Revista pluriversos #01

Page 1


PluriVersos! Índice Por uma Literatura Plural

03 Luigi Ricciardi

Lucas

A Poética Experimental de Wilmar Silva

05 Ademir Demarchi

Estacionada

Impressões Daltonianas

07 Nelson Alexandre

Da Verdade e das Lendas

O Som da Palavra e a Palavra do Som

Daimon Junto à Porta

09 Rael Toffolo 11 João Oliveira

12 O Agradável Desconforto de ser ler Juan Rulfo Luigi Ricciardi

Abrahel

Ecos

Maringay

24 Thays Pretti 28 Marco Hruschka 29 Marcos Peres 31 Domenium 32 Fábio Fernandes 34 Luiz Fernando Cardoso

Olhos Abertos para Edney Silvestre

14 Victor Simião

Treze

Entrevistado: Oscar Nassakato

15 Luigi Ricciardi

Devaneios de Medeia

40 Gabriela Fregoneis

Eu já vi

19 João Oliveira

Considerações Finais

45

Flor Gentil do Norte

20 Luigi Ricciardi

21 Ensaio sobre o mudar ou ele quer ser Saramago Victor Simião

37 Alexandre Gaioto


[ Editorial ]

Por uma Literatura Plural Por Luigi Ricciardi

A

Pluriversos é uma revista que pretende fazer um trabalho tanto de leitura e análise quanto de divulgação da produção literária contemporânea. Não tem fins lucrativos financeiros, embora almeje lucro em outros domínios. Todos são colaboradores, e, assim sendo, parte integrante do todo da revista. Esse primeiro volume é de caráter experimental, e pedimos apoio aos amantes da literatura que ajudem no trabalho de divulgação. Assim, poderemos ter mais volumes nos meses que se seguem. Entretanto, é preciso se perguntar, de que maneira a revista pode colaborar na compreensão e reflexão do fazer literário contemporâneo em uma sociedade onde a imagem reina? A questão é de difícil resposta, uma vez que mesmo as capas dos livros, no Brasil especificamente, devem ter um trabalho gráfico/imagético para poderem atrair compradores, diferentemente da França, por exemplo, onde as capas podem ter cor única com um título em caracteres discretos que mesmo assim será disputado em alguma livraria ou sebo. Hoje em dia o que se vê é a proliferação de outdoors pelas ruas e o predomínio, por exemplo, do cinema hollywoodiano ao teatro. A nossa sociedade preza pela imagem. Porém, imagens estão longe de serem coisas ruins, a questão está longe desse maniqueísmo por vezes induzido, o que se faz é apenas uma constatação que possa levar à reflexão. Há imagens boas como ruins, assim como há boa e má literatura. O teórico Alfredo Bosi afirma, por exemplo, que poesia é feita de três elementos básicos: som, imagem e ideologia. Artes não são estanques, dialogam entre si. Uma imagem pode valer mil palavras tanto quanto uma palavra pode suscitar mil imagens.

A grande questão a ser pensada é: qual o espaço reservado à literatura em uma sociedade dominada pela imagem? A arte da palavra encontra ainda espaço em uma sociedade que, quando fala de “literatura” está se dirigindo quase que em sua totalidade à cultura de massa? Minha resposta é sim. Se histórias já eram contadas antes de haver uma escrita segmentada não será agora que sucumbirá. A literatura respira, e de forma natural, longe de estar dependente de aparelhos. Mas exigir fidedignamente um modelo estabelecido é arriscado. Criar manifestos enquanto cartilhas seja talvez uma maneira um tanto quanto ingênua em um momento de tantas possibilidades apesar de acreditar na falsidade da maioria dessas possibilidades. Há poucos anos do centenário da Semana de Arte Moderna, a literatura deve ser repensada, e refletir acerca do rumo que toma. Acredito que todo bom escritor faz isso em maior ou menor medida, construindo assim seu universo literário. Uma das minhas possíveis respostas ao espaço onde a literatura pode circular é nesse espaço fora do mainstream, desse engodo que nos fazem engolir todos os dias, fora dessa padronização de comportamentos e de fazer artístico. Todo grande artista, como diz Anatol Rosenfeld, tem de manter “a antena ligada” no que acontece ao seu redor. O escritor não pode ser alguém de fora e não participante do mundo, e sim atuante. Evidentemente de aqui não se trata maniquesticamente como algo político-partidário, por exemplo. Deve ser alguém como espírito crítico, o tal “rebelde sadio” ou “homem não ajustado” descrito por Eric Bentley. Mesmo que se fale de amor, que seja algo reflexivo, fora dos padrões que vemos nos Best Sellers caça níqueis e em tudo o que nos é vomitado pela televisão e internet todos os dias. Isso é função básica de qualquer artista e seu dever é a quebra do automatismo.

PLURIVERSOS03


É nesse campo que a revista Pluriversos vem circular, é dentro desse campo que a defendemos plural. O nome foi escolhido por ter dois sentidos: lembra tanto a palavra verso, componente literário, e que está presente tanto na lírica, quanto na épica e na dramática, quanto a palavra universo, lembrando vários universos possíveis, e nesse sentido, plurais. São caminhos literários, várias veredas a serem tomadas. Escolha, leitor, a que mais lhe apetecer. Pretendemos aqui estar por uma literatura plural, infiltrando o asfalto duro e a aspereza desse predomínio pela imagem relegando à palavra o escuro da sarjeta. Tudo isso pode parecer meio romântico, mas todo niilista tem seu positivismo, mesmo que mínimo. Do contrário, já não faríamos arte. Apesar de a revista ter decidido focar a produção literária no século XXI, isso não impede a apresentação de resenhas e críticas sobre escritores ou livros do século anterior, por exemplo. A revista será dividida, neste primeiro volume, em quatro partes: Críticas, que trará análises sobre a obra de dado escritor e/ou relação da literatura com outras artes; Resenhas, que tratará de livros específicos; Entrevistas, e Produção Literária, que contará, em sua maior parte, com textos de escritores com alguma ligação com Maringá, cidade na qual se hospeda a revista. Agradecimentos sinceros à equipe!

04 PLURIVERSOS

Distribuição de pensamentos livres, Sem fins lucrativos, sem juros abusivos, Por menos de 20 centavos!


[ CRÍTICAS/ANÁLISES ]

A Poética Experimental de Wilmar Silva

Por Ademir Demarchi

T

oda a obra poética de Wilmar Silva tem sido marcada por muitos

no que lembra, como experiência de leitura, o Finnegans Wake de Joyce, ainda que nada mais tenha de relação com ele.

experimentalismos de linguagem, numa escrita que começou inspirada no sertão de Minas Gerais, onde nasceu. Pardal de rapina (Belo Horizonte: Orobó Edições, 1999) é um livro que, com forte marca erótica, não é o mais experimental, mas registra sua originalidade no senso de observação desse lugar que, sob seu olhar, passa longe daquele de Guimarães Rosa remarcado pelo vocabulário rebuscado, o que aumenta o desafio para o autor, que escreve com uma linguagem simples, mas elaborada, com forte imagética. Em outros livros Cachaprego; Anu; e De z a zero -, ele alcançou marca bem mais forte de experimentalismo, conforme se pode constatar em Cachaprego, que tem uma linguagem barroquizante que tematiza o sertão mineiro, combinada com um ensaio fotográfico em que o autor posa como fauno nesse sertão; em Anu o experimentalismo da escrita se acirra, lembrando a visualidade concretista, porém contaminada pelo viés barroco que a obscurece; em De z a zero ele alcança a extenuação da expressividade do logos na medida em que aparentemente já não há mais o que dizer, passando ao uso de letras e números apresentados na forma de sonetos; além disso, o livro se torna ele mesmo um objeto, ainda que o que está expresso tenha também uso para a categoria de poesia sonora, numa outra forma de experimentalismo, conforme ressalta Fernando Aguiar no posfácio, forma essa bem explorada por Wilmar, inclusive registrada no CD NEONÃO.

infância, agora um espaço mítico, um “cachaprego”, que esse

A suspensão do sentido em Anu é imediata: não é

anu se metamorfoseia em vários seres e finalmente se

poesia versificada, não há espaço entre as palavras, elas,

sintetiza em fauno erotizado, mítico-poético, o amálgama

além disso, se engancham umas nas outras, formam terceiras,

mesmo de todos os seres do sertão e suas imagens que se

Se o primeiro e o segundo “versos”

ou linhas, melhor

dizendo, dada a diagramação do texto, podem ser mais

P

facilmente identificados como “rio mar no interior das graiz /

eu anu ave sou bicho na senda”, as seguintes mergulham o

leitor em ainda maior estranheza, na medida em que ele

imediatamente percebe que, para entrar no poema, sairá da

zona de conforto de textos lógicos, conformes às regras.

Aquela primeira linha já anuncia uma palavra

estranha, “graiz”, possível arcaísmo de Gerais, que, embora

faça referência ao Estado de Minas Gerais, onde nasceu o

autor, vai mais longe porque, sendo arcaísmo, reforça o

sentido de “local ermo”, que é, mais que o local afinal descrito no poema, o local mesmo da poesia, o “rio mar” onde o “outro” poético, um anu, é o sinônimo de um zôo de espécies que vão sendo relacionadas e se emaranham com plantas nesse ermo de mata das Gerais. É nesse sertão do interior onde o autor passou a

PLURIVERSOS 05


fundem num só corpo que tenta achegar-se à terra, à natureza, aos bichos, e a um eu poético que reverbera “onde abelha sou todo eu mel”. A edição de Anu feita pelo selo Sereia Ca(n)tadora [Silva, Wilmar. Anu. Santos: Sereia Ca(n)tadora, 2012] foi a 8.ª e comemorou os 10 anos desse poema, publicado em 12/8/2001 por Anelito de Oliveira (Orobó Edições, Belo Horizonte). Outras edições se seguiram: 2008, Anome Livros, Belo Horizonte; 2009, Confraria do Vento, Rio de Janeiro; 2009, Cosmorama edições, Portugal, no livro Yguarani; 2010, Anome Livros, no livro Silvaredo Em fevereiro de 2012 foi publicado pela cartonera Yerba Mala, na Bolívia e pela Eloísa Cartonera, na Argentina.

Imagens ilustrativas retiradas da internet. Wilmar Silva em Lisboa, fotografia por Ozias Filho.

06 PLURIVERSOS

Ademir Demarchi, nascido em Maringá em 1960, mora em Santos-SP. É escritor e editor da revista de poesia Babel Poética. Publicou em 2012 o livro Pirão de Sereia (Santos, Realejo), que reúne 30 anos de sua poética.


[ CRÍTICAS/ANÁLISES ]

Impressões Daltonianas

Biografia Poética-especulativa sobre a Vida e Obra de um Vampiro Reguardadão

Por Nelson Alexandre

F

alar de Dalton Trevisan, primeiramente, Curitiba é sua galáxia bizarra de letras e dores. é falar sobre o ato do voyeur espiando a Não existe beco escuro que escape de seu olhar de irmã pelo buraco da fechadura, excitado fotógrafo de lambe-lambe, como também não há pela visão de um efeito biológico que borrifa uma prostituta que não é comparada à Maria Madalena. secreção almiscarada na fonte de libido do Judas permeia a obra Daltoniana numa espiral ad decodificador da visão. Pequenas taras. Idiossincrasias infinitum. Moço ainda, foi um dos idealizadores da revista literária Joaquim, isso nos anos quarenta, década trêmulas pelo tesão de um ato proibido. Assim é Dalton? Se não é, seus personagens que marcou a estreia de Dalton Trevisan em dois livros espojam uma imagística galgada na gênese da semente que o autor renega como filhos bastardos e com anomalias físicas decorrentes de uma deformação da maldade humana por meio de seus atos e reflexões. Se usarmos uma “expressão gringa” para ilustrarmos literária que é “gestada” no útero da pressa. Dos anos tanto por um ponto de vista auditivo, como visual, seus verdes em matéria de criação e imaginação literária. personagens são figuras que poderíamos catalogar Paulo Leminski (outro grande escritor paranaense) tinha como Hardcore. Música nervosa que se envolve com a uma frase célebre para isso: incomensurável estática da sonoridade quase muda do A pressa passa. A merda fica. Dalton, parece, prefere vincular sua estreia radinho de pilha. Grito de socorro abafado pela mão do João, do Nelsinho, figuras que ajeitam a gravata como escritor em livro ao ano de 1959, com o irônico borboleta e molham a ponta dos dedos para umedecer o título de Novelas Nada Exemplares, que na opinião de Carlos Heitor Cony era um título de provocação à obra eterno bigodinho. Esse contista paranaense veio ao mundo no ano Novelas Exemplares, de Miguel de Cervantes. Depois de 1925. O Paraná, naquele momento, era riscado de disso, os livros de contos vieram como numa inundação faca na lauda branca por uma literatura que era por onde a aranha marrom se agarrava à mínima vírgula. conhecida por nomes como Dário Velozo, poeta de Mergulhava em pontos finais e reticências reflexivas e filiação simbolista e, de um rapaz franzino de nome interrogativas. O leque se abre após Novelas Nada Exemplares Newton Sampaio, que o próprio Trevisan sacralizava até às obras atuais. ser o maior contista do estado do Paraná. Da capital Curitiba, com ares de província e Sintético, polissêmico e de sintaxe enxuta, Dalton é banhada pelo rio Belém, logo viria uma mitologia que dono de um estilo que nos remete ao expressionismo seria remetida via sedex para todos os confins do alemão, ao hiperrealismo dos horrores vividos pelos planeta. Se James Joyce imortalizou Dublin, na Irlanda; personagens das pequenas periferias em torno da H.P. Lovecraft, Providence, na Nova Inglaterra; Gabriel metrópole da Rua das Flores, do Bacachiri, do Largo da Garcia Márquez com sua Macondo; Charles Bukowski Ordem, da Praça Osório, da Água Verde, do Bigurilho, com sua Los Angeles enfumaçada e com cores de néon das Mercês, da Vila Capanema e do próprio umbigo do barato dos bares, Dalton Trevisan iria criar seus mitos ao narrador que se esconde atrás do cálice de vinho tinto e redor de um microcosmo que se utiliza de sotaque forte da broinha de fubá mimoso. O vampiro, advogado de formação acadêmica, em expressões como “leite quente dói o dente”.

