Cultura Brasileira Revista #002

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CULTURA BRASILEIRA REVISTA

Estética nordestina Um desdobramento pelo Nordeste ancestral, ligando os pontos que nos conectam ao campo imagético da região — da Igreja ao cangaço.

A destruição criativa à paulistana Machado de Assis foi o que melhor entendeu Darwin em pleno século XIX Eu quero ver o Papai Noel de sunga #002 . DEZEMBRO 2020

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Adeus, 2020. Quem me dera se, ao completar a volta ao Sol, a Terra pudesse lavar de sua planície as mazelas que nos acometeram neste ano. Não só o inesperado vírus, mas o obscurantismo que nos assola. Acrescentaria à rechaça terráquea a passividade, que teima em fazer-se presente em nossas casas, terceirizando a outros - que nunca aparecem, por não existirem - responsabilidades que nos pertencem. Quem me dera se tudo isso só acontecesse em 2020. Não seria ótimo, se a numerologia o declarasse o ano das exceções?

As mesmas aberrações que, em tese, perseguiram os cristãos no Egito, são as que silenciam as vidas indígenas, que medem o valor de alguém pela cor da pele, que apagam a memória das nossas cidades e constróem aberrações neoclássicas, em pleno século XXI, para abrigar uma classe média sofrênciacomedora-de-wagyu. Tudo está conectado, nós é que teimamos em cartesianizar a vida: uma experiência multidimensional. Partindo deste princípio, nossa segunda edição apresenta olhares complementares sobre a vivência brasileira, tão necessários em um mês invadido por experiências trazidas pelo colonizador. Mais uma vez, boa leitura.

Marcelo Oséas, Editor

EDITOR Marcelo Oséas PRODUÇÃO E REVISÃO Bruna Bombarda REVISÃO FINAL Isadora Calil DIAGRAMAÇÃO E IDENTIDADE VISUAL Bárbara Alves COLABORADORES DA EDIÇÃO #002 - 20 DE DEZEMBRO DE 2020 Bruna Bombarda - Fabrício Cesar Oliveira - Isadora Calil - João Galera Marcelo Oséas - Rodrigo Svezia 2


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Feliz tempo velho

A destruição criativa à paulistana

Antes que acabe

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Machado de Assis

Querelas do Brasil

Estética Nordestina

52 Eu quero ver Papai Noel de sunga

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FELIZ TEMPO VELHO por Rodrigo Svezia

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Quando recebi o convite do querido Marcelo Oséas, amigo há muito tempo, para escrever basicamente qualquer coisa que quisesse aqui, fazendo referência a literatura brasileira de alguma forma, nossos autores, obras, puxando, dissecando, aplaudindo, babando, apenas citando, enfim, qualquer coisa, fiquei muito feliz e levei um tempo, no caso muito curto, em aceitar. Também curto era o tempo para entregar o texto. Perdi o tempo, esse mais curto que gostaria e não entreguei a tempo de entrar para a edição primeira. Fiquei chateado. Briguei com o tempo, perdi pra ele. Não perdemos todos? Se o tempo entre tantas coisas é também um símbolo (por que não?), ganhei um novo tempo para refletir sobre os nossos símbolos e lembrei de um, cujo o tempo se aproxima. Com ele não tem tempo ruim, não tem medo de ser clichê, de ser ignorado ou reinventado. Esse símbolo só quer estar ali, fazer parte ainda que rapidamente de nós.

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Os votos de ano novo. Estamos chegando ao fim de 2020, e cabe para muitos de nós refletir o que fizemos do nosso, sim, de novo ele, tempo. Reflexões de fim de ano e planos para o novo. O que sobrou e o que faltou. Quem sobrou e quem faltou. Quanto é que falta para aquilo que nos falta. Um ano são 12 meses e 12 também é o número de vezes que a palavra tempo foi usada até aqui nesse texto. E daí? E agora? Quanto tempo cabe a nós viver no tempo de um ano? O que é mais um ano no tempo, para quem aguarda há tanto, por qualquer notícia sobre sua filha desaparecida ainda na ditadura militar brasileira como o senhor K. em Relatos de uma busca. Na obra de Bernardo Kucinski, o tempo não é relativo, ele existe, ocupa uma cadeira na mesa de jantar, dá bom dia e boa noite, pergunta que horas são e cobra por respostas. Mas elas não vêm. Quais são os votos de ano novo para um pai cujo a filha desapareceu tantos anos atrás? Tempo é espera.

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Quem espera torce, acredita. Quer reviver, quer encontrar. Quer perder o tempo que afasta, quer ganhar o tempo que nos junta. E às vezes ele nos permite uma reprise, mais uma caminhada, ou um campeonato de walking futebol (!) décadas e décadas depois, com os amigos do colégio já idosos. Nessa trivialidade imbuída de missão esportiva, a desculpa perfeita para fazer algo que não deveria precisar de desculpa nenhuma, amigos podendo conviver novamente. Pelo menos assim foi para o José Trajano em Os Beneditinos. Quais são os votos de ano novo para quem quer reencontrar o que o tempo distanciou? Tempo é saudade. No fim, no nosso fim, quando esse chega a tempo de o conhecermos bem, como em Por um Fio, o que vemos nos relatos de décadas de clínica médica do Dr Drauzio Varella, onde pacientes oncológicos em estado terminal o conhecem, os seus votos de ano novo tem um tempo que passa em outra velocidade e em um outro colorido. Quais são os votos de ano novo para quem o tempo é agora e não depois?


Quem espera torce, acredita. Quer reviver, quer encontrar. Quer perder o tempo que afasta, quer ganhar o tempo que nos junta.

Rodrigo Svezia Paulistano, publicitário, leitor compulsivo nas melhores horas e fotógrafo de rua nas quase vagas horas. Acredita que a história não se repete mas ela rima, em filosofia e até no ser humano de vez em quando. #002 . DEZEMBRO 2020

