arte? Gosto.
Eu desenvolvi sozinho. Agora, eu primeiro comecei também com um pouco de balé com a Mercedes Baptista, né? Mas, depois, eu abandonei o balé.
Ensinar. Algum dia, vocês ainda vão ser Delegados, vão pegar quase a mesma coisa que eu fui. Então, nós vamos fazer direito. Todo sábado eu dou aula lá na Passarela (do Samba) com o (Manoel) Dionísio.
o balé da Mercedes
o senhor
Qual é a qualidade que um sambista precisa ter para ser um bom mestre-sala?
A arte do mestre-sala?
É. Depois, eu comecei a fazer as minhas evoluções em casa mesmo. Eu ligava o rádio e eu mesmo fazia meus passos. Eu não tive professor.
foi feito com uma porta-bandeira?
Era a Ivete.
senhor pediu ajuda a alguém para aprender? Como o senhor se desenvolveu?
Entre o senhor e quem?
o teste
Qual das suas irmãs que dançava com o senhor?
a sua forma de
Ailton. Aquele que dançasse melhor seria o primeiro mestre-sala da Mangueira. Então, nós fizemos aquele duelo, todo mundo em volta, dançou ele primeiro. Quando eu dancei, os jurados deram que eu podia ser o primeiro mestre-sala da Mangueira.
Com uma porta-bandeira.
Perfeitamente.
Baptista?
Mas a história do senhor com o seu pai, o fato de o seu pai ser bailarino e ter levado o senhor pra dançar, o senhor passando pela Mercedes Baptista, o senhor vendo o Jorge Rasgado dançar, tudo isso ajudou ... Tudo isso me ajudou a subir mais e ter aquela vontade de ser um mestre-sala. Porque eu queria pegar o lugar dele (Jorge Rasgado) e ficava ... Compreendeu? Ficava: "Aí, meu Deus, será que eu vou fazer esse passo?". Tudo que ele ficava fazendo ali, eu ficava olhando. Mas eu fazia melhor. Eu chegava em casa e dizia: "Vou preparar meus passinhos". Eu mesmo fazia.
Com Manoel Dioniso, professor Manoel Dionísio ali na Passarela do Samba? Isso, na Passarela do Samba, com todos os mestres-salas. Esses que você está vendo agora, que estão na Portela, que estão na Vila Isabel, que estão em várias escolas ai, todos passaram na nossa mão. Então, o prazer meu é esse lá. Eles vêm, passam perto de mim, me respeitam. Eles vêm com a bandeira, dançam, aí vêm me cumprimentar, me dar a bandeira, me oferecendo a bandeira do ensaio. Algum dos seus alunos o senhor apontaria como o seu herdeiro, como o novo Delegado? Perfeitamente. Quem? Todos eles.
o senhor
ligava o rádio e ia dançar?
Pegava a vassoura da minha irmã e eu mesmo começava a fazer meus (passos) ... Pegava a vassoura ...
Mas um só, não? Só o (Noel) Canelinha (ex-Império Serrano).
Da minha irmã.
o que tinha de diferente na dança do mestre-saIa?
Pra ela ser a porta-bandeira, ela pegava a vassoura e o senhor dançava com ela.
A gente ia fazer as coreografias no pé. Hoje em dia eles não fazem. Eles largam a porta-bandeira e começam a rodar feito peru, feito
Perfeitamente.
Rio de Janeiro
galo. Não é isso. Eles têm que cortejar a porta-bandeira. Pois, naquele tempo. tinha aquele roubo: "Eu vou roubar a sua porta-bandeira e você vai ficar com a cara ..." Eu roubava, ele ficava sozinho e eu dançando com as duas. Tinha esse tempo também. Então, é isso. Fiz isso pra eles aprenderem. Quando eu entrava. que eu ia lá ia cá, eles bobeavam e eu, vupt! Puxava a porta-bandeira da outra escola? Ficava com as duas e deixava eles sozinhos. Alguma vez, um outro mestre-sala tirou a sua porta-bandeira? Ninguém tirou. Não dava tempo. Comigo não.
o senhor
Abril 2013
ano 5
número 4
cortejava?
Eu cortejava.
o senhor
o senhor
Hoje é o quê? Cada samba-enredo representando o enredo, cada samba ruim ... Samba que não dá ...
nunca largava a porta-bandeira?
Nunca largava, sempre guardando ela. Fazia meu passe, dava mão a ela. Ela vinha e eu agarrava ela. Eu estou lá. mas estou sempre com ela.
E ísso atrapalha a dança? Atrapalha. O samba ruim atrapalha a dança? Atrapalha.
Na época dos grandes desfiles, havia um momento em que os jurados viam a bandeira? Perfeitamente. E davam nota pra bandeira? Nota pra bandeira.
era mais rápido que eles?
Só eu que tirava. Quando eles vinham pra me roubar, eu ai guardava minhas armas. Abria os braços. ela atrás de mim, ai não podia mais. Então, ele voltava, ia lá e cá e eu: "Agora é a minha vez". Eu ia lá e ia cá (Delegado levanta-se e demonstra como fazia), e cá e lá, lá e cá. Quando eu fazia assim (estende o braço direito), já trazia ela.
