Quando a filosofia pinta seu cinza sobre cinza Estudos sobre filosofia hegeliana
Quando a filosofia
pinta seu cinza
sobre cinza Estudos sobre filosofia hegeliana
Marcos Fábio Alexandre Nicolau Organizador
1ª Edição São Paulo, 2018
Usina Editorial
Coordenação Editorial
Valério Arcary, Bernardo Boris Vargaftig, Henrique Canary, Paulo César de Carvalho, Yuri Lueska, Helena Duarte Marques, Caio Dias Garrido e Stephano Azzi Neto
Capa e projeto gráfico Gabriela Costa
Revisão Autores
Organização
Marcos Fábio Alexandre Nicolau
Autores
Alexandre de Moura Barbosa, Francisco José da Silva, Marcos Fábio Alexandre Nicolau, José Edmar Lima Filho, Renato Almeida de Oliveira, Alberto Vivar Flores, Evanildo Costeski, Francisco Pereira de Sousa, Juliano Cordeiro da Costa Oliveira, Francisco Romulo Alves Diniz.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Q1q Quando a filosofia pinta seu cinza sobre cinza: estudos hegelianos / Marcos Fábio Alexandre Nicolau (organizador). – São Paulo : Usina Editorial, 2018. 224 p. ISBN 978-85-54136-02-4 1. Filosofia. 2. Dialética hegeliana. 3. George Wilhelm Friedrich Hegel. 4. Ciclo de Conferências Paulo Meneses. I. Nicolau, Marcos Fábio Alexandre, org. II. Título CDD 193 Ficha elaborada pela bibliotecária – Camila Zanini Luz Pereira CRB 8/10143
Usina Editorial Rua Líbero Badaró, 336 – 2º andar Centro – São Paulo – Brasil – CEP 01008-000
SUMÁRIO Apresentação
1. Fenomenologia do Espírito:
análise metodológica entre a obra de 1807 e a exposição na Enciclopédia §§ 413-439
Alexandre de Moura Barbosa
2. Hegel e a Mística Alemã Francisco José da Silva
3. A Religião como saber de si do Espírito em G. W. F. Hegel
Marcos Fábio Alexandre Nicolau
4. Feuerbach, Antropologia e Religião:
crítica da teologia cristã e afirmação do homem em “A Essência do Cristianismo”
José Edmar Lima Filho
5. O Formalismo Político e a Genericidade Humana Abstrata no Estado: Marx e a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel Renato Almeida de Oliveira
6. O Galo Da Madrugada contra a Coruja de Minerva. Uma Recepção Criativa de G. W. Hegel (1770-1831) desde a América Latina Alberto Vivar Flores
7. A morte do Estado nacional e o Estado futuro em Hegel segundo Eric Weil Evanildo Costeski
8. A Representação Política na Filosofia do Direito de Hegel
Francisco Pereira de Sousa
9. A Dialética da Secularização e da Religião em Hegel e Habermas
Juliano Cordeiro da Costa Oliveira
10. Fé e saber:
a leitura de Habermas a partir dos escritos da juventude de Hegel
Francisco Romulo Alves Diniz
Apresentação O Laboratório de Estudos Hegelianos (LEH/CNPq) propiciou aos acadêmicos e pesquisadores do semiárido cearense, entre 2016 e 2017, o Ciclo de Conferências Paulo Meneses, um espaço de exposição e debate sobre a filosofia hegeliana. A cada mês, em um ciclo de 10 conferências, realizadas nas dependências do Campus Betânia da Universidade Estadual Vale do Acaraú, em Sobral, Ceará, um tema fora abordado por pesquisadores e especialistas em filosofia hegeliana convidados. A ideia surgiu como parte dos objetivos almejados no projeto de pesquisa “A Religião como consciência do absoluto: o conceito de religião nas Lições sobre Filosofia da Religião de G. W. F. Hegel”, que contou com financiamento do Programa de Bolsas de Produtividade em Pesquisa, Estímulo à Interiorização e à Inovação Tecnológica (BPI 09/2015) da Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FUNCAP). Dentre outros objetivos do projeto, visávamos dar bases sólidas ao LEH/CNPq, com a finalidade de gerar o estímulo à pesquisa em estudantes do Curso de Filosofia, desenvolvendo, nos mesmos, interesse à pós-graduação. Com esse apoio, o I Ciclo de Conferências Paulo Meneses se configurou como espaço de conversação filosófica e interdisciplinar entre acadêmicos, pesquisadores e a sociedade, proporcionando “a exposição de um momento particular, ou de um grau particular no processo-de-desenvolvimento da Ideia” (HEGEL, Enz. §86 Anjá m.). Em seu título, o ciclo de conferências prestou as devidas homenagens ao Prof. Paulo Gaspar de Meneses, S. J., nascido em Maranguape, Ceará, em 11 de janeiro de 1924, que teve destacada atuação na área da Filosofia, em particular sobre a Filosofia de Hegel. Desta foi um reconhecido especialista, que desempenhou um papel fundamental na recepção e divulgação da obra hegeliana no país, por suas pesquisas e traduções. O filósofo faleceu em 10 de dezembro de 2012, em Fortaleza, e de imediato fora pensado homenagear seu legado filosófico com um evento que continuasse fomentando os estudos hegelianos. O resultado desta primeira edição do ciclo de conferências é a presente obra que aqui apresentamos. Nascido em Stuttgart, em 1770, Georg Wilhelm Friedrich Hegel foi, certamente, o último pensador moderno de incontestável importância. Integrante do chamado idealismo alemão, a filosofia hegeliana é um dos últimos modelos de pensamento abrangente da grande tradição filosófica, tornando-se um dos pilares para a compreensão tanto do pensamento de sua época, quanto do vindouro. Destaca-se a formulação de uma metodologia filosófica, sua dialética, que possibilitou abordar temas complexos, tais como a ética, a política e a religião. No entanto, a importância da dialética hegeliana vai além de seu próprio sistema, pois teve grande influência em sua época e se tornou umas das correntes formadoras do pensamento contemporâneo por meio de sua leitura por K. Marx, L. Feuerbach, E. Weil, J. Habermas, assim como por toda uma tradição de pensadores latino-americanos. Por fim, agradecemos a UVA e a FUNCAP por todo apoio fornecido e a todos os autores que gentilmente atenderam nosso convite, em especial a Lucélia Mara Serra, esposa do Prof. Dr. Alexandre de Moura Barbosa, por nos disponibilizaro texto que abre essa coletânea,
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o qual publicamos in memorian ao saudoso amigo e pesquisador, que participaria deste ciclo de conferências caso não fosse sua prematura partida rumo ao absoluto. Passemos então a leitura, instigados pelo ideal hegeliano que intitula essa obra: “Quando a filosofia pinta seu cinza sobre cinza, então uma figura da vida se tornou velha e, com cinza sobre cinza, ela não se deixa rejuvenescer, porém apenas conhecer; a coruja de Minerva somente começa o seu voo com a irrupção do crepúsculo” (HEGEL, Filosofia do direito, Prefácio – Tradução de Paulo Meneses et al).
Sobral, 06 de Abril de 2018 Prof. Dr. Marcos Fábio Alexandre Nicolau Organizador
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Cap. 1
Fenomenologia do Espírito: análise metodológica entre a obra de 1807 e a exposição na Enciclopédia §§ 413-439 Alexandre de Moura Barbosa
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Fenomenologia do Espírito: análise metodológica entre a obra de 1807 e a exposição na Enciclopédia §§ 413-439 Alexandre de Moura Barbosa1 In Memoriam
1. Introdução a questão: situação da Fenomenologia do Espírito (1807) como parte ou introdução do sistema? A recolocação da Fenomenologia do Espírito como apenas um capítulo da Enciclopédia III [1830] (§§ 413-439) abre uma discussão sobre a questão metodológica da posição da Fenomenologia de 1807 frente à estrutura sistemática. Como podemos ver na Tabela 1, a estrutura da sequência de capítulos, mostra um desenvolvimento necessário do conteúdo: Tabela 1. Estrutura Capítulo
Conteúdo
Tema
Antropologia
Mente [eu] – Corpo
Homem – [alma-corpo]
Fenomenologia
Aparição do Espírito no Eu
Mediação entre Antropologia e Psicologia
Psicologia
Espírito
Espírito finito subjetivo
A Fenomenologia do Espírito, nesse caso na Enciclopédia III (Espírito), expõe-se como um capítulo em que se tem um momento de mediação do espírito subjetivo que se situaria entre a Antropologia (e sua exposição da relação entre Eu – ou mente como alma e o corpo) e as considerações sobre a constituição do “homem”, de outro lado se tem a Psicologia, como exposição inicial do Espírito ainda imerso na finitude de si, como Razão. Essa Fenomenologia da Enciclopédia tem internamente em sua apresentação a passagem da consciência imediata (o que não há na Fenomenologia 1807), que se constituiria de uma certeza sensível, da percepção, do entendimento e posteriormente a figura da autoconsciência até a razão, como Espírito que chega ao saber absoluto, em sua simplicidade e pode superar a cisão inicial entre o fora (o Mundo), e o dentro (o Eu). Nessa apresentação “enciclopedêutica” de Hegel, a Fenomenologia perde a parte “conteudal” que remeteria o espírito e religião restringindo-se aos momentos que irão tão somente ao momento razão. Com efeito, isso mostraria que
1. Doutor em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e Graduado em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). Professor dos Cursos de Filosofia da Universidade Federal do Cariri (UFCA) e da Universidade Estadual do Ceará (UECE).
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a Fenomenologia do Espírito de 1807 em seu desenvolvimento excedeu ao que se cumpria estabelecer, isto é, ser a exposição na consciência da superação da dicotomia entre ser e pensar, partindo para a justificação da formação do espírito através de sua passagem por determinações históricas concretas abstraídas no interior da relação conceitual entre consciência e autoconsciência. (BARBOSA, 2010, p. 128)
Portanto, a questão se coloca sobre a necessidade e justificativa desse excedente, e se tal exposição poderia ser classificada como se pretendia uma “Introdução ao Sistema” ou parte integrante do mesmo. Se observarmos, Hegel nomeou a Fenomenologia do Espírito em suas pretensões iniciais como: “Primeira parte do sistema”; tendo em vista, como expõe em diversas partes do Prefácio a futura exposição da Filosofia especulativa (HEGEL, 1998, p. 41). Que, no caso, se tornou a Ciência da lógica [1812-1816], ou ainda a Ciência sistemática geral. Dessa forma, há na Fenomenologia uma necessária e evidente anterioridade à Filosofia Especulativa, ou mesmo ao Sistema, o que, de uma forma geral poderia ser denominado de uma “introdução”. Contudo, até que ponto a própria economia do sistema precisaria de uma introdução? Até que ponto faria parte do Sistema? Mas o que caracteriza ser introdução? Segundo Manfredo de Oliveira (2014, p. 150, nota), Na Enciclopédia Hegel menciona três formas de introdução: 1) A consideração detalhada das diferentes posições de pensamento diante da objetividade; 2) A consideração do ceticismo enquanto uma posição que reifica esta negatividade. (Tese de Bonaccini é que Fenomenologia do Espírito enquanto ciência da experiência da consciência é inseparável da tentativa de solucionar o problema cético); 3) Fenomenologia do Espírito.
Este problema parte da questão da “Introdução ao sistema” e à querela entre a Fenomenologia [1807] e as Noções preliminares da Enciclopédia [1817]. De uma forma específica, a enomenologia teria como fim (meta) de seu movimento o saber absoluto, em que suprassume o elemento abstrato posto na imediatez que marca a dicotomia entre o saber [subjetivo] e a verdade [objetiva] na unidade própria desse saber. A unidade entre a substância e a auto-consciência no que é o conceito, parte de um movimento mediativo e negativo. O que Hegel chamou na introdução na Fenomenologia de “Ceticismo amadurecido” (HEGEL, 1998, p. 66), ceticismo este que se efetiva, logo se nega a si mesmo como ceticismo. Segundo Bonaccini, há uma estratégia de refutação do ceticismo que ora se expõe como simples figura ora constitui estruturalmente o toda a obra, perpassando todas as demais figuras: O ceticismo agora parece que não é apenas a figura descrita num capítulo (IV, B), mas uma outra estrutura que perpassa todos os capítulos e está presente em cada uma das outras figuras como a condição de possibilidade de surgirem, a partir das contradições das figuras anteriores, e de efetuarem a passagem para as subsequentes figuras, ao se mostrarem elas mesmas em contradição com o objeto. E o ponto de vista, anunciado por Hegel, de levar a sério esse ceticismo inerente à consciência, parece ainda ser também denominado por Hegel ceticismo, numa espécie de terceira acepção. Trata-se do ceticismo “que se realiza” ou “que dá cabo de si próprio” (der sich vollbringende Skeptizismus), conduzindo à superação do ponto de vista da consciência a-científica precisamente na ciência da experiência da consciência, que já anuncia o ponto de vista da Ciência por vir (PhG, § 78). (BONACCINI, 2006, p. 65)
Com efeito, as figuras do espírito na sua exposição de um momento da totalidade, até chegar ao “Saber Absoluto” o que vai ser uma passagem para a Lógica, ou ainda como afirma no Prefácio da Fenomenologia (como Prefácio do Sistema): a passagem para a Filosofia
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especulativa. Contudo, nas Noções Preliminares na Enciclopédia, Hegel apresenta sistematica mente o desenvolvimento especulativo através da crítica filosófica sobre a forma de como o pensamento se situa frente à objetividade: a) Metafísica b) Empirismo e filosofia crítica c) Saber imediato (1988, pp. 80-133). Posteriormente, na reedição 1831, Hegel retira da obra Fenomenologia do espírito de 1807 o subtítulo: primeira parte do sistema, o que remeteria mais uma vez ao problema sobre sua função como uma introdução ao Sistema. Essa não necessidade de uma “introdução” pressuposta ao Sistema, ou pelo menos uma exposição justificativa do ponto de vista da consciência dessa “elevação” [Aufhebung] ao Saber Absoluto e a Filosofia Especulativa, marcaria um problema também relaciona com outro exposto no primeiro momento da Lógica, como uma tentativa de justificar seu começo no “ser puro”: Qual deve ser o começo da ciência? O que nos leva às perguntas: qual a posição da Fenomenologia do espírito com relação ao começo da Filosofia Especulativa? E ainda: a Fenomenologia do espírito é pressuposta ou não pela Ciência da Lógica? (BARBOSA, 2010, p. 18 e ss.) Em Qual deve ser o começo da ciência - que é um capítulo da Ciência da Lógica, Hegel retrata um problema especulativo acerca da necessidade de introdução ao sistema, pois “o começo da ciência absoluta deve ser ele mesmo começo absoluto, ele não pode pressupor nada” (HEGEL, 2011, p. 55). O ser é imediatamente simples, que do ponto de vista do saber [subjetivo] é um saber puro, ou um saber absoluto (como exposto no fim da Fenomenologia do espírito). Essa imediatidade simples é não só saber puro, mas também o ser puro, em sua própria imediatidade, “o ser, nada mais”. Desse modo, o começo dever ser pura imediatidade simples. Esta ausência de necessidade da Fenomenologia 1807 em seu movimento “introdutório-justificativo”, parece nas Enciclopédias: Noções preliminares, e em especial na nova posição da que Hegel parece colocar a “Fenomenologia” como pequena parte de uma totalidade sistemática, como visto anteriormente, como um pequeno capítulo entre antropologia e psicologia na terceira Enciclopédia. O que nos faz perguntar pela relação que a obra de 1807 guarda com este mesmo capítulo, seja de unidade metodológica ou de divergência.
2. Ceticismo e Experiência: sobre o método da Fenomenologia do Espírito de 1807 A metodologia da Fenomenologia do Espírito (1807) é exposta de forma bem determinada na Introdução, nela começa com uma crítica a forma moderna se relacionar com a objetividade – no caso o instrumento ou meio para o conhecimento. Há uma crítica a teoria do conhecimento e sua instrumentalização abstrata em que se vê ao mesmo tempo toda uma tentativa de dar conta de uma re-ontologização do saber. Ao mesmo tempo, é preciso dar uma escada para a consciência subir à Ciência e assim justificar e fundamentar o resultado, fugindo e criticando a imediatidade de uma “intuição intelectual”. “Exigir que a consciência natural (comum) entre imediatamente na filosofia é querer que ela ande de ponta cabeça” (HEGEL, 1998, p.34-35). Há, por parte de Hegel, uma crítica ao começo da ciência como uma “intuição intelectual”, como em Fichte, Schelling e românticos, porém é um desenvolvimento do próprio saber em seu movimento de aprendizagem-formação (paideia – em seu sentido clássico, de culturalização). Nesse movimento vê-se a relação com sua alteridade se torna independente da sensibilidade e da representação da subjetividade finita e torna possível o desenvolvimento das puras determinações do Espírito até sua Autoconsciência (Selbstbewusstsein) e o Saber Absoluto.
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As figuras, que são momentos em que a consciência em sua formação para o espírito acaba se demorando, apresenta imanentemente a aparição do espírito na consciência, até em seu momento de saber do absoluto. O conteúdo nas figuras se apresenta como uma introdução da consciência não-filosófica à ciência. Nessa “introdução” à ciência, a Fenomenologia do Espírito exporia o desenvolvimento especulativo da experiência, como dialética (Hegel, 1998, p.71). Nesse movimento, a formação dialética que move a consciência natural à consciência filosófica, ou no sentido platônico da dóxa à epistéme, é o que justifica a passagem para a Ciência especulativa. Enquanto isso, não há justificativa na “intuição intelectual”, pois esta promove uma identidade imediata entre a consciência comum (naturalmente dada) e a consciência científica, que implica a intromissão desse “Saber do Absoluto” onde ainda não há saber cietífico algum. Como chama atenção Hegel, no Prefácio da Fenomenologia, “um formalismo onde todas as ‘vacas são pardas’” (p. 29 passim). Esta “Paideia”, ou formação, tem na negatividade da experiência a característica de um momento automediativo essencial, pois é um movimento que leva a filosofia ao questionamento de suas verdades parciais. Tal posição é o que caracteriza a experiência como um “ceticismo”, e este como “uma ciência negativa aplicada por meio de todas as formas de conhecer” (HEGEL, 1988, p. 155); tornando-se uma postura de filosofar que se estabelece criticamente frente a todos os pressupostos, isto é, diante de todo dogmatismo pressuposto sem justificativa demonstrável. Segundo Hegel, o “ceticismo” é um momento de fundamental importância para toda a Filosofia em geral, pois traz em si o negativo frente a todas as parcialidades. Essa negatividade é fundamental para o movimento mediativo do intelectivo filosófico. A relação ceticismo e filosofia, se expõe nessa negatividade dialética contra todo o limitado e o finito: a sensibilidade e a representação. Com efeito, o finito tem por essência o negar-se a si mesmo, e ser-outro. A partir dessa consideração do finito, podemos ver que a negação é uma crítica interna do finito sobre si mesmo. A experiência dialética se expõe como uma “histórico-conceitual”, no decorrer de toda a obra de 1807, nas determinações que são as figuras. No capítulo sobre “Saber Absoluto”, há uma rememoração (Erinnerung) desses momentos sintéticos, em uma totalidade sintética especulativa, na qual se constitui uma totalidade da experiência do espírito, mas não só como “ciência da experiência”. Trata-se da passagem da Fenomenologia do Espírito para a Ciência da Lógica.
3. O lugar da Fenomenologia Espírito [1807] e sua relação com Fenomenologia na Enciclopédia [1830] Na minha Fenomenologia do Espírito – que, por isso, quando se publicou foi designada como primeira parte do sistema da ciência – tomou-se o caminho de começar pela primeira mais simples manifestação do espírito, pela consciência imediata, e de desenvolver sua dialética até o ponto de vista ciência filosófica (bis zum Standpunkt der philosophische Wissenschaft), cuja necessidade (Notwendigkeit) é mostrada através dessa progressão. (HEGEL, §25, 1989, p. 132)
A questão acerca do lugar da Fenomenologia no sistema, seja introdução ou parte, não é algo tão preciso, pois é possível ver na citação do para § 25 da Enciclopédia que ela cumpre um movimento necessário de desenvolvimento da consciência ao ponto de vista da filosofia. O próprio Hegel, parece não ter a ideia de abandonar a Fenomenologia 1807 como “primeira parte do sistema da ciência”, o mesmo ocorre na ciência da lógica, em que coloca um referência ao método na Fenomenologia: “na Fenomenologia do espírito apresentei um exemplo desse método em um objeto mais concreto, a consciência” [p. 33], e “Foi observado na intro-
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dução que a Fenomenologia do espírito é a ciência da consciência ...” (p. 51). Mesmo na filosofia do Direito, há ainda um remetimento a Fenomenologia de 1807, sobre a questão feminilidade e masculinidade na família, no §166. Estas referências não desmentem sobre o valor da Fenomenologia [1807] e a colocam como algo que tem sua importância no Sistema. Mas para isso não se podia ter ficado no formal da simples consciência: pois, o ponto de vista do saber filosófico é em si ao mesmo tempo o mais rico de conteúdo e o mais concreto; por conseguinte, ao desprender-se como resultado, ele pressupunha também as figuras concretas da consciência, como por exemplo, as figuras da moral, da ética, da arte, da religião. [...] Esse desenvolvimento deve, por assim dizer, avançar por detrás das costas da consciência, na medida em que o conteúdo [Inhalt] se relaciona à consciência enquanto o em-si, a exposição torna-se, por isso, mais complicada, e o que pertence às partes concretas já recai [fällt zum] parcialmente nessa introdução [à ciência]. (Hegel, 1989, 25§, p. 132)
Na continuação da citação §25 da Enciclopédia I, segundo Aquino, ainda que as figuras da consciência exponham o espírito, é ainda o espírito do ponto de vista da experiência da consciência sobre si, de todo modo trata-se uma questão essencial esta limitação a Fenomenologia e sua exposição (idem, loc cit). Onde é possível observar com Otto Pöggeler e Fr. Nicolin: “ele [Hegel] censura a exposição embrulhada da Fenomenologia: ela deveria ser apenas uma introdução, teve já de desenvolver muito daquele teor que em si pertence às partes concretas do sistema” (p. 30). Desse modo, em que há uma exposição que situa-se em uma narrativa histórico-conceitual do saber, pode dar ao indivíduo um modo de discernir que chegou o tempo da ciência especulativa e do sistema; no entanto, tal movimento e justificativa temporal, não remediaria para o próprio Hegel o “necessário salto” que permitiria se pensar sem pressupostos (PÖGGELER et NICOLIN, 1989, p. 30). Para Pöggeler, isso tornaria as noções preliminares, que estão na Enciclopédia, uma introdução ao mais viável que a Fenomenologia; o que seria próprio de uma exposição sem a necessidade temporal-conceitual como justificativa para o indivíduo. Além de uma crítica feita pelo próprio Hegel, ao uso do ceticismo como que é marca essencial da ciência da experiência da consciência na Fenomenologia de 1807 (Pöggeler e Nicolin, p. 30-31). Desse modo, como ele chama atenção no parágrafo § 78: o cepticismo, enquanto ciência negativa aplicada a todas as formas de conhecer apresentar-se-ia como uma introdução em que se demonstraria a nulidade de tais pressupostos. Mas seria um caminho não só desagradável, mas também supérfluo, porque o próprio [elemento] dialético é um momento essencial da ciência afirmativa, [...]. (p. 134)
Tal exigência se torna supérflua, pois, para Hegel, “graças à liberdade” a própria necessidade de um pensar sem pressupostos é apreendida em sua pureza e simplicidade (HEGEL, 1989, p.31). Aqui vemos um problema na compreensão de Bonaccini sobre essencialidade e necessidade do ceticismo e de sua dissolução, como efetivação da ciência positiva sem pressupostos na Fenomenologia (1807). A forma como Hegel pensou esta obra não seria mais a forma como pensa a necessidade de introdução na Enciclopédia, como em suas Noções Preliminares e mesmo na forma de exposição que há no capítulo da Fenomenologia da Enciclopédia. Antes de tudo, para tornar clara a diferença de conteúdo entre ambas as obras, vemos a tabela 2:
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Tabela 2. Diferenças entre a FdE e a FE
Introdução
§§ 73-89
Inexistente
---
Fenomenologia
---
A consciência
§§ 413-417
I. A Certeza sensível
§§ 90-110
Consciência sensível
§§ 418-419
II. A Percepção
§§ 111-131
O Perceber
§§ 420- 421
III. Força e Entendimento
§§ 132-165
O Entendimento
§§ 422-423
IV. A verdade da certeza de si mesmo
§§ 166-177
A Consciência de si
§§ 424-425
A. Independência Dominação e Escravidão
§§ 178-196
Desejo
§§ 426- 429
Consciência de si universal
§§436-437
Inexistente
---
Ceticismo
Inexistente
---
Consciência infeliz
Inexistente
---
B - Liberdade da consciência de si Estoicismo §§ 197- 230
IV. A verdade da certeza de si mesmo
§§ 166-177
A Consciência de si
§§ 424-425
IV. A verdade da certeza de si mesmo
§§ 166-177
A Consciência de si
§§ 424-425
O que é possível perceber nessa comparação é que há uma simplificação e um corte grande no conteúdo da Fenomenologia da Enciclopédia. Se a Fenomenologia 1807 tinha um conteúdo que como dito no 25§ da mesma Enciclopédia em que seria uma introdução ao sistema, que vai da consciência natural a filosófica com o Saber Absoluto, aqui a exposição chega apenas na Razão e não passa pelo Espírito [BB] Espírito finito concreto até Saber Absoluto. A determinação da Consciência de Si como Estoicismo, Ceticismo e Consciência Infeliz não são mais expostas e detalhadas. O momento da Razão não tem mais suas exposições internas. A ausência do Saber Absoluto mostra que ela aí é apenas uma passagem da antropologia para a psicológica e não uma introdução para Lógica. O interessante é que, como visto, mesmo citações posteriores a Enciclopédia, Hegel parece sempre retornar a Fenomenologia 1807, pois esta dispõe de uma exposição dos conteúdos bem mais detalhadas e desenvolvidas. Contudo, há outra questão para além do conteúdo, qual seja, se a forma expositiva entre as duas obras é a mesma. Como afirmado, anteriormente a forma expositiva da Fenomenologia 1807 possui na negatividade seu método essencial e tem a experiência como o movimento “cético amadurecido” que a cada momento vence a lacuna entre sujeito e objeto até a síntese no Saber Absoluto. A negatividade é o que possibilita o que denominou de “ciência da experiência da consciência”. Na Enciclopédia esta negatividade da experiência inexiste, é uma exposição sem ceticismos, que como visto, fora colocado em questão por Hegel, como um começo necessário para a Ciência. Trata-se de uma exposição muito resumida e sem as passagens necessárias demarcadas tanto internamente nos parágrafos que constituem cada capítulo, promovendo a passagem dos capítulos entre si mesmos.
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Por fim, a Fenomenologia 1807 apresenta uma questão que é a necessidade de introdução do ponto de vista da consciência através do ceticismo como metodologia de demonstração para consciência da verdade. Aqui tanto nas Noções preliminares quanto na Fenomenologia da Enciclopédia têm uma posição e apresentação do verdadeiro, isto é, uma metodologia analítica – em seu sentido clássico - na Fenomenologia 1807 – e sintético na Enciclopédia que se mostra bem na diferença entre a capítulo da Fenomenologia e a obra anterior de 1807.
Referências Bibliográficas: AQUINO, João Emiliano Fortaleza de. Exteriorização, alienação e formação cultural no capítulo vi da Fenomenologia do espírito. In: Trans/Form/Ação, Marília, v. 37, n. 1, p. 129-150, Apr. 2014. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0101-31732014000100007. Acesso 28/06/2018. BARBOSA, Alexandre de Moura. Ciência e experiência: um ensaio sobre a Fenomenologia do espírito de Hegel [recurso eletrônico]. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010. 154 p. Disponível em: www. pucrs.br/edipucrs/cienciaeexperiencia.pdf. Acesso 30/06/2017. BONACCINI, Juan Adolfo. O conceito hegeliano de “Fenomenologia” e o problema do ceticismo. In: VERITAS: Porto Alegre v. 51 n. 1 Março 2006 p. 56-68. Disponível em: http://revistaseletronicas. pucrs.br/ojs/index.php/veritas/article/view/1882/1403. Acesso 30/06/2017. HEGEL, F.G.W. Ciência da lógica: (excertos). Org. e trad.: Marco Aurélio Werlle. São Paulo: Barcarolla, 2011. ______. Enciclopédia das ciências filosóficas em epítome. Vol. I. Trad. port.: Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1989. ______. Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio. Vols. III. Trad: Paulo Meneses. São Paulo: Loyola, 1995. ______. Fenomenologia do Espírito. vol. I e II. Trad: Paulo Meneses. Petrópolis: Vozes, 1998. ______. Filosofia do direito. Trad.: Paulo Meneses e et alli. Rio Grande do Sul: UNISINOS, 324 p. 2010. OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. A. razão observadora: a. Observação da Natureza. In: VEIRA, Leonardo Alves; SILVA, Manuel Moreira da (Orgs.). Interpretações da Fenomenologia do Espírito de Hegel. São Paulo: Edições Loyola, pp.149-170, 2014. PÖGGELER, Otto; NICOLIN, Fr. Introdução [a edição Felix Meinen]. In: HEGEL, G. W. F. Enciclopédia das ciências filosóficas em epítome. Vol. I. Trad. port.: Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1989.
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Cap. 2
Hegel e a Mística Alemã Francisco José da Silva
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Hegel e a Mística Alemã Francisco José da Silva2
Introdução A Mística é muitas vezes confundida com algum tipo de pensamento mágico ou pura mente religioso, o qual conduziria ao obscurantismo e a uma visão ingênua da divindade. Essa visão da mística é reforçada quando se atribui aos místicos, aquilo que vulgarmente tem se denominado misticismo e esoterismo, uma espécie de distorção da espiritualidade mais profunda. Ao contrário disso, a Mística deve ser compreendida como a forma mais elevada e profunda de relação com o divino ou absoluto, uma experiência de unidade com o todo e com o mais profundo núcleo do real. Segundo Lima Vaz, em seu livro “Experiência mística e filosofia na tradição ocidental”, a Mística pode ser entendida de três formas diferentes: a mística profética, a mística mistérica e a especulativa (cf. LIMA VAZ, 2000). A mística profética (Ibidem, p. 57-75) encontra-se nos escritos dos grandes profetas de Israel, que revelavam a Palavra de Javé, sendo, portanto uma mística da Palavra, que se revela através da fé e do amor, a mística mistérica (Ibidem, p. 4756) diz respeito às religiões de mistério da Grécia antiga (Mistérios de Ceres-Eleusis, de Orfeu, etc.), onde se buscava um encontro ou unidade com a divindade através de ritos de iniciação3, por fim, a mística especulativa desenvolveu-se através dos grandes pensadores antigos e medievais que buscavam através da razão, uma unidade com o infinito, uma visão da totalidade e da unidade de todas as coisas (Ibidem, p. 30-47). Nesse sentido, percebemos que os grandes sistemas filosóficos e especulativos desde a antiguidade até a modernidade estão imbuídos de elementos místicos, sejam religiosos ou especulativos puros, que nos permitem apreender a realidade como um todo e uma unidade, neste caso citamos na antiguidade, Platão e a tradição neoplatônica, Plotino e Proclo (Séc. II) (cf. BEZERRA, 2006), no início do medievo, Pseudo-Dionísio Areopagita (Séc.V), Escotus Erígena (815-877), São Boaventura (1221-1274), além dos místicos da chamada ‘mística renana’ Mestre Eckhart (1260-1328), Henrique Suso (1300-1366), Johannes Tauler (13001361), já no início da modernidade temos o alemão Jacob Boehme (1574-1625) e, no Idealismo Alemão, a mística é reinterpretada por Hegel (1770-1831). Segundo Franz Pfeiffer, citado por David Konig em seu livro ‘Hegel et la Mystique Germanique’, Os místicos alemães são os patriarcas da especulação alemã. Eles representam as origens de uma filosofia alemã independente. Enfim, os princípios sobre os quais se construíram os sistemas tornados célebres cinco séculos mais tarde, se encontram neles não somente o seu germe, mas em parte já sua totalidade. (PFEIFFER apud KONIG, 1999, p. 7)
2. Professor Adjunto do curso de Filosofia da Universidade Federal do Cariri (UFCA), Doutorando em Filosofia (UFC). 3. O termo mystikos deriva de mystes, o iniciado nos mysteria, os mistérios do deus. O termo também foi utilizado pelos primeiros cristãos para falar dos sacramentos, Batismo e Eucaristia, considerados mistérios não acessíveis aos não iniciados na nova religião (cf. SANTO AMBROSIO, 2016).
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Em Hegel, podemos considerar que a tradição da mística chega ao seu ápice e seu maior acabamento, assumindo elementos de toda a tradição ocidental. O sistema hegeliano incorpora a visão especulativa do cristianismo e eleva-o a reflexão dialética. Podemos encontrar em toda a obra de Hegel, referências e análises sobre os grandes místicos, bem como sua superação através da especulatividade dialética.
Hegel e a Mística Alemã As primeiras referências à mística na obra de Hegel se encontram já nos seus escritos juvenis, entre eles destacamos o ensaio “O Espírito do Cristianismo e seu destino” (1799) e outros fragmentos do período de Frankfurt e Jena4. Nesse período Hegel já incorporava as ideias místicas renanas de Mestre Eckhart5, Henrique Suso, além do sapateiro de Görlitz, Jacob Boehme6, presentes na ideia de reconciliação ou unificação dos opostos. É necessário esclarecer que não pretendemos advogar a ideia que Hegel seja um místico, nem muito menos que suas ideias se reduzem a uma ratificação das concepções dos místicos medievais em sua visão de mundo e de divindade, muitas delas ainda presas ao chamado saber imediato ou a certo entusiasmo religioso (Schwärmerei) (cf. MOREIRA, 2006), mas que Hegel percebe nesses autores elementos especulativos que serão desenvolvidos e explicitados em sua própria filosofia. Segundo Lima Vaz, Hegel é o ponto alto da mística de inspiração renana, “convém lembrar ainda que a mística especulativa renana desempenhará papel importante na transformação moderna da mística em filosofia especulativa que culmina em Hegel” (LIMA VAZ, 2000, p. 40-41). Isso significa que os grandes temas da filosofia especulativa alemão já se encontram nas intuições dos místicos medievais, entre eles a própria ideia de interioridade do indivíduo que será o ponto de partida para a reflexão a respeito da subjetividade. O próprio Hegel reconhece o papel da mística no desenvolvimento da filosofia medieval, como fica claro em suas Lições sobre a História da Filosofia:
4. Baader, Franz Von. SW, Band 15, s.159, “Criaturas face ao objeto infinito são um nada” (em ‘Espírito do Cristianismo e seu destino’, conferir ‘Escritos de Juventude’). Também há referências nas suas notas e fragmentos de Jena (1803-106), números 46 e 49. 5. Em especial aos Sermões 12 e 52 (Q 201 e 503-4) de Mestre Eckhart. Como bem observa Georges Gurvitch: “Com Mestre Eckhart, o jovem Hegel afirma que Deus e o ser são idênticos, mas que Deus não é nada sem o mundo criado, e que, não somente para nós como para si mesmo. Deus era inconsciente e incognoscível antes do aparecimento das criaturas; em outras palavras, que Deus não era Deus antes da criação, e que, “ao criar a criatura”, aí incluído “o ser”, se criou a si mesmo. Mas para recordar as criaturas este drama, ao mesmo tempo divino e humano, a alma deve superar-se a si mesma para fundir-se em Deus. Tanto em Eckhart, como nas páginas do jovem Hegel, essa mística é expressa mediante uma dialética que é simultaneamente ascendente e descendente e que se formula como tese, antítese e síntese: I – Deus idêntico ao Ser; II – Deus convertido no mundo criado; e III – por último, Deus e o mundo, unidos e reconciliados consigo mesmos. Por outro lado, segundo o jovem Hegel, esta síntese é o Cristo, que encarna ao mesmo tempo o retorno no mundo criado a Deus e o triunfo de Deus sobre o mundo criado.” (GURVITCH, 1987, p. 76). 6. Georges Gurvitch também faz referência a influência de Jacob Boehme sobre o pensamento do jovem Hegel nos seguintes termos: “O parentesco das ideias do jovem Hegel com as de Jacob Boehme ao qual Alexandre Koyré consagrou uma excelente tese, não é menos surpreendente. Para Boehme, não somente Deus é a primeira evidencia porque criou o mundo, como também Deus se encontra em perpetua cólera contra o mundo que criou, e esta cólera provoca um movimento perpetuo no mundo criado; isto está na origem do drama do mundo e de sua história, pois somente voltando a Deus podem o mundo criado e os homens que o habitam apaziguar “a cólera de Deus”. Como diz com muita justiça Jean Wahl, “a história de Deus e a história do mundo” se confundem em Boehme e em Hegel, da mesma maneira que se confundem a consciência infeliz de Deus e a consciência infeliz do homem, a qual, por outro lado, se torna consciência feliz quando, na união mística provocada pela síntese dialética, a alma regressa a Deus levando-lhe o homem. Jean Wahl escreve: ‘O que primitivamente havia no fundo da alma do autor da Lógica era uma visão cristã da cruz e uma visão boehmiana da cólera de Deus. O que há no fundo da alma desse pretenso racionalista é esse duplo mistério. A cólera de Deus (a Grimmigkeit de Boehme) aparece como o princípio da dialética e desse movimento de retorno para si com o qual culmina sua dialética’. ‘Hegel nos mostra a ideia de negatividade como muito próxima da ideia de cólera de Deus, fazendo aparecer e desaparecer a finitude das criaturas. Ele nos mostra Deus, esse centro infinito, irritando-se pela expansão da natureza dele nascida e consumando-a” (GURVITCH, 1987, p. 76-77).
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Os místicos não participam tão distantes nem tão próximos das disputas, as argumentações e as provas dos demais escolásticos, e procuram ater-se com maior pureza possível a doutrina da Igreja e a contemplação filosófica. São, em parte, homens piedosos e sutis, que seguiram filosofando ao modo dos neoplatônicos, como antes deles já fizera Escotus Erigena. Encontramos neles uma autentica filosofia, ainda que presente sob o nome de misticismo, é uma filosofia intima e recatada, que guarda uma grande semelhança com o spinozismo. Estes pensadores derivam ademais sua ética, sua religiosidade, das verdadeiras emoções, e neste sentido formulam suas considerações, seus preceitos, etc. (HEGEL, 1997, p. 148)
Em alguns passos de seu sistema, o filosofo de Stuttgart, nos dá pistas do lugar da mística especulativa e de sua relação com o Saber Absoluto. Entre as obras que destacamos, estão a Fenomenologia do Espírito (1807), a Ciência da Lógica na primeira parte da Enciclopédia das Ciências Filosóficas em epítome (1817), e também o último volume desta, a Filosofia do Espírito, por fim, nas Lições sobre Filosofia da Religião (1824). Na Fenomenologia do Espírito (1807), a experiência que a consciência faz de si nas suas figuras culmina na identidade entre sujeito e objeto, uma espécie de ‘união mística’, onde as distinções são superadas no Saber Absoluto. A Fenomenologia pretende superar a concepção de conhecimento baseada na ideia de separação entre sujeito e objeto, em especial proposta pela filosofia crítica de Kant, denominada por Hegel ‘filosofia do entendimento’. Compreende-se que a concepção dessa filosofia do entendimento só apreende o real através da representação, ou seja, o sujeito tem o papel de representar o objeto como algo dado através do fenômeno, mas do qual não temos nenhum saber do que seja em si mesmo7. Para a filosofia kantiana, temos uma intuição sensível da coisa, mas nunca podemos apreendê-la em si mesma numa intuição intelectual, isto ultrapassaria o âmbito do conhecimento possível, que se dá na experiência (cf. KANT, 1996). Neste sentido, o Incondicionado ou Absoluto só pode ser pensado como ideia, mas nunca apreendido como algo em si mesmo, como conhecido por nós. Isso fica evidente a partir da crítica de Kant às três provas da existência de Deus (ontológica, cosmológica e físico-teológica) (Ibidem). Na Fenomenologia de Hegel, os momentos da Consciência no seu movimento rumo ao Saber Absoluto têm como ponto de partida a Percepção Sensível, seguindo a Autoconsciência, Razão, Espírito, Religião8 e por fim, o Saber Absoluto. Na crítica hegeliana, o saber especulativo apresenta a essência do objeto em sua manifestação no fenômeno, a verdade revela-se através do fenômeno, o que permite dizer o que a realidade é em si mesma racional. Essa crítica a concepção kantiana leva a retomada de uma possibilidade de pensamento metafísico, não mais como a metafísica dos antigos (de caráter puramente objetivo), mas agora mediada pela subjetividade humana, um elemento irrecusável do próprio pensamento da modernidade. Essa proposta de uma nova metafísica será consolidada na obra “Ciência da Lógica” (1812). Uma vez compreendido o movimento do saber ou experiência da Consciência em suas figuras na Fenomenologia, faremos referência a versão de ‘A Ciência da Lógica’, do primeiro 7. Vale ressaltar que Kant em seus ‘Escritos Pré-Críticos’ abordou as visões de um místico dinamarquês do século XVII, Emanuel Swedenborg, autor das obras ‘Arcana Coelestia’ e ‘Apocalipsis revelata’, no ensaio “Sonhos de um visionário explicados pelos sonhos da metafísica” (cf. KANT, 2005). 8. A Religião é um dos momentos ou figuras da Consciência pensada como consciência de si do Espírito, ou seja, a Religião é o Espírito que se reconhece no mundo, mas cujo objeto é pensado como um além, daí a ideia de “consciência infeliz” que representa o cristianismo como consciência do infinito no finito, mas enquanto pensado fora de si, transcendente. Só no Saber Absoluto, a Consciência percebe-se como verdade, mas cujo conteúdo não está fora de si, num outro, mas imanente a si mesma (cf. HEGEL, 2002).
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volume da Enciclopédia das Ciências filosóficas em epítome (1817), que deve ser considerada como a elaboração mais acabada da compreensão especulativa de Hegel, nela encontramos várias referências a mística, em especial a obra de Jacob Boehme (cf. HEGEL, 1989, p. 55). A própria estrutura do lógico é apresentada por Hegel segundo uma divisão que supõe a unidade última na especulação. A Lógica assim é ao mesmo tempo uma Lógica e uma Metafísica, pois apresenta o movimento do pensar que é ao mesmo tempo o movimento do real (HEGEL, 1995, p. 58). Neste primeiro volume da Enciclopédia das Ciências Filosóficas em epítome (Lógica, de 1817), Hegel não deixou de reconhecer a profundidade do místico Boehme e sua visão especulativa de Deus foi evidentemente importante na formação deste e em sua visão da Trindade como uma realidade dinâmica: A este espírito poderoso atribui-se com razão o nome de ‘philosophus teutonicus’; por um lado, alargou o teor da religião para si até a ideia universal; concebeu no mesmo teor os mais elevados problemas da razão e tentou apreender o espírito e a natureza nas suas esferas e configurações mais determinadas, ao fundar-se no princípio de que o espírito humano e todas as coisas foram criados à imagem de Deus e, claro está, de mais nenhum outro do que o Uni trino. (HEGEL, 1989, p. 55)
Boehme recebe de Hegel o epíteto de ‘filosofo teutônico’, pois ele encarna o espírito da filosofia alemã, pois nesta filosofia, o Absoluto (Deus) é o Espírito pensado como liberdade infinita e como movimento (Trindade), temas presentes na filosofia do sapateiro de Görtliz (cf. HEGEL, 1997). Diante dessa referência feita por Hegel na Lógica, poderíamos nos questionar: como essa realidade presente na obra de Boehme é compreendida por Hegel em sua Lógica? Quais os motivos especulativos presentes nas revelações místicas do teósofo alemão? No tratamento dado ao especulativo na Lógica de Hegel devemos compreender suas determinações fundamentais, em um primeiro momento, o lógico é caracterizado pelo momento abstrato-entendimento, em segundo lugar, pelo momento negativo-racional ou dialético e por fim, pelo momento positivo-racional ou especulativo (HEGEL, 1995, p. 134). A mística é considerada por Hegel uma forma do saber especulativo, que embora ainda não tenha o rigor e alcance da Lógica, partilha dos mesmos conteúdos e do mesmo objetivo, enquanto compreende o movimento do pensar, ou seja, a “mente de Deus”. Essa autocompreensão da Razão por si mesma, só se dá no âmbito do pensamento, numa forma de saber mediato, mas cujo conteúdo é o Todo. A respeito da significação do especulativo, há que mencionar aqui o que se tem de entender, por isso, o mesmo que antes se costumava designar como místico – sobretudo em relação à consciência religiosa e a seu conteúdo. Hoje em dia, quando se fala de místico, esse em geral conta como sinônimo de misterioso e inconcebível e esse misterioso e inconcebível é então, segundo, aliás, a diversidade da cultura e mentalidade, considerado por um como autêntico e verdadeiro, por outro como superstição e ilusão. (HEGEL, 1995, 168-169)
Como vimos anteriormente, a abordagem que considera a mística como uma forma de religiosidade obscurantista e misteriosa confunde o real conteúdo apresentado na experiência mística, pois a entende segundo categorias da finitude próprias da filosofia do entendimento, embora esta seja dada de forma não mediada na experiência da união extática, mas que pode ser articulada filosoficamente através da filosofia especulativa. Neste sentido, Hegel distingue a abordagem do entendimento a respeito do místico ou especulativo:
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Deve-se notar, a propósito, antes de tudo, que o místico sem dúvida é algo misterioso, contudo só para o entendimento, e de fato simplesmente porque a identidade abstrata é o princípio do entendimento, enquanto o místico (como sinônimo de especulativo) é a unidade concreta dessas determinações que para o entendimento só valem como verdadeiras em sua separação e oposição (...) Todo o racional, por isso, pode ser ao mesmo tempo ser designado como místico, mas com isso somente se diz que vai além do entendimento, e de modo algum, que o racional seja a considerar em geral como inacessível e inconcebível para o pensar. (HEGEL, 1995, p. 168)
Na Mística, esse saber do Todo como ‘Unidade Absoluta’, é compreendido como ‘união mística’, embora na mística esse saber do Infinito não seja plenamente compreendido por aquele que tem a experiência do Absoluto, uma vez que esta experiência é concebida na forma da imediatidade. Na filosofia especulativa essa unidade é pensada como resultado de um processo, numa resolução de determinações do próprio pensar. A mediação é o processo pelo qual as determinações são pensadas em sua passagem e sua dinâmica segundo as leis do pensar lógico, tornando possível a apreensão numa totalidade concreta. Na Enciclopédia, na Filosofia do Espírito (terceiro volume), Hegel trata do Espírito em suas três determinações, o Espírito Subjetivo, Objetivo e Absoluto. O Espírito chega à plena compreensão de si mesmo no Saber Absoluto, em seus momentos determinantes, na Arte, na Religião e na Filosofia. Esta compreensão é mediada pelas categorias da sensibilidade, representação e pensamento. A Arte manifesta o Espírito enquanto imediatidade, na forma da sensibilidade, através das formas artísticas ou sistema das artes (Arquitetura, Escultura, Pintura, Música e Poesia), a Religião apresenta-o na forma da representação (Criação, Encarnação, Trindade, etc.). Na Religião, encontramos o mesmo conteúdo da Filosofia, ou seja, o Absoluto (Deus), embora numa forma ainda particularizada e histórica, será na Filosofia que este será compreendido no pensamento (cf. HEGEL 1995², p. 351). O Cristianismo é, para Hegel, a forma mais elevada da Religião, em seu desenvolvimento histórico e espiritual. No Cristianismo, Deus é pensado como Espírito e Trindade, o que em Hegel revela o caráter especulativo dessa religião, uma vez que Deus é pensado não apenas como forma natural (como nas religiões primitivas da natureza), nem como representação abstrata (no Judaísmo e no Islamismo), e muito menos como forma antropomórfica e estética na Religião da Arte (Grega). Nas Lições de Filosofia de Religião (1824), Hegel trata especificamente sobre a questão da especulatividade do Cristianismo e sua mística. Deus é Espírito; Deus determinado assim abstratamente como o Espírito Universal que se particulariza, tal é a verdade absoluta, e a religião que possui este conteúdo é a religião verdadeira. Isso é o que na religião cristã se denomina Trindade – o uno e o trino, enquanto se empregam as categorias do número -; se trata de Deus que se diferencia, mas que permanece idêntico a si mesmo; a Trindade se chama mistério de Deus: o conteúdo é místico, quer dizer, especulativo. (HEGEL, 1984, p. 120)
Este ‘mistério’ como nos diz Hegel, não é um mistério revelado a alguns iniciados (mística mistérica), mas mistério revelado a todos, com manifestação espiritual na comunidade, Deus está presente nessa comunidade de fé, nela experimenta-se a unidade dos membros com o divino. Essa ‘união mística’ que na religião ainda está ligada a representação (particular), torna-se plena e concreta através do pensamento (universal) na Filosofia. A Filosofia, como reconhece Hegel, é o momento mais elevado que recolhe em si as determinações anteriores e pensa o Espírito em seu próprio elemento adequado, o espiritual. Aqui
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a verdade aparece como é em si mesma, como Razão Universal, em si e para si (cf. HEGEL, 1995²). A filosofia especulativa é a consciência da ideia, de forma que tudo é concebido como ideia, porém, a ideia é a verdade do pensamento, não é a simples intuição enquanto representação. O verdadeiro no âmbito do pensamento consiste mais exatamente em algo que é concreto, em que é posto como cindido em si, e certamente de forma que as duas partes são nela determinações opostas ao pensamento e a ideia há de ser concebida como a unidade das mesmas. Pensar especulativamente consiste em dissolver uma realidade e opor-se a ela de forma que as diferenças se oponham de acordo com as determinações do pensamento e o objeto seja concebido como unidade de ambas (...) Tal é em geral o conteúdo da especulação: conceber todos os objetos do pensamento puro, da natureza e do espírito sob a forma do pensamento e deste modo como unidade das diferenças. (HEGEL, 1981, p. 88)
A filosofia especulativa assume assim aquilo que na mística cristã é pensado segundo a forma da representação na Religião, o qual por sua vez não pode ser compreendido pela filosofia do entendimento, uma vez que esta separa o conteúdo da forma. A filosofia de Hegel será assim capaz de falar sobre algo que a experiência mística apenas pode intuir, mas que devido às limitações do seu modo de representação só pode ser pensado como ex periência inefável, cujas únicas maneiras possíveis de comunicar são a metáfora, o paradoxo e as contradições linguísticas.
Conclusão Como vemos não é insignificante o lugar ocupado pela mística na obra de Hegel, em especial sua vertente especulativa cristã, o qual eleva as intuições e concepções dos grandes místicos da tradição (sejam eles do paganismo, do cristianismo medieval, da tradição islâmica e oriental) ao ápice da reflexão especulativa. É perceptível a influência da mística renana (Mestre Eckhart, Johannes Tauler e Henrique Suso), embora consideremos que o filósofo Jacob Boehme ocupe um lugar de destaque, sendo uma das figuras mais controversas e obscuras do pensamento cristão do início da modernidade. A concepção de Trindade e sua relação com o negativo (o Mal) é uma das principais temáticas assumidas por Hegel em sua compreensão especulativa de Deus. Nesse sentido, faz-se necessário um estudo pormenorizado que possa acompanhar a trilha boehmeniana na obra de Hegel, esclarecendo assim outras questões relacionadas à visão especulativa da mística no filosofo de Stuttgart. O caminho que percorremos na obra de Hegel é apenas uma indicação de outras abordagens que possam esclarecer melhor a presença do pensamento místico cristão, em especial no pensamento de Hegel, mas também no Idealismo Alemão como um todo.
