Filosofia, Cidadania e Emancipação

Page 1

COLETÂNEA GT ÉTICA E CIDADANIA

Filosofia, Cidadania e Emancipação Antonio Glaudenir Brasil Maia Marcos Fábio Alexandre Nicolau O RG A NI Z A DO RES

PROMOÇÃO DA SAÚDE: um tecido bricolado

UFPB

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 1

UFPI

06/11/2016 13:24:57


Filosofia, Cidadania e Emancipação

2016 copyright by Antonio Glaudenir Brasil Maia, Marcos Fábio Alexandre Nicolau (Orgs.) Impresso no Brasil/Printed in Brazil Efetuado depósito legal na Biblioteca Nacional

Reitor Fabianno Cavalcante de Carvalho Vice-Reitora Izabelle Mont’Alverne Napoleão Albuquerque Diretor da Imprensa Universitária Marcos Fábio Alexandre Nicolau Conselho Editorial Agenor Soares e Silva Junior Aline Vieira Landim Antonio Glaudenir Brasil Maia Izabelle Mont’Alverne Napoleão Albuquerque Marcos Fábio Alexandre Nicolau Maria Somália Sales Viana Maristela Inês Osawa Vasconcelos Virgínia Célia Cavalcante de Holanda Revisão Raimundo Francisco Gomes Ilustração da Capa A chuva das horas – Wescley Braga Serviços gráficos SertãoCult Bibliotecário responsável: Neto Ramos CRB3/1374

F524 Filosofia, cidadania e emancipação / Antonio Glaudenir Brasil Maia, Marcos Fábio Alexandre Nicolau (Orgs.). Sobral: Edições UVA, 2017. 316 p.: ISBN.: 978-85-87906-93-9 1. Educação para a cidadania. 2. Emancipação. 3. Pensamento latino-americano. I. Maia, Antonio Glaudenir Brasil. II. Nicolau, Marcos Fábio Alexandre. III. Título.

CDD 370.1

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 2

06/11/2016 13:24:57


COLETÂNEA GT ÉTICA E CIDADANIA

Filosofia, Cidadania e Emancipação Antonio Glaudenir Brasil Maia Marcos Fábio Alexandre Nicolau O RG A NI Z A DO RES

PROMOÇÃO DA SAÚDE: um tecido bricolado

UFPB

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 3

UFPI

06/11/2016 13:24:57


Sumário GT Ética e Cidadania: uma caminhada de longos anos...........................6 Cecilia Pires, Jovino Pizzi e Glaudenir Brasil Apresentação........................................................................... 10 Etica y emancipación.................................................................. 13 José María Aguirre Oraa Justiça e Ética: condições de emancipação na América Latina................. 35 Cecilia Pires Justiça anamnética e emancipação das vítimas Dilemas e dívidas de nossa América Latina......................................................................... 53 Castor M.M. Bartolomé Ruiz Cultura democrática e emancipação na América Latina: entre Habermas e Amartya Sen............................................................................ 79 José Marcos Miné Vanzella El consenso democrático de Habermas. Debates frente a la demanda por el reconocimiento de la identidad cultural de los pueblos indígenas en América Latina................................................................................... 102 Juan Jorge Faundes Peñafiel O sujeito pronominal descaracterizado: filosofia da consciência e individualismo......................................................................... 125 Jovino Pizzi Novos desafios no trato dos direitos humanos: As tensões entre mera formalidade e demandas por sua efetividade (Uma análise ético-filosófica sob viés críticorealista)................................................................................ 143 Lorena Freitas

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 4

06/11/2016 13:24:57


Direitos humanos e filosofia: integração e diálogo intercultural.............. 164 Enoque Feitosa Alteridade Ecosófica e Cidadania Sul-Americana: Fundamentos para uma Ética da Vida................................................................................. 177 Neuro José Zambam e Sérgio Ricardo Fernandes de Aquino Do mundo-da-vida à educação da cidadania ativa............................... 195 Anderson de Alencar Menezes Formar o Cidadão: sociedade civil, cidadania e educação nas Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito de G. W. F. Hegel........................ 214 Marcos Fábio Alexandre Nicolau O resgate do saber teórico e prático e a legitimação de uma comunidade política................................................................................. 232 Ysmênia de Aguiar Pontes e Marcos Onete Fontenele Moreira Para além das diferenças de gênero: o enfoque político da ética do cuidado...253 Maria da Penha Felício dos Santos de Carvalho Política e Filosofia em Arendt e Vattimo.......................................... 268 Antonio Glaudenir Brasil Maia e Ricardo George Araújo Silva O totalitarismo como negação da liberdade política: compreensão e abertura no pensamento de Hannah Arendt................................................. 288 Alberto Dias de Souza, Natércia Sampaio Siqueira e Renata Albuquerque Lima Sobre os autores...................................................................... 309

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 5

06/11/2016 13:24:57


GT Ética e Cidadania: uma caminhada de longos anos Cecilia Pires Jovino Pizzi Glaudenir Brasil O GT Ética e Cidadania, desde seu início, reuniu pesquisadores, estudiosos, professores e alunos interessados em debater assuntos do âmbito cultural latino-americano. No Congresso da ANPOF em que o GT foi criado, a intenção manifesta era produzir um espaço de saberes, em que não apenas as ortodoxias do pensamento filosófico e os clássicos estivessem presentes, mas havia o entendimento de que outras abordagens filosóficas pudessem se fazer ouvir, de parte de outros continentes e não restrito ao Continente Europeu. A motivação evidenciava as questões do Brasil, da América Latina e de problemas relacionados com a África e a Ásia. Após diversos encontros, eventos e a criação de grupos de estudos sobre o tema da Filosofia Política, cria-se o GT (em 1988). Entre os objetivos, destacam-se a) a criação, o fomento e o apoio a grupos integrados de pesquisadores aglutinados em torno do núcleo temático de ética e cidadania; b) a releitura crítica, e socialmente comprometida, da tradição filosófica, visando contribuir para a universalidade do debate filosófico; c) o fomento do diálogo em torno da emancipação humana e ecológica. A partir dos anos 90, além da participação no Congresso Nacional da ANPOF, o grupo realiza eventos do próprio GT. Os encontros bianuais ocorrem no ano subsequente ao encontro nacional. A cada encontro (na ANPOF e específico), há uma publicação. Na verdade, o GT está organizado de tal modo 6

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 6

06/11/2016 13:24:57


que os resultados das pesquisas e dos relatos dos participantes sejam publicados como livro. Em alguns casos, os textos foram publicados em revistas da área. As produções do GT são o resultado dos encontros ocorridos nos eventos da ANPOF e nos Encontros específicos do GT, que acontecem no interstício do Encontro Nacional da ANPOF. Temse, pois números especiais de Revistas e Coletâneas que ora um ou outro membro do GT organiza, para divulgar a produção coletiva. Na maioria das vezes, essa organização fica a cargo do Coordenador do Grupo. Inicialmente, as publicações denotavam a temática latino-americana como predominante. À medida em que novos membros foram integrando o GT, novos olhares foram se expressando e assim ampliou-se o arco teórico-epistemológico, que se traduz em diferentes pesquisas e contribuições teóricas dos integrantes do Grupo. Desse modo, o rol de publicações se apresenta ao público acadêmico com a intenção de estabelecer diálogos cognitivos e políticos, na medida em que a Filosofia pensada pelo grupo não sofre de síndrome insular, de isolamento de qualquer tipo. Não há um selo ideológico no grupo, de modo a impedir a manifestação teórica dos pesquisadores que buscam referenciais outros, que não só a abordagem da Filosofia Latino-Americana. Enseja-se sempre que o tema originário não seja abandonado, o pensar da Latino-América, como foi o desejo do inspirador, Professor José Sotero Caio. Assim, ao longo dos anos, os encontros realizados pelo Gt resultaram, na sua maioria, em publicações coletivas com a participação direta de seus membros e de convidados conferencistas dos cenários nacional e internacional. No rol das publicações do GT, destacam-se: - Olhares da Filosofia Latino-Americana, foi o primeiro

Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 7

7

06/11/2016 13:24:58


livro, organizado por Cecilia Pires, publicado em 1999; - Vozes Silenciadas. Ensaios de Ética e Filosofia Política, também organizado por Cecilia Pires, publicado em 2003; - Desafios éticos e políticos da cidadania. Ensaios de Ética e Filosofia Política II, organizado por Cecilia Pires e Jovino Pizzi, publicado em 2006; - ETHICA, Cadernos Acadêmicos com trabalhos do III Encontro Nacional do GT, organizado por Maria da Penha Carvalho dos Santos, publicado em 2007; - Violência e perspectivas éticas da sociedade, organizado por Fernando Jader Magalhães, publicado em 2009; - Temas do Capitalismo Tardio. Ensaios de Ética e Filosofia Política, organizado por Maria da Penha Carvalho dos Santos e Jovino Pizzi, publicado em 2011; - Ética e Filosofia Crítica na construção do Socialismo do Século XXI, organizado por Antonio Rufino Vieira, publicado em 2012; - Filosofia latino-americana: suas potencialidades, seus desafios, livro organizado por Daniel Pansarelli, publicado em 2013; - Diálogo Crítico-Educativo. Desafios éticos e os descompassos da democracia na América Latina, livro organizado por Jovino Pizzi, publicado em 2015; - A dialética entre Valores e a forma jurídica, livro organizado por Marcos Miné Vanzella, publicado em 2015; - Anais do VII Encontro Nacional do Gt Ética e Cidadania, organizado por Antonio Glaudenir Brasil Maia, publicado em 2015 (Cf. https://encontrogtecanpof.wordpress.com/); - Na Coleção do XVI Encontro ANPOF, o GT também 8

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 8

06/11/2016 13:24:58


contou com publicações on line, com organização de Marcelo Carvalho, Jovino Pizzi, Maria Constança Peres Pissarra e Ricardo Bins di Napoli (Cf. http://anpof.org/portal/images/Colecao_ XVI_Encontro_ANPOF/ANPOF_Etica_e_Filosofia_Politica.pdf), publicado no ano 2015; - Democracia, tolerância e direitos culturais na América Latina, organizado por Daniel Pansarelli e Neuro Zambam, publicado em 2016. Com a realização da VII edição do Encontro do Gt Ética e Cidadania, no ano de 2015, na cidade de Sobral/Ceará, o Gt mantém a regularidade dos eventos e que todas as publicações serão classificadas como Coletânea Gt Ética e Cidadania.

Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 9

9

06/11/2016 13:24:58


Apresentação Os textos do presente livro são frutos da realização do VII Encontro Nacional e IV Encontro Internacional do Gt Ética e Cidadania da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (ANPOF), realizado em 2015, na cidade de Sobral/Ceará, com a temática Filosofia, Educação e Emancipação Humana: a ética e a cidadania no contexto da América Latina. Com a organização desta obra, o Gt Ética e Cidadania/ ANPOF mantém a tradição de contribuir com a comunidade acadêmica e o público em geral através da publicação das reflexões e dos debates ocorridos no seu encontro anual, cuja ressonância é impossível mensurar, mas, sem dúvida, será objeto de intensas leituras e servirá como fonte de pesquisa, não apenas no âmbito da academia pela importância da temática abordada. A proposta da temática teve como um dos principais objetivos, além de reunir professores, pesquisadores e debatedores de diferentes instituições, apresentar reflexões sobre as questões pertinentes a situação da ética, da cidadania, da democracia, da justiça, dos direitos humanos, da política, da educação, dentre outros, que contribuam para a efetiva emancipação humana. A categoria da emancipação, de forma direita e indireta, constituiu o eixo articulador das reflexões, dos mais diversos pontos de vistas dos colaboradores, dentro e fora do contexto da América Latina, por considerá-la valor irrevogável e precípuo para a existência humana. Aos autores, nosso agradecimento pela contribuição valorosa para a viabilização do livro. Os temas tratados por eles

10

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 10

06/11/2016 13:24:58


evidenciam a importância do diálogo com diferentes correntes e sistemas de pensamento, cuja interlocução presume a abertura para o discurso plural, a atitude dialógica que consegue agregar diferentes pensadores e pesquisadores, sem olvidar em discutir, de forma crítica, as questões filosóficas que permitam fazer justiça à emancipação e no reconhecimento de todos. Eis a marca inconfundível do Gt Ética e Cidadania. É importante aqui ressaltar o significativo apoio que a CAPES, o CNPq, UVA, UECE e da Faculdade Luciano Feijão para a realização do evento e para a publicação de mais um livro do Gt. À todos, uma excelente leitura. Os organizadores.

Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 11

11

06/11/2016 13:24:58


Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 12

06/11/2016 13:24:58


Etica y emancipación José María Aguirre Oraa La constitución intersubjetiva humana. El tema de la interpersonalidad se presenta en las reflexiones de la filosofía contemporánea no como tarea de una disciplina filosófica, sino como el cometido de la filosofía «primera». La existencia humana se nos aparece, y no de manera aleatoria, como constitutivamente intersubjetiva. Para ello se pueden tomar en consideración y analizar en profundidad diferentes fenómenos de la existencia humana como el amor, el trabajo o el saber, pero también podemos centrarnos en la constatación del hombre como el ente que piensa-habla. El lenguaje, como expresión del pensamiento, sólo tiene sentido en una situación de estricta interpersonalidad, ya que implica la estricta alteridad de quien, desde su intimidad subsistente, «responde». La comunidad de quienes hablan y dialogan es forzosamente una comunidad de auténticos yos. Por tanto el lenguaje pone de manifiesto a la persona ex-sistiendo constitutivamente en la esfera de la interpersonalidad o del «nosotros». Si analizamos con atención las preguntas antropológicas fundamentales, planteadas por Kant: ¿qué puedo saber, qué debo hacer, qué puedo esperar?, veremos que en estas cuestiones se pregunta realmente no qué soy yo, sino qué somos nosotros. En primer lugar el saber es auténtico saber en la verdad cuando implica universalidad y necesidad. Implica que lo «sabido» y «expresado» en el juicio está ex-puesto a la comunidad de los sujetos racionales que pueden enjuiciar mi juicio. En segundo lugar la pregunta por mi comportamiento moral implica

Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 13

13

06/11/2016 13:24:58


esencialmente un saber del «otro» (¿como cosa, medio o fin en sí mismo?) y sólo tiene sentido en relación al «otro» en la medida en que me pregunto cómo debo comportarme ante él. Finalmente la esperanza tiene una urdimbre constitutiva comunitaria e interpersonal. Qué será de mí implica qué será de nosotros, ya que mi yo -mi vida, mi felicidad o mi desdichaestá indisolublemente ligado a lo que será -la vida, la felicidad, la desdicha- del «otro» con el que estoy vinculado y forma parte de mi yo. La presencia del «otro» en la propia constitución del yo es por otra parte un dato fenomenológicamente verificable: en el niño primeramente acontece la vivencia de los «otros» que le rodean y posteriormente se distancia de ellos, descubriendo que él no es el «otro» y que subsiste en sí mismo, como principio de sus actos. En esta autoconstitución del yo actúa también decisivamente la «llamada» de los «otros» que le interpelan y se comunican con él. Dicho en términos trascendentales, el «nosotros» es el ámbito en el que se determina el yo como yo. Gabriel Marcel lo ha formulado así: «No puedo pensarme a mí mismo como existente, sino en tanto en cuanto me concibo como no siendo los otros, como “otro” que ellos... El yo no existe, sino en tanto en cuanto se trata a sí mismo como siendo para el “otro”, en relación al otro; por consiguiente en la medida en que reconoce que escapa a sí mismo» (MARCEL, 1935, p. 151). El yo se realiza ex-sistiendo en el mundo y con los «otros» con los que comparte totalmente el mundo. Es claro que el yo sólo puede realizarse en los comportamientos de saber, amor, fidelidad, respeto, trabajo... pero éstos, a su vez, resultan inconcebibles e imposibles sin la presencia de los «otros». El amor, por ejemplo, sólo es posible en la presencia inmediata del otro, en estricta alteridad (como auténtico tú) y en la unidad sin confusión del «nosotros», en el sentido del amor como «identidad heterogénea» o «la más profunda unidad en 14

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 14

06/11/2016 13:24:58


perfecta dualidad». Aunando las perspectivas trascendental y dialógica el «otro» se evidencia como un auténtico tú (otroidad, alteridad), en presencia inmediata, en reciprocidad de autoposición y afirmación (lenguaje, relación ética y amor) y en el que el yo se constituye. El «otro» no aparece como producto o término de una relación intencional, ni unilateral, ni recíproca, sino que se actualiza en el encuentro en el que ambos se afirman recíprocamente. Con ello queda superada de raíz toda concepción del yo como esencia completa que no posea referencia constituyente al «otro». El tú es tan originario como el yo, el cual sólo es ex-sistiendo ante el tú. Negar al tú sería negar la propia mismidad personal. Habría que corregir la perspectiva de Descartes y decir a partir de él abiertamente: cogito (totalidad de la vida de la conciencia: pensamiento y volición), ergo sumus. La afirmación incondicional del otro. El hombre, por ser libertad, se encuentra frente a la libertad del otro. La afirmación de la libertad del otro es mi condición óntica, aquello a lo que constitutivamente, quiera o no, estoy «atado» o, según Sartre, forzosamente «condenado». Dicho en otros términos, ni mi libertad ni la libertad del otro se me presentan, ni pueden en este estadio existencial primario ser afirmadas como valor o bien, como algo que debe ser. La libertad tiene que someterse a esta «forzosidad» e incluso aceptarla como tal, pero no tiene por qué afirmarla como un valor de calidad. Por consiguiente es absolutamente necesario realizar un salto (quizás sea la mejor expresión) de nivel o estamento óntico. Pero, ¿se realiza o se actualiza tal salto? ¿Aparece la libertad como bien en sentido estricto, como algo que exige ser afirmado de modo que su afirmación no se me «imponga» Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 15

15

06/11/2016 13:24:58


como una necesidad, sino como un «con-vencimiento»?1. Esta es la pregunta radical en cuya respuesta nos jugamos la fundamentación de una ética emancipadora. En esta relación intersubjetiva, en la que yo estoy frente al otro, el otro se me aparece no solamente como una exigencia puramente de hecho, una realidad fáctica, que se impone a mi libertad, sino como una exigencia en sí misma justificada. La libertad ajena se me presenta, de hecho, no como algo que simplemente está-ahí, en mera donación fáctica, sino como algo que está-ahí (frente a mí) debiendo ser, como algo que no sólo es o tiene que ser afirmado por mi libertad, sino como algo que debe ser afirmado por mi libertad. Este momento de deber-ser o de la libertad del otro como bien moral no se puede reducir al momento anterior del mero estar-ahí o tener-que-ser fáctico. De ahí que la aprehensión de este momento de deber-ser exige una nueva actualización aprehensiva que es distinta, que es heterogénea cualitativamente de la aprehensión en que caigo en la cuenta o «soporto» la libertad ajena. Ahora bien, y ésta es una pregunta radical y fundamental: ¿cómo sé que la libertad ajena es, en sí misma, algo que debe ser, cuál es el fundamento este deber ser? La única respuesta razonable a esta pregunta me parece la siguiente: porque así se me presenta y así la veo. Estamos aquí ante un dato originario e irreductible de la constitución del ser-hombre, en el que la reflexión filosófica sólo puede tener la misión de referir o conducir a esta visión. Ahora bien, esta conducción se puede llevar a cabo de dos formas: de manera positivo-indirecta y de manera negativa. De una manera positiva-indirecta esto se realizaría 1  En esta argumentación sigo de manera libre los planteamientos delineados por José Manzana Martínez de Marañon (1928-1978), un gran filósofo maestro de pensamiento y amigo, muerto joven en un accidente de montaña, en su tentativa de fundamentar racionalmente la afirmación absoluta del otro.

16

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 16

06/11/2016 13:24:58


poniendo a cada uno de nosotros ante el rostro concreto del otro y preguntándole si no ve que debe afirmarlo, si la exigencia que se hace presente en tal rostro no es justificada como algo que debe ser «obedecido», si afirma en serio que es indiferente violentar, borrar, destruir, manipular esta libertad que está presente ante él; en definitiva se trata de preguntar si considera que ello es simplemente una «comprensión» subjetivo-emocional o se trata de una opción o exigencia en sí misma justificada. De una manera negativa se puede conducir a esta visión mostrando, por el proceso lógico anteriormente descrito, que la destrucción de la libertad o del rostro ajeno es la autodestrucción de mi libertad y de mi rostro, la renuncia a mi mismidad como presencia ante mí y libertad. No hay libertad propia posible si no hay libertad del otro real, si no existe un universo de libertades. Con este planteamiento alcanzamos un momento fundamental en la intelección del ser-hombre. El reconocimiento de la libertad ajena como bien, como exigencia en sí misma justificada o, si se quiere, como digna de ser afirmada, me patentiza la dignidad y valor de mi libertad. El otro me libera o me eleva sobre la mera facticidad o forzosidad de mi libertad y me hace en verdad libre. Me hace en verdad libre porque hace posible que yo me afirme como libre, esto es porque quiero, en el sentido más pleno del término, no simplemente porque soy libre o estoy forzado a ser libre, sino porque es bueno que sea libre. El querer no es aquí una imposición o un vencimiento, sino un con-vencimiento. Por el reconocimiento como bien de la libertad del otro puedo decir «así sea» (y no simplemente no tengo más remedio que) a mi libertad. Por lo tanto, el momento decisivo es la visión-afirmación de la libertad del otro. Ahora bien, sería un error entender esta visión-afirmación

Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 17

17

06/11/2016 13:24:58


de la libertad ajena o propia como visión-afirmación de un mero contenido objetivo o valor que está ahí dado. El valor o lo valorado no es originariamente algo objetivo frente al hombre, sino la existencia humana misma. Lo que se afirma no es, propiamente, un contenido, sino la actualidad en que yo y el otro nos constituimos como libres o si se quiere como yo y tú. Y la «evidencia» o «justificación» de esta afirmación, coincidente con la constitución del ser hombre, se patentiza en el mismo acto. Este es el núcleo de lo que se puede considerar una fundamentación antropológica de la moral, un desvelamiento de la afirmación moral de la libertad ajena o del otro, como constitutiva del ser-hombre. El alcance social y político de esta perspectiva fundamentada es enorme. Cualquier organización humana social y política debería medirse por el respeto escrupuloso y real de la intersubjetividad humana, sin cosificar, esclavizar o aniquilar al «otro» que somos todos, al «prójimo» que somos todos. Como dice José Manzana: «La presencia del otro en mi mundo revela la “injusticia” de mi yo como mero poseedor-dominador de mi mundo [...] Sólo la aceptación del otro en mi mundo (la fraterna hospitalidad y comunicación del mismo mundo con el otro) me libera del “salvajismo” en que yo mismo me desprecio y me permite afirmarme en dignidad. Mi justificación es la práctica de la justicia» (MANZANA, 1976, p. 32). De ahí que la afirmación del otro constituye el contenido nuclear de toda moralidad tal como la vive la conciencia en el discernimiento entre el bien y el mal. Por eso el contenido definitivo y terminal de la afirmación moral no es un mundo de valores que remitiría a mi subjetividad dominadora como fuente de valorización, sino el tú concreto e individual que me sale al encuentro y me constituye humanamente. Lo que se afirma no es una idea, una legalidad o un valor, sino la persona concreta e individualmente ahí presente, el tú inmediato que está ante mí 18

