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Arrebatamentos e outros inventos

Jorge Ricardo Dias

poesia

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C Jorge Ricardo Dias

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos, seja por cópia xerográfica, sem a autorização prévia do autor.

Capa e projeto gráfico: Márcio Pereira Imagem do poema “Verbalizando”, interferência sobre obra do artista japonês, Shinichi Maruyama.

Impressão: O Lutador

Dias, Jorge Ricardo, 1954Arrebatamentos e outros inventos: poesia / Jorge Ricardo Dias. Rio de Janeiro, 2015. p. 132 1. Poesia brasileira. 2. Haikai. 3. Sonetos CDD-869.91 Índices para catálogo sistemático: 1. Poesia: Literatura brasileira 869.91

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Entre faltas e sobras minha poesia vive em obras

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Evoé, Jorge Ricardo Dias! Um pré-antigo na era do pós-moderno

O grande poeta Matsuó Bashô nos disse certa feita: - “Não procurem os antigos... e sim o que eles procuravam”. Por outro lado, tenho repetido muitas vezes que, nos tempos do pós-moderno, todo poeta, que merece assim ser chamado, é um pré-antigo. Por que? Simples de entender, o poético não é um valor fora dos preceitos em que a poesia tenha valor. Um poeta é aquele que, atendendo ao que o real não pode deixar de dar-lhe caminho, de encaminhá-lo e, desse modo, responder aos apelos deste mesmo real desenvolvendo e devolvendo a partir de sua sensibilidade, como criação, as possibilidades que lhe foram outorgadas desde o real, uma interferência neste mesmo real. Essa compreensão parece ter se desencaminhado em nossos dias. Desse modo, só numa tempo-espacialidade ancestral é que o poético é poético. O real se diz e ao se dizer nos obriga a dizê-lo conforme podemos. Se não fosse assim, deveríamos crer que o floricultor cria a flor quando, na verdade, originariamente, o que se deu foi o inverso: foi a flor que “inventou” tanto o floricultor quanto a floricultura. É a flor, como dizer-se e mostrar-se, que faz do floricultor aquele que é capaz de cultivá-la. A emergência da flor cria uma atividade que é cultura, que é κόσμος (kósmos), isto é, arranjo, ordenação, em última instância, mundo. Não há mundo sem real. É do real que advém o mundo. 7

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Mundo é a organização do real. A flor não se cultiva a si mesma, ela simplesmente é. E simplesmente ser não é simplesmente ser flor, é “apenas”, simplesmente, ser mesmo. Só ser. Flor, flower, fleur, Blume, Цветок (Tsvetok), enfim, cada uma dessas denominações dizendo ou aspectos aproximados, ou aspectos muito diferentes do que é uma flor, mas sempre aspectos, modos de presença da flor. O ser humano “só” pode fazer o que pode, responder aos apelos do real, como parte deste mesmo real. A flor é um ser não-humano que na pronúncia do humano se denomina flor em português e é denominada de outros modos por outros idiomas e/ou outras culturas. Se houver uma cultura que não conheça uma flor, esta é incapaz de ser denominada, mas tão logo seja descoberta ganha uma denominação advinda de uma parte do que ela flor tem de próprio, como, por exemplo, florescer, surgir, advir, devir, ou então, aprofundar-se em suas raízes, isto é, con-crescer, concretar-se, enfim concretizar-se. O homem fala da flor considerando sempre um modo de ela se mostrar e se dizer, antes de ser pronunciada pelo homem.* O real é tudo que é, o que se presentifica. É, assim, verdade enquanto o que se dá para o desvelamento que se desvela. Simultaneamente se vela, desvela e se revela. Assim, verdade é sempre uma instância pré-predicativa, antecedente a qualquer modalidade do julgamento, antecedente a qualquer δικἠ (justiça), antecedente a qualquer julgamento. Com o advento da predicação como verdade, na passagem da verdade - entendida ἀλήθεια (alétheia, desvelamento do real) para ὀρθότης (orthótes, correção, adequação) - quando verdade se converte em certeza. O certo é um juízo, o verdadeiro um gesto manifesto de real e assim – linguagem – esta como condição de todas as possibilidades do real se manifestar, significa, primeiro e antes de qualquer predicação, gestualizar. O real é gesto primigênio e porque primigênio, imemorial. Portanto, todo gesto de real é um acionamento dele mesmo, desde

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seu próprio para o seu próprio. O real é propício. Esses acionamentos são necessariamente múltiplos e plurais. Os acionamentos são produzidos pelas coisas, pelos seres que se encontram no próprio do real, integrando-o como constituidores de espaços-tempos sempre possíveis. Ora, o que garante essas possibilidades é sempre realidade, isto é, o real como potencial acionador e passível de acionamento. O poético, a poética, é a essência desse acionamento. Mas, por quê? Todo o acionamento de real se dispõe como modificação, mundificação, quer dizer como instauração de mundo, isto é, de arranjo, de ordenação do caos. De todos os seres aquele que é desencadeador de mundo, ou melhor, de possibilidades de mundos, é o homem e aí está talvez, a sua principal peculiaridade: fazer mundo, mundanizar, mundificar, modificar, mesmo desde o real, o seu relacionamento com este acionamento criativo e criador, mundificante, mundificador. Em última instância, modificador é necessariamente poético e é poético na medida em que a palavra poética, em grego ποίησις (poiesis), diz radicalmente fazer, mas nunca qualquer fazer e sim o fazer radical - a criação. A criação que encanta porque mundifica, faz mundo, modifica o real de modo que este jamais poderá voltar a ser o que já foi - o que faz do real devir, movimento. A essência da ação é transmutar. O poético não mente. É gesto. Não é alegre nem é triste; é tão somente poético e mais não necessita. A poética, o poético, como preferem alguns, não fala a verdade, apenas se diz como o modo essencial da verdade, isto é, como presença capaz de mundificar, modificar e modificando – presença que encanta. Desse modo, a poética não está sujeita aos juízos impostos pelos estilos de época, pelas classificações ou pelos conceitos que se perderam das questões que lhes deram origem. A poética trata a presença como presença e assim se põe como verdade, jamais engana e assim jamais poderá ser irreal! Se for realização, bem. Se não for, também. Afinal, como nos adverte Hölderlin: “Tudo o que permanece fundam-no os poetas”. Não ocorreria a ninguém procurar Macondo de Garcia