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Cap. 3
A Religião como saber de si do Espírito em G. W. F. Hegel Marcos Fábio Alexandre Nicolau
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A Religião como saber de si do Espírito em G. W. F. Hegel Marcos Fábio Alexandre Nicolau9 Consolida-se a filosofia da religião como um tema que vem despertando novo interesse nos últimos anos, os estudos que esse ramo da filosofia realizou vêm somar-se aos inúmeros projetos do pensamento moderno de compreender a experiência religiosa como um dos elementos mais instigantes da existência humana. Desde o início da modernidade, marcada pela descoberta da subjetividade (Descartes), objetivou-se uma racionalização da experiência religiosa, o que incitou uma série de projetos filosóficos nos quais a religião evidenciaria um dos momentos essenciais na constituição do humano, marcado por sua racionalidade, sua passionalidade e por sua fé. Nessa perspectiva, o presente estudo analisa, em linhas gerais, o conceito de religião a partir da filosofia de G. W. F. Hegel (1770-1831), que dedicou parte de sua obra a determinação sistemática da experiência religiosa. Para o filósofo, A filosofia da religião tem de reconhecer a necessidade lógica no progresso das determinações da essência sabida como absoluto; determinações a que corresponde, primeiro, o modo do culto assim como, em seguida, a consciência-de-si do mundo, a consciência sobre o que seja a mais alta determinação no homem, e assim a natureza da eticidade de um povo, o princípio do seu direito, de sua liberdade efetiva e de sua Constituição, como também de sua arte de sua ciência; [todas essas coisas] correspondem ao princípio que constitui a substância de uma religião. Que todos esses momentos da efetividade de um povo constituam uma só totalidade sistemática, e que um só espírito os crie e configure, esse discernimento reside no fundamento do discernimento ulterior de que a história das religiões coincide com a história do mundo. (HEGEL, 1995, §562, nota, p. 344)
No entanto, apresentar um estudo que tem por tema o conceito de religião em Hegel possui algo de paradoxal. Por um lado, trata-se de um tema da maior relevância dentro de sua proposta filosófica, pois não parece possível compreender sua filosofia sem apreender o papel que nela desempenha a religião em geral, e mais enfaticamente a religião cristã em sua versão luterana. Essa primeira perspectiva justificaria seu estudo por seus fins exegéticos e hermenêuticos essenciais à compreensão dessa complexa filosofia. Porém, por outro lado, Hegel compreende a Religião como um dos momentos mediadores da manifestação do Absoluto, estando acima da esfera da Arte, porém abaixo da Filosofia. A religião seria um dos momentos do absoluto e não a expressão máxima do absoluto. Essa segunda perspectiva serve como justificativa desse estudo na medida em que fornece as bases para uma delimitação do campo religioso na busca da compreensão do homem.
9. Doutor em Educação FACED/UFC. Doutorando em Filosofia PUC-RIO/UVA (DINTER). Professor Adjunto do Curso de Filosofia UVA e do Mestrado Profissional em Filosofia UFC/UFPR. Membro do GT Ética e Cidadania e do GT Hegel da ANPOF. Membro da Associação Brasileira de Filosofia da Religião (ABFR). Bolsista BPI/Funcap.
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Como dito acima, não foram raras as vezes que o filósofo analisou o conceito de religião, esse é um tema que lhe preocupa desde os tempos do Seminário de Tübingen – o que pode ser confirmado na leitura de seus Escritos de Juventude – até os tempos de docência em Berlim – quando transforma a religião em um dos assuntos de seus cursos universitários (Lições sobre Filosofia da Religião). Nesses estudos, Hegel considera prudente analisar e revisar o que até sua época havia sido produzido a respeito da religião e como era apreendido seu principal conteúdo: Deus. Posto que, na Europa dos séculos XVIII e XIX, as discussões sobre o tema, em grande parte, estavam ligadas a esferas relacionadas à teologia cristã, que se encarregava de fazer de Deus um fantasma infinito, cujo entendimento era inalcançável à consciência humana em sua finitude. Por sua vez, tematiza a religião como algo que vai além da esfera institucional (a Igreja), e que está intrinsecamente ligado a esfera do humano, abrindo inúmeras possibilidades de interpretação à experiência religiosa. O que implicava em não considerar de forma abstrata e intelectual o que era a religião, e transformá-la em algo de caráter antropológico e histórico. Em sua Fenomenologia do Espírito, obra imprescindível na apreensão de seu sistema filosófico, encontramos o devir da consciência em seu caminho rumo ao saber absoluto (autoconsciência). Nessa obra a religião é uma das seis fases do caminho a ser trilhado pela consciência em sua formação, sendo um campo onde se manifesta a unidade entre a finitude e a infinitude, ambas categorias constituintes do real. Apreender esse caráter dialético da religião, estabelecendo uma relação intrínseca entre a esfera do divino e do humano, do necessário e do contingente, da ciência e da fé, é um dos ideais da filosofia da religião hegeliana e o principal desafio de quem nela adentra. Dessa forma, Hegel atribui um sentido à religião, tomando-a como uma unidade dialética entre finito e infinito, entre homem e Deus. Assim, diferentemente de outras filosofias, que se esforçaram na busca de uma teoria que garantisse à reflexão filosófica a existência de Deus (Anselmo, Tomás de Aquino, Duns Scotus, Descartes, Leibniz, Kant), preocupa-se em demonstrar que a própria história humana constitui tal prova, pois o Deus de Hegel está tão somente em sua manifestação. Assim, quando Hegel fala de religião, compreende-a como algo pressuposto e evidente na própria existência do sujeito, ou seja, todo indivíduo está relacionado de maneira direta ou indireta com uma experiência que configura um saber sobre o absoluto. Dessa forma, sua proposta em seu fim último consiste em compreender o experienciar da religião, isto é, compreender a religião como parte da atividade da consciência, indagando sobre o papel que ela exerce na mesma. Mas essa perspectiva não deixa de ser problemática, pois defronta com duas perspectivas já consolidadas: a primeira põe a religião referente ao indizível, representando o enigma da existência (Kant), já a segunda considera a religião apenas uma forma de exteriorização do sentimento humano em sua forma pura (Scheleimacher). Hegel repreende ambas as propostas, e busca demonstrar que a religião possui um sentido superior as mesmas, pois está relacionada a uma compreensão da realidade em sua estruturação lógica: arte, religião e filosofia fazem parte de um processo de autoexpressão do absoluto na realidade, no mundo objetivo e histórico. Nessa perspectiva, o conceito de religião em Hegel detém umacondição histórica e antropológica, estruturadora de uma organização social e existencial. Não sendo por mero acaso a continua influência que a esfera da religião, em pleno século XXI, exerça sobre as ações humanas.
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Ora, a consciência religiosa já é a certeza da verdade, diz esta verdade de forma imediata (um algo que se lhe revela como um dado), a saber, assume de forma imediata – como um algo que lhe foi revelado – que o fundamento de todas as coisas, isto é, que o fundamento do próprio real como tal – o que para si é o divino – é espírito; porém, esta mesma consciência religiosa ainda não é o pensamento especulativo que pensa esta verdade, que sabe esta verdade – intimamente – como a verdade concreta do espírito que pensa a si mesmo como o absoluto; pensamento este que sabe que o absoluto não é simplesmente dado – revelado imediatamente – mas sim algo que veio-a-ser (conhecendo-se a si mesmo) através de um longo e dolorido processo de formação (Bildung). Este pensamento que pensa a verdade em sua concretude, que sabe de si como do espírito absoluto – que sabe rigorosamente, uma a uma, as “estações” do seu vir-a-ser verdade – é a filosofia especulativa (que diz sem medo que a essência vem-a-ser explicitada através do “si” do sujeito que sabe de si como aquele que a partir de seu interior subjetivo “produz” a verdade objetivamente) e não a religião. Assim, a religião já é consciência da verdade universal do espírito, porém ainda veste a roupagem – ainda não livre em si e para si mesma – da representação; sua vivência religiosa experimenta nela imediatamente a vida do universal, porém a vida efetiva do espírito ainda corre ao largo da mesma; a religião ainda não é a completa reconciliação do espírito para consigo mesmo, pois ainda coloca o espírito frente à alteridade, frente a um para além de si. Na medida em que o espírito na religião se representa para ele mesmo, ele é certamente consciência, e a efetividade incluída na religião é a figura e a roupagem de sua representação. Mas nessa representação não se atribui à efetividade seu pleno direito, a saber, o direito de não ser roupagem apenas, e sim um ser-aí livre independente. Inversamente, por lhe faltar sua perfeição em si mesma, é uma figura determinada, que não atinge o que deve apresentar: isto é, o espírito consciente de si mesmo. A religião, mais especificamente no cristianismo, assumiu para si, dentro do desenrolar necessário do espírito vindo a ser para si mesmo, o papel de anunciar a universalidade e verdade da essência espiritual, revelando esta verdade de forma imediata – qual um dado revelado, uma crença –; a saber, a religião anuncia, sob o discurso cristão, a profunda verdade de que Deus ele mesmo se encarnara no homem (na comunidade humana), no entanto, a religião cristã ainda guarda o divino num altar que se esconde no passado ou no uturo, não compreende inteiramente seu próprio discurso da encarnação (Kenosis), afastando assim a essência divina do presente dos homens. Dito isto, não se pode deixar de rememorar também que a religião é uma das figuras do espírito que – em sua manifestação histórica – aproximou o homem da essência universal, apresentando a face imediata da universalidade espiritual ela mesma; ou ainda, a religião, esta vivência religiosa que se estabeleceu no seio da mais diversa gama de povos ao longo da história humana, deu aos mesmos povos, um a um, a possibilidade de se voltarem para aquilo que ultrapassa as situações particulares de seu cotidiano e de sua vida particular; a religião deu a eles a possibilidade de se voltarem para o que estando neles (em sua particularidade) os ultrapassa; a religião é, em cada “comunidade particular”, uma de suas “propriedades” universais, a saber, a vivência religiosa é uma das vivências extraordinárias em que cada indivíduo ou comunidade particular – enredados cotidianamente em situações particulares – pode se libertar
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das amarras do contingente e limitado de seu cotidiano (que cerceia e limita) e tocar por um instante, de forma imediata, a face mesma da totalidade (aquilo que na imanência dos indivíduos e dos povos particulares os transcende); ou seja, a religião ou a vivência religiosa é aquela que se debruça sobre as inúmeras particularidades desde os fundamentos do universal. Mas não esqueçamos que o sistema hegeliano desenvolve uma complexa e minuciosa teologia, na qual o filósofo propõe integrar a sua filosofia tomando como pontos de partida as doutrinas fundamentais da fé cristã. O que é sumariamente descrito nos parágrafos 564 a 571, dedicados à Religião Revelada no terceiro volume da Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio: A Filosofia do Espírito. Nesse momento do sistema, Hegel parte dos dogmas fundamentais do cristianismo, assumindo-os como princípios inquestionáveis de qualquer reflexão filosófica. Considera-os como verdades sobre as quais a filosofia está na obrigação de compreender ao almejar chegar a verdade. Para esclarecer nossa leitura, assumiremos a interpretação proposta por A. Léonard, em seu La structure du système hégélien (1971), do sistema em seu conjunto, que pode ser apreendido a partir de um triplo silogismo: a) um silogismo objetivo, b) um silogismo subjetivo e c) um silogismo absoluto ou especulativo. O que se ancora na perspectiva de que o sistema “é completamente do tipo especulativo.” Pois segundo Hegel, caso se acredite que o especulativo é algo longínquo e incompreensível, só se precisa considerar o conteúdo de tal relação (subjetivo-objetivo) para se convencer da falta-de-base dessa opinião. O especulativo, ou racional e verdadeiro, consiste na unidade do conceito – ou do subjetivo – e da objetividade. Essa unidade está manifestamente presente, do ponto de vista em questão. (HEGEL, 1995, § 436, adendo, p. 207-208)
Não por acaso, ao analisar o tema da religião, assumimos que o primeiro silogismo pode ser encontrado na forma exposta na história, com a objetiva repercussão da religião na formação histórica e cultural dos povos; o segundo silogismo está expresso no caminho ascético da consciência, que perpassa a experiência religiosa em seu âmbito subjetivo; e, por fim, o terceiro silogismo, está presente na forma de exposição do conceito de religião em seu caráter estritamente conceitual, especulativo, absoluto. A religião assume-se enquanto momento de revelação do espírito absoluto, ainda que enquanto esfera de mediação entre sua manifestação sensível (arte) – “A bela arte (como sua religião peculiar) tem seu futuro na religião verdadeira” (HEGEL, 1995, §563, p. 345) – e conceitual (filosofia). Nesse sentido, a religião deve ser apreendida enquanto momento reflexivo do espírito absoluto sobre si, isto é, como momento em que, arrancando-se à imediaticidade objetiva de sua manifestação na arte, distancia-se de si na subjetividade representativa da fé e do recolhimento do culto, para logo após elevar-se a plena compreensão de si na filosofia. Compreender a realidade enquanto espírito é apreendê-la enquanto processo especulativo, ou seja, enquanto passagem do em si para o outro de si, que o determina para si. Esta ideia é precisamente, na visão de Hegel captada por seus alunos, a profissão de fé cristã, que sustenta que Deus revelou-se a nós enquanto espírito, enquanto trindade: Pai-Filho-Espírito Santo: O que dissemos acima sobre a natureza do espírito é algo a demonstrar – e demonstrado – somente pela filosofia e não precisa da confirmação por meio de nossa consciência ordinária. Mas, na medida em que nosso pensar não filosófico exige de seu lado uma representação do conceito desenvolvido do espírito, pode-se lembrar, a propósito, que também a teologia cristã compreende Deus – isto é, a verdade – como espírito; e considera o espírito não como um ser
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em repouso, que permanece em vazia uniformidade; mas como um ser tal que se introduz necessariamente no processo do diferenciar-se de-si-mesmo, do pôr de seu Outro e só chega a si mesmo mediante esse Outro, e mediante sua suprassunção que conserva esse Outro, e não mediante seu abandono. Como é bem sabido, a teologia exprime esse processo no modo da representação, [dizendo] que Deus-Pai (o Universal simples, o essente-em-si), renunciando à sua solidão, cria a natureza (o exterior a si mesmo, o essente-fora-de-si), gera um Filho (seu outro Eu); mas esse Outro, em virtude de seu amor infinito, contempla-se a si mesmo, aí reconhece sua imagem, e nele retorna à unidade consigo mesmo. [Essa] unidade, não mais abstrata, imediata, e sim concreta, mediatizada pela diferença, é o Espírito Santo, que procede do Pai e do Filho e na comunidade cristã alcança sua perfeita efetividade e verdade. É como esse espírito que Deus deve ser conhecido, se deve ser compreendido em sua verdade absoluta, se [deve ser compreendido] como Ideia efetiva essente em si e para si, e não – ou somente – na forma do simples conceito, do ser-dentro-de-si abstrato, ou na forma também não verdadeira de uma efetividade singular não conforme com a universalidade do conceito, mas (antes) na plena concordância de seu conceito e de sua efetividade. (HEGEL, 1995, § 381, Adendo, p. 20)
Para Hegel, o Deus cristão não é simplesmente o Um sem diferença, mas é o Deus uno e trino que contém em si a diferença: o Deus feito homem, o Deus que se revela a si mesmo. Nessa representação religiosa, a oposição do universal e do particular, do pensamento e do ser-aí, tem a maior agudeza, e é, apesar disso, reconduzida à unidade (cf. HEGEL, 1995, § 393, Adendo, p. 60). O foco da exposição da religião em Hegel é o cristianismo enquanto religião revelada. O próprio conceito de religião depende da revelação de Deus em Cristo, ou melhor, na apreensão filosófica dessa manifestação processual. Eis a tarefa da especulação, ou seja, da filosofia da religião enquanto tal. Ao analisar de forma mais detalhada a exposição hegeliana, notamos que a revelação, condição sem a qual não há religião absoluta, ou que seja real manifestação do absoluto. Como indica o tradutor da versão espanhola da Enciclopédia, Valls Plana, o conceito de revelação ou de manifestação vem a ser o último momento de uma gradação ascendente recorrente a toda lógica da essência: primeiro temos o parecer (scheinen) da existência, depois o aparecer (ersheinen) do fenômeno, para finalmente termos o revelar-se ou manifestar-se (sich offenbarem, manifiestierem) da realidade efetiva. O espírito enquanto saber é manifestação, e isso somente ocorre na religião revelada. Essa revelação, segundo Hegel, é a total e plena manifestação do absoluto aos homens, em uma maneira compreensível à nossa razão – que claro deve estar apta para apreendê-lo. Pois, afirma o filósofo, uma vez desenvolvida adequadamente, a razão humana pode conhecer o absoluto – em uma clara contraposição a posição kantiana e uma crítica severa aos teólogos de sua época. Hegel entende que a revelação permitiu acessar o absoluto a partir do próprio absoluto, sem interlocutores. É certo que ao final desse processo a fé religiosa se vê superada, ou melhor, suprassumida, pelo saber especulativo. Hegel não menospreza em nenhum momento a religião, pelo contrário, sua proposta é a de justificá-la racional e sistematicamente. A religião, enquanto fé representativa, cumpre a função de ser um acesso à verdade, ao absoluto, para a maioria das pessoas. A religião, como em conjunto pode ser designada essa esfera, há que considerar-se tanto como partindo do sujeito e encontrando-se nele quanto como partindo objetivamente do espírito absoluto, que está como espírito na sua comunidade [...] a fé não se opõe ao saber, mas, antes, [o] crer em saber [...] Deus, como espírito, deve ser apreendido em Comunidade. (HEGEL, 1995, §554, nota, p. 339)
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Ao iniciar sua exposição sobre a religião revelada, Hegel ratifica a especificidade do conceito de religião verdadeira, ou seja, da religião cujo conteúdo é o espírito absoluto, que no decorrer da obra vai sendo desenvolvido e explicitado. Para o filósofo a verdade da religião está em sua explicitação, em sua revelação, que é realizada por ninguém menos que o próprio Deus. Só assim, explica, pode a religião requerer status de verdade em sua essência. Eis uma proposta metarreligiosa, pois seu principal objetivo nesse momento do texto é o de distinguir a verdadeira religião de propostas que poderíamos chamar de inconsequentes, ou como o mesmo ratifica na nota ao §564, meras asseverações sobre a experiência religiosa. Como justificativa a essa compreensão, afirma ser o saber o princípio, ou a condição sem qual a substância (relação sujeito x objeto) é espírito. O saber assume aqui a condição do manifestar, o ato autodeterminante desse espírito que se manifesta enquanto essente para-si, pois o espírito só é o que é na medida em que é parasi, ou seja, na medida em que supera sua abstração, sua imediata condição em-si, e através da mediação com o outro de si, determina-se para-si. A religião, seguindo esse processo dialético do espírito absoluto, torna-se verdadeira ou absoluta ao superar esses momentos abstratos, imediatos, manifestando a si mesma. O que isso quer dizer? Ora, a religião, enquanto momento do sistema, nada mais pode ser que uma expressão do espírito absoluto, e sua concepção não pode dar-se fora da revelação divina de si ao outro de si, ou seja, do próprio Deus ao mundo. Como uma expressão de nosso vínculo com o absoluto, a religião não pode justificar-se fora dessa condição, ele deixaria de ter sentido se fosse apenas uma mediação do homem consigo mesmo – como que um processo de edificação ou aperfeiçoamento apenas. Por isso, a exposição hegeliana propõe nesse momento uma metarreligião: a proposição de um conceito fundante e condicionante a toda e qualquer religião particular. Uma religião é inconsequente quando assevera que “o homem não poderia conhecer Deus”, pois isso seria uma incongruência: como pode expressamente se intitular revelada uma religião que nada revela de Deus, ou melhor, uma religião na qual o próprio Deus não revela a si mesmo. Uma “religião em que Deus nada seria revelado, em que Deus não teria se revelado” não é, por conceito, uma religião revelada ou verdadeira. Se o absoluto é na expressão de si, seu não se expressar é algo inadmissível, seus adeptos seriam “os pagãos que de Deus nada sabem” (HEGEL, 1995, §564, p. 346). Como poderiam crer no que não sabem o que é? Em Hegel o mistério representa o momento imediato, abstrato, de uma fé ingênua e inconsciente. Para o filósofo há algo lógico na religião, pois “pode-se e deve-se começar também por Deus a determinação, o conteúdo e o princípio da religião” (Ibidem, p. 347). Se os conceitos de Deus e de espírito devem realmente conter um sentido, esse deve conter a revelação de si como elemento principal. Conhecer a Deus é o tabu enfrentado pela religião: como conhecer o absoluto, o infinito, sendo finito? Poderia o homem em sua pequenez e limitação intelectual apreender o que Deus é? Kant (2015) já havia questionado nosso direito cognoscitivo de ter Deus como questão. Antes dele, Santo Agostinho (2007) impunha a soberba e ingenuidade de querer captar Deus trindade. Esse tabu somente poderia derrubado caso estabelecêssemos uma via de acesso tanto do finito ao infinito quanto o contrário, e isso fora feito na ciência da lógica, a teologia hegeliana – em sentido estrito. A religião verdadeira não se contenta “com as representações simples da fé” (HEGEL, 1995, §564, p. 347), pois deve elevar-se ao pensar sobre a fé. Cabe à religião uma reflexão sobre seus fundamentos, ou seja, cabe-lhe conhecer o Deus que revela. Hegel apresenta esse pensar como um caminho que vai do entendimento reflexivo até o pensar conceituante; por entendimento reflexivo o filósofo compreende o pensar que separa e fixa, desconsiderando a
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contradição, já o pensar conceituante, ou especulativo, representa o que a filosofia deve ser, um processo dialético de construção conceitual, no qual o próprio entendimento reflexivo faz parte enquanto momento suprassumido. O que contesta aqui é a acomodação dos teólogos, principalmente, em não avançar até o pensar conceituante no que toca ao conhecimento de Deus como espírito, alegando que “o homem nada saberia de Deus” (Ibidem). Isso seria má-fé em um sentido duplo: seria uma não verdade, uma enganação cômoda e falaciosa, e seria uma fé pobre e irreal. Culpa os teólogos porque, principalmente, seriam eles que deveriam realizar uma “especulação aprofundada para apreender correta e determinadamente no pensamento o que é Deus como espírito” (Ibidem). Uma especulação aprofundada conteria as proposições: 1) Deus é somente Deus enquanto ele sabe a si mesmo, 2) Seu saber-se é além disso sua consciência de si no homem, 3) e o saber do homem sobre Deus, nesse último o homem saber-se-ia em Deus. Saber de Deus como espírito é o mesmo que a efetiva expressão do absoluto, que suprassume em si a imediatez e sensibilidade da figura do saber e é, primeiramente segundo seu conteúdo, “o espírito essente em si da natureza e do espírito, e segundo a forma, “para o saber subjetivo da representação” (Ibidem, §565, p. 347). A representação primeiramente dá autonomia aos momentos do conteúdo, ou seja, da natureza e do espírito em sua imediatez, que são tidos como pressuposições, uns para os outros, e como “fenômenos que se seguem uns aos outros” (Ibidem, p. 348), em uma sequência de causa e efeito que estabelece uma “conexão do acontecer”, ainda que ligadas as determinações finitas da reflexão – o entendimento reflexivo. Em um segundo plano, esse modo-de-representação finito, ou seja, esse momento ainda imediato é suprassumido “na fé no único espírito, e na devoção do culto” (Ibidem). A religião é revelada através da consciência-de-si, ou seja, através do espírito divino. Nos cultos, nas celebrações que acontecem em várias religiões, o espírito se manifesta no homem de forma exterior e principalmente de forma interior, sendo assim, há uma junção do exterior com o interior. O espírito é sabido como consciência-de-si, e é imediatamente revelado a esta consciência, pois é a própria; por isto se diz que a natureza divina é o mesmo que é a humana: e é esta unidade o que se contempla no conceito hegeliano de religião.
Referências Bibliográficas Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio (1830): III – Filosofia do Espírito. 2ª Edição. Tradução de Paulo Meneses com a colaboração de José Machado. São Paulo: Edições Loyola, 1995. HEGEL, G. W. F.
KANT, I. Crítica da Razão Pura. Tradução Fernando Costa Mattos. 4ª ed. Petropolis/Bragança: Vozes/Editora Universitária São Francisco, 2015. LEONÁRD, A. La structure du système hégélien. In: Revue Philosophique de Lovain, n. 4, p. 495524, 1971. Disponível em : https://www.persee.fr/doc/phlou_0035-3841_1971_num_69_4_5630. Acesso 02/12/2017. SANTO AGOSTINHO. De Trinitate – Livros IX a XIII. Tradutores Arnaldo do Espírito Santo, Domingos Lucas Dias, João Beato e Maria Cristina Pimentel. Covilhã: LusoSofia: Press, 2008. Disponível em: http://www.lusosofia.net/textos/agostinho_de_hipona_de_trinitate_livros_ix_ xiii.pdf. Acesso 15/11/2017.
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Cap. 4
Feuerbach, Antropologia e Religião: Crítica da teologia cristã e afirmação do homem em “A Essência do Cristianismo” José Edmar Lima Filho
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Feuerbach, Antropologia e Religião: Crítica da teologia cristã e afirmação do homem em “A Essência do Cristianismo”10 José Edmar Lima Filho11 No presente texto meu objetivo é apresentar o aspecto positivo da crítica feuerbachiana à teologia cristã em “A Essência do Cristianismo”, procurando esclarecer os elementos antropológicos tomados como fundamento para a construção desta crítica. Isso significa dizer que o que Feuerbach tem em vista ao desconstruir as pretensões da teologia da religião cristã é mais que algo simplesmente negativo: trata-se de conceder ao homem as condições que tornam possível a sua afirmação como humano.12 A rigor, a possibilidade de afirmação do homem concreto passaria necessariamente pelo afastamento de uma concepção filosófica abstrata e, por isso, sem vinculação com a realidade vivencial real dos seres humanos, o que ocorre também, a juízo de Feuerbach, na teologia cristã. Por essa razão, o desenvolvimento da crítica precisa estar amparado pela exposição dos pressupostos metodológicos que caracterizam uma espécie de “nova virada copernicana” na filosofia operada por Feuerbach, no sentido de traduzir a filosofia para “o idioma humano”, como ele sugere nas páginas inaugurais de “A Essência do Cristianismo”, algo que propomos realizar na primeira das seções deste capítulo. Ademais, cumpre dizer que embora o texto aqui exposto seja orientado prioritariamente pelas afirmações contidas em “A Essência do Cristianismo”, estará embasado por vezes no recurso a informações adicionais retiradas de outras obras de Feuerbach, na medida em que servirem de base para a compreensão da obra central do capítulo. Este recurso está longe de ser arbitrário, sobretudo quando se trata de obras prévias, posto que o próprio Feuerbach admite que sua obra necessita de “complemento” dado por elaborações anteriores (cf. FEUERBACH, 2012a, p. 29).
1. Sobre a necessidade da crítica: filosofia especulativa, teologia cristã e a afirmação do materialismo Ao iniciar “A Essência do Cristianismo”, Feuerbach procura deixar claro um objetivo que o identifica às aspirações da modernidade: o interesse de laicizar o que era compreendido 10. Este texto constitui uma versão revisada e ligeiramente reformulada de parte da Tese de Doutorado do autor, nomeadamente de seu capítulo primeiro, defendida em janeiro de 2017 sob o título “Antropologia, Ética e Política em ‘A Essência do Cristianismo’ de Ludwig Feuerbach”, na Universidade Federal do Ceará. 11. Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará. Membro pesquisador do Grupo de Pesquisa em Filosofia da Religião (GEPHIR/UVA-CNPq) e do Laboratório de Estudos Hegelianos (LEH/UVA-FUNCAP). Professor do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Minas Gerais – Campus Bambuí. E-mail: semedmar@ yahoo.com.br. 12. A proposta é compartilhada por Cabada Castro, para quem “[…] não se compreende de modo algum o sentido do ateísmo feuerbachiano se este é pensado de maneira direta como negação de Deus e não, melhor, como positiva e explícita afirmação do homem” (CABADA CASTRO, 1999, p. 72).
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como “divino”, o de naturalizar o tido por sobrenatural. Isto, no entanto, não é acidental: trata-se de demonstrar de maneira “científica”, que procede de modo “analítico” e se baseia “num arquivo de séculos” (cf. FEUERBACH, 2012a, p. 13), apresentando a contraditoriedade entre as determinações racionais e aquelas da fé cristã, que a teologia não passa de uma espécie de “ilusão” – embora se recuse a ser concebida como tal (cf. FEUERBACH, 2012a, p. 15) – ou “aparência” (cf. FEUERBACH, 2012a, p. 18) e que, por isso, apresenta-se como “patologia psíquica”13 (cf. FEUERBACH, 2012a, p. 13); daí que a finalidade da obra se pretenda apresentar como certa “terapêutica”14 (cf. FEUERBACH, 2012a, p. 14)15. À teologia assim concebida se equipara, ao nível da crítica, a filosofia da época, na medida em que ela nada mais é que uma espécie de “tradução” em termos filosóficos do que é a religião em termos teológicos. Isso significa que a oposição à religião cristã vem acompanhada da oposição à filosofia de então, ao idealismo. Daí Feuerbach dizer: condeno incondicionalmente qualquer especulação absoluta, imaterial, autossuficiente – a especulação que tira a sua matéria de si mesma. Sou astronomicamente diferente dos filósofos que arrancam os olhos da cabeça para poderem pensar melhor; eu, para pensar, necessito dos sentidos, mas acima de todos dos olhos, fundamento minhas ideias sobre materiais que podemos buscar sempre através da atividade dos sentidos, não produzo coisas a partir do pensamento, mas inversamente os pensamentos, a partir das coisas, mas coisa é somente o que existe fora da cabeça. (FEUERBACH, 2012a, p. 20)
A consequência desta posição é que não se pode conceber que a crítica aqui apresentada por Feuerbach contribua para que sua interpretação se efetue simplesmente como uma “utilidade negativa”: de fato, aborda-se aqui a possibilidade de estabelecer uma nova filosofia com base em uma nova “reviravolta copernicana”, desta vez às avessas, para que corresponda às reais necessidades humanas. Por isso, diz Feuerbach, é […] necessário que a razão retorne a si mesma, que inverta este reconhecimento invertido de si mesma, que se proclame directamente como a verdade absoluta, que se torne imediatamente, sem a mediação de um objecto, objecto de si mesma enquanto verdade absoluta. (FEUERBACH, 2005d, p. 119)
A necessidade de inverter a inversão está radicada no próprio seio da filosofia moderna até Feuerbach, na medida em que se tem em conta que, embora reivindicasse para o humano a autonomia rechaçada no período medieval, promoveu o aparecimento de certa imanência que, conforme Serrão, […] não […] [foi capaz de operar] uma efectiva valorização do humano, uma vez que também este, enquanto ser real e finito, era subordinado à mesma racionalidade que regia o conhecimento, ou seja, o homem era definido por um modelo predeterminado no interior da filosofia. Ora, moldar o homem à imagem do pensador antes de o considerar na efectividade da sua condição teria como consequência a instituição de dualismo, fosse esse dualismo radicalizado na separação da alma e do corpo como suas substâncias heterogêneas, ou mais subtilmente defendido como uma duplicidade hierarquizada, por exemplo, entre o intelecto e os sentidos, ou entre as faculdades espirituais e as faculdades empíricas. (SERRÃO, 2005, p. 14)
13. Para um aprofundamento do tema da religião como “patologia psíquica”, compreendida por alguns intérpretes como
“ilusão” ao estabelecer uma relação entre o diagnóstico de Feuerbach e aquele de Freud, cf. PAULA, 2007.
14. A teologia é concebida como uma espécie de “saber ilusório” porque patrocina um conhecimento ilegítimo, uma vez que sua fonte, para Feuerbach, é a capacidade produtiva da imaginação, em vez da verdadeira intuição sensível. Para um aprofundamento do problema do conhecimento em Feuerbach, cf. LIMA FILHO, 2017b. 15. Por isso sua posição se aproxima daquilo que alguns intérpretes nomeiam de “postura científico-naturalista” (cf. SAMPAIO; FREDERICO, 2009, p. 70)
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O que está em questão, portanto, é o reconhecimento concreto do ser humano e dos assuntos que lhe dizem respeito, algo que fornece os elementos necessários a Feuerbach para justificar seu interesse por reinterpretar a tarefa da filosofia16, sugerindo, de fato, uma “nova filosofia” que pretende se conformar à necessidade do ser humano total, aquela que, como pensa, tenha “olhos, ouvidos, mãos e pés […] que fala o idioma humano […] traduzida em succum et sanguinem, em carne e osso, a filosofia encarnada em homem” (FEUERBACH, 2012a, p. 21), o que significa realocar a prioridade fundamental da Filosofia: em vez de vincular-se ao outro mundo, cumpre dedicar-se a este mundo; em vez de ater-se aos tesouros do céu, apegar-se aos tesouros da terra (cf. FEUERBACH, 2005b, p. 78). Nesse sentido, a “nova filosofia” pretende ser fiel ao homem (cf. FEUERBACH, 2012a, p. 28) e, por isso, corresponderia fundamentalmente a uma espécie de nova antropologia, que dissolve igualmente a teologia em antropologia para negar as pretensões da primeira e afirmar o homem total, posto a nu, apartado de seu sonho (cf. FEUERBACH, 2012a, p. 24). Para tratar, portanto, do problema da religião, Feuerbach lança mão da identificação entre teologia e filosofia especulativa17, iniciada na filosofia moderna pela abstração carte siana da realidade concreta e pelo chamado “idealismo parcial” do homem leibniziano (cf. FEUERBACH, 2005d, p. 108-109), e propõe a recuperação do elemento material que seja capaz de restabelecer o vínculo entre a realidade concreta, ou aquilo a que Feuerbach chama “o ser real”, e a reflexão. Por isso sugere ter ido “violentamente18 contra os filósofos profissionais” (FEUERBACH, 2012a, p. 17), na medida em que apenas isto lhe permitiria ter acesso à “verdade” tomada por “aparência” ou inverdade em sua época (cf. FEUERBACH, 2012a, p. 18-19). Trata-se, nessa perspectiva, de assumir uma estratégia metodológica de base: aquela “correspondente à essência verdadeira, real e total do homem, mas exatamente por isso contrária a todos os homens corrompidos e mutilados por uma religião e especulação sobre e anti-humana e antinatural” (FEUERBACH, 2012a p. 21), que se vincula à meta de “dissolver a especulação” (cf. FEUERBACH, 2012a, p. 22) e se compromete com uma “análise histórico-filosófica” (cf. FEUERBACH, 2012a, p. 26) ou com um método histórico-crítico, que o remete a um modo de fazer filosofia que tem como fundamento o materialismo, o que, no limite leva à interpretação do ateísmo como a assunção incondicional da matéria (cf. FEUERBACH, 2005d, p. 116) e da matéria como o objeto fundamental da razão (cf. FEUERBACH, 2005d, p. 118).
16. Sobre o tema da “tarefa da filosofia”, cf. LIMA FILHO, 2017b, p. 156-165. 17. A identificação realizada por Feuerbach tem como fundamento, de acordo com Serrão, o fato de que “a antropologia filosófica [da filosofia moderna] era impregnada […] [da] subordinação do ser ao pensar característica da ontologia, incorrendo num processo de sucessivas separações e abstrações. Tal como a razão, estando embora no mundo, subordinava a esfera dos fenómenos concretos ao plano legislador das suas categorias, raciocínios e operações, igualmente, estando no homem, subordinava o humano empírico a uma racionalidade ideal a que estes, os homens reais, se deveriam adequar. Princípio gnosiológico, a razão pensante, engrandecida de propriedades como a autonomia, a espontaneidade, a auto-suficiência, apresentava-se também como o único fundamento da ordem moral. Daí que a reivindicada autonomia da racionalidade humana face à transcendência do ser divino tivesse como contraponto a transformação da própria razão em nova figura divina, ao substituir-se ao Deus religioso enquanto poder inaugural e legislador do mundo. Radica aqui a qualificação da filosofia moderna como ‘teologia racional’ e da razão filosófica como ‘teológica’, cobrindo as diferentes acepções de superioridade e distância, de separação e abstracção” (SERRÃO, 2005, p. 14). 18. De fato, Feuerbach não pretende construir, como a seu ver o fez Leibniz, “[…] uma filosofia de galanteios diplomáticos” (FEUERBACH, 2009, p. 21) e, por isso, o ataque à tradição filosófica e à religião são realizados de maneira muito dura e firme, posto que “[…] a quem não quer ofender e ferir, mesmo que não tenha essa intenção, a esta falta energia, falta atividade, porque não se pode mover o pé sem destruir seres e digerir uma gota d’água sem engolir protozoários” (FEUERBACH, 2009, p. 21), o que lembra a postura que seria desenvolvida em 1888 por Nietzsche, para quem “apenas o excesso de força é prova de força” (NIETZSCHE, 2006, p. 6).
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A recepção do materialismo como uma exigência indispensável da nova filosofia comparece em “A Essência do Cristianismo”, para citar apenas um exemplo, quando Feuerbach reconhece a importância do método histórico-crítico, o qual, como pensa Sousa, é acompanhado pelo genético-crítico na obra de 1841. Este último se caracteriza por dois passos indissociáveis: (i) exposição dos elementos próprios da religião e (ii) elaboração de uma redução19 em que a antropologia aparece como fundo para os elementos da religião (cf. SOUSA, 2013, p. 36-37). Para Sousa, a utilização do método genético-crítico implica, como uma espécie de complemento, o histórico-crítico, na medida em que este constitui o solo sobre o qual seria possível a crítica à tradição e “não […] apenas […] uma opção de viés formalista […] [Daí que] mais do que uma simples crítica, trata-se de um apropriar-se de tal tradição” (SOUSA, 2013, p. 38), algo que Sampaio e Frederico comentam ao dizer que “[…] [a] chamada filosofia genético-crítica de Feuerbach […] se baseava na origem, subjetiva ou objetiva, das doutrinas e convicções para certificar-se ou não da realidade delas” (SAMPAIO; FREDERICO, 2009, p. 22). Comentando a respeito da filosofia genético-crítica em “Para a crítica da filosofia hegeliana” [Zur Kritik der Hegelschen Philosophie (1839)], Feuerbach argumentava que a filosofia genético-crítica é aquela que não concebe nem demonstra dogmaticamente um objeto dado pela representação – porque para objetos simplesmente reais, isto é, dados imediatamente pela natureza, é incondicionalmente válido o que Hegel afirmou –, mas investiga a sua origem, põe em dúvida se o objeto é um objeto real, ou uma mera representação ou um fenômeno psicológico em geral, que por isso distingue com o maior rigor possível entre o subjetivo e o objetivo. A filosofia genético-crítica tem principalmente como seu objeto aquilo a que já se chamou as causae secundae [causas segundas]. (FEUERBACH, 2012b, 54-55)
Quando se trata de “A Essência do Cristianismo”, o método genético-crítico possibilita a Feuerbach a introdução daquilo que Barata-Moura conceitua por “uma fundamental consideração ontológica” (BARATA-MOURA, 1993, p. 53). Como pensa, a justificativa para a emergência da retomada do método em questão na obra de 1841 não é outra senão que “no contexto temático de Das Wesen des Christentums trata-se […] de procurar surpreender o teor autêntico e a raiz do surgimento de concepções e de atitudes envolvidas nos com portamentos tradicional ou imediatamente religiosos” (BARATA-MOURA, 1993, p. 53). Compreende-se, portanto, a importância de repensar a posição do fazer filosófico pela postulação de um tipo de reflexão que se fundamentasse naquilo que é a vida concreta, o que, mesmo nos anos anteriores à publicação de “A Essência do Cristianismo”, em carta endereçada a Karl Riedel (An Karl Riedel. Zur Berichtigung seiner Skizze [1839]), Feuerbach colocava à vista do leitor (cf. FEUERBACH, 2005a, p. 36), para o que apresentava a necessária exposição de uma estratégia metodológica específica, a qual consiste em ligar constantemente o elevado com o aparentemente comum, o mais longínquo com o mais próximo, o abstrato com o concreto, o especulativo com o empírico, a filosofia com a vida; consiste em apresentar o universal no particular, afundado no elemento da sensibilidade, mas de tal modo que o pensamento, mesmo no meio dos alegres arrebatamentos da fantasia,
19. A ideia de “redução” é frequentemente tomada em causa pelos intérpretes de Feuerbach, como para Souza, que a concebe como uma interpretação da categoria “ateísmo” (cf. SOUZA, 1994, p. 16), ao mesmo tempo em que a toma como um “princípio explicativo” (cf. SOUZA, 1994, p. 32) para o pensamento feuerbachiano em “A Essência do Cristianismo”.
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não perca a ponderação, a presença de espírito, mas que, pelo contrário, no meio do ser-fora-de-si da sensibilidade esteja imediatamente em si mesmo, e deste modo, mas inteiramente incógnito, polemize contra aquela doutrina que na natureza ou no ser sensível apenas avista o ser-outro ou o ser-fora-de-si do espírito. (FEUERBACH, 2005a, p. 37)
A vinculação entre filosofia e vida concreta é feita, por conseguinte, por meio da apreciação da natureza, caracterizada na obra de 1841 como um estudo da natureza análogo a seu culto (cf. FEUERBACH, 2012a, p. 133), o que é inverso ao que se tem na religião e na filosofia especulativa iniciada por Spinoza e consumada por Hegel (cf. FEUERBACH, 2005f, p. 85), uma vez que se enunciam por meio de postulados sobre e até antinaturais; para Feuerbach, no entanto, “a sobrenaturalidade na teoria torna-se antinaturalidade na prática. A sobrenaturalidade é somente um eufemismo para antinaturalidade” (FEUERBACH, 2012a, p. 271)20 e, por isso, conclui-se que este é o pressuposto sobre o qual se coordenam e apóiam as afirmações feuerbachianas a respeito de seu materialismo, que compreende que a matéria é o objecto essencial da razão. Se não houvesse uma matéria, a razão não teria estímulo nem material para pensar, não teria conteúdo. Não se pode abandonar a matéria sem abandonar a razão, reconhecer a matéria sem reconhecer a razão. Os materialistas são racionalistas (FEUERBACH, 2005d, p. 118-119). Para comentar a concepção feuerbachiana a respeito do materialismo, Barata-Moura sugere que “a valorização do topos ‘materialismo’ a propósito da filosofia de Feuerbach sempre foi […] objeto de juízos diferentes e diferenciadores, que se distribuem em uma gama de possibilidades bastante ampla” (BARATA-MOURA, 1994, p. 93). Considerando o conjunto das obras de Feuerbach, o intérprete ajuíza que de um ponto de vista estrutural, o materialismo de Feuerbach busca incorporar, ainda que com transformações, a postura crítica, gnoseológica, do idealismo moderno. De algum modo, se antepõe, pois, à materialidade uma condição subjetiva de possibilidade e de mediação, destinada a fundar sua própria validade e certificação. A estrutura relacional do conhecer vem, assim, a instituir-se na base do próprio materialismo que se procura defender. O materialismo vem a ser deduzido mediatamente a partir de uma ‘certeza’ gnoseológica, fundamentada sobre a sensibilidade e a intersubjetividade (BARATA-MOURA, 1994, p. 124-125), o que implica, a seu ver, na assunção de certo “materialismo fundado sobre a consciência” ou “materialismo racional”, compreendido como “materialismo da sensibilidade” (cf. BARATA-MOURA, 1994, p. 125-126), aquilo com o que, de algum modo, parece assentir Schmidt ao dizer que da imanência do pensamento não se depreende terminantemente se a verdade pensada é também a verdade real. Necessita-se de um critério material, objetivo, que passe por cima do conceitual: a intuição sensível como fato vital. Quem pergunta pelo ser objetivo pergunta também pelo ser subjetivo humano: “A questão do ser é... uma questão prática, uma questão da qual nosso ser participa, uma questão de vida ou morte”. (SCHMIDT, 1975, p. 207)
As propostas interpretativas expostas se alinham à filosofia feuerbachiana quando critica uma espécie de “materialismo não espiritualista” (cf. FEUERBACH, 2012a, p. 36 – nota 1), embora informe abertamente “não querer legitimar a razão” (cf. FEUERBACH, 2012a, p. 64). Assim, o materialismo de Feuerbach parece partir do que o autor concebe como “realismo vivo”: o sistema do corpo orgânico (cf. FEUERBACH, 2012a, p. 112), o que significa a necessidade de resgatar a natureza; de fato, para Feuerbach, “[…] o ar puro e fresco é importante para o mais importante órgão do homem, o órgão pensante” (FEUERBACH, 2005a, p. 34), motivo pelo qual comenta que “a natureza fornece a matéria, o espírito a forma” (FEUERBACH, 2012a, p. 272). Como na “Carta a Karl Riedel”, essa noção comparece igualmente em “Algumas considerações sobre O começo da filosofia do Dr. J. F. Reiff” [Einige Bemerkungen über den “Anfang der 20. Para um maior aprofundamento da questão, cf. CHAGAS, 2010, p. 57-82; CHAGAS, 2004, p. 86-105.
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Philosophie” von Dr. J. F. Reiff (1841)], recensão de Feuerbach publicada no mesmo ano do aparecimento de “A Essência do Cristianismo”, ocasião em que utiliza como “núcleo forte da argumentação […] a sensibilidade, entendida já como modo de pensar, e não como simples sensorialidade ou conjunto de dados sensitivos. […] [Aqui a sensibilidade é tomada como] uma sensibilidade que pensa ou por um pensamento que sente” (SERRÃO, 2005, p. 21). Quatro anos depois da publicação de “A Essência do Cristianismo” Feuerbach volta a se ocupar do tema quando procura refutar a posição de seus críticos em “Sobre A Essência do Cristianismo em relação com O Único e a sua Propriedade de Stirner” [Über das “Wesen des Christentums” in Beziehung auf Stirners “Der Einzige und sein Eigentum” (1845)]. Na obra, quando Feuerbach dirige-se a si mesmo em terceira pessoa, argumenta: “Feuerbach reveste o seu materialismo com a propriedade do idealismo”. Oh, mas que afirmação caída das nuvens! Feuerbach, ó Único!, não é nem idealista nem materialista. Para Feuerbach, Deus, espírito, alma, Eu são meras abstracções, mas igualmente o são para ele o corpo humano, a matéria, os corpos físicos. Verdade, essência, realidade é para ele somente a sensibilidade. Mas será que já sentiste, que já viste, um corpo, uma matéria? Sem dúvidas que já viste e sentiste esta água, este fogo, estas estrelas, estas pedras, estas árvores, estes animais, estes seres humanos: sempre e só coisas inteiramente determinadas, sensíveis, individuais, mas nunca corpos humanos, nem almas, nem espíritos, nem corpos físicos. Mas Feuerbach é menos ainda idealista, na acepção da identidade absoluta, que unifica as duas abstracções numa terceira. Feuerbach não é portanto nem materialista, nem idealista, nem filósofo da identidade [em sentido estrito]. O que é ele então? É com pensamentos o que é de facto, é no espírito o que é na carne, é na essência o que é nos sentidos – homem. (FEUERBACH, 2005e, p. 181)
Nesse sentido, as palavras de Feuerbach parecem justificar a legitimidade da interpretação exposta a respeito de seu materialismo, a qual se desenvolve de maneira a tornar inviável a recepção do materialismo feuerbachiano como simplista ou vulgar.