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 18

06/11/2016 13:24:58


y la comunidad real de los hombres que me rodean en su directa mismidad. Por otra parte hay que destacar también el carácter incondicionado de esta afirmación moral del otro. Afirmar al otro incondicionalmente en su mismidad concreta e individual, es afirmarlo independientemente de toda circunstancia y situación y, por lo tanto, con exclusión de toda posible excepción. Siempre será absolutamente malo cosificar y reducir al otro a la condición de medio o instrumento de mi capricho, de mi interés o de mi sistema de ideas y valores. En caso contrario la utilidad, aunque sea social y «mayoritaria», tiene la última palabra y queda muy alicorta. Creo que desde tal afirmación moral del otro como deber ser pueden indicarse determinadas líneas generales de conducta moral. Además la base que se ha puesto es lo suficientemente positiva como para no fundar la moralidad en una mera formalidad, y al mismo tiempo es lo suficientemente amplia como para permitir la decisión, es decir, precisamente el riesgo de la decisión moral. Siempre será absolutamente malo esclavizar, oprimir, degradar, expoliar, frustrar, asesinar, embaucar, timar, chantajear o enrolar forzosamente a la persona individual, como simple material humano, en una empresa terrena o pretendidamente «divina» que él no afirma ni sostiene. En palabras de Levinas: «El yo humano se implanta en la fraternidad: que todos los hombres sean hermanos no se agrega al hombre como una conquista moral, sino que constituye su ipseidad. Porque mi posición de yo se efectúa en la fraternidad, el rostro puede presentarse como rostro. La relación con el rostro en la fraternidad en la que el otro aparece a su vez como solidario con todos los otros, constituye el orden social...» (LEVINAS, 1977, p. 287). Esta fundamentación moral no es ni individualista ni

Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 19

19

06/11/2016 13:24:58


abstracta, puesto que la afirmación del otro es la afirmación de todo el otro en el mundo real en el que ex-siste. Además esta fundamentación puede dar lugar a una moral no cerrada, sino abierta; precisamente por no ser afirmación moral de valores concretos, este planteamiento impone al hombre la tarea de buscar, en comunidad, los «modos» concretos mundanos de afirmación real y efectiva de la libertad de todos. Por último quisiera señalar que, en mi opinión, toda persona moral vive en esta presencia afirmante de la libertad, o más ampliamente del rostro del otro. Sólo he buscado explicitar esta motivación realmente actuante en toda persona moral y mostrar tanto su carácter cognitivo (elevarla al ámbito cognitivo más allá de lo arbitrario-opcional y de lo subjetivoemocional y por encima de la consideración científico-fáctica) como sus implicaciones antropológicas. Porque de eso se trata, de no dejar esta perspectiva fundamental moral al socaire de una decisión de valor o de un sentimiento de fraternidad; no se trata exclusivamente de una cuestión de sentimientos, de afectividad (cosa que tampoco habría que rechazar), sino de una cuestión de razón, de interés de razón, de razón práctica. Esta es una argumentación que la conciencia moral aprehende directamente: la indignación ante la injusticia y la opresión surge vitalmente para toda conciencia que no se haya embotado con el suave envoltorio de la conformidad o la resignación o que no se haya embrutecido con el salvajismo de la dominación y la injusticia. Ética crítica Es necesario, por tanto, reivindicar un concepto amplio de razón donde la razón práctica (ética y política) pueda ser considerada al mismo nivel que la razón teórica (en el sentido de razón «científica») y pueda aparecer como capaz de romper incluso las unilateralidades y las limitaciones de esta última. 20

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 20

06/11/2016 13:24:58


André Berten lo señala con gran perspicacia: «La modernidad occidental debe ser comprendida como una racionalización selectiva de la sociedad y como una extensión indebida de una forma particular de racionalidad, la racionalidad instrumental, a todas las esferas del actuar social. Esta extensión patológica es la que ha frenado el desarrollo de una ética universalista y la que explica, por ejemplo, que los «neoconservadores» puedan disociar la modernización social de la modernidad cultural, aceptando plenamente los efectos del progreso técnico y el desarrollo de la economía capitalista y rechazando absolutamente las exigencias de universalidad de la moral» (BERTEN, 1990, p. 362). Una modernización económica y política monomaníaca, fundamentada en el monopolio casi exclusivo de la racionalidad instrumental, debe ser contestada y reorientada, aún teniendo en cuenta sus aciertos, por una racionalidad práctica que sepa indicar y profundizar sus exigencias de universalidad en los terrenos de la moral y de la política. Existen perspectivas filosóficas que yo reivindico y que no separan la ética de la razón, sino que las articulan. Hay una articulación unitaria de la razón, reivindicando la tradición kantiana y fichteana, que muestra y justifica incluso una cierta primacía de la «razón práctica» sobre la «razón teórica». Quizás pudiera ocurrir que el destino ético del hombre sea la entraña más secreta de la historia humana, pues la ética es una dimensión constitutiva de la existencia humana y no una adición exterior pegada a la existencia «natural», biológica, del hombre. La ética no es un lujo cultural, ni un instrumento de dominio de sacerdotes y poderosos, ni un producto de mentes mediocres y resentidas, aunque históricamente haya sido utilizada en estos sentidos. La ética es más bien el esfuerzo de la razón humana por pensar su emancipación y realizarla. «Hay una conexión estrecha entre la razón y la ética, pues la razón no es solamente el esfuerzo, en nosotros, por comprender la Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 21

21

06/11/2016 13:24:58


totalidad y descifrar su sentido. También es el poder que nos hace responsables de nosotros mismos y el esfuerzo por el que intentamos igualarnos a la exigencia que pone de manifiesto esta responsabilidad. Y es que la razón no es solamente lo que nos hace participar en lo universal, el lugar de una comunicación en principio sin límites, sino que es también este lugar secreto, en el que en cada vida se escucha el llamamiento singular que la concierne en su más íntimo ser y se decide lo que la razón hará en definitiva e irrevocablemente de sí misma» (LADRIÈRE, 1977, P. 10-11). Las reflexiones de Herbert Marcuse ofrecen la posibilidad de fundamentar la ligazón profunda entre ética y emancipación. Marcuse, en el transcurso de unas conversaciones mantenidas con estudiantes alemanes y con Habermas, nos proporciona dos indicaciones claras para sostener una fundamentación justificada de la razón ética. La primera sería: «En la exigencia de la razón no resuena otra cosa que una vieja verdad, a saber, la exigencia de crear una organización social en la que los individuos regulen en común su vida de acuerdo con sus necesidades [...]. Cuando apelamos al derecho de la humanidad a la paz, al derecho de la humanidad a acabar con la explotación y la opresión, no se trata aquí de intereses especiales de grupo, que el mismo grupo haya definido, sino que se trata de intereses de los que se puede demostrar que constituyen un derecho universal» (HABERMAS, 1985, p. 290 y 296). Las exigencias éticas surgen del mismo terreno habitado por las exigencias de la razón, no son extrañas a la razón, sino más bien constitutivas de ella. Por otra parte las exigencias éticas pueden ser universalizables, capaces de satisfacer las exigencias que requiere nuestra razón respecto a cualquier enunciado con pretensión universalista. En este sentido el campo de la razón queda ampliado y no se restringe al ámbito de los enunciados que sólo pueden ser corroborados o verificados por la realidad «empírica». 22

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 22

06/11/2016 13:24:58


Más tarde, en la misma tentativa de examinar, explicar y justificar los fundamentos normativos de una teoría crítica, ligada a la liberación humana, Marcuse, rodeado de aparatos en una clínica y ya cerca de la muerte, nos proporciona otra indicación sugerente: «¿Ves? Ahora sé en qué se fundan nuestros juicios valorativos más elementales: en la compasión, en nuestro sentimiento por el dolor de los otros» (HABERMAS, 1985, p. 296). La ubicación antropológica de la ética aparece con nitidez, abriéndose al campo de la intersubjetividad humana. La pasión por la dignidad humana, la com-pasión por el dolor de los otros es fundamento de una ética que no acepta la opresión y la alineación, sino que busca la emancipación. La perspectiva fenomenológica de Jean Ladrière nos señala un camino similar. «La presencia del otro en el campo de la acción provoca un descentramiento radical de la existencia; ahora es otra existencia la que se convierte como tal en apelación concreta, singular, imponiéndose de manera irrevocable. [...] El otro nos interpela en su existencia misma, no en tal o cual forma de falta, sino simplemente en su calidad de ser él mismo una existencia, por tanto de estar asignado a una tarea que hace valer en ella misma una exigencia ineludible, estar constituido como fin en un sentido radical. El llamamiento que viene del otro es reconocido en un sentimiento que es la resonancia inmediata, en la afectividad, de una presencia que se impone como interpeladora y fundamentando una responsabilidad» (LADRIÈRE, 1997, p. 157). El otro está presente a nuestra existencia integral, a nuestra afectividad y a nuestra razón, como un fin a respetar y a promover absolutamente. Una moral que considere al ser humano como un medio, de una u otra forma, acaba negándolo. Y negando también las experiencias de amor humano, que son características propias de la humanidad. Aquí es donde, según Javier Sádaba, se fundamenta una moral que no sea mero cálculo o arreglo pragmático. «La Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 23

23

06/11/2016 13:24:58


razón estriba en que ser moral supone considerar a la persona como valor en sí mismo [...] La justificación última de la moral, la más convincente, aquella que supera a las demás, es aquella que supone ciertos derechos morales en todos los sujetos. Tenemos, en suma, mejores razones para justificar, por ejemplo el enunciado “no se debe torturar” apoyándonos en la idea de que todo ser humano es un fin en sí mismo que en la noción utilitarista de que la tortura, a la corta o la larga, trae mayores males para la comunidad. Y en este caso hablamos de razones...» (SÁDABA, 1995, p. 42-43). ¿No existe también un núcleo ético fundamental en las perspectivas de emancipación proclamadas por Marx, a pesar de sus duras críticas contra el socialismo utópico? Curiosamente y aunque Marx no lo reconozca expresamente por su obsesión de fundamentar «científicamente» (con grandes dosis de positivismo) un análisis de las sociedades humanas y de su historia que busque una salida humana para el género humano, la emancipación humana no es un dato que se deriva sin más de un análisis material de las contradicciones inherentes a las formaciones sociales, sino también un asunto de ética y de razón. De «razón amplia» evidentemente, como acertadamente indica Jean Ladrière (raison élargie), no de razón positivista, pero de razón a fin de cuentas2. El análisis concreto, material y «materialista» (anti-idealista) de las causas y de las raíces sociales de la alienación y de la explotación humanas en las 2  La acertada denominación de «raison élargie» (razón amplia) pertenece a Jean Ladrière. Ver a este respecto LADRIERE, 1973, p. 29-30; LADRIÈRE, 1977, p. 193-196. Reproduzco un texto de este último libro: «Aunque la razón científica está fuertemente valorada, ella no está considerada corno la instancia única que tendría que fijar en última instancia las finalidades sociales. Ella no es aprehendida más que como un componente de una razón más amplia, que debe dar una interpretación global de la condición humana y de la historia y proporcionar a la acción política las finalidades a largo plazo de valor ético de las que el desarrollo científico mismo debe recibir su sentido y su orientación». El subrayado es mío.

