Cultura Brasileira Revista #001

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CULTURA BRASILEIRA REVISTA

Pesca Artesanal A arte que convive entre o romântico e o real. Mandioca e maniva: comida, história e cultura material. Antropofagia na Serra. Prosas de mulheres na Arte Popular. A linha do tempo do artesanato no Brasil. #001 . OUTUBRO 2020

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Nascemos revista, morreremos revista. Quando encarei o vazio provocado pela pandemia, percebi não só o meu universo particular, mas uma dor quase irremediável. Notei que grande parte da vida passei observando o mercado editorial brasileiro, seja pelas experiências e lutas de meu pai ou por minha vivência própria como fotógrafo especializado em cultura brasileira - tentando insistentemente encaixar pautas nas poucas revistas que sobreviveram em nosso país.

Não demorei muito para notar que aquela dor que olhava de volta para o meu íntimo, que me abraçava e dizia suas necessidades, simplesmente se resumia na vontade das diversas vozes de nossa cultura em ocupar um lugar de fala. Mas, como dar espaço à cultura em um país que desde sempre não a prioriza, com um mercado editorial em que as grandes livrarias tornaram-se lojas de souvenirs... com revistas que tentam sobreviver à base de publicidade? O remédio para essa chaga está agora em suas mãos. Criei Criamos uma revista. Agora, após materializar essa decisão insana, me cabe apenas lhe desejar uma boa leitura.

Marcelo Oséas, Editor

EDITOR Marcelo Oséas PRODUÇÃO E REVISÃO Bruna Bombarda IDENTIDADE VISUAL Bárbara Alves COLABORADORES DA EDIÇÃO #001 - 01 DE OUTUBRO DE 2020 Anderson Antonangelo - Bruna Bombarda - Camila Fantini - Gabriel Fernandes - Helena Camargo Isadora Calil - Marcelo Oséas - Nicole Tomazi - Rebeca Catarina - Renan Quevedo Vanessa Prezoto - Viviana Venneri 2


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VESICA PISCIS

Mandioca e maniva: comida, história e cultura material

Tudo o que você me der é seu. Prosas de mulheres na Arte Popular

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Pesca Artesanal, a arte que convive entre o romântico e o real

Antropofagia na Serra

Qual a matéria prima do Brasil?

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A Linha do Tempo do Artesanato no Brasil

Ilustração à Brasileira

A busca pela arquitetura brasileira

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Território feito à mão

Mensageiros de cultura: objetos que contam histórias

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VESICA PISCIS há uma grande intersecção e os dedos calejados já não são mais que o olhar atento da costureira não poderiam ser mais que o suor seco na roupa mal lavada os dedos suados e costurados não são nada além do que podem ser os risos contidos há uma grande intersecção e os dedos calejados já não são agora são os dedos de quando não havia dedos são os dedos já consumidos pela terra são os dedos eternos que num gesto de amor tocam os dedos alheios que são os próprios dedos há suor e dedos há roupas costuradas e há risos suados e os dedos quase nunca foram suficientes mas quase sempre o foram pois eles estão lá mas não estão há dedos quase eternos costurando o que parece ser uma grande intersecção

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Anderson Antonangelo É paulistano de 83, poeta e professor. É autor de Fantasmagorias (2018) e Ruminações (2020), e co-fundador do coletivo poético Sinestéticas. @anderson.antonangelo

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Mandioca e maniva: comida, história e cultura material por Bruna Bombarda

Mani nasceu numa aldeia indígena e, muito cedo, partiu. A mãe da criança, muito triste, quis mantê-la perto, enterrando-a dentro da oca. As lágrimas escorriam e molhavam o leito de Mani, os sentimentos ali diluídos nutriram o solo, germinando sobre o corpo da menina uma árvore diferente de todas as outras já conhecidas. A aldeia passava por um período de escassez e fome, eis que Mani aparece para a mãe em sonho, contando os benefícios da misteriosa planta, trazendo a solução para os problemas da família. O corpo de Mani, na oca, originou a mandioca. Os indígenas, observadores, integrados aos ciclos naturais, cultivam e

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processam alimentos, inclusive a mandioca, há milhares de anos. O processo de produção do vegetal começa antes mesmo dela ser plantada. A diversidade é importantíssima para a manutenção de roças saudáveis, então há trocas de manivas (pedaços do caule que cravados no solo se desenvolvem e originam novas plantas) entre aldeias. A coleção de diferentes variedades garante a variabilidade, fortalecendo a segurança alimentar da comunidade. Uma curiosidade é a existência hoje de mais de 4 mil cultivares de mandioca no Brasil, resultado da conservação e seleção ao longo dos anos por indígenas e por agricultores.


©Marcelo Oséas

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Plantada, crescida e colhida, depois de meses a mandioca passa por diversos processos até estar pronta para consumo. A princípio, a raíz já descascada fica de molho, descansando em água durante três dias, para em seguida entrar numa sequência de procedimentos manuais. Com paciência e atenção ao método, com a ajuda do fogo e dos utensílios e ferramentas adequados, a mandioca pode ser, enfim, degustada. Após o molho, a raíz amolecida é macerada e colocada no tipiti, uma ferramenta cilíndrica de palha trançada que aperta essa massa de mandioca. Quando em tração, o tipiti comprime o material, separando o caldo da massa. Esse último processo descrito é muito interessante, pois, além de ser muito simples e eficiente, o manuseio da ferramenta deixa marcas características da trama na massa, formando desenhos - os quais são muito semelhantes aos típicos padrões estéticos da etnia munduruku.

©Marcelo Oséas

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Essa massa, agora menos hidratada e concentrada, quando passada no kumata - uma peneira também feita de palha - é levada para o processo de torra, gerando a farinha de mandioca. Além da massa, o caldo também é processado, ele é decantado e o produto que se acumula no fundo é goma de tapioca. O restante do líquido ainda é tóxico, então passa por fervura e fermentação durante três dias, resultando no tucupi, uma iguaria da culinária regional, um caldo bem temperado servido como acompanhamento das refeições. Essa etapa de fervura intensa é muito importante dado o alto teor


de toxicidade dessa planta, que em condições naturais pode ter alto teor de cianureto quando em molho. De uma só planta nasce a farinha, a fécula, a tapioca, o tucupi; alimentos que compõem o cardápio do brasileiro. A mandioca há milênios é base alimentar de quem habita as terras hoje denominadas brasileiras, no presente é fonte primária da agricultura familiar

do país. A história de Maní e diversas outras crenças explicam, embelezam e dão graça à sua existência. São histórias, narrativas transmitidas de geração em geração, que sobrevivem na memória dos povos. É conhecimento, cultura material, manifestação de saberes ancestrais. A mandioca é só uma fatia desse universo.

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Bruna Bombarda É bióloga, educadora e fotógrafa, mas, antes de ser qualquer coisa, sempre foi artista. Tem uma história de amor com as plantas e com as artes manuais. Sua missão é contar histórias através das suas criações e transformar o dia a dia em poesia. @brunabombarda

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Tudo o que você me der é seu Prosas de mulheres na Arte Popular

por Marcelo Oséas e Renan Quevedo

Esta matéria surge do convite que realizei para o Renan Quevedo, idealizador do projeto Novos Para Nós (@ novosparanos), curador e pesquisador independente de arte popular brasileira, para nos contar a história de um artista de sua livre escolha. Logo no início da conversa fui recebido com uma contra proposta irrecusável, cujo conteúdo vocês descobrirão nas próximas linhas. Renan Quevedo é formado em publicidade, viveu uma década dentro do mundo de agências e sua realidade foi transformada principalmente a partir e 2012, ao visitar a exposição Teimosia da Imaginação no Instituto Tomie Ohtake, momento em que foi arrebatado pela arte popular brasileira, em um misto de estranhamento e curiosidade e, como afirma, já não sabe mais viver sem lidar com essas expressões cotidianamente.

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Desde então, iniciou um longo caminho de pesquisa e viagens que culminam no lançamento, em 2017, do Novos Para Nós, projeto em que se propõe a rodar o Brasil contando histórias de nossos artistas populares e, especialmente, fez questão de todos os dias compartilhar uma história diferente. Após milhares de quilômetros rodados, contou trezentas histórias diferentes, um número bem maior que imaginava e, atualmente, continua colecionando quilômetros de estrada, novos encontros e curadorias das mais variadas. Logo que iniciou a sua jornada de pesquisa, antes mesmo de sua primeira exposição, já tinha a vontade de realizar uma mostra com um tema muito específico: mulheres da arte popular brasileira. Renan propõe o recorte por entender que o lado feminino é sempre


deixado de lado pelas atenções, que ressaltam os mestres como Vitalino, Zé Bezerra e Véio. Não por falta de tentativas, experienciou inúmeras dificuldades para conseguir organizar uma exposição deste tipo, escutando justificativas das mais diversas, centradas na suposta desnecessidade do recorte. Porém, o cenário muda quando a galerista Fernanda Resstom, da Central Galeria, viaja de São Paulo à Recife para a Feira Internacional de Artesanato de Pernambuco (Fenearte) de 2019. Após acompanhar a palestra do Renan e escutar sua ideia de centrar uma exposição no trabalho de mulheres, ofereceu carta branca para a realização da mostra e, desde então, trabalham juntos para tornar a ideia uma realidade. A Cultura Brasileira Revista nasce com a premissa de não ser “datada”, isto é,

cada edição pode ser lida a qualquer momento, sem transmitir ao leitor a pressão de ter perdido algo ao lê-la fora da data. Ainda assim, e por motivos óbvios, contar a história da exposição é um convite irrecusável. São inúmeros os nomes de artistas populares mulheres que deveriam ser de conhecimento público e povoar espaços em galerias. Tudo o que você me der é seu - Prosas de mulheres na Arte Popular é uma exposição cujo fio condutor é o silêncio preenchido pelas histórias. Renan, em sua sensibilidade de curador, compartilha sua percepção do cotidiano das artistas que observam o mundo ao seu redor, digerem, vivem e, por necessidade vital, compartilham obras fantásticas, nascidas em tempos e mundos que perpassam o nosso.