2. Pressupostos antropológicos da essência da religião cristã Os aspectos metodológicos que caracterizam internamente a filosofia de Feuerbach, uma vez sustentados pelo pressuposto da crítica à pura especulação e a posição do materialismo, conduzem a uma compreensão mais apropriada de sua perspectiva antropológica. Isso porque, a juízo de Feuerbach, é possível que o fundamento da religião cristã seja alcançado quando se opera analiticamente, uma vez que a análise representa uma chance de depuração porque auxilia a busca por um princípio que justifique tudo o mais; e no caso da busca pelo princípio que fundamenta a religião cristã não é diferente. Esta pode ser uma das razões pelas quais Feuerbach lança mão de uma exposição preliminar a respeito da essência humana: apresentadas as suas “partes estruturais constitutivas”, poder-se-ia permitir apontar em qual destas seções se baseia o princípio da religião. Isso significa dizer que é necessário partir de um ponto fixo de apoio e, portanto, de um “começo”, o que por si só constitui um compromisso teórico ineliminável a qualquer teoria, igualmente àquela de Feuerbach. Para ser coerente com a reestruturação metodológica que propõe, Feuerbach pergunta: “Por que não começar então com o verdadeiro começo?”21 (FEUERBACH, 2012b, p. 40). 21. Nas palavras de Sampaio e Frederico, “por que não partir logo dos seres empíricos, reais, dados, em vez de começar a filosofar por um mero pensamento, pelo desenvolvimento de um conceito inicial tão abstrato e insignificante que mal se distingue de nada?” (SAMPAIO; FREDERICO, 2009, p. 47). Na obra “Algumas considerações sobre O começo da filosofia do Dr. J. F. Reiff”, Feuerbach insiste em dizer que “[…] o começo da filosofia é o começo do saber em geral, e não o começo dela como um saber especial, distinto do saber das ciências reais. […] […] se o começo do saber filosófico e do saber empírico é originariamente um e o mesmo acto, então a filosofia tem evidentemente a tarefa de se recordar antecipadamente desta origem comum e,
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Este começo precisa coincidir com o “ser concreto”, o “ser sensível” (cf. FEUERBACH, 2012b, p. 42), o determinado, o real (cf. FEUERBACH, 2005f, p. 90), o qual atua como uma espécie “substrato autopropulsor” para a “nova filosofia”, para utilizar a expressão de Sampaio e Frederico (cf. SAMPAIO; FREDERICO, 2009, p. 22). A teoria de Feuerbach, portanto, envolve um pressuposto fundamental, que se compromete com a resposta à questão “quem é este homem concreto, a partir de quem se deve iniciar a investigação?” E, para dizer mais, “a que homem se dirige?” Aqui o argumento utilizado parece ser de ordem hipotética: a depender da concepção de homem tomada como ponto de partida, a teoria pode ser mais ou menos adequada. Em boa parte de “A Essência do Cristianismo” há indicações particularmente importantes para estabelecer a concepção feuerbachiana de homem, sobretudo no capítulo primeiro que se intitula “A essência do homem em geral”22 [Das Wesen des Menschen im allgemeinen]. Nele o tema é apresentado inicialmente com base na distinção entre homem e animal: o que caracteriza essencialmente o homem, à diferença do animal, é sua consciência (cf. FEUERBACH, 2012a, p. 35) tomada em sentido rigoroso, a qual “só existe somente quando, para um ser, é objeto o seu gênero, a sua quididade” (FEUERBACH, 2012a, p. 35).
por conseguinte, de começar não com a diferença em relação à empiria (científica), mas antes com a identidade com ela. […] Há sem dúvida uma empiria limitada, miserável, que não se eleva, ou pelo menos não quer se elevar, até ao pensamento filosófico; mas igualmente limitada é uma filosofia que não desce até à empiria […] Não é no fim que a filosofia chega à realidade, é, pelo contrário, com a realidade que ela começa. Este é o único caminho natural, quer dizer, conforme às coisas e verdadeiro […] A transição da empiria à filosofia é necessidade, a transição da filosofia à empiria arbítrio luxuoso. […] quando começamos com a realidade e permanecemos nela, a filosofia é em nós uma necessidade duradoura, a empiria deixa-nos a cada passo em apuros e volta constantemente a impelir-nos para o pensamento. Finita é por isso a filosofia que termina com a empiria, infinita a que começa com ela; esta tem sempre matéria para pensar, aquela acaba por esgotar o entendimento. A filosofia que começa com o pensamento desprovido de realidade termina consequentemente com uma realidade desprovida de pensamento. […] A filosofia tem de começar com a sua antítese, com o seu alter ego; caso contrário, permanece constantemente subjectiva, constantemente presa no eu. A filosofia que nada pressupõe é a filosofia que se pressupõe a si mesma, a filosofia que começa imediatamente consigo mesma” (FEUERBACH, 2005b, p. 78-79), algo que vem reforçado nas “Teses Provisórias para a Reforma da Filosofia”, nas palavras das quais Feuerbach ajuda a entender que “a filosofia tem, por isso, de começar não consigo, mas com a sua antítese, com a não-filosofia. Esta essência que em nós é distinta do pensar, afilosófica, absolutamente anti-escolástica, é o princípio do sensualismo” (FEUERBACH, 2005f, p. 93). Sobre o problema do começo, é importante consultar ainda as contribuições de FEUERBACH, 2012b, 39ss; FEUERBACH, 2005f, p. 91ss; e CHAGAS, 2005. 22. Como quem problematiza a importância de um método mais adequado às características próprias da existência concreta do homem, aqui se poderia perguntar a Feuerbach se uma objeção ao idealismo baseada na pressuposição de uma essência humana pode se constituir sem incorrer no equívoco da postulação não tematizada de uma propriedade essencial e, portanto, metafísica do homem, o que seria extremamente contraintuitivo; como uma crítica ao idealismo pode ser bem sucedida partindo de uma concepção idealista de homem? Ademais, na medida em que se assume a essência humana como um dado universal, não se cairia no risco de elaborar uma espécie de “Antropologia a priori”, como aquela presente no idealismo que Feuerbach, por isso mesmo, quer refutar? Serrão esclarece a possibilidade de uma “antropologia geral” de base em Feuerbach quando sugere a existência do que conceitua por “a priori antropológicos”, entre os quais se apresentam a ideia de sua concretude como instância “genérica” (cf. SERRÃO, 1999, p. 254), na qual se inclui inevitavelmente a sua compreensão como algo “corporal-sensível” (cf. SERRÃO, 1999, p. 161; 170), “afetivo” (cf. SERRÃO, 1999, p. 226), “mundano” (cf. SERRÃO, 1999, p. 186187), “interpessoal” (cf. SERRÃO, 1999, p. 206-207), “da socialidade” (cf. SERRÃO, 1999, p. 215), ou “da sexualidade” (cf. SERRÃO, 1999,p. 214). Souza, por sua vez, sustenta que a expressão “essência do homem” em Feuerbach quer designar apenas “[…] a humanidade do homem, o que faz com que o homem seja homem” (SOUZA, 1994, p. 51), que implica a suposição das “três perfeições” ou “[…] forças constitutivas, elementos ou princípios que o animam e o determinam. Estas qualidades são de tal maneira perfeitas, que têm em si mesmas o fim de seu ser e de sua existência e, assim, determinam o ser e o fim do homem, cuja ação, portanto, será sempre imanente” (SOUZA, 1994, p. 52). Nota-se, pois, que enquanto Serrão admite certos a priori antropológicos, a questão fica reduzida por Souza a um simples problema de linguagem, algo respaldado, por exemplo, nas posteriores “Preleções sobre a Essência da Religião” [Vorlesungen über das Wesen der Religion [1848], em que Feuerbach diz: “assim como o conceito geral de pedra não é um conceito por assim dizer supramineralógico, um conceito que transcende o campo da mineralogia, não obstante sendo distinto do conceito de seixo, de cal, de espaço, não designando exclusivamente uma pedra determinada exatamente por compreender todas […] assim […] a palavra homem, não obstante abrangendo muitas espécies de homens, judeus, gregos, hindus, não é por isso um sobre-humano” (FEUERBACH, 2009, p. 31). Como quer que seja, as posições dos intérpretes ajudam a entender o pensamento feuerbachiano sobre o tema quando concebidas conjuntamente, o que significa assumir que o problema que encontra raiz também na linguagem sugere que haveria uma antropologia filosófica previamente aceita por Feuerbach, sobre a qual se ergueria a religião, assim como sua compreensão ética ou política, por exemplo. Esse poderia ser, por assim dizer, o motivo pelo qual Feuerbach demonstraria, por meio de uma “análise”, que os elementos- chave da religião se fundamentam nessa estrutura prévia natural do ser humano.
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Em primeiro lugar, a noção de consciência coincide ou, pelo menos, sinaliza para a dimensão do saber, de modo que a consciência implicaria na possibilidade de, igualmente, se constituir a ciência para aquele ente que experimenta em seu próprio ser o saber de seu gênero, do eu e do tu. Dito de outro modo: o saber, que é algo indispensável para a existência da ciência, só é possível ao homem em virtude de sua consciência. Em segundo lugar, a presença da consciência no homem possibilitaria, na compreensão de Feuerbach, a existência do que chama de “vida dupla” para os seres humanos: uma interior, caracterizada pela relação que pode manter com sua essência (com seu gênero), e outra exterior, com o que se passa fora dele. A vida interior, que nos interessa prioritariamente no momento, representa, para o homem, a possibilidade do diálogo e do pensamento, seja consigo, seja com outros, pois ele “[...] é para si ao mesmo tempo eu e tu” (FEUERBACH, 2012a, p. 36). Isso significa dizer que a essência humana é pensável para o homem, para quem a consciência é um fato. O homem é consciente, portanto, de sua essência, de sua humanidade, que se apresenta de modo “tríplice” (mas não “tripartido”, afastado) em razão, vontade e coração. De maneira quase-poética, em belíssima e muito conhecida passagem, Feuerbach arremata: Um homem completo possui a força do pensamento, a força da vontade e a força do coração. A força do pensamento é a luz do conhecimento, a força da vontade é a energia do caráter, a força do coração é o amor. Razão, amor e vontade são perfeições, são os mais altos poderes, são a essência absoluta do homem enquanto homem e a finalidade de sua existência. O homem existe para conhecer, para amar e para querer. Mas qual é a finalidade da razão? A razão. Do amor? O amor. Da vontade? O livre-arbítrio. Conhecemos para conhecer, amamos para amar, queremos para querer, i. e., para sermos livres. A essência verdadeira é a que pensa, que ama, que deseja. Verdadeiro, perfeito, divino é apenas o que existe em função de si mesmo. Assim é o amor, assim a razão, assim a vontade. A trindade divina no homem e que está acima do homem individual é a unidade de razão, amor e vontade. Razão (imaginação, fantasia, representação, opinião), vontade, amor ou coração não são poderes que o homem possui – porque ele é nada sem eles, ele só é o que é através deles –, são pois como os elementos que fundamentam a sua essência e que ele nem possui nem produz, poderes que o animam, determinam e dominam – poderes divinos, absolutos, aos quais ele não pode oferecer resistência. (FEUERBACH, 2012a, p. 36-37)
Uma vez apresentados os elementos que constituem a essência humana, segundo Feuerbach, é possível deduzir logicamente a derivação do conteúdo antropológico que, a rigor, constitui a essência da religião cristã e, a reboque, seus elementos doutrinários, como a fé, a crença em milagres ou mesmo na providência divina.
3. Religião cristã x Teologia cristã: como a Essência Humana se tornou a Essência de Deus Partindo da pressuposição de que a religião opera por meio de uma inversão possível pelo avanço da imaginação sobre a realidade, Feuerbach defende que “a religião é a consciência primeira e indireta que o homem tem de si” (FEUERBACH, 2012a, p. 45): “primeira e indireta” porque o homem religioso não é diretamente consciente de si, uma vez que não (re)conhece que “a oposição entre divino e humano é apenas ilusória” (FEUERBACH, 2012a, p. 45). Por isso, Feuerbach compreende que a religião nada mais é que “o sonho do espírito humano” (FEUERBACH, 2012a, p. 24), e o sonho, a expressão onírica da fantasia:
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[O sonho] é a inversão da consciência em estado de vigília. No sonho o ativo é o passivo e o passivo é o ativo; no sonho eu apreendo as minhas autodeterminações como se fossem determinações vindas de fora, as emoções como acontecimentos, as minhas ideias e sentimentos como entidades fora de mim, eu sou o passivo do meu próprio ativo. O sonho refrata duplamente os raios da luz, daí a sua indescritível magia. É o mesmo Eu, o mesmo ser tanto no sonho quanto na vigília; a diferença é apenas que na vigília o Eu se determina a si mesmo e no sonho é determinado por si mesmo, mas como se o fosse por uma outra coisa. Eu me penso - não é afetivo, é racionalístico; eu sou pensado por Deus e só me penso como pensado por Deus - é afetivo, é religioso. A afetividade é o sonho de olhos abertos; a religião é o sonho da consciência desperta; o sonho é a chave para os mistérios da religião”. (FEUERBACH, 2012a, p. 154)
A consequência da tese posta é a de que toda religião, para se constituir como tal, parte da admissão prévia de divindade, seja ela única (como no monoteísmo) ou múltipla (politeísmo). No caso do monoteísmo característico da religião cristã, não há religião sem uma ideia de deus, uma vez que renunciar à essência de deus significa abrir mão da religião (cf. FEUERBACH, 2012a, p. 48); ainda mais, o Deus único articula dentro de si os elementos essenciais do ser humano: trata-se de um Deus em tudo semelhante ao homem, portador de seus predicados, embora sejam pensados de modo abstrato. Os reais predicados humanos são, assim, os predicados de Deus; os predicados de Deus, os predicados humanos espiritualizados. O que não fica esclarecido no cristianismo é a identidade entre Deus e o homem; nela, Deus e o homem, embora partilhem dos mesmos predicados de base, são contraditórios entre si: a natureza imaterial de Deus não é a natureza material do homem; de fato, “Deus e o homem são extremos” (FEUERBACH, 2012a, p. 63): se o homem é concreto, Deus é abstrato; se o homem é organismo corpóreo, Deus é espírito incorpóreo; se o homem é animal biologicamente determinado pela natureza, Deus é sobrenatural e isento de determinações naturais; o mesmo é dizer que a cada indigência no homem se opõe uma perfeição em Deus: Deus é e tem precisamente o que o homem não é e nem tem. O que se atribui a Deus é negado ao homem e, vice-versa, o que se dá ao homem se retira de Deus. […] Quanto menos é Deus, tanto mais é o homem; quanto menos o homem, tanto mais é Deus. (FEUERBACH, 2007b, p. 5)
Com base nessa conclusão, Feuerbach informa que o que justifica o homem, o que faz do homem, homem, é precisamente a determinação que lhe concedem seus predicados, o que implica na aceitação da prioridade do predicado sobre o sujeito, pois “o predicado é o verdadeiro sujeito” (FEUERBACH, 2012a, p. 54). O ser humano é o conjunto de suas predicações e, por isso, “o predicado é a verdade do sujeito; o sujeito apenas o predicado personificado, existente” (FEUERBACH, 2012a, p. 49). Essa parece ser a razão pela qual, nas “Teses Provisórias para a Reforma da Filosofia” [Vorläufige Thesen zur Reformation der Philosophie (1842)], Feuerbach argumente que o método da crítica reformadora da filosofia especulativa em geral não se distingue do método já utilizado na filosofia da religião. Basta-nos transformar sempre o predicado no sujeito e, do mesmo modo, o sujeito em objecto e princípio – basta-nos, portanto, inverter a filosofia especulativa e teremos então a verdade desvelada, a verdade pura e nua. (FEUERBACH, 2005f, p. 86)
Podemos formar aqui um silogismo hipotético: se o que determina o sujeito é o predicado e os predicados humanos são naturais e, por isso, concretos, então o homem é um indivíduo natural e, portanto, concreto; quanto a Deus, se seus predicados são abstratos,
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logo o sujeito deles é igualmente abstrato (cf. FEUERBACH, 2012a, p. 51). Por esse motivo, seja qual for a religião, ela sempre terá em seu alicerce a abstração, embora possam ser distintos os objetos da abstração para as religiões. (cf. FEUERBACH, 2012a, p. 117) A consequência a que chega Feuerbach é que o Deus cristão consiste na supranaturalidade dos atributos humanos: ele é o homem arrancado da vida e da corporeidade, é avesso à natureza em função de sua infinitude23. Deus é, na verdade, uma espécie de “projeção”24 da tentação humana: o querer ser imortal, ilimitado. Por isso, a conclusão de Feuerbach é semelhante a dizer que o homem tem o Deus que quer ter para superar a corporeidade e a natureza, a morte e a imperfeição25, o que significa que, ao mesmo tempo em que é fruto da abstração, é também Deus uma necessidade afetiva do coração humano e a satisfação de sua vontade carente26. Daí que a unidade essencial conosco é a condição principal da divindade; o conceito da divindade torna-se dependente do conceito da personalidade, da consciência enquanto o que há de mais elevado que se possa pensar. Mas um Deus (significa ao mesmo tempo) que não é essencialmente diverso de nós não é um Deus. (FEUERBACH, 2012a, p. 217)
Se Deus e o homem são contraditórios entre si, então Deus só pode ser elevado às custas de um rebaixamento do homem (cf. FEUERBACH, 2012a, p. 55), o que significa que a afirmação de Deus é, ao mesmo tempo, a negação do homem, uma vez que “o homem e a divindade não cabem [...] conjuntamente no mesmo lugar” (CABADA CASTRO, 1999, p. 71)27. Mas se a existência do homem é determinada pela natureza, então a assunção de Deus implica necessariamente na supressão da natureza, o que torna possível a crença no milagre e na providência. A religião cristã, nesse sentido, assume os predicados humanos ou, o que é o mesmo, a essência humana como uma essência distinta, separada, porque primeira, especial (cf. FEUERBACH, 2012a, p. 45), tal como é concebida pelo misticismo que, a juízo de Feuerbach,
23. A questão é reforçada nas “Teses”, quando Feuerbach assume que “a essência da teologia é a essência transcendente do homem, a essência do homem posta fora dele” (FEUERBACH, 2005f, p. 87), o que lhe autoriza, no limite, a considerar a teologia como uma “crença em fantasmas” (cf. FEUERBACH, 2005f, p. 88). Por esse motivo, Chagas adverte que “a separação da natureza é […] o ideal essencial do Cristianismo: o cristão desdenha o mundo [...]; ele nega a natureza, pois esta significa a finitude, a transitoriedade e nulidade de sua existência” (CHAGAS, 2010, p. 58). 24. De acordo com Laplanche & Pontalis, em termos psicanalíticos a projeção é a “operação pela qual o sujeito expulsa de si e localiza no outro – pessoa ou coisa – qualidades, sentimentos, desejos e mesmo ‘objetos’ que ele desconhece ou recusa (em si)” (LAPLANCHE; PONTALIS, 2001, p. 374), algo que se assemelha ao processo descrito por Feuerbach. A este respeito, no entanto, é interessante observar o que diz Souza, ao alertar que “[…] a concepção de Feuerbach a respeito de Deus é considerada comumente como projeção. Segundo G. Amengual, porém, Feuerbach nunca utilizou este termo, que teria sido introduzido por E. v. Hartmann, em sua obra História da metafísica (Geschichte der Metaphysik), como caracterização da teoria feuerbachiana da religião. Segundo Amengual ainda, ‘em sua primeira intenção (e até terminologicamente mais fiel) a crítica da religião de Feuerbach deveria definir-se como redução’” (SOUZA, 1994, p. 33). 25. Este pode ser o motivo que justifica a afirmativa feuerbachiana “o que eu não sou, mas desejo ser e me esforço por vir a ser, isso é o meu Deus” (FEUERBACH apud SERRÃO, 2008, p. 627). 26. Bacon, no século XVII, já informava que “o intelecto humano não é luz pura, pois recebe influência da vontade e dos afetos, donde se poder gerar a ciência que se quer. Pois o homem se inclina a ter por verdade o que prefere. Em vista disso, rejeita as dificuldades, levado pela impaciência da investigação; a sobriedade, porque sofreia a esperança; os princípios supremos da natureza, em favor da superstição; a luz da experiência, em favor da arrogância e do orgulho, evitando parecer se ocupar de coisas vis e efêmeras; paradoxos, por respeito à opinião do vulgo. Enfim, inúmeras são as fórmulas pelas quais o sentimento, quase sempre imperceptivelmente, se insinua e afeta o intelecto” (BACON, 1979, p. 25 [Aforismo XLIX] – negrito meu). 27. Sobre isso, Feuerbach advoga que “[…] se queres ter Deus, renuncia ao homem; mas, se queres ter ao homem, então desentende-te de Deus, ou não terás a nenhum dos dois. A nulidade do homem é o pressuposto da essencialidade de Deus; afirmar a Deus significa negar o homem, honrar a Deus, desprezar ao homem, louvar a Deus, ofender ao homem. A majestade de Deus se funda unicamente na baixeza do homem; a bem-aventurança divina, na miséria humana; a sabedoria divina, somente na humana loucura; o poder divino, na humana debilidade […] Ou um ou o outro. Ou ter ao homem por um diabo […] e a Deus por um anjo […] ou ter a Deus por um diabo e ao homem por um anjo. Se o homem é livre, verdadeiro, bom, então Deus em
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não passa de uma “psicopatologia”, “deuteroscopia” (cf. FEUERBACH, 2012a, p. 110), de “uma mina inesgotável de mentiras, ilusões, cegueiras, contradições e sofismas” (FEUERBACH, 2012a, p. 217). Por isso, a religião cristã depende da alienação em Deus dos atributos humanos concebidos de modo absoluto, ilimitado, sobrenatural e, por isso, é dependente da fé, uma vez que esta, em contradição absoluta com a razão natural “permite o que a natureza e a razão negam” (FEUERBACH, 2012a, p. 142), pois que é ela “[…] o olho espiritual, o olho da força da imaginação; ela vê o que não vê, quer dizer, o que não tem presente ante os olhos – a fé não se atém ao presente –, ela vê como eu vejo a um ser distante, separado de mim pela morte ou pelo espaço. […] [Entretanto,] quem vê o ausente, não vê o presente” (FEUERBACH, 2007b, p. 52), o que justifica a tese de que a distinção entre fé e razão seja “um fato psicológico” (cf. FEUERBACH, 2012a, p. 12). Como o homem é dotado de razão e a razão tem o poder da abstração, a fé faz de Deus o maximum da abstração, e isto concede, de certa maneira, prioridade a Deus. Entretanto, Deus é a expressão da própria razão abstrata do homem28, ou, para dizer o mesmo, “o ser eterno é uma existência abstrata, imóvel, não vital, privada de vida. Mas isto é exatamente a mesma razão abstrata” (FEUERBACH, 1982, p. 103). Sem admitir isto, o crente ambiciona Deus dotado de prioridade ontológica: Deus é anterior, todo o resto, posterior. Não à toa a consequência de postular, na “vontade de Deus”29, a justificativa para o mundo: este é criado pela prioridade absoluta de Deus. Assim, a prioridade de Deus nega a prioridade do mundo: este é derivado, segundo, tem sua razão de ser naquele primeiro; ao mesmo tempo, a prioridade de Deus postula, como ato da subjetividade absoluta, isenta de materialidade, a existência secundária do mundo; o mundo, a objetividade, ganha vida graças à subjetividade. Por isso, diz Feuerbach, a criação do mundo, retirado da vontade ilimitada e arbitrária da subjetividade absoluta, constitui “o mais elevado clímax do princípio da subjetividade” (FEUERBACH, 2012a, p. 120), do homem místico.30 A vontade assim concebida não encontra mais qualquer resistência: ela é absolutamente determinada apenas por si mesma, por sua arbitrariedade. O mundo objetivo é fruto dela: tem, portanto, sua existência graças a ela, guarda uma relação de dependência essencial em relação a ela como a uma origem: “o mundo é transitório, mas o homem eterno” (FEUERBACH, 2012a, p. 297). Isso significa que a existência do mundo é garantida pela onipotência da vontade arbitrária de Deus que, justamente em razão de seu descomedimento, pode optar por sua dissolução. A existência do mundo é insegura, porque este não tem seu fundamento em si mesmo, mas num outro, que lhe é essencial (cf. FEUERBACH,
vão é bom, verdadeiro e livre; não há necessidade alguma, nenhum motivo para que Deus exista. […] Se nós somos o que ele é, para que ele existe? Se existe ou não existe, é indiferente; nós não ganhamos nada com sua existência nem perdemos nada com sua inexistência, já que teríamos em Deus apenas uma repetição de nós mesmos” (FEUERBACH, 2007b, p. 5-7 – tradução nossa). Cabada Castro, comentando a oposição entre Deus e o homem, insiste que este movimento implica numa “descrição, que poderia denominar-se fenomenológica e sociológica, do Deus pressuposto ou imaginado - segundo […] [Feuerbach] – pelo homem comum”. (CABADA CASTRO, 1999, p. 71) 28. Cabada Castro argumenta em favor da tese de que ainda no “De ratione una, universali, infinita” (1828) Feuerbach já havia substituído Deus pela “razão hegeliana”. Mas é apenas em “A Essência do Cristianismo” que se opera definitivamente a “redução” de Deus ao homem (cf. CABADA CASTRO, 1998, 10). 29. Spinoza em seu tempo já advertia que o “[…] argumento da vontade de Deus […] [atua como uma espécie de] refúgio da ignorância” (SPINOZA, 2008, p. 70-71). 30. O “homem místico”, informa Feuerbach, tem “sua cabeça […] sempre obnubilada pelos vapores que sobem do ardor incandescente da sua ansiosa afetividade. Ele nunca chega ao pensar abstrato, i. e., desinteressado, livre, mas exatamente por isso também nunca chega à contemplação das coisas em sua naturalidade, verdade e realidade simples; por isso ele identifica um hermafrodita espiritual, imediatamente, sem crítica pelo princípio masculino do pensar e o feminino da contemplação sensorial, i. e., ele estabelece para si um Deus com o qual ele, na satisfação de seu instinto de conhecimento, satisfaz imediatamente ao mesmo tempo o seu instinto sexual, i. e., o instinto por um ser pessoal” (FEUERBACH, 2012a, p. 295).
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2012a, p. 296). Por isso, pode Deus interferir segundo seu “capricho” na ordem natural e dar a conhecer sua onipotência, o que o vulgo concebe como “milagre”31, cuja expressão maior é dada pela ideia de “providência” (cf. FEUERBACH, 2012a, p. 121), exclusivamente devotada ao homem, mas não à natureza em geral (cf. FEUERBACH, 2012a, p. 123): a providência é, então, a expressão do egoísmo humano em relação à natureza32, uma vez que ela, a natureza, não ouve os lamentos do homem – ela é insensível com relação aos seus sofrimentos. Por isso o homem dá as costas à natureza, aos objetos visíveis em geral - volta-se para dentro, para aqui, escondido dos poderes insensíveis, encontrar atenção para os seus sofrimentos. Aqui confessa ele os segredos que o angustiam, aqui alivia ele o seu coração oprimido. Este alívio do coração, este segredo confessado, esta dor externada é Deus. Deus é uma lágrima de amor derramada pela miséria humana na mais profunda intimidade. (FEUERBACH, 2012a, p. 138)
Nessa medida, é possível concluir que existe uma vinculação estreita entre a religião cristã e a afetividade humana: o homem é indivíduo marcado pela carência, pela dependência33, pela necessidade (cf. FEUERBACH, 2012a, p. 140), portanto Deus é a representação da possibilidade de satisfação interna da necessidade humana. Se, contudo, “para o homem afetivo é a imaginação […] a mais elevada atividade, a que o domina” (FEUERBACH, 2012a, p. 147), logo a posição da necessidade de Deus nada mais é que uma espécie de “fruto da fantasia” que domina o homem afetivo34, o homem místico, na medida em que respalda sua funcionalidade na busca pelo bem-estar, pela satisfação do ilimitado desejo humano. No caso do cristianismo, é ainda mais pertinente, pois não se trata da simples aceitação de um Deus distante, como entidade abstrata-racional, mas de um Deus-homem que assume na sua humanidade a dor3535, o sofrimento,3636 a morte, mas a supera pelo poder divino que o
31. Feuerbach aqui parece fazer eco sobre o tema como abordado em Spinoza, que provocava o leitor com a afirmação do milagre como fruto da ignorância e da superstição (cf. SPINOZA, 1997, p. 168-190) e, por esse motivo, diz que “[…] quem quer que busque as verdadeiras causas dos milagres e se esforce por compreender as coisas naturais como um sábio, em vez de se deslumbrar como um tolo, é tido, aqui e ali, por herege e ímpio, sendo como tal proclamado por aqueles que o vulgo adora como intérpretes da natureza e dos deuses. Pois eles sabem que, uma vez suprimida a ignorância, desaparece também essa estupefação, ou seja, o único meio que eles têm para argumentar e para manter sua autoridade” (SPINOZA, 2008, p. 71). Sobre a relação de Feuerbach com Spinoza, cf. FEUERBACH, 2009, p. 20ss; CHAGAS, 2006, p. 79-93. 32. Ironicamente, Feuerbach assente que “Deus só adota homens, não animais” (FEUERBACH, 2012a, p. 226). Daí que “a verdadeira providência é o amor. Deus ama os homens, não os animais, as plantas; pois somente por causa do homem realiza ele feitos extraordinários, atos de amor – milagres” (FEUERBACH, 2012a, p. 300). Em paralelo, é interessante tomar o que informa Spinoza, quando afirma: “[…] cada homem engendrou, com base em sua própria inclinação, diferentes maneiras de prestar culto a Deus, para que Deus o considere mais que aos outros e governe toda a natureza em proveito de seu cego desejo e de sua insaciável cobiça. Esse preconceito transformou-se, assim, em superstição e criou profundas raízes em suas mentes […] Peço-lhes que observem a que ponto se chegou! Ao lado de tantas coisas agradáveis da natureza, [os homens] devem ter encontrado não poucas que são desagradáveis, como as tempestades, os terremotos, as doenças, etc. Argumentaram, por isso, que essas coisas ocorriam por causa da cólera dos deuses diante das ofensas que lhes tinham sido feitas pelos homens, ou diante das faltas cometidas nos cultos divinos. E embora, cotidianamente, a experiência contrariasse isso e mostrasse com infinitos exemplos que as coisas cômodas e as incômodas ocorrem igualmente, sem nenhuma distinção, aos piedosos e aos ímpios, nem por isso abandonaram o inveterado preconceito. Foi-lhes mais fácil, com efeito, colocar essas ocorrências na conta das coisas que desconheciam e cuja utilidade ignoravam, continuando, assim, em seu estado presente e inato de ignorância, do que destruir toda essa sua fabricação e pensar em algo novo” (SPINOZA, 2008, p. 67). 33. O problema é aprofundado com maior rigor nas “Preleções sobre a Essência da Religião” em que, por exemplo, Feuerbach explica que “o sentimento de dependência é a base da religião, mas o objeto primitivo desse sentimento é a natureza, logo é a natureza o primeiro objeto da religião” (FEUERBACH, 2009, p. 37-38), quando Feuerbach não tem conta apenas a avaliação crítica do cristianismo, mas dirige suas reflexões à religião em geral. 34. Mesmo Spinoza já salientava que “[…] os homens julgam as coisas de acordo com o estado de seu cérebro e que, mais do que as compreender, eles as imaginam. […] todas as noções que o vulgo costuma utilizar para explicar a natureza não passam de modos do imaginar e não indicam a natureza das coisas, mas apenas a constituição de sua própria imaginação” (SPINOZA, 2008, p. 73). 35. Daí Feuerbach considerar que, em se tratando do dogma cristão da Trindade, o Filho aparece como figura central, posto que ele “é a necessidade da senhorilidade ou do coração satisfeita em Deus” (FEUERBACH, 2012a, p. 294). Assim, “é o Filho de Deus o filho predileto do coração humano, o noivo da alma, o objeto de um amor formal, pessoal” (FEUERBACH, 2012a, p. 294).
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ressuscita dos mortos. Cristo, a segunda pessoa da trindade divina cristã e a encarnação da ideia abstrata num corpo material – como crê o homem que professa a fé cristã –, nada mais é, para Feuerbach, que “a unidade de afetividade e fantasia” (FEUERBACH, 2012a, p. 160), enquanto para o cristão, que o toma por Aquele que articula em si a dupla natureza (divina e humana) em união hipostática, a aceitação d’Ele não pode prescindir do elemento da fé. Por isso, sustenta Feuerbach, o homem religioso é um indivíduo de fé, posto que a fé é a condição para o milagre, para o fantástico – inclusive para justificar a dupla natureza de Cristo que é, por si mesma, um milagre; concomitantemente, o homem religioso é um indivíduo de fé também em função do medo,37 em decorrência do apelo da fé à afetividade. Daí que mesmo que a minha fé devesse ser livre quanto à sua origem, o medo sempre se mistura com ela; a minha afetividade está sempre presa; a dúvida, o princípio da liberdade teorética, me aparece como um delito. Mas o conceito mais elevado, a essência mais elevada da religião é Deus: o supremo delito é, portanto, a dúvida em Deus ou a dúvida, se existe um Deus. (FEUERBACH, 2012a, p. 194)
A fé do homem afetivo se vincula ao fantástico e ao antinatural, e essa é a premissa indispensável para que seja espectador (e expectador) de milagres. O milagre é a consequência da fé (cf. FEUERBACH, 2012a, p. 307); e mesmo que a fé contradiga frontalmente a razão natural, isto não é relevante para a afetividade do homem místico, pois tudo o que este deseja é um mundo em que seus anseios podem ser absolutamente satisfeitos, sem qualquer embarreiramento objetivo, concreto, de modo que “Deus é a existência correspondente aos meus desejos e sentimentos: ele é o justo, o bom, aquele que realiza os meus desejos” (FEUERBACH, 2012a, p. 182). Por isso, diz Feuerbach, “Deus faz a vontade do homem” (FEUERBACH, 2012a, p. 304). O mundo objetivo, que concretamente oferece resistência à satisfação da ansiedade absoluta do desejo, é, então, concebido como um entrave, um problema; “a natureza, este mundo é uma existência que contradiz os meus desejos, os meus sentimentos” (FEUERBACH, 2012a, p. 182) e, por esse motivo, segue-se a necessidade de postular a inessencialidade do mundo, o afastamento da natureza. A consequência é que quanto mais o homem se afasta da natureza, quanto mais subjetiva, i. e., sobre e antinatural se torna a sua concepção, tanto maior é o seu repúdio pela natureza ou pelas coisas e processos naturais que desagradam a sua fantasia, que lhe impressionam negativamente. O homem livre, objetivo certamente encontra também na natureza muita coisa nojenta e repelente, mas ele entende isso como uma consequência natural, inevitável e dentro desta concepção supera os seus sentimentos como sendo apenas sentimentos subjetivos, ilegítimos. O homem subjetivo, que só vive na afetividade e na fantasia, ao contrário, encara essas coisas com uma contrariedade especial. Ele possui o olho daquele infeliz descobridor que até na mais bela flor só percebeu os minúsculos “escaravelhos negros” que nela corriam e que com esta observação perdeu o prazer de contemplar a flor. O homem subjetivo transforma os seus sentimentos num critério do que deve ser. Tudo aquilo que não
36. O sofrimento, de certo modo, aproxima Deus e o homem, “porque e como Deus sofre, assim e por isso deve também o homem por sua vez sofrer. A religião cristã é a religião do sofrimento” (FEUERBACH, 2012a, p. 291). O tema do sofrimento se vincula ao tema da sensibilidade e, por isso, do amor concreto, o que realiza um apelo “material” ao coração humano, que apenas se satisfaz com um “objeto sensível” (cf. FEUERBACH, 2012a, p. 294). 37. E o medo, conforme Brandão, é causado pelo sentimento de dependência (Abngigkeitsgefuhl), posto que “o homem se sente condicionado, dependente; por isso teme pela sua vida, pela sua saúde, pela sua sorte, pelos seus interesses, sejam eles os mais quotidianos e superficiais” (BRANDÃO, 2009, p. 9).
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lhe agrada, que ofende a sua sensibilidade sobre ou antinatural, não deve existir. Mesmo que o que lhe agrada não possa existir sem o que lhe desagrada (o homem subjetivo não se baseia nas leis monótonas da lógica e da física, mas na arbitrariedade da fantasia) abandona ele numa coisa o que lhe desagrada, conservando o que lhe agrada (FEUERBACH, 2012a, p. 151). A religião tem em seu cerne, portanto, também o envolvimento da afetividade, do sentimento, o que significa que guarda relação com outro elemento fundamental da essência humana, pensado como próprio de uma outra essência, distinta da humana. Aqui resiste um grande paradoxo para o homem religioso: ele deriva sua existência de um ente abstrato, de um Deus-fantasma, cujas qualidades são as suas próprias apartadas das limitações naturais; por isso, a vida que anseia por viver é precisamente uma vida sem as barreiras físicas, sem as obstruções concretas ao seu bem-estar, aquilo que, a juízo de sua fé, lhe estaria disponível numa outra vida, concebida como verdadeira, a vida que não morre, a vida do além, a vida do céu38. Comentando a questão no “Apêndice” de “A Essência do Cristianismo”, Feuerbach diz de Deus que este é, a juízo do homem de fé, o Actus purus, a mera atividade pura sem passividade, i. e., sem corpo, a atividade do olho, mas sem olhos, a atividade da cabeça, o pensar, mas sem cabeça. A questão: ‘Existe um Deus?’ é portanto a questão: existe um ver sem olhos, um pensar sem cabeça, um amor sem coração, uma geração sem órgão genital, um parir sem útero? ‘Eu creio em Deus’ significa: eu creio numa energia sem instrumento, num espírito sem natureza ou corpo, num abstrato sem concreto, numa essência sem ser, i. e., eu creio no milagre (FEUERBACH, 2012a, p. 283);
Trata-se, portanto, da crença não apenas na supra, mas sobretudo na antinaturalidade da divindade, posto que “a natureza só ouve através do ouvido, só vê através do olho, só pensa através do cérebro” (FEUERBACH, 2012a, p. 285). Por isso, prossegue, o cristianismo desenvolve a ideia de um corpo sobrenatural, de um corpo sem corpo, um corpo espiritual como o verdadeiro corpo, este mesmo “[…] eterno, i. e., um corpo do qual são retirados todos os instintos objetivos, sensoriais, toda a carne, toda a natureza, […] é a matéria real, i. e., sensorial, carnal, negada, estabelecida como nula” (FEUERBACH, 2012a, p. 314). A consequência desta proposição não é outra senão a de que se “[…] para a teologia […] somente é verdadeiro o que para ela é sagrado, […] para a filosofia somente é sagrado o [que é] verdadeiro” (FEUERBACH, 2009, p. 23). No limite, a teologia cristã exige que a vida, para o cristão, consista fundamentalmente na morte da materialidade, na morte do corpo (cf. FEUERBACH, 2012a, p. 310) e, por isso mesmo, na separação do mundo (cf. FEUERBACH, 2012a, p. 297). Por isso, quando a vida celestial é uma verdade, é a vida terrena uma mentira, quando a fantasia é tudo, a realidade não é nada. Quem crê numa vida celestial eterna, para ele esta vida perde o seu valor. Ou antes, já perdeu o seu valor: a crença na vida celestial é exatamente a crença na nulidade e imprestabilidade desta vida. (FEUERBACH, 2012a, p. 172)
A outra vida se impõe, portanto, como uma espécie de compensação imaginária ou mesmo como uma rejeição psicológica subjetiva daquilo que o indivíduo quer, mas não pode, em função das limitações impostas por sua natureza. A consequência substancial não
38. Unamuno, recorrendo aos versos de Teresa de Jesus, anota: “Aquela vida de cima é a vida verdadeira; até que esta vida morra não se goza estando viva; morte, não me sejas esquiva; vivo morrendo primeiro, que morro porque não morro” (UNAMUNO, 1914, p. 454).
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pode ser outra senão esta: a privação é a genitora do “outro mundo”39, do mundo da subjetividade ilimitada, do paraísosupraterreno, sobrenatural, imaterial e incorruptível; daí que “o além é apenas a realidade de uma ideia conhecida, a satisfação de um anseio consciente, a realização de um desejo: é somente a supressão das limitações que aqui se opõem à realidade da ideia” (FEUERBACH, 2012a, p. 185) e, por isso, “o além é o aquém contemplado em imagem, embelezado, purificado de qualquer matéria bruta” (FEUERBACH, 2012a, p. 189). O além representa a vitória da subjetividade sobre a natureza, a superação do aquém e de suas contradições e fealdades, posto que o aquém, a natureza, além de coisas belas, também “[…] mostra em si imperfeições, anomalias, excrescências que vão sendo anuladas ou corrigidas [apenas] aos poucos, num tatear evolutivo que leva milhões de anos. […] Ela […] [também] nos mostra […] degeneração, degradação, decadência” (BRANDÃO, 2009, p. 10). Daí o mundo ser concebido pelo crente como o locus da dor e da miséria, que deve ser banido, execrado, para que chegue o “verdadeiro mundo”, eterno e imutável, o mundo perfeito e feliz. O destino do homem afetivo, pensa ele, é achegar-se ao que é necessário, ao antinatural, é o céu, uma vez que “tudo que é necessário para a afetividade é também algo real” (FEUERBACH, 2012a, p. 159). Assim, o indivíduo abandona, como má, a natureza, esquecendo-se de que o homem é o que é pela natureza, por mais que deva o que é também à sua própria atividade; mas também a sua própria atividade encontra o seu fundamento na natureza, i. e., na sua natureza. Sede gratos à natureza! O homem não se deixa separar dela. (FEUERBACH, 2012a, p. 187)
A consequência dessa constatação não poderia ser outra: “a religião nos aliena e desvia da nossa essência”40 (FEUERBACH, 2012a, p. 237), uma vez que consagra a contradição com a razão natural (cf. FEUERBACH, 2012a, p. 243), com a moral natural (cf. FEUERBACH, 2012a, p. 245; 256), com o vínculo comunitário entre os homens (cf. FEUERBACH, 2012a, p. 246), com o amor humano (cf. FEUERBACH, 2012a, p. 256; 258; 260), e, portanto, com a essência humana em geral, na medida em que “endeusa” a razão e o sentimento como uma essência separada do homem (cf. FEUERBACH, 2012a, p. 280). Pela reflexão teológica, a religião cristã elabora uma teoria sobrenatural que, no limite, representa (i) a contraditoriedade teórica com a atividade da razão – que, para o crente, se resume no conhecimento de Deus, cuja posse só está disponível ao cristão, uma vez que Ele só revela sua essência verdadeira e pessoal no cristianismo (cf. FEUERBACH, 2012a, p. 288) –, o que a torna uma uma “fé em fantasmas” (cf. FEUERBACH, 2005f, p. 88), e (ii) a antinaturalidade prática (cf. FEUERBACH, 2012a, p. 271), a qual deve governar a vida cristã, dado que “a meta e o objetivo prático do cristão é exclusivamente o céu” (FEUERBACH, 2012a, p. 288), o que justifica a tese de que ao cristão não interessa o desenvolvimento da cultura41, que “não tem outro objetivo a não ser
39. Com isso, pelo menos em certa medida, concorda Marx quando defende que “a miséria religiosa constitui ao mesmo tempo a expressão da miséria real e o protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o ânimo de um mundo sem coração, assim como o espírito de estados de coisas embrutecidos. Ela é o ópio do povo” (MARX, 2010, p. 145), o que, para Marx, gera forçosamente uma tarefa para a história, qual seja a de “[...] depois de desaparecido o além da verdade, [...] estabelecer a verdade do aquém. A tarefa imediata da filosofia, que está a serviço da história, é, depois de desmascarada a forma sagrada da autoalienação [Selbstentfremdung] humana, desmascarar a autoalienação nas suas formas não sagradas” (MARX, 2010, p. 146). 40. Daí Feuerbach dizer que “como a atividade arterial impulsiona o sangue até as extremidades e as veias o trazem de novo, como a vida em geral consiste numa constante sístole e diástole, também a religião. Na sístole religiosa expulsa o homem a sua própria essência para fora de si, ele expulsa, repreende a si mesmo; na diástole religiosa acolhe ele novamente em seu coração a essência expulsa” (FEUERBACH, 2012a, p. 59). 41. Daí Feuerbach, de maneira provocativa, afirmar que “o verdadeiro cristão, assim como não tem necessidade de cultura por
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realizar um céu terreno” (FEUERBACH, 2012a, p. 220)42 e se fundamenta na necessidade de contemplação de si através do outro e do mundo em geral (cf. FEUERBACH, 2012a, p. 171). O que está escondido na religião cristã não é nada além da antropologia43: na relação do homem com Deus há uma relação do homem com o seu universal, com o seu gênero, não arrancado e sua singularidade, o que representa um aspecto absolutamente positivo. O negativo aparece quando a religião, transformada em teologia, teoriza o conceito de Deus e o torna estranho ao homem, diferente dele44: neste momento, ela forja uma antropologia paradoxalmente inversa àquilo que o homem é, pois “[...] o deísmo e a teologia arrancaram o homem de sua esfera primitiva, natural e humana, e o tem isolado, como se fosse um ser independente da Natureza” (FEUERBACH, 1948, p. 28); a denúncia de Feuerbach é enfática: “o cristianismo transformou o homem num ser extramundano, sobrenatural” (FEUERBACH, 2012a, p. 308) e, ao fazer isso, ao tempo em que negou aos seres humanos o que torna possível a sua existência, metamorfoseou a relação intersubjetiva pela substituição do homem por Deus como “critério absoluto” (cf. FEUERBACH, 2012a, p. 48) para a ação humana. Por isso, a ilusão religiosa acaba por viciar a ética e a política humanas, uma vez que, amparada pelo “sentimento de conveniência” (cf. FEUERBACH, 2012a, p. 51) e, portanto, por um mero “prazer do egoísmo” (cf. FEUERBACH, 2012a, p. 57) que se baseia na consciência religiosa, tomada erroneamente como critério da verdade (cf. FEUERBACH, 2012a, p. 100), torna nula a vida comunicativa, a vida relacional entre os seres humanos, a “vida verdadeira” (cf. FEUERBACH, 2012a, p. 92). Isso ocorre quando se assume o próprio conceito de Deus no cristianismo, posto que o monoteísmo nada mais é que a negação da relacionabilidade de Deus, já que “Deus é […] o Eu sem o Tu. […] [Por isso, é] o ser-somente-para-si-mesmo [que] contradiz o conceito da verdadeira vida, o conceito do amor” (FEUERBACH, 2012a, p. 127). Consequentemente, egoísmo e monoteísmo não são distintos: são a expressão da unidade do “em-si” e do “para-si” de Deus. Por esse motivo, Feuerbach adverte que o egoísmo é essencialmente monoteístico, porque ele só tem uma coisa por meta: a si mesmo. O egoísmo recolhe, concentra o homem sobre si mesmo; ele lhe fornece um princípio de vida sólido, denso, mas limita-o teoricamente, porque é indiferente a tudo que não se relacione imediatamente com o próprio bem-estar. (FEUERBACH, 2012a, p. 131)
É nesse sentido que se deve interpretar a crítica de Feuerbach pela qual defende que o cristianismo nega a comunidade em função da particularidade, despreza o gênero humano pela exaltação do indivíduo (cf. FEUERBACH, 2012a, p. 163), pelo “excesso de subjetividade”
ser esta um princípio contrário ao espírito, mundano, não tem também necessidade do amor (natural). Deus lhe supre a falta, a necessidade da cultura, da mulher, da família” (FEUERBACH, 2012a, p. 177). Sobre o tema da cultura é importante considerar, segundo Serrão, a “[…] Teogonia de 1857, justamente interpretada [por Philonenko] como uma teoria da cultura fundada no desejo” (SERRÃO, 1993, p. 130). 42. Baseado nesse motivo, Cabedo Manuel argumenta que “toda plataforma teológica ou especulativa aliena ao homem porque não parte dele nem lhe tem em conta. Unicamente quando liberemos o homem do traje celestial lhe haveremos ganhado para a terra e poderemos ajudar-lhe a converter-se em cidadão consciente do mundo” (CABEDO MANUEL, 1979, p. 93). 43. Como sugere em “A Essência da Religião” [Das Wesen der Religion (1846)] , “[dizer que] a teologia não é outra coisa que a antropologia, quer dizer que quando os gregos diziam theos, e o que nós chamamos Deus, não é nada senão a essência humana divinizada; pelo que a história das religiões se reduz, no final das contas, à história da humanidade, pois há tantas religiões diferentes quantos povos diferentes há” (FEUERBACH, 1948, p. 17). 44. Daí que, de acordo com Feuerbach, “apresentamos […] a verdade […] [e] a inverdade da religião, ou antes, da teologia. Verdade é somente a identidade de Deus e do homem – verdade é somente a religião quando ela afirma as qualidades humanas como divinas, falsidade quando ela, enquanto teologia, nega as mesmas, separando Deus do homem como um outro ser” (FEUERBACH, 2012a, p. 337).
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(FEUERBACH, 2012a, p. 170), de modo que o relacionamento intersubjetivo fica obstacularizado. Mais ainda quando se tem em conta o elemento exclusivo da fé, justificadamente tomado como condição indispensável para a religião, pois a fé separa Deus do homem, portanto, o homem do homem; porque Deus nada mais é que o conceito genérico místico da humanidade, a separação de Deus do homem é, portanto, a separação do homem, a dissolução da união comunitária. […] [Assim,] a fé separa: isto é verdadeiro, isto falso. E somente a si atribui a verdade. […] A fé é por natureza exclusiva (FEUERBACH, 2012a, p. 246). A fé é exigente: informa a verdade a ser crida e, por isso, sustenta-se em si e por si mesma, indicando sua não-aceitação como reprovável. Quem crê, tem a posse da verdade; o que não crê é julgado como errado e mau, pois não aceita a verdade. Está na base da fé a ideia de condenação, que é devida ao que não acredita. Ao se opor à fé, o incrédulo se opõe a Deus mesmo, ao Bem supremo; se se opõe ao bem, é porque é mau; se é mau, está condenado. Daí porque o amor no cristianismo, para Feuerbach, é necessariamente ilusório: ele só se dirige aos crentes, pois os incrédulos estão danados de antemão, caso não aceitem a verdade cristã. Por isso a fé é essencialmente dissociativa e intolerante: ela nega o vínculo natural entre os homens (cf. FEUERBACH, 2012a, p. 251), o amor, e põe em seu lugar um vínculo especial, aquele da crença; ao fazer isso, opõe-se ao amor, é-lhe indiferente (cf. FEUERBACH, 2012a, p. 258), pois que “um amor limitado pela fé é um amor ilegítimo” (FEUERBACH, 2012a, p. 260) porque impede o amor ao homem pelo que ele é.
4. Teologia cristã como expressão vulgar da inversão filosófica A crítica à teologia cristã empreendida por Feuerbach acaba por demonstrar a inverdade das pretensões místicas do crente ao revelar Deus como homem, o homem como seu próprio Deus hipostasiado daquilo que não é realmente humano, do seu vínculo material com a natureza. Trata-se da denúncia da aceitação, pelo crente, de um Deus abstrato, de um “fantasma”, como uma verdade de fé, da qual deriva uma série de imposições dogmáticas cuja pretensão é afastar o homem da natureza. Daí que “a abstração, a negação da natureza representa um momento que deve ser absolutamente negado porque se opõe ao ser verdadeiro, ‘o coração, a humanidade, a vida’, enquanto autoconsciência livre e real” (TOMASONI, 1982, p. 7).45 Ademais, Feuerbach infere que Deus não é apenas uma simples abstração teórica, uma entidade do pensamento indeterminado, mas que ele também é a negação da vida concreta do homem em vista de um céu feliz, a mesma que lhe obriga a viver, na prática, o distanciamento do homem concreto, da vida efetiva, de tal modo que o que nocivamente a teologia realiza teoricamente, obriga praticamente.46 Feita a apuração, parece óbvia a ligação entre teologia (ou reflexão religiosa) e filosofia especulativa: elas, de fato, “são idênticas” (FEUERBACH, 2012a, p. 11) – e, por isso, Feuerbach 45. A constatação alcança as “Teses Provisórias para a Reforma da Filosofia” e mesmo os “Princípios da Filosofia do Futuro”, sem se esquivar da “Passagem da Teologia para a Filosofia” [«Übergang von der Theol[ogie] zur Phi[losophie]». Die Dialektikdes des Ensbegriffes. Nebst Anhang über Cartes[ianischen] Dualismus (Parallela zwischen Cart[esius] und Luth[er] (1841/42?) – cf. TOMASONI, 1982, p. 94. Para um detalhamento da problemática cf. TOMASONI, 1982, p. 7. 46. Por isso Cabedo Manuel defende que “é evidente que para Feuerbach o fenômeno religioso não constitui simplesmente um problema interessante a nível teórico e especulativo, mas que se vê impelido a refletir e aprofundar nele por exigências de tipo prático e vital” (CABEDO MANUEL, 1979, p. 90).