91
Os senhores iam, o senhor e a sua porta--bandeira, e levavam a bandeira até eles? Levava a bandeira até eles. apresentava a bandeira. E ai afastava um pouco e dava espaço. Se um chapéu meu caisse no chão, eu perdia ponto. Se o lenço que eu levava, ou o leque, caísse no chão, eu perdia ponto.
E acelerado também? Acelerado também. Tem que estar naquele ritmo, não pode correr. Ritmo da bateria. a bateria levava você. Mesmo que você não quisesse ir, mas a bateria estava te levando. Mesmo que você não está, mas a bateria estava te levando. Um mestre-sala precisa ter uma elegância natural, um porte? Muita elegância natural, muita elegância. Uma postura reta, com a coluna ereta? Perfeitamente.
Se a bandeira caísse no chão perdia ponto?
Elajá vinha. E eles ficavam chateados? Ficavam chateados. Ficavam falando com eles: "Como é que você deixou o Delegado te roubar a porta-bandeira. rapaz? Como é que tu vai fazer? É do homem. vou fazer o quê? Vou poder com ele? Fiz tudo, mas não pude ..." Resistir. Resistir. Mas, depois a gente não brigava não. Era só em matéria de samba. Nos primeiros anos das escolas, havia também a coisa da navalha? Isso já é outro time. Havia a batucada. Na batucada que existia a navalha. Naquele tempo era difícil um dançarino como eu, como outros mais. ter revólver, porque a gente não tinha dinheiro pra comprar revólver. O revólver era só pra banqueiro, né? Para aqueles que tinham (dinheiro).
o senhor
falou da proteção e do cortejo da porta-bandeira, certo? Esses são os itens mais importantes do mestre-sala, cortejar e proteger? Cortejar a porta-bandeira. No desfile agora! Mas eles não, eles largam a porta-bandeira e vão até lá. Ficam rodando.
Não, o meu leque. Não é a bandeira. Se a bandeira batesse na minha cabeça, perdia ponto.
Isso o senhor aprendeu naturalmente? Lógico. E o senhor conta para os seus alunos?
Qual é a importância da bandeira para o casal?
Perfeitamente.
É a mesma coisa que levar o pavilhão da bandeira brasileira, entendeu? É a mesma coisa. A porta-bandeira e o mestre-sala estão representando o pavilhão da escola.
O senhor poderia falar sobre as três porta-bandeiras que dançaram com o senhor, uma por vez? A Nininha, o que ela tinha de característica, o que era a qualidade da Nininha?
E devem protegê-Ia?
Dançava para ela e dançava para o público. Ela ainda jogava beijos pra moçada. Jogava beijos para os jurados e rodando naquela coreografia também. Nininha foi uma grande porta-bandeira
Ela é a preciosidade da escola. Eles fazem a escola perder e fazem a escola ganhar. Mas o principal de um mestre-sala é guardar a sua porta-bandeira e a sua bandeira. Ele está representando o pavilhão da escola. O samba, na época em que o senhor dançava, era mais cadenciado, hoje ele está muito acelerado.
E Neide? Como era Neide? Neide era soberana? A Neide também, depois da Nininha, foi uma das melhores porta-bandeiras.
Hoje ele está mais acelerado. Isso atrapalha a dança do mestre-sala? Está mais acelerado. O samba não está mais como você escutava o samba-enredo. Era samba mesmo, era samba mesmo. Hoje em dia ...
A Neide dançava como uma rainha, não era? Como uma rainha. Ela tínha um porte alto? Um porte alto.
Rio de Janeiro
I
Abril 2013
ano 5
número 4 I
E a Mocinha? A Neide ... Pode falar da Neide.
Mas a Wilma superava o fato de ser baixa, dançando como um cisne, que era o apelido que ela ganhou, o "cisne da passarela"?
Da Portela. Mas qual a diferença entre elas? A Neide era alta e a Wilma, mais baixa. Quanto mais alta no meio do samba, o mestre-sala e a porta-bandeira se desenvolvem mais. A bandeira abre mais. Lógico.
Nelson Cavaquinho? Nelson Cavaquinho. Carlos Cachaça e Jamelão. Pra mim são os maiores nomes do samba.
Perfeitamente.
A Neide brigava com a Wilma, porque a Wilma era também uma grande porta-bandeira. A Wilma da Portela?
, .
Eu queria que o senhor falasse de três figuras importantes da Mangueira e que foram muito próximas do senhor. Primeiro o Carlos Cachaça. Primeiro pra mim: Jamelão. Foi um grande amigo. Depois veio Cartola, que a lica fazia aquelas feijoadas. Ia todo mundo pra casa dele comer aquelas feijoadas. Ele recebia a gente com os braços abertos, ela também. E ele cantando aqueles sambinhas dele, fazendo aquela rodinha de samba na varanda, compreendeu? Então, os três pra mim, da Velha Guarda: Carlos Cachaça, Jamelão e Cartola. São os três.
o senhor se emocionava mais nos desfiles antigos ou nos desfiles de hoje? Não, o antigo.
o
antigo. Por quê? O que ele tinha de mais emocionante? Nós sentíamos que a comunidade estava toda ali, batendo palma, dando água pra gente beber. Nossa família vendo e batendo palma: 'Vai, meu filho!" * O ano provável é 1912
MilfJlsTER ~ Multo mais que uma Impressão.
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