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Marques como uma forma de legitimação de Cem anos de solidão, nem tampouco encontrar o sertão rosiano para tornar mais verdadeiro Grande sertão: veredas. A verossimilhança aqui tem muito pouco a dizer. O que aqui diz é o fazer criador: aquele que desde o real faz-se essencialmente real. O que permanece. Como diz Caeiro: “as coisas não têm significação: têm existência”, e existência aqui diz presença, quer dizer, essência e aparência definitivamente reunidas, sem mais. Essa reunião essencial e presente só pode efetivamente se dar se o poético se apresenta e se presentifica antes que qualquer representação tenha lugar. Antes do significado - o sentido, sempre. O sentido não se dicionariza, se mostra, se diz e se faz sentir antes que possamos cogitar acerca das significações. A musicalidade da palavra é o que encanta e mostra o poeta genial antes que acerca dele possam se iniciar as classificações epocais, as classificações estetificantes. O ritmo da poética de Jorge Ricardo Dias é o que faz com que habitemos aquela espaço-temporalidade entreaberta pelo artista. Habitando essa espaço-temporalidade constituímos com a obra que obra em nós um tempo não cronológico (na verdade eônico-kairótico) e um espaço para além das mensurações. O ritmo pulsante da poesia nos toma e esquecemos necessariamente da cronologia. Não sabemos quanto tempo lemos: sabemos que habitamos um espaço-tempo poético, isto é, criado, constituído desde o concreto que se estabelece com a palavra, na sua concretude, tratada como tempo-espaço mundificante e modificador do bom senso e do senso comum. Em Jorge Dias, no poema intitulado Entrelaçados, temos:

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2 3 4 1 2 34 5 6 1 Não sei quem és mas já te conhe- cia 2 34 1 2 3 4 5 6 1 Teu vai e vem, tão próprio das ma- rés 2 3 4 12 3 4 5 6 1 que me arrepia da cabeça aos pés 2 3 4 1 2 34 5 6 1 me faz refém da tua poe- sia

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2 3 4 1 2 3 4 5 6 1 Não te preciso e tal desprendi- mento 2 34 1 2 3 4 5 6 1 é o elemento mais que essenci- al 2 3 4 1 2 3 4 5 6 1 fazendo amálgama tão natu- ral 34 1 2 3 4 5 6 1 23 que dá razão a todo senti- mento

4 1 2 Guian -

3 4 1 2 3 45 6 1 do a mão que a julga esco- lhida 2 3 4 1 2 34 5 6 1 a luva adere justo na me- dida 2 3 4 1 2 3 4 5 6 1 23 da dimensão do encontro entre raros 4 1 2 3 4 1 2 3 45 6 1 E feito estreita e entrelaçada trança 2 3 4 1 2 34 5 6 1 a luva e os dedos giram numa dança 2 3 41 21 2 1 2 1 O coração criança aos mil dis- paros

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Nesse poema de Dias, temos um vigor rítmico-sonoro em que a força do pulso ternário é predominante, intercalando-se com o pulso de três, com dois, quatro e cinco. É predominante em toda a poesia de Jorge Dias pulsos bem definidos. É essa força rítmica dual, isto é, de três contra dois, quatro e por vezes cinco, que metrifica e musicaliza uma série de dualidades complexas que sua poesia apresenta, nunca como um meio para servir às representações, mas como que se apresenta como força poética mesmo antes de se saber das significações ou discutir essas representações. Sem essa força, os ouvintes-leitores, muito provavelmente, não se manteriam suficientemente no espaço-temporal da obra para julgá-la, fosse lá de que maneira fosse. Isso, neste trabalho, ou em qualquer outro, é a obra poética por excelência! O que diferencia o poeta é o modo como acolhe esta musicalidade. O poético tem que se dar como condição de manutenção do interesse para que se possa pensar a seu respeito. Primeiro se diz linguagem e sentido, depois se diz língua e significações. Se a primeira não se der, para o leitor-ouvinte, dificilmente ocorrerá a segunda. O encanto produzido pelo poético é sempre o início para qualquer possível conhecimento. É sempre a força primigênia, poética e inaugural de toda e qualquer poesia. Para isso é preciso ritmo, deste participam sons e, sobretudo, o silêncio. O trato com esses elementos faz de um poeta – o poeta. Se não fosse assim bastava aglomerar palavras, mas isso não basta: é preciso mundificar, criar espaço-tempo, sem o que qualquer palavra seria apenas mais uma palavra e um poema seria apenas não mais que uma mera reunião de palavras, em geral convertida em conceitos vazios. E estes se mostram vazios não necessariamente porque conceitos e sim porque se perderam das questões que os geraram. O que está acima afirmado não nega outras abordagens possíveis para uma obra poética, apenas tenta entender o princípio de articulação desse mesmo poético como fundante para que qualquer interpretação possa ser realizada e trazer à obra outras obras, quer dizer – fazer a obra obrar, fazer com que a obra obre. 12

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A poética é sobretudo a criação de uma espaço-temporalidade que convida à habitação que é passível de ser habitada por quem por ela for tomado. Não haveria crítica artística (literária, musical ou outra) sem a imersão na obra, mas o que provoca essa imersão é sempre o obrar da obra. A literatura, a música, a poesia, enfim a arte é, em primeira instância, criação de tempo-espaço e jamais representação de algo que possa se encontrar fora dela. Se não fosse assim Garcia Marques teria levado cem anos para escrever “Cem anos de solidão” e nós levaríamos outros cem anos para ler seu romance. O romance precisa criar e cria os cem anos a despeito da cronologia. Aqui, não é o cronológico e a mensuração que dizem. O que diz é o poético: o eônico-kairótico como tempo e constituição do espaço como presença do concreto, daquilo que é presente, do ser, da coisa, do real. A arte não é, nem jamais será, mentira ou mera falsidade. Não representa nunca – só apresenta. O poeta é um fingidor? Sim, o poeta é um fingidor, isto é, um escultor (fingere, esculpir) das palavras com seus ritmos, sons e silêncios que as compõem. O escultor faz o mesmo com os volumes (modus tollens), o pintor com a luz e a cor (modus ponens) e o músico com o som (modus com-ponens). Jorge Dias é o poeta, o escultor que se presentifica aqui. Ele compõe este trabalho como dimensão de um tempo-espaço que é simultaneamente pré-antigo e pós-moderno. Pré-antigo à medida que seus versos se articulam sentido na anterioridade com as instâncias significativas que se presentificam como temas e soluções pós-modernas, pós-moderníssimas. Não se deixem iludir com as formas aparentemente convencionais como sonetos, haicais ou quaisquer outras. Não! A síntese é mais que solução para tese e antítese, é a vigência e vigor das contradições substantivas a que sua obra nos conduz. Não procurem os antigos procurem os princípios, estes, Jorge Dias nos apresenta, nos mostra aqui neste trabalho. Salve, Jorge! Os que vão viver te saúdam! Evoé!