24

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 24

06/11/2016 13:24:58


formaciones sociales capitalistas busca superar esta situación inhumana, injusta, para llegar a un estado emancipado, liberado, donde cada hombre y cada mujer puedan encontrar su dignidad, su humanidad perdida, su libertad propia, su dimensión interpersonal. Quizás estas perspectivas, de manera irónica, se han mostrado demasiado «idealistas», si analizamos la historia del socialismo, pero creo que ellas se apoyan, sin reconocerlo de manera explícita, en una concepción ética mínima de justicia y de reciprocidad entre los hombres. ¿Quién se ha movilizado social y políticamente por el sólo análisis social, aunque sea absolutamente necesario para radicar efectivamente el sentido de nuestra acción?, ¿no existe en el fondo de toda lucha contra la injusticia una pasión de humanidad, un empeño de emancipación, que mueve nuestra existencia? Dentro de otro horizonte filosófico, ¿qué otra cosa indican las reflexiones de la Escuela dialógica, las reflexiones de Martin Buber, de Gabriel Marcel, de Enmanuel Levinas. El hombre se constituye en cuanto hombre ante el otro y con el otro, en el respeto absoluto del otro. «El yo no existe, sino en tanto en cuanto se trata a sí mismo como siendo para el “otro” y en relación a él» (MARCEL, 1935, p. 151). El yo se realiza existiendo en el mundo y con los «otros» con los que comparto el mundo. El «otro» y yo nos actualizamos en el encuentro en que ambos no nos negamos, sino que nos afirmamos recíprocamente. Emmanuel Levinas lo indica con claridad y con contundencia: «La experiencia irreductible y última de la relación me parece que está en otra parte: no en la síntesis, sino en el cara a cara de los humanos, en la socialidad, en su significación moral. Pero es preciso comprender que la moralidad no viene como una capa secundaria, por encima de una reflexión abstracta sobre la totalidad y sus peligros; la moralidad tiene un alcance independiente y preliminar. La filosofía primera es una ética» (LEVINAS 1982, p. 71). Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 25

25

06/11/2016 13:24:58


La existencia humana es una existencia no realizada, que descubre la necesidad, en virtud de su constitución esencial, de determinarse para realizarse. El movimiento profundo (el telos) que lleva a la existencia siempre más allá de sí misma tiene por sentido conducirla hacia su bien. Y el bien del ser humano es la realización integral de la humanidad en él, es decir la realización de todas las condiciones que deben permitir que su existencia efectiva coincida con lo que está exigida por su modo de ser específico. En este sentido es preciso añadir que esta realización de la existencia es una tarea confiada a la misma existencia, a su propia responsabilidad. La existencia es responsable de su propio advenir. Y al mismo tiempo experimenta que está realización constituye el núcleo más esencial de su existencia, ya que se trata en definitiva del destino de su ser mismo, de su libertad, de su naturaleza de ser espiritual. «Si hay una problemática ética, es porque la existencia está constitucionalmente atravesada por un deseo fundamental, por un querer profundo que apunta a la realización auténtica de sí misma y que correlativamente tiene la tarea de asumir por sí misma, en la acción, esta realización. Dicho de otro modo, la problemática ética se refiere a la adecuación entre el querer profundo de la existencia y su querer efectivo, es decir la responsabilidad que le es confiada respecto a su propio ser [...] Pero, el ser que ha recibido es un ser de iniciativa, fuente de determinaciones nuevas, que se afecta continuamente a sí mismo por lo que hace. Es un ser llamado a construirse a sí mismo en su acción. Se podría decir que lo que está en juego en esta construcción no es la simple realidad de su ser, que, hay que recordarlo, le está dada, sino la calidad de su ser. De ella depende esta calidad. La expresión “vida buena” designa precisamente una forma de vida en la que la existencia se confiere efectivamente la calidad que está en su vocación darse» (LADRIÈRE, 1997, p. 34).

26

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 26

06/11/2016 13:24:58


Ética y emancipación El pensamiento filosófico de Jürgen Habermas en su primera época (luego esta perspectiva ha quedado a mi juicio diluida, si no liquidada) señalaba con claridad la íntima ligazón que existe entre razón y emancipación. «El interés por la emancipación no es solamente una vaga idea; puede ser vislumbrado a priori. Aquello que nos distingue de la naturaleza, es cabalmente la única realidad que podemos conocer según su naturaleza: el lenguaje. Con la estructura del lenguaje es planteada para nosotros una exigencia de emancipación. Con la primera frase pronunciada se expresa inequívocamente también una voluntad de consenso universal y sin coacciones. La emancipación (autonomía) es la única idea de que disponemos en el sentido de la tradición filosófica. Quizás sea ésta la razón por la cual el lenguaje del idealismo alemán, para el cual el concepto de «razón» comporta los dos momentos de la voluntad y de la conciencia, no está finalmente superado. Razón quería significar al mismo tiempo voluntad de razón» (HABERMAS, 1984, p. 177). Razón y voluntad, racionalidad y deseo íntimamente unidos. La razón no es sólo razón de comprensión de la realidad, es deseo de transformación de la realidad, es voluntad de emancipación. El movimiento profundo que conduce a la existencia humana siempre más allá de sí misma tiene por sentido conducirla hacia su bien. El bien es, por tanto, un telos, un término finalizante que indica hacia dónde tiende la dinámica existencial humana, la dinámica de su libertad. Paul Ricœur señala con absoluta perspicacia: «La vida ética es una perpetua transacción entre el proyecto de libertad y su situación ética dibujada por el mundo dado de las instituciones [...] Sin embargo, una hermenéutica que por su parte se desligara de la idea de emancipación, no sería más que una hermenéutica de las tradiciones y en este sentido una forma de restauración filosófica [...] La relación entre el proyecto de libertad y la Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 27

27

06/11/2016 13:24:58


memoria de sus conquistas pasadas constituye un círculo vicioso solamente para la comprensión analítica, no para la razón práctica» (RICŒUR, 1973, p. 164-165). La filosofía es una autoreflexión radical y crítica que animada por su interés emancipador asume con decisión un papel histórico de guardián de la racionalidad tanto en el ámbito cognitivo, como en el ámbito práctico y expresivo-estético. Ahora bien, para realizar esta tarea, es preciso rehabilitar la práctica racional, hacer aparecer la unidad profunda y substancial, aunque sea tensional, entre «razón teórica» y «razón práctica», entre la problemática de la verdad y la de la justicia. La razón no solamente tiene un ámbito de comprensión, sino que está habitada por un horizonte de realización, de voluntad de emancipación. Si la idea de emancipación es una idea central en la reflexión filosófica, si la razón comporta de manera indisoluble los dos momentos de la conciencia y de la voluntad, la conciencia ética, la conciencia práctico-política no debe quedar excluida del ámbito de la razón, del ámbito de lo racional. La conciencia ética no debe ser expulsada fuera de la «ciudad científica», como si fuera una «razón espuria».Y cuando la conciencia ética analiza y denuncia la irracionalidad de un sistema socio-económico que aplasta a las grandes mayorías, cuando pone de relieve el carácter no racional de este sistema porque no se ajusta a las exigencias de respeto por todos que se derivan de la razón práctica, la conciencia denuncia de manera justa, en conformidad con las exigencias de la razón. Evidentemente defiendo un concepto de razón que no la restringe a lo que se podría denominar razón «científica o positiva». Defiendo un concepto de razón «amplia», como ya he indicado anteriormente, pero no porque se trate de una ocurrencia intelectual deslumbrante o porque quiera mantener planteamientos estrambóticos, sino porque la dinámica de la razón así nos lo muestra. En una dialéctica permanente entre 28

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 28

06/11/2016 13:24:58


sus propias exigencias y los análisis de realidad efectuados, la conciencia encuentra en sí misma la llamada de un deber ético, la exigencia de desactivar los mecanismos de irracionalidad, y experimenta la necesidad de buscar caminos de liberación, de racionalidad humana. En esta dinámica la conciencia se convierte también en praxis de liberación, en esfuerzo de emancipación, en definitiva en voluntad de razón. Por consiguiente, la conciencia ética no desarrolla un conocimiento contemplativo, frío y abstracto, sino un conocimiento ligado íntimamente a la transformación, un conocimiento «práctico», un conocimiento con interés de emancipación. Nos lo sugiere Paul Ricœur, cuando reivindica el papel destacado de la afectividad, de los sentimientos morales, en la existencia humana y en el ámbito práctico. «El respeto no constituye, a mi entender, más que uno de los móviles susceptibles de inclinar a un sujeto moral a “hacer su deber”. Sería preciso, si fuera posible, desplegar la gama entera de los sentimientos morales, como comenzó a hacer Max Scheler en su Ética material de los valores. Se puede nombrar la vergüenza, el pudor, la admiración, el coraje, la dedicación, el entusiasmo, la veneración. Yo desearía poner en un lugar de honor un sentimiento fuerte, como el sentimiento de indignación, que tiene como objetivo en negativo la dignidad del otro así como la dignidad propia; el rechazo de humillar expresa en términos negativos el reconocimiento de aquello que constituye la diferencia entre un sujeto moral y un sujeto físico, diferencia que se llama dignidad y cuya amplitud estimativa lo aprehende el sentimiento moral de manera directa. [...] ¿Por qué no se desearía hacer el bien al otro? ¿Por qué no se encontraría placer en saludar la dignidad de los humillados de la historia?» (RICŒUR, 2000, p. 108-109). El sentimiento de la indignación ante las injusticias cometidas a los otros o a uno mismo no puede tener más norte que la desaparición de la injusticia y la Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 29

29

06/11/2016 13:24:58


conquista de la dignidad, no puede tener otro horizonte que el horizonte de la emancipación. ¿Qué es esto en definitiva, sino conciencia y voluntad de emancipación? En los asuntos humanos y en las cuestiones sociales y políticas todos somos participantes, todos estamos coimplicados. La conciencia ética se manifiesta en toda la amplitud de su racionalidad práctico-humana: exigencias de emancipación, análisis de situación, voluntad de emancipación. José Manzana lo indica de manera clara y contundente: «La finalidad del esfuerzo humanista es la humanización de la realidad de la vida humana en común, superando tanto la disociación entre la interpersonalidad humana y la sociedad, como la falsa subsistencia abstracta de «evidencias» que giran sobre sí mismas y se alimentan de su propia substancia «desencarnada». En consecuencia, el esfuerzo humanista deberá poner en evidencia los condicionamientos sociales y las implicaciones mundano-sociales de las relaciones interpersonales y buscar la mediación y el paso de las exigencias morales al ámbito de las decisiones prácticas» (MANZANA, 1981, p. 339). La realidad se convierte progresivamente en una realidad mundial, «planetaria». El pensamiento, en consecuencia, debería también convertirse en planetario, «cosmopolita». Lo dice con claridad un poeta de la liberación, Pedro Casaldáliga: «Esa conciencia mundializada nos ayuda a comprender que debemos transformar el mundo. No vale con cuidar sólo la propia casa y el propio país. La utopía se hace así más posible, porque ya es una utopía con visión política, de solidaridad, con actitudes concretas. Años atrás, ¿quién podría pedir un gobierno mundial? Hoy, hablar de ello ya no es tan utópico. La utopía es hija de la esperanza. Y la esperanza es el ADN de la raza humana. Pueden quitárnoslo todo menos la fiel esperanza. Ahora bien, ha de ser una esperanza creíble, activa, justificable y que actúa» (CASALDÁLIGA, 2007, p. 28). Buscar una ética de dimensiones 30