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©Central Galeria

Efigênia Rolim Nascida em 1931 em Abre Campo, Minas Gerais, começa a produzir ao se mudar para o Paraná e encontra nas ruas de Campinas os resíduos que, tornando-se agora colecionadora, passa a ressignificar. Utilizando materiais que perderam a utilidade para a nossa

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sociedade, constrói personagens de contos fantásticos, transparecendo em suas narrativas a sua preocupação com a wwhumanos. Cada peça acompanha uma história que complementa seu significado.


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Nilda Neves Nascida em 1961 na zona rural da Bahia, na cidade de Botuporã, muda-se para São Paulo para melhorar suas condições de vida. Inicia sua produção entre as dificuldades de vida de migrante, em que experienciou diversas profissões, como manicure, cabeleireira e dona de

bar. Guardiã das tradições de sua região, compartilha em suas imagens contos sobre o Sertão, em histórias que mesclam o real ao imaginário.

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Rosana Pereira da Silva Nascida em Caraí, norte de Minas Gerais, no Vale do Jequitinhonha, segue uma extensa linhagem de ceramistas, que remontam às origens indígenas do território. Tendo recebido grande influência de seu avô, retrata figuras antropomórficas, mas, com seu olhar

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sensível, apresenta imagens do cotidiano do Vale, colocando a mulher em figura de destaque. Ao ser questionada sobre o motivo de suas escolhas, responde clara e diretamente: “Eu faço isso porque a mulher também é importante.”.


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Lira Marques Nascida em 1945, em Araçuaí, ao norte do Vale do Jequitinhonha, é, em primeiro lugar, uma pesquisadora da história e etnografia do Vale. Dotada de um extenso conhecimento da região, passa a colecionar, para não dizer catalogar, as diferentes tonalidades

de barro do entorno. Por dificuldades motoras, opta por utilizar o barro como pigmento para suas pinturas, que ilustram animais reais e fantásticos, que possuem ação em nosso mundo material, como verdadeiros guardiões, ora mansos, ora bravos.

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Pesca Artesanal, a arte que convive entre o romântico e o real por Marcelo Oséas

O dia da chegada das canoas à praia era sempre cheio de expectativas. Essa é a sensação que circunda uma das minhas memórias mais antigas: eu, conduzido obviamente pelo meu pai, me dirigia a uma praia de Ubatuba para obter o peixe recém pescado. Meu pai, na época gerente de um hotel da região, fazia questão de comprá-lo diretamente dos pescadores locais. “A qualidade é incomparável.”, dizia ele. Mariscos, peixes de variadas cores e a “favorita do Marcelo”, como dizia o pescador, uma tainha com as alaranjadas ovas, que logo iam compor uma farofa de sabor complexo, quase inexplicável. Assim se resumiu grande parte da minha

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infância e, confesso, demorei para perceber que a figura de uma pequena canoa ou um solitário pescador em ação não faziam parte exclusiva do meu imaginário cultural. Décadas se passaram e hoje percebo muito claramente o quanto a figura da pesca artesanal, da canoa, das redes e seus diversos elementos fazem parte do imaginário coletivo do brasileiro. E não poderia ser por menos, nosso país se constrói no contexto em que a relação com a água é praticamente onipresente. O Brasil é um país com uma das maiores extensões litorâneas do mundo (são 9.200 km quando consideramos seus desenhos côncavos e convexos) e


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possui uma complexa rede fluvial, que corresponde a 10% da reserva de água doce mundial. Entretanto, mesmo presente em nossa subjetividade, a pesca artesanal começa a dar sinais de distanciamento da nossa forma contemporânea de vida, especialmente com a explosão urbana das últimas décadas e a invasão tecnológica em nosso cotidiano. Eu mesmo já fotografei a pesca artesanal em diversos contextos - algumas das imagens ilustram essa matéria - e noto na prática, infelizmente, o inevitável: à medida que nos aproximamos dos grandes centros urbanos, verificamos que as comunidades envolvidas na pesca artesanal estão cada vez mais escassas.

Será mesmo? Essa forma artesanal e ancestral de pesca realmente não condiz mais com a chamada contemporaneidade? Aliás, quem são esses homens e mulheres que as praticam? E o peixe que nos oferecem todos os dias, não provém do seu trabalho? Diante destas e inúmeras outras perguntas e um certo quê de inconformismo, me propus a uma extensa pesquisa, que agora é compartilhada, quase resumida, nesta matéria. #001 . OUTUBRO 2020

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A diversidade das comunidades de pescadores A atividade da pesca remonta às origens da humanidade e no Brasil não é nada diferente. Nossa extensão litorânea e fluvial implica não só em diferentes ambientes ecossistêmicos e culturais, mas também na necessidade de adoção de técnicas distintas para que a pesca seja realizada de maneira próspera. Tais técnicas, aprimoradas ao longo de séculos pelos caiçaras, jangadeiros, pantaneiros e caboclos, provém das origens e intercessões da própria cultura brasileira,a indígena e européia e

outras que deixaram seus traços, como aquelas provenientes da experiência compartilhada pela imigração japonesa. Atualmente, estima-se que temos um milhão de pescadores artesanais em atividade, sendo quase a metade representada por mulheres.

Mais que uma atividade comercial, falamos de uma prática com base absolutamente comunitária em que um sistema de vida se desenvolve ao redor da pesca.

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O ato de retirar o pescado do mar é uma das dezenas de atividades que envolvem a comunidade, que necessita de especializações diversas, seja para a realização de reparos nos materiais, elaboração de apetrechos, construção de embarcações, beneficiamento do pescado e até o próprio comércio.

atividade absolutamente sustentável em sua origem.

O olhar externo facilmente atribui a este tipo de atividade o título de simples ou até rudimentar, mas, quando vivenciamos o cotidiano de um grupo como esse, percebemos que existe um sistema de valores, uma forma de ver e se conectar com o mundo e com a natureza extremamente peculiar. E não é apenas isso. Para se desenvolver a pesca artesanal, em qualquer região do Brasil, é necessário um conjunto de saberes que são transferidos ao jovens por meio da vivência comunitária, pela experiência e, principalmente, pela oralidade. Existe sim uma extrema complexidade de conhecimento, mas ela está oculta ao olhar forasteiro, disfarçada pela simplicidade. É justamente a vivência baseada na complexidade de saberes que permite que tais comunidades, quando não afetadas por fatores externos, consigam viver de maneira resiliente frente às mudanças ambientais e, principalmente, em equilíbrio social, ambiental e econômico. A tradução deste equilíbrio se apresenta não só na variedade de técnicas empregadas, mas especialmente pela diversidade de espécies coletadas e pelo respeito aos seus ciclos de vida, práticas essas que se desdobram em uma

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Uma forma de viver que enfrenta graves problemas “O Brasil não é para principiantes”, certamente essa frase do Jobim povoa a mente de qualquer pesquisador, quando se procura entender algo sobre o nosso país. E no cenário da pesca, não seria diferente. Entender seu panorama geral, em todos os níveis, não é uma tarefa das mais simples, saltam leis, órgãos e termos dos mais variados e, aos poucos, percebe-se que adentramos em um mundo particular.

Admito que este cenário complexo é um dos motivos que reforçaram a necessidade da existência dessa matéria. Como leigo, senti uma falta tremenda de um panorama que me apresentasse as questões contemporâneas dessa atividade e, especialmente, uma forma de atuar ou contribuir para melhorias, como cidadão e consumidor. Então, vamos às simplificações.

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Podemos, em linhas gerais, dividir os problemas que colocam em cheque a existência das comunidades de pesca artesanal em dois grandes grupos, que denominei como urbanização e desenvolvimentismo. #001 . OUTUBRO 2020

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Boa parte dessas grandes metrópoles estão localizadas no litoral brasileiro ou nas proximidades de grandes rios, logo seu crescimento afeta direta e indiretamente as comunidades de pescadores. A urbanização brasileira, impelida pela indústria da construção civil sem a adoção de um planejamento urbano integrativo, gera danos ao meio ambiente como a poluição dos recursos hídricos, por dejetos humanos e industriais e a destruição de matas ciliares, fatores que contribuem para um grave decréscimo da oferta de pescados nas regiões afetadas. Em adicional, a localização das comunidades pesqueiras próximas aos centros urbanos são de grande interesse à especulação imobiliária e, quando não há o convencimento para aquisição das terras, as famílias são pressionadas pela ocupação desordenada da orla, perdendo um espaço vital para suas atividades. O outro grupo de problemas encontrados, que denominei de desenvolvimentismo, se refere a decisões institucionais que colocam a prática da pesca artesanal em uma situação de extrema vulnerabilidade. O formato e origem de tais decisões são diversas, mas se limitam em distintas ações com o objetivo de incentivar um suposto crescimento da produção industrial e da infraestrutura brasileira, mas em grande parte realizada adotando-se um modelo externo, como o norte-americano, sem qualquer conhecimento ou adaptação à realidade do nosso país. 22

Quando em 1967 o Regime Militar no Brasil institui o Código de Pesca, documento esse que não citava ou reconhecia a pesca artesanal, basicamente o que aconteceu foi o incentivo à entrada de capital na construção de uma indústria de pesca com o intuito de aumento de produção, porém sem referência aos séculos de saberes acumulados pelas comunidades tradicionais. Em consequência, vimos um acelerado decréscimo dos cardumes costeiros e a concentração em poucas espécies, ocasionados pela ausência de práticas de defeso ou de qualquer manejo ecossistêmico. À medida em que os anos passaram, e as decisões institucionais seguiram os mesmos passos, os pescadores artesanais se viram inseridos não só em um contexto de invisibilidade, mas principalmente sendo obrigados a concorrer em uma cadeia de negócios externo à sua forma de vida, como em um cenário de queda acelerada do valor do pescado. Atualmente, além das questões de infraestrutura pública e amparo legal, para conseguirem ganhar concorrências, suas atividades são diretamente impactadas pelas variações nos preços de itens como gelo, diesel e alíquotas de impostos.