Antonio Jardim 13

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Agradecimentos

Meus eternos agradecimentos a Aldalea Figueiredo e Rachel Lima, minhas críticas e incentivadoras de longa data; a Antonio Jardim, que com seu lúcido e aguçado prefácio, inaugura outra faceta da nossa parceria de 40 singulares canções resultantes de sonetos meus que ele musicou, alguns dos quais presentes neste livro; a Márcio Pereira, que me brindou com essa belíssima capa e diagramação inspirada; a Maria Regina Alves, brilhante poeta que mergulhou nos meus poemas pra deles extrair a comovente e poética apresentação do livro e do autor; e um agradecimento todo especial a Fátima Lanna, que foi quem me instigou a levar este projeto a cabo e teve a generosidade, paciência e tenacidade para mesmo à distância estar sempre presente, vestir a camisa do livro e estabelecer essa quase coautoria, ao simplesmente ler toda a minha numerosa obra e junto comigo escolher 102 textos dentre 1400 e nunca abdicar da emoção, por mais que necessária fosse a racionalidade no processo; a Cleusa Gonzalez, Cida Soares e Rai Lu, pelo apoio financeiro, a minha mãe Adelaide, minha irmã Regina, meus filhos Ísis e Gabriel e meus amigos torcedores, a quem se juntaram todos os que acreditaram nesse projeto.

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Palavreando

Palavra se a gente lavra germina vira verso vira frase romance conto repente cordel discurso declaração de amor ou indignação contação de história relato da memória letra de canção palavra escrita falada cantada palavra só gesticulada e o silêncio entre elas que as acentua feito alma que vai ficando nua a cada palavra que se insinua que compactua palavra minha palavra tua palavra nossa num coro num choro ou num riso coletivo coisa de ser vivo e pulsante e que por isso é falante da palavra que é luz na escuridão do inaudito do não dito ou do grito preso na garganta da emoção que é tanta que entala até que a palavra vem resgatá-la palavra diz-se que uma imagem vale por mil delas mas mesmo uma só palavra larva singela pode redimir ser redemoinho transformar água em vinho ser solar tocar co-mover tirar pra dançar

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Por ínfima fresta mergulho em prazer tão vasto de íntima festa

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Alfa, beta, gama

És a chama, és o lume na trama do meu negrume És a dama dos meus cumes És o sutil perfume que paira mesmo na ausência És a ciência do fogo que aquece mas não calcina És a fonte cristalina da secura que sacio És a cura, és o cio Chuva fértil pós estio Lírio brotado do estrume Pra meu delírio e ciúme Pirilampo, flor-do-campo Adaga de fino gume Deusa do meu descostume Todo amor em mim te clama És meu alfa, beta e gama Meu filamento e cetim Meu começo, meio e fim

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Arisca Ela se expande e se retrai Pequena, grande De eu querer mais Nunca a prevejo Tão inquieta que num lampejo é curva a reta Em culminâncias e desmesuras Pleno de ânsias Cubro-a de juras Mas me escorrega por entre os dedos Revela e nega cada segredo Tanta surpresa que me fascina Quanta beleza velha e menina Contraditória Doida, atrevida Trevas, luz, glória Essa é a vida!

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Vide bula Palavra é ritmo e dança Brinquedo de desmontar Palavra é de som e ar Aguda ponta de lança Contida, exaltada, chula Chicote ou doce canção Carícia ou demolição Na dúvida vide bula É mapa, é lei, estrutura É luz numa mina escura Ou pura contradição Mentira mais verdadeira Verdade mais traiçoeira Não diz sim e sim diz não

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Viver, frĂĄgil dom Entre um susto e um sobressalto Tem vezes que ĂŠ bom

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De si

Odeio quando sem nenhum rodeio Você flutuando se vai de mim Se esvai assim Feito água na peneira Afogamento na beira Eu, quase um xiita tento voltar a fita Mas o mecanismo falha O fogo só acha a palha E sou só eu ante o abismo Odeio quando você se vai flutuando Gestual de colibri E um ar de sósia de si

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Dança

Rubras labaredas brotam das narinas Chão que ao roçar dos cascos se incendeia Quanta adrenalina quando escoiceia Resta só o recurso de agarrar-me às crinas Pelos reluzentes, ancas bailarinas Puro vinho é o sangue a lhe ferver nas veias Nunca vou cair, selado em densas teias Mesmo quando galga as dunas cristalinas Vamos descobrindo ínfimas aldeias Dois num só pulsar a devorar neblina Segue o nosso rastro um céu que já clareia Brilham negros sóis no olhar que me alucina Pégaso sem asas, salta e me estonteia Nu sobre seu dorso vou até a China

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O cuco ameaça fugir mas volta à clausura E o momento passa

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Maxixe Teimoso feito mula Rasguei a bula Troquei a Lei de Newton pela de Nietzsche E a emulei Recusei a verdarde Adotei a verdarte Sem alarde Por crer que o todo salvo engodo Ê maior que a soma e a sombra das partes Que o que me assombra e assoma vislumbre trilhas e brechas e bons traçados pras flechas Raios que de mim partam pra incendiar quietas velas Fulminar ideias velhas Ao som de Carmina Burana Ou de um maxixe bem sacana

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Sem rei nem réu

Com a tez sem cor Ar de ser tão só Lá no mar de pó Jaz um deus em flor Fez o mar dar nó Fez um lar do Caos Leis do Bem e Mal Riu da dor de Jó Só que foi tão bom que nos deu o dom Voz do sim e não Já não há mais céu Nau sem rei nem réu Nós e o deus no chão

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Meu rosto encharcado se espanta da chuva quente ter sabor salgado

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Delêixtase Deleite é Chico na vitrola Cartola, Paco, Piazzolla O negro Miles que sola Smile no rosto do Chaplin Pão de centeio e azeite Deleites de alma e sentidos Segredos de amor compartidos Sino de igreja e vitral Mas meu êxtase visceral é mesmo quando te adentro o centro, chorando por tudo menos tristeza já sem cartola e sem fraque e me descobrir um craque que reinventa a destreza de fundir carne e razão E tu, meu vinho rosado onde flutuo encantado me sorves qual torvelinho Tu, o néctar a beber-me as ânsias protuberâncias, lábios que, todos sábios, se rendem e enredam nos teus Se há um Deus É mulher E me quer E melhor...é meu

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Continuum

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seduz a f么rma, a f么rma ilude a forma, a forma inquieta a forma, a forma alude ao gesto, o gesto aspira ao gesto, o gesto ecoa o verbo, o verbo confunde o verbo, o verbo elucida a sombra, a sombra repete a sombra, a sombra estranha o outro, o outro busca o outro, o outro inverte o sentido, o sentido subverte o sentido, o sentido garante o mundo, o mundo recria o mundo, o mundo distrai o ser, o ser impele o ser, o ser confronta o nada, o nada desinventa o nada, o nada incita o desejo, o desejo