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 30

06/11/2016 13:24:58


sociales y políticas, dentro de una realidad planetaria y con una conciencia planetaria, consiste fundamentalmente en responder a los desafíos que tienen planteados las mayorías de nuestro planeta, a su grave situación de pobreza, de explotación y de inhumanidad, si no querernos permanecer enclaustrados en nuestra ceguera etnocéntrica «occidental». Tal debe ser uno de los hilos conductores de un pensamiento «planetario». Éste era también el esfuerzo permanente y casi «obsesivo» de un filósofo de la liberación, Ignacio Ellacuría, asesinado por los enemigos habituales de la liberación: se trata de articular y pensar para nuestro tiempo la tríada formada por la razón, la ética y la emancipación. Ellacuría fue siempre un radical, en el sentido de adentrarse y profundizar en las raíces de la realidad. El sufrimiento y la explotación tienen profundas raíces estructurales y esas raíces deben ser erradicadas y transformadas para que se establezcan la fraternidad y la emancipación. En su última conferencia de 1989 en Barcelona Ellacuría señaló la necesidad de un nuevo proyecto histórico: «Desde esta perspectiva universal y solidaria de las mayorías populares, el problema de un nuevo proyecto histórico que se va apuntando desde la negación profética y desde la afirmación utópica apunta hacia un proceso de cambio revolucionario, consistente en revertir el signo principal que configura la civilización actual» (ELLACURÍA, 1989, p. 1076). Solamente a partir de una reflexión implicada vitalmente (de manera afectiva e intelectual) con la situación de las mayorías populares y de los pueblos oprimidos se hace posible producir fermentos de liberación capaces de establecer un espacio social verdaderamente humano para todos. Dar la prioridad teórica y práctica a las mayorías populares y a los pueblos oprimidos constituye uno de los criterios hermenéuticos fundamentales de la realidad, si se quiere precisamente ser fiel a la realidad y a las exigencias éticas. La filosofía, el pensamiento en general, Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 31

31

06/11/2016 13:24:59


no pueden hacer oídos sordos al desafío y al impacto teórico y práctico que representa este criterio fundamental. Este círculo entre reflexión y praxis (auténtico círculo hermenéutico) sólo puede resultar «vicioso» e inane para los activistas irreflexivos o para los teóricos desencarnados, no para los que aspiran a reflexionar las coordenadas de su tiempo y de su historia con el fin de poder abrir brechas de emancipación en la vida humana. Un pensamiento encerrado en su torre de marfil no sería auténtico pensamiento, sino elucubración intelectual. El pensamiento filosófico se ve siempre remitido al «mundo de la vida» o de la experiencia humana en el que se plantean y tienen que solventarse las cuestiones filosóficas. La filosofía es la vida misma cuando en la estricta ordenación de un sistema intuitivo conceptual alcanza la plenitud de su autocomprensión. Filosofar es pensar en nuestro tiempo y para nuestro tiempo. Buscar una superación de las alienaciones y de las injusticias no constituye una tarea ilusoria de la reflexión humana y de la práctica que la acompaña, sino más bien el deber más íntimo y más noble de todo verdadero pensamiento. El pensamiento no es sólo, según la famosa concepción hegeliana, el búho de Minerva que se levanta al oscurecer de la vida y de la historia de los hombres para explicarlas, para pensarlas. El pensamiento puede tener también una función prospectiva, como defendía Kant, y alzarse como el centinela de la aurora, que otea los resplandores y las posibilidades del nuevo día y espera el nuevo amanecer. Hay que subrayar también este carácter prospectivo de la razón, entendido no con pretensiones desmesuradas, sino con modestia y con su entraña finita e histórica. «La autocomprensión de la realidad humana por ella misma no se lleva a cabo de un sólo golpe; no sabemos de una vez por todas lo que tal proyecto puede significar exactamente. Se trata de un proyecto que debe comprenderse en su realización y esta realización está necesariamente vinculada al desarrollo general 32

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 32

06/11/2016 13:24:59


de la cultura; solamente en ella las posibilidades de la razón se ponen de manifiesto y toman configuración» (LADRIÈRE, 1973, p. 21). Es cierto que actualmente los caminos de liberación no aparecen con claridad y que los horizontes no se muestran despejados. Por eso hay que aguzar todos los sentidos humanos y reactivar la fuerza de la reflexión, porque quizás sea el momento de oportunidades históricas de emancipación nuevas e inexploradas. Siempre nos queda la fuerza de la esperanza y de la utopía. Todavía estamos en estadios históricos en que la libertad de unos pocos está fundada en la negación de la libertad de muchos. La libertad de todos para todo se logra por la vía de la liberación. La liberación es el camino de las mayorías, que sólo accederán a la verdadera libertad, cuando se liberen de un mundo de opresiones y cuando se den las condiciones reales para que todos puedan ejercitar su libertad. Bibliografía BERTEN A. - LENOBLE J., Philosophie de la norme sociale et théorie du langage, Université de Louvain, Centre de Philosophie du Droit, 1986. ______, «De la ética puritana a la ética de la fraternidad: Weber y Habermas», en AGUIRRE J. M. - INSAUSTI X. (Ed.), Pensamiento crítico, ética y Absoluto, Vitoria, Ed. Eset, 1990. CASALDÁLIGA P.,« Pueden quitárnoslo todo menos la fiel esperanza», Pueblos, n.º 39, septiembre 2009. ELLACURÍA I., « Historización de los derechos humanos desde los pueblos oprimidos y las mayorías populares», en AGUIRRE J. M. - INSAUSTI X. (Ed.), Pensamiento crítico, ética y Absoluto, Vitoria, Eset, 1988. ______, «El desafío de las mayorías populares», en Estudios

Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 33

33

06/11/2016 13:24:59


Centroamericanos, 493-494 (1989). HABERMAS J., La ciencia y la técnica como ideología, Madrid, Cátedra, 1984. HABERMAS J., Perfiles filosófico-políticos, Madrid, Taurus, 1985. LADRIÈRE J., Vie sociale et destinée, Gembloux, Duculot, 1973. ______, Les enjeux de la rationalité, Paris, Aubier-Unesco, 1977. ______, «Les figures de la raison», en FLORIVAL Gh. (Ed.), Figures de la rationalité, Louvain, Institut Supérieur de Philosophie, 1991. ______, L’éthique dans l’univers de la rationalité, NamurGenève, Artel -Fides, 1997. LEVINAS E., Totalidad e infinito, Salamanca, Sígueme, 1977. ______, Éthique et infini, Paris, Fayard, 1982. MARCEL G., Être et avoir, paris, Aubier, 1935. MANZANA J., La intersubjetividad, Manuscrito inédito, 1976. ______, «De la sobriedad empírica a la razón empírica, en Scriptorium Victoriense, 28 (1981). RICŒUR P., «Ethics and Culture. Habermas and Gadamer in Dialogue», en Philosophy Today, 1973.

______, «De la morale à l’éthique et aux éthiques», en AA.VV. Un siècle de philosophie. 1900-2000, Paris, Gallimard, 2000. SÁDABA J., El perdón. La soberanía del yo, Barcelona, Paidós, 1995. ______, El hombre espiritual, Barcelona, Martínez Roca, 1999. 34

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 34

06/11/2016 13:24:59


Justiça e Ética: condições de emancipação na América Latina Cecilia Pires Situando o tema Os temas da Justiça e da Ética são fundamentais para pensar as condições pelas quais podem ser enfrentados os desafios de um projeto de emancipação. As questões associadas a direitos e valores convocam-nos para refletir sobre as relações democráticas na sociedade civil. O impacto da razão iluminista, entre os séculos XVII a XIX, parece ter fracassado e esse movimento evidencia a fragilidade do sujeito, que não conseguiu triunfar em seu projeto individualista de emancipação, bem como se viu às voltas com totalitarismos e ditaduras que dificultaram avanços políticos e econômicos significativos. A nossa América Latina atesta essa situação ainda de opressão e dominação em setores importantes, como democracia, educação e tecnologia, para ficarmos nos elementos mais debilitados nesse universo de avanços e recuos culturais. Quais condições de emancipação podem ser pensadas, hoje, na América Latina? Para análise dessas condições, tomamos os setores problemáticos como eixos de análise e assim referimos democracia, educação e tecnologia, de uma forma vinculante, porque entendemos que são os eixos necessários que conduzem ao debate sobre a imprescindível autonomia política e econômica dos povos latino-americanos. A questão reiterativa dos direitos humanos fundamentais ainda se faz presente, no âmbito dessa análise, uma vez que os eixos referidos se associam nas compreensões teóricas e nas atividades práticas à ideia de direitos e de valores. Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 35

35

06/11/2016 13:24:59


Se isto é assim, há que ser discutida a forma de um pensamento que emancipa, ajustada a uma prática que liberta, fruto não só de razões discursivas, mas de razões comprometidas com o alargamento de direitos por razões de vida digna. Uma das formas de emancipação dos povos ocorreu pelos pequenos e necessários avanços que a humanidade fez sobre si mesma, sobre a natureza, ao desvelar mundos desconhecidos e realizar experiências inimagináveis. Que outros cérebros pensaram o que nós aplicamos é uma evidência importante a ser registrada. O saber desenvolvido sempre esteve aliado às circunstâncias determinadas, que emularam a produção de conhecimento. Hélène Védrine (1977) adverte que, ao pensarmos no âmbito da Filosofia da História, não podem deixar de ser consideradas as condições nas quais os sujeitos se encontravam ao produzirem o saber. O saber sempre foi tributário das ideologias, das rupturas e das contradições, lembra a autora. Além disso, outros conhecimentos e ensinamentos resultaram de uma espécie de fracasso de modelos de poder, por exemplo, ou ao ser constatada a impossibilidade de que eles se efetivem. Pensar a história da América latina, no cenário da colonização vivida, requer que tomemos os elementos de uma história que não pode ser ignorada. São questões que devem ser examinadas, não de um modo linear, mas compreendidas como questões contraditórias, pelos paradoxos que se mostram na realidade. É um ensinamento que brota do fracasso de um modelo colonial de poder. Para entendermos o cenário da colonização da América Latina e os movimentos de emancipação, ou seja, para lermos sua história, é preciso superarmos dogmas, sejam eles de quaisquer natureza. Pelo seu dinamismo, os acontecimentos históricos produzem novos saberes e os sujeitos descobrem 36

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 36

06/11/2016 13:24:59


novas funções políticas e exercem diversos papéis sociais. Isto tudo, evidentemente, não elimina os paradoxos dos sujeitos e das instituições. Estamos longe de (e, talvez, não nos interesse) sonhar com a reconciliação do modelo hegeliano, em que a classe universal composta por funcionários públicos elimina as lutas em benefício do Estado. Ao contrário, o Estado continua sendo esse lugar social e político da discórdia, da não-emancipação. Situadas essas compreensões demarcatórias, queremos identificar, no contexto latino-americano, as situações dogmáticas, resultantes das experiências civilizatórias de cunho cultural e religioso, agregadas às vivências ditatoriais, que penalizaram o continente. O saldo negativo foi o distanciamento funesto entre a sociedade civil e o Estado, mergulhado em modelos populistas tão autoritários quanto as recentes ditaduras militares. É importante reiterar que os pequenos e necessários avanços, realizados com vistas à emancipação, tornaram-se razão suficiente para que pudéssemos desejar mais, realizar muito e tentar resolver nossas ambiguidades culturais, de modo especial no âmbito da filosofia. A tensão entre teorias universalistas e práticas singulares ainda hoje é vivida, o que nos torna impotentes para entendermos a racionalidade de nossos países. O atraso existente em vários setores da política e da economia movimenta a dinâmica interna dos países para uma expectativa de desenvolvimento, com um traço subserviente às nações ricas e desenvolvidas, que nos subsidiam. Fomos apresentados ao mundo como uma tese fechada, a de um povo atrasado e que precisava ser conquistado e dominado em seus costumes e crenças. Durante todo esse tempo, desde

Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 37

37

06/11/2016 13:24:59


que a Europa nos chamou de América, insistimos em outro vir-aser, tentando delinear nossa resistência, produzindo mediações e buscando construir o processo de nossa emancipação. Nossa antítese começa a ser vista como um marco de nossa racionalidade, não mais de povo dominado, mas de povo resistente, ainda que assolado por malandragens, ambiguidades, heteronomias. Nosso desejo de reconhecimento enfatiza nosso carisma face às adversidades e postula uma consciência de autonomia, especialmente na esfera do poder instituído. Não nos conformamos com as determinações que impedem nossos avanços, embora ainda não estejamos suficientemente organizados em torno de nossas compreensões de liberdade e igualdade, para consolidar a democracia. Para pensarmos o presente, temos que vislumbrar nossa síntese não como momento definitivo, fechado em hermetismos partidários e doutrinários que a nada conduzem, mas com vistas a valores de uma vida digna, apesar das relações de mercado, das crises conjunturais e das práticas políticas desoladoras. Há que ser reafirmada a compreensão de que um pensamento emancipatório e uma prática libertadora são os ingredientes da tarefa que nos cabe, agora, para criarmos as condições de emancipação na realização da justiça e da ética. O Pensamento latino-americano e a conjuntura econômica e política Como a filosofia está vinculada às questões do seu tempo, ela não abdica de se pronunciar sobre as situações de crise, próprias de cada etapa da história. Assim ocorreu desde os gregos antigos e ocorre até os dias atuais, quando se sucedem análises acerca dos problemas público-civis, como as questões do Estado e da governabilidade, e das questões políticoeconômicas, como os ciclos do capitalismo.