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A DESTRUIÇÃO CRIATIVA À PAULISTANA Presa entre a memória de uma arquitetura afetiva e a urgência do adensamento do centro, a megalópole contempla seus monstros

por Isadora Calil

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Alguns bairros paulistanos são ainda pontuados de uma memória que permeia gerações. Falo daquelas casinhas tradicionais, que mesclam estilos como neoclássico e barroco – uma verve arquitetônica que alguns chamam Grotesque. Há até os casos estarrecedores, para os mais paranóicos, de moradias sem recuo algum. Eles possibilitam ao passante assistir da calçada ao jogo de domingo na sala de um desconhecido ou levar um balde d'água acidental. No entanto, por mais que elas sejam nossos avós, tios ou pais, essas simpáticas construções estão com seus dias contados. Há algum tempo o editor desta revista me emprestou o livro de ilustrações "Antes que acabe", de João Galera. Tratase do retrato de três bairros que hoje vivem as complexidades da especulação imobiliária e da gentrificação (quando a alta substancial nos preços deixa os moradores originais sem possibilidades de permanecer ali). Pinheiros, Vila Mariana e Bela Vista mostram sua história pelo traço do ilustrador; mas quem os visita sabe bem que pouco há de bucólico ou passadista em suas esquinas apinhadas de hipsters. Sobrados ornamentados e casinhas geminadas coloridas vão dando lugar a grandes empreendimentos de arquitetura descaracterizadora, produtora de espigões envidraçados sem o menor charme. Isso num movimento que Galera descreve como "arrogante", no prefácio. E, de fato, arrogância e gigantismo estão no DNA de São

Paulo, sem tempo para ser amável com qualquer memória. Em 1982, houve um movimento da Secretaria de Cultura para que fossem tombados casarões de endinheirados na Avenida Paulista. A reação veio dos próprios donos dos imóveis, que na calada da noite colocaram tudo abaixo. Quais as chances de perder o boom imobiliário no que se desenhava como o coração financeiro e empresarial de São Paulo à época? Nas palavras de um dos algozes, o banqueiro Armando Conde, registradas na Revista Crescer: “Era uma relíquia, mas a parte sentimental não podia prevalecer. Não teve conversa mole: aprovamos um projeto e nos compraram um terreno.” Na mesma década, um movimento forte se cria na Vila Mariana para manter o que hoje chamamos Parque Modernista, situado na rua Santa Cruz. A família Klabin-Warchavchik vendeu o imóvel para uma construtora apesar de haver ali a primeira casa Modernista do Brasil. A resposta do poder público foi lenta, mas o tombamento veio. Só nos anos 2000 a Prefeitura integrou o bem ao Museu da Cidade. A história é um pouco chocante, mas ainda menos dolorosa para o patrimônio do que o triste fim da Villa Kyrial, um salão da Belle Époque devastado nos anos 60 no mesmo bairro. Para além da destruição da construção, houve o apagamento completo da memória do que existiu ali. Há alguns anos uma matéria da TV Cultura mostrou que

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os atuais moradores desconheciam o passado fervilhante do antigo proprietário, o senador e mecenas Freitas Valle.

Estadual e do Colégio Liceu Pasteur, para citar algumas obras. E que venham os modernos, sem tanta pirotecnia, dar vazão a uma cidade em vertigem.

A locomotiva da história jamais pode parar nesta cidade sudestina. E é assim desde de que os primeiros barcos de imigrantes aportaram no fim do século XIX. Acanhada, São Paulo ainda ensaiava seu despertar como metrópole e ia aos poucos apostando em construções como teatros, prédios e escolas em estilo eclético. No livro Place Branding, organizado por Caio Esteves, a professora de arquitetura do Mackenzie Ana Gabriela Godinho Lima nos lembra da necessidade de que os estabelecimentos de ensino, como o Caetano de Campos (1894) da Praça da República, fossem situados em lugares de destaque e tivessem uma arquitetura vistosa. Seriam, assim, marcas da Razão e da Ciência. Estavam aí as pontas de lança do Estado Brasileiro num movimento modernizante e voltado a absorver a massa analfabeta e imigrante.

De 1970 em diante as taxas de crescimento vão baixando, mas os números absolutos assustam mesmo assim. O caos urbano é retratado na telenovela de Jorge Andrade, "O Grito" (1975), a partir da criação do Elevado Costa e Silva, símbolo de uma cultura carrocêntrica e burguesa. O surgimento do Minhocão trouxe muita dor de cabeça aos moradores da Amaral Gurgel - do barulho insuportável à desvalorização. Na novela das 22h, a tensão aumentava a cada grito dado na calada da noite por uma criança com problemas mentais, que todos queriam fora dali.

Um ângulo interessante de nossa Belle Époque foi o surto populacional. Como destaca a arquiteta, entre 1890 e 1915, a cidade cresceu 800%. Em 1940, já sob o Estado Novo, alcançava 1.326.261 habitantes. Uma década depois, quase dobrava de número. São Paulo já mostrava uma enorme necessidade de políticas urbanísticas em escala. Construções rebuscadas e faraônicas não iriam funcionar. Adeus, Ramos de Azevedo, artífice da Casa das Rosas, do Theatro Municipal, da Penitenciária

Mas voltemos às casinhas afetivas, em muitos casos construções que lembram uma São Paulo ainda provinciana e agrária. Para citar um exemplo, na Vila Mariana e em seus subdistritos (Vila Clementino, Mirandópolis, Saúde etc.) as encontramos aos montes, porque estamos falando de um bairro simples que foi apenas dormitório até meados do século XX. Daqui saiam as pessoas para trabalhar no centro da cidade ou em zonas fabris (de bonde e, mais tarde, em seus automóveis). A região foi pontualmente um local dotado de algumas fábricas – como a Belisário de Assis Fonseca, na rua 1o de Janeiro, inaugurada em 1926 – e até mesmo do Matadouro Municipal, que recebia bois para abate da Lapa e

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do Ipiranga. Mas, como nos lembra a pesquisa de Danilo Agrimani sobre a Vila Clementino, até os anos 60 esta fração do bairro teve características de chácara. Muitos moradores antigos falam ainda da época em que brincavam onde hoje é a 23 de Maio Essas casinhas que amamos guardam uma memória importante, porém elas acabarão cedendo espaço para receber habitantes em escala maior onde se concentram mais de 50% dos postos de trabalho da capital paulista. Para não parecer desalmada, eu mesma vivo um pequeno drama em relação a isso, porque moro numa casa de traços modernistas visada pela especulação imobiliária. Mas acho natural que ela um dia cumpra seu ciclo, se isso vier a acertar iniquidades sociais. É apenas uma questão urbanística importante de qualquer cidade globalizada – o adensamento. O centro expandido paulistano, nos conta Raul Juste Lores no podcast São Paulo nas Alturas, não cresce populacionalmente há duas décadas. E 13 milhões de pessoas mal distribuídas são uma pressão descomunal para recursos naturais e para a infraestrutura urbana. Isso porque os deslocamentos longos são necessários aos que trabalham presencialmente. Ainda segundo o jornalista, atualmente Paraisópolis é uma comunidade com mais moradores por metro quadrado do que Moema, um bairro com total infraestrutura. Houve