PLURIVERSOS 07


não se aventurou pelas jugulares dos fóruns de sua metrópole brejeira, preferiu advogar por meio de um olho clínico denunciando em flashs grotescos os acontecimentos ao redor das escolas, fundos de vale, quartinhos fechados e pensões chinfrins por onde passam e se acomodam suas criaturas sob a lupa do observador mais minucioso. Chamado de Hyeronimus Bosch das letras, seus quadros, por vezes, têm cor de sangue misturado com batida gelada de maracujá. Corpos são empalados junto com o do franguinho no espeto. Nosso contista é um vampiro que usa manga comprida no verão para não ir mostrando as marcas das queimaduras de cigarro que sua literatura é capaz de provocar no leitor mais desatento. Com Dalton, “bobeou, dançou”. Vira isca para o maior lambari de rabo vermelho, ou é sodomizado pelo andarilho sujo. Em sua maioria, os contos de Dalton são aquelas histórias que não são as dos irmãos Grimm, ou da autora de Crepúsculo. Aqui, os vampiros não são doces e românticos. Eles ainda seguem uma filiação intrínseca com Nosferato de Murnau ou de Drácula, de Bram Stocker. Vampiro por excelência é Nelsinho, que afirma que “beijo de virgem é mordida de bicho-cabeludo”. Vão encarar?

08 PLURIVERSOS

conheça o blog/site do autor www.nelsonalexandre.zip.net


[ CRÍTICAS/ANÁLISES ]

O som da palavra e a palavra do som Por Rael Toffolo

A

relação entre texto e música é intrigante a ponto de permitir que outra história da música, quiçá também da poesia fato ao qual não me arrisco a fazer por ser apenas um músico , poderia ser escrita ao focála. Na Grécia antiga, a dimensão poética e a musical se confundiam praticamente em um único conceito, pois não havia poesia sem a musicalidade intrínseca do perfil prosódico e não poderia haver música sem a presença da semântica textual. A proposta de Platão em expulsar o flautista de seu modelo de República assenta-se nessa premissa, já que o flautista, que precisava manter a boca ocupada com o instrumento, não poderia cantar a palavra, eliminando a expressão da Razão de sua prática artística. Durante a Idade Média, Renascimento e Barroco, a música foi geralmente erigida a partir das relações discursivas oriundas da retórica textual. Diversas convenções foram estabelecidas para reproduzir em música as nuances retóricas do texto, resultando em tabelas complicadíssimas de figuras de retórica que codificavam a relação texto/música. Destacam-se aqui compositores como Orazzio Vecchi, Lucca Marenzio, Girolamo Frescobaldi, ou o Magistral Claudio Monteverdi, em especial em seus madrigais Zefiro Torna e Lamento della Ninfa, ambos com poesia de Ottavio Rinuccini. Com o apogeu do Iluminismo, assistimos ao divórcio do texto e música. Não se aceitavam relacionamentos construídos a partir de simbolismos, portanto que não fossem claros, simples e diretos. O romantismo musical resgata pouco a pouco os intercruzamentos entre texto e música, mas jamais no mesmo nível de complexidade que o da renascença e do alto barroco. No século XX, a música abandona

paulatinamente o mundo cartesiano da altura definida e do tempo cronométrico, alcançado a continuidade e o fluxo dinâmico e, poesia e música, voltam a se irmanar em um patamar muito mais íntimo e lascivo. Deixa-se de buscar formas de relacionamento entre campos sígnicos diversos e volta-se a considerar, talvez, como uma retomada do pensamento grego, a palavra enquanto som e o som da palavra.

[ Claudio Monteverdi ] A poesia concreta entra em cena e a música concreta também. Nesse motel suburbano do discurso, a palavra e o som estupram-se mutuamente e extraem um do outro o que têm de melhor. A palavra é vista pelos músicos como matéria sonora e os poetas buscam na matéria sonora as lógicas para a escolha das palavras. Diversas grandes obras musicais - permitam-me

PLURIVERSOS09


restringir-me ao campo da música para não cometer próprio texto. Não há como descrever com palavras o injustiças são decorrentes desse período, como a que o compositor realiza nesta obra vale a pena uma fabulosa Epitaph fur Aikishi Kuboyama de Herbert escuta atenta da peça mas é fantástico mergulhar no Eimert; Visage de Luciano Berio, Omaggio a Joyce universo de um texto que se materializa enquanto sino também de Berio: uma das obras na qual mais se abusa para representar o sujeito oculto em sua própria da materialidade textual, integralmente realizada a semântica. Tantas interrelações nos levam a formular a partir do texto inicial do capítulo 11 do Ulisses de James última delas, certamente desagradável, já que escolhi Joyce; Blind Man the Barry Truax, realizada a partir da para este texto, a própria obra para vivo, em prece chorar leitura do poema de mesmo nome feita pelo próprio pelo nobre compositor que, morto, nos deixou contanto poeta Norbert Ruebsaat. as fugazes horas do viver. Por fim, chego à obra que gostaria de ressaltar neste pequeno texto: Mortuos plango, vivos voco de Jonathan Harvey. Essa obra foi composta em 1980 e tem a sua versão mais conhecida a partir de uma reedição de 1999. Selecionei esta obra para fazer minha sensível homenagem a esse compositor, falecido no finalzinho de 2012. Essa obra é uma das pioneiras e mais Jonathan Harvey importantes a ser realizada em sistemas computacionais com som digital. A despeito da novidade tecnológica da peça, a relação texto/música é levada a um patamar de forte radicalismo e beleza. A peça baseia-se na inscrição do sino da catedral de Winchester na Inglaterra, igreja onde o filho do compositor cantava. A inscrição diz: Horas Avolantes Numero, Mortuos Plango, Vivos ad preces voco, que em uma tradução aproximada seria: Eu conto as horas fugazes, eu choro os mortos, eu invoco os vivos à prece. Nessa obra, o som do sino da igreja e a voz do filho do compositor (portadora da materialidade sonoro/textual) se interconectam de uma forma que supera o que era possível de se imaginar na época. O compositor, com ajuda de aparatos tecnológicos desenvolvidos para a confecção da obra, propõe a transmutação gradativa do texto, enquanto matéria sonora, para som de sino e vice versa, entremeadas por sinos reais que demarcam as seções da obra-texto, contando o tempo fugaz. Podemos conjecturar que Mortuos Plango, Vivos voco retorna miticamente ao começo da história narrada neste texto e a supera, criando uma simbiose muito profunda entre texto e música. É realmente notória a sensação de corporificação do sujeito desse texto, o sino, a partir do

“Eu conto as horas fugazes, eu choro os mortos, eu invoco os vivos à prece”

10 PLURIVERSOS


[ RESENHA ]

Daimon Junto à Porta de Nelson Rego

Por João Oliveira

C

omo um Baco à espreita, espiando pelo buraco da fechadura, Nelson Rego conduz a inocência à malícia no pequeno volume de contos Daimon junto à porta. Do primeiro e pseudo-erótico Platero e o mar, ao derradeiro Um pedacinho do tempo diante dos olhos, o escritor gaucho pousa sobre a obra uma sensualidade mascarada, que ora se escancara para o leitor, ora se intimida, provocando de canto de olho. A comparação com o deus romano não é gratuita. Assim como os latinos tomaram emprestado o Dionísio para inventar o Baco, miraram a filosófica “daimon” para criar a religiosa “dæmon”, também conhecida em terras lusófonas como “demônio”. Uma tradução empobrecedora, sem dúvida. Nos contos de Nelson Rego, os personagens invariavelmente sucumbem ao desejo, uma influência interna e externa. Daí o daimon do título. A palavra grega expressa uma poderosa força natural que nos cerca, espírito que nos atiça os sentidos, ainda que isenta do dualismo “bem ou mal”. Os daimons aqui têm uma quedinha pela desolação, por praias varridas por ventos frios, por rincões bucólicos, cenários que sugerem o Rio Grande do Sul do escritor. Também têm preferência por artistas, malucos e crianças. Pois não seriam eles mais suscetíveis às suas ações? Em Platero e o mar, o escritor emprega o erotismo em um grupo de garotos de onze a doze anos. Excitadíssimos com a pouco inocente Inocência, os malandros fazem de tudo para que a moça se entregue nua aos seus desejos e curiosidades crepusculares. A juventude erotizada também invade Recital dos mortos, no qual um médium recita uma infinidade de

nomes e causas de mortos e mortes. O médium só dá um tempinho no profundo transe para incitar a jovem narradora a um tête-à-tête. No melhor do livro, A boca do jarro, o erotismo proposto por Nelson Rego alcança o máximo de abstração. Caminhando pela praia, um professor teoriza a inutilidade filosófica e retórica da metáfora enquanto sua aluna se dedica a perturbar o velho com argumentos bem fundamentados e a exposição das coxas bem torneadas refletidas no espelho de areia. No quesito melhor ideia, porém, vence Na verdade é isso aí, ó. Ainda que prejudicado pela estrutura monolítica do diálogo e a repetição incansável de vícios de linguagem, o conto se destaca pela história da índia que não era mais índia, que perdera seu guarani sem ter aprendido o português ou o inglês, e que se comunicava mimicamente (ou telepaticamente) com um dos protagonistas do diálogo sobre um sonho contínuo programado para começar a cada vez que a índia entrava no elevador bifásico de um arranha-céu nova-iorquino. Um dos poucos contos que os daimons eróticos não se escondem junto à porta. Daimon junto à porta, vencedor do Prêmio Açorianos 2011, foi uma boa surpresa. Um livro corretamente pouco pretensioso, equilibrando sensualidade e inocência, intensidade e alheamento, possessões e mistérios, contos narrados como se observados à distância, memórias da manhã seguinte.

PLURIVERSOS 11


[ RESENHA ]

O Agradável Desconforto de se ler Pedro Páramo Por Luigi Ricciardi

A

fragmentação das narrativas, tão afamada nas décadas que fecharam o século passado, já se fazia natural no romance de Rulfo na metade do século XX; e seu flerte com a literatura fantástica lhe deu célebres filhos, tal Gabriel García Márquez. Escreveu, além do romance Pedro Páramo, somente o livro de contos O Planalto em Chamas, e foi dedicar-se a outras atividades. Sim, a literatura mexicana tem também seu Raduan Nassar. Aclamado nos países hispânicos, sobretudo no México, sua pátria, Juan Rulfo ainda é, no Brasil, timidamente lido pelos amantes de literatura e praticamente ignorado pelos estudos acadêmicos (vendo de perto algumas linhas de pesquisa atuais, isso até pode soar com certo alívio). Seus livros apresentam uma ruptura com tempo/espaço jogando o leitor em um vórtice e em uma vertigem alucinantes. Nada é fixo em Pedro Páramo, romance escrito em meados dos anos 1950, que se torna um romance confortavelmente desconfortável. Mas são assim os grandes livros, obra de arte não deve ser só entretenimento. O leitor quase não tem um campo reconhecível. Precisa tatear com cuidado e mesmo assim cai em buracos sem fundo. Pouco entendemos o espaço, tampouco o tempo. A maior parte do romance Pedro Páramo se passa em um pequeno vilarejo chamado Comala, situado no interior de Jalisco, no México. É para este vilarejo que o narrador/personagem Juan Preciado parte no início da narrativa, para satisfazer um desejo de sua mãe, que pediu em seu leito de morte que o filho fosse a Comala à procura de seu pai, Pedro Páramo, a fim de cobrar-lhe a herança. Em sua jornada, Juan Preciado encontra uma Comala morta, onde conhece amigos e conhecidos de

sua mãe. Através das personagens é que conhecemos a história da cidade: eles contam em flash backs os episódios que marcaram a história de Comala. Por destes depoimentos e relatos é que conhecemos Pedro Páramo, um homem de posses que impunha suas leis ao povo da cidade. Ao longo da narrativa ficamos sabendo que Comala fora um dia uma cidade próspera, mas que sucumbiu diante da indiferença de seu “dono” Pedro Páramo, que após a morte de um de seus filhos deseja que Comala também morra.