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Que morte mais impr贸pria A cigarra fumou a si pr贸pria

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Combate Múltiplos quadrados Casas e caminhos Armam-se os dois lados Séquitos de pinho Títeres movidos Tragam território Mortos e feridos Mas sem falatório Deuses na regência Mestres do sorrate Lúdica ciência Auge do combate Dama da insolência Rei em xeque-mate

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Impenitentes

O encontro era na igreja Amém, que assim seja Vizinha do colégio Depois da missa Você ainda noviça naqueles sacrilégios O cais da nossa paixão eram refregas verticais E por entre os castiçais Trancados na sacristia fazíamos poesia entre sussurrados ais Já se passou muito tempo E se passo em frente ao templo ainda hoje me espanta lembrar da gente, Maria Você com nome de santa Nós num doce pecado Me dá um nó na garganta saber tão vivo o passado

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Fada de dois gumes VocĂŞ ĂŠ sempre o melhor dos meus maus costumes

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Talhe Basta de angústia e prantos Pruridos e espantos Doravante só alegres disparates Farei poemas de alfaiate Versos-ternos não muito modernos Sob medida pra colorir invernos Mitigar feridas Critério nos tecidos Capricho nos talhes Nos mínimos detalhes a lírica elegância Amores com fragrância em cortes bem trajados e versos bem amados Se essa alfaiataria suprir toda emoção Quem sabe um belo dia a tal da poesia nem tenha mais função?

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Sublime sublimação O corpo tem sede mas não atravessa paredes casa não bate asas corpo não voa nem por boa causa sentimento é feito vento trespassa peito e clausura é loucura do pensamento nem pisco e o corisco vai pra lá do muito depois e nós dois já estamos perto como se tão certo fosse o deserto virar mar amar é assim saltar do trampolim em busca do intangível e no fim da jornada incrível achar nada menos que a Vênus que te aguarda em emboscada tua alma cercada em rendição teu coração na mão de quem audaz te quer mas não quer sair mais do teu pensamento

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Canção do amor analógico Um poço cravado no centro do Éden Colosso apertado Paixões não se medem O seu Marco Zero Portal do Nirvana Querendo o que eu quero Me olhando com gana Viagem serena de um desbravador buscando a mais plena essência do amor em flor tão pequena Delírio sem dor

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Tormento e tormenta Meu mundo pequeno de ínfimos ritos O vento na fronte O turvo horizonte Abafo meus gritos Me finjo sereno E o barco meneia na vaga bravia Furor de sereia Aquática orgia A face encharcada de água salgada (Seria de pranto?) não lava o espanto Netuno que dança no sal da vingança A faca no vento Tormenta ou tormento? Do caos à deriva ao cais que se aviva se estende a agonia Pedir calmaria o deus não aplaca O vento na faca o sangue evapora O sangue da aurora

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O céu mais vermelho O mar é o espelho do deus que se aparta Atenas, Esparta no embate aqui dentro O espelho no centro da híbrida arena Um quase argonauta A pena que falta? Dureza do solo Dionísio e Apolo disputam-me a alma Já tem calmaria mas foi-se-me a calma A terra me afaga Mas vive a lembrança de deuses e danças na ínfima saga

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O céu tão escuro é véu que da luz nos priva e as estrelas, furos?

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GPS anímico

Nas esquinas lá da alma tem relances e soslaios Desmaios dos sem mais chance Nuances despercebidas da vida a querer romance Na alma dessas esquinas tem buzinas estridentes Faca nos dentes, rangidos Cortes rentes, olhos fundos Excluídos, vagabundos Distraídos e eloquentes Nessas esquinas pungentes Marcos na alma da gente bate um pulso coletivo Grito vivo e visceral numa atrevida recusa de ver na vida a Medusa a nos fazer pedra e cal

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Antes da razão dois sábios corpos se fundem em paz de vulcão

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Paradoxo É longo, interminável, nunca passa o tempo transformado na distância É como se cumprida uma ameaça jamais me aliviasse dessa ânsia Arrastam-se os minutos se te ausentas Viscosos como lesmas num aclive Até o beija-flor bate asas lentas No entanto o pulso a mil me grita: vive! Estranho é que o contrário sempre ocorre Se acaba essa tortura e estás presente Perverso o tal do tempo agora corre Se Cronos não tolera amores plenos Criemos contra o tempo intransigente antídotos de amor pros seus venenos

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Por um fio E lá vou eu voando solto rente à lona Se sou um quase pássaro, pra que a rede? Um peixe dentro d’água nunca sente sede É só pra ver o céu que ele vem à tona Cabeça mergulhada em boca de leão A Morte e eu num duro jogo de xadrez Num xeque-mate mostro a minha intrepidez E eis que outra vez delira a multidão Retiro colossais coelhos da cartola Serrei ao meio a moça e esqueci a cola E todos estremecem tendo um calafrio Mas pinto a cara, faço troça ensandecida Arranco risos, levo tombo e sei que a vida é sonho, é circo, é susto, é o pulso por um fio

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Chove em cada olho tanta vicissitude que eu escolho

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Pelo sim, pelo não E se de repente tudo que tu levas se dilui nas trevas ? E se o corte é rente ? E se o paraíso for remédio santo que te seque o pranto mas te afogue o riso ? Nada é garantia de um atalho ou guia pra qualquer lugar Sai do teu abrigo Vai correr perigo de jamais voltar

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Desmorte Não sei se fui um morto adotado Se exumado só por distração Ressurreição de risco calculado ou planejada enfim a exumação? Cortejo em luto rumo ao hospital Onde meu mal custou a ser curado E em bom estado, que era terminal deram-me alta e em casa era esperado Fui infeliz na tal maturidade A mocidade trouxe mais alento O bom momento é agora, a tenra idade Quente, me acolhe o útero sedento O lento adeus é só felicidade Morre a saudade em meu desnascimento

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Quintal Nem chego aos teus pés Quem dera chegar Nadar nesse mar de móveis marés Te escrevo canções Te provo ser Deus Te sopro se ardeu Te prego os botões Te ensino uns segredos que não fazem mal Não há que ter medo Meu corpo é um quintal Espalha os brinquedos do jogo carnal

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Começos Começo é carta com endereço É apreço, é a pressa É promessa feita sem o outro pedir Começo é o devir que se antecipa É a pipa no alto É o corpo tomado de assalto por palpitações fibrilando É quando o gerúndio predomina sobre outras conjugações Começo é a esquina do mundo onde se espera ansioso pelo gozo do encontro Começo é estar pronto desde cedo sem medo de transbordar É um estado de alma que nos restaura Aura de frescor numa onda de calor Assim são os começos Filigranas, filamentos luzindo no escuro E a continuação? O futuro? Que dilema Só cabe em outro poema...