A pesca artesanal está ultrapassada? Não é a primeira vez que eu vejo uma forma de vida ser pressionada por outra. Apesar de aberrações


poderem ser evitadas, acredito que embates ideológicos, culturais e até econômicos fazem parte da vivência humana. Algumas vezes, eles implicam no desaparecimento ou adaptação de diversas formas de viver. Mesmo acreditando que quase tudo poderia ter sido gerido de forma diferente, é impossível não se perguntar:

Será que a pesca artesanal está ultrapassada? Será que a adaptação dessa parcela de nossa população era (ou é) inevitável? Bem, não há outra maneira de responder a esses questionamentos, sem um aprofundamento na relevância

dessa prática, no Brasil e no mundo. A Organização das Nações Unidas para Alimentação e a Agricultura (em inglês, FAO ONU), cujo escritório no Brasil foi de grande colaboração para uma seção futura desta matéria, emite bienalmente um relatório, em tradução livre, chamado O Estado da Pesca e da Aquicultura no Mundo e sua versão de 2020 nos coloca frente à uma realidade mundial extasiante.

a pesca artesanal é responsável por metade de todo o pescado produzido no mundo e por alocar

Conforme os dados reportados,

90% dos trinta e cinco milhões de pescadores identificados.

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Em adicional, afirma que o pescado não é só uma das comidas mais saudáveis, como um dos meios de exploração que menos gera impactos negativos no meio ambiente. Estima-se que no mundo consome-se ao ano cerca vinte quilos de pescado por habitante, mas não foi possível comparar com os números brasileiros, pois o Brasil não faz parte do relatório mundial. O Brasil não reporta seus dados de pesca desde 2008. A ausência de dados, que gera um grave entrave nas decisões federais e na promoção de políticas públicas, infelizmente, não representa o único vazio institucional a que as comunidades de pesca artesanal estão submetidas. Desde a promulgação do Código de Pesca em 1967 surgiram incontáveis mudanças legislativas, incluindo criações e dissoluções de Ministérios, Secretarias e órgãos dos mais variados. Consequentemente, é clara a perda de referência governamental pelas comunidades, que relatam dificuldades de se manterem informadas de novas regulamentações, pela falta de um meio de comunicação único e de espaços de diálogo. Não faltam também críticas pelo descasamento de informações entre o órgão regulador (Ibama) e o fiscalizador, a Polícia Ambiental, sendo que este último é constantemente criticado por abusos em abordagens.

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Ainda assim, surgem no Brasil dezenas de organizações comunitárias, formadas por pescadores, ativistas e pesquisadores, buscando a organização privada e a aplicação de um modelo de gestão participativa, entre o Governo e os cidadãos. As iniciativas são inúmeras, em diversas frentes, e neste contexto fui recebido pelo oceanógrafo Fabrício Gandini, fundador do Instituto Maramar, que, apesar de estar baseado em Santos, possui inserção nacional. Foi Gandini quem colaborou com a FAO ONU para a emissão do relatório Iluminando Capturas Ocultas - A Pesca Artesanal Costeira no Brasil, publicado em agosto de 2020, organizou o esforço de coleta de dados de quase duas centenas de organizações ao redor do Brasil para procurar suprir a ausência governamental ao reportar os tão necessários dados. E, mais uma vez, os resultados são arrebatadores.

a pesca artesanal e a industrial, assim como a existência dos intermediários de processamento e comercialização acabam impedindo que consumidor final saiba a origem e a qualidade do pescado que adquire. Ao ser questionado se havia futuro competitivo para a pesca artesanal, Gandini compartilha: “Apesar da concorrência comercial, a qualidade do pescado do método artesanal é extremamente superior, pela diversidade e seleção das espécies e por trazer a coleta ao mercados com maior velocidade, isto é, produtos mais frescos devido o menor tempo de armazenamento. Outra coisa, não podemos olhar para a pesca artesanal somente como uma atividade comercial, suas contribuições sociais e ambientais são relevantes e cotidianamente subestimadas pelo Estado.”.

Segundo o relatório, o Brasil é o décimo oitavo produtor de pescado do mundo, sendo que 60% do volume provém da pesca artesanal.

É importante deixar claro que esta matéria, apesar de promover a valorização da pesca artesanal, não está colocando em cheque a importância da sua versão industrial - quando bem aplicada. Inclusive, existe sim a possibilidade de coexistência. Não é difícil concluir que a versão artesanal tem capacidade de atender ao consumo local, enquanto a industrial, que acessa pontos mais distantes da costa, pode se relacionar com grandes redes de atacado e exportação. Entretanto, os entraves sistêmicos e os imbróglios institucionais atrapalham ou não permitem a aplicação direta deste tipo de segmentação.

Em adicional, 99,2% dos pescadores indicados desenvolvem o modelo artesanal, somando-se mais de um milhão de pessoas e mais de três milhões de trabalhadores indiretos, envolvidos nas demais atividades comunitárias. Durante minha conversa no Instituto, ficou clara a competição existente entre

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Esclarecimentos são necessários, antes de pensarmos em soluções.


Outro aspecto relevante é a associação comum do modelo artesanal (e em alguns casos até a pesca em geral) à métricas de baixa produtividade, inclusive entre alguns pesquisadores. Essa afirmação chamou minha atenção inúmeras vezes e percebo que a influência do desenvolvimentismo brasileiro é ainda hoje presente. Como se mede produtividade? Pergunto, pois a única maneira de suportar uma afirmação de baixa produtividade, no caso da pesca, é concluindo que nossas práticas não são suficientemente adequadas para retirar da água um volume de pescado existente. Seria afirmar que o produto está disponível e não é acessado, o que não é verdade. Existem práticas nocivas, que devem ser reguladas, mas a discussão se afasta da esfera da produtividade. É imperativo ter em mente que a pesca é uma atividade de coleta. O que significa que, diferentemente da agricultura, estamos falando de uma prática cuja premissa de abundância infinita resulta diretamente na exaustão dos estoques. Existe um futuro plausível para que a demanda exacerbada por produtos como o camarão ou o salmão seja atendida e essa possibilidade é oferecida pela aquicultura, que consiste na criação - ou cultivo - de pescados em cativeiro. Atualmente, a aquicultura já é responsável por 45% da produção mundial de pescados (FAO ONU, 2020). ©Marcelo Oséas

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Um exemplo de futuro possível Assim como os problemas, saltam por todos os lados iniciativas em prol da (re)organização das estruturas da pesca artesanal. As ações são quase infinitas, uma vez que a realidade de cada comunidade é absolutamente heterogênea, mas elas existem e estão cada vez mais organizadas e conectadas.

Ainda assim, confesso mais uma vez, que sinto falta de abordagens integrativas, pois muitas vezes é necessária a movimentação de toda uma estrutura para a resolução de um problema, aparentemente, simples. A questão é que essas abordagens custam caro e demoram para surtir efeitos. A boa notícia é que iniciativas de caráter integrativo existem e já foram aplicadas no Brasil. Como comentei anteriormente, contatei o escritório brasileiro da FAO ONU, que realizou entre os anos de 2012 e 2018 um projeto cujo olhar sistêmico permitiu a análise de diversas estruturas, a identificação de problemas e a formulação de iniciativas para uma região específica de nosso litoral, a Baía da Ilha Grande. Pude conversar com o coordenador de projeto Tiago Rocha, 28

que conta que foram necessários quatro anos de imersão na região, para que conseguissem propor um projeto com um olhar ecossistêmico, envolvendo principalmente a comunidade local e os agentes governamentais. O projeto, chamado BIG2050, foi possível por uma parceria entre a FAO e o Instituto Estadual do Ambiente (Inea-RJ) e o financiamento do Fundo Global pelo Meio Ambiente junto das Prefeituras de Angra dos Reis e de Paraty. Seu objetivo é garantir a conservação e uso sustentável da Baía e de sua biodiversidade e sua abordagem sistêmica se baseou na elaboração de um radar de indicadores que apurasse as condições de cada um dos serviços sistêmicos indispensáveis para a Baía, como a retenção de águas, extração de recursos pesqueiros e balneabilidade das praias. Uma vez desenhados tais indicadores e quais estavam em situação crítica, foi realizada uma convocação para iniciativas da própria comunidade, tradicional e científica, que, uma vez selecionadas, receberam o apoio e a consultoria dos técnicos do projeto. Diversas iniciativas foram apoiadas e persistem mesmo após o encerramento do projeto. Entretanto, os indicadores do radar precisam ser monitorados tempestivamente e, neste momento, a Universidade Estadual do Rio de Janeiro, uma das colaboradoras do projeto, está em busca de financiamento para a sua realização.


©Marcelo Oséas

Quando tudo parece inacessível, precisamos pensar em formas simples de colaborar Sim, as questões que envolvem a pesca no Brasil são extremamente complexas. Mas isso não significa que você não consegue, de maneira simples e prática, colaborar para a sua melhoria.