PLURIVERSOS 12


A linha que separa vivos e mortos no romance é muito tênue e constantemente temos a impressão de não saber se estamos lidando com uma personagem morta ou viva, o próprio narrador se põe a mesma pergunta, em dado momento da narrativa. Porém, aqui a morte não é o fim da existência/consciência e nem mesmo determina a separação das pessoas em universos distintos. Ao morrer, o indivíduo descobre que ainda pode pensar e interagir com o mundo. Sem dúvida, tal contexto não pode ser tratado como natural pelo leitor. A ideia de uma manutenção de corpo/pensamento/consciência na pósvida dentro do mesmo plano dos vivos é um fato que rompe com as leis tais quais conhecemos. Ora, as religiões acreditam em vida pós-morte, contudo, esta vida se passaria em outro plano. Em Pedro Páramo não há divisão tangível entre vida e pós-vida.

“Nadie vino a verla. Así estuvo mejor. La muerte no se reparte como si fuera un bien. Nadie anda en busca de tristezas.” Perdo Páramo, Juan Rulfo

Luigi Ricciardi, nascido Luís Cláudio Ferreira Silva em Londrina, mora em Maringá. É graduado e mestre em letras pela UEM. Idealizador da revista Pluriversos e do projeto Mutirão Artístico. É professor de francês. Em 2011, lançou o livro de contos Anacronismo Moderno. Colabora com os blogs Café com Jornalista e Mais 1 Livro. Gosta de uma mesa de bar, cerveja, risadas e filosofia. E de viajar. Vive buscando estradas.

13 PLURIVERSOS

Seria isso um bem ou cavalo de tróia? O leitor que tire suas próprias conclusões durante a leitura. Justamente esse desconforto perante as leis naturais e à estrutura narrativa é que torna o romance original e agradável. É um novo caminho a ser explorado, onde primeira e terceira pessoas se revezam na narração. Se o livro, que conta com pouco mais de cem páginas na última edição brasileira em versão de bolso, já causa impacto, imagine se tivesse as quase mil páginas da primeira escrita do autor, que ao longo dos anos foi enxugando sua verborragia e dando mais concisão ao seu romance. Mas não falemos de impossibilidades. De qualquer maneira, ler Pedro Páramo é explorar os limites da percepção e transpor as paredes literárias conhecidas.


[ RESENHA ]

Olhos abertos para Edney Silvestre Por Victor Simião

O

jornalista Edney Silvestre, conhecido repórter da TV Globo -que foi, durante muito tempo correspondente internacional, além de ter sido o primeiro repórter brasileiro a chegar à tragédia do World Trade Center, -- também é escritor. E dos bons. Em 2009, lançou Se eu fechar os olhos agora, romance que levou o prêmio Jabuti de Melhor Romance em 2010, e agora o lança fora das terras tupiniquins. Alemanha, França, Portugal, Itália, Holanda, e, mais recentemente, Inglaterra, receberam em suas livrarias a história de Paulo e Eduardo, garotos de 12 anos, que encontram o corpo de uma mulher jogado às margens de um lago. Tudo por mera coincidência, já que os meninos haviam sido expulsos da sala de aula e, após a expulsão, não podendo voltar, cada um, às suas respectivas casa, decidem pegar suas bicicletas e mergulhar em um lago próximo, para aguardarem o tempo necessário do retorno ao lar, doce lar. O corpo da mulher encontrado é o marco da perda da infância dos garotos. A mulher ali parada é loira e muito bonita. Uma mulher que, mais tarde, descobriram que se chamava Anita, ou melhor, Aparecida. Paulo e Eduardo, então, vão até a polícia e são interrogados. Seriam presos se o marido da mulher, o dentista da cidade, não tivesse confessado o crime. Os garotos acham aquilo muito estranho. Acham que o marido não tem culpa. Acham que há algo por trás do crime. Decidem, então, como gente grande, investigar o caso. É durante as madrugadas de investigação que conhecem Ubiratan, um idoso comunista, ex-preso político na ditadura de Vargas nos anos de 1930, que também está interessado em averiguar o acontecido.

Durante a investigação, Ubiratan, Eduardo e Paulo descobrem coisas que não poderiam imaginar. Envolvem-se com pessoas que nunca antes pensaram em se envolver e conhecem histórias que jamais pensariam em ouvir. O clímax do livro é garantia de emoções fortes. Durante a leitura, um locutor esportivo popularmente conhecido por sua chatice, com toda certeza diria: “haja coração". Com o romance de estreia, Edney Silvestre mostra porque foi considerado pelo jornal “O Globo” uma das revelações da literatura nacional, e porque levou o prêmio São Paulo de Literatura, além do Jabuti. É impossível não se encantar com a história.

Victor Simião é estudante de jornalismo, resenhista literário e frequentador assíduo de botecos baratos de Maringá.

PLURIVERSOS 14


Entrevista da Capa Luigi Ricciardi entrevista Oscar Nakasato, vencedor do Jabuti.

“ Clichês existem para serem quebrados. Não tem essa de que japonês gosta de Matemática e Física. Eu sempre gostei de literatura e não me lembro de alguma influência para essa minha inclinação.”


[ Entrevistal ]

Nakasato Luigi Ricciardi em um bate-papo descontraído com Oscar Nakasato, vencedor do Jabuti.

[LUIGI] Oscar, há um certo clichê dizendo que japoneses ou imigrantes japoneses são muito mais dados às matérias exatas do que às humanas, e você foi parar justamente em um dos campos mais inexatos que existem, a arte. O que te levou a enveredar pelo campo da literatura, tanto como professor, quanto escritor?

[O. NAKASATO] Clichês existem para serem quebrados. Não tem essa de que japonês gosta de Matemática e Física. Eu sempre gostei de literatura e não me lembro de alguma influência para essa minha inclinação. Eu gosto, simplesmente. E foi a literatura que me levou ao curso de Letras depois de sofrer por dois anos e meio cursando Direito. A docência não foi prioridade quando escolhi Letras, foi consequência do curso. Quais são seus escritores preferidos e em que medida você acredita que eles influenciaram a sua obra?

Gosto de Machado de Assis, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, José Saramago, entre outros, e todos eles me influenciaram em alguma medida, que não sei exatamente qual. José Saramago, que inclusive é um dos seus autores favoritos, disse uma vez “tenho o prêmio Nobel, e quê?” enfatizando o quão seria pequeno o prêmio em relação à vida. E agora você tem o Jabuti e quê? O que muda?

Eu não tinha muitas expectativas em relação ao Jabuti, mas não recebi a notícia do prêmio com o desdém do Saramago. Eu sei da importância do Prêmio Jabuti e da responsabilidade de recebê-lo, embora eu saiba que seguirei minha vida sem grandes alterações. De que maneira o teu romance “Nihonjin” pode contribuir para a reflexão da formação de uma identidade brasileira a partir do grande fluxo de imigrantes que se deu desde o nosso “descobrimento” pelos portugueses?

O Brasil é um país mestiço, com uma identidade multicultural. É claro que num país como esse a discussão da identidade é mais difícil que em outro sem essa característica. Nesse cenário, “Nihonjin” ajuda a entender um pouco o processo de acultaração dos japoneses e seus descendentes e o modo como essa

parcela da população brasileira ajuda a formar a identidade nacional. Qual o resultado que você espera de “Nihonjin”, após ganhar esse prêmio?

Espero que mais pessoas leiam o romance. Partindo pra uma discussão mais larga da literatura, você acredita que a literatura brasileira vive um bom momento? Quais são os autores contemporâneos que você acredita serem grandes representantes dessa geração?

O que percebo é que há um grande número de pessoas escrevendo e publicando tornando público o seu texto, principalmente através da internet. Há quem veja com desdém essa ânsia de escritores, muitas vezes sem autocrítica, que querem expor os seus textos, mas eu vejo talentos desconhecidos que não encontram outra opção para encontrar seu público. Nesse contexto, percebo que a literatura passa por um momento de grande “exibição”, e a quantidade é importante para o filtro da qualidade, mas, por enquanto, um autor é reconhecido somente quando publica de modo tradicional, ou seja, através do livro impresso. Autores como Milton Hatoum e Cristóvão Tezza são exemplos de autores que já passaram pelo filtro da qualidade e se consolidaram como representantes dessa geração. Você acredita que a literatura brasileira pode pegar carona nessa grande visibilidade que o Brasil está tendo no exterior para que tenhamos mais escritores lidos e que enfim consigamos sair do estereótipo construído sobre a nossa nação?

O fato de o Brasil ter a sua economia aquecida e começar a chamar a atenção do mundo sem a relação imediata e reducionista com o futebol e as praias tem ajudado a literatura também. O mundo começa a perceber que o Brasil tem bons escritores. Percebo, também, um esforço por parte das editoras para divulgar os escritores brasileiros fora do país. A participação em feiras internacionais é um exemplo. O governo também começa a fazer a sua parte. Recentemente ouvi uma matéria informando sobre um edital público que

PLURIVERSOS 16


estimula a tradução de livros da literatura brasileira.

quando há a sua disposição uma tela de 50 polegadas com imagem em 3 dimensões. Então eu digo que a Você acredita que a literatura, assim como a arte em leitura nos torna mais inteligentes, o leitor precisa geral, possa mudar a vida das pessoas ou a arte é mobilizar um número maior de neurônios para dar pequena perto dos problemas do mundo? sentido, sentimento, cor e corpo à palavra, enquanto o televisor traz ao telespectador a imagem pronta. Essa é a grande vantagem desvantagem para alguns da palavra. Muito se fala no poder transformador da leitura, mas para mim essa transformação não é algo pontual, embora isso eventualmente possa acontecer. A Alice Voltando a falar sobre o teu trabalho especificamente, Walker, autora de “A cor púrpura”, diz que as pessoas você escreve regularmente, tem algum lugar ou horário lhe dizem que o romance mudou as suas vidas, e ela se específico para escrever? sente feliz por ter participado com a sua literatura da Eu geralmente escrevo no escritório da minha casa, mas transformação dessas pessoas. Eu mesmo recebi não mantenho nenhuma rotina, escrevo quando posso e mensagem de uma pessoa desconhecida revelando que quando quero. “Nihonjin” fez ela reavaliar a relação que tinha com a avó, que é japonesa. Mas eu acredito que a verdadeira transformação que a literatura proporciona é gradual, Para terminar o bate papo, você me disse em uma sutil, tão sutil que a pessoa nem percebe que é conversa de bar que está trabalhando em um novo livro. transformada. As histórias infantis, por exemplo, trazem Esse novo trabalho também é um romance ou você mudou o gênero? Esse novo livro tem relação com o os elementos do mundo, da vida, trazem o bem e o mal, a anterior ou o tema é completamente diferente. ambição, a vaidade, o medo. De alguma forma a transformação ocorre porque o leitor vivencia esse bem, É um romance. O que posso adiantar é que há dois esse mal, essa ambição, a vaidade da madrasta, a narradores, personagens nipo-brasileiros, irmãos, que violência do lobo, o medo dos porquinhos. O Antonio contam episódios de suas vidas sob óticas diferentes. Cândido diz que a literatura “não corrompe nem edifica, mas humaniza em sentido profundo porque faz viver. E afirma: “A literatura pode formar; mas não segundo a pedagogia oficial. [...], ela age com o impacto indiscriminado da própria vida e educa com ela.” O Antonio Cândido é um grande professor. Antigamente relegada ao limbo, hoje a literatura paranaense respira bem com escritores como você, o Domingos Pellegrini, Luís Henrique Pellanda, sem contar os super premiados Cristovão Tezza e Dalton Trevisan. Como você vê a atual configuração dessa literatura estadual e quais são, além dos já citados, os escritores que você considera como expoentes dessa geração?

Não acompanho sistematicamente a literatura dos paranaenses, portanto não tenho condições de responder a essa pergunta. Conheço os escritores que você citou, mas não os leio porque são paranaenses, mas porque são interessantes. De que maneira a palavra, ingrediente básico e fundamental para haver literatura, pode sobreviver em uma sociedade imagética como a nossa?

Um amigo arquiteto se gabava dizendo que o desenho viera antes da escrita e por isso era superior, e eu retrucava sustentando que a palavra escrita viera depois para superar a capacidade de expressão do desenho. É claro que nenhum dos dois tem razão, nenhum suplanta o outro. Entretanto, hoje é necessário defendermos a palavra, pois há uma ditadura da imagem. E imagem em movimento. É difícil convencer alguém a ler um livro

17 PLURIVERSOS



[ CONTO ]

Eu já vi Por João Paulo Oliveira

C

omeça com um disparo. Uma imagem que se espalha pelos subterrâneos do lobo occipital e chega ao tálamo antes mesmo que um córtex vizinho seja informado sobre o que está acontecendo. Os memorandos aqui costumam viajar pela luz. As sinapses iluminam o caminho como uma pista de pouso em convulsão e logo todos os departamentos replicam a mensagem, de forma que você tem a nítida impressão que já viu aquilo antes. Acontece com todo mundo. Acontece comigo agora. O que eu vejo é uma araucária ao pé do morro beirando o córrego quase rio, as botas espetando as grimpas úmidas. Estou de volta ao parque de diversões da minha infância, a casa da avó. Dessa vez sem o arvoredo que cobria a margem esquerda do descampado até a curva em que o rio se perdia, sem os primos e sem a inocência. Lembro-me de um barquinho de papel descendo por entre as pedras e absorvendo a água como um suicida enquanto espero o próximo rastilho de sinapses me contar o restante da história. Gostaria que minha filha tivesse visto como era naquele tempo. Ela caminha comigo. Ela tem apenas cinco anos e não tem a mínima ideia do que se passa aqui entre os dois hemisférios cinzentos. Em seu rosto rosa arredondado os lábios corpulentos quase formam um bico sem nenhum esforço. Precisamos voltar e dar um jeito de aliviar o inchaço. Uma pausa para juntar um par de grimpas para o fogo e durante o trajeto vertebral para me levantar o que eu vejo é isso: terra de inverno é sempre mais escura, nem o sol é capaz de melhorar o moral da grama, de perto a araucária se exibe cheia de si apesar de ilhada, a criança

não parece impressionada, penso que as sinapses desse século já não se sensibilizam com o mato, penso que se sensibilizam com coisa alguma, aperto sua mão o suficiente para sentir o contato dos metacarpos, ela não parece incomodada e eu não sei se ela desconfia do quanto isso significa, damos meia volta e vemos de longe o telhado marrom da casa velha por entre os galhos das últimas caneleiras, sapopemas, angicos e pitangueiras. Mas isso tudo já aconteceu. Eu já vivi.