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algumas

tentativas

de

desenvolver moradia social no centro paulistano em meados do século passado. Os exemplos mais paradigmáticos talvez sejam o Mercúrio e o San Vito, próximos à Avenida do Estado, projetados pela Zarzur e Kogan. Contando com mais de 600 apartamentos divididos por até 5 famílias, acabaram estigmatizados pela população e pela mídia como "favelas verticais". A grande verdade é que os prédios não contavam com uma zeladoria profissionalizada que pudesse organizar uma mini-cidade. O fim dos dois gigantes foi melancólico: uma demolição em 2010, que se preocupou mais com os vitrais do Mercado Municipal do que com a sorte dos desalojados. Em linhas gerais, São Paulo se deu ao luxo de desperdiçar moradias de qualidade ao destruir esses colossos. Onde encontrar um canto acessível às classes baixas, próximas ao trabalho e ao lazer? Atualmente, as áreas mais adensadas de que dispomos são os longínquos Grajaú, Sapopemba e, de novo, Paraisópolis. Pensando de forma desapaixonada, qual é o valor da memória quando há uma necessidade urgente de trazer pessoas ao centro expandido? Às vezes sou ingênua de achar que esse movimento começaria pelo setor público. No nosso Plano Diretor Estratégico há o dispositivo chamado cota de solidariedade. Se bem utilizado, ele poderia garantir construções de interesse social erigidas a um raio de poucos quilômetros ou nos próprios empreendimentos de classe



média alta. Aqui entra a política, sim, mas há sobretudo a cultura - e em São Paulo ela é segregadora e elitista. Haja vista termos excrescências como bairrosjardins, estritamente residenciais, que ainda brigam por um zoneamento que só os isola de comércios e mais fluxo de pessoas. Como o feitiço sempre vira contra o feiticeiro, temos neles locais em que a população envelhece dentro de belas e invendáveis casas assinadas. Alguém poderia dizer que ao menos não há o perigo iminente de irem ao chão a qualquer momento. Mas não é bem assim. Quem acompanha a pauta deve lembrar do imbróglio ocorrido no Jardim Lusitânia em 2013, quando um nem tão feliz proprietário comprou uma obra de Ruy Ohtake. Descontente, aventou levar uma casa brutalista dos anos 70 ao cadafalso. Com o clamor de diversas áreas ligadas ao patrimônio e à

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arquitetura, as autoridades paulistanas foram compelidas a dar um rápido golpe de caneta e tombar o imóvel. Memória da cidade feliz; proprietário irado – casas tombadas tendem a perder valor de mercado. Histórias como essas mostram quão mal vamos. Uma cidade que não conhece seu patrimônio não consegue se planejar. Não é só sobre Solar da Marquesa ou Casa Modernista, ambos parte do acervo do Museu da Cidade. Como ficam as casinhas Grotesques ou os exemplares modernistas recentes, públicos ou privados? Tudo precisa ser inventariado o quanto antes para que saibamos coletivamente quem fica e quem já cumpriu o seu papel. É só assim que teremos um dia um centro expandido democrático, adensado e conhecedor de sua história.


Como ficam as casinhas Grotesques ou os exemplares modernistas recentes, públicos ou privados? Tudo precisa ser inventariado o quanto antes para que saibamos coletivamente quem fica e quem já cumpriu o seu papel. É só assim que teremos um dia um centro expandido democrático, adensado e conhecedor de sua história.

Isadora Calil Jornalista e escritora. Atualmente, escreve sobre cidades, história e cultura em seu Medium. Todas as imagens da matéria são também de sua autoria.


ANTES QUE ACABE por João Galera

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@ João Galera - Rua dos Ingleses - Panorama da Pascoal Bianco - Caneta nanquim e aquarela sobre papel, 27 x 49 cm, 2016.

João Galera desenha desde criança e durante o percurso fez cursos de desenho e pintura, mas foi no México que seu trabalho artístico se intensificou. Veio morar em São Paulo em 2011 para se dedicar à arte. É um artista multimídia, que trabalha com pintura, bordado, crochê e costura, mas é o ato de desenhar que lhe faz esquecer o tempo. Realizou várias exposições coletivas e individuais no Brasil, EUA e México. Atualmente está se aprofundando no tema da memória e do desejo para as suas criações. Seu último projeto Antes

que acabe ficou exposto no Museu da Casa Brasileira nos meses de junho/ julho de 2016. Foi selecionado para o 9º Salão dos Artistas sem Galeria, com a série Escaras, para a edição de 2018. Em maio desse mesmo ano, participou da W Residência Artística em Ribeirão Preto. Fez uma residência artística de um ano em Silver City, EUA, entre 2019-2020, pela Western New Mexico University e pela cidade de Silver City. O livro Antes que acabe, com todos os desenhos da série, acabou de sair em segunda edição.

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@ João Galera - Rua Marques de Leão III - Caneta nanquim e aquarela sobre papel, 22,9 x 30,4 cm, 2016.

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@ JoĂŁo Galera - Rua dos Ingleses - Caneta nanquim e aquarela sobre papel, 22,9 x 30,4 cm, 2016.

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@ João Galera - Panorama da Marques de Leão - Caneta nanquim e aquarela sobre papel, 27 x 49 cm, 2016.

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@ JoĂŁo Galera - Rua Adoniran Barbosa - Caneta nanquim e aquarela sobre papel, 22,9 x 30,4 cm, 2016.

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@ João Galera - Dessemelhanças da Cardeal Arcoverde - Caneta nanquim e aquarela sobre papel, 22,9 x 30,4 cm, 2016.

João Galera É um artista paranaense, formado em agronomia, estudou antropologia na Espanha e desenvolveu uma pesquisa em uma comunidade indígena no México. www.joaogalera.com

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MACHADO DE ASSIS Foi o que melhor entendeu Darwin em pleno século XIX por Fabrício César Oliveira

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“Palavra puxa palavra, uma ideia traz outra, e assim se faz um livro, um governo, ou uma revolução, alguns dizem que assim é que a natureza compôs as suas espécies”. — Joaquim Maria Machado de Assis, em Histórias sem data. Primas de Sapucaia. É amplamente conhecida a ironia de Machado de Assis, embora poucos a compreendam. Também é mundialmente valorizada a genialidade do bruxo do Cosme Velho, embora muito poucos brasileiros a atestem. Contudo, no mundo acadêmico e literário há um consenso sobre o escritor brasileiro e negro do século XIX: se houvesse Prêmio Nobel de Literatura na época de Machado de Assis, e ele concorresse, seria certo que ganharia.