Grande parte, para não dizer todos, dos dilemas enfrentados pela humanidade neste século,

seguirão o rumo definido pelas nossas escolhas individuais. Pense em um exemplo - como a segurança, a sustentabilidade, o uso da água, o tratamento do lixo - o futuro das coisas se resumirá nas pequenas decisões que você toma. Quando falamos da pesca, em um panorama maior, falamos também da necessidade de captura de maneira sustentável, do respeito às normas regionais de defeso, da higiene de toda a cadeia, do destino correto do lixo e assim por diante. Certamente, ficou clara a relevância da pesca artesanal nesta cadeia, não só pelo tamanho da sua representação no volume total de capturas no Brasil, mas pela sua relevância sócio-cultural e na sua

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capacidade de estar inserida nos nossos hábitos alimentares, mesmo que não as enxerguemos. Mas, quando a necessidade colaboração é óbvia, como agir?

de

Em primeiro lugar, é imperativo tomar consciência das questões que ocorrem em sua região. Você consegue rastrear o pescado que você consome até chegar ao pescador que o coletou?Provavelmente não, mas se você mora em uma cidade litorânea ou com um importante rio ao seu redor, você sabe exatamente aonde se dirigir para aprender, para escutar e compreender os dilemas locais. Consequentemente você se sentirá impelido a colaborar, seja dando visibilidade a demandas locais ou até tomando decisões que protejam as suas comunidades. Caso você não resida próximo de comunidades pesqueiras, como na cidade de São Paulo, a melhor forma de você colaborar - além de dar visibilidade às questões das organizações que citei nessa matéria - é tomando decisões conscientes de consumo. Quanto mais processado o pescado que você compra, apesar da impressão higiênica,

maior a chance dele fazer parte de uma longa cadeia de intermediários e provavelmente maior foi o tempo de armazenamento em uma embarcação. A rastreabilidade começa a dar sinais de realidade no Brazil, aquela mesma que já existe na indústria da carne.

Saber a origem e o caminho do pescado certamente vai mudar o jogo, vamos conseguir decidir exatamente os tipos de prática que apoiaremos e fiscalizaremos. Cabe dizer também que a União Européia, por exemplo, já começa a exigir a rastreabilidade nas suas importações, bem mais fácil de ser colocada em prática no caso da aquicultura. Como disse anteriormente, já vi muitas culturas deixarem existir no Brasil. Mas, definitivamente, não acredito que seja o caso da pesca artesanal. Há muita vontade e muita luta para existir. Enquanto houver luta, há futuro. No meu caso, no seu e no nosso, tudo se resume a uma pergunta: De onde vem o seu pescado?

Marcelo Oséas Fotógrafo, especialista em cultura brasileira, cujo portfólio ilustra a vivência de comunidades tradicionais (como a caiçara, indigena e quilombola), assim como expressões nativas, como festas regionais, práticas alimentares e a vida circunscrita em patrimônios naturais. @marcelooseas #001 . OUTUBRO 2020

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Antropofagia na Serra Como a narrativa truncada da Suíça Brasileira ocultou a autêntica Campos do Jordão.

por Isadora Calil com ilustrações de Rebeca Catarina

Michel Agier, antropólogo francês, usa num artigo que li há muitos anos uma frase de Rimbaud muito enigmática: Je est un autre (“Eu é um outro”). Na minha interpretação, ela meramente faz alusão ao fenômeno belo da alteridade, em que enxergo o outro como portador de características e sentimentos que por vezes são também de um “eu”. A frase de forma alguma torna esse “eu” o próprio “outro”. Bom, pode valer para os antropólogos e poetas, mas certamente não foi assim para a peculiar Estância Climática de Campos do Jordão, fundada em 1874, na Mantiqueira. Para ela, “eu” e “outro” estão separados por uma mera formalidade – que alguns chamariam geografia ou, até, bom senso. Eu me explico. Corria o ano de 1841, quando Domingos Jaguaribe, detentor de terras no vilarejo ainda nem bem fundado (nomeado graças às posses do Brigadeiro Jordão por aquelas paragens), resolveu usar a pena no Jornal do Comércio para 32

cunhar o slogan que agracia e amaldiçoa a cidade – Suíça Brasileira. O intuito de Jaguaribe, hoje nome de um de nossos principais bairros, era exaltar a natureza e os ares curativos, características marcante já nos anos 1870, especialmente propagandeada por nosso fundador Matheus da Costa Pinto. Na Pensão São Matheus, criada por ele, já eram recebidos tísicos de outras regiões, como relata o historiador jordanense Edmundo Ferreira da Rocha. É também dessa década a criação da Casa de Saúde Imbiri, indicando a rota que o lugar tomaria dali em diante. E a Suíça onde fica? Onde sempre esteve, na Europa Ocidental. Não era dela de que estava falando um dos pioneiros no jornal carioca. Possivelmente, ele pensava nas “suíças”, balneários de cura que despontaram em alguns países europeus no século XIX para aliar tratamento de doenças pulmonares com turismo. No limite, a única ligação que


Campos do Jordão possa ter com o país Suíça é a inspiração na cidade de Davos, fortemente sanatorial e imortalizada na obra “A Montanha Mágica”, de Thomas Mann. Porém, nosso clima conseguiu ser até melhor, segundo estudos da época. Como uma história tão simples de ser entendida pode causar tanto rebuliço ao longo de um século? A cidade tende a negar seu passado, conhecido como Ciclo da Cura (1874-1940), e privilegiar o turismo, uma pequena parte do que é ser um balneário. E que mal negócio seria esse para a belíssima natureza e para a identidade de seus verdadeiros

moradores. Eu nasci em Campos do Jordão, no bairro de Capivari, em 1987. Conhecido como “centrinho” pelos visitantes, foi projetado para ser o local ideal às temporadas invernais dos endinheirados. O que poucos sabem é que o projeto inicial era o de usar as terras para abrigar uma “Vila Sanitária”, concebida pelos sanitaristas Emílio Ribas e Victor Godinho. Ideia da dupla citada acima, a Estrada de Ferro de Campos do Jordão melhorou o acesso à cidade e à sua natureza estonteante, a partir de 1914. A ferrovia, com saída em Pindamonhangaba, foi finalizada graças aos fundos do empreiteiro

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Sebastião de Oliveira Damas, porque a S.A responsável quebrou no meio da construção. Damas foi a Portugal, onde hipotecou todos seus bens. De volta ao Brasil, pagou as dívidas e retomou as obras. No Capivari, há uma estação tombada em homenagem a mais este benemérito de Campos do Jordão (desconhecido das novas gerações, certamente). A viagem de “wagon” de Elza pela trilhos eletrificados da ferrovia é o início do clássico “Floradas ana Serra” de Dinah Silveira de Queiroz. Nos anos 30, com acesso facilitado, a protagonista vai a Campos para se tratar e fica hospedada numa pensão para moças. Apesar da paisagem, bem descrita, está também presente a todo momento a brutalidade da doença. A obra se tornou filme duas décadas depois e, mais adiante, novela na extinta Rede Manchete. Foi uma porta de acesso da cultura à nossa enigmática cidade. Há uma Campos do Jordão mais antiga do que a dos tuberculosos, vítimas de intolerável preconceito no mundo externo à nossa montanha. Essas outras narrativas estão ligadas às famílias pioneiras do fim do século XVIII ou aos ricos detentores de terra do início do XX – como o Embaixador Macedo Soares, presidente da Cia. Melhoramentos Campos do Jordão. Foi ele um dos responsáveis por tornar Capivari um local sobretudo turístico, com apenas alguns bolsões para populações de baixa renda, como a Vila Operária. Benfeitor da cidade, nos anos 1920 contribuiu com terrenos para que fossem construídos 34


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quase todos os sanatórios da Estância Climática.

Andrade, o autor de “Macunaíma”, para saraus com os doentes mais abastados.

O pintor modernista Lasar Segall, hoje nome de uma rua no Capivari, foi um grande entusiasta de nossa paisagem. No museu criado por sua esposa, Jenny Klabin Segall, em São Paulo, é possível conferir alguns trabalhos que retratam a natureza mantiqueirense. De volta à Campos, obras de sua autoria são parte do acervo do Museu da Xilogravura, fundado no mesmo ano em que nasci, situado em Jaguaribe.

A virada

A história da minha família materna começa no final dos anos 30, com a chegada do meu avô José Elias, o “Calil”, ao Sanatório S2 para tratamento da tuberculose. Curado e já casado com a minha avó, Salvadora, os dois se fixaram nas montanhas e iniciaram uma nova vida, diferente daquela dos anos de operários na Votorantim, em Sorocaba. Meus avós se mudam para o Capivari no final dos 50, onde passam a habitar a casa que fora de Monteiro Lobato, como lembra minha mãe, Selma. O escritor se mudou para Estância por dois ou três anos para que se curassem dois de seus filhos. Ambos acabaram sendo levados pela doença. Dado a arroubos ufanistas, o escritor taubateano tinha gosto avesso às Vanguardas e à arte que não refletisse o Brasil. Assim, detratou a obra de Anita Malfatti e arranjou confusão com os Modernistas da Semana de 22. Confusão essa que, em Campos do Jordão, não o impediu de circular pela Pensão Azul, por onde aparecia também Mário de

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Estranhamente, demorou muitos anos para que eu me desse conta de que a história da tuberculose era minha também. Eu fui criança nos anos 90, ápice do turismo predatório; dos stands e das marcas. Nessa década, meus pais participaram do boom das malharias na cidade, o que nos descolou por um tempo da história da saúde começada por meu avô. Seu Calil iniciou como operador de raio-x no Dispensário, ocupado hoje pela Prefeitura, e anos depois seguiu com a compra da Drogaria Emílio Ribas, que já soma 75 anos de história em Capivari. Apesar desse laço muito evidente entre a minha família e o Ciclo da Cura, foram necessárias duas décadas para eu esclarecer o que Campos representou para a história do Brasil. Nem mesmo me ocorreu conectar o nome do meu pai, Alexandre Fleming, ao do inventor da penicilina, de quem era homônimo. O antibiótico descoberto pelo cientista foi divisor de águas no tratamento aos tuberculosos. O meu horror às casas demolidas para dar lugar a prédios hediondos ou a estacionamentos, além do caos que se estabelecia no meu portão a cada temporada, falavam mais alto. Eu não queria saber de nada; só de quando ia sair dali sem olhar para trás. O que consegui parcialmente aos 15 anos, quando me transferi para São Paulo.