João Paulo Oliveira. Publicitário paranaense, quase vinte e cinco, editor do blog literário Mais1Livro.com. Vive em Buenos Aires, tentanto ingerir todas as variedades existentes de alfajor. Ainda falta muito. Ótimo em pensar títulos para contos que nunca escreve.

PLURIVERSOS 19


[ CONTO ]

Flor Gentil do Norte Por Luigi Ricciardi

E

la trabalha na Jorrovi e só compra no Aqui Agora. Pinta flores nas unhas e sonha com um tamanco novo. Chama as amigas de "amiga" e adora fofocar. Vai sempre ao Juscelino gastar as botas novas. Sorri à toa, a todos que passam. Já freqüentou o Atlântico, mas tem vergonha de dizer. Quer conhecer a praia, mas dobra o "r" da porta. Freqüenta as bibliotecas para ler "Sabrina". Adora cantarolar aos ventos o Victor e Léo. Sente seu sorriso moldado de tanta dor. Mora num barraco na altura do Requião, e aos domingos à tarde vive com dor no peito. Já comprou canetas dos mudos no terminal. Paquera o filho do gerente e odeia andar de ônibus. Sente a muda solidão das árvores, mas já teve taras de ser currada no Parque do Ingá. Ela se acha gorda, mas torce pelo Corinthians porque adora barriguinhas. Tentou por vezes ir embora da cidade. Sonhou em cursar UEM, sem sequer terminar a oitava no Branca da Mota. Chora com a novela e quer aquele vestido chique. E adora paquerar os rappers na porta do Avenida Center. Levanta cedo querendo se esconder. Chega tarde com dores dos bailes. Quando criança, esfolou o joelho na Corrida de Tiradentes. Lavou o sangue na vitória do parrudo. Todos os dias ela se arranca da floresta selvagem e vai ao BIG procurar um novo amor. Ignora a mão estendida na esquina da Americanas. Fez cursos no CAC e nunca soube cantar. Viu Titanic quarenta vezes no Cine Maringá. Viu o filme da Xuxa quando criança lá no antigo Cine Horizonte. O melhor presente de sua vida seria um carro semi-rodado. Chama o vizinho pra dar voltas e mostrar a nova pranchinha. Já subiu na catedral, mas não conta que vomitou. E das belezas que Deus espalhou sempre preferiu o Bosque II. Acreditou na

20 PLURIVERSOS

na Mãe Diná e viu o Aspen se despedaçando. Já foi à praça do antigo aeroporto ver as coxas dos caras do Grêmio. Passava fome a comer quentinhas. Mas devorava os pasteis da feira. Sonhou em dançar na Festa das Nações. E sempre pisou nos pés dos jumentos do Juscelino. Adora se maquiar pra dar voltas na Tiradentes. Mas não vai com o cara que ela paquera, pois não gosta de chevettes. Já foi pro Paraguai comprar muamba e revender na porta do Estádio. E no Bosque das Grevilhas fez sexo oral com o ex-namorado. Já se fez de gay pra ir ao Estravaganza; e quis ser drag ao menos um dia. Quis eterna viver na história, mas o fortão nunca a viu na esquina da XV. Votou no Silvio Barros porque era bonitinho. Amassa barro todos os dias para ir ao trabalho. Com os pés sujos sente o porvir da esperança. Recebe seu salário e se sente feliz. Paga as contas no banco e reafirma o que diz. Na cidade de sua vida, tudo vai bem, há muitos mais ricos depois da linha do trem.

Luigi Ricciardi, nascido Luís Cláudio Ferreira Silva em Londrina, mora em Maringá. É graduado e mestre em letras pela UEM. Idealizador da revista Pluriversos e do projeto Mutirão Artístico. É professor de francês. Em 2011, lançou o livro de contos Anacronismo Moderno. Colabora com os blogs Café com Jornalista e Mais 1 Livro. Gosta de uma mesa de bar, cerveja, risadas e filosofia. E de viajar. Vive buscando estradas.


[ CONTO ]

Ensaio sobre mudar ou ele quer ser como Saramago Por Victor Simião

A

*

porta da sala estava aberta. O local era bem iluminado e grande para caber a todos que ali ficam, sendo o vocábulo todos uma construção silábica que engloba um coletivo de algo, e que, aqui nesta história, há de representar 23 alunos de uma faculdade, que, por conta das mudanças no ensino e pensando em atender mais alunos, há acrescentado três letras em sua sigla, mas que a nós, meros mortais, não nos cabe entrar nestes pequenos detalhes. Dentro da sala bem iluminada, e, por vezes, abafada, estão os alunos a estudar, ou fingindo que o estão. O professor passa os slides, que, por vezes, dão sono aos jovens universitários. Como em uma história qualquer, devemos escolher personagens que farão parte do enredo. Nesta aqui, são três, os principais, dos quais começaremos a falar agora. O primeiro deles, o garoto de pele morena, que, muito provavelmente em séculos passados seria chamado de mouro, tinha ambição de ser escritor. Gostaria de ser e sonhava, por conta de suas leituras e pesquisas no autor ao qual nem falamos mas já nos demos ao trabalho de quase mencioná-lo, José Saramago, o português que recebeu o Nobel de Literatura em 1998, e foi o único autor de língua portuguesa a ser laureado por tal distinção. Durante a aula, estava a escrever sua primeira crônica ao estilo, digamos assim, saramaguiano, e apresentou-aaos colegas, especificamente a três, ao garoto da camisa rosa, homossexual, à rapariga de voz marcante, negra, e à rapariga de baixa estatura, evangélica, que não o compreenderam, por conta da escrita cheia de vírgulas, e por também utilizar-se de parágrafos longos,

Diferenciando-o dos demais textos até então lidos pela grande maioria, que neste caso, não são todos, já que ele, o garoto de pele morena, não está incluído nesta contagem. Ao ler o texto que o garoto de pele morena escrevera, o garoto da camisa rosa perguntou, Por que não colocas dois pontos e travessão antes de iniciar um diálogo, e sim os separa por vírgula, além de que, ao final de qualquer questão, não utiliza ponto de interrogação, Não os coloco porque Saramago disse que utilizar os sinais de pontuação nãoé necessário, tendo em vista que o leitor pode compreender o texto da mesma forma. A resposta assustou o garoto da camisa rosa, e também assustou a rapariga de voz marcante, que o questionou, Mas se pensas em ser escritor, não deves, portanto, utilizar a gramática corretamente e seguir as leis da escrita convencional, como as que utilizamos na faculdade, Oras, respondeu o garoto de pele morena, leis foram feitas para serem quebradas quantas vezes forem necessárias, Eu não penso assim, interveio a rapariga de baixa estatura, que até aqui havia apenas lido o texto confuso e observado o diálogo, creio que as leis foram feitas para serem obedecidas, não desrespeitadas e quebradas, Eu também penso isso, disse, por sua vez,a rapariga de voz marcante, penso também que quebrar as leis não melhora em nada a situação. Ao ouvir a opinião das raparigas, esperou, como deveria ser, a opinião do garoto de camisa rosa, que disse, Concordo com as duas raparigas, penso até que o mais certo é aceitar as coisas como elas são. Ao ouvir a opinião dos três, o garoto de pele morena refletiu, Será que sou eu o errado e devo deixar

PLURIVERSOS 21


As coisas como são, questionou-se. Neste mesmo instante, como que um pequeno diabo, ou um anjo, ou algum ser especial, não sabemos qual a opção religiosa dele por isso não podemos determinar se foi um enviado de Lúcifer, o maligno, ou de Deus, o ser divino, apareceu no ombro esquerdo dele algo que chamaremos de espírito crítico, quedisse, não literalmente, pois não podemos saber tendo em vista que não o apareceu da forma real, como carne em osso, ou apenas em forma de nuvem, ou fumaça, Errado não estás, foram as quebras de lei que mudaram o mundo, Mas o que você quer dizer com isso, Ora, sou um ser programado para lhe dizer apenas isso, não faça-me questões as quais não posso responder, aliás, estás na faculdade, local feito para se pensar, mesmo que em alguns cursos os alunos prefiram ouvir músicas onde palavras, se é que as podemos chamar assim, como lek, ficam sendo repetidas a todo instante, portanto, seja diferente e pense, Só isso que vais falar, gritou, e nada ouviu de resposta. Ao aumento da voz com o ombro esquerdo, as raparigas e o garoto da camisa rosa entreolharam-se e nada entenderam, assim como toda a sala, que, naquele instante, já observava atentamente o diálogo, assim como o professor à frente, que desistira de continuar a aula, mas, ainda assim, continuava a passar os slides, já que ombros não têm boca para falar, e, ainda que tivessem, cá para nós, haveria de ser estranho conversar com os mesmos. Pois então, após ter conversado com o espírito, ou ter imaginado que o fizera, disse à rapariga de voz marcante, negra, Deveriasser agradecida pelas mudanças das leis, E por quê, Porque não fosse-as, aqui não estarias, e sim, servindo aos brancos, que tanto se decepcionaram com a Lei Áurea aprovada em 1888. Calou-se a rapariga. Constrangida, apenas abaixou a cabeça. A rapariga de baixa estatura, que, não esqueçamos, era evangélica, pensou, Será que ele também irá falar de mim. Poder-se-á dizer que a preocupação dela era pertinente, pois foi o que acontecera e aqui iremos descrever. A ti, o garoto de pele morena agora falava à rapariga de baixa estatura, também tenho palavras, Pois sei que as têm, e preparome, Dar-te-ei a chance de mudar de opinião, queres,

22 PLURIVERSOS

Agradecida, mas não, Pois bem, tu, mais do que a outra rapariga, deveria agradecer pelas quebras de leis, Não sei se deveria, convença-me. E continuou , O pastor de minha igreja diz para sermos leais às leis, Diga a ele, que, não fossem o questionamento e as quebras de leis, a Reforma Protestante desencadeada por Martinho Lutero, nunca haveria acontecido, e que ele, ao publicar as 95 teses em 1517, libertou-te e libertou o teu pastor, E de quê, De não serem queimados em praça pública por divergirem das ideias do catolicismo e de poderem exercer a fé que lhes cabe. Mas, Diga, Nada, estás certo. A rapariga de baixa estatura sabia que não estava certa. A sala, ou melhor, os alunos que nela estavam, observavam atentos ao que ali estava a suceder. Não todos, claro está, pois alguns preferiam pintar as unhas a ter de ver um diálogo, no mínimo, interessante. Os que ouviam, estavam animados e comentavam, O que será que o garoto de pele morena irá falar para o garoto da camisa rosa, Acho que será algo bem crítico, pois o garoto da camisa rosa está com cara de medo e de que não sabe o que fazer. Os alunos, como toda boa massa, erraram.


O garoto da camisa rosa, por último, adiantou-se, Pois vejo que errado estou, e nem quero ouvir de ti sobre o que as não-mudanças da lei poderiam trazer a mim. O garoto de pele morena concordou. Sei que não fossem elas, continuou o garoto de camisa rosa, talvez, não poderia dizer a todos que sou homossexual, não fossem elas, talvez não teríamos representatividade, mesmo que pequena, no Congresso, não fossem elas, talvez não poderíamos realizar o nosso matrimônio civil. O garoto de pele morena orgulhou-se do que ouvira, Vejo que compreendeste-me, disse, a questão em si não é a quebra de leis gramaticais, mas a de todo o mundo, mudar o que deve ser mudado, Concordo, disse o garoto de camisa rosa, as pessoas são apáticas, preferem ficar a ver TV e dizer que o lugar donde vivem é ruim, a ter de desligar o aparelho e sair às ruas para fazer mudança, Sim, procede-se dessa maneira, as pessoas deixam o espírito crítico de lado e não confrontam o que está errado, preferem manterem-se no status quo. O garoto de camisa rosa, mesmo mudando de opinião, aqui, em nossa história, não pode ser chamado de hipócrita, isto porque ele ouvira argumentos que o fizera refletir. A mudança não veio do nada. Sendo assim, disse ele, Não pensas que, depois de as pessoas ouvirem sobre mudanças, elas não mudam, assim como eu o fiz, Não, não mudam, sempre haverá pessoas que não mudarão, mas se uma ou duas mudarem, já é o suficiente, respondeu-lhe o garoto de pele morena. O fim da aula chegara, e, com ela, o restante da sala, digo, das pessoas que estavam na sala,quiseram saber que texto era aquele que o garoto de pele morena escrevera, e, após lê-lo, quem sabe, refletir e mudar.Para isso, saíram ao lado dele. Ao caro leitor, peço perdão, não foram todas as pessoas que lá estavam, já que o professor teve de ir para a sala dos professores, como pede o protocolo. Sobre as pessoas que estavam a pintar a unha, elas, por sua vez, também estavam mudadas. Elas não, as unhas, amareladas por conta esmalte, o senso crítico continuava o mesmo. Nem todos querem mudar ou ser mudados. Fecha-se a porta e apagam-se as luzes da sala grande.