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@ Bรกrbara Alves - Colagem "Machado de Assis" (2020)

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Enquanto muitos países latino-americanos têm seus prêmios Nobel de Literatura, como o Peru de Mario Vargas Llosa, a Colômbia de Gabriel García Márquez, o Chile de Neruda e Gabriela Mistral, a Guatemala com Miguel Ángel Asturias e o México com Octávio Paz, o Brasil ainda não foi agraciado. Apesar de termos em nossa história escritores que merecem o topo do mundo: como Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade, Carolina Maria de Jesus, Lima Barreto, Ignácio Loyola Brandão, Chico Buarque de Holanda, entre tantos outros. No entanto, há características de Machado de Assis que ainda precisam ser reveladas: uma delas é a sua imensa compreensão sobre as teorias filosóficas e científicas da sua época. Irônica e magistralmente a escrita de Joaquim Maria Machado de Assis fez o “balão de ensaio” erguer-se na sala da elite apodrecida fluminense e estourar na cara deles. O “balão de ensaio” veio pela literatura, em uma tola e mal-acabada teoria filosófica chamada “Humanitismo”, elaborada por um personagem, Quincas Borba, em dois dos seus maiores romances - “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881) e “Quincas Borba” (1892). Tal teoria era uma crítica sagaz a todas as teorias pseudocientíficas do final do século XIX, como Darwinismo Social de Hebert Spencer ou Determinismo Social de Hipolite Tayne. A própria existência viva de Machado de Assis (negro, periférico, epiléptico, autodidata, gênio, escritor) era a prova cabal de que essas pseudoteorias eram fajutas. Mas a burguesia que já

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detinha os meios de produção e teorização naquela época podia fazer o que quisesse, a teoria que quisesse e até mesmo subverter a mais importante revelação científica do século: a teoria da evolução das espécies, do inglês Charles Darwin.

descubra a fraude há que se pesquisar, ter a coragem e determinação de vasculhar o ponto falso, algo que falta muito a nossa burguesia: falta aquela determinação que leva à inteligência. Em outras palavras, falta leitura, falta Machado de Assis para A burguesia brasileira pouco entendeu nossa “elite do atraso”. Porém, Machado Darwin, assim como a burguesia do de Assis está nas nossas prateleiras desde mundo. Ou entenderam no que quiseram meados do século XIX, basta pegá-lo e entender e fizeram da teoria do biólogo lê-lo. Está tudo lá. O “balão de ensaio” no inglês um grande “Humanitismo” meio da sala de jantar burguesa. Está lá a valorizado apenas por pessoas como o teoria da evolução das espécies de Darwin medíocre Brás Cubas. O Brasil do século traduzida em literatura da época. Está lá. retrasado foi inundado por pseudociências que criavam um ambiente cada vez mais racializado, as grandes teorias racistas Darwin levou quase 30 anos para elaborar nasceram no século XIX, como a teoria do sua teoria. Viajou com a tripulação do “Criminoso Nato” de Cesare Lombroso. HMS Beagle pelo mundo (entre os anos Podemos dizer, assim, que a burguesia de 1831 e 1835), explorando e coletando brasileira sempre foi afeita à “Fake News”. dados, espécies, traços, detalhes, Vale lembrar que o termo inglês “Fake escrevendo diários. Elaborou, a partir News” quer dizer notícia fraudulenta, de todas as provas, a teoria do livro “A o que é diferente de falso. Para que se Origem das Espécies” (1859). Teoria na

Charles Darwin

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qual Darwin nunca disse: que o mais forte sobrevive, muito menos que o mais apto sobrevive. Darwin foi vítima da mais espúria e devastadora fraude discursiva e científica dos últimos séculos. E com ele, nós também fomos enganados. Gente despreparada e muito mal-intencionada da burguesia mundial subverteu o principal ponto dos estudos científicos de Darwin. O cientista inglês disse que o mais adaptado, o que dá as respostas mais adaptadas ao ambiente em que vive, sobrevive. E há uma diferença brutal entre as palavras “apto” e “adaptado”, embora no português tenham sons finais iguais, são caminhos totalmente diferentes. O caminho do “apto” leva a teoria para as questões de supremacia, raça superior, determinismos sociais e biológicos – ou seja, leva para o Nazismo alemão, para a Eugenia, que foi chancelada por inúmeros médicos alemães, cerca de 45% dos médicos na Alemanha eram do

partido Nazista durante os anos 30 e 40 do século XX. O Nazismo nada seria sem a pseudociência e os pseudocientistas que a burguesia choca em seus ovos. O caminho do “adaptado” leva a teoria de Darwin para o respeito às diferenças, pois, na “Origem das Espécies”, aquele que melhor se adapta a situações, aquele que dá as mais flexíveis respostas a cada situação é que sobrevive (podendo ser o mais rápido, o mais lento, o mais alto, o mais baixo, o mais flexível, o mais rígido, o mais gordo ou o mais magro), pois o importante é a adaptabilidade. Machado de Assis não só compreendeu profundamente Darwin, como fez de sua literatura a melhor exemplificação de adaptabilidade ao ambiente que viveu. Machado de Assis usava de uma “Estratégia de Caramujo” para sobreviver ao seu meio inóspito, podre e burguês. Genial, usou do maior mecanismo burguês de ideologização para criticar os

https://outraspalavras.net/outrasmidias/machado-contra-o-racismo-a-estrategia-do-caramujo/

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próprios métodos da burguesia. Como fez isso? Pelo uso da ironia na grande mídia da época – a Literatura. Poucos entendem de ironia em um país como o nosso, muitos a confundem com sarcasmo. Machado de Assis nunca fora sarcástico como seu personagem Brás Cubas. E o medíocre Cubas nunca teve a inteligência de Machado. Machado e Brás são antagônicos. Brás ri maldosamente do outro – riso moral. Machado nos faz rir, reflexivamente, de nós mesmos – riso ético. “Ao vencedor, as batatas; aos vencidos, ódio ou compaixão” da teoria do “Humanitismo”, de Quincas Borba e tão valorizada por Brás Cubas, na verdade é tudo aquilo que é contrário a que Darwin escreveu e é todo o contrário àquilo que Machado de Assis nos alertou. Cabe a ti, raro leitor, rara leitora, escolher a ironia como gracejo burguês ou, machadianamente, como destino à inteligência. Cabe lembrar que Brás Cubas ainda vive como fantasma.

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“Ao vencedor, as batatas; aos vencidos, ódio ou compaixão” da teoria do “Humanitismo”, de Quincas Borba e tão valorizada por Brás Cubas, na verdade é tudo aquilo que é contrário a que Darwin escreveu e é todo o contrário àquilo que Machado de Assis nos alertou. Fabrício César de Oliveira 42 anos, professor, poeta, preto, tradutor, editor, mestre em Linguística e doutor em Filosofia da Linguagem, pela Universidade Federal de São Carlos - UFSCar. É coordenador da plataforma Redação e Dialogia (https://www.redacaoedialogia.com. br/), de ensino a distância (EaD), na qual propõe colocar materiais de Redação 100% gratuitos na web, privilegiando a democratização do ensino de qualidade e a formação cidadã de jovens brasileiros. #002 . DEZEMBRO 2020

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QUERELLAS DO BRASIL

Eternizada pela voz de Elis Regina, foi escrita por Maurício Tapajós e Aldir Blanc, com clara referência à "Aquarela do Brasil" em contundente crítica à elite econômica brasileira e sua cultura norte-americanizada.