Em 2012, algo começou a mudar. Chegou ao meu conhecimento o trailer de um documentário chamado “ Histórias de Vida na Montanha Magnífica”. Nele, pessoas importantes da velha guarda contavam sobre como Campos tinha sido importante na batalha contra a tuberculose. Logo no início, o historiador Pedro Paulo Filho disse que “Campos do Jordão nasceu do sentimento de solidariedade humana”. Vivi na pele a deterioração de nossos laços comunitários, sem praticamente ter tido vizinhos de fato, salvo meus avós e alguns caseiros, porque morava numa vitrine comercial para turistas. Quatro anos depois, na Vila Mariana, eu realizava um evento no Museu Lasar Segall com a professora do Mackenzie Ana Gabriela Godinho Lima, sobre Arquitetura Escolar. Num dado momento ela pediu para que todos falassem onde estudaram e comentassem a arquitetura. Fiquei em choque quando saiu da minha boca: “eu estudei num sanatório desativado”. O espanto veio por nunca ter refletido sobre isso. Muitos que estudaram lá, como eu, lembram do salão principal: amplas janelas dos dois lados e um chão num padrão verde e vermelho. A entrada era por uma rampa que começava em frente à sala dos professores. O lugar de palestras e aulas fora possivelmente uma enfermaria, onde décadas antes homens e mulheres sofriam surtos de hemoptise (expectoração de sangue das vias aéreas e dos pulmões). Atrás

da edificação de fachada vermelha e branca, havia no morro uma espécie de gruta com uma santa – lugar de fé para os desesperados. Sim, foi lá mesmo o Sanatorinho S1, onde a receita de cura eram o repouso, a alimentação regrada e o clima privilegiado da Estância. A Escola Dora Lygia Cersósimo Richieri, ou Dora como chamamos, é uma homenagem a uma grande professora. Ela impactou a vida de muitas crianças jordanenses, entre elas minha mãe, a quem preparou e levou para as Olímpiadas de Matemática em Taubaté. As fundadoras do colégio decidiram eternizar seu nome, já que sua vida havia durado apenas três décadas. Esses elementos me fizeram entender que havia mais do que aquelas construções plásticas, “alemãs” ou “suíças”. Nem sei o que dizer dos restaurantes que vendem pratos do mundo todo, sem poder apresentar um único de nossa culinária típica (salvo invencionices com truta e pinhão). Eu passei anos andando cega em meio à cerração, tão presente em algumas manhãs da Mantiqueira. Demorou para eu encontrar as milhares de vidas salvas das agruras do “mal do século”, incluindo a dos meus dois avós – Seu Calil e Júlio Rodrigues.

Antropofagia Eu vejo o centro da cidade como o bairro de Abernéssia, onde fazemos compras, estudamos, vamos ao cinema (ou íamos) e por aí vai. Adoro a história de como Robert John Reid, em 1915,

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deu nome a ele: ABER (de Aberdeen), NESS (de Inverness) e IA (de Escócia). Basicamente, ele ressignificou sua Europa natal para criar um enclave completamente novo na Mantiqueira. Talvez seja isso que Oswald de Andrade chamasse de antropofagia. Ainda sobre o escocês jordanense, foi ele também o responsável pela fundação da usina hidrelétrica de Abernéssia e pela Companhia de Eletricidade de Campos do Jordão. Não mais existentes. A minha cidade é feita de pontos cegos, os mais importantes sempre. Numa curva em Abernésia, três marcos históricos que tem muito a dizer sobre Campos triangulam. Num vértice, a estátua do bandeirante Gaspar Vaz da Cunha. Em 1704, foi o primeiro a desbravar nossos lados da Mantiqueira, até então considerada “sertão” pela Coroa Portuguesa – local insondável e de difícil controle de rotas “alternativas” para escoamento de ouro das minas. A estrada criada pelo sertanista foi fechada. Só décadas depois, caminhos voltaram a existir pelos golpes de foice de outros pioneiros. No outro ponto, há o prédio da antiga Telesp, uma construção brutalista de Ruy Ohtake de 1973, uma lufada de modernidade arquitetônica no monótono esquema alpino. Apesar do péssimo estado de conservação (embora ocupada pelo Sebrae), ela é uma jóia cuja estrutura remonta a forma de uma araucária, nosso símbolo máximo desde 1981. Na ponta do triângulo, a Estação de Abernéssia, que nos lembra quando 40

o trem era o meio de transporte para ir e vir pela cidade; não um passatempo para turistas. Pessoas mais antigas ainda se recordam de que não era incomum encontrar ali escarradeiras, usadas no espaço público e privado para evitar cusparadas possivelmente infectadas pelo Bacilo de Koch no chão (vetor da tuberculose).

Je est un autre O problema de Campos começa quando o “eu” quer se tornar um “outro” que nunca será. Nos anos 1950, já com o advento do antibiótico para cura da doença, o apelo turístico tomou conta da narrativa. Um de seus artífices foi Plínio Campelo, que cunhava slogans com o intuito de trazer mais visitantes à cidade por uma estrada sinuosa que hoje chamamos “Estrada Velha”. Entre suas campanhas estava a “Campos do Jordão, 1700 metros acima das preocupações”. Mas foi só em 1978, com a SP-123, que o acesso à cidade de um contingente cada vez maior de pessoas começava a se tornar realidade. Os anos 80 consolidaram o apetite pelo branding deturpado, que sugeriu uma Suíça aos incautos visitantes. Mas como uma cidade favelizada em mais de 50% de seu solo urbano pode simular um país de altíssimo Índice de Desenvolvimento Humano? Sim, já em 1988, 56% dos jordanenses moravam apinhados em encostas, realidade escancarada em 2000 com os deslizamentos de terra mortais durante as fortes chuvas. O que se viu foi uma cidade sem nenhuma preocupação


ambiental ou urbanística; sem qualquer planejamento ou amor pela população. Assim como outras cidades do sul e sudeste, Campos tem características legadas por pioneiros estrangeiros, que respingam aqui e acolá na arquitetura, na gastronomia e em alguns sobrenomes. Mas esqueçam a Europa, um continente forjado, sobretudo, por milênios de guerras e reconstruções.

embora tenha dado a vida pelo País. Foi aquinhoado, ou melhor, sua família recebeu 3 medalhas, as de Campanha, Sangue do Brasil e Cruz de Combate”.

Quem diria que esse “eu” tão maltratado pela especulação imobiliária e a ganância cega teria sido, com apenas 20.000 habitantes à época, uma terra de heróis? Quantas vidas o país Suíça deu para resgatar a Europa do inferno? Não se trata O máximo a que chegamos da belicosidade de aborrecer os comedores de raclete do Além Mar foi o envio de nossos originais, mas de cutucar o orgulho do conterrâneos “pracinhas” à Itália pela jordanense. Passou da hora de mudar Força Expedicionária Brasileira (FEB). e enfrentar nossa realidade de frente. Missão: somar esforços para liberar a Somos o “rincão Paulista” e o “orgulho do Europa do jugo nazifascista. Como nos Brasil”, nos versos de João de Sá, porque conta Pedro Paulo Filho em sua crônica: criamos ao longo de 146 anos nossa “Participaram do campo de operações de própria história, com dor e beleza. guerra na Itália 3 jordanenses: Antonio E precisamos lidar com ela superando de Bento de Abreu, morto em Montese, na vez a Suíça Brasileira, já que ela oculta Itália, pela artilharia alemã, José Garcia nossa identidade como as garras das de Mello e Vicente Francisco de Paula que araucárias encobrem a grama depois da retornaram vivos a Campos do Jordão. O forte ventania. expedicionário Antônio Bento de Abreu, jordanense da Água Santa, é um herói jordanense, esquecido e pouco evocado,

Isadora Calil É jornalista e escritora. Expatriada da Suíça Brasileira na Vila Mariana, conhece bem as tramas intrincadas.Tem um conto publicado pela revista sul africana Itch. @isaaacalil Rebeca Catarina É ilustradora e integrante do duo Rart Rixers. Seus trabalhos de publicação independente percorrem diferentes técnicas de impressão com ênfase em serigrafia e carimbos artesanais. @rebeca_catarina #001 . OUTUBRO 2020

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Qual a matéria prima do Brasil? O país visto por uma italiana multicultural

por Viviana Venneri

Meu encontro com a cultura brasileira aconteceu na rua. Morei sete anos em São Paulo, anos de muitas andanças, de sapatos furados, milhões de fotografias, chuva, suor e dor nas pernas. Sou italiana, nascida em Milão, mas tive a sorte de ser cidadã de vários países do mundo. Itália, Inglaterra, França, Espanha, Brasil e Estados Unidos. Ao começar uma viagem, um dos meus rituais favoritos sempre foi coletar informações sobre novos lugares em livros, blogs, filmes, documentários e conversas. Mas quando cheguei em São Paulo, quis fazer diferente. Quis deixar com a cidade a possibilidade dela se apresentar sozinha aos meus olhos

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através dos elementos que a constituem: os prédios, as pessoas, os graffitis e a pixação; a força da natureza e a sua história mais recente. Decidi ir pra rua e me colocar como observadora, porque sair na rua, para mim, significa deixar do lado todo tipo de preconceito. E, no Brasil, a impressão que eu tive, é que quando você está preparado para trocar experiências, essa troca dificilmente vai decepcionar. Principalmente a troca humana, entre pessoas, que é imensa em comparação com vários lugares que eu já visitei. E lá estava eu, nos meus primeiros dias paulistanos. Olhos para cima, iPhone pra capturar o momento. Quando


um amigo, um arquiteto alemão mais gringo que eu, me deu uma dica que, no tempo, se revelou ser a mais preciosa para começar a minha nova aventura. Viviana, não procure a beleza do mesmo jeito que você a procurava na Europa. Aqui os códigos são diferentes, porque as culturas são diferentes e não pretendem ser parecidas. Se você entender isso não vai ter erro. Vai apreciar - e não desprezar - o que você encontrará. E eu agradeço ainda hoje o Sebastian por ter me colocado na perspectiva certa para flanar. A segunda pessoa que me ajudou a entender a cidade foi um nordestino. Quando estou longe da minha terra, e tenho saudade da minha família, a música é o meu remédio. E que sorte poder falar português e entender as letras de Sampa do Caetano Veloso. Assim, desde meu primeiro dia no Brasil, eu tentei não ser Narcisa nos meus julgamentos e nas minhas explorações. Bem pelo contrário, acho que foram a distância e a diferença com meu país de origem a me aproximar ao Brasil e à São Paulo. Sair de casa para ir num lugar muito parecido com o que eu já conhecia e que estava acostumada nunca foi uma fonte de inspiração para mim. Ao mesmo tempo, alguns elementos me levavam curiosamente à minha infância sem que eu estivesse a procura deles: os casarões e as casas mais antigas, as suas fachadas, os pisos de pastilhas, a tranquilidade aparente dos pequenos jardins atrás das grades, pareciam pertencer às paisagens do interior da

