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É do interior da terra que eles tiram o sustento da família. Espalhados por municípios potiguares ricos em minérios, os garimpeiros compõem uma categoria que se acostumou, ao longo do tempo, com uma rotina que consegue unir trabalho árduo, cansaço, desvalorização e risco de morte constante. Dados da Cooperativa dos Mineradores Potiguares (UNIMINA) revelam que mais de 10 mil pessoas atuam hoje na garimpagem de minérios em solo potiguar. A maioria deles (mais de 90%) na clandestinidade. Acompanhado do repórter-fotográfico Fred Veras e do motorista Francisco das Chagas, o repórter Esdras Marchezan percorreu cidades do Seridó potiguar a procura das histórias desses "homens-tatus" que escavam a terra em busca de uma vida melhor. No percurso da equipe de reportagem, a constatação de que pouca coisa mudou nas condições de trabalho dos garimpeiros, assim como na qualidade de vida de suas famílias. Uma categoria que tem sido deixada à margem e distante dos grandes lucros produzidos pela exploração mineral no Rio Grande do Norte.

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TERRA RICA, POVO POBRE Mais de 10 mil garimpeiros exploram riquezas minerais em cidades do interior potiguar, enfrentando a falta de condições de trabalho, concorrência desleal de atravessadores e a morte embaixo da terra

Eles passam dos 10 mil em todo o Rio Grande do Norte. Peça importante na engrenagem que movimenta o setor mineral do Estado, com a exploração de minérios como mica, tantalita, manganês, feldspato, granito, caulim e calcário, os garimpeiros são seres que herdaram da terra a resistência que surge diante da seca e da desertificação que mina a produtividade do solo. Espalhados por dezenas de municípios potiguares, principalmente na região do Seridó, esses homens preservam uma profissão que possui hoje, um das condições mais subumanas de trabalho. Nem mesmo a criação de um estatuto, pelo Governo Federal, em junho deste ano, conseguiu garantir, efetivamente, direitos e qualidade de vida para a categoria. Mais de 90% dos garimpeiros são clandestinos, informais, sem carteira assinada no Ministério do Trabalho, afirma a Cooperativa dos Mineradores Potiguares (UNIMINA). Em média recebem pouco mais do salário mínimo/mês (R$ 465,00) das empresas que beneficiam os minérios, explorados por eles numa terra onde a riqueza do subsolo contrasta com a pobreza dos que vivem sobre ela. "As empresas beneficiadoras continuam pagando um preço baixo pelo trabalho, sem falar na questão trabalhista, que elas não assumem. Sem ter outro trabalho pra fazer, os garimpeiros terminam reféns da situação, se submetendo aos baixos preços e à informalidade", declara o presidente da Unimina, Raimundo Bezerra de Magalhães, conhecido como "Machado". No município de Equador, longe 269 quilômetros da capital potiguar, Natal, persiste uma das situações mais crí-

ticas quando o assunto é a falta de condições de trabalho, risco de morte e baixos salários no garimpo. Encravado numa das regiões mais desertificadas do país, o município tem na exploração do caulim material utilizado na fabricação de papel, cerâmica, tinta, plástico e borracha - sua principal fonte de renda e ocupação de trabalho. Em épocas de "bonança" para as empresas beneficiadoras do produto, mais de 1,2 mil garimpeiros se espalham pelas minas escavando a terra a procura do produto. Hoje esse número não passa dos 300, garante Clemente Al-

Sem ter outro trabalho pra fazer, os garimpeiros terminam reféns da situação, se submetendo aos baixos preços e à informalidade’ RAIMUNDO BEZERRA DE MAGALHÃES, "MACHADO", presidente da Unimina

ves de Sousa, presidente do Sindicato dos Garimpeiros de Equador. "As empresas que compram o caulim dos garimpeiros receberam incentivos fiscais do Governo do Estado e passaram a usar máquinas na