@ Bárbara Alves - Colagem "Querelas do Brasil #1" (2020)


O Brazil não conhece o Brasil O Brasil nunca foi ao Brazil Tapir, jabuti Liana, alamanda, ali, alaúde Piau, ururau, aki, ataúde Piá-carioca, porecramecrã Jobim akarore, Jobim-açu Uô, uô, uô Pererê, camará, tororó, olerê Piriri, ratatá, karatê, olará Pererê, camará, tororó, olerê Piriri, ratatá, karatê, olará O Brazil não merece o Brasil O Brazil tá matando o Brasil Jereba, saci Caandrades, cunhãs, ariranha, aranha Sertões, Guimarães, bachianas, águas Imarionaíma, ariraribóia Na aura das mãos de Jobim-açu Uô, uô, uô


Jererê, sarará, cururu, olerê Blá-blá-blá, bafafá, sururu, olará Jererê, sarará, cururu, olerê Blá-blá-blá, bafafá, sururu, olará Do Brasil, SOS ao Brasil Do Brasil, SOS ao Brasil Do Brasil, SOS ao Brasil Tinhorão, urutu, sucuri Ujobim, sabiá, bem-te-vi Cabuçu, Cordovil, Cachambi, olerê Madureira, Olaria e Bangu, olará Cascadura, Água Santa, Acari, olerê Ipanema e Nova Iguaçu, olará Do Brasil, SOS ao Brasil Do Brasil, SOS ao Brasil

@ Aldir Blanc e Maurício Tapajós - Querellas do Brasil (1978) Bárbara Alves - Colagem "Querelas do Brasil #2" (2020) Fotografia indígena por Ailton Costa



E S T É T I C A NORDESTINA Um desdobramento pelo Nordeste ancestral, ligando os pontos que nos conectam ao campo imagético da região - da Igreja ao cangaço por Marcelo Oséas

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Estética não é um termo dos mais

simples de ser compreendido. Certamente você já escutou antes e, provavelmente, o associou a tudo aquilo que seus olhos permitiram que você enxergasse. Sim, essa associação é extremamente comum e absolutamente errada. Arrisco dizer que essa ligação incorreta ocorre por vivermos atualmente em um mundo completamente visual. E se tornará cada vez mais. Existe todo um braço da filosofia dedicado à pesquisa do controverso termo e não é meu intuito aqui resumi-lo. A concepção que aceito para mim - e pratico - é aquela que define estética como o conjunto da experiência humana que é captada pelos nossos sentidos e transformada em expressão. Acredite, neste mundo cartesiano, existe espaço para o sentir. Pense, por exemplo, na experiência do cárcere. Imagine estar preso em uma cela. Apesar de você construir uma imagem mental, quando você adiciona as expectativas dos demais sentidos, como o olfato, o tato, o paladar, é possível compreender um pouco melhor como essa brutal situação pode realmente ser.

O Nordeste é um universo Muitas vezes é necessário começar um diálogo pontuando o óbvio: o Nordeste é uma região brasileira, não um estado. A ideia parece simples, mas percebo que diversas visões forasteiras usam do termo "Nordeste" como um recurso redutor, para não dizer preconceituoso. Eu sei, não me refiro à uma prática inédita. Desde que o eixo de poder brasileiro foi transferido para o Sudeste, a região inicial, aquela que lançou as fundações do nosso país, foi tratada com abordagens generalistas, propositalmente preguiçosas.

Quando olhamos para o passado, vemos uma diferença brutal entre o Nordeste real e o noticiado. Nos dias de hoje, eu diria que o real é muito diferente do publicitado, o das mídias sociais. Essa distância entre realidades está presente, por exemplo, na obra de Euclides da Cunha, que se inicia com certa brutalidade, com a dureza de palavras necessária àqueles Não consigo entregar nesta matéria toda que defendiam a República frente a um a experiência da Estética Nordestina. movimento monarquista. A dureza se Mas, acredito que, ao contar uma parcela transforma em quase comoção, quando a da história de seres humanos que são Canudos autêntica se apresenta aos olhos famosos até os dias de hoje, você irá do jornalista-escritor, que afirma: "O acrescentar a sua parcela de emoções sertanejo é, antes de tudo, um forte.". e assim estará frente a frente à toda a pluralidade que a estigmatizada região oferece aos brasileiros - interessados Pontuada a importância de nos verdadeiramente em conhecê-la. aprofundarmos nas particularidades

Crenças fantásticas

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nordestinas, na necessidade de olharmos cada estado e suas microrregiões com a atenção necessária que sua pluralidade merece, é necessário falar também sobre seus elementos ancestrais comuns.

primeira grande forma de exploração de riquezas agrícolas da então Colônia para a Metrópole lusitana se constituiu no ciclo da cana de açúcar, tendo a região nordestina como principal artífice.

A prática de uma religiosidade fantástica, complexa em simbolismos, de messias, de histórias e de mensagens é um elemento que permeia a vida nordestina. Tendo viajado e pesquisado sobre centenas de aspectos dos mais variados da extensa região, sempre atribuí a origem fantástica das crenças às suas matrizes nãoeuropeias.

Entretanto, por motivos que muito me interessam, mas de pouca serventia neste texto, no término do século XVII o empreendimento açucareiro entra em decadência e instaura um longo processo de ruptura do protagonismo do Nordeste no panorama político e econômico da colônia-quase-país.

As crenças indígenas e de diversas etnias africanas são declaradamente mais subjetivas que as europeias. Transferidas pela oralidade, todo um sistema de valores se debruça em histórias e práticas fantásticas, que permitem a fácil assimilação, o cumprimento e, principalmente, a transferência às gerações futuras. Porém, as matrizes da população nordestina não são suficientes para explicar o fenômeno, que persiste nos dias atuais. Percebo, após quase uma década de pesquisa, que observar a transição entre os séculos XVII e XIX, seus atores principais e coadjuvantes, é de vital importância para nossa compreensão.