Itália, um universo em total contraste com os prédios mais modernos ao lado. Outra coisa que me fazia voltar para o passado foram os meus primeiros passeios pela Avenida Paulista. Quando fui visitar o Conjunto Nacional, ao subir alguns andares para admirar o prédio em todo seu tamanho, comecei a pensar na minha avó. Porque quando eu tinha uns doze anos, na volta da escola, eu costumava sentar no sofá com ela para assistir um pedacinho da novela, obviamente sul-americana. O prédio do Conjunto, com as suas janelas escuras,e seu tamanho imponente percebido por uma italiana, era igualzinho ao prédio que aparecia na abertura da novela. Estes pequenos detalhes e algumas atmosferas da cidade foram suficientes à esquentar meu coração e me ajudaram a me sentir em casa, mesmo longe de casa. Percebi que muitos italianos, e muita italianidade, tinham passado por aquelas ruas. Uma italiana sobre todas foi fonte de inspiração para mim, a Lina Bo Bardi, e não somente pelas suas obras lindas e visionárias. Quando fui visitar A Casa de Vidro, no Morumbi, uma das guias me mostrou os detalhes de algumas cadeiras desenhadas pela arquiteta, que as construiu só depois de ter entrado em contato com as populações indígenas do Brasil e ter estudados os materiais que elas utilizavam. A Lina não chegou no Brasil com a presunção de ensinar sem ouvir, mas acolheu a cultura do lugar,

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que fortaleceu o seu conhecimento. O que me fez admirar profundamente a sua sensibilidade. O Brasil entrou no coração da Lina, tanto que ela morou a vida inteira em São Paulo, sempre falando português com um super sotaque de Roma. Eu dou risada, mas meu sotaque também vai ficar comigo pra sempre. Foi a Lina, mas foi também outra mulher que me fez perceber quanto o amor pela cultura brasileira pode ser forte e quanto pode fazer falta na hora de sair das fronteiras do país. Já pensou que a palavra saudade não pode ser traduzida em nenhuma outra língua fora do português? Esta mulher foi a Tarsila. Na exposição dela no Masp, em 2019, eu fui atraída pelos quadros da artista que representavam São Paulo e o Brasil e que ela realizou de Paris, sob a influência das escolas de pintura estrangeiras, mas onde ela colocou todas as cores e toda a força da sua brasilidade. Naqueles dias, eu, que já tinha minha mala pronta e minha viagem marcada para Nova Iorque, comecei a pensar: será que lá da minha nova casa no hemisfério norte eu vou sentir uma saudade eterna da minha casa no hemisfério sul? E foi de novo o Caetano que me socorreu: “vão passando os anos e eu não te perdi, meu trabalho é te traduzir”. E se ele escreveu Trilhos Urbanos para retratar a sua terra natal, na hora de me despedir de São Paulo entendi que ela foi a minha Santo Amaro. E hoje, que já passou um ano depois da minha mudança,

posso dizer que traduzir todos os meus aprendizados brasileiros está fazendo muito sentido nas minhas explorações da cidade onde estou morando agora e tenho certeza que irá fazer sentido em todas as cidades onde morarei no futuro. Quais são estes aprendizados?

Criatividade e arte urbana Um universo que eu descobri em São Paulo foi a arte de rua. A cidade é um museu a céu aberto e não adianta querer ela cinza. Os graffitis, cada um diferente do outro, em São Paulo, não tem concorrência no mundo. A minha artista favorita é a Mag. Adoro as mulheres que ela retrata e o sentimento de tristeza que transparece dos muros que ela pinta, que tanto se opõe aos ritmos e a alegria do brasileiro, mas que é necessário documentar, especialmente nesse momento histórico que estamos vivendo. O Paulo Ito, que já morou na Itália, é fã do Francesco Guccini (um cantor e poeta italiano que eu também adoro) e que só por isso deveria ganhar cidadania italiana honorária. O preto e o branco do Alex Senna, falam uma linguagem de integração, isolamento e obstáculos da vida urbana, enquanto as cores dos Gêmeos (que espero encontrar um dia aqui em NYC) levam para uma dimensão mais onírica. Os índios azuis do Crânio que parecem pequenas alienígenas, na verdade

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falam para os brasileiros de onde eles vêm e para onde eles estão indo. E por último, a assinatura do Rever a Cidade, que é um pouco meu mantra, porque nos lembra que está tudo (e estão todos) na nossa frente. Só precisamos enxergar. Aqui também é o momento de agradecer outro amigo, desta vez um artista super paulistano e corinthiano, que me ensinou, num tour que fizemos pelo túnel da Noite Ilustrada, a procurar as mensagens na arte urbana. Obrigada Pedro.

Mergulhar para procurar o que faz sentido Aprendi em São Paulo que esta cidade não é pra todos. Não é uma Londres, Paris, Roma. Tem algo parecido de repente com Milão. A descoberta aqui dá mais trabalho, mas geralmente recompensa. Ter andado alguns quilômetros a mais sempre valeu a pena para mim. Ter aberto uma porta também, ou aceito um convite. Tem muitos lugares, fora do Beco do Batman, que geralmente estrangeiro não encontra. O Centro Cultural São Paulo, por exemplo, por não estar exatamente na Paulista, está um pouco fora da rota turística. Mas dos banquinhos da sua cobertura o retrato da cidade é único e não dá para acreditar que lá de baixo passa uma das avenidas mais congestionadas da cidade. Para visitar a casa do Lasar Segall, a casa Modernista e a casa do Vilanova Artigas

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precisamos ir até a Vila Mariana e, todas as vezes que eu fui, nunca encontrei outros turistas. Mas os espaços verdes destes lugares fazem o tempo parar, de tão autênticos que eles são. O bar do Mirante está escondido atrás do MASP e restaurantes, como a Baianeira, se encontram aos pés do Minhocão. E sempre para falar de coisas meio escondidas, ou pouco comunicadas, no Minhocão a mágica do teatro pela janela do grupo Esparrama, não tem igual. Mas se você não ficar de olho você perde. Então São Paulo me ensinou a prestar atenção nos sinais para aprender a procurar o que faz sentido para mim e a começar meu mergulho sem fim. Minha lista de lugares que pretendo explorar em São Paulo, depois de sete anos, está ainda super comprida.

Matéria prima Por último, a aprendizagem que conecta todos os outros pontos, fala do meu encontro com a matéria prima. O Brasil tem uma matéria prima invejável: que seja o pau ferro, que deixa sem fôlego na sua beleza (lembro de quando entrei na galeria Etel e fiquei de boca aberta quando vi uma árvore de pau ferro gigante que dominava aquele lugar); a potência das cores e da criatividade que nem todo mundo fora do Brasil tem tanta coragem em ousar usar; a notas das musica e seu ritmo contagioso; a natureza, as folhas gigantes, o verde dos jardins, as raízes que quebram o asfalto e que às vezes são tão grandes que podem até ser decoradas e virar obras


de arte, como as da Sonia Gomes; o sabor dos ingredientes de uma cozinha única. Todo mundo sabe o que é massa e pizza, mas mandioca, quiabo, farofa, moqueca, casquinha de siri nem todo mundo conhece.

E sabem qual é a matéria prima brasileira que eu amo acima de todas? A energia contagiante do sorriso. A cultura brasileira é, para mim, unicidade dos elementos na sua potente simplicidade. Até mais, Brasil.

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Viviana Venneri Uma viajante urbana. Metrô, bicicleta, scooter ou um tênis All Star? Não importa qual o meio de transporte, o fato é que ela sempre se impressiona com as ruas caóticas de NYC, cidade onde vive atualmente. Ela ama observar as pessoas, tirar fotos de graffitis, ouvir de canto conversas alheias e descobrir novos lugares. Muito curiosa, ela sempre diz que não é necessário pegar um avião para viajar. Podem acompanhá-las nas suas explorações aqui: @vivivenneri | website www.vai-la.com #001 . OUTUBRO 2020

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A Linha do Tempo do Artesanato no Brasil por Nicole Tomazi

Acredito que a vida é um processo pedagógico intenso e forte e me encontro nas palavras de Paulo Freire no livro Medo e Ousadia: “...o ativista crítico, no ensino ou em qualquer outro lugar, examina até mesmo sua própria prática, não se aceitando como pronto e acabado, reinventando-se à medida que reinventa a sociedade." Há muito tenho refletido sobre a prática do designer junto à grupos de artesãos, o que me levou a um aprofundamento teórico que se refletiu em um mestrado. Busquei bases acadêmicas para entender minha própria inquietação que surgiu ao encontrar em meu trabalho de campo muitos resultados negativos