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Aurora que urge trespassa a furtiva lágrima Arco-íris surge

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Templo Em minha catedral particular não tem aqueles santos nos vitrais nem Bíblias colocadas nos missais Mas tem sacerdotisa no altar A hóstia oferecida a consagrar os cânones sublimes e os carnais Nas longas liturgias guturais o êxtase ultrapassa o limiar Sussurro meu desejo em confissão No templo do teu corpo a adoração que em comunhão com o meu me faz melhor O ar recende a incenso e devoção Nem cruz nem Via Crucis na paixão Teu sal na água benta do suor

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Babel Sem nem licença O velho prólogo da desavença São dois monólogos entrelaçados que andam de lado Não é diálogo Só algo análogo a tiroteio entre homicidas Foi pra escanteio Bala perdida Escamoteio Culpas a vida Babel de dois Antes depois Na surda escuta o verbo é pó Só má conduta Nós dois num nó

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Flores de carne Um Deus que teima e duvida da sua branca loucura e esculpe a vil criatura em carne e sopra-lhe vida No crânio, pêlo e tormento Nos olhos, choro e miopia Nas veias, sangue e utopia Na boca, língua, argumento Se somos à sua imagem Ventura pouca é bobagem Heróis que morrem no fim Vampiro, a si mesmo suga alheio ao plano de fuga das flores do seu jardim

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Travessia Sem fala meu falo penetra pela fresta de carne no rumo do cerne do âmago da alma que ama outra alma que ama e anima o falo a buscå-la E a fala se cala Consente Almas frementes

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Maria Mesmo longe da janela Em dezembro, maio, agosto Maria traz luz no rosto Que a luz procura por ela Mesmo sem a luz do dia Num eclipse, madrugada Toda a luz sendo apagada Resta a luz que há em Maria Mesmo quando é Nova a Lua e o lobo, triste, jejua a luz dela se irradia No olhar esplendem quasares No riso, ventos solares Como então não a amaria?

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A sina da lesma ĂŠ chegar sempre atrasada e rir de si mesma

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Estilhaços

Logo ali em frente alguém me olha intrigado Todo espelho mostra um estranho universo Nele tudo assume no final o seu reverso Sendo assim quem sempre me aparece do outro lado? Fascinante mundo imerso na mais surda calma Feito um filme mudo com menor velocidade Se tem luz e cor, se move e tem profundidade Diz então quem é o meu dublê de corpo e alma? Os cenários gêmeos travam louca relação Se acontece aqui, ali ocorre a imitação Quem será o vigia que me quer impor a lei? Sem temer os tais dos sete anos de fracassos fiz o meu juiz de vidro em muitos estilhaços Onde está o sangue do intruso que alvejei?

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Frente a frente

Te procuro aturdido nos rec么nditos escuros da mem贸ria. Te procuro nos Achados e Perdidos Busco em todos os lugares Labirintos e atalhos transformados em retalhos Desde terras at茅 mares E de tanto procurar tenho os olhos mais vermelhos que os corais do teu colar Te procuro e encontro enfim frente a frente com o espelho refletida inteira em mim

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Útero Cúmplice, vívida página Tácita, íntima, prática Vítima, cínica tática Pálida, anímica, mágica Trêmula, tímida, próxima Ínfima lâmina, dádiva Física, lírica fábrica Quântica, rústica, sólida Lúcida lâmpada anárquica Sôfrego, cravo-te símbolos Risco-te, tornas-te gráfica Rútila pétala, vínculo Cálida, incitas-me ávida Página, faço-te grávida

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Anamnese Preciso examinar as minhas vísceras Saber se a raiva inchou meu pobre fígado Se a bílis transbordou lá da vesícula Se os decibéis furaram o meu tímpano Meu plano tem resgate de helicóptero Até que não sou tão hipocondríaco Suspeita só a dor no sacro-ilíaco Mas já minimizei com radioisótopos Pra sempre vou tomar antibiótico pro caso de ocorrer surto virótico Complô de mafiosos falsos médicos Consultas no pajé dos Aborígenes Só falta celular ser cancerígeno Amor ? Só em colchão que é ortopédico

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Amor, bicho fugaz Aqui no outro instante Neste, nĂŁo mais

Amor, bicho ingrato Por entre dedos concretos escorre, abstrato

Amor, bicho inquieto Prazeres oblĂ­quos Desprazeres retos

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Aromatizes Volútil o aroma se esparge Sufrágil Se espraia nas margens Fabula por entre as livrélulas que volejam mansutis Se adensa num âmbar divinho visgozo escorremuilento E eclode Pulsátimo Torrente às palafitas de cetim vazantes de tudo que fracta se digna a enigmar recifes de corais submersos De sereias sexuadas

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E o aroma tatuado na rocha então se sublima Lateja nos ares Gaivota em mergulho Se entranha telúrico nos veios Sorrartérias E a semente docemente brota Das grotas gemerge em pétalas áureas Odores do parto na urgência da vida Aromatizando os gozos do olfato

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O que me basta

Nos dias pares tu me pares um sorriso que é diamante e nem preciso garimpá-lo Nos dias ímpares teu corpo é o paraíso Louco alpinista todo trêmulo te escalo

Nos feriados o teu colo é meu remanso E nos domingos, teus quadris a minha rede Manhã bem cedo, nos teus seios logo avanço Nos dias quentes no teu beijo mato a sede

Dia de chuva e nós brincando encharcados Se o sol ressurge um arco-íris nos visita Estamos nus e nem olhamos para os lados

E cada simples dia em ti, um dia à toa Por mais fugaz é de memória infinita É o que me basta p’ra dizer que a vida é boa

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A folhinha marca os anos Tรฃo interminรกveis quanto os meus enganos

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Ossos de madeira

Se o voo é vertical o peixe é da gaivota Manhãs intermináveis de uma vida breve Moedas do desejo na Fonte de Trevi ao som do acordeon de um certo Nino Rota O tempo que se esvai escava outra ruga E em ondas de ressaca a pele então se dobra Não há chance da troca das astutas cobras Verões na solitária sem direito a fuga Pra não falar do inverno onde a neve esquenta se comparada ao gelo que enrijece a alma nas noites de profunda e turbulenta calma Nos olhos o suave afago da pimenta As mãos que se estendiam perto da lareira são cinzas desses frágeis ossos de madeira