*Nota sobre o texto: A crônica desta edição homenageia José Saramago, autor que faleceu em 18 de junho de 2010, aos 87 anos. O escritor ficou conhecido por conta de sua literatura crítica em relação ao mundo, e por não utilizar-se da pontuação convencional. A crônica tentou ser autoexplicativa em relação à escrita, já se utilizando dos elementos que Saramago utilizava, ou deixava de utilizar, como aspas, dois pontos e ponto e vírgula. Como o autor era de Portugal, por vezes foram utilizadas palavras daquele país, como “rapariga”. Além de tempos verbais que alternavam, ora entre o português do Brasil, e o português de Portugal. Também optou-se por não dar nomes aos personagens assim como o autor fizera nas obras Ensaio sobre a cegueira (1995), Ensaio sobre a lucidez (2004) e As intermitências da morte (2005).

PLURIVERSOS 23


[ CONTO ]

Lucas

F

oi há pouco mais de um mês. Sei por que ainda não havia passado o Carnaval, mas

as crianças já estavam de volta à escola. E sei, porque nunca poderia esquecer o dia em que vi aqueles olhos pela primeira vez. Era franzino, com grandes óculos se equilibrando sobre o nariz, que tendia levemente para a direita. Os olhos eram rodeados por muitos cílios, mais cílios do que eu jamais vira rodear os olhos de alguém. Era claro, com pequenas veiazinhas roxas a se destacarem em torno dos olhos fundos e das narinas nervosas. Tinha os lábios finos e velozes, que nunca ficavam parados, rodeados por uns fiapos de barba e algumas cicatrizes miúdas. E, sentado, balançava os pés irritantemente, estalando os dedos das mãos ou roendo os cantinhos das unhas. Pedi que a secretária o mandasse entrar, ele veio de cabeça baixa, meio trêmulo e curvado. Sentou com a cadeira um pouco distante de minha mesa e mordia nervosamente o lábio inferior, olhando para um canto indefinido da mesa. Ficou por uns dois minutos assim, sem me dirigir palavra. Até que decidi agir. - Então você é o Lucas? Nervosamente, como se o início da conversa pudesse impedi-lo, a partir daquele momento, de fugir, o rapaz se ajeitou na cadeira. - Sou. Isso mesmo. - E no que eu posso te ajudar, Lucas? O rapaz continuava mordendo o lábio inferior, relutava. Respirava mais forte e rápido, e seus olhos moviam-se rapidamente de um ponto a outro na sala, como se temesse que alguém o visse ou escutasse. - Eu... eu acho que estou doente. - É? E por que você acha isso?

24 PLURIVERSOS

Por Thays Pretti

- Começou aos poucos, sabe? Primeiro eu comecei a não conseguir fazer direito a barba. Me machucava com frequência porque não conseguia ver direito o que eu estava fazendo. Depois, além de não conseguir fazer a barba, não conseguia escolher roupas para vestir, porque não conseguia ver e julgar o que me caia bem. Pensei que fosse um problema de visão, fui ao oftalmologista, e o máximo que ele me deu foram esses óculos de descanso. E, de fato, eu realmente enxergo muito bem. Só não consigo... Só não consigo... - O que, Lucas, o que você não consegue? estimulei. - Só não consigo me ver. De pouco a pouco deixei de conseguir me enxergar no espelho, a ponto de não ser mais capaz de cuidados básicos comigo mesmo. Eu não entendo, não entendo. Por isso eu vim te ver. Acho que posso estar ficando maluco. - Você já conversou com alguém a esse respeito? Lucas começou a abrir e fechar as mãos em silêncio. Depois, apertou os joelhos e pousou sobre eles as mãos ossudas. O corpo todo se postava tenso, nada de encosto, nada de tranquilidade. - Não, não posso, não poderia. Ninguém ia acreditar. Diriam qualquer coisa e não acreditariam, me internariam. - E então você decidiu me ver sem que eles soubessem. - Isso, mas tem mais uma coisa que me fez vir. Sempre trêmulo, sempre com movimentos metódicos e calculados, sempre com as narinas muito abertas, Lucas pegou uma mochila que estava ao seu lado, no chão, na qual eu ainda não havia reparado. Dela tirou um envelope amarelo, consideravelmente cheio, amarrado com um cordão. Desatou o nó com um cuidado que sua


tremedeira não parecia possibilitar, e me entregou um montinho de fotografias. - Estou noivo, doutora. E minha noiva queria fazer um book fotográfico para comemorar. Eu não gosto de fotografias, detesto posar para fotos porque me sinto... me sinto... como vou dizer?... irreal. Me sinto patético e irreal. Mas eu gosto muito dela, doutora, e decidi topar. Por ela. Pelo que eu sinto por ela. E veja só! Apontou para o monte de fotos. Nelas, uma moça bonita, com aspecto quase tão frágil quanto o de Lucas, sorria nupcialmente. Os dentes eram grandes e brancos, o sorriso se abria por inteiro, deixando em suas extremidades duas bochechinhas redondas e rosadas. Mas, em todas as fotos, ela estava sozinha. - Mas você não disse que havia topado tirar as fotos com ela? - Aí é que tá, doutora. Eu tirei. Era para eu estar em todas essas fotos. Mas, por algum motivo, não estou. - Isso é realmente muito intrigante, mas acha que é caso para uma psicóloga? - Pensei que estivesse imaginando. Mas, pelo jeito, é real. Pelo jeito, eu realmente não estou nessas fotos. - Sim, sim.... E, vendo agora, as posições de sua noiva nessas fotos realmente sugerem que deveria ter mais alguém nelas. Ela abraça o vazio, recosta-se em alguém que não se pode ver. - Pois então! Será que você pode me ajudar? Será que alguém pode me ajudar? Aqueles bonitos olhos tornaram-se suplicantes.Pequenas lágrimas se formavam, desejando escorrer, enquanto o que sobrava do velho e roto orgulho masculino de Lucas forçava-as a permanecerem. Mas eu não sabia o que fazer. Nunca antes tinha ouvido falar de um caso como aquele. E nunca antes havia lido na literatura científica qualquer menção que pudesse ser relacionada a um caso como esse. Decidi, pelo menos, realizar alguns testes. - Lucas, sinceramente, ainda não sei exatamente como agir. Mas quero fazer uns testes. Tenho aqui um espelho e gostaria que se postasse diante dele, para que eu veja se é só você que não se enxerga ou se sua

imagem realmente desapareceu. - Mas... as fotos não são a prova? - Sim, sim, mas vamos testar de modos diferentes. Ao dizer isso, guiei-o até o banheiro do consultório. Lucas, com seu jeito esquelético de andar, me seguiu cabisbaixo. Postou-se na frente do espelho, com uma réstia de esperança de conseguir se enxergar. Vi quando essa flama apagou dentro de seus olhos, ao olhar para o espelho e ver o mesmo vazio.

Eu mesma não acreditei naquilo. Eu via Lucas, estava a dois palmos de mim, podia tocá-lo se quisesse e, no entanto, não havia reflexo algum no espelho. Eu me via, com os óculos que me davam um ar mais intelectual e maduro, mas nada mais do que isso. Ao meu lado, um espaço vazio. Pensei numa alternativa. Tirei do bolso o telefone celular. Sorte minha que esse último que comprei tinha câmera integrada, mesmo que não fosse de muita qualidade, porque não sei onde arrumaria uma câmera naquela hora. Tirei três fotos de Lucas, sequencialmente, e tudo o que me apareceu foi o fundo da cena. Lucas olhava para mim desconsolado. Talvez estivesse se sentindo tão vazio quanto sua fotografia.

PLURIVERSOS 25


Não sei dizer. Mas seu olhar realmente parecia um abismo agora. Já não tão trêmulo, cansado, entregue, Lucas voltou para a cadeira onde estava. Deixou-se cair nela, menos tenso, menos hesitante. Mas, no caso dele, isso não era nada positivo. Era sinal de uma tristeza e sentimento de derrota muito grandes. - Não se dê por vencido, Lucas. - Pensei que eu pudesse ter um problema. Psicológico, psiquiátrico, não sei. Pensei que pudesse fazer uma terapia, tomar alguns remédios e PUF! voltar a ver minha cara no espelho. Porque seria coisa daqui, ó -apontou para a cabeça - do meu cérebro, da minha mente. Mas agora, acho que é algo bem maior. Alguma doença, alguma anormalia. Talvez eu esteja morrendo. Talvez tenha perdido minha alma. - Mas quem foi que disse que a alma, seja lá o que ela for, precisa ser refletida no espelho? Lucas, isso deve ser algo simples. Como nunca aconteceu, talvez a gente precise estudar antes de encontrar uma resposta, mas não se deixe abater desse jeito. Por ora, tente evitar espelhos, fotografias, filmagens, coisas do gênero. Vou estudar, conversar com outros especialistas, e vamos achar um jeito de resolver isso. Não se preocupe. Lucas, naquele momento, pareceu sorrir. Ajeitou-se na cadeira, ficando numa posição menos derrotista. Pegou uma caneta sobre a mesa e começou a rodar entre os dedos, em silêncio. Passou cinco minutos assim, e voltei também, enfim, a ocupar minha cadeira. Depois desse tempo, Lucas levantou os olhos para mim, levantou-se e agradeceu, apertando minha mão com uma firmeza que eu não achava que poderia ser encontrada naquele espírito débil. Lucas caminhou quão firmemente seu corpo desengonçado lhe permitia, despediu-se de minha secretária, marcando um retorno para dali uma semana. Mas não voltou. Não voltou nem dali a uma semana, nem nunca mais. Mas eu não o esquecera. Conversara com médicos, pesquisara em livros e artigos, e nada havia encontrado para explicar aquela situação. Criava hipóteses e planejava estratégias para curá-lo ou para

26 PLURIVERSOS

amenizar seu problema, mas ele não voltou para ser curado. Eu, como disse, não o esqueci por nem um momento. Porém, hoje, mais fortemente do que nunca, essa história me veio à mente, por ocasião de um fato ocorrido esta tarde. Antes de sair do consultório para almoçar olheime, como de costume, ao espelho. Senti-me empalidecida e prometi a mim mesma que compraria algumas vitaminas. A verdade é que desde que conhecera Lucas fui assombrada pela possibilidade de também eu desaparecer, igualmente sem motivo, igualmente de um momento para o outro. Debatia-me nessa possibilidade, e passei a me olhar mais vezes no espelho, e a tirar dezenas de fotos de mim mesma, para ver se tudo continuava como devia ser. Hoje, em decorrência da palidez, decidi mudar meu trajeto comum e procurar uma farmácia. A pé, sim, já que estava no centro, e se fosse de carro demoraria o dobro do tempo. Ao atravessar uma avenida movimentada, esbarrei com um homem alto e magro, e ele derrubou alguns papéis. Parei para ajudá-lo no mesmo momento, e notei os olhos e narinas, e o nariz que tendia levemente para a direita, e os grandes e numerosos cílios que circundavam seu olhar. Por um minuto fiquei observando-o, sem conseguir reconhecê-lo, por mais esforço que fizesse, e por mais que soubesse já ter visto aqueles detalhes em outro rosto. O homem também me olhou, sem esboçar reconhecimento. Vestia-se elegantemente, como um homem de negócios. Estava, ao meu ver, perfeitamente adequado ao cenário, e eu juraria que, se o fotografasse, ele apareceria ali, no meio da foto, magro mas completo, com todas suas cores e formas. Vendo que eu insistia em minha observação, o homem pegou o papel que ainda estava em minha mão, agradeceu e continuou seu caminho. E eu poderia jurar ter visto, no fundo mais fundo do seu olhar, um rapaz magricela que não se adequava ao mundo à sua volta. Depois que ele se foi, fiquei pensando que deveria ter olhado para sua mão, para ver se estava noivo, se já havia casado, se as mãos eram as mesmas


mãos ossudas de Lucas. Não sei. Penso que talvez Lucas possa até ter desaparecido... Penso também que, talvez, isso de ter uma imagem no espelho não seja assim tão positivo, talvez seja uma espécie de aprisionamento, mas uma prisão que nos é cotidiana, uma prisão que talvez seja tão mais familiar do que nossa própria alma. De repente, imaginei que se eu deixasse de ter uma imagem no espelho, eu pudesse ser mais livre. Pensei que não estar ali talvez representasse todo um mundo sem limitações e convenções, sem amarras. Caminhava rápido pela rua, esbarrava em pessoas e coisas, cega, desvairada, cheia da esperança de uma liberdade ainda não inventada, uma liberdade para a qual ainda não existiam termos conhecidos, nem medidas, nem limites. Uma liberdade toda virgem, toda selvagem e virgem, toda desbravável, e que me dava medo por ser assim tão puramente desconhecida e bela, e neutra, e sem classificações. Voltei ao consultório com tudo isso quase explodindo dentro do meu peito e fui direto para o banheiro. Entrei com os olhos muito apertados, a respiração forte, o suor escorrendo por detrás da nuca. Abri os olhos de uma vez para me olhar no espelho. Mas eu ainda estava ali...