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por vezes nomeia a filosofia especulativa de “teologia especulativa” (cf. FEUERBACH, 2005d, p. 107); por essa razão, a crítica à primeira é, ao mesmo tempo, uma crítica à segunda (cf. FEUERBACH, 2012a, p. 17), a qual produz o pensamento retirando-o do seu oposto, da matéria, da essência, dos sentidos, que de início se comporta sensorialmente, i. e., passiva e receptivamente em relação a seus objetos para só depois determiná-los pelo pensamento. [...] [A filosofia especulativa] por ser gerada na essência da religião, tem a verdadeira essência da religião em si, é em si e por si, enquanto filosofia, religião. (FEUERBACH, 2012a, p. 22; 28)
Religião e filosofia representam uma possibilidade de “consciência de si” para o homem: aquela, vale lembrar, “primeira e indireta” e, por isso, precede à segunda (cf. FEUERBACH, 2012a, p. 45) – o que expressa a positividade das religiões, na medida em que elas atuam como “tradições da primeira consciência” (FEUERBACH, 2012a, p. 267) e permitem certa “ampliação da consciência sensorial” (FEUERBACH, 2012a, p. 219); quanto à filosofia, por sua vez, ela traz “à minha consciência aquilo que eu sou capaz de saber, liga-se à minha faculdade espiritual” (FEUERBACH, 2012b, p. 32). Daí porque Feuerbach insista não em negar absolutamente a religião ou a filosofia, mas em “restituir” a sua verdade, embora este tema seja objeto de interpretações diversas47: “o que verdadeiramente lhe interessa é o ser ou não ser do homem.48 O objetivo de seus escritos, afirmará, é eminentemente positivo; nega, para pode afirmar”49 (CABEDO MANUEL, 1979, p. 93). 47. A posição aqui apresentada é, por exemplo, amparada por Löwith, para quem “[…] Das Wesen des Christentums não seria ‘nenhuma destruição crítica da teologia cristã e do cristianismo, mas uma tentativa de conservar o essencial no cristianismo, nomeadamente sob a forma de uma ‘antropologia’ religiosa’” (LÖWITH apud BARATA-MOURA, 1993, p. 50), ou, pelo menos de certo modo, por Serrão, quando diz: “Que o ser humano enquanto tal seja intrinsecamente religioso decorre da carência de alteridades, emanante do coração, fundamento do tecido de interacções que constitui o próprio existir. Só a sensibilidade traz o coração à razão. [Por isso, mesmo] [...] Feuerbach mantém o sentido positivo da religiosidade, despojada da hipostasiação de deuses transcendentes, conserva a religião e a função prospectiva e antecipadora do desejo, sem cair na entronização de seres supremos ou entidades supra e extra-humanas. […] [Daí que] configurado como sentimento existencial, o sentimento religioso é inerente e não pode ser extirpado. […] Nenhum pensamento da morte de Deus se pode encontrar em Feuerbach, mas pelo contrário, a intensificação da religiosidade da vida numa transcendência imanente […] [o que significa] ‘não ser contra a religião, mas estar para além dela’” (SERRÃO, 2008, p. 626); por isso ainda assinala que, no caso específico de “A Essência do Cristianismo”, para a “[…] interpretação deste fenómeno marcante da existência humana [a religião] Feuerbach adopta uma posição não refutativa, mas hermenêutica” (SERRÃO, 2015, p. 49). Há que se reconhecer, entretanto, que outras leituras são possíveis, como a de Brandão, que defende que, de acordo com Feuerbach, “a religião […] será substituída pela cultura, pela ética, pelo humanismo, porque só a cultura pode unir os homens, não a religião” (BRANDÃO, 2009, p. 10 – negrito meu) ou de Arrayás, para quem “[…] o pensamento de Feuerbach é intrinsecamente ateu. Com efeito, nele não se trata apenas de desmascarar uma falsa imagem de Deus nem de por à vista a verdade oculta da religião, a essência antropológica da teologia; trata-se, como o próprio Feuerbach afirma, defendendo-se da acusação de ateu piedoso que Max Stirner lhe fez de descobrir que os predicados teológicos atribuídos a Deus não são predicados de Deus, mas do homem e da natureza, de maneira que ‘se são transferidos de Deus ao homem, perdem então o caráter de divindade’, que só possuem a a abstração e a fantasia; com o que desemboca inevitavelmente no rechaço à divindade mesma e a todo ser que se apresente como autêntico Deus. Se, apesar de sua radicalidade, o ateísmo feuerbachiano transpira em algumas de suas obras mais importantes um certo aroma de religiosidade devido a seu patos humanista e a sua absolutização da Gattung (gênero) humana, não se deve esquecer, em contraposição, a evolução que experimentou seu pensamento na direção de um materialismo cada vez mais acentuado, em cujo centro já não estava o homem, mas a natureza material. A radicalidade da negação de Deus sustentada por Feuerbach se põe manifestamente em sua interpretação de Lutero. Neste ponto chega em sua crítica a uma verdadeira inversão da religiosidade do Reformador: inclusive o cristianismo é ateu. […] O cristianismo […] [é], segundo Feuerbach, a autoafirmação suprema do homem como absoluto. Este é o ateísmo oculto do cristianismo” (ARRAYÁS, 2007, p. XII). Daí Arrayás admitir que Feuerbach, sobretudo na Segunda Edição de “A Essência do Cristianismo” (1843), aprofunda e leva a termo a “antropologização” da teologia cristã iniciada por Lutero, o que justificaria, por exemplo, seu interesse em investigar mais detidamente o pensamento luterano, após a recensão referente à Primeira Edição (1841) publicada por J. Müller na Revista Theologische Studien und Kritiken (sobre o tema, é interessante consultar ARRAYÁS, 2007, p. XIVss, sobretudo a cronologia indicada nas p. XX-XXI; para aprofundar a discussão sobre a relação de Feuerbach com Lutero, cf. ANDOLFI, 2010; ARRAYÁS, 1987).
48. Serrão contribui com o debate ao insistir que “a filosofia de Feuerbach torna-se necessariamente numa Antropologia, não
na acepção de uma restrita doutrina do humano, mas no sentido totalizador de filosofia fundamental, susceptível de responder por sua vez e de um modo renovado às grandes questões de toda a filosofia” (SERRÃO, 1999, p. 20).
49.À “nova filosofia”, estabelecida como necessária, parece ainda importante o método dialético, que tem em Hegel um de
seus principais expoentes. A juízo de Feuerbach, no entanto, a dialética hegeliana é, na verdade, uma “pseudo-dialética”, uma vez que “a dialética não é um monólogo da especulação consigo mesma [como, a seu ver, ocorre na filosofia hegeliana],
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Nessa perspectiva, a proposta feuerbachiana passa necessariamente pela apresentação (e, por isso, pela superação) de uma inversão operada tanto na reflexão religiosa quanto na filosofia (cf. FEUERBACH, 2005d, p. 107): na teologia, a especulação “transforma o derivado em primitivo e inversamente o primitivo em derivado. […] Assim distorce ela a ordem natural das coisas” (FEUERBACH, 2012a, p. 134), uma vez que, de fato, “primeiramente o homem cria Deus, sem saber e querer, conforme a sua imagem e só depois este Deus cria o homem, sabendo e querendo, conforme a sua imagem” (FEUERBACH, 2012a, p. 134); na filosofia especulativa, idêntica a uma “mística racional” (FEUERBACH, 2012b, p. 55), ocorre precisamente o mesmo movimento: faz “do secundário o primitivo e o que […] [é] propriamente primitivo […] [é] posto à margem como subordinado” (FEUERBACH, 2012b, p. 55), do que se segue a necessidade de fazer do predicado, sujeito, e do sujeito, predicado (cf. FEUERBACH, 2012b, p. 51). Isso significa dizer que “a teologia se resolve na filosofia – ou seja Deus no intelecto humano, mas o que foi resolvido no intelecto, deve finalmente ser resolvido no coração, na humanidade, na vida” (FEUERBACH, 1982, p. 111). Se é assim, então há que se realizar uma “inversão da inversão”, na medida em que ela expressa uma tarefa irrenunciável, um dever de honestidade para com o ser humano, uma obrigação prática, de modo que o objetivo de Feuerbach implica necessariamente na assunção de uma posição ética: afirmar a legitimidade do mundo humano concreto, por meio de um necessário “retorno à natureza” (cf. FEUERBACH, 2012b, p. 62), graças à qual o homem pode ser (cf. SERRÃO, 1999, 21). Por esse motivo, Rambaldi defende que “A Essência do Cristianismo” constitui um ponto de ruptura com a especulação,50 apresentando cinco razões para admiti-lo, quais sejam: 1) a oposição ao cristianismo adulterado moderno; 2) a crítica radical do point d’honneur da filosofia especulativa, isto é, a demonstração de que toda tentativa de harmonizar fé e razão é vã e que a filosofia é substancialmente irreligiosa; 3) a polêmica contra a cristã “filosofia positiva”; 4) o aspecto político da diatribe anticristã, enquanto muitos governantes usam a fé
[mas] é um diálogo da especulação e da empiria” (FEUERBACH, 2012b, p. 41-42). Daí o motivo pelo qual a dialética hegeliana é censurada: “o método de Hegel vangloria-se de seguir o curso da natureza; ele inspira-se certamente na natureza, mas falta à cópia a vida do original” (FEUERBACH, 2012b, p. 24), algo que reforça as palavras expostas nas “Teses Provisórias para a Reforma da Filosofia”, ocasião em que Feuerbach argumenta que “a filosofia de Hegel alienou o homem de si mesmo, na medida em que todo o seu sistema assenta nestes actos de abstracção. Ela volta certamente a identificar aquilo que separa, mas apenas de uma maneira também ela separável, mediata. Falta à filosofia de Hegel unidade imediata, certeza imediata, verdade imediata” (FEUERBACH, 2005f, p. 88). Para dar conta da “tarefa da filosofia” e, assim, apresentar as especificidades da “nova filosofia” que sugere, Feuerbach sustenta : “os instrumentos, os órgãos essenciais da [“nova”] filosofia, são: a cabeça, a fonte da actividade, da liberdade, da infinitude metafísica, do idealismo, e o coração, a fonte da afecção, da finitude, da necessidade, do sensualismo; para nos exprimirmos teoricamente: pensar e intuição; porque o pensar é a necessidade da cabeça, a intuição, o sentido, a necessidade do coração. O pensar é o princípio da escola, do sistema, a intuição o princípio da vida. Na intuição sou determinado pelo objecto, no pensar sou em quem determino o objecto; no pensar sou eu, na intuição não-eu. É só a partir da negação do pensar, do ser-determinado pelo objecto, a partir da paixão, da fonte de todo o prazer e necessidade que se gera o pensamento verdadeiro, objectivo, a filosofia verdadeira, objectiva. A intuição dá a essência imediatamente idêntica à existência, o pensar a essência mediatizada pela diferenciação, pela separação relativamente à existência. Portanto, só aí onde a existência se une à essência, a intuição ao pensamento, a passividade à actividade, onde o princípio anti-escolástico, sanguíneo do sensualismo e materialismo franceses se liga à fleuma escolástica da metafísica alemã, só aí existe vida e verdade. […] O coração – o princípio feminino, o sentido para o finito, a sede do materialismo – é de índole francesa; a cabeça – o princípio masculino, a sede do idealismo, é de índole alemã. O coração revoluciona, a cabeça reforma; a cabeça põe as coisas no sítio, o coração põe-nas em movimento. Mas só onde há movimento, ebulição, paixão, sangue, sensibilidade, existe também espírito” (FEUERBACH, 2005f, p. 93-94). 50. Há algumas discussões entre os intérpretes a respeito do momento em que Feuerbach opera a “ruptura” com Hegel, de modo a considerarem a própria obra “Para a crítica da filosofia de Hegel” e mesmo “A Essência do Cristianismo” como uma espécie de “filosofia de passagem” (para detalhar a exposição, recomenda-se a leitura de TOMASONI, 1982, p. 4), com o que, de certo modo consente Serrão no que diz respeito à segunda obra, na medida em que a toma “como um texto de transição no próprio curso da doutrina feuerbachiana, enquanto momento de passagem de uma concepção teorética a uma antropologia da totalidade humana” (SERRÃO, 1993, p. 140). Em Rawidowicz, conforme Serrão, por exemplo, aparece a ideia de que a filosofia feuerbachiana deve ser dividida em três momentos, quais sejam: (i) a fase “especulativa” (até 1839); (ii) a fase do “antropologismo sensualista” (até 1842 - em que se incluem, por exemplo, “Para a crítica da filosofia de Hegel” e “A Essência do Cristianismo”; e (iii) a fase do “naturalismo eudemonista” (posterior a 1842) – as expressões separadas por aspas aparecem em SERRÃO, 1993, p. 126.
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como instrumento regni, mantendo o povo na ignorância e na opressão; 5) o anticonformismo, a oposição a todos os academicismos da vida cultural alemã. (RAMBALDI, 1966, p. 109)
A inversão da inversão, nesse sentido, assinala a exigência de uma “nova religião”, a que nomeará nas Teses (1842) de “antropoteísmo”51 (cf. FEUERBACH, 2005f, p. 95; LIMA VAZ, 1998, p. 126), pelo qual o homem acredite em si mesmo em vez de manter a crença em deuses para estabelecer um mundo melhor (cf. BRANDÃO, 2012, p. 10), e de uma “nova filosofia”, que assume a primazia ontológica da natureza sobre o homem, o qual apenas com base nela se desenvolve, que parte do concreto em vez da abstração (cf. CHAGAS; REDYSON, 2012, p. 9). Delas decorre uma nova concepção ética que assinala a exigência de uma revalorização do mundo dos homens como realidade intransponível, assim como acentua a emergência de uma outra assimilação do político, em que a vida comum cooperativa designa a importância do reconhecimento mútuo entre os indivíduos em convivência intersubjetiva. Mas estes já são temas para uma outra reflexão.
Referências Bibliográficas ANDOLFI, F. Feuerbach e Lutero. Religare, v. 7, n. 1, 2010, p. 81-89. ARRAYÁS, L. M. A. Estudio preliminar. In: FEUERBACH, L. Escritos en torno a La esencia del cristianismo. Trad. cast. Luis Miguel Arroyo Arrayás. Madrid: Editorial Tecnos, 2007. _______. Yo soy Lutero II. La presencia de Lutero en la obra de L. Feuerbach. 547f. Tesis Doctoral en Filosofía – Universidad Pontifícia de Salamanca. Salamanca, 1987. BACON, F. Novum Organum ou Verdadeiras Indicações acerca da Interpretação da Natureza; Nova Atlântida. Trad. bras. José Aluysio Reis de Andrade. São Paulo: Abril Cultural, 1979. BARATA-MOURA, J. El materialismo de Feuerbach. Un estudio de sus escritos. Anales del Seminario de Historia de la Filosofía. Madrid, v. 11, 1994, p. 95-128. _______. Esclarecer significa fundamentar. Alienação e alteridade em Das Wesen des Christentums de Ludwig Feuerbach. In: BARATA-MOURA, J. & MARQUES, V. S. (orgs.) Pensar Feuerbach. Colóquio comemorativo dos 150 anos da publicação de A Essência do Cristianismo (1841-1991). Lisboa: Edições Colibri, 1993, p. 47-93. BRANDÃO, J. S. Apresentação do tradutor. In: FEUERBACH, L. Preleções sobre a Essência da Religião. Trad. bras. José da Silva Brandão. Petrópolis: Vozes, 2009. _______. Introdução. In: FEUERBACH, L. A Essência do Cristianismo. Trad. bras. José da Silva Brandão. Petrópolis: Vozes, 2012. CABADA CASTRO, M. El Dios que da que pensar. Acceso filosófico-antropológico a da divindad. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1999. _______. Introducción a la edición castellana. In: FEUERBACH, L. La esencia del cristianismo. Trad. cast. José L. Iglesias. Madrid: Editorial Trotta, 1998.
51. Cabada Castro informa que “a nova religião feuerbachiana começa a ser pouco a pouco o homem, o homem que pensa, reflete e deseja agir livremente” (CABADA CASTRO, 1998, p. 10 – tradução nossa), e, por isso, “é o homem como problema que se coloca agora à filosofia, mas a resolução deste problema implica, por sua vez, a transformação da filosofia de assunto estritamente académico, operando com categorias escolares, numa causa da Humanidade, conduzida por uma atitude realista, imersa na vida, radicada na ‘não-filosofia’ onde encontra doravante um novo fundamento e novos princípios para o seu filosofar” (SERRÃO, 2015, p. 51).
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Cap. 5
O Formalismo Político e a Genericidade Humana Abstrata no Estado: Marx e a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel Renato Almeida de Oliveira
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O Formalismo Político e a Genericidade Humana Abstrata no Estado: Marx e a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel Renato Almeida de Oliveira52 O encontro de Marx com a filosofia hegeliana ocorre durante seus estudos em Berlim, quando passa a fazer parte do Doktorenklub. A partir de então, Marx abandona os estudos do Direito e dedica-se fervorosamente à filosofia. É evidente a influência de Hegel na sua tese de doutoramento. Contudo, somente em 1843, Marx estudará a filosofia hegeliana, especialmente a Filosofia do Estado, em seus pormenores. O resultado desse estudo foi a elaboração de 39 cadernos de anotações (não destinados à publicação), nos quais Marx comenta os parágrafos 261 a 313 dos Princípios da Filosofia do Direito (1821). Nesses parágrafos, Hegel expõe suas ideias acerca da divisão dos poderes, Constituição estatal e o poder do monarca. Ao analisá-los, Marx tece uma crítica a Hegel pelo fato deste ter partido de abstrações lógicas e não da própria realidade, do homem e do mundo reais. Do mesmo modo que critica Hegel, Marx tece uma crítica aos neohegelianos por estes terem abandonado por completo o conteúdo da filosofia do seu mestre e por terem desembocado em abstrações grosseiras. Marx critica, nos textos dos Anais Franco-Alemães, Bruno Bauer e Feuerbach, por ambos terem se preocupado demasiadamente com a religião e a natureza abstrata do homem e esquecerem o caráter social deste. Embora Marx critique Feuerbach, é evidente a influência deste na Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Feuerbach pretendia reformar a Filosofia, ou seja, elaborar uma filosofia do futuro, fundada no homem e na natureza. Marx, todavia, embora concorde com Feuerbach que a Filosofia deve ser reformada, ele indica os limites de suas teses: Eu concordo com os aforismos de Feuerbach, exceto em um ponto: ele dirige-se demasiado para a natureza e pouco para a política. Mas é na política onde acontece o único elo através do qual a filosofia contemporânea pode tornar-se verdadeira. (MARX in MECW, 1975, p. 133)
O que diferencia a crítica de Feuerbach a Hegel da elaborada por Marx é o fato do primeiro ater-se a uma investigação teórica, enquanto Marx deteve-se aos aspectos sociais e políticos. No entanto, o jovem Marx utiliza-se do instrumental teórico feuerbachiano para elaborar sua crítica à Hegel, especialmente acerca do tema do Estado. Como em Feuerbach Deus é o ser universal que se opõe à individualidade humana, que se põe diante do homem como ser superior e independente, em Marx, o Estado moderno assume essa dimensão autônoma e, assim como Deus na religião, o Estado estranha o homem de sua universalidade.
52. Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará. Professor Adjunto do Curso de Filosofia da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA) e Colaborador do Mestrado Profissional em Filosofia UFC/UFPR. Coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisa de Filosofia e Teoria Política e Social (GEPPS/UVA). Membro de Grupo de Pesquisa em Filosofia da Religião (GEpHIR/ UVA) e do Grupo de Estudos Marxistas (GEM/UFC).
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Assim como em Feuerbach a religião não passava da objetivação da vida genérica humana, em contraposição à realidade individual, aqui o Estado não passa disto. Assim como a religião acontece em oposição à vida individual e concreta, assim o Estado se dá em oposição à esfera civil em que o homem continua sendo egoísta. (SCHÜTZ, 2001, p. 36)
Desse modo, entre a primavera e o verão de 1843, Marx retira-se na pequena cidade de Kreuznach e dedica-se intensamente a escrever uma longa e detalhada crítica dos Princípios da Filosofia do Direto de Hegel. Esse estudo aplica a crítica geral de Feuerbach à religião e à filosofia hegeliana, critica essa que se propõe uma releitura da filosofia tradicional substituindo sujeito pelo predicado, ao campo da política. Marx reconhece a grandiosidade da obra hegeliana e percebe que uma crítica ao seu sistema só pode realizar-se internamente, isto é, por meio de uma crítica que leva em consideração as próprias categorias hegelianas, mas que tenta reformulá-las. E é isso que Marx faz em seu manuscrito, no qual ele aceita e usa tais conceitos como “sociedade civil” (bürgerliche Gesellschaft) ou “propriedade” como eles aparecem no sistema hegeliano, mas apresenta-os numa relação revolucionária com o conceito de Estado. Como resultado, esse conceito sofre uma significativa mudança de sentido. As análises críticas dos conceitos hegelianos de propriedade, sociedade civil, Estado etc., conduzem Marx a uma crítica fundamental das premissas filosóficas de Hegel. (AVINERI, 1979, p. 13)
Marx inicia o texto pelo comentário ao § 261 dos Princípios da Filosofia do Direito, o qual é uma análise do Direito Público Interno. Para Hegel, o Estado é o fim imanente da família e da sociedade civil, quer dizer, é o lugar onde essas esferas privadas encontram sua realização. Por isso que no parágrafo anterior (§ 260) ele afirma que o Estado é “a efetividade da liberdade concreta”, pois nele estão suprassumidos o direito particular da família e da sociedade na conexão entre a universalidade do Estado e a particularidade dos indivíduos. Essa identidade substancial entre ambos, Estado (fim universal) e família/sociedade (interesses particulares dos indivíduos), manifesta-se politicamente mediante um sistema de direitos e deveres. Nesse sentido, Hegel afirma que o Estado tem “sua força na unidade do seu último fim universal e dos interesses particulares do indivíduo; esta unidade exprime-se em terem aqueles domínios deveres para com o Estado na medida em que também têm direitos.” (HEGEL, 2003, p. 226). A família e a sociedade civil são esferas finitas, particulares, no processo de desenvolvimento da Ideia do Estado (§ 262), o qual, para atingir a sua universalidade, nega essas esferas e as eleva ao seu grau de universalidade onde elas se realizam. Rosenfield exemplifica essa relação particular-universal com a concepção de polis grega: A natureza da cidade, no mundo grego, é o resultado do processo de atualização da “família” e da “aldeia”. A relação entre o indivíduo e a comunidade é a de uma identidade entre a razão de ser de cada um e a finalidade da polis, a finalidade de todos [...] Com efeito, é importante assinalar que a “cidade” é a concretização de um processo teleológico enraizado nos seus elementos simples, ou seja, a família [...] e a aldeia, as quais são formas comunitárias da totalidade política e significam que a “cidade”, realizando o seu fim, perfaz a finalidade contida nestas duas esferas. A “cidade” é o fim da “família” e da “aldeia”. Ora, o que faz com que uma coisa seja uma coisa é o seu fim, sendo que o todo só existe por suas partes que só se efetuam no todo. (ROSENFIELD, 1983, p. 226)
Os indivíduos possuem em si dois extremos: a particularidade e a universalidade (§ 264). O primeiro faz deles uma individualidade extrema; o segundo os impele para o substancial, a esfera da universalidade. “Tais indivíduos só conseguem justificar esses dois aspectos quando agem como pessoas privadas e ao mesmo tempo como pessoas substanciais.” (HEGEL, 2003,
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p. 229). Hegel expressa, aqui, sua concepção de sujeito, um sujeito que rompe com a ideia tipicamente moderna, na qual ocorre uma separação entre liberdades individuais e os interesses coletivos. O sujeito hegeliano rompe com essa separação e reconcilia, numa mesma subjetividade, o particular e o universal. Mas como o indivíduo em sua particularidade pode trazer em si o universal e expressá-lo? Hegel explica que esse indivíduo alcança a universalidade em meio a sua particularidade mediante as instituições, que são o que há de virtualmente universal no âmbito dos seus interesses particulares, onde ele tem a essência da sua consciência de si, e nas corporações, onde a sua atividade é uma ocupação dirigida para o fim universal. Marx refuta essa ideia hegeliana argumentando que a unidade dos interesses particulares das esferas da família e da sociedade civil com o interesse geral, ou seja, o Estado, cria uma “necessidade externa”. “Necessidade externa”, para Marx, significa “que ‘leis’ e ‘interesses’ da família e da sociedade civil devem ceder, em caso de colisão, às ‘leis’ e ‘interesses’ do Estado.” (MARX, 2005, p. 28). Tal ideia reforça que a existência das esferas privadas depende da existência do Estado, porque somente nele elas encontram sua realização. Por isso que, supostamente, a vontade e as leis do Estado lhes são necessárias, ou seja, são imprescindíveis. Entretanto, Marx assevera que Hegel está apenas fazendo alusão à relação essencial, poderíamos dizer relação lógica, das esferas do direito privado com o Estado, e não de colisões ou relações fáticas. Afirmar que a família e a sociedade civil são subordinadas e dependentes do Estado, significa dizer que sua relação com este é externa, pois “‘subordinação’ e ‘dependência’ são relações externas que se restringem e se contrapõem à essência autônoma” (MARX, 2005, p. 28) das esferas privadas, isto é, a necessidade externa que a família e a sociedade civil têm do Estado contradiz a sua essência interna, a sua autonomia, a capacidade de autorregulação, o que as tornam dependentes de uma entidade que lhes é exterior. Marx quer chamar a atenção para a anterioridade da família e da sociedade civil em relação ao Estado, “precisamente porque ‘sociedade civil e família’, em seu verdadeiro sentido, quer dizer, autônomo e pleno desenvolvimento, são pressupostas em relação ao Estado como ‘esferas’ particulares.” (MARX, 2005, p. 28). Por isso que subordinar e tornar dependentes do Estado as esferas privadas é um ato forçado que cria uma identidade aparente, que apenas é possível na expressão lógica “necessidade externa”, utilizada por Hegel. Portanto, para a filosofia de Hegel, as esferas particulares nada mais são do que divisões do Estado, são esferas ideais do seu conceito, ou o aspecto finito deste. Somente com a suprassunção dessa finitude é que o Estado ou o Espírito pode tornar-se Espírito real infinito. Desse modo, família e sociedade civil aparecem como o escuro fundo natural donde se acende a luz do Estado. Nessa concepção hegeliana, consoante Marx, aparece clara mente um “misticismo lógico”, um panteísmo. A realidade aparece como mera manifestação da Ideia em si mesma, ou seja, não se exressa como ela mesma, mas sim como uma outra realidade (MARX, 2005, p. 29). Ao falar da realidade, Hegel o faz utilizando os termos manifestação, fenômeno, termos esses que, segundo Marx, remetem a uma empiria ordinária. Nessa concepção idealista, a realidade seria uma manifestação do Espírito em sua forma finita. Ao contrário, para Marx, a realidade é uma dimensão que se desenvolve a partir de si mesma, possui suas próprias determinações que independem de uma realidade superior. Marx expressa a inversão realizada por Hegel nos seguintes termos:
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A Ideia é subjetivada e a relação real da família e da sociedade civil com o Estado é apreendida como sua atividade interna imaginária. Família e sociedade civil são os pressupostos do Estado; elas são os elementos propriamente ativos; mas, na especulação, isso se inverte. No entanto, se a Ideia é subjetivada, os sujeitos reais, família e sociedade civil [...] convertem-se em momentos objetivados da Ideia, irreais e com um outro significado. (MARX, 2005, p. 30)
Isso significaria dizer que a realidade não passa de um produto da ideia, ou seja, uma determinação desta. Na orientação hegeliana, quem atribui significação à realidade é a Ideia, o que seria a mesma coisa que dizer que quem atribui determinação à família e à sociedade é o Estado. Portanto, enquanto para Marx a família e a sociedade se fazem a si mesmas, para Hegel elas são produzidas pela Ideia, isto é, não é o seu próprio curso que as une ao Estado, mas é o curso da Ideia que as discerniu de si. Enquanto a Ideia e o Estado são infinitos, a família e a sociedade são a finitude dessa Ideia, da qual provém a sua existência. Desse modo, elas dependem de um elemento exterior que as determine e, por isso, não são autodeterminações. Porém, o Estado, na concepção marxiana, não pode existir sem se assentar em outras bases que não sejam a família (base natural) e a sociedade civil (base artificial), as quais são condições absolutamente necessárias de sua efetividade. Por fim, Marx afirma que o § 262 dos Princípios da Filosofia do Direito resume todo o mistério da filosofia hegeliana do direito e sintetiza esse mistério nas seguintes palavras: “a condição torna-se condicionado, o determinante torna-se determinado, o produtor é posto como o produto de seu produto.” (MARX, 2005, p. 30-31).
1. A constituição do Estado político em Hegel Para Hegel, são as instituições, nas quais os indivíduos realizam, em sua particularidade, o universal, que formam a Constituição do Estado. Esta seria, portanto, a razão realizada no particular. Isso quer dizer que o sujeito inserido nas instituições é a base segura do Estado. Hegel expõe que o desenvolvimento da ideia, em si mesma, possui dois momentos: o da substancialidade subjetiva, que para ele corresponde à disposição política dos indivíduos, e o da substancialidade objetiva, que corresponde ao Estado político e sua Constituição. Isso significa que os indivíduos têm a convicção de que o Estado é a realização universal dos seus fins particulares, mediante a concretização dos seus direitos e deveres na Constituição. O patriotismo é a certeza de que os interesses particulares dos indivíduos se unem aos interesses universais do Estado. “Daí provém, precisamente, que o Estado não seja para mim algo de alheio e que, neste estado de consciência, eu seja livre.” (§§ 267-268) (HEGEL, 2003, p. 230). O Estado é um organismo que se divide em diversos poderes, cada qual com suas respectivas funções, cujo fim é o interesse universal, mas que conserva os interesses particulares como substância do interesse universal. Isso significa que: 1. O interesse universal é a realidade abstrata ou substancialidade dos interesses particulares; 2. A substancialidade é a necessidade do interesse universal, pois ela divide-se nas distinções conceituais de sua atividade, isto é, nos poderes; 3. Tal substancialidade é o Espírito que passou pelo momento da cultura e por isso sabe-se e quer a si mesmo. O organismo estatal é, para Hegel, a Ideia que se encontra objetivada nas diferenças desse organismo. Portanto, os diversos elementos do organismo estatal é o que permite o universal (a Ideia) produzir-se continuamente (§ 269). Como consequência desse processo,
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o Estado surge como a instância universal do Espírito que se sabe e o quer como algo pensado, ele age e atua, por isso, segundo fins sabidos, princípios conhecidos e segundo leis que não são somente em si, mas para a consciência. A partir do § 272, Hegel passa a considerar a Constituição interna para si do Estado, o que significa dizer que a racionalidade da Constituição se dá pela totalidade dos momentos do Estado. Cada poder do Estado é em si uma totalidade, mas que constituem um só todo individual com os outros momentos. Os poderes do Estado formam um organismo substancial e por isso suas partes não podem separar-se mecanicamente como um agregado de átomos, em que cada parte é em si mesma sem nenhuma relação com o todo. Na verdade, cada parte do Estado constitui uma totalidade, e cada uma dessas partes está para as demais de tal forma que a organicidade do todo permanece coesa. Marx reconhece que é um grande progresso tratar o Estado como um organismo, no qual cada poder tem sua função específica e articula-se com os demais. Nessa perspectiva, o Estado não é mais visto como um poder absoluto em que cada parte se subordina totalmente ao soberano. Contudo, Marx observa também que Hegel faz da Ideia o sujeito, e transforma as particularidades que compõem o Estado na realidade dessa Ideia – isto é, os poderes e suas respectivas funções – se convertem em meros momentos do desenvolvimento da Ideia absoluta, seus predicados. Para Marx, ao contrário de Hegel, é a Ideia que deveria “ser desenvolvida a partir dessas distinções reais.” (MARX, 2005, p. 33). Portanto, Hegel parte da Ideia abstrata que se desenvolve no Estado mediante a Constituição política (a diferenciação dos poderes). “Não se trata, portanto, da ideia política, mas da Ideia abstrata no elemento político.” (MARX, 2005, p. 33). Para Marx, a atitude correta de uma análise política seria ter como base a própria ideia específica da Constituição política, ou seja, do próprio ordenamento dessa Constituição. Partir de uma Ideia lógica simplesmente leva a uma tentativa de querer reencontrá-la em cada elemento do Estado, como se existisse uma forma que devesse ser aplicada a um conteúdo e este correspondesse perfeitamente a ela. A consequência disso é que “os sujeitos reais permanecem incompreendidos, visto que não são determinações apreendidas em sua essência específica.” (MARX, 2005, p. 36). Na verdade, Hegel não faz senão dissolver a “constituição política” na abstrata Ideia universal de “organismo”, embora, aparentemente e segundo sua própria opinião, ele tenha desenvolvido o determinado a partir da “Ideia universal”. Ele transformou em um produto, em um predicado da Ideia, o que é sujeito; ele não desenvolveu seu pensamento a partir do objeto, mas desenvolveu o objeto segundo um pensamento previamente concebido na esfera abstrata da lógica. (MARX, 2005, p. 36)
Marx ainda chama a atenção para outra afirmação de Hegel no § 269: “os diversos poderes [são] determinados pela natureza do Conceito.” (HEGEL, 2003, p. 231). Nesse aspecto, assevera Marx, os diversos poderes do Estado não se determinam por sua própria natureza, mas por uma natureza estranha, exterior. E Marx ironiza: “Sua sorte é, antes, predestinada pela ‘natureza do Conceito’, encerrada nos registros sagrados da Santa Casa (da Lógica).” (MARX, 2005, p. 36) O que Marx anseia demonstrar, portanto, é que Hegel cai num misticismo ao antepor a Ideia à própria realidade e fazer dela, bem como do Conceito, abstrações autônomas em relação a qualquer conteúdo concreto. Tal formalismo político hegeliano está presente até mesmo nas expressões utilizadas nos Princípios da Filosofia do Direito: “realidade abstrata”, “substancialidade”, entre outras. E não apenas isso. Hegel transforma essas categorias lógico-
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-metafísicas em sujeito, ou seja, no elemento central da política, do Estado; elas são a verdadeira realidade deste. Desse modo, o Estado, sua finalidade e seus poderes, são mistificados, “visto que são apresentados como ‘modos de existência’ da ‘Substância’ e aparecem como algo separado de sua existência real.” (MARX, 2005, p. 38). Nesse sentido, as determinações do Estado, na perspectiva hegeliana, não passam de determinações lógico-metafísicas. Com isso, o verdadeiro interesse de Hegel não é com a filosofia do direito e com a política, mas com a lógica. Todo o seu trabalho filosófico não foi para efetivar o pensamento nas determinações políticas concretas, mas, ao contrário, foi para elevar essas determinações políticas ao pensamento abstrato. Por isso Marx afirma que “a lógica não serve à demonstração do Estado, mas o Estado serve à demonstração da lógica.” (MARX, 2005, p. 39) E conclui o seu comentário ao § 270 com as seguintes palavras: A Substância deve “dividir-se nas distinções conceituais, que são, do mesmo modo, graças àquela substancialidade, determinações estáveis e reais”. Essa frase, o essencial, pertence à lógica e já se encontra pronta e acabada antes da filosofia do direito. Que essas distinções do Conceito sejam, aqui, distinções “de sua atividade (do Estado)” e que sejam “determinações estáveis”, “poderes” do Estado, tal parêntese pertence à filosofia do direito, à empiria política. Toda a filosofia do direito é, portanto, apenas um parêntese da lógica. O parêntese é, como por si mesmo se compreende, apenas hors-d’oeuvre do desenvolvimento propriamente dito. (MARX, 2005, p. 39)
Marx critica a constituição do Estado político, ou seja, a divisão do Estado em seus momentos e funções. Para ele, tal constituição é um ato lógico-abstrato, pois seus momentos são determinados pela natureza do Conceito e não por sua natureza específica. A razão da constituição estatal é, portanto, a lógica abstrata, e não o conceito do Estado. “Em lugar do conceito da constituição, obtemos a constituição do Conceito. O pensamento não se orienta pela natureza do Estado, mas sim o Estado por um pensamento pronto.” (MARX, 2005, p. 40). Isso quer dizer que a problemática política para Hegel não passa de um problema lógico53 (ROSENFIELD, 1983, p. 234).
2. Estado e poder soberano Para Hegel, o poder soberano é o poder do príncipe ou monarca, que engloba em si os demais poderes ou, nas palavras de Hegel, os três elementos da totalidade, a saber: a universalidade da Constituição e das leis (poder legislativo), a integração do universal com o particular ou o momento da deliberação (poder do governo) e o momento da decisão suprema (poder do Monarca), quer dizer, o seu próprio poder soberano, sua autodeterminação (§ 275). A característica fundamental do Estado é a unidade substancial dos seus momentos. Nessa unidade substancial, os diferentes poderes são dissolvidos e, ao mesmo tempo, conservados, conservação esta que se dá precisamente pela determinação dos diferentes poderes no todo, ou, nas palavras de Hegel, os diferentes poderes “só se conservam quando a sua legitimidade é, não independente, mas determinada unicamente pela ideia do todo.” (HEGEL, 2003, p. 252). Hegel reforça, no § 276, a ideia da unidade orgânica entre os poderes que se efetiva no príncipe. Este carrega em si a universalidade e todas as suas decisões originam-se nessa uni53. É lícito lembrar, por exemplo, que a efetivação do Estado, considerado na totalidade do sistema de Hegel, não é outra coisa senão a realização concreta da estrutura formal do longo percurso do Espírito em direção à sua racionalidade absoluta.
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versalidade. Portanto, na individualidade do príncipe, encontra-se a universalidade do Estado. Do mesmo modo, as funções dos diferentes poderes são momentos essenciais do Estado. Embora essas funções sejam exercidas por indivíduos, tais funções só se ligam a esses indivíduos em virtude de suas qualidades universais e não à sua personalidade imediata. Isso porque as funções do Estado não podem ser caracterizadas como propriedade privada (§ 277), mas como atividades que visam à totalidade social. A soberania do Estado é, para Hegel, a sua própria unidade ou, dito de outro modo, as funções e atividades do Estado, bem como a vontade particular dos indivíduos, não constituem a soberania do Estado. Esta vem a se constituir na organicidade dessas partes. O contrário disso, ou seja, quando a vontade particular vale como lei, constitui o despotismo. O monarca é o indivíduo que concretiza em si o poder de decisão do Estado. Este não se funda em uma individualidade geral, mas em um indivíduo, o qual traz em si a universalidade do Estado, e todas as suas decisões efetivam essa universalidade. No Monarca está a existência de uma vontade comum. Contudo, ele não é um indivíduo posto arbitrariamente a frente do Estado, mas resulta do próprio desenvolvimento imanente deste (LEFEBVRE, 1999, p. 82). O monarca é o que Hegel chama de “subjetividade certa de si e como determinação abstrata sem motivo”, (HEGEL, 2003, p. 254) e nele o Estado é uno. O conteúdo real da autodeterminação do indivíduo é a vontade arbitrária, isolada da universalidade da consciência social. Tal ideia foi exposta por Hegel na própria Filosofia do Direito. Portanto, um indivíduo, no caso o monarca, não pode ser considerado uma referência de autodeterminação, de vontade universal. “Somente o universal pode ser racional, e a vontade do monarca, por definição, nega a universalidade.” (AVINERI, 1979, p. 15). Avineri ainda afirma: Marx viu, escondido atrás da fórmula de Hegel e da elevação da vontade do monarca em consciência geral, a determinada situação histórica a qual ele sentiu que deveria ser encarada como realmente era, não como um incidente de um padrão geral. Deve-se realmente dizer: ‘No contexto histórico do século XIX, a vontade do monarca finalmente decide.’ Em vez da declaração analítica, Hegel hipostasiou o presente: ‘A decisão final da vontade é o monarca.’ O sujeito, salienta Marx, tornou-se um predicado, o predicado um sujeito, e um fato histórico tornou-se uma premissa metafísica de validade universal. Ao atribuir à monarquia o princípio de governo, personifica os atributos de soberania, Hegel excluiu da soberania e da consciência política todos os outros membros do corpo político. Soberania, assim, torna-se uma oca coroa de arbitrariedade indeterminada, personificada na vontade do monarca. Toda raison d’état, toda consciência política, é feita para depender da vontade arbitrária de um indivíduo empírico. Razão torna-se uma abstração de um arbitrário ‘eu sou a vontade’: L’état c’est moi. (1979, p. 15)
Marx chama a atenção para dois elementos dessa concepção de poder soberano em Hegel: 1. “Hegel fala apenas da ideia ‘dos poderes e funções particulares.’” (MARX, 2005, p. 41). Ou seja, Hegel não considera os poderes do modo como existem, mas como devem ser para legitimarem-se, para serem determinados na ideia do todo; 2. Do mesmo modo que considera abstratamente os poderes, e consequentemente as suas funções e atividades, Hegel faz do indivíduo que exerce as funções um ser abstrato; isto é, “as funções e atividades do Estado estão vinculadas aos indivíduos [...], mas não ao indivíduo como indivíduo físico e sim ao indivíduo do Estado, à sua qualidade estatal.” (MARX, 2005, p. 42). Tal qualidade é uma abstração especulativa, um disparate, pois, ao considerar abstratamente as funções e atividades estatais, Hegel chega a um indivíduo tão abstrato quanto às funções que exerce. Quando afirma, no § 277, que essas funções e atividades não se vinculam à personalidade imediata do indivíduo, Hegel pensa esse indivíduo como uma imediaticidade pura, como um mero ser natural. Por isso Marx adverte: Hegel
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esquece que a essência da ‘personalidade particular’ não é a sua barba, o seu sangue, o seu físico abstrato, mas sim a sua qualidade social, e que as funções estatais etc. são apenas modos de existência e de atividades das qualidades sociais do homem. (MARX, 2005, p. 42)
Gostaria de indicar para o que Marx denomina de qualidade social do homem. Foi visto no capítulo 1 desse trabalho, que, para Marx, o homem é um ser objetivo, corpóreo, mas não apenas isso, ele também é uma objetividade genérica, ou seja, ele é um ser inserido num mundo social de relações. É esse homem que Marx considera, é essa determinação ontológica o caráter fundamental da concepção de homem em Marx. Ao pensar a personalidade imediata do indivíduo, Hegel parece estar pensando o homem apenas como objetividade, e não como objetividade genérica, como ser universal genérico, ser social concreto. Mais adiante veremos como essa determinação social do homem aparece de modo formal-abstrato na Constituição política do Estado moderno. Contudo, esse formalismo é evidente na filosofia política hegeliana. Hegel subjetiva o Estado de uma maneira mística. Ele autonomiza os predicados “subjetividade” e “personalidade” dos seus respectivos sujeitos. Para Marx, a subjetividade encontra a sua verdade no sujeito, a personalidade na pessoa. Ora, diz Marx: “A subjetividade é uma determinação do sujeito, a personalidade uma determinação da pessoa. Em vez de concebê-las como predicados de seus sujeitos, Hegel autonomiza os predicados e logo os transforma, de forma mística, em sujeitos.” (MARX, 2005, p. 44). Isso porque Hegel não parte dos sujeitos reais como a base do Estado, mas de sujeitos abstratos. Em Marx, o sujeito é anterior à subjetividade e a pessoa é anterior à personalidade. Sujeito e pessoa são determinantes e suas existências determinam a existência dos predicados. Jamais os predicados (subjetividade e personalidade) podem adquirir autonomia separados de uma autonomia real, de um sujeito concreto; “portanto, o sujeito é a existência da subjetividade etc.” (MARX, 2005, p. 44). Nesse aspecto, Marx distancia-se de Hegel, o qual não considera o sujeito real, a pessoa concreta, como a verdadeira determinação da Ideia. Foi pensando nestes termos que Hegel chegou à soberania. E como não podia ser diferente, ela acabou por surgir como a essência autônoma do Estado, ou seja, uma essência separada do espírito dos indivíduos objetivado no Estado. Quando o sujeito real é levado em consideração na filosofia política hegeliana, é apenas como uma auto-encarnação da soberania, como se esta pudesse existir por si mesma e posteriormente ser assumida por um sujeito concreto, que, para Hegel, é o monarca. Desse modo, a filosofia política hegeliana apresenta “o Monarca como o homem- -Deus real, como a encarnação real da Ideia.” (MARX, 2005, p. 44). O monarca é a alma do Estado, porque ele é a vontade individual, a autodeterminação, o arbítrio, ou melhor, ele é o conteúdo concreto da vontade (nota § 279). Porém, Marx observa que, ao tomar o monarca como a soberania personificada, como a consciência corpóreo do Estado, Hegel exclui todos os outros indivíduos dessa soberania, ou pelo menos os põe como subalternos à vontade arbitrária de um indivíduo cujo conteúdo é a abstração do “Eu quero” (nota § 279) (MARX, 2005, p. 44). E conclui: Assim, porque a subjetividade é real apenas como sujeito, e o sujeito apenas como Uno, a personalidade do Estado só é real como uma pessoa. Bela conclusão. Hegel poderia concluir, do mesmo modo: pelo fato de o homem singular ser um Uno, o gênero humano é apenas Um único homem. (MARX, 2005, p. 47)
Marx contrapõe-se a Hegel, neste aspecto, porque considera a pessoa, o indivíduo, o sujeito, como uma existência genérica, como as pessoas, os indivíduos, os sujeitos, ou seja, o homem só pode existir como ser social. Hegel parece ignorar esse fato. O Estado deveria ser a autodeterminação dos indivíduos e não uma autodeterminação individual, particular.
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Quanto à soberania popular, Hegel afirma: “Poder-se-á falar de soberania de um povo para mostrar que um povo é independente em relação ao exterior e constitui um Estado nacional.” (HEGEL, 2005, p. 257). Hegel contradiz aqui o que expôs anteriormente. Se o monarca é a soberania real do Estado, a soberania personificada, então não faz sentido falar de uma soberania popular, haja vista o monarca poder valer como Estado independente em relação ao exterior sem necessitar da participação do povo. Porém, se sua soberania é vista como representação da unidade do povo, “então ele é apenas representante”, quer dizer, “a soberania popular não existe por meio dele, mas ele por meio dela.” (MARX, 2005, p. 48). Então, quem é soberano, o monarca ou o povo? Hegel deixa suspensa essa questão. E Marx conclui a respeito dessa contradição no pensamento político de Hegel: Certamente: se a soberania existe no monarca, é uma estupidez falar em uma soberania oposta existente no povo [como Hegel fala na nota ao § 279], pois é próprio do conceito de soberania que ela não possa ter uma existência dupla, e muito menos oposta, mas:
1. A questão é, precisamente, a seguinte: não é uma ilusão a soberania absorvida no monarca? Soberania do monarca ou do povo, eis a question.
2. Pode-se falar, também, de uma soberania do povo em oposição à soberania existente no
monarca. Mas, então, não se trata de uma única e mesma soberania, nascida de ambos os lados, mas de dois conceitos absolutamente contrapostos de soberania, dos quais um é tal que só pode chegar à existência em um monarca, e o outro tal que só o pode em um povo. Do mesmo modo em que se pergunta: é Deus o soberano, ou é o homem o soberano? Uma das duas soberanias é uma falsidade, ainda que uma falsidade existente. (MARX, 2005, p. 48-49)
3. A legitimidade do Estado em Hegel No § 280 dos Princípios da Filosofia do Direito, Hegel defende a ideia da monarquia hereditária. Ele afirma que, na ideia da individualidade suprema da vontade do Estado, está contida a determinação da naturalidade. Isso significa dizer que o monarca adquire seu poder, a legitimação do seu status, no nascimento. O Estado se legitima, portanto, no direito do nascimento e no direito hereditário. Desse modo, segundo Hegel, evitar-se-ia as divisões, no seio do Estado, no momento da atribuição da coroa, divisão esta que enfraqueceria o próprio Estado. Assim, Hegel se mostra contra a monarquia eletiva, pois ela estaria à mercê da vontade particular e tornaria o Estado uma propriedade privada. Hegel, porém, sucede em contradição. Enquanto defensor da cidadania, ele não pode privilegiar um indivíduo em detrimento dos demais. Ora, a cidadania funda-se na liberdade e igualdade de todos os cidadãos, estes são os princípios fundamentais do direito moderno. Ao privilegiar o monarca, Hegel rompe com esses princípios. Conforme Denis Rosenfield, “esta passagem do movimento de figuração individual da cidadania a uma individualidade determinada de um modo natural é, ao menos, logicamente duvidosa.” (1983, p. 240). Para Marx, Hegel não afirma outra coisa senão o óbvio. Todo indivíduo é um ser real, corpóreo. Desse modo, Hegel tentou descer da pura Ideia ao mundo real dos indivíduos. No entanto, se, por um lado, a razão determina o lugar do monarca no Estado, por outro, com esse ato de descer, Hegel põe tal determinação na mera physis: “O nascimento determinou a qualidade do monarca, assim como ele determina a qualidade do gado.” (MARX, 2005, p. 53). O que Marx pretende explicitar é que Hegel demonstra o irracional como racional. É um ato positivo de Hegel querer descer da pura Ideia ao homem real; todavia, esse ato é uma mistificação, pois o sujeito no qual Hegel encarna existencialmente o monarca não passa da autodeterminação da vontade que se quer tornar efetiva, é a abstração da vontade que se
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transforma numa existência natural, é a Ideia pura, que figura em um indivíduo, o qual aparece sempre como um apêndice do Espírito. Desse modo, Marx pretende ter demonstrado a total ausência de crítica na Filosofia do Direito de Hegel, pois este faz uma confusão absoluta entre o real e o ideal, entre o concreto e o abstrato. Hegel não considera os homens reais como indivíduos políticos, como seres que participam da politicidade do Estado, mas como individualidades puras subsumidas à vontade suprema do monarca. A pessoa, a família e a sociedade são concebidas apenas abstratamente. É por isso que, para ele, também não é a pessoa real que se converte em Estado, mas é o Estado apenas que deve se converter em pessoa real. Em vez de o Estado ser produzido como a mais elevada realidade da pessoa, a mais elevada realidade social do homem, ocorre que um único homem empírico, uma pessoa empírica, é produzido como a mais alta realidade do Estado. Esta inversão do subjetivo no objetivo e do objetivo no subjetivo (que decorre do fato de Hegel querer escrever a biografia da Substância abstrata, da Ideia; que, portanto, a atividade humana etc. tenha que aparecer como atividade e resultado de uma outra coisa; que Hegel queira deixar agir como uma singularidade imaginária o ser do homem para si, em lugar de deixá-lo agir na sua existência real, humana) tem necessariamente como resultado que uma existência empírica é tomada de maneira acrítica como a verdade real da Ideia; pois não se trata de trazer a existência empírica à sua verdade mas, antes, de trazer a verdade a uma existência empírica, de tal modo que aquilo que se encontra mais próximo é desenvolvido como um momento real da ideia. (MARX, 2005, p. 58-59)
A monarquia, o Estado derivado imediatamente do nascimento do monarca, nega a determinação social do homem. A família, a sociedade civil e o Estado, enquanto expressões do caráter social do homem, enquanto modos sociais de existência do indivíduo, aparecem na filosofia política hegeliana como determinações da Ideia. O homem, em vez de aparecer como “o ser de todos estes seres”, a Substância, a Ideia, é quem assume esse papel. Se o monarca é a pessoa que tem o Estado em-si, então a essência do Estado é a pessoa privada. Na verdade, o monarca é a única pessoa privada na qual é realizada a relação da pessoa privada com o Estado.