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Meta-bólica Comi um poema até o talo E ao mastigá-lo por entre os dentes umas palavras (que insolentes!) se intrometeram feito pingentes num trem urbano E eu, espartano quis palitá-las Banir as pobres vernaculares dos novos lares Cuspir nos ares Não fui tão nobre Fui refratário Quis rejeitá-las Mas ao cuspi-las Involuntário Eu declamei novo poema do mesmo tema que degluti E as palavrinhas ficaram minhas Não mais sozinhas Comigo aqui

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Segredo Buscava sempre um sol que não surgia Rasgando meus lençóis na madrugada Sozinho em tresloucada liturgia Sonhava amanhecer com minha amada

Clamor na noite escura, agora és densa Torrente que transborda em meus sentidos Com tua singular onipresença Me mostras teus tesouros escondidos

Manhã clareia em finos tons de cobre Penetra nas janelas do meu peito Teu beijo é tatuagem que me cobre Levantas-te, mas sei que voltas cedo Deixaste teu calor aqui no leito E o meu, guardaste-o mais que um bom segredo

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Canção dos ninguéns Quero louvar os vencidos Os esquecidos Avulsos Os coletivos Os mortos-vivos Louvo os iletrados Os postos de lado Os sem teto Os bêbados abjetos Vou louvar os indigentes E toda gente que não dá poema Sem sobrenomes com trema Os sem glamour Sem abajur de grife Louvo os anônimos Que não têm heterônimos Os ascetas sem metas Sem ambições Louvo os bufões E o riso das multidões que eles provocam Louvo os que me tocam Guturais Abissais Antimusas As confusas Quero louvar o homem sem rosto E sem lugar Que não desperta o gosto do esteta louvar

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Sou preto Soul da Ă frica sofrida Soul free, Soweto

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Paleta Quero a mulher cubista Redondez cheia de arestas rebatidas nas frestas Sem rede a equilibrista E a quero assim Nada escapista A rir de si Rir pra mim Mulher-tela de inquietos traços Tê-la aqui Ser dela Trança, teia festança e meias Salvem as baleias e as velhas-crianças Quero a mulher-arte que se desconstrói cinética em mosaicaleidoscopias num desconcerto duchampsatielepagepicabiano em sol maior sujeito a sudoestes Quero-a, Frida frágil

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Máscara Kabuki Maja Desnuda Eva ventruda Quero-a, mulher-conceito Seus peitos, seu anima-mundi De finos gostos e gosto bom Os seus matizes feito um Matisse Os seus espaços tal qual Picasso Suas texturas Iluminuras Rupestre requinte Basquiat d’aprés Da Vinci Chiaroscuro Passado-futuro Quero-a, bela Afresco, aquarela Esboço mutante Pincéis em fúria Graffiti Capela Sistina Inferno e Céu Comédia Divina

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Entrelaçados Não sei quem és mas já te conhecia Teu vaivém tão próprio das marés que me arrepia da cabeça aos pés me faz refém da tua poesia Não te preciso e tal desprendimento é o elemento mais que essencial fazendo o amálgama tão natural que dá razão a todo sentimento Guiando a mão que a julga escolhida a luva adere justo na medida da dimensão do encontro entre raros E feito estreita e entrelaçada trança a luva e os dedos giram numa dança O coração criança aos mil disparos

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Faltando o fim Então eu me lembrei que me esqueci de me lembrar do véu da desmemória para apagar de vez a nossa história que acaba e recomeça sempre em ti Foi quando eu me esqueci de me lembrar de me esquecer do vício da lembrança que é sempre tão voraz e não se cansa buscando em cada rosto o teu olhar E sigo por aí de flerte em flerte sabendo que a mentira de esquecer-te é quase como um tiro de festim Das Mil e uma Mortes ressuscito Pequena Fênix, bem menor que o mito Banal canção de amor faltando o fim

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Nosso amor tão púbico finge ser pudico em público

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Quanto Quero teu assalto Arrebatamento Quero teu mar alto Todo o teu tormento Quero-te incauto Brasa e filamento Sendo o meu arauto Meu alumbramento No colch達o de fausto dos meus aposentos Mesmo no asfalto No duro cimento Teu banquete lauto Meu contentamento Tu ouvindo alto os meus pensamentos Quando a mim me falto Sejas meu unguento Leva-me pro salto do eterno momento

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O outro Cabral Na vidraça estilhaçada reconstrói-se a poesia Tudo que é uma pedra e nada Alicerce e heresia A palavra não ajuda Inaudita, inodora Peço que ela fique muda que calado é que se chora Do rigor já sem controle meu pesar se desvencilha num lamento de arco e fole Me perdoa o dialeto És maior que a redondilha João Cabral de Melo Neto

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Mistério (Gramática poética)

Tropeço no verso e o verso me apruma Em suma, ele cura espúrios falares e esparge nos ares seus dons musicais Do cais da poesia zarpo assim verbal pra mares substantivos e amares adjetivos Versos são seres vivos E os motivos pelos quais nos fazem de seus arautos de voos rasos e altos não saberemos jamais

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P’ra que correr quando chove? Se fujo de um pingo Pingam-me outros nove!

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Mentiras de poeta Dessa matéria de que o sonho é feito Teimo em moldar bizarros pesadelos Quase não passo a bordo de um camelo por uma agulha de orifício estreito Não que eu rejeite os prêmios do conforto Nem os regalos vindos da certeza Mas que tolice é a vida sem surpresa Velas ao mar e sempre o mesmo porto Onde o porquê de tudo tão preciso sem o sabor do risco e do improviso? Tão previsíveis são as linhas retas! Sou a cigarra que jamais tem planos Cada alegria custa mil enganos E vezes mil mentiras de poeta

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O palhaço leva um tapa A platÊia ri De um menino o choro escapa

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Ungidos

Impulsionados da maneira certa os bumerangues cumprem trajetórias de ida e volta ao ponto de partida Com vento, chuva ou céu de brigadeiro Um dia um deles quase esbarra em outro E logo ambos voam paralelos Algo em comum além de bumerangues os atraiu de modo irresistível É que ao contrário dos da sua espécie os dois são força a impulsionar a si o que permite o voo de improviso E ambos ungidos pelo raro encontro se amalgamaram em nova e eterna rota de nunca mais voltar ao mesmo ponto

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As pirações

Caso eu muito muito dure Caso a Morte não me apure Quero ser velho faceiro Andar por sobre o braseiro Comer bolo de maconha Perderei toda vergonha Vou a festa à fantasia galantear as coroas Vou rir de mim, rir à toa Todo idiossincrasias Quando eu for assim velhinho vou me perder no caminho até achar um carinho de quem virou só afeto E eu vou me sentir refeito Tambor rufando no peito Sem lembrar que o tempo corre Dançar na chuva de porre

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Se eu tiver longevidade vou ter todas as idades Do menino bagunceiro ao ancião conselheiro Rebelde eterno com Cronos até o meu último sono