Transformações nordestinas

A estagnação da Zona da Mata leva os senhores de engenho a interromperem ou desacelerarem suas atividades. A mão-de-obra majoritariamente escrava, aquela que não é vendida para o Sudeste, é dispensada e, consequentemente, se dispersa pelo Agreste e Sertão nordestino. As oligarquias regionais, enfraquecidas, concentram forças na faixa litorânea e deixam o interior da vasta região abandonado à sorte de seus próprios processos históricos.

Capuchinhos italianos O destino da região nordestina passa a se dividir em duas faixas distintas: o interior e o litoral. A primeira, o interior, abandonada pela Monarquia e República, começa a desenhar seus próprios passos, acolhida pelo poder secular que se manteve presente: a Igreja Católica.

É demasiadamente complexa a rede de É imperativo recordar que a função atuação da Igreja Católica nos séculos inicial deste que conhecemos como que estamos observando, e acredito território brasileiro é a exploração. A ser infrutífero abordarmos certos 40


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pormenores. Entretanto, foram diversas as frentes catequizadoras e de poder que atuaram no Brasil, muitas delas discordantes entre si. Tendo em vista a busca por esclarecer a presença das crenças fantásticas no nordeste, é de fundamental importância destacarmos o papel dos capuchinhos italianos. Originários da ordem mendicante, surgida na Idade Média, dedicavam-se a pregar e difundir as palavras dos apóstolos às classes mais pobres da população. A partir do início do século XVIII, muitos dos membros da ordem dos capuchinhos são enviados ao Brasil, mais especificamente ao interior do Nordeste,

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onde a pobreza da população oferecia o cenário ideal para sua pregação. Nas palavras de Nilton Freixinho, uma das grandes influências desta matéria e pesquisa, os clérigos "Dramatizavam as ameaças de castigos dos Céus aos que incorriam em pecado, insuflando, nos sertanejos, medo e temor. Destarte, implantando nos fiéis inarredável obsessão pelo cumprimento, ao pé da letra, dos preceitos de Jesus Cristo, estimulando a santidade como meio seguro para alcançar o Paraíso Celestial.". A partir da atuação de clérigos pregadores de retórica fantástica, lançam-se as fundações não só para o surgimento de figuras messiânicas, como Antônio Conselheiro e Padre Cícero, ou de


sistemas de vida de bandidos-heróis, como o cangaço, mas principalmente para a consolidação das crenças de uma população ávida ao invisível que, abandonada de outros recursos de desenvolvimento, associa sua condição de miséria à futura salvação celestial.

Dois pregadores, dois destinos À medida em que as décadas se passaram, instalou-se no interior do Nordeste uma atmosfera de crenças hoje entendidas como um "fundamentalismo cristão primitivo", caracterizada pela proliferação de monges-conselheiros, espécie de beatos-místicos-leigos, inclinados ao

radicalismo, e suas platéias de ávidos seguidores. Quase um século de desdobramentos foram necessários para que as oligarquias regionais e a hierarquia da Igreja Católica se sentissem ameaçadas pelo cenário sertanejo. Porém, foram tais incômodos que determinaram o futuro, hoje conhecido, de cada um de seus personagens. Cabe ressaltar, que o movimento máximo político do longo período que está à nossa frente, além da abolição, foi a proclamação da República. Muito aclamada pelo novo eixo político-econômico, tal mudança ecoa no território antigo como uma espécie de "mito simplificador" e movimentos

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regionais, impulsionados pela miséria, associam a necessidade de restauração da monarquia como uma forma de volta à época de suposta abundância. O mesmo acontece no quesito religioso, o afastamento da monarquia representava ao olhar fundamentalista um afastamento dos valores de Cristo.

de Conselheiro, desenham-se ações militares que, como sabemos, dizimaram o povoado, com aproximadamente 25 mil vidas. O monge-conselheiro morreu, provavelmente de causas naturais, durante a última invasão e, no apanhado de seus poucos itens pessoais, encontra-se o "Missão Abreviada", livreto organizado Antônio Conselheiro, beato-leigo, por clérigos católicos, para a formação de peregrinou por milhares de quilômetros beatos leigos no Nordeste brasileiro, nos sertanejos e se instalou, junto com moldes de pregações dos capuchinhos milhares de seguidores, em uma europeus. fazenda abandonada no interior da Padre Cícero, como sabemos, não Bahia, conhecida por Canudos. Os padeceu do mesmo destino de Antônio pormenores da instalação de Canudos Conselheiro. Tendo se consolidado em são interessantíssimos, porém fogem ao Juazeiro do Norte, no Sertão do Cariri, foi destino desta matéria. Resumidamente, ordenado sacerdote pela Igreja Católica, o que definiu a sua extinção - leia-se porém, cercado por fiéis fervorosos extermínio - foi sua posição monarquista. uma parte vinda do extinto povoado de Canudos - foi envolvido em relatos de milagres regionais e, não tendo seu O Nordeste brasileiro poder popular bem quisto pela Ordem, foi expulso da Igreja Católica. Até o final Era pura seca e dor de sua vida, buscou retomar o seu posto, E para seus fiéis, Conselheiro, não abrindo mão do uso das vestimentas Era seu maior Salvador. tradicionais, assim como da sua pregação. (...) Lutando pela terra

Nascido em chão rochoso

E pelo bem-estar social,

com a mais pura devoção

Antônio Conselheiro

homem santo milagroso

Do estado se tornou rival

que cumpriu a sua missão

* Trecho de poema de Paulo Vinício

sacerdote mensageiro nordestino brasileiro

A Igreja Católica incomoda-se com a sua presença e atuação e, após diversas ações declaradamente monarquistas

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Padre Cícero Romão * Trecho de poema de autoria desconhecida


A partir da atuação de clérigos pregadores de retórica fantástica, lançam-se as fundações não só para o surgimento de figuras messiânicas, como Antônio Conselheiro e Padre Cícero, ou de sistemas de vida de bandidos-heróis, como o cangaço, mas principalmente para a consolidação das crenças de uma população ávida ao invisível que, abandonada de outros recursos de desenvolvimento, associa sua condição de miséria à futura salvação celestial.


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Relatos dos mais variados retratam Padre Cícero como uma figura vacilante, porém muitoso colocam como um oportunista político. Manteve-se ao lado da aristocracia cearense e de importantes figuras políticas, como Floro Bartolomeu, que garantiram sua proteção e influência com os poderes na capital Rio de Janeiro. Morre aos 90 anos, também de causas naturais.