4. Marx e a política como autodeterminação dos homens Para Hegel, como vimos acima, uma Monarquia Constitucional eliminaria o fosso que existe entre Estado e sociedade civil, mediante a representação política, a qual deve legitimar os interesses privados no interior da estrutura política geral. Com esse sistema, o Estado representaria a população. Para Marx, contudo, a representação política, no caso da monarquia, é auto contraditória, pois os delegados da sociedade civil reunidos em uma propriedade representativa apreciam seu status apenas porque são membros de uma organização política, não porque eles legitimam os interesses particulares da sociedade civil. Parece que o Stände representa a população, mas como os delegados não são limitados por um mandato imperativo e não são subordinados aos seus eleitores de maneira alguma, eles são totalmente alienados daqueles a quem eles são os supostos representantes. Os interesses particulares dos eleitores e o status político do Ständer são diferentes e distintos. Inversamente, os delegados são eleitos em ordem para servir o interesse geral da sociedade, mas na prática eles tendem a ser vozes desavergonhadas para seus interesses particulares, e a mediação entre o particular e o geral nunca ocorre realmente. (AVINERI, 1979, p. 18)
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Em Marx, ao contrário, a monarquia encontra sua verdade na democracia54, ou seja, na participação de todos, e não a democracia encontra a sua verdade na monarquia, onde apenas um indivíduo governa em nome de todos. Ao identificar essas duas formas de governo, Hegel põe a monarquia contra si mesma, pois nela não há um princípio participativo do povo, quer dizer, o povo não exerce o governo, mas o monarca; na monarquia, uma parte (o monarca) determina o caráter do todo (o povo). Ademais, na monarquia, o povo é subsumido na Constituição, enquanto na democracia, tal Constituição nada mais é do que a própria expressão do povo: “Na monarquia temos o povo da constituição; na democracia, a constituição do povo.” (MARX, 2005, p. 50). Na democracia, a Constituição adquire seu fundamento real, o homem, o povo. Ela não é mais um em-si, mas obra da coletividade social, não é elaborada de cima para baixo, mas de baixo para cima. Portanto, o que diferencia monarquia e democracia é que na primeira a Constituição por si mesma forma o Estado, enquanto na segunda ela é apenas um momento da existência do povo e não a sua existência enquanto tal. O equívoco de Hegel foi partir do Estado e, em seguida, fazer do homem o Estado subjetivado. Para Marx, o ponto de partida é oposto a esse: partir do homem real e fazer do Estado nada mais do que o homem objetivado. O Estado é produto dos homens, não estes são produto daquele. Do mesmo modo que a religião não cria o homem, mas o homem cria a religião, assim também não é a constituição que cria o povo, mas o povo a constituição. [...] O homem não existe em razão da lei, mas a lei existe em razão do homem, é a existência humana, enquanto nas outras formas de Estado o homem é a existência legal. Tal é a diferença fundamental da democracia. (MARX, 2005, p. 50)
Por isso Marx afirma que, na democracia, o princípio formal, as leis, a própria Constituição em si é, ao mesmo tempo, o princípio material, ou seja, a própria existência humana, o próprio homem real, donde deriva essa Constituição. Nessa perspectiva, a democracia é autêntica unidade entre o universal e o particular, e não o monarca como pensava Hegel. Podemos observar que, numa Constituição monárquica ou republicana, o homem tem uma dupla existência. Ele é homem político, universal e, ao mesmo tempo, vive particularmente como homem não político, como indivíduo privado. Desse modo, as esferas da sua vida privada (propriedade, contrato, matrimônio etc.) encontram-se contraposta ao Estado. Por isso Marx critica Hegel, porque este pensa que, ao desenvolver esses elementos da vida privada do homem, que seriam formas abstratas do Estado, estaria desenvolvendo a própria ideia de Estado. No entanto, ao pensar o Estado como uma monarquia constitucional, Hegel não percebe que nessa forma de governo Estado e existência privada dos homens se contrapõem. A esfera privada aí não passa de um conteúdo que o Estado apenas deve organizar. Já na 54. Sempre que usa o termo Democracia, Marx estar a falar de uma forma específica de Democracia, que muitos marxistas denominam de Democracia radical. Marx defende a efetivação do princípio político de que o poder pertence ao povo e deve ser, de fato, por este exercido. Já na Crítica da Filosofia do Direito de Hegel Marx tem a concepção, embora de modo muito genérico, da auto-organização política dos homens no seio da sociedade. Os marxistas usam para isso o termo “radical” porque é a forma política que toma o homem pela raiz e, como bem expressou Marx na sua Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, “a raiz do homem é o próprio homem”; radical também no sentido de que o poder deve pertencer aos homens em sociedade, fazendo valer o sentido etimológico do termo democracia de que é o governo do, pelo e para o povo. Para Hegel, o único momento de participação democrática do povo é no momento da constituição do Estado. Uma vez este constituído, a atividade política passa a ser uma atividade alheia aos homens em geral e se configura como privilégio de um indivíduo ou grupo particular. Por outro lado, podemos afirmar que em Marx há a defesa de uma forma de atividade política em que cabe a todos os homens o direito de participar ativamente da vida política e sempre poder se dar “uma nova constituição” em todo tempo e lugar. Ora, isto nada mais é do que a defesa de uma forma de atividade política que podemos denominar de democrática. Por último, quero ressaltar que nesse momento de sua obra Marx está apenas preocupado em criticar a forma de governo proposta por Hegel e, apenas em consequência disso podemos vislumbrar uma idéia positiva de política em seu pensamento. Contudo, somente nos textos posteriores é que surgirá propriamente uma idéia positiva de política em Marx.
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democracia, a esfera da vida privada e o Estado não se contradizem, mas encontram-se lado a lado, embora se diferenciem, um enquanto particular e o outro enquanto universal. Contudo, mesmo nessa diferenciação, o Estado surge como uma forma de existência particular do povo. Com isso, Marx pretende apontar que o Estado não se separa dos indivíduos, como ocorre na monarquia, onde ele surge apenas como universal que domina e determina todo o particular. “Na democracia o Estado como particular, é apenas particular, como universal é o universal real, ou seja, não é uma determinidade em contraste com os outros conteúdos.” (MARX, 2005, p. 51). Com isso, Marx chega à ideia da verdadeira democracia. Esta poria fim ao Estado compreendido meramente nos termos políticos, isto é, como entidade que determina o todo, onde a Constituição se autodetermina em detrimento da existência real dos homens, sem penetrar nessa mesma existência. Já na verdadeira democracia, o Estado, a lei, a Constituição, não passam de uma autodeterminação e um conteúdo do povo, quer dizer, penetra na existência real deste e reflete tal existência. Portanto, o Estado abstrato, o Estado que cinde o homem, na verdadeira democracia, perde sua preponderância e dá lugar ao povo, ao homem social. A essência genérica efetiva-se, ou seja, é apropriada pelos indivíduos reais. Na modernidade, a relação entre o Estado político e a existência real dos homens é apenas exterior: Tem-se, aqui, apenas uma identidade exterior, uma determinação recíproca. Dentre os diversos momentos da vida do povo, foi o Estado político, a constituição, o mais difícil a ser engendrado. A constituição se desenvolveu como a razão universal contraposta às outras esferas, como algo além delas. A tarefa histórica consistiu, assim, em sua reivindicação, mas as esferas particulares não têm a consciência de que seu ser privado coincide com o ser transcendente da constituição ou do Estado político e de que a existência transcendente do estado não é outra coisa senão a afirmação de sua própria alienação. (MARX, 2005, p. 51)
Podemos afirmar, nesse sentido, que a Constituição política, o Estado, foi reduzido a uma condição religiosa, ou seja, foi posto fora da vida dos indivíduos, no céu da universalidade. O seu conteúdo não passou de um conteúdo genérico, formal, visto que, “a vida política, em sentido moderno, é o escolasticismo da vida do povo.” (MARX, 2005, p. 52). Hegel eleva ao máximo esse escolasticismo, essa abstração formalista do Estado com a sua concepção de monarquia constitucional. Do mesmo modo, os Estados modernos (a abstração do Estado político é um produto moderno), com sua constituição republicana, negaram o formalismo da monarquia, mas dentro da esfera desse mesmo formalismo. A ruptura realizada entre Estado e sociedade civil ignorou o contexto social das relações humanas e racionalizou a organização social existente. Para Marx, o indivíduo não pode ser isolado do seu contexto social. O seu ideal aproxima-se demasiado, com ressalvas, da concepção grega de polis, na qual a estrutura política não se diferencia da realidade dos indivíduos, da sociedade material. A política deve penetrar todas as esferas da vida privada e eliminar qualquer distinção entre sociedade e Estado, entre o público e o privado, entre a esfera da individualidade e a comunidade. Portanto, a vida pública torna-se o verdadeiro conteúdo da vida privada.
Referências Bibliográficas AVINERI, Shlomo. The social and political thought of Karl Marx. New York: Cambridge University Press, 1979.
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FURTADO, José Luiz. Notas sobre a origem hegeliana da crítica do jovem Marx ao estado moderno. In: Educação e Filosofia, Belo Horizonte, Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Uberlândia, v. 16, n. 31, jan./jun., 2002. HEGEL, G. W. F. Princípios da filosofia do direito. 4ª ed. Tradução de Orlando Vitorino. Lisboa: Guimarães Editores, 1990. __________. Princípios da filosofia do direito. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. LEFEBVRE, Jean-Pierre; MACHEREY, Pierre. Hegel e a sociedade. São Paulo: Discurso Editorial, 1999. MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel. Tradução de Rubens Enderle e Leonardo de Deus. São Paulo: Boitempo, 2005. _______. Early writings. Translated by Rodney Livingstone and Gregor Benton. London: Penguin Classics, 1992. _______. Marx Engels collected works (MECW) - Vol. 3. Soviet Union: Progress Publishers; London: Lawrence & Wishart; New York: International Publishers. 1975. p. 133 – 145. Disponível em http://marxists.org/archive/marx/works.htm. Acesso 2/06/2008. ROSENFIELD, Denis. Política e liberdade em Hegel. São Paulo: Brasiliense, 1983. SCHÜTZ, Rosalvo. Religião e capitalismo: uma reflexão a partir de Feuerbach e Marx. Porto Alegre: EDIPURS, 2001.
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Cap. 6
O Galo Da Madrugada contra a Coruja de Minerva. Uma Recepção Criativa de G. W. Hegel (1770-1831) desde a América Latina Alberto Vivar Flores
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O Galo Da Madrugada contra a a Coruja de Minerva. Uma Recepção Criativa de G. W. Hegel (1770-1831) desde a América Latina Alberto Vivar Flores55
1. A dialética necessária da realidade histórica A aventura inédita da vida humana que constitui a história do Continente Americano, por causa das ocorrências sofridas no seu suceder histórico, não pode ser apenas entendida como um simples processo espaço/temporal evolutivo, linear, sincrónico; senão também, e princi palmente, de caráter essencialmente dialético – Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (18201895) “Viam, na dialética, a ciência das leis gerais da transformação, não apenas na sociedade e no pensamento humano, mas também no mundo exterior que é refletido pela mente humana” (HALDANE, 1979, p. 7). Sobretudo, se levarmos em consideração a interrupção violenta, arbitrária e genocida que, a partir de 12 de outubro de 1492, padeceram as culturas latino-americanas. A raiz histórico-cultural original do Continente Americano, até aquele dia ainda livre e soberanamente criativa: Unos vivían aislados y sencillos, sin vestidos y sin necesidades, como pueblos acabados de nacer; […] Otros eran pueblos de más edad y vivían en tribus, en aldeas de cañas o de adobes, comiendo lo que cazaban y pescaban, y peleando con sus vecinos. Otros eran ya pueblos hechos, con ciudades de ciento cuarenta mil casas, y palacios adornados de pinturas de oro, y gran comercio en las calles y en las plazas (MARTÍ, 1992, p. 114),
é descoberta e/ou encontrada pela Europa e, a partir desse momento, submetida selvagemente ao modelo imposto por uma cultura eurocêntrica – “[…] todo lo índio lo quemaron los conquistadores españoles y lo echaron abajo” (MARTÍ, 1992, p. 104). Desde aquele azarado dia, pois, se inaugura um processo histórico dialético de profundas contradições, de afirmação/ negação, de lutas de contrários, de saltos qualitativos, de teses/antíteses, etc.; certamente, de difícil inteligibilidade histórica; mas cuja síntese imediata e explosiva, nos atrevemos a afirmar, é o rosto de identidade configurado através de uma conflitiva história na formação social dos povos americanos atuais. Deste modo nos pareça natural, útil e necessário, ao tentar interpretar essa realidade histórica a partir da filosofia, fazer uso do método dialético, ao menos, no que diz respeito ao movimento estrutural dos seus momentos dinâmicos e constitutivos, isto é, Afirmação/ Tese, Negação/Antítese e Negação da Negação/Síntese; mas, desde logo, sublinhando,
55. Professor Doutor em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; Professor Adjunto de Antropologia Filosófica, Teoria do Conhecimento e História da América na Universidade Federal de Alagoas (UFAL); é membro efetivo do Núcleo de Estudos e Atividades de Filosofia Latino-Americana da Universidade Federal da Paraíba (NEAFLA/UFPB).
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privilegiadamente, o salto qualitativo sintético que aparece no momento de superação. Tal e como especifica Ignacio Ellacuría (1930-1989): Lo que ocurre es que esa totalidad ha ido haciéndose de modo que hay un incremento cualitativo de realidad, pero de tal forma que la realidad superior, el ‘más’ de realidad, no se da separada de todos los momentos anteriores del proceso de realidad, sino que, al contrario, se da un ‘más’ dinámico de realidad desde, en y por la realidad inferior, de modo que ésta se hace presente de muchos modos y siempre necesariamente en la realidad superior. A este último estadio de la realidad, en el cual se hacen presentes todos los demás, es al que llamamos realidad histórica: en él, la realidad es más realidad, porque se halla toda la realidad anterior, pero en esa modalidad que venimos llamando histórica. Es la realidad entera, asumida en el reino social de la libertad. (1991, p. 39)
Isso quer dizer que na aventura humana latino-americana (100.000 a.C. – 2.000 d. C.), se podem identificar, dialeticamente falando, pelo menos dois momentos sintéticos originais: primeiro, o que se produz graças ao desenvolvimento desmensurado de criação cultural única dos povos do Continente Americano − o qual é interrompido drasticamente em 12 de outubro de 1492; e, segundo, o que produz o perverso e trágico/dramático processo civilizatório colonial europeu, o qual nos transformou de tal maneira que “No sabiendo quiénes éramos cuando demorábamos inocentes em ellos, ignorantes de nosotros, menos sabemos quiénes seremos” (RIBEIRO. 1990, p. 30). Daí que seja legitimamente possível interpretar dialeticamente a realidade histórica latino-americana, ou seja, construir um discurso dinâmico através do movimento inerente representado pelos momentos reais da Afirmação/Tese, Negação/Antítese e Negação da Negação/Síntese; pois, “O corpo político, tanto quanto o corpo humano, começa a morrer desde que nasce e traz em si mesmo as causas de sua destruição” (ROUSSEAU, 1996, p. 143).
2. Mas, o que é isso que se chama de “Filosofia”? Uma vez que nosso trabalho é de caráter filosófico, de entrada, consideramos fundamental, como lição preliminar – antes de começar a trabalhar com o método dialético na nossa exposição −, dizer algumas coisas sobre nosso entendimento de Filosofia, tanto do mero nível do filosofar como ao nível do conteúdo produzido por essa atividade. Assim sendo, ainda que tenhamos consciência de que, a respeito, já se disse faz algum tempo, entre muitas coisas, as seguintes: a. Que “[…] el hombre es un ser pensante; que se diferencia del animal por el pensamiento. El hombre piensa, aun cuando no tenga conciencia de ello” (HEGEL, 1986, p. 53); b. Que “[...] si es verdad, como lo es ciertamente, que el hombre se distingue de los animales por el pensamiento, lo humano es, por ese sólo hecho, lo que se realiza por medio del pensamiento” (HEGEL, 1990, p. 1); c. Que “todo homem, fora de sua profissão, desenvolve uma atividade intelectual qualquer, ou seja, é um filósofo” (GRAMSCI, 1991, p. 7); d. Que o exercício de filosofar, pode definir-se “como a consideração pensante dos objetos” (HEGEL, 1995, p. 40); assim, define, por sua vez, a Filosofía como “la toma de conciencia de nuestra realidad” (ZEA, 1975, p. 164); e. Que “A filosofia, mais rigorosamente, é a disciplina que consiste em criar conceitos” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 11);
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f. E, enfim, que isso foi assim desde o tempo dos primeiros que filosofaram – como Tales de Mileto (624 a. C. – 546 a. C.) ou Nezahualcóyotl (1402-1472) − até os que hoje filosofam − como Jürgen Habermas (1929-) ou Enrique Domingo Dussel (1934-); no que diz relação à História das Ideias que constituem o conteúdo do que é-se dado de chamar História da Filosofia na América latina, investigada e estudada de um certo modo, não aconteceu assim. O que essa História registra – se assim pretende, desde que G. W. F. Hegel (1770-1831), criticamente, afirmou: “Lo que hasta ahora acontece allí no es más que el eco del Viejo Mundo y el reflejo de ajena vida” (1986, p. 177) −, é uma constelação de constatações críticas nesse sentido e, ao mesmo tempo, de maneira dialética, uma série interminável de reações e denúncias irritadas enquanto se descobre que o que se passa por ser “nuestra” História da Filosofia; não era mais que uma parodia […] viciada pela alienação própria de toda cultura colonial: era um pensamento que estudava e pensaba o pensar europeu e que dessa forma desembocava na realidade européia que aquele pensamento pensaba. O pensamento latino-americano era assim inautêntico por duas razões: porque pretendía pensar, e como o pensar é pensar a realidade, o pensar latino-americano não passava de estudo e quase sempre mera repetição superficial; mas, e é o mais grave, ao pensar o pensamento europeu ignorava-se a realidade latino-americana e aqui se fazia passar por realidade a realidade metropolitana, imperial, moderna, dominadora” (DUSSEL, s/d, p. 7);
imediatamente, em flagrante contradição: não somente com o que se entende propriamente por filosofar – entendido como o árduo esforço de “desvelar la forma fundamental de la realidad” (CASSIRER, 1997, p. 11) −, senão com a própria História do Pensamento, pois “o pensamento é a liberdade com relação ao que se faz, o movimento pelo qual se toma distância desse fazer, constituindo-o como objeto e refletindo sobre ele como problema” (FOUCAULT apud RABINOW, 1999, p. 24). Assim, pois, a recepção que registraremos a continuação de G. W. F. Hegel, embora o sabemos admirado e estudado em algumas de suas obras por muitos “hegelianos” latino-americanos, naturalmente, aqui, será feita apenas a partir desse detalhe que citamos de sua obra póstuma (1837) – valorizada através das palavras-testemunho de Francisco Larroyo, quando diz: “Las ‘Lecciones sobre la Filosofía de la Historia’, libro encaminado a demostrar la plena y total racionalidad de la Historia, recapitula, por decirlo así, todo el pensamiento de Hegel” (LARROYO apud HEGEL. 1990, p. XLII) −, e que desencadeou, de entrada, tanto uma crítica radical ao nosso habitual modo de fazer filosofia na América Latina como, também, imediatamente, provocou, exigiu e continua exigindo uma mudança profunda no nosso modo de filosofar.
3. Afirmação: a irrecusável originalidade da América Latina A histórica denuncia de Hegel sobre nossa atitude colonial, imitativa, adaptativa, não autentica, de transplante ou de mera justaposição da filosofia europeia ao solo americano – neste caso, latino-americano −, nos leva a procurar a raiz desde o qual, tal denuncia, adquire seu significado, sentido e prometeico desafio filosófico. Desde o preciso rigor do exercício de filosofar, pensamos que é porque na América Latina não se assumiu, como deveria ter-se assumido, a “La realidad latinoamericana como problema para el pensar filosófico” (PICOTTI DE CÁMARA apud MAYZ VALLENILLA, 1979, p. 189); e nossa
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filosofia, se quer e pretende ser Filosofia stricto sensu, só pode ser “[…] fruto del encuentro con lo único que nos hace originales, la realidad” (ROIG, 2002, p. 110). Essa realidade que não é nem a de uma Nova Espanha nem de uma Nova Lusitânia, nem uma mera extensão da Europa; pois, antropogeograficamente, não restam dúvidas de que “América es otra cosa” (cf. ARCINIEGAS, 1987, p. 416-426). Desta forma o reconhece, desde o próprio amanhecer das culturas indígenas americanas, por exemplo, Roger Garaudy, ao afirmar, em pleno século XX: Não nos é possível, com efeito, afirmar que houve uma totalidade histórica, mesmo em projeto, desde que houve uma História. Para não citar senão um exemplo, ‘as sociedades pré-colombianas’ da América do Sul desenvolveram-se sem contato algum, até o século XVI, com as sociedades do mundo antigo; elas constituíam, por sua vez, totalidades. Outras sociedades constituíam igualmente totalidades, mas a exigência de ‘uma totalidade das totalidades’ não surgiu senão num certo momento da História Humana; foi preciso para isso que certas condições técnicas se verificassem, e elas o foram somente no século XVI. (1985, p. 85)
O mesmo fizeram no século XVI – embora “As viagens de Colombo não foram, nem poderiam ser, ‘viagens à América’” (O’GORMAN, 1992, p. 99) −, os primeiros europeus que tiveram a felicidade de vê-la antes de ser, propriamente, conquistada, colonizada e contaminada pelo processo civilizatório do euro-centrismo imperial. Assim registrou, entre tantos outros, Francisco Antonio Pigafetta (1491-1534); aqui citado segundo a herança histórico-cultural recolhida pelo escritor colombiano Gabriel García Márquez: Antonio Pigafetta, um navegante florentino que acompanhou Magalhães na primeira viagem ao redor do mundo, escreveu em sua passagem por nossa América Meridional uma crônica rigorosa que, sem embargo, parece uma aventura da imaginação. Contou que havia visto porcos com o umbigo nas costas, e uns pássaros sem pés, cujas fêmeas chocavam seus ovos nas costas dos machos, e outros, como alcatrazes sem língua, cujos bicos pareciam uma colher. Contou que havia visto um animal raro com cabeça e orelhas de mula, corpo de camelo, patas de veado e relincho de cavalo. Contou que, ao primeiro nativo que encontraram na Patagônia, puseram-lhe frente a um espelho e que aquele gigante surpreendido perdeu a razão pelo pavor de ver refletida sua própria imagem. (1994, p. 469)
Dentro do sitz im leben o lebenswelt de longa duração (séculos XVI, XVII e XVIII) desencadeado pelo descobrimento, invasão, conquista e progressiva colonização do Continente Americano pela Europa na aurora da Época Moderna (1453-1789), se formaram as sociedades humanas que constituíram os futuros povos americanos. De forma sincrética, eclética, hibrida ou como se queira denominar; no entanto sempre em tensão dialética de luta de contrários, se chegará a síntese mestiça original formada por: a. a Europa dominadora: Os espanhóis não vão às Índias movidos pelo zelo da fé, nem pela honra de Deus, nem para socorrer e adiantar a salvação do próximo, nem tampouco para servir a seu Rei como sempre se orgulham de dizer sob falsos pretextos; é a avareza e a ambição que para ali os arrasta a fim de dominar perpetuamente sobre os índios, como tiranos e diabos, desejando que lhes sejam dados como animais”, disse Bartolomé de las Casas. (2001, p. 148) −;
b. a América crucificada: […] yo dejo en las Indias, escreveu indignado Bartolomé de las Casas, a Jesucristo, nuestro Dios, azotándolo y afligiéndolo y abofeteándolo y crucificándolo, no una, sino millares de veces, cuanto es de parte de los españoles que azuelan y destruyen aquellas gentes…” (1965, p. 309) −; e
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c. a África escravizada, sobre a qual a investigação de Robin Blackburn concluiu: A aquisição de cerca de doze milhões de cativos na costa da África entre 1500 e 1870 contribuiu para possibilitar a construção de um dos maiores sistemas de escravidão da História Humana. (2003, p. 15)
Síntese biológico-cultural singular, peculiar e original que constitui a realidade da face histórica do modo de ser latino-americano. Tal e como defende Felipe Herrera, sem negar a dificuldade de tamanha afirmação, no seguinte texto: Muitos dos ensaios filosóficos, históricos ou sociológicos sobre a América Latina, como um todo, questionam uma concepção globalizante do Hemisfério e chegam, inclusive, em alguns casos, a negar a existência de uma América Latina como sujeito de uma realidade própria e de vigência permanente. Entretanto, para além das elaboradas diferenças e definições que levam a essa controvérsia, é um fato que a América Latina tem uma presença histórica, econômica, política e cultural no mundo contemporâneo que tende progressivamente a se afirmar, e essa realidade é a expressão de um ‘ser latino-americano’. (1983, p. 75)
A admirável formação original do punhado de povos americanos que, depois de haver padecido durante três séculos a dialética colonial da modernidade europeia, se atrevem a lutar por sua soberania, liberdade e dignidade, fará exclamar ao Libertador, Simón Bolívar (1783-1830): Nós somos um pequeno gênero humano[…] não somos índios nem europeus, mas uma espécie média entre os legítimos proprietários do país e os usurpadores espanhóis: em suma, sendo americanos por nascimento e nossos direitos os da Europa, temos que disputar estes aos do país e nos mantermos nele contra a invasão dos invasores; assim nos encontramos no caso mais extraordinário e complicado. (1993, p. 25)
São esses povos inéditos e não redimidos os que são constantemente enganados, maltratados, oprimidos, humilhados e ofendidos pelas consequências históricas do imperialismo de turno e, paralelamente, por sua vez, importaram hermenêuticas teóricas, aplicadas como camisa de força à sua realidade original – caso clássico das teorias dualistas: liberal / conservador, cidade / campo, moderno / arcaico, civilização / barbárie, progresso / atraso, centro / periferia, independente / dependente, desenvolvimento / subdesenvolvimento, primeiro mundo / terceiro mundo, etc.− os que tomam consciência histórica de sua situação secular: “Não é subdesenvolvimento, não é dualidade, é o próprio Capitalismo funcionando sobre uma base original” (GONZÁLEZ. 1998, p. 98); e, ao mesmo tempo, reclamam e exigem militantemente serem reconhecidos com sua identidade histórica de povos originais e novos: Novo – esclarece o antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro (1922-1997) − porque surge como uma etnia nacional, diferenciada culturalmente de suas matrizes formadoras, fortemente mestiçada, dinamizada por uma cultura sincrética e singularizada pela redefinição de traços culturais delas oriundos. Também novo porque se vê a si mesmo e é visto como uma gente nova, um novo gênero humano diferente de quantos existam. ‘Povo novo’, ainda, porque é um novo modelo de organização socioeconômica, fundada num tipo renovado de escravismo e numa servidão continuada ao mercado mundial. Novo, inclusive, pela inverossímil alegria e espantosa vontade de felicidade, num povo tão sacrificado, que alenta e comove a todos os brasileiros. (1995, p. 19)
4. Negação: A História da Filosofia na América Latina como alienação ideológica da realidade. A histórica negação dialética da primordial originalidade dos povos-raiz da América se instalará na futura América Latina, evidentemente, não desde quando os primeiros seres
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humanos provenientes da África – “Os etíopes, como afirmam os historiadores, foram os primeiros de todos os homens, e as provas disso são evidentes” (SICÍLIA apud SILVA, 2012, p. 20) − chegaram ao Continente Americano − seja por volta de 10.000 anos a.C. (cf. SANDERSMARINO, 1971, p. 48) e/ou por volta de 100.000 anos a.C. (cf. BEDINELLI, 2016) – tanto pelo Estreito de Bering ou em canoas atravessando o Oceano Pacífico (cf. RIVET, 1995) e se instalaram constituindo os povos originários e originais de Anáhuac, Mayapan, Pindorama, Tiahuantinsuyo, etc.; senão quando, em 12 de outubro de 1492 são descobertos, invadidos, conquistados e progressivamente colonizados por uma Europa imperial na aurora da Época Moderna. Atendiendo a la vertiente fáctica, podría decirse que existe colonialismo – nos esclarece Salvador Reyes Nevares − cuando un grupo humano, por medio de la fuerza militar, económica o de cualquier otra índole, sojuzga a un segundo – que por lo regular pertenece a una civilización distinta, que se supone inferior −, con el propósito de lograr a sus expensas una serie indefinida de ganancias. […] El perdedor queda a merced del ganador. Su personalidad sufre una mengua en beneficio de éste. Dentro del colonialismo típico esta mengua llega a la anulación. Al convertirse en colonia, el Estado – o el pueblo, o el conjunto de hombres − cesa de figurar en su contexto como un personaje con poderes propios. Sus facultades de decisión son absorbidas por la metrópoli. (1975, p. 13-14)
Nesse contraditório contexto colonial, no que diz respeito a História da Filosofia na América Latina, pelo lado da colonização hispânica, dizem-nos: El proceso del pensamiento filosófico hispanoamericano comienza con la introducción de las corrientes predominantes en la España de la época de la conquista, dentro del marco del sistema político y eclesiástico oficial de educación y con la finalidad principal de formar a los súbditos del Nuevo Mundo de acuerdo con las ideas y los valores sancionados por el Estado y la Iglesia. (SALAZAR BONDY, 1988, p. 11);
e, pelo lado da colonização lusitana, afirma-se: La presencia civilizadora de los Jesuitas utilizaba la Filosofía para sus fines educacionales y para el establecimiento de los baluartes de la Contrarreforma en nuestro país. Mas aun así, tenemos que reconocer que la Filosofía traída por ellos representa nuestro comienzo, y con la progresiva presencia universal del Catolicismo y de la Filosofía Tomista penetró en todas las instituciones de enseñanza, así como también en toda reflexión y justificación de las actividades humanas, sirviendo, muchas veces, precisamente a los más diversos fenómenos de explotación y consolidación de la dominación de los conquistadores. (STEIN,1987, p. 89)
Sendo assim, em todo caso, ao se reconhecer que a História da Filosofia na América Latina só começa a “[…] partir de la época de la penetración europea en el Continente, dejando en la sombra todo el rico pasado cultural de los pueblos indígenas” (SALAZAR BONDY, 1988, p. 11), quer dizer, aos desnudos filósofos autóctones americanos; se compreenderá criticamente que, tal História, desde seu início, não passa de ser apenas uma História da Filosofia Europeia na América Latina posta ao serviço da dominação colonial, escravagista e imperial do modus vivendi capitalista mundial. Pois, A descoberta da América, a circunavegação da África, abriram um novo campo de ação à burguesia nascente. Os mercados das Índias Orientais e da China, a colonização da América, o intercâmbio com as colônias, o aumento dos meios de troca e das mercadorias em geral deram ao comércio, à navegação, à indústria, um impulso jamais conhecido antes e, em consequência, favoreceram o rápido desenvolvimento do elemento revolucionário na sociedade feudal em decomposição. (MARX; ENGELS, 1990, p. 67)
Se, “Da Europa ela nos vinha já feita” (COSTA, 1956, p. 18), então, aqueles que supostamente filosofavam e que se consideravam filósofos na América latina – ao não filosofar
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verdadeiramente, ou seja, ao não pensar sua realidade e levá-la a seu conceito −, se sentiam como estrangeiros em sua própria terra, conforme registra João Cruz Costa: Na evolução que se processa desde os tempos coloniais até o início do século XX, os nossos letrados acabaram aparentemente identificados, de tal maneira, com o pensamento europeu que, frequentemente, nos dão a impressão de ser, como diz Sérgio Buarque de Holanda, verdadeiros desterrados. (1956, p. 18-19)
Desde cedo, padece-se essa estranha, dual e contraditória experiência porque esse modo de pensar colonial, inautêntico, defectivo, de transplante, meramente imitativo e, portanto, carente de originalidade; na realidade, de uma certa maneira, deixa de fora à realidade circundante que os “filósofos” pensam estar pensando; sem sequer, possivelmente, dar-se conta da sua própria alienação. Desse modo, se produz o peculiar “fenômeno filosófico” que Roberto Schwarz denomina de “As ideias ‘fora do lugar’”, “uma vez que não se referem a nossa realidade” (1992, p. 13). Contudo, em honra da nossa visão dialética, pensamos que Maria Sylvia de Carvalho Franco tem absoluta razão quando pretende contradizer a Roberto Schwarz e escreve que “As ideias estão no lugar” e que, Enfim, a ‘miséria brasileira’ não deve ser procurada no empobrecimento de uma cultura importada e que aqui teria perdido os vínculos com a realidade, mas no modo mesmo como a produção teórica se encontra internamente ajustada à estrutura social e política do país. (1976, p. 63);
pois, verdadeiramente, a contradição supostamente ambígua, teoricamente falando, entre as ideias de “fora” e/ou “dentro” do lugar, na realidade, deve se estabelecer a partir da dialética da colonização Europa versus América, posta em marcha desde o século XVI e referir-se especificamente ao fenômeno da raiz histórico-cultural produzida pela condição colonial do modo de produção capitalista em que nasceram e se formaram os povos latino-americanos. Nesse sentido, reforçando nosso ponto de vista dialético, se poderia afirmar: “Si cada moda filosófica está ligada a una forma de vida, cuando el lenguaje es empleado ‘fuera de lugar’, no es por eso que deja de revelar aspectos de nuestro propio modo de vivir” (GIANNOTTI, 1995, p. 5); mas, também, sustentar a ideia-base do projeto de investigação do Center for Portuguese Studies and Culture da Massachussetts Dortmouth University – relizado em conjunto com a Uni versidade Estadual do Rio de Janeiro, em 2001 – intitulado: “There is no Brazil”/ “Nenhum Brasil existe”: “Um aspecto praticamente ignorado do pensamento social brasileiro estimula o projeto desse volume. No trabalho dos mais importantes ‘pensadores’ do Brasil reaparece a perturbadora contradição drummondiana: seus textos desenvolvem o que já denominei de ‘arqueologia da ausência’. Embora busquem definir a ‘brasilidade’, terminam repetindo o artifício da ‘teologia negativa’, característica de certa hermenêutica religiosa. Como a linguagem humana não é capaz de exprimir a natureza perfeita de Deus, a única forma possível de definição é negativa. ‘Deus não é imperfeito, não é incompleto, não é...’; desse modo, destaca-se, na insuficiência da linguagem, a plenitude da referência. Os principais pensadores que se dedicam à tarefa de revelar o propriamente brasileiro do Brasil terminam às voltas com uma melancólica descrição do que o país não foi – moderno, democrático, etc. −, do que deixou de ser – igualitário, iluminista, etc. −, do que ainda não é – país de primeiro mundo, potência mundial, etc. Daí sermos eternamente o ‘país do futuro’, ou seja, somos tudo aquilo que um dia ‘seremos’. Essa intrigante contradição precisa ser mais bem estudada: é essa reflexão que se pretende iniciar com os textos que compõem ‘Nenhum Brasil existe’. (ROCHA, 2003, p. 22-23)
Dessa forma, a paisagem filosófica desenhada pelo complexo ou paradoxal problema de “las ideas fuera del lugar” y/o “las ideas en su lugar”, cujo panorama é descrito como “Un exotismo
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eclético caleidoscópico paródico” (IANNI, 1993, p. 133), na verdade, registra o específico lugar social e epistêmico produzido por um dialético modus vivendi colonial; conforme reconhece, entre muitos outros, Roland Corbisier: Fruto de una situación colonial, […] el hombre brasileño no fue configurado por una historia y una cultura propias, mas por una historia y una cultura extrañas. Paradojalmente –y esa contradicción es constitutiva de la situación colonial−, lo que había de propio en el brasileño era lo ajeno, su contenido era lo extraño, su interioridad estaba ocupada por el exterior. (1960, p. 63)
Essa situação histórica singular de “las Ideas fuera del lugar”; mas, contraditoriamente, “en su lugar” foi – possivelmente fazendo-se eco de G. W. F. Hegel – registrada e denunciada pelos primeiros que se dedicaram a investigar a História da Filosofia na América Latina. Assim o fez na hispano américa, em 1842, Juan Bautista Alberdi (1810-1884) quando disse: La filosofía de cada época y de cada país ha sido por lo común, el principio, o el sentimiento más dominante y más general que ha gobernado los actos de su vida y de su conducta. Y esa razón ha emanado de las necesidades más imperiosas de cada período y de cada país. Es así como ha existido una filosofía oriental, una filosofía griega, una filosofía romana, una filosofía alemana, una filosofía inglesa, una filosofía francesa y como es necesario que exista una ‘filosofía americana’. (1986, p. 146)
Um pouco mais tarde, sobre a luso América o fez, em 1878, Sylvio Romero (1851-1914) ao dizer: Na história do desenvolvimento espiritual no Brasil há uma lacuna a considerar: a falta de seriação nas ideias, a ausência de uma genética. Por outros termos: entre nós um autor não procede de outro; um sistema não é uma consequência de algum que o precedeu. [...] A leitura de um escritor estrangeiro, a predileção por um livro de fora vem decidir da natureza das opiniões de um autor entre nós. As ideias dos filósofos que vou estudando, não descendem umas das dos outros pela força lógica dos acontecimentos. [...] É que a fonte onde nutriam suas ideias é extranacional. (1969, p. 32)
A esses pioneiros, os seguiram muitos outros ao largo da História da América Latina, dos quais, nos permitimos citar apenas alguns exemplos: O brasileiro Tobias Barreto (1839-1889), alguns meses antes da abolição da escravatura (13 de maio de 1888) e quase nas portas do ocaso do Império e inauguração da República Federativa do Brasil, sob o tema positivista de “Ordem e Progresso” (15 de novembro de 1889), em um texto de 1887 intitulado “Recordação de Kant”, escrevia irritado: “Se nas outras esferas do pensamento, somos uma espécie de ‘antropoides’ literários, meio homens e meio macacos, sem caráter próprio, sem expressão, sem originalidade, no distrito filosófico é ainda pior o nosso papel: não ocupamos lugar algum; não temos direito a uma classificação” (2013, p. 358). Em outro lugar, em 1925, o peruano José Carlos Mariátegui (1895-1930), impactado pela Revolução Russa de 1917, pela Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e, talvez, também, pela Revolução Mexicana (1910-1917), se perguntará se existe um pensamento hispano-americano. Pergunta à qual responderá: Me parece evidente la existencia de un pensamiento francés, de un pensamiento alemán, etc., en la cultura de Occidente. No me parece igualmente evidente, en el mismo sentido, la existencia de un pensamiento hispanoamericano. Todos los pensadores de nuestra América se han educado en una escuela europea. No se siente en su obra el espíritu de la raza. La producción intelectual del Continente carece de rasgos propios. No tiene contornos originales. El pensamiento hispanoamericano no es generalmente sino una rapsodia compuesta con motivos y elementos del pensamiento europeo. Para comprobarlo basta revisar la obra de los más altos representantes de la inteligencia indoibera. (1985, p. 25)
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Sabemos que essa crítica irreverente ao, até agora, modo de filosofar na América Latina, irrita demasiado a todos os que fazem dela a encarnação de sua biografia pessoal; e até chega a se acusar a quem faz esta crítica de pretender absurdamente ignorar a História da Filosofia Universal – a qual não passa, devido ao seu caráter eurocêntrico, de ser apenas uma particularidade abusivamente universalizada (WALLERSTEIN, 2017). Todavia, não é assim. Já no século XIX, o venezuelano Andrés Bello (1781-1865) se atrevia a corrigir essa observação, dizendo: “Lo que se quiere es que abramos bien los ojos a ella, y que no imaginemos encontrar en ella lo que no hay, ni puede haber” (1993, p. 192). E embora o filósofo francês Alain Guy tenha reconhecido, em 1987, o seguinte: “Porém se deve reconhecer, por outra parte, a originalidade crescente da reflexão autóctone desde há uma treintena de anos, nessas repúblicas que, cada vez mais, se esforçam em pensar por si mesmas” (1987, p. 27). O certo é que todavia no ano de 2006, ao dar uma entrevista ao jornalista Rafael Cariello, o filósofo brasileiro Roberto Machado afirmou: “Creio que uma das dificuldades da filosofia brasileira é que, em geral, abdicamos de pensar filosoficamente para fazer unicamente História da Filosofia” (2006, p. 3).
5. Negação da negação: a rebeldia da alteridade como síntese histórica da realidade latino-americana. O Nuevo Mundo encontrado por Américo Vespúcio durante sua viagem entre 1502-1503 – que Martin Waldseemüller, em sua honra, no ano de 1507, batizou com o nome de América (para irritação e desventura do seu descobridor, Cristóvão Colombo (1451-1506), que morreu como um marinheiro qualquer) −, não era apenas uma geografia física senão uma antropogeografia, ou seja, uma realidade histórica original − “Sus obras, disse José Martí (1853-1895), no se parecen a las de los demás pueblos, sino como se parece un hombre a otro” (1992, p. 114) −; à qual, porém, desde 12 de outubro de 1492, se lhe aplicou a política de tábua rasa, de terra desolada: “Así, los intentos de ‘civilizar’ al índio han terminado por exterminarlo” (ROA BASTOS, 1978, p. 21). Desde aquele momento, pois, “Somos los que fuimos deshechos en lo que éramos, sin jamás llegar a ser lo que fuéramos o quisiéramos” (RIBEIRO, 1990, p. 30). Mesmo assim, ou precisamente por isso, a futura realidade histórica latino-americana, propriamente dita, será formada, queira-se ou não, dialeticamente falando, a partir do século XVI europeu, por três culturas originais: América, Europa e África. Europa, mudando o eixo do cenário da História Humana do Mar Mediterrâneo para o Oceano Atlântico, a converterá em uma História Mundial Eurocêntrica e, ao mesmo tempo, se transformará em uma totalidade arbitrária que, impondo sua dominação a todo o orbe, intentará aniquilar a toda resistência que se oponha à expansão de sua vontade de poder. Portanto, quanto ao Continente Americano se refere: Paradoxalmente, não foi que os cristãos trouxessem a Moral do Evangelho para humanizar esses selvagens brutais, como eles diziam; ao contrário, foi uma ordem moral de valores humanos que os missionários atualmente olham com nostalgia, que se viu destruída, − e em seu lugar se estabeleceu a matriz das relações coloniais: os dominados sem a liberdade e o reconhecimento de sua condição humana, perdendo seus valores mais sagrados, e mesmo se adaptando em parte à visão que os colonizadores deles tinham, pois a violência da opressão os fazia regredir a condições sub-humanas. (MENESES, 1985, p. 15)
África entrará na formação social da América Latina – para escândalo e absurdo do antropocentrismo alardeado pela modernidade − em condições de escravidão, quase reduzida a coisa, tratada como animal, obrigada a viver experiências sub-humanas. Nessa situação,
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O escravo é uma propriedade como o gado o é, e não como uma coisa inanimada. Sua liberdade de movimentos lembra a de um animal ao qual se permite pastar e fundar algo como uma família. O verdadeiro caráter de uma ‘coisa’ é sua impenetrabilidade. Ela pode ser chutada e empurrada, mas é incapaz de armazenar ordens. A definição jurídica do escravo como coisa e como propriedade é, pois, enganosa. Ele é ‘um animal e uma propriedade’. (CANETTI, 2011, p. 383)
A América Indígena, tanto a pré-colombiana (12 de outubro de 1492) como a pré-cabraliana (22 de abril de 1500), será convertida no lugar por excelência da contradição dialética colonial da modernidade em que se formarão as sociedades constituintes dos futuros povos americanos. Para dizê-lo – nos ilustra Gustavo Gutiérrez −, há uma expressão do povo Quíchua do Peru. Entre eles existe uma ideia muito profunda, compartilhada por outros povos indígenas da América Latina. Eles pensam que quando os europeus chegaram à América aconteceu o que chamam, em termo quíchua, um ‘pachacuti’. Aconteceu um ‘pachacuti’ e criou-se um mundo ao contrário. Deu-se a reviravolta no mundo, há quatro séculos. Vivemos num mundo ao contrário. (1980, p. 147)
Pois, dizem os sobreviventes do Povo Maia: “Nos ‘cristianizaron’, pero nos hacen pasar de unos a otros como animales” (CHILAM BALAM, 1991, p. 69). Por conseguinte, a realidade histórica da aventura humana latino-americana não se pode interpretar, ainda que se queira, como uma realidade eclética – porque sua metamorfose não se elaborou apenas mediante a seleção das melhores virtudes humanas dos seus elementos constituintes − nem sincrética –, porque ela não é um quebra-cabeças informado por meros elementos de figuras contraditórias ou excludentes − nem tampouco hibrida – como se fosse algo imaturo, inconcluso, nem isto nem aquilo −; mas sintética, já que é e se apresenta como uma unidade com identidade própria e original, formada por suas contradições ao largo da sua história; pois, parafraseando Octavio Paz (1993, p. 235), a América Latina não é uma essência, senão uma História. Nessa perspectiva, pensamos e defendemos que é esta originalidade da realidade histórica latino-americana que exige ser pensada pela atividade própria do sujeito do filosofar latino-americano, ou seja, pelo esforço intelectual que traduza o que se quer dizer quando se diz: “La filosofía americana como filosofia sin más” (ZEA, 1969); fruto de “[…] un filosofar americanamente” (ROIG, 1973, p. 545). Porque, em primeiro lugar, se A filosofia não tem a vantagem, de que gozam as outras ciências, de poder ‘pressupor’ seus ‘objetos’ como imediatamente dados pela representação; e também como já admitido o ‘método’ do conhecer – para começar e para ir adiante” (HEGEL, 1995, p. 39); se, em segundo lugar, “Inicialmente, a filosofia pode determinar-se, em geral, como ‘consideração pensante’ dos objetos. (HEGEL, 1995, p. 40);
e se, em terceiro lugar, “A filosofia, mais rigorosamente, é a disciplina que consiste em criar conceitos” (DELEUZE-GUATTARI, 2010, p. 11); então, diante da inautêntica História da Filosofia na América Latina e seus “filósofos”, radicalmente, me pergunto, junto com Gilles Deleuze e Félix Guattari : “Que valeria um filósofo do qual se pudesse dizer: ele não criou um conceito, ele não criou seus conceitos?” (2010, p. 12). Desde logo, desde esse preciso e concreto contexto dialético de extraordinária e maciça originalidade − não meramente ambíguo, nem paradoxo ou apenas complexo −, tal pergunta e sua consequente resposta, automaticamente, se convertem em uma convocação à insurreição que nos faz concordar com Augusto Salazar Bondy, quando afirma: […] la filosofía que hay que construir no puede ser una variante de ninguna de las concepciones del mundo que corresponden a los centros de poder de hoy, ligadas como están a los intereses
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y metas de esas potencias. Al lado de las filosofías vinculadas con los grandes bloques actuales o del futuro inmediato es preciso, pues, forjar un pensamiento que, a la vez que arraigue en la realidad histórico-social de nuestras comunidades y traduzca sus necesidades y metas, sirva como medio para cancelar el subdesarrollo y la dominación que tipifican nuestra condición histórica. (1988, p. 90)
Daí que, os filósofos que começaram a filosofar em favor da superação de uma inautêntica, ideológica e ilegítima História da Filosofia na América Latina, de início afirmaram, na sua “A Manera de Manifiesto” (1971), o seguinte: “Filosofía de la liberación entre nosotros es la única ‘filosofía latinoamericana’ posible, que es lo mismo que decir que es la única filosofía posible entre nosotros” (apud ARDILES et al. 1973, contracapa). Daí que também Enrique Domingo Dussel Ambrosini (1934-), mundialmente conhecido como “Enrique Dussel: filósofo de la liberación latinoamericana” (MARQUÍNEZ ARGOTE apud DUSSEL, 1979, p. 5-51), entenda esse modo novo de filosofar latino-americano como “Filosofía de la Liberación”, e a defina da seguinte maneira: “[…] crítica da opressão e esclarecimento da práxis de libertação” (s/d, p. 248). Essa inteligibilidade atual do novo modo do filosofar latino-americano, visto diante da História Universal da Filosofia, simplesmente, estaria superando o clássico símbolo da História da Filosofia Europeia e demandando um novo. Porque, se é verdade que a Filosofia da Libertação, em quanto “crítica da opressão”, estaria de acordo com Hegel; pois, ele disse: Quando a filosofia chega com sua luz crepuscular ao anoitecer, uma manifestação de vida acaba de envelhecer. Não se pode rejuvenescê-la com a cinza sobre a cinza, mas apenas conhecê-la. Ao cair das sombras da noite é que alça voo o pássaro de Minerva. (1997, p. 37); também, por outro lado, quanto ao “esclarecimento da práxis de libertação”, o estaria superando; pois, se a Coruja de Minerva, simbolicamente, dá à Filosofia a missão de esclarecer os feitos já consumados, nós pensamos que [...] la filosofia puede ser y en más de una ocasión histórica ha tenido que ser la mensajera del alba, principio de una mutación histórica por una toma de conciencia radical de la existencia proyectada al futuro. […] La crítica se hace así constructiva de mundos nuevos después de haber cancelado todos los fantasmas de la ilusión histórica. (SALAZAR BONDY, 1988, p. 89)
Trata-se, portanto, de “un filosofar matutino o auroral […], en cuanto que la filosofía no es ejercida como una función justificatoria de un pasado, sino de denuncia de un presente y de anuncio de un futuro” (VIGNALE, 2010); que se define e se identifica como Filosofia da Libertação porque o concepto de Libertação inclui os momentos pré-revolucionários, a situação revolucionária, a própria revolução e a continuação da revolução como construção da ‘nova’ ordem. Indica ‘todo’ o processo, não somente a ruptura; não é somente negação e nem sequer negação de negação, mas também afirmação da exterioridade de uma nação, povo, classes oprimidas e sua própria cultura. (DUSSEL. s/d, p. 215);
pois, “La praxis liberadora debe aniquilar la dialéctica de la dominación en vista de un nuevo tipo de hombre histórico donde la dominación cósica y cosificante sea superada en una fraternidad humanizante” (DUSSEL, 1994, p. 319). Assim sendo, pensamos que o esforço contemporâneo de criação filosófica na América Latina – o qual, sem dúvidas, deita raízes em Nezahualcóyotl, Bartolomé de las Casas, Simón Bolívar, José Martí, etc.; e se nutre na indiscutível originalidade de uma América mestiça, utópica e rebelde, entendida como Alteridade frente à Mesmidade imperial ou como Exterioridade frente a Totalidade eurocêntrica −, mais que continuar adotando como símbolo universal da
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Filosofia a tradicional Coruja de Minerva, deveria assumir corajosa e alegremente o Galo da Madrugada, cujo canto não pode ser confundido nem com o das sereias nem com o dos cisnes, pois, “O mistério do galo − nos disse Carlos Diegues (1993, p. 55) − não está na ilusão de que ele seja capaz de fazer nascer o sol, mas em que seu canto anuncia a existência do sol, mesmo ainda por nascer”.
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Cap. 7
A morte do Estado nacional e o Estado futuro em Hegel segundo Eric Weil Evanildo Costeski
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A morte do Estado nacional e o Estado futuro em Hegel segundo Eric Weil Evanildo Costeski56 Eric Weil publicou o seu Hegel e o Estado em 1950, trinta anos após o Hegel und der Staat de Franz Rosenzweig (2008)57. Weil diz logo de início que esse título não indica exatamente o que se pretende com o livro. O texto, na verdade, quer ser uma crítica à crítica tradicional, segundo a qual Hegel teria sido o apologista do Estado prussiano e o profeta disso que se chama de estatismo (WEIL, 2011, p. 7)58. Essa tese é bastante conhecida. Eis como Weil a anuncia: “Assim como Platão é o inventor das ideias e do gênero de amor que toma seu nome, assim como Aristóteles é o homem da lógica formal e da biologia, e Descartes é o herói da clareza, e Kant é o rigorista, Hegel é o homem para o qual o Estado é tudo, o indivíduo nada, a moral uma forma subordinada da vida do espírito: em uma palavra, ele é o apologista do Estado prussiano”. (WEIL, 2011, p. 13). O autor que mais se empenhou em apresentar Hegel como filósofo oficial do Estado prussiano no século XIX foi Rudolf Haym, através do seu grande livro Hegel und seine Zeit (Hegel e seu Tempo), publicado em 1857. Como diz o próprio Weil: “Entre os adversários de Hegel, Rudolf Haym é de longe o mais importante, tanto pela qualidade de seu livro como pela influência deste” (WEIL, 2011, nota 6, p. 17). Eis como Haym inicia sua décima quinta lição, dedicada justamente à Filosofia do Direito de Hegel: “É o último e também o mais brilhante e mais feliz período da vida e da filosofia de Hegel que iremos acompanhar agora. Impelido pelo favor dos poderosos, inebriado pelo sucesso e glória de sua obra e tendo alcançado o fim dos seus esforços, ele se vê reinando como ditador filosófico na Alemanha” (HAYM, 2008, p. 421). A tese principal de Haym é anunciada por Weil no início do segundo capítulo de Hegel e o Estado. Hegel sacrifica o indivíduo no Estado porque o interesse pela harmonia é mais importante que os interesses da individualidade concreta (WEIL, 2011, p. 30). Segundo Haym, o harmonismo mostra que o sistema hegeliano é no fundo essencialmente estético. A filosofia política de Hegel é dominada pelo ideal estético greco-romano: “É justamente na Filosofia do direito que culmina a vitória do harmonismo sobre o individualismo, do antigo sobre o moderno, do greco-romano sobre o princípio germânico. (HAYM, 2008, p. 441). É verdade que Hegel fala da liberdade subjetiva, mas apenas para sublinhar que esta deve se tornar universal, ser conduzida ao substancial: “o indivíduo só tem ele mesmo objetividade, verdade e eticidade na medida em que é membro do Estado” (HAYM, 2008, p. 443).