38

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 38

06/11/2016 13:24:59


Alejandro Serrano Caldera (1984) alerta para a dificuldade de pensarmos em tempos de crise. Enfatiza: “A crise do homem é a crise do mundo que ele habita e o mundo muda, porque o homem nele alojado o transforma na conduta histórica” (1984, p.11). Podemos perceber, portanto, que a crise não é estranha ao homem; é inerente à dinâmica da vida humana, o que nos impulsiona a enfrentá-la. Desafiador é fazer filosofia num mundo em crise, no entanto, o ato teórico é um ato com repercussões políticas e históricas. Na época do Renascimento, os pensadores produziram suas reflexões, estimulados pela fertilidade dos acontecimentos. O mesmo observamos no século XX, especialmente devido ao episódio das duas guerras mundiais. Todavia, é importante salientar que nenhuma doutrina demonstrou-se suficiente para explicar as crises históricas. Os representantes das principais escolas filosóficas analisaram, debateram, mas não conseguiram definir verdades estabelecidas, definitivamente. Ainda hoje, como resultado das guerras já referidas do século XX, cujos respingos chegaram até o nosso continente, sofremos desigualdades e não conseguimos resolvê-las nem no âmbito interno de nossos países, nem na esfera internacional. A Europa recebe hoje, com estranheza, o fenômeno da imigração, sem assumir sua responsabilidade colonialista e exploradora sobre os povos asiáticos e africanos. Não entendeu o efeito bumerangue de suas ações de domínio e trata os imigrantes como a escória social que vêm contaminar seu mundo branco, organizado e desenvolvido. Para Robert Kurz A humanidade europeia não produziu até hoje nenhuma crítica definitiva acerca do acontecimento ao qual deu o nome de “descoberta da América”. As missões jesuíticas já haviam legitimado, de Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 39

39

06/11/2016 13:24:59


antemão, o mundo europeu como o único verdadeiro. Essa elevada auto-estima, ao ser secularizada, ganhou uma vigorosa continuidade com as ideias do iluminismo, até hoje determinantes tanto para a ideologia oficial burguesa como para a teoria crítica de sua Intelligentsia. Em seu alvorecer, a modernidade ocidental deveria expor a verdade última, por fim descoberta, acerca do espírito e da sociedade. O pensamento burguês, com seu racionalismo abstrato, e a civilização dos livres e iguais proprietários de mercadorias, passaram a encarnar a ideia mesma da razão e da civilização. Em contraposição a ambos, tanto os povos naturais do Pacífico e das florestas tropicais quanto as culturas avançadas da Ásia, da África e das Américas podiam ser sempre desqualificadas como “bárbaras”, seguindo a velha e gasta tradição europeia. (KURZ, 1997, p. 38)

Qual o pronunciamento da filosofia sobre essa situação? A quem cabe a efetividade de Justiça nessas circunstâncias? No que nos diz respeito, como povo latino, vivemos aparentemente uma situação social melhor que os africanos e asiáticos, embora sejamos tratados ainda sob os cânones dos imperativos da razão de mercado, que estabelece as coordenadas do nosso desenvolvimento. Recebemos nota de bom ou mau pagador, conforme os ajustes fiscais que fizermos para contentar os interesses do grande capital. Como trabalhar o imaginário da sociedade civil, mediante as sucessivas crises de governabilidade que o Estado, com toda sua tecnologia gerencial, não conseguiu resolver, para fortalecer as ideias republicanas ou democráticas? Em que medida os avanços revolucionários, no âmbito da tecnologia estão a serviço dos cidadãos? Qual pensamento

40

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 40

06/11/2016 13:24:59


filosófico seria adverso ao fato dos bens conquistados estarem a serviço de todos? Como se poderá pensar a filosofia como práxis da libertação? Num evento como este, em que se reúne um Grupo de Trabalho sob a consigna Ética e Cidadania, para debater Filosofia, Educação e Emancipação Humana, com foco na ética e na cidadania no contexto da América Latina, não podemos deixar de enfrentar as questões da crise política e econômica no âmbito do pensar filosófico. Sabemos que as teses humanistas dos países ricos, no seu racionalismo abstrato, produziram um hiato entre os postulados teóricos e a vida prática. Não tivemos aqui, em nossa América Latina, uma forte presença do iluminismo esclarecedor, que procurava libertar os homens do medo, conforme a conhecida análise de Adorno e Horkheimer. Não tivemos, pois, uma razão das luzes a clarear nossos caminhos de libertação. Como desafio, temos que estabelecer o nosso pensamento crítico, que não está dissociado do mundo globalizado, mas que precisa ter referência na nossa singularidade cultural de povo colonizado e invadido. O pensamento latino-americano não precisa se cercar de muros. Quer interagir em condições de igualdade com outras formas de pensar. A esse respeito, Caldera (1984, p.28) reitera: “A filosofia latino-americana não pretende provincializar temas de reflexão filosófica, mas indicar uma perspectiva, a partir de uma situação espaço-temporal que se abre para o mundo”. A nossa dialética, já referimos, terá que ser mais exigente do que a mera rebelião do escravo diante do senhor. Requer um juízo de valores frente a uma industrialização que não se efetivou em benefícios para nós e diante de um modo de produção capitalista, que passa por seus diversos ciclos, dos quais recebemos mais o ônus do que o bônus. Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 41

41

06/11/2016 13:24:59


O liberalismo econômico, com todas as suas nuances, legitima jurídica e politicamente o capitalismo. No entanto, para alguns produz todas as benesses, para a maioria propõe ações paliativas, ajustadas em atitudes filantrópicas. Na América Latina, o pensamento liberal padece de certo raquitismo, pois, nem mesmo sendo o pensamento dominante, consegue resolver as desigualdades, subjugado que está a um pensamento externo com propósitos de uma mais-valia atrasada. Kurz nos ajuda na análise: Ora, se na história colonial o capitalismo veio ao mundo, para usar uma expressão de Marx, “sujo e encharcado de sangue”, e legitimou com o Iluminismo sua própria superioridade civilizatória, é claro que as contradições geradas por esse processo não podiam passar desapercebidas. Uma das primeiras testemunhas da insensata crueldade da civilização é o famoso manifesto do bispo Bartolomé de Las Casas, publicado pela primeira vez em 1552, que traz o árido título de “Brevíssimo relato sobre a destruição das Índias Ocidentais” (KURZ, 1997, p. 40)

O avanço da democracia, como democracia de massa, estimulou a dimensão assistencialista do Estado, o que desagrada aos liberais. O desejo dos liberais é manter o capitalismo, num sistema democrático, que lhes seja favorável. O individualismo dos liberais exige uma sociedade submetida ao mercado, com um Estado diminuído para ser melhor controlado. Menor e mais forte, esse é o Estado almejado. Nossa dialética, insistimos, não se tornará dinâmica lutando em torno de conceitos abstratos, mas necessita propor os antagonismos entre o que domina e o que liberta. Antes, éramos chamados de Terceiro Mundo. O eufemismo atual nos tornou associado aos países em desenvolvimento, que participam

42

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 42

06/11/2016 13:24:59


de consórcios com siglas mais simpáticas, como G-20. Com tudo isso, ainda permanece uma visão etnocêntrica que se opõe à outra visão defendida pelos que se sentem portadores de direito e exigem a saída da marginalidade econômica, social e cultural, porque se sabem sujeitos de sua própria história. A América Latina se inclui nesse processo. Condições necessárias para a emancipação Para pensarmos nas condições de emancipação da América Latina, hoje, temos que alinhar, junto a propósitos e projetos, os desafios. Temos eixos referenciais de análise, cujas carências incidem sobre nossa situação de países emergentes, com questões fundamentais a serem resolvidas. Democracia, educação e tecnologia são eixos centrais, que demandam problemas para a vida pública civil, num continente ainda marcado pelos processos histórico-culturais vividos. Talvez devamos lembrar o chamamento de José Martí (1981), quando alerta que, para pensarmos nossa América, trata-se de envolver-se com “a razão de todos nas coisas de todos e não a razão universitária de uns sobre a razão campestre de outros“. É evidente que a fala de José Martí, em Nuestra América estava ancorada naquela América ainda muito atrasada. Todavia, se pensarmos nos avanços e conquistas culturais e científicas experimentadas, no último século, por nossos povos, nos vemos ainda às voltas com problemas na área da educação e da tecnologia, que demonstram nossa condição de atraso e fragilidade social, o que atinge a nossa nascente democracia. Nossa democracia custa a amadurecer e anda sempre às voltas com ameaças de toda espécie, seja no âmbito da liberdade, seja na esfera da igualdade. Nossas experiências democráticas custam a crescer e demoram a afirmar-se, devido ao controle que o capitalismo realiza sobre a governabilidade,

Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 43

43

06/11/2016 13:24:59


nas mais diversas formas da economia política. Slavoj Zizek, filósofo esloveno, no seu livro Primeiro como tragédia, depois como farsa (2011), analisa o estágio atual do capitalismo. Embora as crises e os desastres financeiros sejam lembretes óbvios de que a circulação do capital não é um circuito fechado que pode se sustentar por conta própria – que pressupõe uma realidade ausente no qual os bens reais que satisfazem as necessidades das pessoas são produzidos e vendidos –, sua lição mais sutil é que não podemos retornar a essa realidade, apesar de toda a retórica do “vamos sair do espaço virtual da especulação financeira e voltar às pessoas de verdade, que produzem e consomem”. O paradoxo do capitalismo é que não se pode jogar fora a água suja da especulação financeira e preservar o bebê saudável da economia real. (ZIZEK, 2011, p.25)

Se o capitalismo apresenta esses paradoxos de manter tanto a especulação financeira, quanto uma economia saudável e eficaz, no gerenciamento de nossos países, áreas como educação e tecnologia se ressentem sobremodo em função das carências de recursos necessários para um projeto de desenvolvimento sustentável e digno, no horizonte de uma democracia limitada por resultados. Na Educação também vivemos situações paradoxais, que denotam a decalagem existente entre os que possuem privilégios e os que necessitam de uma base mínima para iniciar um processo de inclusão social. Isso é assim no Brasil e em alguns dos países latino-americanos, cuja formação filosófico-cultural ainda se ressente de boas escolas e universidades públicas, onde a população possa ter o acesso viabilizado. É comum o discurso da crise na educação. Tal discurso, 44