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manifestados pelos artesãos na forma de desânimo, descrença e depressão. Uma luz vermelha se acendeu e, mesmo continuando a atuar profissionalmente, buscava novos processos que pudessem fazer mais sentido. Antes de vivermos estes tempos, onde acontece o protagonismo mais que necessário dos artesãos brasileiros no contexto social, movimentos importantes aconteceram silenciosamente no Brasil. Embora saiba da não-linearidade do tempo, organizei uma linha que começa hoje e chega até o que considero o início da manufatura artesanal brasileira. Atualmente

estabeleceu-se

uma


linguagem, um jeito romântico de mostrar "o caminho para a salvação do artesanato”, que está cada vez mais atual, principalmente pela velocidade da informação que nos circunda. Não temos mais tempo para checar fontes, ainda mais quando encontramos notícias com as quais pagamos nossos pecados por tabela. Quando o assunto é artesanato, é exatamente isso que acontece. Não se engane, eu faço parte grupo e justamente por isso tenho refletido muito sobre esse lugar de salvador da pátria que o designer ocupa, lugar esse que, em uma sociedade de raiz colonial escravagista, sempre existiu. Muitas vezes os projetos que unem design e artesanato são ações pontuais que geram expectativas não atendidas, produzindo baixa autoestima e dependência, porém são mostrados no estilo campanha eleitoral, arrancando lágrimas dos espectadores. Acredito que tenha chegado a hora de pensarmos em formas mais contemporâneas que prezem pela liberdade, a autonomia e a horizontalidade. Como designers, temos a responsabilidade de pensar em projetos e metodologias que perpassem a inclusão e gerem pertencimento. Como consumidores temos de ser vigilantes e altivos, buscando cada vez mais entender o que é verídico e o que é oportunismo. O (re)descobrimento do Brasil sob o viés do artesanato é legítimo, porém, se

perdemos o senso crítico e a investigação, todos perdem. Esta discussão é extremamente válida e necessária e só é possível trazê-la porque antes de mim tantos trabalharam com dedicação e responsabilidade. No decorrer do tempo, muitas vezes aconteceram movimentos e mudanças de rotas que ajeitaram o que estava ruim e melhoraram o que estava bom. Consultoras, instrutoras, capacitadores, apoiadores, em equipes multidisciplinares, transformaram o cenário do país atuando de maneira anônima em tempos onde o design estava de costas para o artesanato. A criação do Programa de Artesanato do SEBRAE em 2004, apresentou a potência do fazer artesanal aplicando uma nova visão sobre matérias primas, modos de produzir, jeitos de apresentar e vender os produtos. Designers previamente capacitados atuaram em praticamente todo o território brasileiro mapeando e desenvolvendo processos de valorização do nosso fazer manual. Um trabalho exaustivo e muito simbólico, onde o artesão tinha o suporte para, inclusive, avaliar o trabalho do designer. Anterior ao SEBRAE, a criação do PAB Programa do Artesanato Brasileiro, em 1991, foi o primeiro movimento efetivo que visava a melhoria da condição de vida do artesão, com a possibilidade de aumento de renda, visibilidade e autonomia.

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©Nicole Tom

O PAB nasce em uma época a qual, para a sociedade, a manualidade representava algo muito pejorativo, aqueles que trabalhavam com as mãos eram considerados inferiores, incapazes, vistos como “os que não deram certo". Essa é uma das nossas heranças coloniais escravocratas, quem trabalhava com as mãos e tinha calos nos dedos era o 50

escravizado. O mesmo se enfatizou na época industrial, com aqueles que não se adequavam aos processos fabris de trabalho. Uma boa parte do movimento de recuperação de autoestima que fazemos hoje é justamente por isso, o artesão não se vê parte do tecido social no sentido


mazi - Artesã Stephanie, durante oficina de bordado no Vale do Jequitinhonha-MG, 2016.

de produção de cultura e identidade. Muitos transferem para o designer a responsabilidade de seu sucesso, quando na verdade o designer - deveria ser - apenas uma ferramenta utilizada pelo artesão para mudar sua realidade de vida, assim como qualquer outro profissional habilitado.

O Brasil é um país que absorveu uma cultura externa, suplantando suas origens. Antes dos colonizadores, os povos originários se relacionavam com o território através da produção artesanal. Os povos indígenas descobriam, ocupavam e viviam produzindo seus

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artefatos para uso pessoal. A legítima produção identitária brasileira foi usurpada, dominada e mutilada. Foi e é, não sejamos românticos ao acreditar que hoje isso deixou de existir. A bandeira indígena é usada por muitos “benfeitores" e assistimos sem questionar, afinal, alguém está teoricamente pagando nossos pecados. A produção manual era livre a pura tradução da soma de necessidade, expressão e identidade. Mas e se voltarmos um pouco mais no tempo? Homens e mulheres habitam o território brasileiro há mais de 50 mil anos. No que hoje é o Parque Nacional da Serra da Capivara no Piauí, Patrimônio Cultural da Humanidade pela UNESCO, já se

produzia artefatos. Produzir coisas é inerente ao ser humano. Embora já tenhamos perdido muito pelo caminho, ainda é a maneira como nos relacionamos com o território, hoje e sempre. Não sejamos tolos de nos acharmos importantes sendo pontos minúsculos nesta linha. O humano produz para descobrir, se proteger, viver.

ocupar,

Até o fim dos tempos faremos como no início: produziremos com as mãos. É algo muito mais forte e importante do que a minha e a sua próxima coleção. E justamente por isso, sobreviverá.

Nicole Tomazi Trabalho com artesanato desde que nasci, muito antes de ser arquiteta e designer, fui artesã. As mulheres por parte de mãe trabalhavam os fios, os homens por parte de pai, a madeira. Dessa mistura nasci com a habilidade de trabalhar as matérias-primas com as mãos. Já formada em arquitetura, me vi tomada por um impulso de voltar para minhas origens e resgatei a ancestralidade que faz parte de mim. Comecei em 2007, quando o cenário do Design estava completamente voltado à indústria e movimentos na direção da produção artesanal eram desconsiderados pela maioria dos profissionais da área. Hoje sou Mestre em Design com ênfase em Artesanato, Patrimônio e Território e vivo constantemente a inquietude de quem quer fazer sempre o melhor possível. @nicoletomazi 52


Ilustração à Brasileira

perfil de Vanessa Prezoto

Convidamos a ilustradora Vanessa Prezoto (@vanessaprezoto) a compartilhar um pouco de sua trajetória e, principalmente, seu belíssimo trabalho conosco. As próximas páginas representam uma seleção de sua obra, inclusive com trabalhos que ainda serão publicados.

@ Vanessa Prezoto - estudo pessoal #001 . OUTUBRO 2020

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Nasci e cresci no interior de São Paulo e hoje vivo na capital paulista. Estudei design gráfico e, em paralelo aos caminhos por agências de publicidade e estúdios de comunicação, fui me embrenhando no universo de ilustração de livros para crianças. Hoje me dedico quase que integralmente aos projetos editoriais, mas também ilustro outras coisas que surjam e com as quais possa vir a me identificar. Nos livros, o que me dá alegria é a produção quase que totalmente artesanal na maioria deles. Os recursos digitais estão ao meu alcance e os utilizo pensando a tecnologia

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como só mais uma ferramenta. Mas o desenhar direto no papel, fazer colagens e misturar as tintas, me trazem essa vivência da materialidade que sinto ser muito preciosa, inclusive para chegar às crianças um acabamento onde elas possam identificar os materiais, como lápis ou giz. Assim também trago a produção da ilustração e do desenho para um lugar mais próximo delas, de absorver os ditos “erros” da criação de uma pintura tradicional, que agregam informações novas e marcas únicas e não perfeitas dos movimentos das mãos de quem o faz.


@ Vanessa Prezoto - Jaguatirica: Cada um na sua toca, Krauss Editora, texto Walter Sagardoy (previsto para 2020)

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@ Vanessa Prezoto - Jaguatirica: Cada um na sua toca, Krauss Editora, texto Walter Sagardoy (previsto para 2020)

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@ Vanessa Prezoto - Meu amigo invisĂ­vel, Editora BambolĂŞ, texto Ana Cristina Melo (previsto para 2020)

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Um Brasil, infinitas interpretações. Convidamos os arquitetos Gabriel Fernandes e Helena Camargo para compartilharem conosco detalhes sobre seus projetos em que, cada um à sua maneira, se propõem à mergulhar no Brasil profundo em busca de inspirações, de histórias e aprendizados.

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© F o t o g r a f i a d e M a r c e l o O s é a s p a r a o p r o j e t o d e G a b r i e l F e r n a n d e s - B r a s i s Q u e Vi

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© G a b r i e l F e r n a n d e s - Ab r a n g ê n c i a d o p r o j e t o B r a s i s Q u e Vi

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A busca pela arquitetura brasileira por Gabriel Fernandes

Que o Brasil é rico em cultura e miscigenação, isso todos nós já sabemos. Um país multicultural formado por uma mistura muito grande de povos, histórias e saberes. Desde que eu comecei minha trajetória na arquitetura, entendia que meu trabalho tinha uma ligação com assuntos relacionados à técnicas manuais, os materiais naturais sempre me chamaram muita atenção e tudo o que acontecia à minha volta era motivo de inspiração ou partido para algo novo. Com essas vivências cada vez mais afloradas, minha busca foi ficando maior; até que, em uma conversa bem informal, surge o ‘insight’ de querer conhecer mais, ir direto na fonte da coisa. Eu, que já trabalhava com casas brasileiras, queria saber mais sobre o assunto, queria vivenciar de fato como

era, como seria, como será, a verdadeira casa brasileira. Assim surge o “Brasis Que Vi”. Brasis Que Vi é um trabalho de pesquisa e busca por conteúdos relacionados às diferentes formas de se morar no país, é o nosso encontro íntimo com a própria história. É também o caminho percorrido nos diferentes estados de nossa rica mistura, até chegar em quem somos hoje e na maneira como vivemos. A proposta do projeto é acessar os destinos mapeados e, dentro deles, descobrir tudo o que acontece, passando sempre por capitais e chegando em povoados ou cidades que sugerem um roteiro misturando diferentes tipos de casas e histórias. Queremos ter uma ideia real de como é morar por ali, como

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© F o t o g r a f i a d e M a r c e l o O s é a s p a r a o p r o j e t o d e G a b r i e l F e r n a n d e s - B r a s i s Q u e Vi