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Noite ĂŠ quando o sol brincando de esconde-esconde acorda o farol

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Hypnos Mais forte que a vontade, em temporária morte disfarça-se o bondoso deus que traz o sono E o corpo na ilusão de ser da alma o dono resiste em vão ao negro véu que rouba o norte O claro da manhã que tudo recomeça é sopro de frescor e o morto ressuscita Sorriso de criança ingênua que acredita que o mundo vai cumprir promessa por promessa Ninguém pertence nem ao menos a si mesmo Não há ciência ou arte que armazene o fogo Perguntas são cometas viajando a esmo Vigília e sono enfim são naus da mesma frota Num mar sem inimigos, vítimas, derrotas A vida tem mistério mas não é um jogo

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Sorriso Uma fatia de melancia é um sorriso vermelho, doce, preciso Pedaço do paraíso que se deixa comer com prazer e alegria Carinho maroto da tia ainda enxuta Meio ar de puta da fantasia do garoto Fêmea fruta Uma fatia farta Mais Atenas que Esparta Meia-lua Só que carmim E ainda mais crua Mais arlequim que pierrô Batom na boca de Bardot

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Santa melancia A cura da melancolia Doçura de musa que me lambuza e me arrebata Feito beijo de pagã na folia, longa data do pêra, uva, ou maçã E nem tinha melancia que eu só imaginava imerso em rio de lava que a gata ia negar E eu ainda assim sorria Sorrisos de melancia Melado até as orelhas Centelhas brotando do olhar

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A lua é um ovo que ao partir esquece a gema e é manhã de novo

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Poetossauro

Afio os cascos na curva do vento Ralo os joelhos na fuga de Cronos Cubro os espelhos que me negam tônus E me revolto contra os elementos Sou criatura à beira da extinção O meu vestígio é o sulco dos meus pés A minha praia é lá no Lago Ness Sou tão moderno quanto o Alcorão Hoje um arauto da Modernidade disse que tenho arrojados conceitos E um arqueólogo datou-me a idade O MAM já quer expor meu esqueleto E em meio à crise de identidade vou escrevendo esses tolos sonetos

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Despudor

Que fosse a raiva o motor Vinho de pouca nobreza De me trazer o estupor e afugentar a tristeza Que fosse ódio ou rancor Ou qualquer outra aspereza Ia embotar toda dor na ilusão da alma ilesa Fosse na ira o penhor de inusitada represa o implacável predador que encurrala sua presa Antídoto de amargor p’ra sutis delicadezas Revolta, febril clamor Seriam tosca proeza Meu coração é um tambor de uma frágil fortaleza e teima no despudor de uma lágrima indefesa Que vaze então a tristeza lavando a alma pro amor

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Hora do Agnus Dei FiĂŠis focados no padre Bem te roubeijei

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Mil nós

São todos os rostos que vi formando outro tão singular Um traço de cada lugar Tão perto e distante daqui Das filas, das praças, das telas Avós em retratos antigos De heróis, cortesãs, inimigos Mil faces que a minha revela Meu rosto será semelhante aos ícones que há no meu mundo? O tempo alterou meu semblante? O espelho me olha bem fundo Fundindo o depois e o antes São mil nós em mim por segundo

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Corpo de delito Tuas digitais em mim Que crime bonito

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Na quinta a essência

Eu queria ter escrito um poema tão bonito que em seu cerne, forma e som possuísse o raro dom de te erguer um monumento à tua alma-filamento que irradia fina luz Mas não te faria jus Tentei então outro enfoque: “Meu ego e eu.doc” Aturdido ou mais que tanto Incrédulo meu encanto O engenho, o impulso, a viagem criaram metalinguagem Mas isso a nada conduz E tampouco me faz jus Cá estou na terceira via Milagres anti-entropia? Quem sabe encontro o meu tom de amor teor “pan-shalom”? Quem sabe a luz do teu riso me inspire o insight preciso e os versos brotem redondos penetrantes, sem estrondo

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e a fusão Ciência & Arte maior que a soma das partes se eternize em verso escrito de um tal modo nunca dito? Eu queria celebrar o encontro Tempo & Lugar Minúsculos grãos do Tao Sutis surpresas no caos O entrelaçar de universos em versos menos dispersos Quatro estrofes. Foi em vão Tamanha era a pretensão Então a essência, na quinta Em preto simples, a tinta cobrindo o branco papel Feito odalisca sem véu Talvez me baste dizer do comovente prazer Descobrir, ser descoberto Mesmo tão longe, tão perto Seja tudo ou não fugaz Nós dois, de esquecer, jamais

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Quando encontro o encanto Adestro o tempo em meu cúmplice Faço eterno o enquanto

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Saga Tão destemido, Ícaro decola no rumo tão incerto quanto audaz Não é o gesto heroico dos mortais Mas a ancestral vertigem que o assola Frágil bem sabe a cera de suas asas Que o inclemente sol vai derretê-la Contudo alça o seu voo até as estrelas Como se fosse o Cosmo sua casa A queda é o previsível fim da saga Mas a busca ultrapassa a própria meta E vai além do oceano que o esmaga No seu retorno o eólico poeta mergulha em fogo e luz que se propaga a clarear os céus de toda Creta

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Com toda a ternura meu Guevara te enlouquece Boa ditadura

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Falo Vou fazer metalinguagem unindo amor e sacanagem Eu metalinguístico na tua voragem em metaprofundezas de cama, banho e mesa Vou fazer amor para falar do próprio numa metalíngua não verbal Tu sendo o meu ópio e eu teu Carnaval Metalinguando falo do prazer Dura até quando o amor não nos perder

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Na ânsia de tê-la lançou infinitos braços Só veio uma estrela

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Desembarque Tangenciando círculos tão plenos Chego ao refúgio das tuas cavernas Escalo o canyon entre as tuas pernas Contorno os íleos guardiões de Vênus Navego até o atol do teu umbigo E avisto enfim as tuas belas costas Beijo este solo suave como hóstias Por entre montes vou buscar abrigo Subo a garganta até as macieiras E dois faróis me guiam para o Norte Longe do abismo das saboneteiras Desbravador que flerta com a morte Perco-me em ti, a demarcar fronteiras Feito um Aguirre, só que com mais sorte

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Teus redondos brincos brincam com minha paixรฃo Jรก engoli cinco...