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 44

06/11/2016 13:24:59


ao mesmo tempo em que destaca as emergências e busca de soluções, pode permitir certo descaso repetitivo pelos gestores da coisa pública. A crise aparece como algo reiterativo na agenda financeira dos gestores, sem maiores responsabilidades. Utilizamos o conceito de emergência proposto por Arturo Roig (1994), filósofo argentino, que constrói o conceito de “moral de emergência” baseado na cultura e na tradição moral vivida no continente latino-americano. Nossa situação de crise requer ações de emergência. O filósofo elabora a categoria emergência para referir a um pensamento ético e uma forma de práxis que trabalhe a ideia de emergência, como quebra de opressão, como a tentativa afirmadora de inclusão e igualdade social. Como nossa ilustração não se deu conforme os cânones europeus, vivemos, pois, a polarização colônia-metrópole, na tentativa de encontrar nosso caminho de afirmação ética, buscando na dignidade um conceito forte, sem alinhamento ao “reino dos fins”, de Kant. Roig estabelece alguns comparativos entre a moral emergente e a teoria do discurso, mostrando as diferenças. A ética do discurso se apoia no próprio discurso, no ato comunicativo, para formular um princípio ético, enquanto que a moral de emergência aponta para a reconstrução de um mundo de vozes que todo discurso transmite, ao integrar um universo discursivo, convergente. Destaca coincidências entre ambas ao apresentarem uma preocupação social e afirmarem a história e a cultura como elementos aproximativos de uma universalidade. Fundamentalmente, Roig evidencia que a moral de emergência quer reunir a pluralidade étnica no espaço ético da América Latina. Trata-se de quebrar o patriarcalismo como totalidade única e criar polifonias. Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 45

45

06/11/2016 13:24:59


Para o autor, é possível recorrer ao conceito de “homem natural”, pensado por José Martí, na obra Nuestra América (1981), que não é o homem fora da história, nem a figura do bom selvagem, mas é o homem indignado que busca resolver as emergências de um continente. Roig refere esse conceito de Martí para analisar que esse homem natural é a expressão da consciência moral enfrentando as leis estabelecidas [...] é o homem estranho à cidade, um camponês com uma consciência moral, fruto de sua submissão, de sua exploração e de sua miséria que através de rachaduras de sua própria alienação, surge como uma voz de protesto e de denúncia. (ROIG, 1994, p.177)

Servimo-nos desses postulados de Arturo Roig para refletir sobre as emergências latino-americanas situadas nos eixos democracia, educação e tecnologia, por entendê-los como condições necessárias e estruturantes para a emancipação social. Se tivermos presente nosso contexto de povos dominados e todo o caminho realizado para quebrarmos a opressão, há necessidade de situarmos as carências que se transformam em desafios para atingirmos o patamar de dignidade proposto pela moral de emergência. Os filósofos liberacionistas trabalham com essa percepção, criam um outro cógito para o entendimento das culturas dominadas Isto posto, podemos avançar para o entendimento da crise como espaço da crítica, ou seja, a crítica assinala medida, critérios que podem ser dimensionados no território da normalidade, se bem administrados. O que inquieta é a crise sistêmica, sem horizontes de intervalos, sem perspectiva de

46

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 46

06/11/2016 13:24:59


solução. É isto: ou tememos, ou enfrentamos. Este é o fenômeno que dificulta a realização da justiça e da ética, quando a crise se alinha, apenas, como expressão expansionista, no sentido da ausência de algo direcionado para o bem. Sobre uma crise expandida, Zizek refere: Na educação, assistimos ao desmantelamento gradual do aparelho ideológico do Estado da escola burguesa clássica: o sistema escolar é cada vez menos uma rede compulsória elevada acima do mercado e organizada diretamente pelo Estado, portadora de valores esclarecidos [...] em nome da fórmula sagrada de ‘menor custo, maior eficiência’, vem sendo cada vez mais tomado por várias formas de PPP (parceria públicoprivada). (ZIZEK, 2011, p.10)

Essa entrega gerencial da educação ao mercado contribui para o agravamento da diferença social, oportunizando um modelo educacional poroso, debilitado em qualidade e sem competência para viabilizar um avanço tecnológico de qualidade. E, então, que fazer? Como entender a crise e a crítica? Como superar o discurso da crise? Família, escola, governo, igreja, partidos políticos, em todas essas instâncias organizativas se ouve ou se vê a fala da crítica ou o anúncio da crise. Como administrar tudo isso? Como nos sentimos chamados a reavaliar nossos critérios éticos, no contexto dessas crises estruturais e conjunturais que estamos vivendo? Nesse sentido, podemos perguntar: até que ponto a Ética é bem vista na sociedade? Quais os interesses que sustentam a efetividade da justiça? Em que medida o sujeito se libertou da natureza e se acomodou numa cultura produtivista? Parece que o homem era um feliz ignorante, submetido à

Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 47

47

06/11/2016 13:24:59


ordem das necessidades, o homem da natureza, do instinto. E que o homem da cidade, pertencente ao corpo político, cumpridor das normas sociais é um infeliz cerceado em sua liberdade: o homem das leis. Será assim? Como resolver o problema das nossas ambivalências, neste momento de progresso tecnológico, em que a humanidade não usa mais os instrumentos primitivos, eis que chegou a era da nanotecnologia?! Qual o espaço da ética na construção da justiça, nesse tempo em que ainda buscamos a emancipação pela democracia e pela educação? Estas questões direcionam-se para as situações atuais, que são responsáveis pelo desejo de aumento do espaço da ética na sociedade contemporânea. Elas demonstram que as análises comportamentais não se restringem à esfera privada ou grupal, mas envolvem a esfera pública, societária. A ética deixou de ser um assunto reservado a especialistas e passou a ocupar todos os espaços, de todas as profissões, nas concentrações de grupos, nos debates da mídia. Da ecologia à engenharia genética, do aborto ao homossexualismo, da administração pública ao rito religioso, tudo passou a ser interessante para o debate ético. Cada ação dos sujeitos sociais, hoje, tem repercussão significativa, a partir da informatização do mundo. As conjunturas históricas relativizaram os valores éticos. A moral do imperativo da lei perdeu sua validade, a não ser numa situação de vigilância. O formalismo da lei tornou-se distante da realidade social contemporânea. As inovações da cultura e da ciência produziram novos conteúdos para a lei, que assim sofre as alterações históricas, até mesmo necessárias, se pensarmos na escravidão, no isolamento social das mulheres e das crianças, no poder absoluto dos patrões sobre os empregados, na necessidade de transparência da gestão pública, para ficarmos nos problemas mais cruciais. Que pronunciamentos pode fazer a educação sobre esta 48

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 48

06/11/2016 13:24:59


realidade atualíssima da crise de valores morais? Que papel pode a educação desempenhar em face desse termômetro de crise ética e de lacunas democráticas? Reprodução da eficácia desejada pelo capitalismo ou criação de alternativas? A emancipação necessita de ações coletivas, de modo a obstaculizar o procedimento individualista, próprio dos que buscam apenas o lucro e a eficácia. A democracia para se fortalecer e a educação para se afirmar necessitam dessa autonomia. A perda da autonomia implica na ausência de espaços críticos e na ausência de perspectiva. Cabe a cada país situar seus problemas e começar o enfrentamento nos níveis em que se apresentam. As questões como a diversidade das culturas, a geração de oportunidades de trabalho e emprego, o interesse por uma vida sustentável não podem prescindir de um pensamento comunitário voltado para uma educação que vincule teoria e práxis. Este é o desafio. Considerações finais Falamos no início desse texto sobre a importância do pensar próprio como avanço cultural, bem como a significativa condição da tecnologia para o bem-estar de povos e culturas. Não podemos descurar, no entanto, das condições históricas nas quais nos constituímos sujeitos do fazer filosófico. Todo nosso ímpeto pela emancipação está ligado ao encobrimento em que vivemos, ao sermos colonizados. A razão cartesiana, que estabeleceu nosso ordenamento cultural, impediu que tivéssemos a nossa própria experiência originária como um povo que pensa. Fomos obrigados a adotar os cânones da razão que nos dominou por muito tempo. Nossa identidade latino-americana não se fortaleceu como deveria e crescemos anêmicos, com falta de nutrientes Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 49

49

06/11/2016 13:24:59


adequados ao nosso crescimento, resultado da situação de alheamento de nós mesmos. Filósofos latino-americanos (Leopoldo Zea, Arturo Roig, Arturo Ardao, Enrique Dussel, Raúl Fornet-Betancourt, Ricardo Salas, Alejandro Serrano Caldera, para ficarmos no século XX) denunciaram essa prática que nos foi imposta. Tal denúncia não é para que fiquemos insulados num continente, construindo uma espécie de paraíso perdido de selvagens, nem tão bons assim. Ao contrário, os estudos desses pensadores demonstram a importância e a urgência de nos sentirmos sujeitos do próprio pensamento, como os outros povos e, para isso, tornou-se imprescindível a formação de uma consciência histórica autoafirmadora, não guiada, apenas pela concepção universalista, cuja matriz europeia se expandiu pelo planeta. Não se trata, pois, de reivindicar uma filosofia particular, cercada por muros simbólicos, com objetivo de impedir interlocuções. Essa atitude iria contra a universalidade do pensar filosófico. O que identifica o humanismo latino-americano é a apropriação de nossos valores para pensarmos a democracia, a educação e a tecnologia que são absolutamente necessárias para a nossa emancipação. Essas são as razões históricas do nosso pensar e fazer filosóficos, que foram impelidos pelo sentimento de urgência, em que as soluções imediatas se fizeram necessárias. Cabe aqui a crítica ao capitalismo, cuja ideologia contribuiu para a dominação. Conforme descreve Zizek: O capitalismo é um sistema que não tem pretensões filosóficas, não está em busca da felicidade. A única coisa que diz é: ‘Ora, isto funciona”. E, para quem quer viver melhor, é preferível usar esse mecanismo, porque funciona. O único critério é a eficiência. (ZIZEK, 2011, p.33) 50

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 50

06/11/2016 13:24:59


Como não desejamos apenas a eficiência, mas a emancipação, precisamos compreender a importância da democracia que fundamentará a educação e o desenvolvimento das tecnologias sustentáveis. Os perigos estão aí para ameaçar os que pensam de forma diferente. Como nos informa Todorov (2012, p. 121): “A nuvem de Chernobyl atravessou sem impedimento todas as fronteiras europeias. A vontade coletiva que orienta as decisões para o amanhã também deve situar-se nessa escala continental”. Essa advertência do pensador búlgaro situa o compromisso planetário que todos devem ter com todos, como assinalará José Martí. Afinal, destruir o planeta, ameaçar milhares de vida pelo descaso ou pelo descompromisso, afeta a todos os que desejam pensar e viver a emancipação. Nenhum modelo educacional será bem-vindo se não for para consolidar a democracia para todos e implantar uma tecnologia de acordo com a vida sustentável, além dos acordos de um capitalismo sem pretensões filosóficas, conforme assevera Zizek. Nesse sentido, concordamos com Leopoldo Zea, que nos convoca, enquanto pensadores da América Latina, a sermos protagonistas em nossa forma de filosofar, a fazermos uso de nossa palavra e não sermos aquela parte da humanidade que apenas toma emprestado a palavra dos outros. Criemos as condições para que a Justiça e a Ética aconteçam também aqui em nosso continente. Referências CALDERA, Alejandro Serrano. Filosofia e Crise. Pela filosofia latino-americana. Petrópolis: Vozes, 1985.

Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 51

51

06/11/2016 13:24:59


KURZ, Robert. Os últimos combates. Petrópolis: Vozes, 1997. ROIG, Arturo. La “Dignidad Humana” y la “moral de la emergencia” en América Latina. In: SIDEKUM, Antonio. Ética do discurso e Filosofia da Libertação. Modelos Complementares. São Leopoldo:EdUnisinos, 1994. TODOROV, Tzvetan. Os inimigos íntimos da democracia. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. VÉDRINE, Hélène. As Filosofias da História. Decadência ou crise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1977. ZEA, Leopoldo. La filosofía américana como filosofía si más. México: Siglo Veintiuno, 1992. ZIZEK, Slavoj. Primeiro como tragédia, depois como farsa. São Paulo: Boitempo, 1975.