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funciona o estilo de vida das pessoas e qual o tipo de relação elas têm com as suas casas, entendendo desde como ela foi construída, chegando no detalhe da decoração para que possamos ter uma visão geral do que é de fato aquela determinada regionalização. Depois que a ideia geral havia sido concebida, nós queríamos que tudo isso fosse retratado de uma maneira muito artística, quando escolhemos o Marcelo Oséas para ser esse olhar que mostraria para o mundo o quão rico é tudo aquilo que vivenciaríamos. A proposta era transformar tudo isso em um grande painel de inspirações, marcado pelas lindas vidas que abririam suas portas, de uma maneira tão singular para nós e que pudesse estar em outras mãos também, todos esse saberes através das páginas ilustradas que irão compor o livro do projeto ao final de todas as viagens imersivas. O projeto concebido para durar os doze meses de 2020 iniciou-se em janeiro passando pela recepção generosa estado de Minas Gerais e seus mineiros que estavam sempre de portas abertas para

nos receber, com seu café e o pão de queijo na mesa; teve o seu segundo destino concluído também pelo caloroso povo carioca, no Rio de Janeiro. Em março aconteceu a suspensão como resultado de toda essa grande transformação pela qual passamos, sendo programado o seu retorno em janeiro de 2021. Por aqui já estamos ansiosos pelo retorno, e por enquanto vivendo as memórias afetivas que tivemos por onde passamos, pensando em novos projetos e em como explorar todo esse universo tão rico que temos e que é genuíno demais. Poderíamos continuar conversando sobre esse assunto e, quem sabe, até detalhar um pouco mais de como foram esses primeiros destinos que lhes deixo em algumas imagens para ilustrar essas deliciosas lembranças. Quem sabe na próxima edição? Enquanto isso, para conhecer mais sobre o projeto, basta pesquisar pela #brasisquevi nas redes sociais ou no meu perfil do Instagram.

Gabriel Fernandes Arquiteto e urbanista, Gabriel Fernandes construiu e consolidou conceitos sobre sua maneira única de ver a arquitetura e o design em um DNA totalmente brasileiro mas com um olhar no mundo. @gabrielfernandesarch

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Território feito à mão por Helena Camargo

O design autoral brasileiro contemporâneo vive um momento de reencontro com a valorização dos saberes passados de geração em geração e o resgate de técnicas quase extintas. Ao unir a sabedoria das artesãs e o olhar do designer, nasce uma identidade singular, é sobre isso que falarei. Esse movimento do designer se tornou uma pesquisa e a vontade de documentálo virou a série audiovisual "Território feito à mão". O primeiro episódio da série foi gravado no Pará, mais precisamente na comunidade de Urucureá, à convite da Maria Fernanda Paes de Barros fundadora da Yankatu.

Ao navegar pelas águas do rio Arapiuns por cerca de 3 horas, vindos da cidade de Alter do Chão, avistamos cerca de 10 artesãs em nossa chegada. As mulheres de Urucureá se reúnem em uma espécie de Maloca, construção feita com estrutura de madeira e telhado de palha, não possui paredes. Diariamente elas se reúnem em roda, sentadas no chão, conversam e sem olhar para as mãos traçam com velocidade inacreditável um tecido feito à partir das folhas secas das palmeiras nativas, a palha do Tucumã. As cores aplicadas à palha foram obtidas por meio de pigmentos naturais do maceração do jenipapo, do crajirú e da mangarataia. O processo se

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© M a r c e l o O s é a s - I n t e r a ç ã o d e H e l e n a C a m a r g o e m Ur u c u r e á

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inicia com uma fogueira e um caldeirão onde as sementes são fervidas e nesse líquido pigmentado é embebida a palha cru, antes do cesto ser trançado. A palha colorida é lavada na beira do rio para depois ficar exposta ao sol e secar. É uma cena bonita e natural, todos os insumos foram plantados e colhidos ali, ao lado de suas casas. O manejo dessa comunidade é todo sustentável isso se deve ao apoio de instituições como o SEBRAE e à ONG Artesol, ao mapeálas e compartilharem ensinamentos, acompanham as artesãs com o intuito de não deixar essa história morrer. Nessa convivência com a Maria Fernanda e as artesãs, observei quão profícua é a troca dos saberes ancestrais com o design contemporâneo. De um lado mora a nossa raiz indígena em

perfeita harmonia com a natureza e a sua habilidade manual e sensibilidade, do outro, o design e as técnicas avançadas de acabamento. Juntas são a expressão da beleza e da alma brasileira. A vontade agora é percorrer o Brasil e documentar 8 designers em sua atuação com artesãos e artesãs na produção de peças únicas. Ao mergulhar na cultura brasileira amplio as minhas percepções como arquiteta. Para além do objeto do Design, visitar as comunidades, conhecer as suas casas e a sua arquitetura, os seus costumes é uma experiência visceral. Para acessar o teaser do primeiro episódio, basta seguir para o link: https://bit.ly/34f8lH5

Helena Camargo Arquiteta e urbanista, sócia da H2C Arquitetura busca contribuir com um olhar humano e sustentável em seus projetos. Admiradora da cultura brasileira, atraída por materiais ecológicos e reutilizáveis, a pesquisa de novas técnicas e materialidades é presente no seu processo criativo. @h2carquitetura #001 . OUTUBRO 2020

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Mensageiros de cultura: objetos que contam histórias por Camila Fantini

Como boa adepta da psicanálise, acredito que toda produção feita por um indivíduo revela muito sobre seu autor; e talvez a arte e o artesanato estejam entre as mais belas formas de representação. O artesanato é especialmente encantador. Além dessa dimensão individual, carrega também uma importante dimensão cultural e nos conta não apenas daquele sujeito, mas também de seu entorno, seu território, cotidiano e sonhos. Em se tratando de nossa cultura brasileira, esse processo de resgate torna-se ainda mais necessário, já que nossa história é marcada por uma ruptura com o conhecimento ancestral presente nos bens materiais desde o

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encontro entre portugueses e indígenas. Conforme nos lembra a pesquisadora Adélia Borges, essa herança valiosa foi totalmente depreciada e o fazer manual de raízes genuinamente brasileiras foi historicamente visto como algo inferior e subdesenvolvido. Neste momento, o artesanato nos convida a resgatar nossa história para podermos reescrevê-la. Enxergá-lo como simples mercadoria é injusto e empobrecedor. É negar que o maior valor está justamente em seu universo subjetivo. Foi isso que motivou o surgimento do Imaterial. Um projeto que busca fortalecer a cadeia do artesanato através do resgate dessa identidade, da descoberta de novos


artesãos e da comercialização dessas peças. Nesse país, onde boa parte da riqueza passa longe das contas do PIB, isso precisa ser valorizado. Trabalhar com comércio justo foi uma premissa de existência e nosso maior sonho não é ter nisso um diferencial, mas que se torne prática comum a qualquer negócio. Numa sociedade em que as atividades comerciais refletem o distanciamento entre as pessoas, nossa proposta é fazer o inverso: gerar conexão e encontros. Descobrir e revelar os afetos presentes em uma peça, despertar para a alma do outro. São tantas as histórias, e ainda que muitas sejam de dor e dificuldades, tentamos sempre dar mais espaço às conquistas e sonhos, sem negar a realidade que se impõe. Não podemos deixar de contar aqui uma delas, entre tantas que tocam cotidianamente e enchem de orgulho. Luiz Mauro dos Santos é artesão de Campo Grande (MS), conhecemos seu trabalho numa feira de artesanato através de outra pessoa. O banquinho de madeira em forma de tatu nos chamou a atenção de imediato, mesmo escondido entre tantas coisas. O bichinho parecia ter vida e nos emocionou com sua graça. Perguntamos de quem eram as mãos que criaram essa peça encantadora. Logo soubemos que o artesão nunca aparecia, evitava se expor por conta de um distúrbio na fala, uma forte gagueira. Depois de alguns meses conseguirmos seu contato, graças a ajuda de Katienka Klein do Programa de Artesanato

da Casa de Cultura do MS. E fomos enxergando sua obra de outra forma. Luiz nasceu e cresceu em Campo Grande, passou a infância em chácara. Começou a trabalhar na roça aos 7 anos, mexendo na terra, fazendo pequenos reparos e construindo cercas – de onde vem, muito provavelmente, sua habilidade com a madeira. Aos 19 anos foi para a cidade, trabalhou em restaurante por 20 anos, e, após sucessivos episódios de discriminação devido à sua gagueira, decide trabalhar sozinho, de volta à natureza. E é exatamente no território da escassez que a arte resgata a pulsão de vida. Luiz Mauro decide experimentar um dom inexplorado e começa a retratar na madeira o que lembrava a melhor época de sua vida no sítio: casinhas, bichos da região pantaneira, moinhos, tratores. Todos feitos com perfeição e riqueza de detalhes.

Mas... e o tatu? Mesmo sendo comum na região, algo nos instigava. Seus banquinhos tinham vida, havia ali um carinho especial. Recentemente nos conta uma história. Na chácara onde vivia, sua mãe gostava de cuidar de todos os animais que frequentavam o quintal da família: araras, macacos, tucanos... mas o tatu era seu bicho de estimação, “como se fosse da família”. Luiz não gosta de onça e nem de sucuri, “animais falsos, se você não presta atenção ele te pega”. Mas pra ele o tatu é diferente: “Quando vê uma pessoa, ele corre de medo, não tem defesa”, explicando sua afeição #001 . OUTUBRO 2020

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pelo bicho, que prefere ficar longe das pessoas. Ao recriar as boas lembranças, ele materializa suas principais relações de afeto e suas próprias identificações. Precisamos reaprender a enxergar esses objetos enquanto mensageiros de nossa cultura, de histórias de vida. Nosso desafio é descolonizar o pensamento

acerca do artesanato, refletir todos os dias sobre nosso papel e responsabilidade. Para finalizar trazemos as belas palavras do próprio Luiz Mauro: “O artesanato pra mim é tudo, quando eu trabalho no artesanato eu tô vivendo”.

Camila Gomes Fundadora do Imaterial e apaixonada pelo artesanato brasileiro (ainda mais ainda pelas histórias por trás de cada peça). @imaterial_artesanatobrasileiro 70


#CulturaBrasileiraRevista #001 . OUTUBRO 2020

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