10 mil 90% garimpeiros atuam hoje no Rio Grande do Norte

deles, no mínimo, trabalham de forma clandestina, sem carteira assinada

Garimpeiros trabalham sem equipamentos em mina de feldspato, em Jardim de Piranhas

escavação das minas, usando agora menos garimpeiros no trabalho. Isso deixou muita gente desempregada e muitos foram embora para outras cidades", afirma Clemente. A aridez do solo impossibilita o desenvolvimento da agricultura em Equador, tornando o garimpo alternativa única de trabalho. Fora isso, apenas o Bolsa Família, do Governo Federal, injeta dinheiro dentro da casa das famílias pobres da cidade. Neste ano, R$ 409.988,00 já foram liberados pelo programa para 780 famílias atendidas na cidade. O secretário estadual de Desenvolvimento Econômico, Francisco Segundo de Paula, é otimista em afirmar que, diferente do que aconteceu até hoje, a situação dos garimpeiros do seridó potiguar está prestes a ser mudada. "No atual governo, recebemos a incumbência de dar uma atenção especial ao setor mineral, já que é uma parte importante para nossa economia. Uma das prioridades tem sido buscar novas formas de agregar valor ao produto explorado pelos pequenos e médios mineradores. Queremos organizar melhor os garimpeiros, em forma de cooperativas, para que eles tenham condições dignas de trabalho e lucros que lhe possibilitem uma qualidade de vida melhor", garante. Dados da Secretaria Estadual de Desenvolvimento Econômico (SEDEC) mostram que há, no momento, cerca de 707 áreas em prospecção no Rio Grande do Norte, para exploração de minerais. Um levantamento feito pela secretaria em 2005 apontou que em 2000 a exploração dos recursos minerais no Estado movimentou R$ 1,8 bilhão, atingindo 19,87% do Produto Interno Bruto (PIB) do Estado naquele ano.

R$ 1,8 bilhão foi o montante movimentado pelo setor mineral em 2000 no Rio Grande do Norte

Em algumas minas, máquinas ajudam a içar minérios explorados pelos garimpeiros


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TRABALHO NAS BANQUETAS

...E AO PÓ VOLTARAS

João Batista, “Tixa” morreu aos 29 anos, soterrado em mina de caulim, em Equador

Em Equador, cidade que fica na divisa entre o Rio Grande do Norte e a Paraíba, pelo menos 30 garimpeiros já morreram soterrados nos últimos dez anos e outros muitos ficaram feridos ou doentes em acidentes de trabalho. Problema é antigo, mas nenhuma mudança foi feita por parte dos órgãos que fiscalizam a situação dos trabalhadores nessa região

A terra que dá o caulim aos garimpeiros de Equador é a mesma que transforma mulheres em viúvas e crianças em órfãos. Quando a terra desaba e o homem morre, vão-se com ele sonhos e a esperança de uma vida melhor. E quando a esperança desaparece, viver fica mais difícil na sequidão e aridez desse pedaço do sertão nordestino. Os órgãos que atuam no acompanhamento do setor mineral do Estado não possuem estatísticas oficiais, mas o Sindicato dos Garimpeiros de Equador é firme em atestar que, nos últimos dez anos, pelo menos trinta trabalhadores morreram dentro das minas de caulim. Os que sobreviveram convivem com sequelas ou doenças adquiridas ao longo do tempo no trabalho pesado. Na cidade esquecida entre o Rio Grande do Norte e a Paraíba, as histórias de perdas no garimpo se cruzam nas esquinas. Irene, Deilma, Ana Lúcia, Luzia. Todas têm na morte um elo que as aproxima e sabem elas, desde muito tempo, que no garimpo, tão frágil como a terra que os maridos e filhos escavam é a linha que os separa da vida e da morte. Dona Irene ainda lembrava da brincadeira que o filho

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havia feito no domingo de São Pedro, quando uma pessoa a chamou apressada na porta para avisar: "A banqueta desabou em cima de Tixa". Foi o suficiente para ela entender que o filho havia partido. Seguindo a tendência natural dos homens que nascem em Equador, João Batista Pereira da Silva, o "Tixa", dedicou dez dos seus 29 anos ao trabalho no garimpo. A trajetória chegou ao fim na manhã de 29 de junho deste ano, quando parte da mina que ele explorava desabou. "Quando eu cuidei só vi gritando e mandando eu pular que a mina tava arriando. Ele tentou pular também, mas não conseguiu. A gente ainda pediu socorro, mas quando olhei ele já tava morto", disse Josenildo Braz Ferreira, 22. Ele e mais dois garimpeiros estavam juntos com Tixa, quando houve o acidente. Sem carteira assinada, como a maioria dos garimpeiros do Rio Grande do Norte atuam, Tixa não teve nem o que deixar de amparo financeiro para a viúva. A imagem do filho morto trouxe à lembrança de Dona Irene as palavras dele, ditas um dia antes do acidente, numa conversa descontraída com a mãe. Depois de construir uma