O Cangaço São absolutamente individuais os motivos que levaram cada cangaceiro para a vida marginal, de Silvino a Lampião, de Dadá a Maria Bonita. Entretanto, o conjunto social que forma o movimento sertanejo foi proporcionado por um apanhado de ocorrências, que permitem que avaliemos o fenômeno sob uma ótica global. Um vazio de presença institucional no interior Nordestino, existente no período dos séculos entre a passagem do Brasil colônia para a República - o mesmo que avalio desde o início desta matéria - passa a ser ocupado por grupos de jagunços armados, previamente ligados a territórios e forças paramilitares de coronéis e famílias locais. É importante afirmar que a região a que nos referimos é gigantesca, compreende cerca de 100 mil quilômetros quadrados e cinco estados. A fome também se apresenta como um fator fundamental. A Grande Seca nordestina de 1877-78 e a subsequente de 1915 impõem uma dinâmica não só de mortes (textos chegam a citar a cifra #002 . DEZEMBRO 2020

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absurda de 500 mil), migrações em massa (para o litoral e regiões Norte e Sudeste), mas de infrações às leis. A grande época do cangaço brasileiro se dá a partir de 1877, ganha novo respiro em meados de 1915 e se encerra com a morte de Lampião e Maria Bonita, em 1938.

procurado ao mesmo tempo pelas forças políticas regionais, na figura de Padre Cícero, para atuar contra a Intentona Comunista. Sim, em 1926 Lampião e seu bando são recebidos com festejos em Juazeiro do Norte, e o líder do bando é condecorado capitão do Exército Onde antes existia o vazio da presença Patriótico pelo beato e um representante e interesse da República, quando não do Ministério da Agricultura, recebendo ocupado pelos monges-beatos, os bandos também armamentos e munições. de cangaceiros passam a concentrar em Lampião desde esse dia si o poder regional. Sendo reconhecidos jurou vingar-se também inclusive por agentes externos. O bando de Lampião, por exemplo, foi cogitado dizendo: foi inimigo, mato pela Coluna Prestes como um líder não pergunto a quem. revolucionário em potencial, sendo

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Só respeito nesse mundo Padre Cisso e mais ninguém.

O Banditismo social

O movimento do cangaço é impressionante, quando analisado sob a ótica generalista. As suas interseções Cabe ressaltar que a religiosidade é com os poderes políticos e religiosos são absolutamente presente nos hábitos inúmeras e nos oferecem um vislumbre dos bandos cangaceiros. Afinal, são do quanto agentes locais, famosos até o sertanejos como todos os demais. Toda a dia de hoje, foram contemporâneos e cosua existência é justificada ou explicada artífices da história. Encontramos, por por crenças subjetivas. Suas vestimentas exemplo, jagunços egressos do cangaço são exemplos que, além de representarem fazendo parte das forças responsáveis a maestria artesanal nordestina, também pela defesa do povoado de Canudos, de estão preenchidas de símbolos religiosos Antônio Conselheiro. As intersecções são dos mais variados e difusos - algumas quase infinitas. vezes conflitantes à observação externa. Ainda assim, existe uma camada adicional * Trecho de poema de autoria desconhecida

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que merece ser aqui apresentada. O movimento do cangaço, tipicamente brasileiro, está incluso em um fenômeno global, muito bem definido e teorizado, denominado de banditismo social. Eric Hobsbawm, outro grande influenciador desta matéria, foi o responsável pela teorização do movimento global, que unifica cangaceiros, haiduks e dacoits a figuras míticas como Robin Hood e Jesse James. 50

O banditismo social floresce em regiões rurais, com pouca (ou nenhuma) presença de poderes políticos e nenhuma possibilidade de ascensão social. A fome ou outros dilemas coletivos impulsionam a sua existência e o bandido passa a existir a partir de questões individuais, como a necessidade de uma vingança familiar. Grupos de bandidos passam a constituir núcleos de forças armadas e, por consequência, forças políticas. Em


geral, a população local prefere lidar com bandos conhecidos a presenciar forças militares das capitais, com alto potencial devastador. Por oferecerem um vislumbre de ascensão social e defesa das populações mais frágeis, os bandidos sociais assumem postos de heróis ou compensadores das injustiças sofridas pelos camponeses.

De volta ao presente Ao contar essas histórias, repletas de intersecções, espero que você tenha acrescentado à sua experiência de leitura todos os sentidos possíveis que ocorreram a cada um dos personagens citados. Aos poucos, o passado foi se dissolvendo ao presente e, dia-a-dia, as imagens foram ficando difusas, talvez. O Padre Cícero que é celebrado hoje talvez não seja exatamente o mesmo beato que pisou as terras do Cariri, mas conhecer a sua história nos permite gravar em nossa experiência estética, de brasileiros, as razões que levaram o Brasil ser o que é. Quem sabe assim, construindo memórias, não começamos a construir um país menos desigual?

Marcelo Oséas É fotógrafo, especialista em cultura brasileira, cujo portfólio ilustra a vivência de comunidades tradicionais (como a caiçara, indigena e quilombola), assim como expressões nativas, como festas regionais, práticas alimentares e a vida circunscrita em patrimônios naturais.

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EU QUERO VER O PAPAI NOEL DE SUNGA por Bruna Bombarda

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No hemisfério norte, o solstício de inverno ocorre entre os dias 21 e 22 de dezembro é a marcação do início do fim das longas noites. A partir desta data, maior é a presença do Sol, intensificandose o calor, um indício da proximidade das colheitas, que simbolizavam fertilidade, fartura, riqueza. Por isso, há milênios a data é comemorada com alegria em grandes festejos, assim como é o natal. Essa não é uma coincidência. Antes de papai noel, menino Jesus, árvores e luzes, a celebração de Cristo acontecia em adoração e prestígio ao Sol, também envolvendo tradições como decorações, velas e presentes.

capacidade de interpretar, incorporar, adaptar, acumular conhecimentos e transformá-los; de desenvolver novos, enriquecendo a cultura. Essa festividade cristã tão tradicional é um exemplo de miscelânea cultural e servirá de base para uma análise iconográfica, e dentro desse recorte, mostrar uma possibilidade de representação, apresentando uma referência clássica do artesanato brasileiro: a cerâmica pernambucana.