PLURIVERSOS 27


[ POESIA ]

Estacionada

Na minha cidade Há muitas árvores

Por Marco Hruschka

Felizmente, Árvores ainda há Mas há tantos carros Quanto árvores, E de moto nem sequer vou falar Há muitos carros, Que ficam rodando Todos por aí Sem parada, Pois parada já não há, Salvo quando, De esquina em esquina, Aparece um sinal E o vermelho parece não findar Pelos escapamentos, gás! Fumaças espessas De máquinas apressadas De motoristas mal-educados Buzinas sem sentido, Insanas, insalubres, imbecis! Coitados dos pedestres, Nem nas faixas podem passar, Os carros não param, Pois não estão acostumados A esperar O mundo tem pressa... O mundo está com pressa de acabar! Muitos dos que vão Não voltam mais E a vida continua a mesma, Num ritmo sem escrúpulos, Sem lugar onde parar, Sem pausa certa, sem hesitar, Tudo o que eu queria Era poder mudar, Tudo o que eu queria Era poder, enfim, parar

28 PLURIVERSOS

Marco Hruschka nasceu em Ivaiporã - PR na data de 26 de agosto de 1986. Mas foi em Maringá - PR que desenvolveu a arte da escrita, cidade na qual habita atualmente. É graduado em Letras - Português/Francês pela Universidade Estadual de Maringá - UEM. Leciona Língua Francesa e é pesquisador literário. Seus textos (poemas, contos e reflexões) tratam o amor de maneira profunda e peculiar. Entretanto, também aborda temas como a natureza, a sociedade, relacionamentos, o tempo, a religião, a vida e a morte. Publicou em 2010 seu primeiro livro de poemas, chamado "Tentação".


[ CONTO ]

Da Verdade e das Lendas Por Marcos Peres

N

ão direi da Maringá real. Também não pretendo narrar a Maringá literária, platônica e idealizada.

Quero, como um equilibrista, justificar-me na tênue linha que liga o real ao fantástico. Quero me perder nos limites geográficos que delimitam a República da Realidade e o Império dos Sonhos. Quero, em suma, acreditar que a realidade pode ser fantástica ou que o que a fantasia pode ser real, indistintamente. Quero reproduzir a real (ou imaginária) história de Nelson Alexandre que conta as desventuras de uma moça e de seu afiado sexo que decepou como os jacobinos tantas cabeças em Maringá. A fraternidade, sim, é vermelha! Quero dizer da seita existente (será?) que prefigura que os poderes do executivo, legislativo e judiciário foram propositalmente colocados em um triângulo equilátero, sendo que, em seu centro, há fincada apenas uma Catedral em formato de querida Sputnik. Quero dizer do poeta maringaense noturno e errante que brada que foi além de Sócrates; que, enquanto o grego asseverou o memorial “Só sei que nada sei”, ele, além, afirma: “eu nem sei se nada sei!”. “Bravo, Viva!”, respondo-o. Não é todo dia que se encontra alguém que foi além de Sócrates. Digo, principalmente, da fantástica vida e morte de João Boaventura que pode ser comprovada por quem tiver paciência e perspicácia ao revirar o Cemitério Municipal de Maringá. João Lopes Boaventura veio de Penápolis em 67, como outros que encontraram em Maringá um incerto oásis no meio de tantas armas e repressões.

Filiou-se a uma república de hippies literários, institucionalizada e fundada como República Casa de Epicuro. Conheço uma sobrevivente (que preservarei a autoria) desta casa, que assim afirma: “Nossa filosofia era hedonista e existencialista; não havia espaço para política e conjuntura internacional, em nossa libertina língua, era sinônimo de sexo com gringo”. Tinham um pacto silencioso com o sistema: a República não se chocaria com os militares e, por sua vez, estes fariam vistas grossas à Casa. E, por um tempo, o objetivo foi alcançado: havia sim as drogas e a devassidão, mas como pretexto para a existência de uma casa feita de amor aos livros. Boaventura tinha uma mente poderosa: respirava Sartre, almoçava Schopenhauer, arrotava Camus. Logo se destacou com um livro existencialista. Anos depois, escreveu um romance permeado de realismo mágico. Depois, silenciou-se. Disse que se preparava para seu terceiro livro o livro que mudaria a sua vida. Estava certo. O argumento era singelo, mas poderoso: propôs-se a narrar um ato capaz de retirar a melancolia do mundo, tal como o emplastro de Brás Cubas. No entanto, para Boaventura, o mal não se resolveria com um remédio, mas com um ato simples, realizado por qualquer pessoa. Apesar de estar rodeado do caos, o mundo mental de Boaventura era organizado. Tinha em sua mente arranjado todos os capítulos e a psicologia do seu romance. E a ideia não se transformou em história porque, logo no princípio, João foi atropelado. No acidente, bateu forte com a cabeça no chão e ficou meses internado em estado grave. O médico concluiu que o forte acidente afetou seu cérebro. Uma curta entrevista confirmou: João

PLURIVERSOS 29


perdeu os últimos 12 anos de memória. Desse tempo, não se lembrava de nada: dos seus livros, dos seus tantos amores, da vida insensata que viveu. As consequências são previstas: João não se recordava dos últimos anos. Logo, não se recordava do seu inacabado livro. Assim os membros da República concluíram idealmente que João retrocedera 12 anos e, portanto, para concluir o livro, devia vive-los novamente: os mesmos amores, as mesmas influências, os mesmo diálogos. Apenas reproduzindo de maneira integral a concatenação de atos, influências e pensamentos é que se chegaria ao exato instante em que floresceu a ideia do livro. A república foi arrumada e a farsa instalada. Os atores por vezes eram flagrados em má atuação: o acidente tirara a memória, não o discernimento de João. Já estavam todos cansados de uma vida repleta de álcool e libertinagem em nome da literatura e logo o teatro foi fatalmente desvendado. Boaventura descobriu tudo. Após, piorou a olhos vistos. Começou a enxergar todos como inimigos, como expectadores de um livro que estava 12 anos à frente de seu entendimento. Febres o abrasavam enquanto devaneava que o autor do livro inacabado era o mesmo que agora tentava tirar sua vida. Em um ano, um câncer o matou e foi sepultado no cemitério municipal com uma inscrição de um filósofo grego. Aos duvidosos da história narrada, rogo que façam uma visita ao cemitério municipal. Se for ficção, não existirá nenhum Boaventura. Se realidade, haverá a inscrição de Boaventura entre os tantos que ali residem... Ou pode ser que a digitalização do cadastro dos hóspedes do cemitério tenha olvidado os mais antigos... Mas, mesmo assim, a lápide continua lá: pequena, modesta e com a frase “o tempo é o mais sábio dos conselheiros” de Plutarco. Ficção? Realidade? Não sei... Aliás: nem sei se nada sei.

30 PLURIVERSOS

Marcos Peres Gomes Filho nasceu em 19 de outubro de 1984 em Maringá/PR e morou sua infância em Astorga/PR. É bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Maringá e, atualmente, é servidor público do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. É o vencedor do Prêmio SESC de Literatura 2012/13 com o romance O Evangelho segundo Hitler.


[ CONTO ]

“Abrahel”

Os últimos relatos de Izadora

Por Domenium

A

solidão é um cárcere sem grades que nos aprisiona em infelizes crepúsculos de dias adormecidos no cruel leito do tempo. O coração pesado, carrega consigo os solfejos da inexistência, dissipando seu amargo fel pelas artérias, julgando-nos incapaz de amar novamente. Fui tomada por tais sensações por longos 40 anos, deixando o frio espectro da amargura dominar as sensíveis razões de meu espírito. Mas decidi, procurá-lo, enterrar o orgulho que me devorava, despertar a sensibilidade lívida que me fez amá-lo como único ser capaz de completar minh' alma. Após longa busca, contando com a ajuda dos telejornais e programas de TV encontrei vestígios do meu único bem-viver. Morava só em uma velha casa de madeira, rodeada por árvores frutíferas, decrépitas, enraizadas em um vasto quintal de terra. Sem anúncio adentrei a velha casa, seguiam-me as luzes das câmeras de TV, alvoroçadas para registrar o amor que o tempo separou. Caminhei através de cômodos escuros, ornados por velas apagadas e cortinas carcomidas. Mas foi somente na sala principal que meus olhos ficaram turvos de lágrimas. O inimaginável havia tomado formas oblíquas a minha razão. Entre velas escarlates de uma cintilante chama infernal, vislumbrei a funesta estátua de barro de um animalesco ser cornudo. Próximo a escultura demoníaca, sentado em uma poltrona, só pude ver a nuca e os cabelos grisalhos de um cadáver que o tempo tratou de esquecer. Era o meu amor, morrerá só, contemplando o próprio reflexo diante de um espelho empoeirado. E sobre o seu colo havia um estranho bilhete, já amarelado pelo tempo e angústias dos últimos dias. Assim dizia os seguintes versos trêmulos:

“Mestre cornudo, filho de Abrahel*, confessar-te-ei! Sinto este tal amor que me dilacera sem o peito rasgar. Quero amar sem sofrer, quero tê-la sem ter, contemplála sem a presença me magoar. Livra-me deste martírio! Entrego-me ao exílio de teus caprichos, traga-me o último suspiro. O beijo cadavérico da senhora morte” Em letras escarlates, vivas como carne virgem em sangria, encontrei no verso do nefasto bilhete a resposta... “Terás o que queres pelo reles preço de tua alma. Ao contemplar-te no espelho não verás as feições de teu rosto, mas sim, a beleza da face de tua amada Izadora. Mesmo que outrora só viveste de ranger de dentes, ofereço-te agora, todos os momentos de bem-ventura até que o último suspiro ofusque o brilho de teus olhos diante da aurora”. Chorei diante tal maldição, inclusive a do tempo. Tempo, ceifador que nos risca face com a medida das horas e dilui nosso orgulho em indigestas memórias. Só o pó se faz presente agora. Sobre os móveis e retratos. Em meus restos mortais. Aqueles sentimentos, nunca mais, só pó, ouviste Abrahel, só o pó... * De acordo com o livro "Demonolatriae Libri" do sádico Nicolás Remy (1530-1616) magistrado francês que se tornou famoso como caçador de bruxas comparável a Jean Bodin e De Lancre; Abrahel é um súcubos que se dedica a infernizar os pobres de espírito, principalmente os camponeses. O livro em questão se tornou uma fonte de referência à “luta contra o mal” iniciada pela Santa Igreja Católica, substituindo outra obra muito conhecida “Malleus Maleficarum (O Martelo das Bruxas, 1487)”.

Domenium é o pseudônimo de Márcio Domenes. Alguém que assistiu filmes demais, leus coisas estranhas e gosta de coisas incomuns. Publicitário, Fotógrafo e amante do universo fantástico.

PLURIVERSOS 31


[ POESIA ]

Ecos Por FĂĄbio Fernandes Palavras e sons sementes e frutos. humanos a esmo pequenos eunucos que plantam e colhem a vida voraz que vivem e morrem em guerra e em paz Na roda gigante valsa do tempo formigas famintas buscando alimento barrigas vazias a todo momento almas sedentas feliz sofrimento Homens humanos persas espartanos russos americanos indĂşs e ciganos incas cubanos fulanos ciclanos tantos e tantos! ledos enganos. Sois simples joguetes complexos inventos pra lua foguetes mas sarnas nos becos. Incapazes alternativas ineficazes Indigentes. Sois simples joguetes.

32 PLURIVERSOS


São apenas gerados espontânea vontade. São santos louvados santa entidade Papas paparicados aparente verdade. O pecado é perene a ciência é vaidade Sou simples joguete com letras na mão estilhaços de alma buscando o chão. Anônimo operário sequer feio ou bonito preocupado com horário me lembrando do infinito ...

PLURIVERSOS33


[ CONTO ]

Maringay Por Luiz Fernando Cardoso

Q

uando Luke chegou à choperia preferida de oito entre dez solteiros de Maringá, com 30 minutos de atraso em relação ao combinado, os amigos Lelo e Rita já se encaminhavam para a segunda rodada: ele de chope e ela, de conhaque. Ela o de sempre e ele, nem tanto. Nos dois últimos encontros, Lelo havia preterido álcool por um suco de morango com leite. Cadê a namorada Luke? perguntou Rita. Pensei que fosse nos apresentar ela hoje. Ela está na faculdade, mas não faltarão oportunidades respondeu o atrasado. Sei brother! É a quinta vez que você diz isso. Tua namorada está que nem o Bin Laden, a gente sempre ouve falar, mas nunca ninguém viu brincou Lelo. Sorrindo, os três e brindaram a muitos outros happy hour juntos. A choperia estava praticamente lotada, algo incomum para uma quarta-feira de final de mês, quando boa parte dos trabalhadores já havia torrado o salário do mês pagando contas. Uma mesa, em especial, despertou a atenção dos dois rapazes. Duas moças, uma loira gordinha (no diminutivo para ser simpático) e uma morena de corpo escultural pareciam aguardar a chegada de seus pares. O som ambiente, com música ao vivo, impossibilitava ouvir o que conversaram. Larga mão de ouvir a conversa alheia, Luke reclamou Rita. Que é isso Rita indagou Lelo. Pouco antes de o Luke chegar era você que queria saber o que os caras ali da mesa ao fundo falavam.