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Celebre Celebre cada ínfimo gosto célebre ou não Celebre feito um cão que abana o rabo pois não ri no rosto Seja a célere lebre ou a plácida lesma Celebre, celebre Dê vivas a si mesma! Seja um delgado cisne ou um cinzento bagre Celebre esse milagre de um mesmo outro dia Xingue, amaldiçoe Leve as naus a pique Arranhe, entorte, quebre Mas depois celebre só pelo querer Tenha a febre Não se medique Diga que assim vai morrer Dê chilique Mas celebre o prazer da fúria que é viver Esse romper de um dique

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Vivânsias Vida é no vermelho Recado de baton no espelho Fruta no pé Chulé na meia Vida é feito teia de aranha faminta Carrega nas tintas Mas só na lua cheia É marulho no rochedo É orgulho e medo Brinquedo intrincado e sério entre o berçário e o cemitério Lado a lado Enfado e euforia Criação e entropia A vida volta e meia é pepita na bateia Flor que acontece na areia Reta curva em espiral No decúbito dorsal entre o pensar e o sentir Cama de pregos, faquir

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Lupus Sapiens Lá vai o homem que é lobo do homem Legislador de loucas leis latentes O olhar lampeja por detrás das lentes Lobo de si, lateja o lobisomem A noite brilha, elétrons, vaga-lumes A lenda fala em límbicos lamentos A pele, os músculos e os ligamentos lustram a lâmina que tem dois gumes Líquida lápide, a lágrima rola O anjo eclipsado num demolidor na mão que acalenta enquanto degola À luz da lua dilui-se o furor Em solidão litúrgica se isola Dilacerado em luta com sua dor

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Melhor E dali não arredava Como quem nunca saíra Totalmente imerso em lava Feito Nero e sua lira quando Roma incendiava tendo a carne como pira Mas na alma é que lhe crava Como rês que já tem dono Mil Dalis pintando Gala Como reis subindo ao trono Eloquência que se cala aos elétrons de carbono Entre risos de criança e outros sons talvez mais sérios a refrega intensa e mansa unifica os hemisférios O mais doce dos mistérios Tempestade pós-bonança que sucede o que foi vento Vaivém que perpetua o pulsar do movimento Como o sol acende a lua num carinho quente e lento de deixar a alma nua

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Dali nunca mais se ia Saciado e mais sedento da nascente da alegria Aturdido pelo encanto Se era noite, se era dia Feriado, dia santo Se pra sempre ou se nem tanto Incontido e ofegante Uma estrela ao seu redor T達o pequena e t達o gigante Em suor se faz ungido Cantos sacros nos gemidos Feito o amor que o faz melhor

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Promessas da razão Todos os motivos pro cinismo Toda pequenez na vastidão Todos os atalhos pro abismo Todos os cupins da corrosão Todas as paixões e seus castigos Todos os demônios no porão Todos os covardes sem perigo Todos os punhais da castração Todos os desvãos do labirinto Todos os desejos tão famintos Todas as promessas da razão Tudo assim no dito por não dito Tudo que é póstumo e maldito Tudo que era sim e agora é não

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Num pacto de sangue tu te apaixonas por myin e eu te amo yang

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Cardápio da alma Pela manhã inteira muito chá de Drummond-Bandeira Três tenras tortas de Pessoa acompanhadas das devidas loas No almoço, bacalhau a João Cabral Mousse de Manoel de Barros na sobremesa De lanche, tortilhas de Cecília e um strudel de Neruda No jantar, como entrada salada de Guimarães, mas só do rosa Em seguida, sopa de barbatana à Quintana Depois café de Vinícius, saciar o vício Pra arrematar e encantar Licor de Ferreira Gullar Entrando a madrugada Paris e suas calçadas Um fricassé de Mallarmé Um éclair de Baudelaire E ardendo num rechaud Um fondue de Rimbaud Muito Ezra Pound underground E Leminski, melhor que uísque! Nós, grandes gulosos dos sonetos mais famosos batidos num milkShakespeare T.S. Elliott nos dá o mote Adormecemos plenos de surpresas beleza e sorte Agora a morte já pode vir 124

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Sentimentalmente Foram voláteis os mais doces anos Todo prazer trazia o desapego Agora sou um comandante grego Ludibriado por ardis troianos Sou Minotauro preso ao Labirinto Encarcerado pelo pensamento Meu corpo é forte mas reage lento ao turbilhão de forças que pressinto O carcereiro é cheio de surpresas Me vê de dentro com olhar cortante Qual caçador que espreita a sua presa Entrada franca pro Inferno de Dante Depois das dez não tem mais luz acesa Volatizada como nunca d’antes

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Sim Era tão à flor da pele que virou jardim

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Vênus Tu arco-íris e eu a inundar-me Em luminosas caleidoscopias Vivo a trocar as noites pelos dias Roubas-me o sono, acionas meus alarmes Em preto-e-branco construí meu mundo De muitos cinzas pude colori-lo Agora vens, fractal Vênus de Milo Trazer-me cor e em cor então me afundo Cada emoção revela o seu matiz E pouco a pouco o pulso volta à vida Impulsionando a máquina motriz Sorvo-te, seiva multicolorida E emano luz que jorra em chafariz Sou prisma a dar à luz cor revertida

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Zoológica Cães vadios não são vacinados Tartarugas têm o casco duro Caranguejos andam para os lados Já o morcego voa no escuro Albatrozes são desengonçados Avestruzes fogem do futuro Bicho-homem quando apaixonado arde em febre, ri, grafita os muros Meio homem, meio ornitorrinco Tanto instinto quanto pensamento Sou melhor quando amo e quando brinco Colibri não vive em cativeiro Sobrevive o homem aos tormentos E mais livre, pode amar inteiro

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Mari pousa Com lucidez só sua delirante a maripousa na luz da lua prenuncia a nostalgia do futuro bate as asas nos muros das casas e quando o dia amanhece tece no orvalho retalhos dourados roubados do sol e às dezenas saem de cena suaves como as claves do outro sol bemol e sustenido e o dia ganha todo o sentido a manhã se arreganha e nos inspira o recomeço até que anoitece e a mariposa ressurge e redelira gira em torno da lua de prata a iluminar a acrobata que escreve um poema no ar

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Quase lĂĄ no fim tropecei na minha sombra e caĂ­ em mim

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Não quero mais Não quero mais ser poeta Poetas não matam fomes Empilham versos e nomes E fingem que atiram setas Poeta não vou ser mais De arroubos nos estribilhos Melhor conceber mais filhos Produtos mais funcionais Estrofes, rimas, lirismo Amores, dores, encantos Pra que versejar espantos? Melhor aterrar abismos Que o verbo é gozo e tormento O Inferno no Céu de Dante Quixote contra Cervantes Vítimas dos seus inventos Viro a folha com humor Que a vida é a melhor canção Mas com uma condição Que a musa me jure amor

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Este livro foi composto em tipologia FairfieldLH45-Light e News Gothic MT, em papel PolenBold 80 gr/m2, na O lutador grรกfica e editora, em Belo Horizonte, setembro de 2015.

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