56. Mestre e Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Gregoriana (Roma), com estágio de pós-doutorado no Centro de História de Cultura da Universidade Nova de Lisboa. Atualmente é Professor Adjunto do Curso de Filosofia da Universidade Federal do Ceará (UFC). 57. Weil elogia a profundidade da obra de Rosenzweig, entretanto, observa que o autor, apesar de apresentar provas em relação aos pontos particulares, se equivoca em sua concepção de conjunto (cf. WEIL, 2011, p. 8-9). 58. Segundo N. Abbagnano, estatismo seria: “em sentido próprio, a doutrina que considera o Estado como única fonte do direito. Em sentido genérico, toda orientação política que atribua ao Estado funções ou poderes preponderantes em qualquer campo da atividade humana” (2007, p. 425). Sobre a crítica de Weil ao chamado estatismo hegeliano, ver D. Benevides Soares (2013, p. 92-102).
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Haym fundamenta a sua tese na famosa frase do Prefácio da Filosofia do Direito: “Isso que é racional é real, isso que é real é racional”. A filosofia consiste em aprofundar o racional, em apreender em um mesmo golpe o atual e o real, e não em tratar de um além e de um nãoser que só existem através do “erro de uma racionalização unilateral e vazia”. Desse modo, observa Haym, “o fim da Filosofia do Direito não será construir um Estado tal como ele deve ser, mas de conceber o Estado tal como ele é” (HAYM, 2008, p. 429), isto é, a realidade (die Wirklichkeit) prática e política tal como ela existe na Prússia em 1821 (HAYM, 2008, p. 430). Weil aceita o fato de que Hegel foi um admirador incontestável do Estado prussiano. Entretanto, como nota J. Ritter, em seu livro Hegel e a revolução Francesa, o grande mérito do texto de Weil é mostrar em detalhes como é pouco justificado comparar a Prússia de 1818, que Hegel conheceu em Berlim, com a Prússia realmente reacionária dos anos 30 e 40 (RITTER, 1970, nota 03, p. 8). É verdade que Hegel admirou, ao menos em princípio, o Estado Prussiano. Isso não pode ser negado. Mas é preciso perguntar sobre o significado dessa admiração (WEIL, 2011, p. 16). Certo, Hegel não foi sempre o mais corajoso dos homens de seu tempo. Ele se adaptou às condições existentes. Desejou muito ocupar o posto de reitor na Universidade de Berlim. Evitou criar problemas com o imperador Frederico Guilherme III. “Mas Hegel não parece ter abandonado nunca a menor parcela do essencial de sua teoria”, acrescenta Weil (2011, p. 21). Qual seria, então, segundo Eric Weil, a verdadeira teoria do Estado de Hegel? O que Hegel vê na Prússia que pode ilustrar a sua compreensão de Estado? Para Hegel, a Prússia de 1818 e, também, a de 1830, é o Estado moderno por excelência. Trata-se do Estado que mais sofreu influência da Revolução Francesa e, por isso, pode ser visto como o Estado do Espírito, o Estado da liberdade filosófica. Em princípio, a teoria do Estado segue as leis da natureza: “Assim como há ciência da natureza, assim também há ciência do Estado”. (WEIL, 2011, p. 32). O Estado é um organismo natural, anterior a toda teoria: “os homens sempre vivem numa sociedade organizada, constituída, e a constituição é uma realidade anterior a toda e qualquer teoria”. (WEIL, 2011, p. 68). Aliás, a própria ideia de constituição tem um sentido fisiológico. Note-se isso na defesa que Hegel faz da monarquia hereditária: “o príncipe hegeliano só tem por função essencial representar a continuidade, quase biológica, do Estado”. (WEIL, 2011, p. 72). O aspecto natural do Estado implica a ideia de homogeneidade, de constância. Existe o Estado, por isso, podemos ter a ideia de Estado: “pode-se buscar o bom Estado porque há Estado” (WEIL, 2011, p. 33). Mas é óbvio que a constituição natural do Estado não é a única nem a principal característica do Estado. O Estado é também a ideia da moral e o mundo da moral é superior ao mundo natural. “O mundo moral é, e até num sentido infinitamente mais elevado que o mundo da natureza, da exterioridade”. (WEIL, 2011, p. 32). No § 257, da Filosofia do Direito, Hegel diz: O Estado é a realidade da Ideia ética. Ele é o Espírito ético enquanto vontade substancial, manifesta, evidente em si mesma, vontade que se pensa e se sabe e que leva a completar isso que sabe e na medida em que sabe. No ethos, o Estado tem a própria existência imediata. Na autoconsciência do indivíduo, no saber e na atividade do indivíduo, o Estado tem a própria existência mediata. Da parte sua, mediante a predisposição espiritual, a autoconsciência tem a própria Liberdade substancial no Estado como na própria Essência, como no fim e no produto da própria atividade. (1996, p. 417)
No § 258, ele complementa: “O Estado, enquanto é a realidade da vontade substancial, tem essa realidade na autoconsciência particular que se elevou até a própria universalidade. Em tal sentido, o Estado é o Racional em si e para si. (...) Os indivíduos têm, por sua vez, o dever supremo de serem membros do Estado”. (1996, p. 419). Consoante Weil:
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Todo o essencial está contido nesses dois parágrafos. A ideia moral, existente na família e na sociedade, só se revela como pensamento no Estado (...). O Estado é a razão realizada; (...) ele é a liberdade positiva acima da qual nenhuma liberdade concreta é pensável (...). A vontade individual já não conta, ao menos se a vontade individual é o que ela crê ser. A consciência moral é aufgehoben, sublimada, realizada, mantida, tudo o que se quiser, mas ela também deixou de ser a instância suprema. (WEIL, 2011, p. 54-55)
O que interessa é o Estado efetivo, não o Estado ideal e sonhado. Com isso, fica realmente difícil considerar a possibilidade de algo novo além do Estado. Não existe aqui a possibilidade de um dever ser. A ética é jogada na monotonia da homogeneidade, na permanência necessária da natureza. Mas, se é assim, não teríamos que afirmar também que a história chegou ao fim e que, portanto, não haveria mais nada a fazer nesse mundo, que o futuro seria continuamente vazio e tedioso? (WEIL, 2011, p. 86). Porém, a história não acabou. Aliás, não é por acaso que a Filosofia do Direito termina com uma filosofia da história. O Estado deve fazer as contas com o tribunal da História. O Estado ainda não se realizou externamente nem internamente. A reconciliação ainda não foi completada. Os indivíduos permanecem insatisfeitos e sujeitos à violência. O Estado não é assim tão absoluto como se apregoava. A moral tem seu valor absoluto independente, ao menos no âmbito da consciência; a sociedade do trabalho tem seus próprios direitos que o Estado não deve lesar; a religião, a arte, a ciência tem suas próprias existências superiores ao Estado; o Estado não pode violar os seus próprios limites sem perder o seu caráter razoável. Em suma, ao contrário do que se pensava, o Estado delineado pela Filosofia do Direito é para Hegel um fenômeno histórico, não apenas no sentido de que todo Estado vive na história, mas no sentido de que a forma mesma do Estado é só uma forma transitória, uma forma, no momento, não superada pelo Espírito, mas de nenhuma maneira insuperável e definitiva. Para Weil, é desse modo que o problema da política hegeliana deverá encontrar sua solução. É claro a insuficiência do Estado moderno no âmbito das relações internacionais. No § 330 da Filosofia do Direito, Hegel afirma: “O direito estatal externo procede da relação entre Estados autônomos. O que nessa relação é em si e para si, portanto, recebe a forma do dever-ser, porque a sua realidade se fundamenta sobre diferentes vontades soberanas” (1996, p. 553). No § 333, ele complementa: O direito internacional é o direito universal que deve valer em si e para si entre os Estados. (...). Todavia, porque a relação entre os Estados tem por princípio a sua soberania, eis que, nesse sentido, os Estados são um para outro no estado de natureza e os seus direitos têm a sua realidade não em uma vontade universal constituída sobre eles, mas apenas na sua vontade particular. Aquela determinação universal permanece, portanto, no âmbito do dever-ser, e a situação tornase uma alternância entre a relação conforme aos tratados e a abolição desses tratados. (1996, p. 555)
O que chama a atenção de Eric Weil nessas normas é justamente a palavra “dever”. É o dever moral que determina a relação entre os Estados. É verdade que os Estados têm no âmbito internacional uma ligação moral extremamente simples e tênue. O que predomina de fato entre os Estados é a violência do estado natural. Porém, a guerra e a violência não podem destruir a possibilidade da paz, que deve sempre ser salvaguardada - os embaixadores, por exemplo, devem sempre ser respeitados (Cf. WEIL, 2011, p. 88; HEGEL, 1996, § 338, p. 561). Mas, pergunta Weil: será que, com isso, não retornamos à moral abstrata do dever ser, inferior à moral concreta, ao Estado e às suas leis? De fato, nas relações internacionais, o Estado pode ser moral ou imoral. Ele deve respeitar os tratados, mas respeitá-los de fato depende só da vontade empírica e particular. Existe, então, uma moral entre os Estados, porém, essa moral
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é só um dever ser, por isso, pode, perfeitamente, ser desrespeitada. Como todo indivíduo natural, o Estado defende apenas os seus interesses. A sabedoria do Estado não é a providência universal, mas a sabedoria particular (Cf. WEIL, 2011, p. 89-90). Desse modo, poder-se-ia então dizer que Hegel é, no fundo, o defensor da violência, da força, da política sem lei, o inimigo de toda moral, senão em política interna, ao menos no que concerne à política internacional: “o bellum omnium contra omnes, banido do interior do Estado, é a relação normal entre os Estados” (2011, p. 90). Como diz o próprio Hegel, nesse jogo de interesses violentos arbitrários, “o próprio Todo ético (a autonomia dos Estados) é exposto à acidentalidade” (1996, § 340, p. 561). Portanto, ao contrário do que se poderia imaginar, a ausência de uma moral efetiva nas relações internacionais não fortalece a soberania dos Estados particulares. De fato, os termos imediato, natural, indivíduo, acaso, arbítrio, ausência de realidade, simples dever, aplicados por Hegel nas relações internacionais, são conceitos negativos para todo o sistema hegeliano e, por isso, só podem conduzir a uma conclusão, a saber: O Estado soberano, o Estado independente, não é mais razoável que o indivíduo que vive no direito formal e pensa nas noções da moral abstrata. O Estado é perfeito, mas os Estados considerados individualmente não o são. Em outras palavras, Hegel afirma que de fato não há lei entre os Estados, que a moral internacional não é realizada, que sua aplicação depende da boa ou má vontade dos Estados-indivíduos. Ele não diz que este estado de coisas seja um estado perfeito, nem toma a sua defesa; ele constata e compreende. Mas esta compreensão já contém o apelo – não, Hegel se proíbe de fazer apelos –, contém uma predição, um juízo sobre a tendência da história: a reconciliação e a mediação total vão realizar-se; senão a história seria absurda, a luta do homem com a natureza não teria êxito, a negatividade não conseguiria suportar por seu trabalho o imediato, o natural, a determinação dada, o arbitrário, o acaso, e não haveria razão real para o homem. (WEIL, 2011, p. 91-92)
Percebe-se, com isso, que Hegel não pode ser simplesmente confundido como o puro defensor do Estado nacional: Hegel justificou o Estado nacional e soberano assim como o físico justifica a tempestade: compreendendo o que há de razão no fenômeno; e, dado que nunca os físicos foram acusados de se opor à instalação dos para-raios, seria injusto imputar a Hegel uma doutrina do quietismo político. Ao contrário, Hegel pensa que o espírito não deteve sua marcha, que a Berlim de 1820 não é o término da história, e que o que ele chama de ideia, a negatividade que quer realizar-se como liberdade positiva, como a presença da satisfação e do reconhecimento do valor infinito de todo homem, que esta ideia ainda não se produziu inteiramente à luz da consciência. (WEIL, 2011, p. 92-93)
É por isso que Hegel termina a Filosofia do Direito com uma filosofia da história. Se o espírito se realizasse de forma puramente moral na história e os homens e os Estados fossem plenamente reconciliados, a história teria chegado ao fim. Mas não é isso o que se percebe. O que vigora na história é a violência: “Na história, o Espírito age como violência”. (WEIL, 2011, p. 93). É através das guerras, da luta “entre os espíritos nacionais”, que o Espírito age no mundo: Um povo dado realiza de forma natural, ou seja, de forma inconsciente, a forma mais perfeita do momento, a que representa a ponta do progresso da liberdade. O que implica que esse povo pode e deve perder esta supremacia assim que outra nação surgir como portadora de uma nova ideia: o primeiro tanto pode continuar sua existência como também pode perecer, e pode até aceitar o novo princípio, mas deixou de servir de corpo para o espírito. Foi assim que se sucederam os Impérios oriental, grego, romano, e é assim que no momento presente o Império Germano-Cristão detém a supremacia. (WEIL, 2011, p. 94-95; cf. HEGEL, 1996, §§ 341-360, p. 563-579)
Mas não seria essa concepção de história uma “construção”, uma visão “idealista” no pior sentido da palavra? É verdade que “a compreensão se segue à realidade histórica, não a precede;
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o pensamento não ultrapassa o espírito realizado concretamente, historicamente”. (WEIL, 2011, p. 94). Todavia, o Espírito, esse motor da história, não é uma concepção originalmente mítica, produto de uma teologia secularizada? Por isso, não é possível abandonar completamente o idealismo na compreensão da história. Nós não compreendemos o sentido da história, se não admitimos no início que existe um sentido, do contrário, optaríamos pelo niilismo. Mas como, em modo concreto, o sentido pode se exprimir na história? (Cf. WEIL, 2011, p. 94). Hegel dá duas respostas a essa questão: a primeira é dada pela figura do herói ou do grande homem. Através dos interesses particulares, das paixões violentas e da guerra, os heróis realizam inconscientemente o plano do Espírito, como aspiração comum de todos os homens. Mas por que existem os heróis ou os grandes homens? É verdade que eles realizam inconscientemente o Espírito, agindo por interesses próprios. Mas isso não explica suficientemente a existência dos heróis. Ora, se existem heróis, é porque “O Estado de natureza ainda não foi abolido, a história não chegou a seu termo, o herói e ação conservam o seu lugar no mundo”. (WEIL, 2011, p. 98-99). Em outras palavras, se existem heróis criadores e salvadores, é porque o povo permanece insatisfeito: é a insatisfação do povo que produz os heróis fundadores e refundadores de Estado. Por isso, mais importante que a ação dos grandes homens, é a insatisfação do povo. Temos agora a segunda resposta para o “idealismo histórico” de Hegel: “trataremos dos homens que seguem o grande homem e já não do grande homem que os guia porque ele realiza suas aspirações inconscientes e não expressas” (WEIL, 2011, p. 99). Temos que passar agora a considerar a Filosofia Direito sob um novo ângulo. O Estado deve ser pensado a partir da insatisfação da sociedade. De fato: “O nervo da história é a realização da liberdade numa organização que dá satisfação a todos os homens. Ora, o que é o homem?” (WEIL, 2011, p. 100). Trata-se aqui não do grande homem e/ou do herói, mas do homem comum, que vive em sociedade: “esse homem não está isolado nem é isolável; ele é o que ele faz na sociedade; e, dado que os homens não fazem todos a mesma coisa, eles tampouco são iguais” (WEIL, 2011, p. 100). Como o homem faz coisas diferentes, existem também diversos tipos de homens em sociedade. Mas todos têm algo em comum, na medida em que todos têm necessidades a satisfazer, “necessidades que não são necessidades puramente animais” (WEIL, 2011, p. 102). De fato: “O homem é, pois, o ser que tem necessidades, mas necessidades que são sua obra social, assim como os meios de satisfazê-las são produto de seu trabalho” (WEIL, 2011, p. 103). Para satisfazer a suas necessidades, o homem, portanto, trabalha: É verdade que esta definição não fornece o conceito de homem, mas tão somente a representação; mas a fraqueza teórica desta definição constitui para nós precisamente uma vantagem, porque procuramos saber como o homem age, o homem comum, o homem do dia a dia, não o grande homem ou o herói. Esse homem, o homem tal como aparece para si mesmo na representação que ele faz de si mesmo, deve ser reconciliado com ele próprio. Deve ser reconciliado: é-o? E o é segundo Hegel? (WEIL, 2011, p. 103)
Um ponto está claro: “o Estado hegeliano é concebido de forma a proporcionar satisfação a todos os indivíduos racionais; se houvesse um grupo que estivesse essencialmente insatisfeito, isso seria de preocupar o Estado; o Estado hegeliano não admite partidos, grupos que estejam em luta por questões vitais” (WEIL, 2011, p. 104). De fato, afirma Hegel no § 302 da Filosofia do Direito: “se a oposição não for apenas acidental, se for também substancial, o Estado passará a caminhar para o seu declínio” (1996, p. 512-513). Ora, tal posição fundamental se manifesta aqui:
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Há homens no Estado que negam o Estado, que trabalham, pois, para sua destruição. Como explicar esse fato? Como o homem, o homem tal como ele se concebe na sociedade (...) pode rejeitar o Estado? Por que o faz? Por maldade? Por opinião irresponsável, por arbitrariedade? Ou, ao contrário, a própria sociedade produz homens que não fazem parte no Estado, que nem sequer fazem parte da sociedade, que não encontram aí a sua satisfação razoável, o reconhecimento de seu valor infinito, e que não o encontram aí porque não o podem encontrar aí razoavelmente? (WEIL, 2011, p. 104)
Assim como o Estado, a sociedade do trabalho segue em princípio os mecanismos naturais. Por isso, o trabalho se torna cada vez mais mecânico e a máquina passa até a ameaçar o sentido libertador e realizador do trabalho humano: “a máquina toma o lugar do homem, e o homem se encontra em face de um modo de vida que tem para ele os caracteres de uma “necessidade” e até de uma necessidade total: o contrário da liberdade” (WEIL, 2011, p. 107). Percebe-se, assim, que a libertação das necessidades naturais através do trabalho é apenas formal. Na prática, o trabalho acaba por criar a dependência da maioria dos homens para com uma minoria que detém os meios de produção e a maior parte das riquezas. Por isso, a sociedade moderna termina por gerar uma massa, uma plebe insatisfeita, capaz de negar a própria razoabilidade do Estado. Com isso, o dever ser, antes restrito às relações internacionais, acaba dominando também a política interna dos Estados nacionais. Diz Hegel no § 303 da Filosofia do Direito: “no Estado nenhum momento deve mostrar-se como multidão desorganizada”. (cf. WEIL, 2011, p. 108; HEGEL, 1996, § 303, p. 512-515). Para Weil: O deve é, de fato, de sublinhar: pois não é perfeitamente inaceitável do ponto de vista hegeliano que um dever apareça no plano do Estado? Este não é precisamente a organização real da liberdade, a realidade da razão que ultrapassou a moral com suas regras que podem ser seguidas ou não? A simples palavra deve parece indicar que o Estado não é tão perfeito quando deveria ser: que, se ele não está organizado totalmente, em outras palavras, se ainda há indivíduos que não passam de multidão e massa inorgânica, o Estado, nesta medida, não está realizado. (WEIL, 2011, p. 108-109)
O que preocupa Hegel é justamente o aparecimento dessa multidão, desse populacho, dessa massa não satisfeita. Esta se opõe não apenas às questões particulares não resolvidas administrativamente pelo Estado, mas ao próprio fundamento do Estado. O problema é que a sociedade não percebe a produção dessa insatisfação e que é ela mesma a causa do populacho ou da plebe insatisfeita. Mais ainda: ela tampouco pode ou deseja resolver o problema. Com efeito, a sociedade não vai além da boa vontade ou da simples caridade. Ela adverte sobre o perigo, mas como é apenas sociedade, não é capaz de resolvê-lo. E o que é pior: procura colocar o Estado ao seu serviço, reduzindo-o à racionalidade violenta do seu mecanismo natural. Por isso, o Estado deve intervir na sociedade econômica. Tal intervenção é requerida por duas razões: Primeira, as relações econômicas internacionais e a dependência de uma economia nacional com respeito à economia internacional constituem problemas de uma dificuldade e de uma complexidade tais, que o egoísmo dos particulares não é suficiente para compreendê-las nem para resolvê-las; mas, sobretudo (...) o governo não pode confiar no mecanismo econômico para resolver a crise econômica; a necessidade inconsciente (e o termo designa em Hegel a natureza: as leis da economia agem sobre o indivíduo à maneira das leis naturais) deve ser vencida pela razão em vista da (e pela) ação livre e consciente. A economia é subordinada ao Estado, e faz-se necessária uma política econômica. (WEIL, 2011, p. 109-110)
O Estado, portanto, deve intervir na economia. Todavia, infelizmente, ele não consegue sobrepor-se ao poder econômico:
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Ele deve ser moral no jogo de forças internacionais; deve propiciar a todos satisfação no reconhecimento, na segurança, na honra; ele deve: portanto, não o faz. Não se realizou a reconciliação entre as nações, nem no interior dos Estados; tanto no interior como no exterior, o estado de natureza, o estado de violência dominam, e o Estado nacional e soberano é incapaz de resolver os problemas da humanidade, assim como não consegue resolver os problemas dos homens. O Estado, que deve ser mais forte que a sociedade, é mais fraco que ela, o conceito de homem não se impôs no lugar da representação do homem, e a liberdade não venceu a necessidade. (WEIL, 2011, p. 117)
Temos aqui, então, o fim do Estado nacional moderno, compreendido por Hegel através da forma do Estado prussiano. No final de Hegel e o Estado, Weil cita a metáfora do voo noturno da coruja de minerva, com a qual Hegel termina o Prefácio da Filosofia do Direito. A filosofia alcança o mundo sempre muito tarde. Enquanto é o pensamento que pensa o mundo, ela se manifesta no tempo somente depois que a Realidade completou o próprio processo de formação. Quando a filosofia chega ao conhecimento do mundo, uma forma de vida envelheceu. O Estado nacional moderno, compreendido por Hegel, morreu, justamente porque foi compreendido. O que será o Estado futuro, a filosofia ainda não sabe. O que se sabe é que ele virá através da morte do Estado moderno. Ele não é o Estado atual, mas se realizará através dele. Explicita Weil: Uma nova forma se anuncia. O que será ela, isso não cabe à filosofia dizer. A constituição real do Estado moderno, essa constituição que todos os documentos legais pressupõe e, no melhor dos casos, não fazem senão formular, é doentia. A cura virá, ela virá pela realização consciente da liberdade razoável, talvez por obra de um herói, de um grande homem, certamente através de guerras, graças à obra das paixões. (...) Ela virá também pelo Estado, pelo Estado enfim realizado, não no Estado atual, mas através dele; pois, conquanto seja insuficiente, ele é e permanece a verdade da época. Não é a anarquia que tirará a humanidade de seu conflito e seus conflitos: este Estado desaparecerá, mas desaparecerá como tudo o que teve um valor positivo, real, pela sublimação que salvará tudo o que nele é (e sempre terá sido) razoável. (WEIL, 2011, p. 118)
O Espírito trabalha no “subterrâneo”, como uma “toupeira”, dentro das estruturas doentes do Estado moderno, para produzir o novo Estado. É através da compreensão do Estado moderno que o Espírito poderá alienar-se de si mesmo para se apreender em uma nova forma, ainda não compreendida pela filosofia, mas que certamente está próxima de ser concretizada. No artigo Hegel e o conceito de revolução de 1970, Weil retoma a metáfora do voo da coruja e lhe dá um importante complemento: é verdade que a coruja de Minerva alça seu voo ao entardecer, mas, justamente porque a coruja representa a razão filosófica, ela pode revelar o sentido do passado e iluminar o futuro, embora isso não nos permita nem prevê-lo, nem construi-lo, nem predeterminá-lo: “ela indica a problemática, aquela do presente, deste presente que quer e que, próprio porque quer, projeta-se adiante”. (1982, p. 129) Diante disso, podemos perguntar: qual a ideia que podemos ter do Estado futuro, que deverá nascer, por obra do Espírito, das cinzas do Estado moderno? Para ilustrar a ideia desse Estado através do próprio texto de Hegel, Weil cita a Filosofia da História Universal: Os Estados visam à independência, e reside nisso a sua honra (...). Mas a independência também deve ser vista como um princípio puramente formal (...). Cada vez que um Estado foi englobado em outro, ele não perdeu senão a independência formal, mas (sem perder) sua religião, nem suas leis, nem o (conteúdo) concreto de sua vida. (...). A direção dos Estados vai, pois, para sua unidade’, uma unidade que não é dominação, uma hegemonia no sentido grego da palavra: ‘aqui o hegemônico é o Espírito’. (WEIL, 2011, p. 119)
Em sua Filosofia Política, Weil diz que o Estado futuro poderá assumir a forma de uma comuna ou Polis (1990, p. 336). Lembramos que a “Polis antiga é uma comunidade que tinha
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uma tal coesão social que podia ser considerada Estado no sentido moderno do termo. A comuna é um espaço político privilegiado que se constitui na baixa Idade Média, quando os habitantes dos burgos se libertaram do senhor e decidiram se administrar de maneira autônoma” (ROBINET, 1989, p. 80; COSTESKI, 2009, p. 279.). O Estado futuro será autônomo e independente, mas não absolutamente. Deverá prestar contas à sociedade particular e mundial. A sociedade já está globalizada economicamente e, em partes, culturalmente, inclusive. Não se pode ignorar isso. Seguramente, o Estado futuro deverá resolver os problemas que o Estado nacional moderno não resolveu, tanto do ponto de vista externo quanto interno. Uma atenção especial deverá ser dada às relações internacionais, ao tema das particularidades culturais e religiosas e, enfim, ao problema da globalização econômica. É verdade que o Estado hegeliano precisa de um povo, de uma particularidade para se concretizar na história. Mas isso não significa que o Estado futuro deverá ter a mesma ideia de soberania do Estado nacional atual. O Estado nacional, com a sua ideia de soberania territorial absoluta, chegou ao fim: “o fato de que o filósofo compreende o Estado nacional em sua verdade, prova que ele representa uma forma que está prestes a desaparecer. Isso que o seguirá, o filósofo não sabe nada. Basta ele indicar qual será o problema real, a contradição não reconciliada, que o novo Estado deverá resolver” (WEIL, 1999, p. 160). Mas que contradição seria essa? Em nossa opinião, trata-se aqui da relação da particularidade com a universalidade. Os cidadãos querem tanto possuir uma cultura própria, sentir-se seguro e protegido como, também, usufruir dos benefícios da sociedade mundial. E isso nem sempre é bem entendido pela população. Nenhuma economia, nenhuma moral, nenhuma religião, arte ou ciência pode se desenvolver de forma isolada. Elas devem participar da discussão global, se quiserem se manter vivas. O Estado futuro deverá levar isso em consideração (Cf. WEIL, 1990, 336-339). Repetimos: não se conhece ainda exatamente o conteúdo do Estado futuro. Sabemos apenas que a sua manifestação é eminente. Conclui Weil: A prova de que a hora está próxima, de que o nascimento da nova forma é eminente? Sim, ei-la: a velha forma é ultrapassada – porque ela é compreendida, porque ela podia ser compreendida, porque ela deu tudo o que podia dar. O Estado hegeliano morre: a prova disso é que a filosofia hegeliana do Estado foi possível. Porque esta forma se concluiu, porque penetrou a realidade, ela deve ceder o lugar, e o Espírito, em seu trabalho inconsciente e subterrâneo, tende para uma nova Wirklichkeit. (2011, p. 120-121)
Referências Bibliográficas ABBAGNANO, N. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007. COSTESKI, E. Atitude, Violência e Estado Mundial Democrático. Sobre a Filosofia de Eric Weil. São Leopoldo/Fortaleza: Unisinos/UFC, 2009. HAYM, R. Hegel et son Temps. Leçons sur la genèse et le développement, la nature et la valeur de la philosophiei hégélienne. Paris: Paris: Gallimard, 2008. HEGEL, G. W. F. Lineamenti di Filosofia del Diritto. Edição bilíngue Alemão/Italiano. Milão: Rusconi, 1996. RITTER, J. Hegel et la Revolution Française. Paris: Beauchesne, 1970. ROBINET, J. F. O Estado mundial na Filosofia Política de Eric Weil. In: Síntese Nova Fase, v. 46, 1989, p. 71-81.
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ROSENZWEIG, F. Hegel e o Estado. São Paulo: Perspectiva, 2008. SOARES, D. B. A questão do Estatismo hegeliano segundo Eric Weil. In: Griot – Revista de Filosofia, v.7, n.1, 2013, p. 92-102. WEIL, E. Hegel e o Estado. Cinco conferências seguidas de Marx e a Filosofia Direito. São Paulo: É Realizações, 2011. _______. Filosofia Política. São Paulo: Loyola, 1990. _______. Essai sur la Nature. L´Histoire et la Politique. Lille: Presses Universitaires du Septentrion, 1999. _______. Hegel et le concept de la Révolution. In: Derniers Essais et Conférences. Paris: Beauchesne, 1982.
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Cap. 8
A Representação Política na Filosofia do Direito de Hegel Francisco Pereira de Sousa
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A Representação Política na Filosofia do Direito de Hegel Francisco Pereira de Sousa59
Introdução Procuramos analisar como – nos Princípios da Filosofia do Direito de 1821 – a representação política, na ideia de Estado hegeliano, é estabelecida como conditio sine qua non de realização concreta da liberdade individual no interior da vida ética (Sittlichkeit). Como se sabe, Hegel foi o último grande filósofo sistemático. A filosofia é, para ele, a exposição da totalidade numa ordem dialética das partes: ela tem como fim apreender o real na sua totalidade, o sentido radical da realidade, de sua inteligibilidade. O resultado da universalidade dessa totalidade e a necessidade dessa ordem só podem ser expressas, segundo Hegel, por meio do conceito60. A efetividade que o conceito expressa é a Ideia61. A filosofia de Hegel procura, como momento de chegada das filosofias precedentes, ser uma reflexão necessária – como resultado lógico – dos problemas e soluções propostas por estas filosofias que, para ele, não passam de uma única filosofia nas suas diferenças. Embora seja cada uma filha do seu próprio tempo, expressões da ideia na história, mostram a presença de uma só filosofia, de modo que a filosofia mais recente (a de Hegel) é o resultado de todas as que a precederam. A filosofia, para Hegel, deve buscar a racionalidade do real, mesmo que este mostre formas de irracionalidade. Cabe à filosofia mostrar o sentido e a razão presente nas coisas e na história. A história se mostra, para Hegel, como o vir a ser da Ideia da liberdade: a história é essencialmente história política, tem como critério principal para a descrição do desenvolvimento histórico a passagem de uma forma de governo para outra. Para ele, o sujeito da vida política é o povo com sua história viva. O indivíduo só se realiza enquanto é membro de uma comunidade política; é aí somente que ele toma consciência de si enquanto sujeito humano que pode efetivar suas potencialidades. A realização da liberdade, portanto, nesta concepção, passa necessariamente pelo âmbito da comunidade política e somente aí tem sua legitimidade e o seu direito. Para Hegel, não é possível falar em direito baseando-se apenas na natureza, como fazem os jusnaturalistas, porque no estado de natureza os indivíduos não conhecem nem direitos nem deveres. Para ele, o direito só se afirma no terreno da comunidade política e, portanto, da cultura. Toda legitimação
59. Graduado em Direito e Filosofia. Mestre e Doutor em Filosofia Política. Professor Adjunto da UFAL. E-mail: sousafranciscopereira@gmail.com. 60. O conceito é, para Hegel, o modo pelo qual o real efetivo se expressa no pensamento, ou seja, é o modo em que o ser se perfaz e se revela no pensar, é a expressão da inteligibilidade dialética de toda e qualquer realidade dotada de sentido. 61. A união do conceito e da realidade efetiva Hegel denomina de Ideia: “A unidade da existência e do conceito... é a ideia.” (HEGEL, 1988, Adendo ao § 1, p. 55)
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e direito advém do reconhecimento entre indivíduos em sociedade. A ideia de direito requer a presença de vontades livres e iguais. Do Estado de natureza, diz Hegel, o único que se pode dizer é que dele se deve sair. Hegel, ao se posicionar contra o jusnaturalismo, não pretende destruí-lo, mas realizá-lo (cf. BOBBIO, 1989, p. 23), por meio da recuperação da racionalidade da vida social no Estado: no entanto, enquanto o jusnaturalismo procura uma justificação acima da história, Hegel procura buscar a racionalidade objetivamente presente nas próprias instituições históricas, dentro da própria história. Hegel rejeita a ideia do contrato social devido à sua inconsistência racional, já que a categoria do contrato só é válida no âmbito do direito privado. O direito público está inserido na “totalidade ética”. O Estado é uma totalidade ética real, um movimento vivo da história universal, e não uma construção hipotética, imaginária do entendimento (cf. HEGEL, 1988, p. 36). O Estado é, para Hegel, a efetivação máxima da esfera cultural denominada por Hegel de Espírito Objetivo (cf. HARTMANN, 1983, p. 584), a racionalização da totalidade ética de um povo, a realização da vontade racional na concretude de um povo. Sendo assim, não se pode falar em direitos, nem em liberdade efetiva, sendo estes pré-existentes ao direito do Estado. A Filosofia do Direito de Hegel expõe o processo de figuração do indivíduo enquanto portador de direitos (pessoa), enquanto indivíduo que se autodetermina livremente em sua subjetividade moral (sujeito), e enquanto membro de uma comunidade (Família, Sociedade Civil e Estado). O Estado é posto como a fase derradeira de um processo lógico que tem início na comunidade familiar e decorre das insuficiências da estrutura desta comunidade (onde a integração é feita pelo amor) em organizar a vida societária. Da insuficiência da Família decorre a organização denominada Sociedade Civil, onde seus momentos se qualificam pelos seus interesses particulares. A Sociedade Civil, por si mesma, não é – segundo Hegel – capaz de organizar os interesses antagônicos e integrá-los numa universalidade orgânica, já que os seus interesses são atomizados. O Estado é visto como uma necessidade lógica: é o único capaz de organizar e integrar racionalmente os interesses universais da particularidade. Para Hegel, o Estado ético é um todo orgânico. Nele, o indivíduo é membro autônomo a quem se reconhece universalmente direitos. Cada indivíduo, membro do Estado, reconhece a todos e é por todos reconhecido nos seus direitos. Família e Sociedade Civil estão integradas no Estado racional, que é visto como o conceito que conserva e supera as diferenças; ou seja, o Estado não é visto, por Hegel, como uma ordem estranha à Família e à Sociedade Civil, mas como uma unidade superior onde essas diferenças são conservadas. Nele, expressa-se a liberdade concreta do indivíduo. O Estado é, segundo Hegel, o lugar da necessidade e da liberdade. A liberdade individual só se realiza por meio do Estado; é por seu meio que a liberdade individual se torna ordem universal numa constituição livremente sancionada pela nação. Assim, o indivíduo toma consciência da sua liberdade e esta é elevada ao plano da efetividade, surgindo como direito do sujeito no momento em que é universalizada pela constituição do Estado, tornada positiva pela vontade universal dos cidadãos, por meio da representação política (cf. SOUSA, 2003). Através da representação política, os indivíduos expressam a sua liberdade e vontade no interior de uma comunidade política da dimensão de um Estado. Hegel, embora critique a democracia liberal, realiza racionalmente o que ela se propõe, mas não consegue fazê-lo. Para Hegel, não basta que o Estado deixe que os indivíduos (isolados e sem nenhuma ligação real com o corpo político) tenham o direito de se expressar; é mister que os diversos interesses individuais sejam estruturados racionalmente, de modo que manifestem as reais necessidades da sociedade.
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A representação política na filosofia do direito de Hegel coloca em evidência o papel do cidadão e do livre exercício da cidadania. Sem cidadania não há possibilidade de desenvolvimento das potencialidades humanas, não sendo possível o progresso material e espiritual da sociedade, nem a possibilidade de harmonização dos seus interesses, implicando na própria supressão do Estado de direito (Estado constitucional) e da liberdade individual. A representação política, como mediação e pressuposto para o livre exercício da cidadania, constitui-se pois em um fundamento imprescindível para que os interesses individuais se efetuem em consonância com os da totalidade.
1. O estado constitucional e a representação política: a realização da liberdade concreta A vontade livre é, segundo Hegel, o princípio de desenvolvimento do mundo propriamente humano: o mundo ético ou mundo da liberdade. Para ele, a vontade que é verdadeiramente livre só se realiza pondo-se na existência como mundo ético. As organizações societárias da Família, Sociedade Civil e Estado procuram resolver o problema da realização da liberdade no interior da vida ética. A realização da liberdade no âmbito da Família e da Sociedade Civil é incompleta, carecendo da organização política da sociedade: o Estado. Para Hegel, é somente no Estado que o indivíduo poderá verdadeiramente realizar a sua liberdade: só numa sociedade organizada duravelmente como Estado o indivíduo conquista sua liberdade, e que esta liberdade só é conseguida por meio da mediação da representação política, que realiza verdadeiramente a integração racional do indivíduo com a ordem pública objetiva. Na sua teoria do Estado, Hegel procura afirmar, simultaneamente, tanto a totalidade substancial do Estado como as liberdades individuais: O Estado é a realidade efetiva da liberdade concreta. Por sua parte, a liberdade concreta consiste em que a individualidade pessoal e seus interesses particulares, por um lado, tenham seu total desenvolvimento e o reconhecimento de seu direito (no sistema da Família e da Sociedade Civil), e por outro se convertam por si mesmos no interesse do universal, ao que reconheçam com seu saber e sua vontade como seu próprio espírito substancial e tomem como fim último de sua atividade. Desse modo, o universal não se cumpre nem tem validez sem o interesse, o saber e o querer particular, nem o indivíduo vive meramente para estes últimos como uma pessoa privada, sem querer ao mesmo tempo o universal e ter uma atividade consciente desta finalidade. O princípio dos Estados modernos tem a enorme força e profundidade de deixar que o princípio da subjetividade se consuma até chegar ao extremo independente da particularidade pessoal, para ao mesmo tempo reconduzi-lo a sua unidade substancial, conservando assim a esta naquele mesmo princípio. (HEGEL, 1988, § 260, p. 325-6)
Segundo a concepção hegeliana de Estado, não há contradição entre o poder do Estado e a afirmação da liberdade dos cidadãos. Hegel, em contraposição a um tipo de liberdade parcial e abstrata, concebe a liberdade (“concreta”) como uma determinação universal e positiva. Trata-se, portanto, de uma determinação não individual, mas coletiva, só alcançada pela mediação das diversas esferas sociais que, partindo do arbítrio particular de cada indivíduo, eleva-se gradualmente ao universal. A Família e as corporações são, para Hegel, escolas de cidadania, mediações entre a vontade individual e a vontade substancial. Contudo, só enquanto cidadão de um Estado a liberdade da vontade torna-se concreta, porque é determinada por uma instância absolutamente universal: a Lei do Estado. O indivíduo, segundo Hegel, só é livre no Estado, porque é por ele que as determinações da vontade individual, elevadas ao universal, podem ser realizadas efetivamente. Por isso, o Estado não pode ser algo estranho ao indivíduo, já que o indivíduo só tem consciência da sua
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liberdade por meio dele. A essência do Estado encontra-se no fato de que nele “o universal está unido com a completa liberdade da particularidade e com a prosperidade dos indivíduos, que o interesse da Família e da Sociedade Civil deve concentrar-se, portanto, no Estado, e que a universalidade do fim não deve progredir, portanto, sem o saber e querer próprio da particularidade, que tem que conservar seu direito. O universal tem, pois, que ser ativo; porém, por outro lado a subjetividade deve desenvolver-se de forma completa e vivente. Só se ambos os momentos se afirmam em sua força, pode considerar-se que o Estado está articulado e verdadeiramente organizado” (HEGEL, 1988, adendo ao § 260, p. 326). A força do Estado está nesta articulação orgânica entre o todo e as suas partes (“membros”). Nem o Estado atua despoticamente, fazendo valer o seu interesse unilateral contra as vontades particulares, nem os indivíduos atuam somente como partes inorgânicas, com interesses atomizados em contraposição ao governo. No Estado, o interesse privado, embora conservado, é superado, já que sua função é fazer valer o interesse geral. A “liberdade concreta” (universal e positiva) só é possível, para Hegel, com essa identidade entre a vontade pessoal e a ordem pública e objetiva, ou seja, só é possível a realização da liberdade no seio da vida ética (eticidade) quando o indivíduo tem a garantia de que seu interesse pessoal se faz presente nas decisões das instituições públicas. A preservação desta unidade se encontra, segundo Hegel, na mútua determinação do alcance objetivo entre direitos e deveres. Esta mútua determinação é condição sine quan non para a constituição do poder político do Estado. A realização concreta da liberdade é o resultado tanto da responsabilidade pessoal (no cumprimento dos seus deveres para com o Estado) como do poder político (no respeito dos direitos dos cidadãos), sendo que as obrigações individuais para com o Estado se reduzem apenas àquelas estruturas sociais determinadas pelo direito, ou seja, se reduzem apenas àquelas obrigações que dizem respeito às estruturas e deveres jurídicos. Ao cumprir com seu dever, o indivíduo deve encontrar ao mesmo tempo, de alguma maneira, seu próprio interesse, sua satisfação e seu proveito, e de sua situação no Estado deve nascer o direito de que a coisa pública venha a ser sua própria coisa particular. (...) O indivíduo que se subordina a seus deveres encontra em seu cumprimento como cidadão a proteção de sua pessoa e propriedade, a consideração de seu bem-estar particular e a satisfação de sua essência substancial, a consciência e o orgulho de ser membro desta totalidade. No cumprimento dos deveres, na forma de prestações e serviços para o Estado, tem o indivíduo sua conservação e sua existência. Segundo o aspecto abstrato, o único interesse do universal seria que as prestações e os serviços que exige sejam cumpridos como deveres. (HEGEL, 1988, obs. ao § 261, p. 328)
Os interesses e bem-estar privados têm como condição essencial para sua existência esta unidade entre a universalidade e a particularidade. Sem o Estado, é impossível que as determinações da vontade individual possuam uma existência objetiva. O Estado, sem a participação concreta dos indivíduos nas deliberações que é do interesse de todos não passa, para Hegel, de um universal abstrato, “assentado sobre cimentos pouco sólidos” (HEGEL, 1988, § 365, p. 331). Enquanto algo ético, o Estado implica nesta compenetração do substancial com o particular, de modo que a obrigação do indivíduo a respeito do substancial seja, ao mesmo tempo, a existência da sua liberdade particular. Desse modo, dever e direito estão unidos numa única e mesma relação. O Estado só é esta unidade viva quando, no seu interior, Família e Sociedade Civil se encontram desenvolvidas e orientadas para este seu fundamento último, que constitui o saber e a vontade, a consciência e o querer do que é substancial e fim universal. Os indivíduos só alcançam seus direitos se existem como pessoas privadas (bourgeois) e como pessoas substanciais (citoyen). Esta primeira determinação realiza-se por meio das esferas da Família e Sociedade
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Civil; a segunda, por meio das instituições do Estado e das corporações, ao proporcionar-lhes uma tarefa e atividade dirigidas a um fim universal. Por meio das instituições existentes no Estado, o indivíduo adquire o sentimento político do patriotismo62. Estas instituições são “os pilares da liberdade pública, pois nelas se realiza e alcança um caráter racional a liberdade particular, com o que tem lugar em si a união de liberdade e necessidade” (HEGEL, 1988, § 265, p. 331). O patriotismo proporciona a certeza e a confiança de conservação do interesse particular no universal. Este sentimento político objetiva a liberdade nas instituições estatais, reconciliando direito e moralidade em forma de subjetividade ética substancial. As instituições do Estado reconduzem o movimento desenfreado e irracional da Sociedade Civil ao plano da racionalidade e aos fins universais e substanciais, e proporcionam aos indivíduos a confiança e disposição para atuarem de acordo com os fins éticos da universalidade substancial do Estado. É por meio dessas instituições que a Sociedade Civil deixa de ser apenas o campo de batalha dos interesses privados e aparece como algo ético. Veremos, na próxima subseção, que essas instituições do Estado e a sua articulação orgânica proporcionam aos indivíduos a efetiva realização da sua liberdade. A elevação do interesse da particularidade ao nível da universalidade só se dará pela mediação da representação política, que, segundo Hegel, deve ser a expressão dos diferentes âmbitos da sociedade, dos diversos interesses comunitários. Essa representação só é eficaz, para Hegel, se a sociedade e o Estado estiverem articulados organicamente.
2. Atomização e Organicidade do Estado: Rousseau versus Hegel Organicidade e atomização são termos contrapostos por Hegel. É a partir da crítica de Hegel ao contratualismo rousseauniano (que procura fundar a existência do todo social no consentimento dos indivíduos atomizados) que procuraremos mostrar, nesta subseção, a necessidade da organicidade do Estado para a questão da representação política em Hegel. Como veremos, a representação política não deve levar em consideração os indivíduos com seus interesses atomizados e relacionados diretamente com a universalidade do Estado, como faz Rousseau. A representação, para Hegel, deve considerar a organização política a partir dos seus interesses comunitários. O Estado, segundo Hegel, não pode justificar-se ou fundamentar-se por meio de relações contratuais (cf. HEGEL, 1988, § 258, p. 319-320). O Estado não resulta do livre-arbítrio dos indivíduos, como ocorre nas relações de contrato. Ele é necessário e autônomo, fruto do desenvolvimento do Espírito na história. “O Estado é o mundo que se tem dado o Espírito” (Ibid., § 272, p. 352). Rousseau – segundo Hegel, embora tenha estabelecido corretamente como princípio do Estado a vontade – erra ao “ter apreendido a vontade só na forma determinada de vontade individual (tal como posteriormente Fichte), enquanto que a vontade geral não era concebida como o em si e por si racional da vontade, mas como o comum, que surge daquela vontade individual enquanto consciente. A união dos indivíduos no Estado se transforma, assim, em um contrato que tem, portanto, como base sua vontade particular, sua opinião e seu consentimento expresso e arbitrário” (Ibidem, obs. § 258, p. 320).
62. Por patriotismo, Hegel define: “Essencialmente é (...) a disposição que em circunstâncias e situações normais chega a considerar a coisa pública como fim e fundamento substancial” (HEGEL, 1988, obs. ao § 268, p. 332).
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Rousseau, segundo Hegel, não consegue dar um conteúdo substancial ao elemento corretamente escolhido por ele como princípio do Estado (a vontade), porque a oposição entre particular e universal permanece insuperável na construção do conceito de Estado rousseauniano. A concepção contratualista rousseauniana é incapaz de dar um conteúdo concreto a seu conceito, já que relaciona a liberdade política ao ato de decisão da vontade individual. Ela se firma, portanto, na abstração, já que procura fundar a existência do todo social no consentimento dos indivíduos atomizados. No Estado, a relação do indivíduo com a coletividade é diferente das formas anteriores da eticidade. Não se trata de tomar a vontade particular, sua opinião e seu consentimento expresso e arbitrário como fim último, mas a própria vontade substancial e concreta do universal enquanto tal. Segundo Hegel, Rousseau erra ao estabelecer o contrato como princípio do Estado, pois coloca o Estado sobre o terreno do direito privado. Ao relacionar a Ideia de Estado a um contrato ocorrido entre indivíduos – à sua vontade individual arbitrária – priva-se o Estado de sua autonomia e necessidade. Contra o princípio da vontade individual, há que recordar que a vontade objetiva é em seu conceito o em si racional, seja ou não reconhecida pelo indivíduo e querida por seu arbítrio particular. Seu oposto, o saber e o querer, a subjetividade da liberdade, que naquele princípio é o único que quer ser mantido, contém só um momento, portanto unilateral, da ideia da vontade racional, que só é tal se é em si ao mesmo tempo que por si. (Ibidem, obs. § 258, p. 320)
Fazendo-se do interesse do indivíduo, da sua vontade particular arbitrária o conteúdo do Estado, confunde-se o Estado com a Sociedade Civil. A função do Estado não é, segundo Hegel, apenas de assegurar e proteger a propriedade e a liberdade pessoais – esta já é uma tarefa da Sociedade Civil. Para Hegel, o indivíduo não escolhe se participa ou não do Estado por meio de um contrato. O Estado não é criado a partir da livre decisão dos agregados. Na verdade, o indivíduo já é constituído por ele. O Estado não é apenas um agregado, um somatório de vontades arbitrárias. Ele é a totalidade orgânica de um povo. A união com o Estado não ocorre, portanto, por conta do arbítrio de cada um. (...) por ser o Estado o espírito objetivo, o indivíduo só tem objetividade, verdade e ética se forma parte dele. A união, como tal, é ela mesma o fim e o conteúdo verdadeiro, e a determinação dos indivíduos é levar uma vida universal. Suas restantes satisfações, atividades e modos de comportarse têm como ponto de partida e resultado este elemento substancial e válido universalmente. A racionalidade, tomada abstratamente, consiste na unidade e compenetração da universalidade e da individualidade. Neste caso concreto é, segundo seu conteúdo, a unidade da liberdade objetiva, ou seja, o saber individual e a vontade que busca seus fins particulares. Segundo sua forma é, portanto, um agir que se determina de acordo com leis e princípios pensados, quer dizer, universais. (Ibid., obs. § 258, p. 319)
Segundo Hegel, a universalização da vontade particular só acontece por meio de uma representação política da Sociedade Civil. Essa representação não leva em conta os indivíduos com interesses atomizados e relacionados diretamente com a universalidade do Estado, como faz Rousseau. Hegel suspeita desse empirismo da decisão da maioria e contrapõe a ele a organização política da sociedade, a partir dos seus interesses de classes. A recusa de Hegel em relação ao contratualismo tem um viés lógico-sistemático, pois a ideia de contrato não condiz com o conceito de Estado, que tem a sua sustentação no propriamente espiritual (na eticidade); enquanto que o contrato parte do pressuposto não de uma vontade substancial, mas da vontade individual, atomizada e arbitrária, que tem como base a natureza. Na teoria contratualista, são os indivíduos quem decidem – por seu próprio querer – sair do estado de natureza e criar a sociedade política. Para Hegel não. Como já dissemos antes: a ideia
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de contrato, segundo Hegel, não é capaz de fundar o Estado, pois, com ela, o Estado é privado da sua autonomia e necessidade, perante a insegurança do contingente arbítrio privado. A polêmica em relação ao contratualismo, além da sua fundação lógico-sistemática, tem também um fundamento histórico. Além da Filosofia do Direito, nos seus escritos políticos, Hegel, quando ataca o contratualismo, tem como alvo tanto a ideologia feudal como a concepção patrimonial ou privatista do Estado. Na Observação ao § 75 dos Princípios da Filosofia do Direito, ao tratar das relações contratais feitas entre indivíduos – relações, portanto, de direito puramente privado –, Hegel já deixa bem claro que o Estado não pode ter como fundamento o contrato, quer este (...) se considere como um contrato de todos com todos ou de todos com o príncipe ou o governo. A introdução destas relações e em geral das relações da propriedade privada nas questões do Estado provocou as maiores confusões no direito público e na realidade. Assim como em épocas passadas, os direitos e deveres do Estado foram considerados como propriedade privada de indivíduos particulares e reivindicados frente ao direito do príncipe e do Estado; assim, em uma época mais recente, se considerou que os direitos do príncipe e do Estado eram objeto de contrato e estavam fundados nele, que era uma mera comunidade de vontades surgida do arbítrio daqueles que estão unidos em um Estado. Ambos os pontos de vista são muito diferentes, mas têm em comum que transportam a determinação da propriedade privada a uma esfera totalmente diferente e de uma natureza mais elevada. (Ibid., obs. § 75, p. 140-1)
O contrato, para Hegel, não serve como modelo de renovação político-constitucional, pois eleva a um plano de natureza superior – o da eticidade – a determinação da propriedade privada, de natureza inferior (direito abstrato). As relações no Estado não podem ser estabelecidas como se fossem relações de direito privado, tal como ocorriam no período feudal. O Estado pós-revolucionário não comporta, no seu conceito, tais determinações. “O grande progresso do Estado na época moderna consiste em que é em e por si mesmo fim, e seus integrantes não devem conduzir-se em relação com ele de acordo com estipulações privadas, como ocorria na Idade Média” (Ibid., adendo ao § 75, p. 141). Hegel, como vimos, não quer negar – com suas críticas ao contratualismo – os direitos ou vontades individuais, mas, apenas afirmar a inadequação do contrato nas relações de direito público. A liberdade da pessoa é um direito inalienável e imprescritível segundo ele (Cf. Ibid., § 66 e obs., p. 130-1), e qualquer contrato ou direito positivo que viole as liberdades fundamentais da pessoa é injusto, ou melhor, é um não-direito. Para Hegel, os direitos não são sancionados por contrato, mas o resultado de um longo e penoso processo histórico.