34 PLURIVERSOS

E por que Rita iria querer ouvir a conversa deles? questionou Luke. Porque ela acha que o sujeito com gel no cabelo está dando moral pra ela respondeu Lelo, com a devida entonação no “acha”. Ele está me encarando sim garantiu a amiga de olhos verdes e sorriso maroto. Sem chance Rita. Você é linda, só que os caras são gays avaliou Luke. Um homem pode não reparar, a julgar pela aparência, quando uma mulher prefere pererecas a sapos, mas costuma acertar com precisão quando outro homem é gay. Na teoria de Luke, isso é possível menos por causa dos trejeitos, mais por conta da nítida falta de interesse deles pelas curvas femininas. Parafraseando o escritor Luis Fernando Veríssimo, “Homem que é homem (HQEH)” repara atento um par de coxas e um belo rebolado como se seus olhos dissessem: “gos-tosa”; homossexual repara os mesmos atributos dizendo em pensamento: “pi-ran-ha”. Ou às vezes: "va-ca o-fere-ci-da". Rita desdenhou da teoria. Você diz isso, Luke, porque está com ciúmes. Está bem, Rita, não está mais aqui quem falou. Vinte infindáveis minutos depois de feito o pedido, o garçom trouxe a picanha na tábua. Demora de praxe, para forçar a clientela a beber mais. Na mesa ao lado, loira cheinha e morena gatinha ainda aguardavam por seus pares. HQEH, vale lembrar, não deixa mulher esperando. Luke e Lelo, com muito assunto para pôr em dia, haviam pedido um baldinho de cerveja. Rita, já na ânsia


para inflar os pulmões com fumaça, continuava trocando olhares com o sujeito da mesa ao fundo. O gostosinho de preto foi lá fora fumar. Vou aproveitar pra puxar conversa com ele disse Rita. Isso não está certo. É ele quem tem dar em cima de você, não o contrário protestou Lelo. Até concordo, mas vou abrir uma exceção. Faz um mês que não faço sexo respondeu a amiga, num ataque de sinceridade “patrocinado” por três doses de conhaque. Deus, por que é que uma coisa dessas nunca acontece comigo? brincou Luke. Nunca nenhuma loira louca pra transar deu em cima de mim. Sempre tomei a iniciativa, quase sempre pra levar fora acrescentou, já com Rita a caminho do encontro com o playboy. Deus, porque é que ela não pede minha ajuda para apagar o fogo. Tenho vocação para bombeiro emendou Lelo, de olho no rebolado. Da posição onde estavam, Lelo ficava de costas para o flerte e Luke, de frente para o “crime”, narrava o episódio para o amigo: - Cara, ela esqueceu o isqueiro só para ter como puxar conversa com o sujeito de preto / Bah, agora passou a mão no braço dele / Vixi, ele mexeu no cabelo dela, vai ver eu estava errado e ele não é tão gay assim / Opa, o cabeludinho que estava com ele na mesa saiu para fumar também. Estranho / Calma aí, cara, já te digo o que é estranho / Caramba, tu não vais acreditar no que estou vendo... Luke não conseguiu prosseguir com a narrativa. Embora o esforço para não chamar a atenção dos vizinhos de mesa, engasgou-se num ataque de riso. O que houve brother? Diga logo. há-há-há... Vai, diga lá o que você está vendo. Veja com seus próprios olhos. O cabeludinho e o playboy com topete moldado a gel eram mais “amigos” do que Rita e seu maço de cigarros. O sujeito de preto passou a acariciar os cabelos do companheiro, que retribuiu o carinho ao apalpar o traseiro do “escolhido” de Rita. Ela, visivelmente sem

jeito e irritada, dava baforadas sem tirar a bomba de nicotina da boca. A teoria de Luke estava certa. A dupla assistia de longe ao momento cômico quando, de repente, foi surpreendida pela sinceridade de um pobre andarilho com “bafo de onça”. Uma moedinha pra me ajudar, por favor pediu o maltrapilho. Sei, só falta dizer que o dinheiro é para comprar leite para as crianças resmungou Lelo. Não, é para comprar uma cachacinha respondeu. Homens são, em sua maioria, seres ambiciosos. Trabalham pelo status, pelo dinheiro e pelo que o status e o dinheiro podem proporcionar. Há quem diga que, na pujante Maringá, mais pelo status do que pelo dinheiro. Com o suor do cartão-ponto se pode beber com os amigos, viajar nas férias, comprar um carro para aumentar as chances de sucesso nas paqueras e, tendo sucesso, levar a namorada para comer... num bom restaurante, claro. Às vezes, algum vício surge para roubar do homem seus sonhos, o emprego, o carro e, com o cartão de crédito cancelado, até a namorada. Num estágio mais avançado do vício, quando a família se cansa de ajudar e decide dar as costas, resta ao bebum apenas a companhia de seu fiel vira-lata. O único prazer, então, além de fazer "justiça" com as próprias mãos, é a "marvada". Bah, quanta sinceridade! exclamou Luke Toma aqui um trocado. Concordo, isso aqui é pra te ajudar com a cachaça disse Lelo, contribuindo também com dois reais. Deus abençoe vocês agradeceu o pinguço. O que vale é a atitude, não o valor da oferta. Leitores da bíblia nas horas (bem) vagas, o católico Lelo e o protestante Luke conheciam aquela passagem em que Jesus valorizara a oferta da senhora pobre, que contribuíra com pouco, mas o fizera de coração. Feliz, o pinguço rumou para algum boteco com seus quatro reais. Chateada, Rita retornou da mal sucedida paquera, com alguns cigarros a menos no maço. Certamente, o

PLURIVERSOS 35


rapaz de preto NÃO daria fim ao período de “seca” dela. Agora entendo por que chamam Maringá de Maringay reclamou Rita. Viu só no que dá trocar os amigos aqui por um desconhecido comentou Lelo, rindo da situação. Para o teu governo, Lelo, o casalzinho lá quis saber se você é gay. Parece que eles têm um amigo solteiro disse Rita. E o que você respondeu? Disse que você é muito gay, que você está solteiro e que amaria companhia no fim de semana respondeu Rita. Viu só, brother, dá nisso ficar pedindo suco de morango com leite por aí disse Luke. Na mesa ao lado, loira e morena partiram sem beber metade das cervejas do balde. Nem sinal de seus pares. Evidente que a morena havia marcado o encontro à moda antiga: “leva um amigo que eu levo uma amiga”. Os pares devem ter desistido do encontro na entrada do bar, ao analisar a amiga loira de uma distância segura: Cara, tua mina trouxe para mim aquela loira com o triplo do meu tamanho? Sou muito teu amigo, mas isso é sacanagem deve ter dito o amigo do "amigo" da morena. E os pares deram meia-volta, abandonando as duas à própria sorte. Tem mulher que, com receio de perder a paquera para uma concorrente, só sai na noite com amiga feia. Aí, acabam as duas sozinhas e, pior, sem ninguém para bancar o baldinho de cerveja. Essa teoria, no entanto, não pôde ser comprovada naquela noite por falta de provas. Assim como as moças da mesa ao lado, Rita também quis ir embora. Mulheres bonitas e gostosas, sempre cortejadas, tendem a ficar irritadas quando tomam "toco". Nada impressionados com a brabeza alheia, Luke e Lelo fizeram questão de incluir Rita na divisão da conta. Não se paga a bebida de mulher que passa celular de HQEH para quem joga no outro time. Desde aquele dia, Lelo é acordado no meio da madrugada por telefonemas anônimos.

36 PLURIVERSOS


[ POESIA ]

Treze Por Alexandre Gaioto Se eu tivesse um revólver Mataria essa voz Tem uma voz na minha cabeça Uma voz que dá ordens Que não me deixa dormir Ela ecoa de um lado Ecoa de outro E nunca sai lá de dentro Feito um sonâmbulo Insone Rondando Se eu tivesse uma faca Cortaria o peito adentro Depois esfaquearia meu olho Talvez o direito primeiro Enquanto o sangue jorra descontrolado córnea afora Eu não esqueceria o pulso Só para garantir Se me restassem forças ainda deceparia meu pau (mas isso não prometo) Se eu tivesse uma chave De moto carro apartamento treminhão Eu a engoliria E tentaria engasgar Quantas vezes fosse necessário Um controle remoto talvez fosse mais eficiente Mas a voz não quer chave nem controle Ela quer algo preciso Eu preciso encontrar algo para a voz Ela manda balançar o braço desse jeito Se eu falo gritando assim ó a culpa é dela E ela diminui o tom olha só da minha voz quando bem quer E começa a gritar novamente Que não há nada nem alguém mais triste do que “O Cão” do Goya

PLURIVERSOS37


Exceto eu Que nada no mundo soa tão triste quanto os acordes de "Spiegel im Spiegel" do Arvo Pärt Exceto eu Ela não gosta de vocês de branco Nem do Gordão Gordão Aquele cara que agora dorme do meu lado né? Dormia? Que pena Gostei dele desde o início Eu Ela não Eles não se entenderam O gordão e a voz Gordo filha da puta ela me disse E ficou zunindo Zunindo Zunindo Até que eu tive que falar por ela Gordo filho da puta Gordo filho da puta Gordo filho da puta Depois ela mandou eu pular nele Pular e bater com os punhos fechados Não vá quebrar seus dedos Treze Pule e puxe a barba Treze Corte um pouco para mim Treze A ideia de furar o olho do gordo com os óculos dele? De quem mais seria? Duvido que ela pedirá desculpas Não Ela nunca me chama pelo nome Nunca quis tomar um chope comigo Nunca quis ficar de porre comigo Eu não passo de um número Treze é isso Treze aquilo Pega os óculos do Gordo Treze Pega os óculos e mete no olho dele Treze Agora Sabe o que ela tá dizendo?

38 PLURIVERSOS


Que vocês são idiotas Que a roupa de vocês é idiota Que vocês estão querendo mesmo é ver meu pau grande Babando decepado na guilhotina Ninguém mais aguenta o branco deles Treze fala para eles Treze Nessa sala nessas roupas no corredor no banheiro Se eu pudesse deixar a voz Você não acha que eu já teria saído daqui? E deixado ela vagando no meu lugar? Tudo o que eu quero é que ela cale a boca Quero parar de tomar esses remédios Me livrar dessa blusa escrota Que prende minhas mãos E só livra pernas e cabeça Aliás a voz está mandando eu levantar dessa cadeira Ficar de pé Saltar de ponta no chão E que se me mandarem para aquele quarto sozinho Novamente nessa semana Ela entra em todos vocês E faz ainda pior

Alexandre Gaioto, formado em Letras (UEM) e Jornalismo (CESUMAR), é repórter do jornal O Diário. Colaborou com os cadernos de cultura dos jornais Correio Braziliense, Jornal do Brasil, Zero Hora, Gazeta do Povo, Folha de Londrina e O Estado do Paraná.

PLURIVERSOS 39


[ MONÓLOGO/PEÇA ]

Desvaneios de Medéia Por Gabriela Fregoneis Primeira Parte Música Inicial

Eu tinha uma angústia. Ela me corroia. Então eu me sentei e escrevi... Simplesmente escrevi. Não era pra ser bonito Não era pra ser vendível. Era pra ser verdadeiro...e foi. Sou um espelho do mundo. Atrás dos deuses...há deuses. Atrás dos imperadores...imperadores. Atrás dos miseráveis...miseráveis. Atrás de mim... o vazio. Eu sou entre o nada e o ninguém. O eu que corre…o eu que fala…o eu que ninguém escuta...nem Eu! Eu sou boca...o Você é ouvido surdo. Eu sou boca sem voz. Falar pra quem? Eu não me escuto! Eu corro falando. A velocidade não pára...eu falo...falo..falo...falo... até não saber mais o que estou falando. A banalidade das palavras... Minha mente se manifesta pela boca...que defeca palavras. Palavras vazias...palavras sem sentido. Meu ouvido é privada minha memória esgoto! Meu corpo tem monstros. Monstros que detesto, mas que me alimentam todos os dias. São meus mon-outros. Outros que se juntam e que são eu. Eles gritam...me dilaceram... Eles compõem meu corpo grotesco... meus instintos se esvaziam Quero prender meu corpo Não quero ele disponível.

40 PLURIVERSOS

Estou morta Preciso morrer a cada dia...a morte me faz nascer. Eu me mato Me esqueço... Me sacrifico... Não quero viver todos os dias. Prefiro meu corpo vazio Vazado pelo nada...pelos meus monstros. Sou um animal corroído pelo tempo. Ele me desgasta aos poucos Criam buracos. Buracos que fazem vazar meus eus desconhecidos. É o choque com meus outros. Eu tento absorvê-los, mas eles escapam. Tenho o eu macho O eu fêmea Eles vivem em conflito. E eu deixo... Permito esta briga Por desejo de saber quem é o vencedor!!! Isso acontece sempre...sempre... Mas ninguém vence. Resultado: Sou constituída de dois eternos perdedores. Aparência...essência... PERDER... Me perco...me encontro...me esqueço... Me busco...me desafio...me mato.. Me mato em meus matos Renasço em flores e morro em seus espinhos! Vivo na minha sombra Me enveneno...me curo...me enlouqueço...me sano Me enclausuro em meu corpo comprimido...