Trago, como instrumento de análise, os presépios. Presépios são uma encenação para permear o imaginário coletivo sobre o momento do nascimento de Jesus, uma estratégia de rever liturgias, difundir Para os cristãos, o natal é a celebração do crenças. São um exemplo figurativo de um nascimento de Jesus, porém a origem da evento que une o celestial com o terreno, natividade não é cristã, o cristianismo se emblema da ponte entre o divino e o apropriou de celebrações pré-existentes humano, logo, apresentam elementos que e já difundidas e as adaptou dentro dos figuram nesses dois mundos. No Brasil a costumes da igreja. O natal foi criado com tradição de presépios foi incorporada no o propósito de cristianizar celebrações século XVIII e popularizou-se entre os pagãs, definir um elemento de identidade artesãos, desvinculando-os à imagem das para os cristãos, criando uma nova igrejas, veremos que um mesmo evento tradição. pode ser retratado a partir de diferentes Não existe uma data certa sobre o dia leituras, interpretações e inserções de do nascimento de Jesus, a escolha do elementos característicos. dia 25 de dezembro justifica-se pelo A peça ilustrada aqui é um artesanato sincretismo entre cristianismo e o culto pernambucano de Alto do Moura, bairro ao Sol. Poucos são os cristãos que sabem famoso de Caruaru por ser polo criativo a verdadeira história do compilado e de manutenção da tradição das criações de rituais incorporados de diferentes de barro. A região que hoje é Caruaru crenças humanas, com elos entre festivais (PE) já foi território dos índios Kariris, o gregos, crenças celtas, feriados judaicos e que explica a forte produção de cerâmica costumes folclóricos europeus. na região, com origem na produção Esse artigo, na verdade, nasceu para de utensílios e ferramentas. A Feira de exaltar a singularidade da nossa Caruaru foi essencial na manutenção e difusão desta técnica, na condução de #002 . DEZEMBRO 2020

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uma cultura de produção de arte popular com o barro como matéria e de sua comercialização. Muitos são os artesãos aprendizes e mestres dessas terras, mas destacam-se alguns, como o Mestre Vitalino, figura importantíssima na difusão dessa arte pela identidade visual carregada de expressividade nas feições, pelos gestos retratados e pelas posturas corporais dos personagens. Mestre Vitalino foi (e ainda é) grande influência e inspiração para os demais artesãos pernambucanos, que continuam produzindo obras artísticas figurativas, retratam cenas de folclores e naturalmente retratam o cotidiano do homem sertanejo, com predominância de encenações sobre os retirantes da seca; movimentos socioculturais como o cangaço; manifestações artísticas culturais musicais como as bandas de pífano ou a música folclórica pernambucana afrobrasileira, o maracatu; festas tradicionais como a do bumba-meu-boi, e figuras representativas como o vaqueiro; além de personagens populares como o Lampião e a Maria Bonita. Como o natal é uma festividade comemorada entusiasticamente no Brasil, alusões e representações dessa data não ficam de fora. Os elementos que compõem este presépio tem notável repetição de elementos tradicionais da cultura local. Mesmo sendo uma encenação temática, todas as peças da composição teatral são ricas em criatividade, foram elaboradas em livre interpretação; é evidente que a cena foi construída com referências do contexto #002 . DEZEMBRO 2020

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pernambucano. A caracterização da obra segue os traços da composição simples, as cores são fortes e vívidas com predominância da paleta de cores primárias, sem muitos detalhes, atribuídos minimamente nas vestimentas. Os tradicionais azevinhos - as plantas com frutinhos vermelhos - simbolizam proteção, é um elemento de associação ao deus Sol e, nesta obra nordestina, foram substituídos pela vegetação local do sertão pernambucano: as cactáceas, exemplificadas pelo tão famoso mandacaru, planta que “fulora na seca como um sinal que a chuva chega no sertão”. Os animais têm a figura contextualizadora do cenário tradicional do estábulo, eles exprimem elemento de adoração pela figura central cristã, enquanto a guardam na manjedoura. Aqui são representados os animais típicos nordestinos como bodes/cabras, ovelhas, jumentos, galinhas e bois/vacas. A distinção entre as figuras humanas se dá pela postura, pela vestimenta e pela cor da pele - que se mantém na cor do barro ou são pintadas de preto. Mas todos os personagens possuem traços semelhantes, com construção facial rudimentar e se igualam em tamanho. Até a figura do anjo protetor - de interlocução entre os mundos terreno e celestial - não tem características distintas. A expressão de uma comunidade tem a cara dela, carrega sua história, imprime características cotidianas; são manifestações documentais de elementos

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Cada artefato artesanal é uma mostra da habilidade, da criatividade, é o resultado da interação entre uma comunidade, o meio ambiente e a história, uma micropartícula de alto valor simbólico.


identitários. O artesanato é um traço da cultura brasileira que unifica o país. Cada artefato artesanal é uma mostra da habilidade, da criatividade, é o resultado da interação entre uma comunidade, o meio ambiente e a história, uma micropartícula de alto valor simbólico. Cada região tem suas particularidades, uma predominância de técnicas, de cores, de símbolos, de referências que juntos compõem um conjunto de grafismos com significado, uma tradução de um contexto sociocultural. Tudo junto forma o Brasil que somos.

representação de um presépio, que é só uma entre tantas existentes.

O natal é uma data comemorativa extremamente recheada de padrões estéticos do hemisfério norte, como pinheiros, papais noéis, renas, neve, a predominância do “vermelho coca-cola” e a chuva de luzes - o que nada tem a ver com nosso clima tropical, nossa fauna e flora e figuras de folclores. Eu, particularmente, me encanto com tamanha riqueza de detalhes com que as decorações são executadas nessa época, e não descarto o valor da memória afetiva familiar que foi construída sobre esses elementos. Porém careço da falta de acesso a diferentes referências culturais, as brasileiras, tão ricas e cheias de significados - como esta

Para além de um desejo pessoal, vislumbro a possibilidade de experimentação de elementos culturais geograficamente distantes, para todos os brasileiros, como ferramenta de conhecimento. No natal poderíamos ver uma maior variedade de papais noéis de diferentes etnias, ou de sunga, pescando numa canoa no rio ou lutando capoeira. Poderíamos encontrar nos presépios as onças, antas, botos e araras. Ao lado da manjedoura encontraríamos um Saci e o Boi Tatá. Eu quero ver o Brasil real compondo cenários, afinal somos multiculturais, múltiplos, miscigenados.

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Há uma resistência em difundir a diversidade de expressões artísticas populares, em incorporar referências entre regiões brasileiras ou de outros modelos, uma vez que o nosso país é plural, diverso e não apresenta as mesmas características do hemisfério norte. Somos feitos de sol e calor, de florestas tropicais e de sertão, de samba e de frevo, de barro e de palha, de arte como os artesanatos e de muitas outras manifestações da brasilidade nas produções populares.


Bruna Bombarda É bióloga, educadora e fotógrafa, mas, antes de ser qualquer coisa, sempre foi artista. Tem uma história de amor com as plantas e com as artes manuais. Sua missão é contar histórias através das suas criações e transformar o dia a dia em poesia. As fotografias da matéra são também de sua autoria.

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A Cultura Brasileira Revista Ê uma iniciativa independente, com publicaçþes digitais, gratuitas e quase-bimestrais. www.culturabrasileirarevista.com.br contato@marcelooseas.com


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