3. A Organicidade como Estrutura do Estado: a Constituição A noção de contrato é, portanto, inadequada para as relações de direito público, porque coloca como base para a união dos indivíduos no Estado a sua vontade particular contingente. A representação política das reais necessidades e interesses da vontade individual requer uma estruturação orgânica dos interesses civis. Essa estruturação e organização é obtida apenas por meio do Estado, onde esses interesses são elevados ao âmbito da universalidade, isto é, são transformados em Lei. Na Lei suprema do Estado (a Constituição), a vontade particular individual é elevada, por meio da representação política, ao âmbito da mais absoluta universalidade. O Estado hegeliano é um Estado Constitucional, e tem como fundamento a “força da razão que se realiza como vontade” (Ibid., adendo § 258, p. 323-4). É, portanto, na força da razão e não
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na “contingente força natural” que este Estado, idealizado por Hegel, se fundamenta. As ações do Estado não podem estar à mercê do arbítrio subjetivo. O Estado só é racional, para Hegel, quando a sua ação é “realizada de acordo com uma vontade comum e adotando os objetivos universais” (HEGEL, 1990, p. 88). O poder deste Estado está na sua racionalidade, estabelecida pela “vontade comum” em forma de “princípios universais”. Estes princípios ou “disposições racionais e universais” do Estado são as suas leis, estabelecidas pela Constituição. A unidade concreta da vontade particular e da vontade universal devem estar compostas organicamente na Constituição do Estado. A Constituição, cabe explicar, deve ser a expressão viva do espírito do povo e da sua liberdade. Por meio dela, são estabelecidos a organização e o processo de funcionamento do Estado (cf. HEGEL, 1988, § 271, p. 349). Para Hegel, o Estado só é racional quando sua estrutura e funcionamento, garantidos pela Constituição, articulam os poderes do Estado numa totalidade única e orgânica (cf. Id., § 272, p. 350). É a Constituição que estabelece e organiza o funcionamento do Estado. Para Hegel, todas as formações políticas têm uma Constituição, escrita ou não. E, sendo assim, o problema de “quem deve fazer a Constituição?” (Ibid., obs. § 273, p. 357) não tem, portanto, lógica. A questão aqui já pressupõe a existência de uma Constituição. Uma boa Constituição, para Hegel, deve expressar o espírito do povo, e se adequar ao “espírito do tempo” (Zeitgeist). Ela é expressão e produção da cultura e da história de um povo. Logo, deve corresponder ao seu desenvolvimento histórico e cultural, refletindo a situação e o direito de cada povo (cf. Ibid., obs. e adendo ao § 274). Sua estrutura essencial é imutável, perpassa os tempos. E toda modificação ou adequação acidental deve respeitar as regras que ela mesma estabelece: “a modificação só pode efetuar-se por um caminho constitucional” (Ibid., obs. § 273, p. 357). É na Constituição, enquanto lei suprema do Estado, que a vontade particular se eleva à universalidade, e é reconhecida por todos os membros da sociedade e do Estado. Na Constituição, o Estado tem seu saber de si mesmo em forma de “disposições racionais universais”. Por meio dela, o Estado é liberdade racional e consciente, que se conhece objetivamente63. Com o estabelecimento da organização e do processo de funcionamento do Estado pela Constituição, e ao criticar o estabelecimento da disposição de ânimo, da excelência moral e qualidades subjetivas como critérios ou princípios para o estabelecimento de uma boa Constituição (HEGEL, 1988, obs. § 273, p. 356), Hegel procura salientar o primado das instituições políticas objetivas – que resguarda a liberdade concreta – sobre a contingente disposição subjetiva – que expressa o capricho ou arbítrio por parte de quem governa. Não basta, portanto, a suposta excelência da personalidade do monarca, suas boas intenções ou virtudes para o estabelecimento de uma organização desenvolvida, racional, que garanta a liberdade dos cidadãos. Hegel denomina despotismo “uma situação em que a lei está ausente e em que a vontade particular como tal, seja a de um monarca ou a de um povo (oclocracia), rege como lei, ou melhor dito, em lugar da lei” (Id., obs. § 278, p. 361). É, portanto, insuficiente a virtude dos chefes de Estado. É mister uma forma da lei racional que seja diferente
63. Para Hegel, uma Constituição livre, no período moderno, só é possível com a ideia de governo representativo. “Os gregos e os romanos compreendiam o conceito de uma constituição livre que concedesse a todos os cidadãos uma participação no conselho e nas decisões das leis e dos negócios comunais. Em nossa época, é também a opinião geral, mas com uma alteração: os nossos Estados são tão grandes e seu povo é tanto, que eles não podem contribuir com a sua vontade para as decisões políticas diretamente, mas só indiretamente, através de representantes. Para a legislação, o povo deve ser representado por deputados” (HEGEL, 1990, p. 98).
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da que é caracterizada apenas pela disposição de ânimo. Em Hegel, o despotismo da vontade particular é substituído pelo Estado de direito ou Estado Constitucional. No Estado de direito ou no Estado constitucional – que é o mesmo para Hegel –, a vida do todo não se apoia simplesmente numa personalidade privilegiada ou no beneplácito de indivíduos singulares. Se assim o fosse, as suas relações internas se fundamentariam apenas na “representação” e “opinião”, e não no plano da racionalidade. Para Hegel, este fundamento racional deve ser encontrado na “objetividade” da lei. Sendo assim, embora os assuntos e atividades do Estado estejam ligados aos indivíduos, estes não estão autorizados a cumprir estas tarefas fazendo valer sua personalidade imediata, particular. Caso os cargos estatais não estejam subordinados apenas à função, mas ao capricho de quem exerce, os assuntos e poderes do Estado estarão, desse modo, sendo tratados como propriedade privada. Os assuntos e atividades particulares do Estado lhe pertencem por serem momentos essenciais seus e estão ligados aos indivíduos que os executam, não por sua personalidade imediata, mas unicamente por suas qualidades gerais e objetivas, e têm, portanto, uma vinculação externa e contingente com a personalidade particular como tal. Os assuntos e poderes do Estado não podem, por conseguinte, ser uma propriedade privada. (HEGEL, 1988, § 277, p. 360)
A ordenação estrutural e o funcionamento institucional da monarquia constitucional, do Estado hegeliano, deixam pouco espaço à particularidade e acidentalidade dos indivíduos que participam do governo. E, mesmo as esferas e assuntos particulares devem estar “determinados pelo fim do todo e dependem dele” (Id., obs. § 278, p. 362). Embora o monarca represente a soberania do Estado, a unidade de todos os outros poderes, sendo desse modo a vontade ou subjetividade que possui o poder último de decisão dentro do Estado, o “eu quero” (Ich will) do monarca não significa a decisão de uma vontade arbitrária que governa isoladamente ou em oposição às vontades particulares. Por meio do “eu quero”, da decisão última do poder do príncipe – momento formal de aprovação pública e oficial de um ato legislativo – se manifesta concretamente a vontade coletiva. O ato do colegiado – sem unidade e definição – é, através do “eu quero” do monarca, tornado público e formal. Para Hegel, não é por meio da população enquanto massa informe que a vontade soberana perfeita, representada no Estado, se realiza. A realização dessa vontade universal exige a unidade do “eu quero”, concebida como vontade ou subjetividade. Conceber, no entanto, a vontade soberana do monarca como pessoa “não quer dizer que o monarca possa atuar arbitrariamente, pois está necessariamente ligado ao conteúdo concreto dos conselhos, e se a constituição é sólida, sua função se reduz com frequência a assentar sua assinatura” (Ibid., adendo § 279, p. 367). No Estado hegeliano, só devem tomar-se no cume decisões formais, e o único que se necessita é um homem que diga ‘sim’ e ponha o ponto sobre o I, pois o cume deve estar constituído de maneira tal que a particularidade do caráter não seja significativa. Más, além desta decisão última, o demais que corresponde ao monarca é algo que pertence à particularidade, da qual não se deve depender. Podem existir, por suposto, circunstâncias em que surge esta particularidade, mas o Estado não é então um Estado perfeitamente desenvolvido e não está bem construído. Em uma monarquia corretamente organizada, o aspecto objetivo corresponde exclusivamente à lei, a qual o monarca só tem que acrescentar o subjetivo ‘eu quero’. (Ibid., adendo § 280, p. 368-9)
A vida orgânica do Estado é assegurada, segundo Hegel, por meio da monarquia hereditária. Sem ela, o Estado perde o seu caráter orgânico e corre o risco de ser rebaixado a fins e propósitos da esfera da particularidade que, dividida em facções na luta pelo trono, leva-o ao debilitamento e destruição do seu poder (Cf. Ibid., cf. § 281, p. 369). Este debilitamento e perda da soberania
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ocorrem, segundo Hegel, quando a vontade particular se converte em fator decisório dentro do Estado. O sufrágio universal é, desse modo, invalidado por Hegel como essencial para uma participação efetiva dos indivíduos no Estado, porque procede do capricho, opinião e arbítrio da multidão, e não é capaz de apreender as necessidades substanciais do todo. De um ponto de vista histórico, Hegel sublinha o papel fundamental que exercem os monarcas na formação do Estado moderno, e das lutas travadas por estes contra a aristocracia feudal. A monarquia eletiva remetia ao poder extraordinário dos barões feudais, dos príncipes regionais da Alemanha. Sua ação paralisava o poder do monarca e fazia do Estado uma máquina em que os interesses particulares impediam o livre funcionamento da totalidade. Ao opor-se ao sistema eleitoral, Hegel quer eliminar a vontade arbitrária da particularidade como fundamento de decisão da vontade substancial do Estado. A determinação orgânica do Estado é, para Hegel, a garantia contra qualquer possível abuso do poder, seja por parte do príncipe ou de qualquer outro poder. Cada indivíduo, neste Estado, deve ter consciência do seu papel. Nele, o indivíduo é membro, e não uma parte separada do todo. E como membro, consciente do seu papel neste todo orgânico, deve atuar como elemento mediador da vida do Estado. A liberdade pública e o caráter hereditário do trono são, segundo Hegel, garantias recíprocas para a preservação dessa unidade orgânica do Estado (cf. Ibid., obs. § 286, p. 374). O cumprimento e aplicação das decisões tomadas pelo príncipe, assim como a manutenção das leis existentes e estabelecimentos de fim comum é tarefa do poder governativo, “no qual estão também compreendidos os poderes judiciário e policial, que se relacionam de modo imediato com o particular da Sociedade Civil e fazem valer, nesses fins particulares, o interesse geral” (Ibid., § 287, p. 375). O governo apenas cumpre o seu dever ao relacionar diretamente as decisões do príncipe – expressão do interesse universal – com a sociedade na sua particularidade. Ao administrar corretamente a coisa pública, nada mais faz que veicular os interesses dos cidadãos, já que as decisões do príncipe nada mais são, para Hegel, do que a expressão dos interesses concretos da Sociedade Civil elevados à universalidade do Estado por meio da representação. Os que se ocupam dos problemas cotidianos do Estado têm como maior dever a realização do universal. A imparcialidade e o respeito quanto aos direitos dos cidadãos são condições fundamentais para a igualdade de todos (igualdade na diferença) e para a realização da justiça. “O indivíduo que está ligado a uma função pública tem como condição da união em que se acha o cumprimento de um dever” (Ibid., § 294, p. 378-9). Para Hegel, é fundamental para a conservação da liberdade particular que o governo respeite a autonomia da sociedade no que concerne à sua livre organização. Este respeito advém da legitimação das esferas particulares da Sociedade Civil que se organizam na defesa dos seus interesses. Segundo Hegel, este “é o segredo do patriotismo dos cidadãos: saber que o Estado é sua própria substância porque conserva suas esferas particulares, sua legitimidade, autoridade e bem-estar” (Ibid., obs. § 289, p. 376). É por meio da organização da sociedade em torno dos seus reais interesses que se fortalece a liberdade. As corporações, comunidades (comunas) são, para Hegel, formas de organização da Sociedade Civil que se encarregam tanto dos interesses do indivíduo como expressam a universalidade dos interesses destes organismos. Por meio deles, o indivíduo pode participar na construção da vontade substancial universal, fazendo valer o seu interesse. É somente por seu meio que o indivíduo pode reconhecer, no Estado, a sua vontade. O
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indivíduo só faz valer sua vontade e liberdade quando se organiza socialmente em torno de interesses concretos. Na articulação orgânica da sociedade, encontram-se a profundidade e a força do Estado. Cabe ao governo, portanto, considerar e promover os direitos universais dessas organizações. O governo se encontra aqui com interesses que devem ser respeitados, e na medida em que a administração só pode promovê-los, mas ao mesmo tempo tem que tê-los necessariamente em conta, o indivíduo encontra o apoio para o exercício de seus direitos, e une assim seu interesse particular à conservação do todo. Desde há algum tempo a organização se efetua desde cima, e esta é a preocupação principal, mas o que está embaixo, o que no todo tem caráter de massa, tem sido facilmente abandonado. É, sem embargo, da maior importância que se torne algo orgânico, pois só assim é força e poder; do contrário, não é mais que uma multidão, uma quantidade de átomos desintegrados. O Poder Legislativo só se encontra na condição orgânica das esferas particulares. (Ibid., adendo § 290, p. 377)
A legitimidade dada aos círculos particulares, às organizações sociais, (comunidade e corporações) evita, juntamente com a autoridade que vem do príncipe, que a classe dos funcionários (o governo) “adote a posição isolada de uma aristocracia e transforme a cultura e a capacidade em meios arbitrários e de dominação” (Ibid., § 297, p. 381). Hegel procura articular os diferentes poderes e organizações sociais de modo que nenhum deles seja um entrave para a realização dos interesses comuns. A organização comunitária da Sociedade Civil por meio das “comunidades e corporações”, legitimadas pelo Estado, são uma garantia contra o livre-arbítrio dos funcionários (governo), e estes, por sua vez, impedem os excessos provocados pelos interesses civis. A autonomia das organizações comunitárias e sua legitimidade no Estado são um contrapeso que freia a intervenção arbitrária por parte dos funcionários e completam de baixo o insuficiente controle exercido de cima na supervisão dos trabalhos da burocracia. Como dissemos, trata-se de uma articulação e reconhecimento mútuo para que seja preservada a organicidade do todo. O fundamental dessa organicidade é que os interesses universais sejam realizados, que a lei seja cumprida, já que a lei expressa a liberdade concreta dos cidadãos. Na lei, a liberdade particular individual encontra-se expressa na forma de universalidade. O cumprimento da lei e do direito da particularidade exige imparcialidade por parte de quem a administra. O atuar segundo o direito depende da vigilância constante da sociedade que, por meio de seus grupos legitimados, supervisiona o governo. “O atuar segundo o direito geral e o costume deste atuar são uma consequência da oposição que fazem os círculos independentes” (Ibid., adendo § 297, p. 381-2). Nesta subseção, procuramos mostrar a importância da estruturação e articulação orgânica entre os poderes do Estado para que a liberdade da totalidade seja mantida. A determinação orgânica do Estado, como afirma Hegel, é uma garantia contra qualquer possível abuso, seja por parte do príncipe ou de qualquer outro poder. É apenas por meio dessa composição racional do Estado que o interesse da totalidade é assegurado. A existência racional da vida ética, a conciliação da vontade particular com a vontade universal só é conseguida por meio desta constituição racional do Estado expressa em forma de Lei, porque é nesta estrutura onde se dá, pela mediação da representação política, a identificação ou integração dos diversos e divergentes interesses da particularidade com os da totalidade.
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4. A Representação Política e a Realização da Liberdade Concreta A liberdade, para Hegel, só se dá com a integração da vontade individual com a vontade universal (vontade expressa na Lei do Estado). A vontade arbitrária não é verdadeiramente livre. É neste sentido que Hegel critica a noção de contrato: as relações contratuais resultam do livre arbítrio dos indivíduos e reduzem o Estado a uma soma de vontades arbitrárias. Para Hegel, o Estado não é resultado da vontade particular atomizada. O Estado é a totalidade orgânica de um povo, cuja organização e funcionamento são estabelecidos pela Constituição, que é a própria expressão dos interesses da vontade geral elevada à universalidade do Estado por meio da representação política. A organização e o funcionamento da vida do todo são estabelecidos na Constituição. Por meio dela, a vontade particular em consciência de que o seu interesse é reconhecido universalmente. É da alçada do poder legislativo as reformas constitucionais e a elaboração de novas leis, adaptando a Constituição64 ao espírito do tempo, e respondendo às exigências e necessidades da Família, Sociedade Civil e do Estado. É por meio do poder legislativo que as diferentes vontades, com seus múltiplos interesses, se integram e se determinam sob uma forma universal. Sendo assim, ele não pode ser apenas uma concentração dispersa de indivíduos, um agregado reunido segundo interesses atomizados. Ele é, assegura Hegel, a expressão concreta dos interesses universais da particularidade, de interesses comunitários (comunidades, corporações). E como a unidade do todo e a conservação da liberdade particular individual só se conseguem por meio de uma articulação entre os poderes, os que compõem o governo devem estar não em oposição, mas em conexão com o Poder Legislativo. É um erro, afirma Hegel, excluir dos corpos legislativos os membros do governo. No poder legislativo como totalidade atuam, antes de tudo, os outros dois momentos: o monárquico, ao que corresponde a decisão suprema, e o poder governativo, enquanto momento consultivo que tem o conhecimento concreto e a visão global do todo em seus múltiplos aspectos, assim como em especial o conhecimento das necessidades do poder político. Por último, participa também dele o elemento constituído pela assembleia dos estamentos. (HEGEL, 1988, § 300, p. 385)
Para Hegel, essa convergência dos poderes – na deliberação política dos assuntos mais importantes da sociedade e do Estado – proporciona um melhor conhecimento da situação concreta e das reais necessidades da totalidade. E já que os poderes do Estado são a representação universal dessa totalidade, é por meio do seu reconhecimento mútuo e da mútua colaboração que se conhece quais são realmente as suas reais necessidades. Desse modo, se preservam a justiça e liberdade no plano da eticidade. Segundo Hegel, é o Poder Governativo, por meio dos seus corpos consultivos superiores – por possuir uma visão mais profunda e abarcadora sobre a natureza das instituições e das necessidades do Estado, assim como uma maior idoneidade e um hábito mais desenvolvido para estes assuntos – quem prepara e apresenta o conteúdo dos assuntos do Estado e as 64. Segundo Salgado (Cf. 1996, p. 415-6), a Constituição, para estar de acordo com a razão, deve ser escrita. Diferentemente da constituição costumeira, que expressa apenas a racionalidade vivida imperfeita e imediata, a Constituição escrita expressa a vontade no pensar, o direito no seu conceito. Tal afirmação, para Salgado, está de acordo com a teoria da lei de Hegel, que mostra como o direito desenvolve o seu conteúdo de racionalidade em formas cada vez maiores; tendo o direito a sua manifestação racional e objetiva na lei, o direito legal no código, e, como momento final de unidade da ordem jurídica, a Constituição escrita.
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disposições legais precisas a partir das necessidades existentes para serem submetidas à apreciação do príncipe. A elaboração desses aspectos objetivos (o conteúdo, circunstâncias e fundamentos legais) é de extrema responsabilidade desses corpos consultivos. Para Hegel, é fundamental que ocorram integração e colaboração entre o governo e a sociedade (Poder Governativo e Poder Legislativo) para que o bem geral e a liberdade pública sejam mantidos. A função do verdadeiro governo não é, salienta Hegel, tornar-se um partido, uma corporação com interesses particularizados, impedindo assim o funcionamento do todo e que o interesse geral, a vontade substancial, se realize. A função do governo, afirma Hegel, é tratar do universal; neste seu dever, ele tem a sua satisfação. “O governo não é um partido que se opõe a outro, de maneira tal que tenham que lutar entre si e tirar vantagens; se um Estado chegasse a esta situação, esta seria desgraçada e não poderia assinalar-se como sã” (Id., adendo § 301, p. 388). O Poder Governativo é, antes de tudo, afirma Hegel, uma garantia para o bem-estar e a liberdade pública, justamente por ter uma melhor visão da totalidade das relações sócio-políticas. Essa garantia adquire maior força por meio do conhecimento que os deputados têm das carências e necessidades da sociedade e da ação dos funcionários do governo, e – por outro lado – por meio da crítica pública: que melhor atenção deve aplicar aos assuntos públicos. Diferentemente da participação atomística dos indivíduos na vida política, que reduz o Estado a um contrato social, na participação orgânica o deputado representa os interesses universais da particularidade do seu grupo social, da sua facção trabalhista, da sua comunidade (comuna). A função da representação dos estamentos é fazer com que “a liberdade formal subjetiva, a consciência pública, chegue à existência como universalidade empírica das opiniões e pensamentos da multidão” (Ibid., § 301, p. 386). A determinação conceitual própria desta representação está “no fato de que, com ela, chega à existência em referência ao Estado o momento subjetivo da liberdade geral, a perspectiva e a vontade particular da ... Sociedade Civil” (Ibid., obs. § 301, p. 387-8). Os estamentos são os verdadeiros mediadores entre o povo e o governo. Por seu meio, a “multidão”, organicamente articulada, faz prevalecer seus interesses de um modo adequado ao direito e à ordem. Sem esta forma de representação, a “multidão” estaria isolada de um lado e o príncipe de outro, e os interesses populares negligenciados. É um perigo e prejuízo, afirma Hegel, compreender os estamentos apenas numa perspectiva de oposição ao governo. Uma oposição substancial levaria o Estado à sua dissolução. Na verdade, a verdadeira função dos estamentos é servir de mediadores entre o povo e o governo. Desse modo, o caráter fenomênico das oposições é rebaixado a uma mera aparência, já que afeta apenas aquilo que é superficial no organismo do Estado. Considerados como um órgão mediador, os estamentos estão entre o governo, por uma parte, e o povo, dissolvidos em suas esferas e indivíduos particulares, por outra. Sua função lhes exige, por conseguinte, ter o sentido e a disposição tanto do Estado e do governo como dos interesses dos círculos particulares e dos indivíduos. Sua posição implica ao mesmo tempo uma mediação, em comum com o poder governamental organizado, que impede que o poder do príncipe apareça como um extremo isolado e portanto como mero poder arbitrário e dominador, e que evita também que se isolem os interesses particulares das comunidades, corporações e indivíduos, ou, mais ainda, que os indivíduos se convertam em uma multidão, em um simples agregado, e portanto em um querer e opinar inorgânico, que se enfrente ao Estado organizado como um poder meramente massivo. (Ibid., § 302, p. 388)
Os estamentos e o governo trabalham juntos quando se trata de exercer a função de mediadores entre a sociedade e o topo do Estado. Por um lado, a representação dos esta-
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mentos veicula os problemas da sociedade, fazendo com que a particularidade se universalize, ou seja, que a vontade particular individual se faça universal; por outro, o governo particulariza o universal, integrando o indivíduo à sua vontade substancial racional. Essa mediação evita o isolamento da sociedade com o topo do Estado, e deste para com esta. A representação de todos os indivíduos membros da sociedade e do Estado (cidadãos) se dá da seguinte forma: a classe universal (funcionários públicos) já participa diretamente dos interesses universais devido à sua dedicação exclusiva ao serviço do Estado. Por meio da representação estamentária, a “classe privada” (classe industrial e classe substancial dos agricultores) alcança sua significação e eficácia políticas. A participação da “classe privada”, ou melhor, dos interesses privados, no Poder Legislativo quando aparece na forma individual, seja pela eleição de representantes para esta função ou inclusive quando cada um tem ali o seu voto, assume a perspectiva atomística e abstrata de uma “multidão inorgânica”. Segundo Hegel, o indivíduo, já na Família, e mesmo na Sociedade Civil (corporações, comunas), é “membro” de um universal. O Estado é, essencialmente, a organização de tais membros. Para Hegel, não é o indivíduo isolado que faz valer o seu interesse privado por meio de um representante que se coloca no seu lugar para defender os seus interesses. Esta representação, que procura dissolver as comunidades já existentes, quando chega ao elemento político, ou seja, ao ponto de vista “da mais elevada universalidade concreta”, separa a vida civil da vida política, deixando esta última no ar, pois tem, na sua base, apenas o indivíduo abstraído dos interesses reais da comunidade, com seu arbítrio e opinião contingentes. No que concerne ao sufrágio universal, acrescenta Hegel: (...) especialmente nos grandes estados, se chega à indiferença a respeito do voto, na medida em que seu efeito é insignificante no conjunto, o qual faz que os sufragantes, por mais elevado que se lhes apresente seu direito, não apareçam no momento de votar. Desta maneira, esta instituição tem como consequência o contrário do que se propunha, e a eleição fica no poder de uns poucos, de um partido, e portanto de um interesse particular e contingente, que é precisamente o que se devia neutralizar. (Ibid., obs. § 311, p. 397)
Para Hegel, a vida política não pode se encontrar dissociada dos reais interesses da sociedade. Sociedade Civil e Estado não se encontram separados, mas integrados por meio da representação estamentária. Quando não se considera a organicidade das relações políticas, não é possível uma identidade entre sociedade e Estado, entre os reais interesses da particularidade com os da universalidade. O Poder Legislativo, para Hegel, deve estar em consonância com a composição da Sociedade Civil. Nele, devem vir à tona todos os grandes e reais interesses da particularidade. Quando este poder aparece na forma “individual”, ou seja, enquanto expressão de interesses atomizados de uma “massa inorgânica”, a Sociedade Civil torna-se um ser exclusivamente particular, uma esfera essencialmente privada, e, desse modo, não é possível haver fins comunitários no seu interior, nem superação dessa atomização no Estado. O bicameralismo articula politicamente os dois grandes estados sociais: o estado industrial e o estado substancial. O estado universal já participa ativamente da coisa pública. A Câmara Alta65, constituída pelos membros do estado substancial, tem – segundo Hegel – o papel de
65. Hegel, ao enraizar “naturalmente” a Câmara Alta, substituindo a eleição pelo nascimento, viola o movimento de figuração da liberdade, que conceitua a eticidade organizada a partir de instituições conscientes de si mesmas, mediadas pela atividade consciente dos seus membros. Essa argumentação obedece, segundo D. Rosenfield, uma preocupação lógica. Na monarquia
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assegurar a vida do Estado, de conservá-la, sendo, ao mesmo tempo, um sustentáculo do trono e da sociedade. A classe dos proprietários exerce, segundo Hegel, uma função eminentemente política – na defesa dos interesses particularistas presentes na Sociedade Civil – ao estabelecer sua representação política por meio da instituição do morgadio. Esta classe, diz Hegel, (...) está constituída especialmente para ter uma posição e uma significação políticas na medida em que seu patrimônio é independente tanto do patrimônio do Estado como da insegurança da indústria, o desejo de ganância e a variabilidade da propriedade. É independente tanto do favor governamental como do da multidão e está inclusive assegurada contra seu próprio arbítrio pelo fato de que os membros desta classe chamados a cumprir esta função não têm o direito dos demais cidadãos de dispor livremente da totalidade de sua propriedade e de transmiti-la a seus filhos de acordo com a igualdade do amor que sentem por estes: o patrimônio é assim um bem hereditário inalienável onerado pelo morgadio. (1988, § 306, p. 391-2)
O primogênito, pela legitimação da instituição do morgadio, está destinado, pelo nascimento, a cuidar dos interesses públicos. A legitimação do morgadio faz com que este não disponha livremente da propriedade da terra, já que – obrigatoriamente – ela passará para o próximo filho mais velho. E, graças a esta herança obrigatória, estes indivíduos estão a salvo tanto da tentação do enriquecimento por meio do aparelho estatal como da insegurança e instabilidade próprios da classe industrial. Desse modo, têm uma situação privilegiada para tratar com imparcialidade dos interesses universais do Estado. Esta imparcialidade conserva a vida do todo, mantendo o Estado fora das lutas que constituem o movimento econômico e social. A expressão política do estado industrial é a Câmara Baixa. Esta outra parte do elemento estamentário representa o aspecto dinâmico da Sociedade Civil (a burguesia), só podendo intervir nas deliberações da assembleia legislativa por meio de deputados, escolhidos a partir das organizações comunitárias que constituem a estrutura orgânica da sociedade. Posto que estes deputados, segundo Hegel, são delegados da Sociedade Civil, se desprende que a representam enquanto tal, ou seja, não dissolvida atomisticamente em indivíduos que se reúnem unicamente para um ato singular e temporário, sem mais consequências, mas, enquanto se articula em suas associações, comunidades e corporações, por outra parte já constituídas, as quais adquirem, deste modo, uma conexão política. (Id., § 308, p. 393)
O critério atomizado de uma eleição geral para que o povo escolha os seus representantes não passa, segundo Hegel, de uma “determinação abstrata” do pensamento. Trata-se de uma consideração democrática desprovida da forma racional. A consideração racional, concreta, do Estado, para Hegel, é a totalidade articulada em seus círculos particulares; o membro do Estado é um membro de uma destas classes, e só nesta determinação objetiva pode ser tomado em consideração o Estado.
constitucional, estão integradas as três formas de governo conhecidas desde os gregos (democracia, aristocracia e monarquia) como momentos articulados de uma mesma constituição política. Enquanto o poder do príncipe é a determinação resultante da monarquia, a Câmara Alta e a Câmara Baixa são determinações provenientes da aristocracia e da democracia. Recusar à aristocracia, existente na época de Hegel, o direito de participar da vida política colocaria o Estado numa situação de perigo. Com a Câmara Alta Hegel quer analisar, essencialmente, a função conceitual da aristocracia rural, que, habituada aos ciclos das estações e a uma situação econômica confortável, não se inclina a uma transformação rápida das instituições. Ela contém (freia) a expressão política da classe industrial (burguesia), que, habituada à insegurança do trabalho e do lucro, arrisca a própria fortuna nos negócios. A Câmara Alta, afirma Rosenfield, procura analisar com mais delonga os assuntos do Estado e as propostas de modificações das leis, vendo de que modo podem responder aos reais anseios e problemas da sociedade e do Estado (cf. ROSENFIELD, 1983, p. 254-255).
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Sua determinação geral contém o duplo momento de ser pessoa privada e, enquanto pensante, ao mesmo tempo consciência e querer do universal. Porém, esta consciência e este querer não estão vazios, mas realizados e efetivamente viventes, só se se os preenche com a particularidade, e esta é precisamente a determinação e a classe particular. (...) Sua determinação real e vivente para o universal a alcança em primeiro lugar, portanto, na esfera da corporação, comunidade, etc, que lhe corresponde. Deste modo, lhe fica aberta a possibilidade de entrar, de acordo com suas habilidades, em qualquer das classes para a que se capacite, inclusive a classe universal. (Ibid., obs. § 308, p. 394)
O indivíduo é representado, segundo Hegel, não pela contingência da sua riqueza, fortuna etc., mas, pela habilidade que exerce na sua profissão. O indivíduo pode, desse modo, ingressar em qualquer classe social, mesmo que seja a classe universal, desde que se capacite para exercer a função social desejada, sendo capaz de exercer uma habilidade propícia ao grupo social em que deseja ingressar. Os deputados, representantes desses interesses concretos correspondentes a estas funções optadas pelos membros da Sociedade Civil, são eleitos de acordo com a confiança que neles depositam seus companheiros: de que estes possuem conhecimento e inteligência do que constitui o interesse da particularidade do seu grupo. Ao deputado se outorga o poder de tratar do interesse da particularidade como o seu próprio interesse (como realmente o é). Por meio da representação política se assegura, desse modo, a participação (mediada) e defesa das reais necessidades e dos problemas comuns a todos os membros da Sociedade Civil. A representação não é uma representação abstrata, atomizada, mas dos grandes interesses sociais, como é o caso da indústria e do comércio. Cada um destes ramos tem sem embargo o mesmo direito de ser representado que os demais. Se se considera aos deputados como representantes, isto só tem um sentido orgânico e racional se não são representantes de indivíduos, de uma multidão, mas representantes de alguma das esferas essenciais da sociedade, representantes de seus grandes interesses. A representação não tem então o significado de que um está em lugar de outro, mas de que o interesse mesmo está efetivamente presente em seu representante, ao mesmo tempo em que o representante está ali por seu próprio elemento objetivo. (Ibid., obs. § 311, p. 397)
A representação política, segundo Hegel, se prolonga por meio da publicidade das deliberações da assembleia, que tem como principal objetivo fazer valer o momento da liberdade formal para todos os membros da Sociedade Civil que não participam do governo, “informando-os, deliberando com estes e tomando decisões conjuntas sobre assuntos gerais” (Ibid., § 314, p. 398). A opinião pública – que possui tanto as verdades e tendências corretas da realidade na forma do entendimento comum, como também a contingência do opinar, a ignorância e o erro –, por meio dessa publicidade, “acede a um pensamento verdadeiro e a uma visão da situação e do conceito do Estado e de seus assuntos; só assim adquire a capacidade de julgar sobre estes de um modo racional” (Ibid., § 315, p. 398). Essa informação de cada passo dado por parte da assembleia representativa coloca as câmaras em contato direto com a opinião pública e serve como um meio educativo, de modo que todos conheçam as reais necessidades e interesses universais66. Desse modo, os indivíduos podem ter a garantia de que os seus interesses particulares se fazem presentes no universal-
66. A assembleia legislativa é, segundo Hegel, materialização e aprendizagem para a vontade geral: “essa reunião de representantes é de uma importância capital para a educação política necessária para um povo e seus chefes” (HEGEL, 1987, p. 98).
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-concreto do Estado. No Estado, a vontade do indivíduo (membro da Família e da Sociedade Civil) é verdadeiramente livre, porque é determinada pela universalidade (a lei do Estado: sua constituição política), que sem a representação política é impossível. É por meio da representação, portanto, que os indivíduos adquirem significação e eficácia política. A representação política é, pois, fundamental na constituição da vontade verdadeiramente livre. Vimos assim que, para Hegel, a vontade individual só é verdadeiramente livre quando é elevada ao nível da universalidade, ou seja, quando se encontra expressa na Lei do Estado. A integração e determinação das diferentes vontades particulares com seus múltiplos interesses, sob a forma da universalidade, ocorre por meio do Poder Legislativo, que não é (como para Rousseau) apenas um agregado reunido segundo interesses atomizados, mas a expressão concreta dos interesses universais da particularidade, ou seja, a expressão de interesses comunitários (comunas, corporações). Para Hegel, no Poder Legislativo devem estar articulados todos os poderes do Estado (o monarca, os funcionários públicos e a assembleia dos estamentos), para que se conserve a vontade da totalidade, proporcionada por um claro conhecimento da situação concreta e das reais necessidades da sociedade. Desse modo, a representação política reconhece no Estado o fundamento e fim da sua ação, sendo uma garantia de que se governa de acordo com a lei, e de que esta última é a expressão da vontade comum da nação que participa e delibera nos assuntos gerais do Estado. A representação política, para Hegel, é um meio eficiente de realização da liberdade no seio da vida ética. Por meio dela, os interesses individuais são convertidos em interesse geral, eliminando-se as contradições entre os indivíduos e a totalidade ética. Desse modo, a vida civil e a vida política se encontram integradas. Segundo Hegel, é o próprio povo, por meio de suas organizações civis, quem delibera sobre o que é do seu interesse e quais são as suas reais necessidades (e ao mesmo tempo acompanha o andamento público dessas deliberações, freando qualquer intervenção arbitrária por parte do governo), cabendo à assembleia o papel de representá-lo e refletir sobre a vontade comum.
Conclusão Analisar a questão relativa à liberdade e sua realização concreta, por meio da representação política, no seio da vida ética foi o objeto da nossa investigação. Vale salientar que o projeto hegeliano, que só a vida filosófica pode satisfazer, é o do homem total, da liberdade ou felicidade, do “estar junto a si” (bei sich sein) (cf. BOURGEOIS, 1969, p. 10). Esse projeto, que se realiza em todas as dimensões da vida, tem que passar necessariamente pela dimensão estritamente política, onde se dá a integração e organização racional da comunidade ética, para que seja possível a completa realização dos indivíduos. Essa organização racional da totalidade só é possível no Estado ético, por meio da representação política. A liberdade, como vimos, só se dá com a integração da vontade individual com a vontade universal. A vontade meramente natural e imediata ou arbitrária não é verdadeiramente livre. O arbítrio é uma liberdade contraditória, já que tem seus conteúdos como simplesmente possíveis, podendo escolher, ou não, qualquer um deles. A decisão quanto ao conteúdo escolhido, pela vontade arbitrária, é casual e descansa sobre o pressuposto de que se pode querer tudo, fazer o que quiser, esbarrando, por fim, na contraditoriedade. As organizações societárias da Família e Sociedade Civil não são, para Hegel, capazes de realizar a liberdade individual, pois não comportam em si o completo desenvolvimento
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da particularidade, nem são capazes de organizar e articular racionalmente os interesses particulares com os fins da comunidade ética. Para ele, é apenas no Estado, pela mediação da representação política que a vontade individual pode unir-se com a vontade universal e transformar-se em vontade geral de um povo, expressa em lei (constituição política). Desse modo, a vontade é verdadeiramente livre e se realiza concretamente. Não é possível compreender a teoria política hegeliana sem lê-la à luz dos acontecimentos da Revolução Francesa. Com o fenômeno da Revolução Francesa, a autonomia moral do indivíduo, a certeza do seu valor singular, é elevada ao nível da universalidade; a liberdade é elevada ao plano do direito. O que leva Hegel a afirmar que “o homem vale porque é homem e não porque seja judeu, católico, protestante, alemão ou italiano” (HEGEL, 1988, § 209, p. 281). Depois desse evento, qualquer regime político que não pressuponha este novo direito universal do cidadão não significa nada. A Revolução, embora reconheça e eleve a vontade individual à vontade geral, dando a cada homem a certeza de sua liberdade, fracassou quanto aos fins perseguidos, porque quis realizar um diálogo imediato da vontade particular com a vontade geral, não admitindo nenhuma mediação que se interponha à sua expressão direita no Estado. A vontade individual, ao tomar-se a si mesma como conteúdo, objeto e fim, tem no universal o puramente abstrato e negativo, descambando no terror. Rousseau e Kant – cujas filosofias contribuíram, segundo Hegel, para a ação dos revolucionários –, embora coloquem a vontade livre como fundamento da moral e do Estado, insistem, no entanto, que esta vontade é apenas a vontade individual. Para Hegel, embora a vontade individual deva ser reconhecida, ela não pode permanecer isolada e atomizada nos seus interesses privados, mas elevada ao plano da universalidade, da comunidade, para que a coexistência mútua e a liberdade sejam mantidas e resguardadas no interior da vida ética. Para ele, a vontade particular é um fator importante, mas deve estar integrada à vontade geral da totalidade. Para que isto ocorra a consciência precisa ser educada para exercer sua autonomia e liberdade. O problema da realização política concreta da liberdade, embora colocado pela Revolução Francesa, não é por ela resolvido. Com ela surge o estilo de vida burguesa, orientado para os fins individuais, introduzindo a separação entre o universal e o particular. No regime burguês, as forças da particularidade são mais importantes que a vontade geral. A sociedade civil burguesa é incapaz de assegurar a vigência de uma substância ética que seja suporte da vontade comum, porque não é capaz de admitir a necessidade de uma limitação dos egoísmos privados. Para Hegel, a existência racional da vida ética, a conciliação da vontade particular individual com a vontade universal só é conseguida por meio do Estado, porque é nesta estrutura onde se dá, pela mediação da representação política, a identificação ou integração dos interesses diversos e divergentes da particularidade com os da totalidade. No Estado, o bem não existe como um fim individual abstrato, mas como o objetivo último da ação comum de todos os homens; nele, dá-se a conciliação da legalidade e da moralidade, realizada na finalidade comum de um grupo. Para Hegel, só por meio da atividade política no Estado é que se constroem as condições sociais para a existência de uma vida ética que leve em consideração tanto os interesses subjetivos quanto o bem comum. A tarefa da filosofia política hegeliana é resolver os problemas que a Revolução Francesa deixou em suspenso. É nesse sentido que Hegel, ao tratar da vida política, utiliza de mediações racionais (classe universal, corporações), porque sem elas separa-se a vida civil da
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vida política, descambando no terror ou despotismo. Essas mediações são, segundo Hegel, o único meio de assegurar a participação do indivíduo na vontade geral, esquivando-se da indiferenciação característica do mundo da necessidade. A assembleia de representantes é, desse modo, constituída a partir dos reais interesses e necessidades da sociedade, que reconhece no Estado o fundamento e fim da sua ação. A assembleia é a garantia de que se governa de acordo com a lei, de que esta última não é propriedade arbitrária do soberano, e de que a vontade comum da nação participa, delibera e decide nos assuntos do Estado. A assembleia de representantes mostra que o Estado hegeliano não depende unicamente da coerção, mas do livre acordo dos cidadãos; ela mostra que a manutenção da vida ética depende da cooperação e consentimento dos indivíduos, conseguido por meio do mecanismo da representação política. O Estado só é eficaz, para Hegel, quando consegue fazer com que o indivíduo veja representado nele o seu próprio interesse, e que nele encontre efetivamente a sua satisfação. Sem um corpo representativo, o Estado não tem “vontade geral” e, mesmo que esteja constituído até o exterior, frente a outros estados, não estará frente à sua ordem civil, renunciando a constituir-se como Estado “interior”. A assembleia é uma necessidade racional para a organicidade do Estado hegeliano. Por meio dela, a sociedade participa indiretamente, articulada em pequenos grupos de interesses territoriais, corporativos e de estamento. A assembleia, para Hegel, é racional se reflete essa composição de interesses e lhes outorga reconhecimento político. A tarefa da assembleia consiste em levar em consideração as exigências e as aspirações dos indivíduos reunidos em sociedade, e convertê-los em parte do interesse geral, eliminando, desse modo, as contradições entre os indivíduos e a totalidade ética; cabe à assembleia realizar o vínculo entre as vontades particulares e o interesse comum. Para Hegel, o papel da assembleia é o de dar conteúdo à vontade geral do povo. Os órgãos representativos não são, segundo ele, apenas a expressão dos interesses particulares da particularidade, ou seja, da pessoa privada e atomizada, mas justamente o contrário, a expressão dos interesses universais da particularidade, isto é, da sociedade articulada em grupos de interesses. Por meio dos órgãos representativos, a vida civil não se encontra dissociada da vida política, mas integrada; sendo esta última a expressão racional daquela. Hegel, a nosso ver, não concentra o poder do Estado nas mãos da burocracia67. Para ele, a classe universal não possui poder algum; ela exerce a sua atividade (o seu dever) por concessão tanto do soberano, que nela confia a realização da sua vontade, como das organizações civis, que vigiam e moderam sua atividade, enfrentando cotidianamente suas iniciativas. Para Hegel, nenhum poder deve sobrepor-se aos outros. A vontade do Estado deve ser una (a vontade do povo expressa na lei e encarnada na figura do monarca por meio do “Eu quero”), de tal modo que se evite a imposição dos interesses particulares de grupos que brigam pelo poder. Mais do que divisão de poderes dentro do Estado, Hegel propõe a ideia de um “equilíbrio de responsabilidades”.
67. Segundo Weil, o poder do Estado se concentra “entre as mãos do funcionário. É ele quem prepara tudo, quem põe todos os problemas, quem elabora todas as soluções. Responsável ante o único chefe do Estado o funcionário é o verdadeiro servidor do Estado – e seu verdadeiro amo. Essencialmente objetivo, essencialmente apolítico (no sentido em que esta palavra designa uma tomada de posição partidária), recrutado sem distinção de proveniência, de fortuna, de condição social, o funcionário não forma um estado político... Mas forma um estado social, o estado universal..., de todos os estados o mais influente. Não sendo nada politicamente, o funcionário é tudo na organização do Estado: é ele quem forma o segundo poder, o poder governamental, situado entre o poder soberano e o poder legislativo. É verdade que o príncipe decide, é verdade que as câmaras votam as leis e regulamentam as questões de alcance universal; mas é a administração quem prevalece sobre os dois” (WEIL, 1985, p. 64-5).
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Para Hegel, é o próprio povo, por meio das suas organizações civis, quem delibera sobre o que é do seu interesse, quais são as suas reais necessidades, cabendo à assembleia o papel de representá-lo e refletir sobre a vontade comum. Compreendemos – diversamente de alguns críticos de Hegel68 – que Hegel (apesar de em muitos dos seus escritos criticar a democracia como forma efetiva de representação popular) é um autor cuja preocupação política é democrática69. Para Hegel, não basta que o povo seja convocado, periodicamente, a escolher seus representantes sem que estes tenham qualquer vinculação efetiva com os seus reais interesses e aspirações. A vida política não se restringe, para ele, a essa escolha entre grupos diversos (partidos políticos) que disputam pelo favor dos indivíduos, solicitando-lhes que ceda em suas mãos o poder de decisão dos assuntos públicos. Enfim, o sufrágio universal não é, para Hegel, um fim político para os indivíduos, mas deve ser o meio pelo qual estes elevam a sua vontade particular e tornam-na efetiva, realizada e integrada à vontade da totalidade. Deste modo, se conserva, segundo Hegel, a liberdade de todos e a vida ética.
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68. Popper identifica a filosofia hegeliana com a filosofia do totalitarismo moderno (cf. POPPER, 1974, p. 33-38). 69. Como afirma Markenson, a teoria política hegeliana é democrática, e uma expressão racional do Estado Moderno, se afastando de toda perspectiva totalitária, já que, para Hegel, o Estado é “uma construção coletiva onde participam necessariamente as vontades particulares” (MARKENSON, 1999, p. 101). Como também salienta Rosenfield, “o problema não é afirmar que Hegel é contra a democracia mas, pelo contrário, trata-se de assinalar que ele é adversário de sua forma ainda não racional. A democracia, instituída a partir da pessoa privada, só assegura para ele, portanto, os interesses particulares da particularidade, sendo incapaz de elevar-se firmemente, e de um modo duradouro à prática do que é universal. A participação de todos nos assuntos públicos só tem lugar por meio de uma mediação que garanta efetivamente a expressão política das realizações da sociedade civilburguesa. É também devido a isto que Hegel é adversário do mandato imperativo, pois a assembleia deve ser um lugar vivo no qual o universal, que não é uma soma de partes, mas que se desdobra na estrutura da particularidade, é gerado pela efetiva defesa do interesse de todos” (ROSENFIELD, 1983, p. 256). 114
Cap. 9
A Dialética da Secularização e da Religião em Hegel e Habermas
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WEIL, E. Hegel et l’État. 6ª ed., Paris, Vrin, 1985. _______.; ILTING, K.-H.; FLEISCHMANN, E.; BOURGEOIS, B.; GARDIES, J.-L. Hegel et la Philosophie du Droit. Paris: P.U.F., 1979.
A Dialética da Secularização e da Religião em Hegel e Habermas Juliano Cordeiro da Costa Oliveira70
Introdução Há muita discordância entre os analistas de nosso tempo quanto à determinação do lugar ocupado ou a ser ocupado pelo fenômeno religioso no mundo contemporâneo. Algo, contudo, como enfatiza Manfredo Oliveira, parece deter grande aprovação por parte de muitos intérpretes: “a afirmação de que a análise do fenômeno religioso é um elemento imprescindível para uma compreensão adequada das sociedades da modernidade tardia” (OLIVEIRA, 2013, p. 10). Hegel, por exemplo, já havia refletido acerca da relação entre secularismo e religião, principalmente por meio de suas análises acerca da Revolução Francesa e do Iluminismo. Ele propõe uma rigorosa dialética entre Iluminismo e religião, mostrando a insuficiência de caminhos unilaterais a serem seguidos tanto pelo cristianismo como pelo Iluminismo. Hegel destaca, nesse sentido, o papel motivacional das religiões para os sujeitos, mesmo numa sociedade secularizada. O Iluminismo, então, não pode simplesmente querer abolir as religiões, isto é, um outro. As religiões, no entanto, não podem negar a conquista histórica da modernidade e do Iluminismo. Seria preciso, assim, pensarmos um terceiro caminho que considere, ao mesmo tempo, o papel motivacional das religiões para vários sujeitos, como também a conquista histórica da modernidade e do Estado secular. Aliás, não é difícil ver que nosso tempo é sim tempo de nascimento e trânsito para uma nova época. O espírito rompeu com o mundo de seu ser-aí e de seu representar, que até hoje durou; está a ponto de submergi-lo no passado, e se entregar à tarefa de sua transformação. Certamente, o espírito nunca está em repouso, mas sempre tomado por um movimento para frente. (...) Esse desmoronar-se gradual, que não alterava a fisionomia do todo, é interrompido pelo sol nascente, que revela num clarão a imagem do mundo novo. (HEGEL, 2007, p. 31)
Habermas, por sua vez, na filosofia contemporânea, enfatiza também a necessidade de um diálogo entre secularismo e religião. Ele defende que as religiões possuem intuições morais que podem colaborar nos debates públicos acerca das mais diversas questões, havendo, inclusive, aquilo que podemos chamar de uma virada pós-secular em sua filosofia, numa tentativa de propor um diálogo entre religião e secularismo. As religiões devem ser capazes de traduzir suas intuições éticas para uma linguagem pública e secular. O secularismo, contudo, não pode
70. Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), com Doutorado Sanduíche pela Ludwig-Maximilian-Universität (LMU), em Munique, Alemanha. Bolsista PNPD/Capes na Pós-Graduação em Filosofia da UFPI. Email: julianocordeiro81@gmail.com.
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a priori descartar os possíveis potenciais semânticos inspiradores das religiões, desde que traduzidos para uma linguagem secular.