Me drogo... Me drogo... Para esquecer minha mente! O corpo que toma comprimido e se torna comprimido. O corpo asfixia...a droga alivia Na loucura é que vem a sanidade Só uma verdadeira louca pode ser sã. Eu nasço morrendo Eu não sou minha Eu vivo na morte Eu morro todos os dias Eu nasço na união Eu morro na solidão Fiquei contra Édipo... ignorei seu complexo.. Agora Édipo chora. Suicidaram-me Medeia...

Segunda Parte Texto do suicídio..Artaud

Não fui costurada no mundo... estou na fenda...na fratura. Eu caio...e tenho o abismo. Onde estou quando estou no mundo?! Abram os jornais... Verão que sou unipresente!!! Tenho sempre um urubu comigo... a espera da minha morte. Sou um espelho do mundo... Dizem que as mulheres vivem uma vida sem perigos em casa, enquanto eles guerreiam com a lança. Pensam mal... Pois eu preferiria três vezes lutar com o escudo a parir uma única vez.

Terceira Parte Música... Pendurar bonecos de plástico de cabeça pra baixo em pano vermelho. Pelo menos 5... Enforcados.

O meu crime foi de legítima defesa! Podem acreditar! Tem pessoas que acreditam que não há nada que não possa ficar pior... Quem já pariu alguma vez, sabe disso. O TER anula meu SER. Eu escolhi ser... Penso logo existo...eu sou... Mas sou...impessoal!!!! Minha semente não floresce Meu fogo não queima Minha faca não corta Minha corda não me amarra. Meu sono não me faz dormir. Meu dia é noite. Meu coração é concreto. Meu amor é cólera! O amor é ferida em mim. As palavras de afeto...secreções que tentam curar minha cólera. E ela só aumentaaaa.... Daí eu escolhi jogar meus filhos para serem a fogueira de Joana D'arc. Morreram com êxito... O excesso de afeto e intimidade deixa o mundo sem graça. Se isso acontecesse, teríamos menos Van Gogh, Bacon... O pior é que a Medéia de Eurípedes não tinha como se prevenir da gravidez! Eu tive...mas não quis! Achei que de alguma maneira teria Jasão perto de mim até o último dia da minha vida! Lendário engano.... Eu me infectei de você... Você passou a ser meu HIV Jasão!! Eu sou o play de um filme de serial killer! Minha vida passou a ser resumida apenas como um episódio sangrento. E esse episódio está condenado a ser eternamente esse episódio.

PLURIVERSOS41


E a prova disso é que já se passaram anos...milênios... e nós continuamos nele... Medéias... Nunca terá fim!! É o destino... A menstruação me faz lembrar que eu sou mulher Que eu sou cruel... Que eu jorro sangue todo mês espontaneamente. Mas isso faz parte do ciclo Medéia!!! Eu não pedi para entrar no ciclo E vou punir cruelmente os deuses por isso. Acompanha o raciocínio Eu menstruo para depois ovular Para engravidar Para gerar... A preparação pro seu início já é trágica!! Se não, não seria sangue! Ou o sangue transmite alegria a alguém?!! Então seu fim, não pode ser diferente. Acreditar nesse amor uterino é a mesma coisa que acreditar num bêbado sujo deitado na esquina de um boteco cantando música Gospel e vendo as pessoas ao seu redor fingido que acreditam em toda essa baboseira. Você acredita? Nessa baboseira? RS...o ser humano sempre tentando entender suas limitações através dos deuses! Deuses....deuses. E as deusas cadê?!! Cadê aquelas que sangram...que jorram sangue??!! Fracas... elas não fazem nada pq não menstruam todo mês. Conseguiram sair do ciclo!!!! Porque eu não posso??!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! Eu sou obrigada?! Eu sou obrigada a ficar no ciclo??!!! Ahhhh se essas vadias superiores menstruassem, o universo seria outro!! Quem sabe os filhos realmente não viriam entregues pela Cegonha??!!! Acho o cúmulo o status de mulher canguru!! Isso não combina comigo. Um ser humano que carrega outro no ventre...isso é quase ficção científica! Alguém discorda?!

42 PLURIVERSOS

O mundo é cruel...difícil...pesado Ainda mais pra uma criança. Jamais colocaria uma pessoa que eu digo que amo mais que a mim mesma nesse mundo... Seria muito sádico pensar assim!! Então eu livro eles dessa dor. Desse fardo de viver... Eu mato...eu simplesmente os alivio da vida. E não acho que isso seja um crime! Olhem essa cena....FILME DE PARTO PROJETADO Agora eu pergunto: Alguém em alegria nasce chorando?!! Ou alguém acha que esse choro é de felicidade?! Nós choramos quando nascemos por medo! Medo do mundo...já nascemos amedrontados. E se vc não chorar, é anormalllll!! Quase que um bicho! Isso sem falar na depressão pós-parto. A sensação que eu tive quando tirei meus filhos de dentro de mim, é que eles levaram toda a minha alegria... me restando apenas tristeza...solidão... O cheiro....ahhh o cheiro de placenta com líquido amniótico é inesquecível!!! Foi maravilhoso sentir o cheiro de dentro de mim...cheiro que não poderia ser sentido se não pelo nascimento. Nascimento da ilusão da união... Isso sim é que é amor!! Poderia me matar...mas deixaria eles na mão. Então acabo livrando-os... e sacrificando a mim. É simples...como o direito ao aborto poderia ser simples. A questão é única: é querer ou não? Só...nada mais!!! Aí vem aquelas pessoas que dizem que a vida é doce... Doce?! É porque ela certamente não menstrua todo mês. Só pode ter sido um homem que inventou isso. Pq isso é invenção... Invenção tipo contos de fadas. Desculpe...eu não sou nenhuma princesinha que vive num reino encantado! Que tem o seu castelo... seu príncipe...


Esse mundo não se confere a mim. Ele não faz parte da minha realidade! Faz parte da sua?! Não sou criadora de pôneis cor de rosa!! Eu não sou forte o suficiente para viver com crianças vivas... Para compadecer do seu amor... Pra dividir momentos de ternura! Quando eu vejo que vou... fracassar eu mato O mundo me ensinou que não há espaço para perdedores. Enquanto os homens lutam na guerra.... eu luto em casa! Com a minha prole! Eu não nasci pra ser perdedora. E o filho faz vc se perder. E vc se perde a todo momento. Meus filhos...devolvam meu sangue de suas veias. Voltam para meu ventre como vísceras. O filho que tem um pedaço de vc...e um pedaço daquela pessoa que vc dizia que amava e que muitas vezes não está mais com vc. Vc achava que amava... mas que hj odeia. Deseja sua morte... Esse filho faz lembrar todos os dias que vc teve momentos falsos, com pessoas falsas. Pessoa que dizia que amava... Desse amor vcs entendem, mas o meu não?!! Frente a tudo isso, e a toda essa falsidade, a criança começa a ter problemas. “Não, mas isso não é problema da criança! Acho que vcs devem levar ela pro psicólogo”. Os pensamentos não são tratados, são dirigidos. Isso faz seu filho virar um bonequinho direcionador mental. “Não fale sobre os seus problemas meu querido. Resolva-os. Não pense em coisas negativas, mas nas positivas. É preciso construir um ambiente de energias boas, se não vc não vai atrair coisas interessantes”. Boneco...boneco capitalista do caralho! Que vai fazer vc comprar tudo que ele vê na frente. Tênis de última geração, Roupas de moda, computador nossa!!! cibernético e intelgalático...

E ai de vc se não conseguir pagar!!! Ele pára de te amar naquele momento! Eis o maior objeto de consumo emocional....filhos!! O pior é que a lei da “satisfação garantida ou seu dinheiro de volta” não se aplica aqui!! Ele vai depender de vc pro resto da sua vida...enquanto vc viver!! Decepções...dores...noites sem dormir. Marido que agora já é ex-marido, ausente. Completamente ausente. E vc tentando se fazer presente em todos os momentos da vida do seu filho. É triste não?! Ter filho parece sim ser algo tão lindo!!! Tão lindo... Mas só pra Barbie!!! Porque quando ela cansa de brincar disso, ela guarda. Joga fora. E Jasão, porque vcs não interrogam ele?! Ele me fez cometer o crime!! Ë Jasão... Meu corpo já não significa mais nada pra você. Queria ter te matado, mas o destino me impediu. Então matei os que nos ligavam... nossos filhos. Estou até pensando em substituí-los por cachorros... Quer que eu adote um pra vc?! hahahaha E eu sei que não há nada mais ofensivo para um homem do que não ter filhos. Um homem sem filho significa a morte da família...e eu matei aqueles que carregavam seu sangue. Sabia que já foi constatado que um filho é a aquisição mais cara que uma pessoa pode fazer na vida?!! Eles custam mais que um carro luxuoso por ano.... mais que uma viagem na volta ao mundo...mais que uma mansão!! Acho que sou egoísta demais para dividir minhas coisas com esses pequenos seres falantes e pedintes... Ter filhos significa diminuir a ambição pessoal.. Ter filhos é se expor num risco de vida... se jogar no abismo da ansiedade e do medo. Você é lamentável... Eu chego perto de vc, mas teu hálito carrega um fedor de cama alheia.

PLURIVERSOS43


Tivesse eu permanecido bicho, antes que meu homem me fizesse mulher. Querido Jasão... no meio das coxas a morte tem sua esperança. Vc é meu convidado de honra! Eu te convido a assistir de perto o teatro da minha morte... Estreou quando eu te conheci Jasão. Das tuas vísceras eu ainda quero trançar uma coroa. Meu gesto foi destinerrante, como diz Derrida. O gesto não chegou a seu destino...foi pra pessoa errada. Meus filhos. Eu fui desconstruída aos poucos...estou retornando ao pó. Filhos pra que te quero??!! Filhos pra que te quero?! Pra que te quero meus filhos?!! Mortos... independentes... aliviados!!! Lindos...lindos... Tentei ser forte...mas fracassei!! Acreditem...eu sou uma mulher sensível....e que amou demais! Eu fiz isso por amor!!! AMOR Eu me denunciei...EU! Eu nunca fui digna de mim. Eu me olho no espelho e não me reconheço... Lacan...eu não me reconheço. Quem sou eu?! Que imagem eu tenho de mim?! Sou a sombra que tenta existir...mas não existe luz! Jasão...a sua impassibilidade me gerou lágrimas de sangue. E Vc morrerá afogado nelas... Eu preciso pedir perdão?! À quem eu peço?! À Deus? À Jasão? Aos meus filhos?! À mim?! Eu peço perdão a mim?! Se for assim, eu me perdôo. Eu perdôo essa mãe difunta. Antes do Veredicto, eu quero dizer uma só coisa. É .. Agora me lembrei de Van Gogh... Ele dizia as seguintes sábias palavras: Quem dera me aceitasse como sou! E eu as repito...Quem dera me aceitassem como sou!!!

44 PLURIVERSOS

Com as minhas escolhas... Com as minhas fraquezas. Com o meu amor cruel.

Fatos reais: Projeção SITE TERRA

Francesa enterra oito recém-nascidos SITE JORNAL DO BRASIL

Mães que matam ou abandonam os filhos YOUTUBE

Mãe mata dois filhos em ritual macabro Mãe joga óleo fervente no filho de 9 anos Mãe deixa filho morrer de fome em Goiânia


[ CONSIDERAÇÕES FINAIS ]

Frank Scherschel arte da capa

Não perca a próxima edição da revista PluriVersos! A revista PluriVersos agradece a todos os colaboradores desta primeira edição. Muito obrigado a Ademir Demarchi, Fábio Fernandes, Gabi Fregoneis, João Oliveira, Luiz Fernando Cardozo, Marco Hruschka, Marcos Peres, Nelson Alexandre, Rael Toffolo, Thays Pretti, Victor Simião e Oscar Nakasato. Obrigado também a você leitor que fez o download contribuindo para que a nossa revista aconteça. Contamos com sua colaboração. Se você é um escritor amador ou profissional e deseja ver seu trabalho publicado aqui na pluriversos, envie um e-mail para revistapluriversos@gmail.com.

A imagem que ilustra a capa é uma fotografia do artista Frank Scherschel. Scherschel foi um dos principais fotógrafos da revista LIFE, registrando fatos memoráveis de nossa história como Segunda Guerra Mundial e a libertação de Paris. O registro intitulado como “Little girls playing with string puppets” é um retrato datado em 1946. A escolha foi devido à alusão ao poder da imaginação e seu princípio. Antes de escritores, somos crianças, utilizamos do verbo para recriar universos paralelos “adormecidos” na infância. Desta forma dialogamos com nosso íntimo e as inquietações da vida adulta. De fato apenas abandonamos os brinquedos para adotar a palavra como ferramenta criativa. Um escapismo que alimenta a alma e cultiva esperança. Só não deixamos de imaginar, explorar o que há além de nós. Isso é PluriVersos. Márcio Domenes

Até a próxima edição!

Editorial Organização, Revisão e Argumentação Luigi Ricciardi Diagramação, Criação e Arte Márcio Domenes Divulgação, Desenvolvimento e Produção Márcio Domenes e Luigi Ricciardi

Contato Facebook Www.facebook.com/Pluriversos E-mail revistapluriversos@gmail.com

45


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.