fogueira na frente de casa no dia de São João, Tixa esqueceu de fazer o mesmo no domingo de São Pedro e foi cobrado pela mãe. "No São João você fez a fogueira, e não quer fazer pra São Pedro? Olhe que ele não vai querer abrir a porta do céu quando você for embora", brincou dona Irene. "Se ele não abrir eu arrombo e entro", respondeu o filho com um sorriso. Sentada em um dos bancos da igreja onde o corpo do filho era velado, essas palavras e esse sorriso não lhe saíam da cabeça, assim como uma ponta de fé que lhe levava a crer que São Pedro não foi mesquinho e já esperava pelo filho dela quando ele chegou. Na casa de Ana Lúcia Francisca, 38, dor semelhante aconteceu há seis anos quando o marido, Josimar Cassiano, "Neguinho", com 42 anos, morreu soterrado enquanto explorava uma mina de caulim. O filho do casal, Jardel, na época com 14 anos, acompanhava o pai quando o acidente aconteceu. "Ele (Neguinho) mandou o filho sair de perto e pedir ajuda, mas disse que sabia que não iria escapar. Quando conseguiram chegar na mina ele já tava morto. Depois disso meu filho nunca mais voltou pras ban-

quetas", conta Ana Lúcia. Viúva e sem amparo financeiro deixado pelo marido, Ana depende do Bolsa-Família para sobreviver. É com a renda mensal de R$ 102,00 que ela e o filho arcam com as despesas de casa. "O ruim é que não tem outra coisa aqui pros homens trabalhar, aí termina todo mundo indo pro garimpo e correndo esse risco. E quando morre não fica nada pra família porque ninguém tem carteira assinada", desabafa a viúva. O presidente do Sindicato dos Garimpeiros de Equador, Clemente Alves de Sousa, afirma que a ausência de um vínculo empregatício entre os garimpeiros e as empresas que beneficiam o caulim tem sido um dos grandes problemas para os trabalhadores. "A pessoa morre, ou fica inválido durante o trabalho e não tem quem ampare", comenta. Mas ele ressalta que antes da formalização do trabalho no garimpo é preciso um acerto no preço pago pelas beneficiadoras ao trabalhador. "Com o preço que eles (empresas) pagam pelo caulim ao garimpeiro, se a gente assinar a carteira, o salário vai todo embora no imposto. Tem de ter um preço melhor, antes de tudo", frisa.

O trabalho no garimpo começa cedo. Logo às 5h, já se veem grupos de garimpeiros caminhando em direção às minas de caulim de Equador. Da cidade às minas, um percurso de quase quatro quilômetros. Nas banquetas nome dado ao local onde os trabalhadores exploram o caulim -, as equipes iniciam o trabalho pesado. Geralmente, cada equipe é formada por três homens. Dois deles descem por um buraco, com ajuda apenas de uma corda amarrada em um pedaço de madeira, que serve como assento, numa profundidade que às vezes chega a mais de 50 metros. "Se a corda torar (quebrar) não tem nada que apare; só o chão mesmo", conta Lourivaldo Francisco da Silva, 40 anos. Garimpeiro há 15, ele é taxativo ao afirmar: "Trabalho nisso porque não tem outra coisa para fazer aqui." Depois da descida, os garimpeiros passam a abrir túneis, com picaretas. Sem nenhuma sustentação o risco de desabamento é constante. Nas galerias abertas no fundo da terra, velas são o único instrumento de iluminação para o garimpeiro. Mas sua função vai mais além. "Quando a galeria tá muito longa e o oxigênio começa a acabar, a vela dá o sinal e fica apagando. Aí é hora de abrir um suspiro (buraco) para entrada de ar", conta Reginaldo Benedito dos Santos, 40 anos. O material explorado no interior das galerias é erguido em pequenos tambores, pela mesma corda que serve de apoio na descida do garimpeiro. Por dia cada equipe chega a "arrancar" 10 toneladas (uma carrada) de caulim, que são levadas por caminhões para as empresas de beneficiamento. Por carrada, as empresas costumam pagar entre R$ 80,00 e R$ 100,00. "Mas não dá para tirar uma carrada dessas todo dia não. Não tem quem aguente. Tem garimpeiro que tira um por semana", explica Agnaldo Alves de Morais, motorista dos caminhões que carregam o caulim, das banquetas até as empresas beneficiadoras. O argumento dele é esclarecedor, quando leva-se em consideração a carga horária dos garimpeiros. "A gente chega aqui umas cinco da manhã e às vezes sai de tarde. Come por aqui mesmo. A dor nas costas é grande", confirma Sirineu Francisco, 18 anos, dois deles dedicados ao trabalho nas banquetas.