1. A Religião Como Pertencente à Genealogia do Pensamento Pós-Metafísico. Segundo Habermas, o secularismo insiste na ideia de que as formas de pensamento arcaicas, contidas nas doutrinas religiosas, foram superadas e desvalorizadas com o processo de secularização do ocidente. Entretanto, o pensamento pós-metafísico habermasiano estabelece relações falibilistas com os dois lados (secular e religioso), por meio de uma reflexão sobre os limites de cada um: o pensamento pós-metafísico desconfia “tanto das sínteses das ciências naturais como das verdades reveladas” (HABERMAS, 2007, p. 13). Habermas evita leituras reducionistas que esvaziem qualquer possibilidade de diálogo ou discussão pública com doutrinas religiosas. Ele reconhece as dívidas de sua teoria em relação às tradições religiosas, sobretudo a judaico-cristã, principalmente no que diz respeito a uma ética universalista da fraternidade, de uma utopia da comunidade solidária, de uma dignidade igual entre todos os homens. O cristianismo não é apenas uma figura precursora para a auto-compreensão normativa da modernidade ou um simples catalisador, pois o universalismo igualitário, do qual surgiram as ideias de liberdade e de convivência solidária, de conduta de vida autônoma e de emancipação, da moral da consciência individual, dos direitos humanos e da democracia, é uma herança imediata da ética da justiça judaica e da ética cristã do amor. Fomos nos apropriando criticamente desta herança, deixando-a, porém, inalterada, apesar das inúmeras reinterpretações. E, hoje, inclusive, não temos alternativas com relação a essa tradição, pois, mesmo quando confrontados com os desafios atuais de uma constelação pós-nacional, continuamos a nos alimentar dessa substância. (HABERMAS, 2003, p. 199)
Habermas explica que, a interpenetração histórica entre cristianismo e metafísica grega, não produziu apenas a figura da dogmática teológica. Ela promoveu, também, uma apropriação, por parte da filosofia, de conteúdos genuinamente cristãos, a saber: responsabilidade, autonomia, justificação, história, recordação, recomeço, inovação, retorno, emancipação, completude, renúncia, incorporação, internalização, individualidade e comunidade. Habermas fala acerca de conceitos bíblicos que foram traduzidos, ao longo do tempo, para um público em geral de crentes de outras religiões e também de não crentes, ultrapassando os limites de uma comunidade religiosa particular. Ele cita, como exemplo, a tradução da ideia de que o homem é semelhante a Deus, para a ideia da “dignidade do homem”, de todos os homens, a ser respeitada de modo igual e incondicionado. Outro exemplo é o conceito religioso de tolerância que, no decorrer dos séculos XVI e XVII, “passa a ser um conceito do direito” (HABERMAS, 2007, p. 279). Em Kant, afirma Habermas, a tradução da ideia de Deus sobre a Terra, para o conceito de uma república de leis virtuosas, diz respeito a uma relevância cognitiva de conteúdos conservados nas tradições religiosas. A filosofia moral kantiana, segundo Habermas, pode ser interpretada como uma tentativa de reconstruir o dever-ser (Sollen) categórico dos mandamentos divinos, por um caminho discursivo. Ao passar pela autorreflexão transcendental, o pensamento filosófico configura-se como pós-metafísico, o que não significa que ele deva ser necessariamente anticristão ou pós-religioso. Além de Kant, Habermas cita Hegel como exemplo bem sucedido no trabalho de tradução do idioma religioso para o secular. Ele enfatiza que o pensamento pós-metafísico deve incluir as tradições religiosas e metafísicas em sua genealogia.
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Seria irracional, diz Habermas, colocar de lado tais tradições por considerá-las um resíduo arcaico. Que razão, pergunta ele, impediria as religiões de continuar mantendo potenciais semânticos inspiradores? Habermas defende que as tradições religiosas não são simplesmente irracionais e absurdas. As grandes religiões mundiais carregam consigo intuições racionais e momentos instrutivos de exigências legítimas, como portadoras de um patrimônio ético historicamente constituído. Habermas (2007) também cita Kierkegaard como um escritor religioso que pensa de modo pós-metafísico, porém não pós-cristão. Kierkegaard foi o primeiro, diz Habermas, a exigir da filosofia que aceitasse a religião como uma parceira a ser situada no mesmo nível. Além disso, na tradição do marxismo ocidental, Habermas destaca uma apropriação ateísta de conteúdos religiosos, seja na filosofia da esperança de Bloch, seja nos esforços de salvação de Benjamim ou no negativismo e nas esperanças mais secretas de Adorno. O pensamento pós-metafísico de Habermas assume, portanto, uma dupla atitude perante a religião: “ele é agnóstico e está, ao mesmo tempo, disposto a aprender” (HABERMAS, 2007, p. 162). Ele busca um lugar intermediário entre o cientificismo e a religião, numa perspectiva crítica em relação a um caminho unilateral tanto da ciência como da religião. “A consciência secular que se tem de viver em uma sociedade pós-secular, reflete-se filosoficamente na figura do pensamento pós-metafísico” (HABERMAS, 2007, p. 159). Desta forma, Habermas coloca-se entre a religião e o cientificismo. Ele reconhece que o secularismo tem algo a aprender com as religiões, não podendo menosprezá-las. O que propriamente seria isso? Por que o secularismo teria algo a aprender com as religiões, mesmo em tempos pós-metafísicos, como o próprio Habermas afirma?
2. A Sensibilidade da Voz da Religião. Para Habermas, as religiões mantêm viva a sensibilidade para o que falhou no mundo secular, preservando, na memória, dimensões de nosso convívio pessoal e social, nas quais os processos de racionalização social e cultural provocaram danos irreparáveis. Segundo Juan Antonio Estrada (2004), há, nesse sentido, um conteúdo humanístico e um núcleo ético presentes nas religiões que ainda alimentam a solidariedade humana. Francis Schüssler Fiorenza (1992), por sua vez, enfatiza que as religiões também fornecem um local para a discussão das esferas afetivas e expressivas da vida humana. “Neste contexto, a igreja mantém viva a dimensão utópica que tem sido fundamental para a teoria crítica” (FIORENZA, 1992, p. 87)71. Já Johann Baptist Metz (2013) afirma que os textos apocalípticos da Bíblia são, acima de tudo, documentos literários de uma percepção de mundo em que se revelam as faces das vítimas. “O apocalipse bíblico “desvela” a trilha dos sofredores na história da humanidade” (METZ, 2013, p. 17). Habermas concorda, portanto, que as religiões possuem conteúdos éticos determinantes que a razão secular não pode desprezar, constituindo um patrimônio ético que podemos encontrar nas diversas tradições de fé. O problema, porém, consiste em como tais intuições religiosas podem aparecer na formulação de critérios de justiça num mundo de crentes e não crentes. De um lado, Habermas critica o fundamentalismo religioso que despreza o caráter secular das instituições. De outro, ele critica um tipo de secularismo que vê na religião apenas algo irracional e sem valor. 71. “In this regard the church keeps alive the utopian dimension that has been central to critical theory” (FIORENZA, 1992, p. 87).
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Segundo Habermas (2007), as Escrituras Sagradas e as tradições religiosas possuiriam intuições sobre a falta moral e a salvação, sobre a superação salvadora de uma vida tida como sem salvação, as quais são mantidas e interpretadas durante milênios. Portanto, a formação da opinião e da vontade não pode censurar a linguagem religiosa, mesmo havendo a necessidade de uma fundamentação pós-metafísica e discursiva das normas, como defende Habermas. Para ele (1990), enquanto a linguagem religiosa trouxer consigo conteúdos semânticos inspiradores, que não podem ser jogados fora, a filosofia, mesmo em sua figura pós-metafísica, não poderá desalojar ou substituir a religião: enquanto não se encontrar no meio da fala argumentativa palavras melhores para caracterizar aquilo que as religiões sabem dizer, a existência delas será legitima, mesmo no contexto de um pensamento pós-metafísico. Habermas insiste, no que diz respeito à política institucional, na distinção entre a fala discursiva secular, a qual pretende ser acessível a todos, e a fala discursiva religiosa, dependente das verdades reveladas. As religiões precisam, no parlamento, traduzir para uma linguagem acessível suas contribuições sobre as questões da vida. Sem essa tradução, o conteúdo das vozes religiosas não consegue entrar nas agendas das instituições. Com isso, seria equivocado colocar de lado as religiões, menosprezando-as nos debates públicos. A razão, na perspectiva habermasiana, que reflete sobre o seu fundamento mais profundo, descobre que sua origem precisa ser buscada intersubjetivamente. Podemos dizer que, em Habermas, o Estado secular é a-religioso, mas não antirreligioso. O que ele critica é a ideia de que algo possa ser aceito sem justificação numa sociedade pluralista: tanto crentes como não crentes devem justificar suas pretensões de validade. Nesse contexto, podemos falar, de fato, de uma dialética da secularização no pensamento de Habermas, por meio do conceito de pós-secularismo? Ele adota o pós-secularismo na tentativa de estabelecer um diálogo entre religião e secularismo, sem propriamente uma visão secularista de mundo.
3. A Reviravolta Pós-Secular: uma dialética da secularização? Habermas ressalta que para definir-se como pós-secular, “uma sociedade deve primeiro ter sido secular” (HABERMAS, 2015, on line). Para ele, começa a prevalecer na sociedade pós-secular, e não mais apenas secular, a ideia de que tanto as mentalidades religiosas quanto as seculares precisam se modificar de forma reflexiva, aprendendo as contribuições de uma e de outra para os diversos temas. Nesse sentido, Habermas explica o porquê do termo pós-secular: A expressão “pós-secular” foi cunhada com o intuito de prestar às comunidades religiosas reconhecimento público pela contribuição funcional relevante prestada no contexto da reprodução de enfoques e motivos desejados. Mas não é somente isso. Porque na consciência pública de uma sociedade pós-secular reflete-se, acima de tudo, uma compreensão normativa perspicaz que gera consequências no trato político entre cidadãos crentes e não crentes. (HABERMAS, 2007, p. 126)
No pós-secularismo, impõe-se a ideia de que a modernização da consciência pública abrange, em diferentes fases, tanto mentalidades religiosas como profanas, transformando-as reflexivamente. Habermas argumenta que a secularização cultural e social deve ser entendida como um processo de aprendizagem complementar, que obriga tanto as tradições do iluminismo quanto as doutrinas religiosas a refletirem sobre seus respectivos limites. A consciência religiosa, por sua vez, precisa assimilar cognitivamente o contato com outras visões de vida: ela deve se
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abrir às premissas do Estado constitucional que se fundamenta numa moral profana. A compreensão pluralista da tolerância em sociedades pós-seculares exige dos crentes e não crentes a compreensão razoável de que eles têm de contar com a permanência de um dissenso. A neutralidade em termos de visões de mundo do Estado secular, garantidora de iguais liberdades éticas para cada cidadão, não diz respeito, contudo, à generalização política de uma visão de mundo secularista. Este é um aspecto novo no pensamento de Habermas. Ele defende que, embora o caráter secular do Estado seja uma condição necessária, ainda não é algo suficiente. Assim, a expressão pós-secular, tal qual explica Luiz Bernardo Leite Araújo (2013), não é uma alternativa ao horizonte pós-metafísico da modernidade, o qual permanece secular a despeito do prefixo pós. O pós-secularismo correspondendo a uma mudança de mentalidade ou a uma alteração crítica do auto-entendimento secularista de sociedades que se tornaram conscientes da persistência da religião, de sua relevante contribuição para a vida política. Segundo Habermas, o pensamento pós-metafísico deve adotar uma atitude simultaneamente agnóstica e receptiva diante da religião, que se oponha a uma determinação estritamente secularista das razões publicamente aceitáveis, sem comprometer, entretanto, sua autocompreensão secular. Habermas não abdica, como mostramos antes, da autocompreensão secular da modernidade, a qual é derivada da reconstrução racional de uma lógica do desenvolvimento na qual a racionalização das imagens religiosas de mundo, enquanto processo de aprendizagem, desempenha um papel de considerável relevância. Ele, por outro lado, questiona, sem deixar de estar em consonância com seu projeto teórico, a leitura secularista do processo de modernização. Habermas propõe uma reavaliação da tese tradicional da secularização a partir do questionamento do secularismo ou laicismo como visão de mundo. Habermas, assim, diferencia o conceito de secular/laico de secularista/laicista: Aqui eu gostaria de fazer uma distinção entre laico e laicista, entre secular e secularista. A pessoa laica, ou não crente, se comporta com agnóstica indiferença em relação às pretensões religiosas de validade. Os laicistas, ao contrário, assumem uma atitude polêmica em relação àquelas doutrinas religiosas que (embora cientificamente infundadas) têm grande relevância na opinião pública. Hoje, o secularismo se apoia frequentemente em um naturalismo “hard”, justificado em termos cientificistas. Pergunto-me se – para os fins da autocompreensão normativa de uma sociedade pós-secular – uma mentalidade laicista hipoteticamente generalizada não acabaria sendo igualmente pouco desejável em comparação com um desvio fundamentalista dos crentes. Na realidade o processo de aprendizagem deveria ser prescrito não só para o tradicionalismo religioso, mas também para a sua contrapartida secularizada. (...) é preciso que o Estado não reduza preventivamente a complexidade polifônica das diversas vozes públicas. Se, em relação aos seus concidadãos religiosos, as pessoas laicas tivessem que pensar que não podem levá-los a sério como autênticos contemporâneos da modernidade – por causa da sua atitude religiosa, então se deslizaria de volta para o plano do mero modus vivendi e se perderia aquela “base do reconhecimento” que é constitutiva da cidadania. (HABERMAS, 2015, on line)
Habermas, porém, preserva o ganho histórico da secularização das instituições e da separação entre Igreja e Estado, sendo algo, para ele, inegociável e de absoluta importância. No pós-secularismo, o Estado continua sendo neutro em termos de concepção de mundo, mas não seria secularista ou laicista, no sentido de defender uma ideologia que excluísse a religião. Habermas critica o que denomina de “Aufklärungsfundamentalismus” (HABERMAS, 2012, p. 324). Ou seja, um tipo de visão secularista ou laicista de mundo, que coloca as religiões em segundo plano ou as trata como algo puramente irracional e sem valor.
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A palavra secularização teve, a princípio, explica Habermas (2013), o significado jurídico de uma transferência dos bens da Igreja para o poder público secular. Esse significado foi transmutado para o surgimento da modernidade cultural e social como um todo. Desde então, diz ele, apreciações opostas têm sido associadas à secularização, a saber: uma de caráter plenamente otimista, com o modelo progressista de uma modernidade desencantada; e outra pessimista, vinda de religiões fundamentalistas, que consideram a modernidade como uma época desamparada. Para Habermas, as duas explicações cometem o mesmo erro. Elas consideram um jogo de soma zero entre, de um lado, as forças produtivistas da ciência e da técnica, liberadas pelo capitalismo e, de outro, os poderes conservadores da religião. Essa imagem não é adequada para uma sociedade pós-secular e pluralista que se ajusta à sobrevivência de comunidades religiosas em um ambiente cada vez mais secularizante. Por isso, o pensamento pós-secular reconhece a importância das tradições religiosas no trato de intuições morais profundas, não pretendendo despi-las de possíveis conteúdos racionais, nem as desvalorizar como resíduos arcaicos de uma figura do espírito superada pelas ciências. Hegel, por sua vez, já havia destacado a importância de uma dialética entre secularismo e religião, por meio de uma análise crítica do Iluminismo e da Revolução Francesa, ressaltando o perigo de posições unilaterais, seja das religiões ou do secularismo.
4. Hegel e a Dialética entre Religião e Iluminismo Na perspectiva hegeliana, coube ao cristianismo, na história da humanidade, o papel de proclamar que o homem é livre enquanto homem e que a liberdade é, portanto, específico do ser humano. O acontecimento de Cristo é, em Hegel, de significação universal, porque nele o ser humano toma consciência de que seu ser se identifica com a liberdade, pois a liberdade subjetiva enquanto consciência de sua transcendência sobre as condições externas em que o ser humano está inserido fundamenta-se na unidade entre Deus e o ser humano, que se revelou em Cristo. Este representa a superação da separação entre Deus e o homem, sendo a reconciliação entre ambos. A liberdade do homem revela-se possibilitada pela participação na liberdade absoluta. Porém, o princípio da liberdade cristã permaneceu interior, não chegando a se tornar uma liberdade mundana. Como diz Hegel, no parágrafo 62 da Filosofia do Direito: “Há cerca de mil e quinhentos anos que a liberdade da pessoa começou a florescer graças ao cristianismo e tornou-se princípio universal entre uma parte, aliás, pequena do gênero humano” (HEGEL, 2010, p. 98). Entretanto, só os tempos modernos começaram a tornar efetiva a significação do cristianismo na história da humanidade, à medida que a liberdade se fez o grande programa da modernidade em consequência da Reforma Protestante. Por isso, Hegel vê uma passagem coerente entre o princípio cristão da liberdade pela Reforma Protestante e os movimentos emancipatórios da modernidade, como o Iluminismo e a Revolução Francesa. Para Karl Löwith, por exemplo, a secularização do cristianismo original não significa, em Hegel, uma condenável traição de seu sentido original, mas, ao contrário, a verdadeira explicação dessa origem “mediante sua realização positiva” (LÖWITH, 2014, p. 41). Nesse sentido, Charles Taylor destaca que, em Hegel, “o entrelaçamento entre religião e Iluminismo jamais poderia constituir dois campos opostos, como na França” (TAYLOR, 2014, p. 33).
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Sobre isso, podemos fazer uma analogia entre as análises de Habermas sobre o secularismo e as de Hegel, quando este elogia e critica dialeticamente a Revolução Francesa e o Iluminismo. Para que o princípio cristão da liberdade pudesse perpassar a realidade sociopolítica, foi necessário que o Estado se libertasse das igrejas cristãs particulares. Tal cisão permitiu a realização da verdade do cristianismo. Hegel aceita, por um lado, a necessária emancipação do homem através da Revolução Francesa. Todavia, diz Hegel, o Iluminismo criticou também as representações cristãs, reduzindo seu conteúdo a objetos finitos. O Iluminismo não percebeu, segundo Hegel, que a negação do absoluto implica a negação da subjetividade. O elemento positivo do Iluminismo foi ter feito morrer uma certa concepção de Deus, manifestando a verdade do cristianismo, para além do cristianismo. Porém, o Iluminismo não percebeu que a pura negação do absoluto significa a negação da subjetividade, pois implica seu aprisionamento ao finito. Hegel, no parágrafo 270 da Filosofia do Direito, fala não apenas do caráter negativo do fanatismo religioso, mas também do fanatismo político, no contexto da Revolução Francesa: “(...) surge então o fanatismo religioso, que, como o fanatismo político, bane todas as instituições do Estado” (HEGEL, 2010, p. 244). Em Hegel, a liberdade é explicitada como síntese entre individualidade e sociabilidade, entendida como institucionalidade. A forma de configuração dessas instituições é que decide se elas são ou não expressão da autoconsciência dos indivíduos como seres livre. Dessa forma, Hegel conserva o elemento positivo do Iluminismo, recuperando o conteúdo central do cristianismo, a Encarnação do Verbo, que significa a superação do dualismo abstrato entre Deus e o homem livre. Do contrário, Hegel alerta que a sociedade estará sempre sujeita à tirania semelhante ao Terror Jacobino na Revolução Francesa, haja vista uma concepção estreita de liberdade, relacionada apenas com a interioridade. “Portanto, quando a razão fala de um Outro que ela, de fato, só fala de si mesma; assim não sai de si” (HEGEL, 2007, p. 377). Na perspectiva hegeliana, como enfatiza Taylor, não reconhecendo a si mesmo no seu adversário, o Iluminismo “entende mal a fé” (TAYLOR, 2014, p. 212). O erro básico do Iluminismo foi rejeitar a transcendência e tentar alcançar essa meta unicamente a partir do ser humano; “ele tenta tornar a subjetividade humana dominante de modo exclusivo, em vez de torná-la participante da dominação do sujeito absoluto” (TAYLOR, 2014, p. 210). Hegel, como destaca Habermas, “não é o primeiro filósofo que pertence aos tempos modernos, mas o primeiro para a qual a modernidade se tornou um problema” (HABERMAS, 2002, p. 62). Hegel foi um dos pensadores da modernidade que reagiu contra os ataques do Iluminismo ao cristianismo, ressaltando o grande valor da doutrina cristã. Em Hegel, a religião é uma grande fonte de motivação que orienta o ser humano inteiro para o Bem, pois o homem não é apenas racional, mas também uma criatura sensível. “Por isso, desde o começo, Hegel não assumiu a posição do austero Iluminismo sobre a religião, de que em nada se pode acreditar senão naquilo que a razão autoriza” (TAYLOR, 2014, p. 77). Segundo Hegel, carece de fundamento uma secularização que pretenda superar pura e simplesmente o cristianismo. Habermas, tal qual Hegel, desenvolve um conceito crítico de modernidade, partindo de uma análise imanente ao próprio sentido de secularismo, evitando tanto um dogmatismo da religião, como também uma visão secularista ou laicista de mundo. Ele chega a falar em limites da razão secular, criticando um tipo de secularismo (uma visão secularista ou laicista de mundo) que consideraria as religiões como algo irracional e sem valor.
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Como lembra Habermas, a unidade da razão fundamenta-se na pluralidade de suas vozes, na inclusão de todos no debate público, sejam crentes ou não crentes. Para Habermas, é intrínseca a ideia de uma razão que una, sem reduzir o que é distinto ao denominador comum, que entre estranhos torne reconhecível o que é comum, mas deixe ao outro a sua particularidade, como também destaca Hegel.
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Fé e saber: a leitura de Habermas a partir dos escritos da juventude de Hegel
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Francisco Romulo Alves Diniz72 O filósofo e sociólogo alemão Jürgen Habermas (1929) ao elaborar o ensaio acerca do conceito de modernidade presente em O discurso filosófico da modernidade (1985), toma como referência o idealismo alemão destacando dois pensadores representantes daquele movimento, a saber, F. Schiller (1759-1805) e W. F. G. Hegel (1770-1831)73. Dentre as muitas questões tratadas por ele na modernidade, metodologicamente destacamos uma, a saber, a relação entre fé e saber numa perspectiva teórica, e a relação da religião com a esfera do Estado numa perspectiva prática. Um primeiro marcador importante para pensar a modernidade é a concepção desenvolvida por Schelling em sua filosofia das idades do mundo, e Hegel a caracterizará como uma época orientada para o futuro, adotando a expressão Zeitgeist [Espírito do tempo] para bem caracterizar os os tempos modernos. Ele o concebe como um processo de transição acelerada em direção ao futuro. No entanto, outros marcadores são postos, tais como, a reforma protestante, o Iluminismo [Aufklärung] e a Revolução Francesa. É, nesse novo tempo, dirá Habermas, que surgirão conceitos com os quais lidamos até hoje, tais como revolução, progresso, emancipação, desenvolvimento, crise, espírito da época, etc. reconhecendo, com isso, a filosofia hegeliana como uma das matrizes do pensamento contemporâneo, a partir do qual é possível elaborar sua visão acerca da relação entre fé e saber.74 Hegel é, para Habermas, o primeiro filósofo a tornar a separação entre a modernidade e as sugestões normativas do passado um problema filosófico. Pois, justifica, elevou o problema da epocalidade ou da autocertificação da modernidade à categoria de problema fundamental. A modernidade filosófica tem a subjetividade, como conceito-chave e se presentificará em todo o pensamento moderno até atingir seu ápice no idealismo alemão, especialmente na filosofia hegeliana, na qual é absolutizada. Um dos motivos para Habermas referir-se à filosofia do jovem Hegel é devido a este considerar a modernidade como uma estrutura de auto-relação e problematizar a subjetividade em seus principais desdobramentos, uma vez que a explica por meio da liberdade e reflexão, conforme indica a seguir: “o que dá grandiosidade à nossa época é o reconhecimento da liberdade, a propriedade do espírito, o reconhecimento de que o espírito estando em si está consigo” (HEGEL, Vol. XX, p. 329, apud, HABERMAS, 1990, p. 27).75 Não há apelo a nenhuma outra época, não há modelos a seguir, a modernidade inventa-se a si mesma. Essa “invenção”, tem no futuro a sua meta e no início apenas a crença nessa possibilidade de lançar-se continuamente. Os desdobramentos do entendimento Hegeliano acerca da subjetividade podem ser percebidas em quatro aspectos: o individualismo, uma vez que o particular faz valer as suas pretensões e o seu devido reconhecimento; o direito à crítica, pois o que se apresenta como
72. Doutor em Filosofia pelo Programa Interinstitucional em Filosofia UFRN-UFPB-UFPE. Professor Adjunto do Curso de Filosofia da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA) e dos cursos de Direito e Psicologia da Faculdade Luciano Feijão (FLF). 73. Para fins de composição deste texto, tomaremos apenas este último, por ter sido, o primeiro pensador a desenvolver um conceito preciso de modernidade, estabelecendo uma relação interna entre [Modernität] e racionalidade. 74. Certamente que após meados dos anos oitenta Habermas retomará a reflexão sobre fé e saber incluindo temas relacionados a religião. Cf. Dialética da secularização: sobre razão e religião (2004); Entre Naturalismo e Religião (2005); Fé e Saber (2012). 75. Considerando que não dispomos da obra completa de Hegel na sua lingua vernácula, à qual Habermas faz referências, faremos as citações de modo indireto quando se fizer necessário.
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legítimo deve passar pelo crivo do reconhecimento individual; pela autonomia da ação, indicando assim que somos responsáveis moralmente e juridicamente pelas nossas ações, e pela filosofia idealista, uma vez que a filosofia dos tempos modernos deve dar-se conta de si mesma. (HABERMAS, 1990, p. 27). Esses elementos são postos ao mesmo tempo como desdobramentos da subjetividade e como marcadores a partir dos quais são possíveis pensar a modernidade. Conforme já indicamos, Habermas, à luz da filosofia hegeliana, aponta a reforma luterana como um dos acontecimentos fundamentais para o estabelecimento do princípio da subjetividade. Pois, a fé religiosa se tornara reflexiva e o sujeito é capaz de posicionar-se frente a autoridade religiosa tradicional, mudando, assim, os rumos como também os ritos religiosos. Podemos pensar que a reforma religiosa ao mesmo tempo rompe com o modelo vigente da Igreja Católica e inaugura novas formas de relacionamento com o absoluto. Assim sendo, esse rompimento e as consequências derivadas dele indicam a necessidade de se inovarem os ritos, as interpretações teológicas e filosóficas do objeto religioso. Outro elemento importante desse processo de autonomização da subjetividade, foi o livre-arbítrio, legalizado e legitimado pela Declaração Universal dos Direitos do Homem (1789) e também pelo Código Napoleônico. Assertivamente Hegel afirma: considerou-se que o direito e a eticidade se fundamentavam no terreno presente da vontade do homem visto que anteriormente eram apenas mandamentos divinos emanado de fora, escrito no Antigo e Novo Testamento ou na forma de um direito particular constando de velhos pergaminhos na qualidade de privilégio, ou de tratados”. (HEGEL, Vol. XII, p. 522, apud HABERMAS, 1990, p. 28)
Desse modo, a ordem antes emanada de fora, terá no próprio indivíduo sua fonte de legitimação. A validade depende agora da vontade individual ordenada sob forma de um direito positivado. O indivíduo recebe não apenas a carga da fundamentação última como subjetividade, mas também o desidério da legitimidade. A razão ganha, com isso, um lugar ainda não presenciado na história da humanidade, pois desvincula-se de toda forma de determinação exterior. A determinação passa a ser interior, das escolhas possíveis do próprio indivíduo. Não se trata de mera inclinação sensitiva, mas de uma crença no poder de determinar os critérios cognitivos e volitivos mediados pela razão humana. Em relação a moralidade, também esta funda-se sob o signo da subjetividade, uma vez que reconhece a liberdade de cada indivíduo. Paulatinamente, a cultura assume formas ainda não imaginadas. A ciência despiu a natureza, encontra-se desencantada, como nos recordará Max Weber76 décadas mais tarde, pois o conhecimento da natureza libertou o homem das superstições e conforme Hegel, “a Natureza é agora um sistema de leis conhecidas e reconhecidas, o Homem sente-se bem dentro dela, e só conta aquilo em que ele se sente bem; o conhecimento da Natureza torna-o livre” (Ibid. p. 28). Também a arte. Sua essência é revelada no romantismo. Sua forma e seu conteúdo retratam uma interioridade absoluta. Seu objeto não é mais a natureza, a não ser que esta revele a interioridade. Como bem o enuncia Habermas, “a realidade não atinge a expressão artística senão na refração subjetiva da alma sensível”. (HABERMAS, 1990, p. 29) Também a religiosidade, o Estado e a Sociedade, a ciência, a moral e a arte tornam-se expressões da subjetividade. Essa assumiu a forma do cogito em Descartes, autoconsciência absoluta em Kant, pois “…substitui 76. Cf. WEBER, M. Economia e Sociedade. pp. 139-198.
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o conceito substancial da razão da tradição metafísica pelo conceito de uma razão cindida nos seus momentos e cuja unidade não é já mais do que formal”, reitera Habermas (1990, p. 29). Vê-se desse modo que, a subjetividade estilhaçou os grandes núcleos, mas gerou outros menores, autonomizou a arte, a ciência, a fé. A vida na sua totalidade passa a se organizar sob novos signos, não mais sob a tutela de ordens externas ou metafísicas. O homem humanizou-se, apesar de parecer uma tautologia. Tudo o mais depende agora do seu esforço, que o conduz à um continuo desenvolvimento científico e técnico, estético, prático e, ao mesmo tempo, carente de unidade. Esse, parece-nos, será o maior esforço feito por um dos maiores pensadores de todos os tempos. Hegel buscará a grande reconciliação, pois perceberá a cisão moderna refletida na filosofia kantiana. Lança-se, assim, ao desafio de reconciliar sob a forma do conceito a fratura da identidade do sujeito, exposta por Kant, entre o que é teórico e o que deve ser prático. Em 1802, Hegel analisa os sistemas de Kant, Jacobi e Fichte tomando como questão a relação entre crença e saber. Seu objetivo, de acordo com Habermas (1990, p. 33) é estilhaçar a filosofia da subjetividade de forma imanente, apoiando-se na diagnose da aufkärung, que lhe permite pressupor o absoluto, apresentando uma razão capaz de realizar as grandes unidades. Hegel afirma que “a cultura elevou os nossos tempos tão acima do antagonismo entre filosofia e religião positiva que esta oposição entre crença e saber foi transposta para dentro da própria filosofia” (HEGEL, Vol. II, pp. 287, apud HABERMAS, 1990, p. 28. p. 33). Esse deslocamento trouxe como consequência algo de inusitado, a saber, um pseudo-domínio da razão sobre a fé. Conforme corrobora Habermas, Hegel percebe que o iluminismo kantiano e fichteano edificou na razão um ídolo, pois, “colocou erradamente o entendimento ou a reflexão no lugar da razão e elevou assim algo finito a absoluto” (Ibid. p. 33). Nessa demarche, Hegel desmascara o esquematismo kantiano de modo que a finitude das categorias postas na analítica transcendental absolutizam de forma que o verdadeiro, o idêntico, o válido, numa palavra, o científico, só pode ser posto dentro dos limites conceituais. E, nada mais poderá ser dito além daquilo que esteja autorizado pela racionalidade imanente das categorias. Essa crítica antecipa o que posteriormente Wittgenstein indica sobre a possibilidade do dizer, uma vez que sobre o que não se falar deve-se calar. Ora, Habermas percebe que Hegel, ao realizar a crítica ao sistema kantiano, ao invés de demonstrar os equívocos cometidos pelos defensores da subjetividade moderna, apenas pressupõe ser a razão muito mais do que entendimento absolutizado. No entanto, dirá Habermas, que o fator que encoraja Hegel a pressupor o poder de unificação da razão é menos os argumentos e mais as experiências de vida pelas quais ele passou (Ibid. p. 34). As experiências às quais ele se re refere são os movimentos revolucionários dos quais Hegel vivenciou no seu tempo (principalmente quando estava no seminário de Tübigen), tais como os embates com a ortodoxia protestante representada por Gottlieb Cristian Storr. E, neste embate, os jovens seminaristas, especificamente Hegel e Schelling, orientavam-se, quando se
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Cap. 10
Fé e saber:
a leitura de Habermas a partir dos escritos da juventude de Hegel Francisco Romulo Alves Diniz
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tratava de questões religiosas e morais, pela filosofia kantiana e ficheteana (Ibid. p. 34). O embate com a ortodoxia religiosa do seu tempo, nos revela o real objetivo da filosofia hegeliana em relação ao ponto aqui tratado, pois, tendo por base a interpretação da intenção de Jesus em relação a religiosidade primitiva, isto é, incutir moralidade na religiosidade da sua nação, Hegel renova tal propósito e, para tanto, se serve das interpretações filosóficas de Kant e Fichte para realizá-lo. Embora Hegel parta da concepção kantiana, sua visão não se identificará com ela. Ele considera que a religião tem o poder de validar e executar os direitos que a razão outorgou, porém, ela só terá esse poder se for capaz de “impregnar o espírito e os costumes de um povo, se ela estiver presente nas instituições do Estado e na práxis da sociedade” e mais, “se ela tornar o pensar dos homens, bem como os seus motivos, sensíveis aos mandamentos da razão e lhos incutir na alma” (Ibid. p. 35). Em resumo, somente como elemento da vida pública a religião pode conferir eficiência prática à razão. Eis uma das posições da religião da razão. A leitura dialética de Hegel, tomando como contrapontos de um lado a religião da razão e de outro a religião do coração, permite vislumbrar a orientação prática da vida. Sem dúvidas a religião utiliza-se da razão, mas não se detêm apenas naquilo que é produto dela, ela toca também as dimensões dos sentimentos, ou, num dizer poético, toca as cordas do coração. Se há, assim, uma religião da razão, como a apresentada por Kant em seu texto A religião nos limites da razão (1793), há também uma religião que nasce do coração, como indicada por Rousseau tanto no Contrato Social quanto no Emílio capítulo IV na Profissão de fé do vigário saboiano. Indaga-se, entretanto, como Hegel elabora a síntese entre essas duas esferas. Para o jovem Hegel, o signo da época moderna é demarcado por um positivismo da eticidade. Indicando, assim, que as religiões fundadas unicamente na autoridade, isto é, aquelas que não colocam o valor do homem na sua moral, são denominadas positivas.77 Habermas explicita o significado de religião positiva nos seguintes termos: positiva é a esperança de uma indenização no além, positivo é o alheamento de uma doutrina concentrada nas mãos de alguns da vida e da propriedade de todos; positivo é o apartamento do saber dos sacerdotes e das crenças fetichistas das massas, e o desvio que só pode conduzir a eticidade por intermédio da autoridade e dos atos milagrosos de uma pessoa; positivas são as asseverações e ameaças que visam a mera legalidade do agir; positivas são, por fim, e antes de mais, a separação da religião privada da vida pública. (Ibid. p. 35)
Aos poucos se pode perceber a oposição de Hegel à religião da razão por considera-la abstrata, pois é incapaz de interessar o coração e exercer influência sobre as sensações, conforme indica: “só se a religião da razão se apresentasse publicamente em festas e cultos, se se associasse a mitos, sensibilizasse o coração e a fantasia, poderia a moral, mediatizada religiosamente, se entreter em todo o complexo do Estado” (Ibid. p. 36). Hegel identifica assim o Iluminismo a ortodoxia religiosa. Após essas identificações cabe-nos mostrar como se dá a superação (Aufhebung) a partir da subjetividade. Hegel, nos primeiros escritos, ainda não trabalha com a subjetividade como a força 77. A essa época Hegel ainda não diferencia os termos Moral e Sittlichkeit. Cf. HABERMAS, 1990, p.35.
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conciliadora. De acordo com Habermas, ele acentua o caráter autoritário da autoconsciência, quando tem em vista a bipartição pela reflexão. A positividade reinante na modernidade indicava que o princípio da subjetividade era também um princípio da dominação. Essa dominação se dava nas muitas esferas, tais como a ética, a religião e também a ciência positiva. Segundo Habermas, “este caráter repressivo da razão está fundado em geral na estrutura da autoreferência, i. e., da referência de um sujeito que se faz a si mesmo objeto” (Ibid. p. 37). Percebe-se, assim, a ocorrência de uma espécie de depuração e um distanciamento da positividade, pois ao se atualizar as crenças religiosas sejam elas católicas ou protestantes, não se deu forma definitiva, vê-se que, de quando em vez retorna-se, mesmo que parcialmente, aos elementos da positividade. Hegel elimina a positividade quando escreve uma monografia intitulada Espírito do Cristianismo e seu destino, afirma Habermas. Deixando evidente a estrutura jurídico-social, agora sob a égide da subjetividade. Habermas indica, a partir de um exemplo, (1990, p. 38): um criminoso que viole as relações éticas, prejudicando e oprimindo a vida alheia, experimenta o poder da vida alienada pelo seu acto como um destino que lhe é hostil”. Ora, de acordo com Habermas, “ele sente como necessidade histórica de um destino aquilo que na verdade é apenas o poder reactivo da vida reprimida e extinguida. Este deixa sofrer o culpado até ele reconhecer na destruição da vida alheia a alienação de si mesmo” (Ibid.). Identifica-se, aqui, um novo aparato conceitual esboçando-se dialeticamente. O passo seguinte, já se apresenta um nível mais profundo de reflexão. Vejamos: nesta casualidade do destino, dirá Habermas, “o elo quebrado da totalidade ética retorna à consciência. A totalidade bipartida só pode ser conciliada se da experiência da negatividade do bipartido ascender a nostalgia da vida perdida” (Ibid. p. 38). Nesse novo aparato conceitual o elemento da positividade parece não mais existir, uma vez que, a pena como elemento restaurador subtrai o caráter abstrato. Ocorre uma contraposição clara entre as leis abstratas da moral, geralmente ligadas à religiosidade tradicional, com aquelas que surgem devido a quebra da totalidade ética pressuposta. Neste contexto, o sentido do positivo também mudará, pois será pensado a partir da subjetividade. Contudo, o jovem Hegel, será extemporâneo, no sentido que irá a outras épocas e experiências históricas para elaborar a conciliação de uma modernidade ainda desagregada. Conforme acentuará Habermas, pressupondo uma totalidade ética proveniente da comunidade cristã primitiva e da polis grega (Ibid. p. 39). Em Amor e vida, Hegel se posicionará contra a racionalidade autoritária centrada no sujeito, para tanto, lança a hipótese de uma intersubjetividade que teria o poder de realizar a conciliação. Hegel, no entanto, abandonará essa hipótese, pois, com isso, ele estaria antecipando uma teoria do agir comunicativo em 200 anos. Veja-se a fala de Habermas a esse respeito: “esta orientação do pensamento poderia ter dado o impulso para recuperar e transformar, do ponto de vista de uma teoria da comunicação, o conceito reflexivo da razão desenvolvido na filosofia do sujeito” (Ibid. p. 39). Teria sido o ponto de ruptura e inovação, pois Hegel se guiou até aquele momento pela ideia de uma religião popular na qual a racionalidade comunicativa assumia a forma idealizada de comunidades históricas, como o cristianismo primitivo associada ainda ao modelo da polis grega. Ora, a modernidade marca a ruptura com o passado, embora Hegel tenha se inspirado nos modelos grego e cristão, deles também se distanciará, uma vez que os moderns times conquistará sua independência pela via da reflexão. A modernidade – no sentido de sua epocalidade –
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tornou-se o tempo e o templo da autoconsciência. Assim, toda a polêmica entre fé e saber, proveniente das disputas entre Jacobi e Kant, de um lado, e Fichte de outro migrará, segundo Habermas, para a filosofia (Ibid. p. 40). Desfaz-se, portanto, a ilusão de que a religião positiva e a razão poderiam ser conciliadas pela via da renovação do espírito do cristianismo primitivo. Antes, porém, de desenvolver a autonomia da razão e da subjetividade na modernidade vejamos ou outro aspecto importante acerca da religião. De acordo com a leitura de Habermas, obviamente inspirada em Hegel, a religião da razão tem de se entregar à arte para se transformar em religião do povo. Vê-se uma necessária aproximação de duas esferas, ou em termos kantianos, de duas faculdades, a da razão e a da imaginação. Não se trata de mero mecanismo, ou simples estratégia, mas de uma nítida visão da realidade. Um movimento que visa o todo. Pois, acentua Hegel, “antes de as ideias serem tornadas estéticas, i. e., mitológicas, elas não têm qualquer interesse para o povo, e, inversamente, antes de a mitologia se tornar racional a filosofia tem de se envergonhar dela”. (HEGEL, Vol. I, p. 236, apud HABERMAS, 1990, p. 41). No entanto, nos Diferentzschrifft, Escritos da Diferença de 1801, Hegel já não mais faz esse apelo artístico, a justificativa desse desenlace se faz notar, pois a filosofia não se deixa submeter à arte. Esta pode ser entendida como a forma sensível em que o absoluto se apodera de si intuitivamente. Aduz-se mais algumas razões para tal afastamento, Ao vermos no esquema final da fenomenologia do espírito, percebemos que esse movimento levará a uma estruturação da arte, posta como primeiro momento, da religião em segundo e a filosofia em terceiro. Elas são formas de manifestação do absoluto. Porém, cada uma encontra-se delimitada ao seu devido objeto. A intenção fundamental de Hegel é realizar a grande unidade da modernidade cindida da qual a filosofia kantiana é espelho. A justificativa para tal projeto é que as identidades criadas a partir da filosofia kantiana são falsas, não passa de simulacro para Hegel. Conforme destaca Habermas, “Hegel coloca no lugar da oposição abstracta entre finito e infinito a auto-referência absoluta de um sujeito que alcançou a autoconsciência após ter saído da substância, que comporta em si tanto a unidade quanto a diferença do finito e do infinito” (Ibid. p. 42). O absoluto é aqui entendido ou concebido como processo mediador da auto-relação que se produz sem qualquer condição. Hegel afirmará, na sua maturidade, o princípio unificador agora proveniente de uma subjetividade absolutamente imanente. Assim, indica Habermas, “às positividades da fé e as instituições políticas, a eticidade bipartida (…) corresponde o dogmatismo da filosofia kantiana” (Ibid. p. 42). Na démarche desse processo de autocertificação da modernidade, com vistas à superação da cisão posta de forma evidente pela filosofia kantiana, Hegel formula a ideia do absoluto, sendo a única capaz de congregar de forma imanente a subjetividade cindida no longo processo do desenvolvimento do espírito na história. Esse processo se faz mais visível na composição final do espírito absoluto que congrega dialeticamente a arte, a religião e a filosofia. Conforme indica Habermas, “a arte é a forma sensível em que o absoluto se apodera de si intuitivamente, enquanto a religião e a filosofia representam formas superiores sob as quais o absoluto se representa e concebe” (Ibid. p. 43). Interessa-nos aqui mais precisamente a religião, por esse motivo, não investigaremos o desdobramento da filosofia da arte, como denominava Hegel em oposição ao termo estética. Embora a religião, assim como a filosofia sejam tratados como formas superiores através das quais o absoluto se representa e se concebe, esse segundo momento será dispensado por
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ele. Pois, conforme indica Habermas, ela atingiu a sua interioridade absoluta no movimento protestante, separando-se da consciência mundana da aufklärung. Nos termos de Hegel, “já não constitui preocupação para a nossa época não conhecer nada que provenha de Deus, antes é válido como uma intelecção superior que este conhecimento nem sequer é possível” (HEGEL, Vol. 16, p. 43, apud, HABERMAS, 1990, p. 44). Pode-se inferir dessa afirmação que a reflexão penetrou a religião, como também a arte e, desse modo, a crença substancial cedeu ou à indiferença ou à sensibilidade piedosa. No entanto, é deste ateísmo que a filosofia salvará o conteúdo da fé, destruindo, no entanto, a sua forma religiosa. A filosofia não poderá ter outro conteúdo, a não ser a religião, mas esta estará agora transformada em um saber do tipo conceitual. Arremata ele: “não há na crença nada mais que não seja justificado” (HEGEL, Vol. 17, p. 343, apud, HABERMAS, 1990, p. 44). Contudo, na ótica de Habermas, a sensação elegante causada pela reflexão hegeliana acerca desse processo de realização do absoluto, é ilusória, pois, recai sobre Hegel a resignação ao fim de sua filosofia da religião. Nos termos de Habermas, aquilo que a razão filosófica poderia causar seria uma conciliação parcial, isto é, “sem a universalidade externa daquela religião pública que deveria fazer o povo racional e os filósofos sensíveis” (HABERMAS, 1990, p. 45). Na verdade, o povo se encontra abandonado pelos filósofos, pois a filosofia se tornara um santuário isolado e conforme Hegel, “os seus servidores formam uma classe de sacerdotes que não pode caminhar a par do mundo”, pois, “o modo como a atualidade temporal e empírica sai da sua bipartição, como ela se organiza tem de ser deixado ao seu critério, e isso não é um assunto e um caso imediatamente prático para a filosofia” (HEGEL, Vol. 17, p. 343, apud, HABERMAS, 1990, p. 45). Vimos que Hegel realizou a sua crítica à modernidade bipartida e da subjetividade a partir da própria filosofia do sujeito, uma lição certamente aprendida de Kant quando este põe a razão no banco dos réus e, ela mesma estabelece os próprios limites do saber. A crítica de Hegel a toda a modernidade parte da própria subjetividade, tornando-a absoluta a partir de uma identidade racional. Lembramos que Hegel fez duas formulações: uma primeira, forte, quando afirma ser o real racional e o racional real e uma mais fraca quando entre o inverno de 1819/20 afirma que o “o que é racional devém real, e real devém racional” (HEGEL, 1983, p. 51, apud HABERMAS, 1990, p. 49). Contudo, todo esse esforço do pensamento também não passou de um momento dialético da história, pois toda afirmação já carrega em si mesma os germes de sua própria negação. Não foi diferente com o idealismo hegeliano. Se Hegel não previu o desenvolvimento subsequente da história que levaria a antípoda às filosofias sistemáticas, idealistas e totalizantes deveu-se aos limites do próprio tempo. No entanto, os elementos estavam lá diante dos seus olhos. Ele bem o sabia que a modernidade estava aberta ao futuro e não havia se apropriado de um modelo, estava, no dizer Habermas, ansiosa de inovações, mas teria apenas a si mesma como fonte, pois “o princípio da subjetividade, donde provém a própria consciência temporal da modernidade, é oferecido como fonte única do normativo” (HABERMAS, 1990, p. 49). Segue-se que que a razão que se apresenta na sua forma absoluta, e assim se reconhece, como sendo imponente diante de toda cisão, é também a única capaz de certificar a modernidade e, com isso autocerficar-se. A razão ocupou, assim, o lugar do destino e, conforme Habermas, “todo o acontecer de significado essencial já foi decidido” (Ibid. p. 49). Qual o preço de tudo isso? Pelo menos na ótica de Habermas, ocorreu um alargamento da
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atualidade e a crítica filosófica perdeu em agudeza, isto é, a filosofia parece ter se esquecido de suas características fundantes pois recusa-se a si mesma a autocrítica. Hegel cai na armadilha de uma filosofia totalizante, ao se afirmar ela nega qualquer movimento que não caiba no seu sistema de pensamento. Uma filosofia totalizante aberta pareceria uma contradição de termos e, nos parece, que Hegel não deu essa abertura, delegando à própria história que cumpriu o seu rito. Basta olharmos o que veio depois de Hegel. E o que veio? As muitas filosofias, que partindo de Hegel a negaram, tais como o materialismo histórico-dialético, a filosofia da existência, principalmente a de Kierkegäard em clara oposição a produção hegeliana, mas tendo em Hegel seu ponto de partida, uma fenomenologia que sugere um retorno às coisas mesmas, apenas para citar algumas. A religião, por sua vez, também se expandiu em formas, ritos e templos. O zeitgeist parece ter optado pela multiplicidade de formas e também de conteúdo, pois hoje temos religiões para todos os gostos. E, para aqueles a quem o discurso religioso não faz sentido, a oportunidade de imersão em um mundo sem religião, pois a liberdade agora parece absoluta e a subjetividade radicalizada. O saber científico vem se afirmando como o saber legítimo. Sua legitimidade se deve ao método e à sua capacidade de demonstração. Uma teoria científica, para lembrar Karl Popper, deve estar aberta ao falseamento. Quanto mais aberta mais forte pode se tornar. O que não pode ser demonstrado não se pode saber. Certamente estamos aqui nos atendo apenas a uma concepção científica, aquela mais próxima das ciências exatas e da natureza. No entanto, mesmo às ciências do espírito, não abrem mão do rigor metodológico e a compreensão racional perpassa as suas formulações. Desse modo, uma religião que não se aproxima da ciência parece fadada ao fracasso, pois estaria se opondo ao saber evidente, demonstrável. A fé parece, indelevelmente, condenada a uma racionalidade lancinante que corta nas veias da cultura tradicional ou mesmo positiva como anteriormente indicado. A tão decantada possibilidade entre os pensadores do medievo de conciliação entre fé e saber ou razão, parece na modernidade impossível. Pois, são campos completamente opostos, a fé estaria, assim, relegada ao campo da infantilidade ingênua como já indicara Sigmund Freud. Se há um caminho a seguir este seria o da razão, e ao tomarmos como referência o pensamento de Habermas, uma razão destranscendentalizada. Embora a tão esperada dissolução entre as esferas do saber e da fé só tem ocorrido no plano teórico, pois na prática a humanidade se metamorfoseia em formas religiosas distintas, pois permanecem crentes nas divindades -, seja única como as religiões monoteistas (Judaismo, Cristianismo, Islamismo) e sua muitas subdivisões ou as religiões politeistas. A questão nos parece clara. Permanecemos no nível da ingenuidade infantil por não termos desenvolvido plenamente a racionalidade ou a racionalidade técnica-científica não responde aos anseios humanos degringolando numa forma de poder que separa radicalmente a humanidade, a dos que sabem e a dos que crêem?
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_____. Escritos de Juventud. Tradução Zoltan Szankay e José Maria Ripalda. México: Fondo de Cultura Econômica, 1998. _____. Lecciones sobre Filosofia de la Religion (3 vols). Tradução castelhana Ricardo Ferrara. Madrid: Alianza Editorial, 1987. KANT, I. A Religião dentro dos limites da simples razão. Tradução portuguesa Artur Mourão. Lisboa: Edições 70, 1992. ROUSSEAU, J. J. O contrato social. 3ª ed. Trad. bras. Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1999. WEBER, M. Economia e sociedade - Vol. I e II. 4ª ed. Trad. bras. Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa. Brasília: UNB, 2009. _____. A ética protestante e o espírito do capitalismo. Trad. bras. de José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Cia das Letras, 2004.
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O Laboratório de Estudos Hegelianos (LEH/UVA-CNPq) propiciou, entre 2016 e 2017, aos acadêmicos e pesquisadores do semiárido cearense, mensalmente, o Ciclo de Conferências Paulo Meneses, um evento itinerante sobre filosofia hegeliana. A cada mês, em um ciclo de 10 conferências que antecederam o ‘I Colóquio Aufhebung: Intérpretes de Hegel’, um tema fora abordado nas dependências do Campus Betânia da UVA por acadêmicos pesquisadores do LEH e especialistas em filosofia hegeliana convidados. A ideia surgiu como parte dos objetivos almejados na criação do LEH: ser um espaço de conversação filosófica e interdisciplinar entre acadêmicos, pesquisadores e a sociedade, proporcionando “a exposição de um momento particular, ou de um grau particular no processo-de-desenvolvimento da Ideia” (HEGEL, Enz. §86 Anm.). A coletânea ora publicada é o resultado dessa proposta e pretende ser um instrumento de pesquisa, reflexão e “Aufhebung”.
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