Garimpeiro trabalha em banqueta de caulim

Descida de mais de 20 metros de profundidade

Trabalho sem equipamentos de segurança

Comida é feita nas próprias banquetas


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Queremos um preço mais justo para o nosso produto. A partir daí poderemos ter uma qualidade de vida melhor, assim como condições de trabalho mais favoráveis’

JOSÉ PEDRO DE ARAÚJO NETO Presidente da Associação dos Mineradores de Parelhas

COOPERATIVISMO

COMO SOLUÇÃO Sindicatos e entidades governamentais apostam no fortalecimento das cooperativas para organização do trabalho dos garimpeiros no interior potiguar e agregação de valor aos minérios explorados em solo potiguar

As tentativas anteriores não foram positivas, mas o cooperativismo tem surgido novamente como a alternativa mais viável para a organização dos garimpeiros e a melhoria na relação de trabalho entre eles e as empresas que beneficiam os minérios. O secretário estadual de Desenvolvimento Econômico, Francisco Segundo de Paula, garante que a intenção do Governo do Estado é fortalecer as cooperativas, de forma que elas possam ser responsáveis pelo processamento dos minérios explorados pelos garimpeiros. "Com a cooperativa fazendo o beneficiamento do produto, o garimpeiro vai vender seu produto direto às fábricas, sem necessidade de intermediários. Com isso, o lucro de cada um deles aumenta", conta. Com o aumento nos lucros, a formalização dos profissionais junto ao Ministério do Trabalho fica mais viável. "Assim eles terão condições de pagar os impostos e a cooperativa de assinar a carteira de trabalho de cada

um", completa Segundo Paula. Uma medida importante para essa mudança foi o acordo firmado entre Governo do Estado, Unimina e a Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). O acordo permite à cooperativa (Unimina) administrar um laboratório de análise mineral, instalado na cidade de Parelhas, e que estava abandonado. "O laboratório vai permitir que os pequenos mineradores possam avaliar a qualidade do minério que ele está explorando, garantindo um preço mais justo ao produto", afirma José Pedro de Araújo Neto, presidente da Associação dos Mineradores de Parelhas. Em Equador, o sindicato dos garimpeiros conseguiu a autorização de explorar uma mina de caulim por conta própria. "Nessa área vamos colocar um bom número de garimpeiros pra trabalhar e a intenção é que a gente consiga aprovar um projeto, com apoio do Governo Federal, para montar uma estrutura capaz de be-

neficiar todo o caulim e vender pronto para as indústrias", explica Clemente Alves. Em Jardim de Piranhas, no Seridó potiguar, o garimpeiro Francisco Sales Dantas, 52 anos, espera há muito tempo que o cooperativismo ganhe força. O trabalho em uma mina de feldspato deixou seu "Sales" com uma hérnia de disco, que o tirou do trabalho. Hoje, é o filho quem dá continuidade ao serviço no garimpo. Todo o material explorado por ele é repassado a uma empresa que beneficia o produto. "O preço não é bom, mas a gente não tem a quem vender se não for a ela. Se desse certo esses projetos mesmo, os garimpeiros teriam força", afirma seu Sales. Órgãos como o Sebrae, Banco do Nordeste, Federação das Indústrias do Rio Grande do Norte (FIERN), Sedec e Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) têm demonstrado interesse na execução de projetos destinados ao desenvolvimento do setor mineral potiguar e, principalmente, na organização do trabalho dos garimpeiros. "O cooperativismo é uma arma forte que pode mudar essa realidade. Mas é preciso organização de todas as partes envolvidas", afirma Francisco Segundo de Paula.

Edição e textos Esdras Marchezan

Fotos

Fred Veras

FRANCISCO SEGUNDO DE PAULA Secretário estadual de Desenvolvimento Econômico

Se desse certo esses projetos mesmo, os garimpeiros teriam força’ FRANCISCO SALES DANTAS Garimpeiro

Trabalho nisso (garimpo) porque não tem outra coisa para fazer aqui’

Garimpeiro separa parte melhor do caulim para venda

EXPEDIENTE Fred Veras, Esdras Marchezan e Francisco das Chagas, na estrada

O cooperativismo é uma arma forte que pode mudar essa realidade. Mas é preciso organização de todas as partes envolvidas’

Design Augusto Paiva

Revisão

Stella Sâmia e Gilcileno Amorim

LOURIVALDO FRANCISCO Garimpeiro


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