52

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 52

06/11/2016 13:24:59


Justiça anamnética e emancipação das vítimas Dilemas e dívidas de nossa América Latina Castor M.M. Bartolomé Ruiz Introdução a um dilema Há uma linha de continuidade na violência vivida e sofrida numa sociedade que perpetua a violência como normalidade institucional ou cotidiana quando é ocultada por atos políticos de esquecimento. A história moderna dos povos latinoamericanos foi inaugurada como tragédia de uma conquista e continuada por uma história de violências. O mais recente episódio de violência Estatal foi vivido de forma generalizada em toda a América Latina nas ditaduras que, a partir da década de sessenta do século XX, se espraiaram como sementes do mal na quase totalidade dos países. O Brasil registra a fatídica data de 1 de abril de 1964, na qual os militares destituíram o governo legítimo de João Goulart. Argentina o 28 de julho de 1966, Uruguai 27 de junho de 1973, Chile 11 setembro de 1973, data do assassinato de Allende pela ditadura de Pinochet, Bolívia 21 de agosto de 1971, e ainda Paraguai tinha seu ditador particular, Alfredo Stroessner, que se perpetuou no poder desde 1954 até 1989. Estas são as tristes datas que conectam o Cone Sul do continente latino-americano em torno de uma estratégia política de violência de Estado. Cabe-nos analisar traços comuns a está violência de Estado com o objetivo de captar alguns dos fios ocultos da violência estrutural. Esta análise crítica da violência nos permitirá desenhar estratégias que possam neutralizá-la. Num primeiro ponto, penetrando pela fina capa dos eventos históricos, nos propomos mergulhar na análise de uma das constantes da Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 53

53

06/11/2016 13:25:00


violência, que denominamos potencial mimético da violência. Num segundo ponto, desenvolveremos as cumplicidades da mimese violenta com o esquecimento. Num terceiro ponto, apresentaremos a potência da memória para neutralizar a mimese violenta. Na sequência, analisaremos as possibilidades éticas da memória para constituir uma justiça a partir das vítimas, uma justiça anamnética. Concluiremos mostrando a importância do testemunho das vítimas como potência neutralizante da violência. A mimese da violência O primeiro aspecto que nos propomos analisar criticamente diz respeito aos mecanismos de naturalização da violência nas instituições e práticas de nossas sociedades. Constatamos que a violência não é um fato pontual que desaparece simplesmente ao cessar o ato violento. A violência não se apaga sincronicamente ao virar a página do tempo. A violência tem uma persistência diacrônica cujos efeitos perduram no tempo. A lógica do tempo linear não se aplica à violência, seu passado é presente. A violência continua a existir mesmo quando termina o ato violento. Ela lateja como potência ativa nos sujeitos e sociedades que contaminou. A violência contém uma consistência tal que contamina as estruturas, instituições e pessoas que toca. Para entendermos criticamente a história de violência e barbárie que assola nosso continente, assim como para pensar estratégias que possam neutralizar a violência de Estado, temos que analisar suas entranhas da Górgona, sua potência mimética. A violência não desaparece, sem mais, quando se termina de violentar o outro. Ela tem uma vigência, qual eco contaminador, nas seqüelas que deixa tanto nas vítimas como nos

54

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 54

06/11/2016 13:25:00


violadores1. Esse caráter inconcluso de toda violência, costura uma línea de continuidade entre a violência do passado e nossa violência presente. Embora nos pareça imperceptível, essa línea alimenta muitas das condutas violências que atualmente nos apavoram. Ela está ativa nas práticas de violência institucional de muitos corpos do Estado e também na violência social que impregna nossas sociedades. A violência foi muito mais do que o mito fundador de nossas sociedades latino-americanas, ela foi a barbárie legitimadora de suas instituições, que começou nas lógicas colonialistas e teve continuidade nos Estados autoritários. A violência do nosso presente está conectada com a violência histórica mal resolvida. Uma sociedade violenta, com agentes violentos, com instituições violentas, com valores e hábitos sociais violentos, se quiser entender-se criticamente, tem que procurar sua gênese para além do imediatismo do seu presente. Há algo de intangível na nossa história de violência que dificulta sua neutralização e se perpetua como sombra da nossa realidade. Os estados de exceção vividos nas últimas décadas do século XX, no conjunto dos países do cone sul latino americano, não devem ser lidos como meros episódios pontuais da violência histórica. A simples análise política dos fatos, sendo importante, não possibilita uma compreensão plena de porque a violência continua sendo uma técnica de governo tão comum em nossos estados. A tortura, a repressão, a truculência dos aparatos do Estado ou de agentes do Estado, e ainda de milícias paramilitares, continuam assombrando a vida cotidiana de nossos povos. Temos que reler a barbárie sofrida nas últimas ditaduras (e sua continuidade no nosso presente) na seqüência de uma violência endêmica que assola nossas sociedades. Ela está enquistada 1  Sobre a potência mimética da violência remetemos à obra de GIRARD, René. A violência e o sagrado. São Paulo: Paz e Terra/UNESP, 1990. Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 55

55

06/11/2016 13:25:00


nas estruturas do Estado, nas lógicas institucionais, nas práticas políticas e até nos valores sociais e práticas cotidianas de muitos sujeitos. Nesse caso, e antes de pensarmos práticas políticas eficientes para neutralizar a violência, é pertinente nos perguntar como a violência consegue estabelecer uma linha de continuidade nas instituições, nas estruturas, nos comportamentos sociais e nos hábitos culturais? Talvez possamos encontrar um princípio de resposta a esta questão se entendermos que a violência contém o que denominaremos de potência mimética. A mimese pode ser definida como o impulso a repetir por imitação a conduta externa. O que caracteriza a mimese é a reprodução imitativa do comportamento externo. A violência não é um ato asséptico que se anula na execução do ato. Pelo contrário ela possui um impulso próprio que tende a sua autoreprodução, o que confere à violência uma potência mimética!2 A mimese é uma pulsão que tende a repetir aquilo que a origina ou ainda imitar aquilo com o qual se relaciona3. No caso da violência, a tendência mimética tende a reproduzir a violência praticada ou sofrida como se fosse uma forma de ação e reação 2  Ainda que concordemos com Rene Girard a respeito da potência mimética da violência, discordamos do caráter naturalista e compulsório que lhe outorga. Cf. Id. A violência e o sagrado. São Paulo: Paz e Terra/UNESP, 1990, p. 182 ss. Entendemos que todo desejo humano é, também, uma produção simbólica de sentido que possibilita sua reconstituição para além da mera mimese. Sobre este ponto cf. RUIZ, Castor M.M. Bartolomé. Por uma crítica ética da violência. São Leopoldo: Unisinos, 2009, p. 87-112. 3  Walter Benjamin analisa a capacidade mimética do ser humano como uma característica própria de nossa aprendizagem. Daí a responsabilidade que temos ao propor ou impor determinadas práticas que tenderão à imitação mimética dos outros. “A natureza engendra semelhanças: basta pensar na mímica. Mas é o homem que tem a capacidade suprema de produzir as semelhanças. Na verdade, talvez não haja nenhuma de suas funções superiores que não seja decisivamente co-determinada pela faculdade mimética”. (BENJAMIN, Walter. “A doutrina das semelhanças”. In. Id. Obras escolhidas I. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1996, p. 108).

56

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 56

06/11/2016 13:25:00


instintiva do ser humano4. A violência, uma vez praticada ou até sofrida, desencadeia no sujeito e na sociedade uma espécie de instinto violento que tende a reproduzi-la e até perpetuála. A potência mimética naturaliza a violência como um ato de normalidade. A normalização inerente à potência mimética torna a violência algo natural. A violência gera violência, desencadeia a violência como atitude normal de reação e hábito de conduta. O resultado dessa espiral é a normalização da violência. Nessa condição ela pode ser praticada como se fosse um comportamento natural à escala social, institucional, e até exaltá-la como valor social. A mimese, por definição, produz um impulso que tende a imitar um comportamento como se fosse algo natural5. A mimese naturaliza o comportamento, neste caso violento, e o reproduz de forma inconsciente como algo normal. A mimese normaliza a violência tornando-a um componente normal da vida social ou uma tática natural para o governo institucional. A potência mimética produz a violência e a reproduz de forma natural. A mimese naturaliza a violência, outorgando-a uma aparência de naturalidade, ocultando desse modo sua gênese histórica. A naturalização da violência confere-lhe uma espécie de transcendentalidade com uma aparência de fatalidade inevitável. Nos bastidores da presumida naturalidade da violência, age um dispositivo mimético. Nas tramas ocultas da normalização da violência, opera a mimese como potência autoreprodutora. Se a violência fosse uma mera estratégia racional 4  Destacamos a ênfase que Benjamin outorga à capacidade mimética do ser humano como possibilidade de repetir as semelhanças, que no caso da violência implica numa reprodução de si mesma: “O dom de ser semelhante, do qual dispomos, nada mais é que um fraco resíduo da violenta compulsão, a que estava sujeito o homem, de tornar-se semelhante e de agir segundo a lei da semelhança”. (BENJAMIN, Walter. Op. Cit. p. 113). 5  Cf. GEBAUER, G.; WULF, C. Mimese na Cultura. São Paulo, Annablume, 2004. Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 57

57

06/11/2016 13:25:00


dos sujeitos ou das instituições, seria relativamente fácil neutralizar seus efeitos, incentivando novos discursos racionais contrários a ela. Os discursos formais contra a violência, assim como as declarações institucionais, se desmancham no ar quando confrontadas com a potência mimética de uma violência que se reproduz nos porões inacessíveis das estruturas sociais e das consciências dos sujeitos. A mimese, ao naturalizar a violência, a legitima como uma estratégia inevitável de governo. Se quisermos neutralizar o potencial destrutivo de qualquer violência, teremos que alcançar essa potencia mimética que a naturaliza ao ponto de normalizá-la no comportamento habitual e estratégia institucional. A potência mimética da violência opera sobre todos que a contatam. Ela os contamina de modo a torná-los naturalmente violentos. Todos os que de uma ou de outra forma são tocados pela violência tendem a reproduzi-la como meio normal de comportamento. O potencial mimético da violência tende a se reproduzir naqueles que a praticam, fazendo do ato violento uma forma natural de agir, o que torna a estratégia da violência uma técnica normal de governo. A violência atinge, em primeiro lugar, as vítimas. A violência é perversa porque nega a alteridade humana. No sentido estrito não se comete violência contras as coisas, mas só contra as pessoas. A violência existe como produtora de vítimas6. Há muitos atos agressivos que destroem coisas, mas só os atos violentos atingem ao humano. A violência existe correlativamente à negação total ou parcial da alteridade 6  Uma das derivações políticas da potência mimética é a teoria do sacrifício necessário. Muitas das perseguições, torturas e mortes de opositores se legitimam como parte do sacrifício necessário para salvar o corpo social de um perigo que o ameaça. Neste sentido, a teoria do bode expiatório continua a ser utilizada como técnica política para justificar a repressão e até a morte de opositores. (cf. GIRARD, René. O bode expiatório. São Paulo: Paulos, 2004).

58

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 58

06/11/2016 13:25:00


humana. Este é o primeiro e principal efeito de toda violência. O fato de a violência existir como destruidora do humano, a torna intrinsecamente perversa. Ela faz das vítimas seu efeito necessário. Sem vítimas não há violência, sem violência não há vítimas. Para além de todas as casuísticas que podermos pensar sobre os tipos de violência e as modalidades das vítimas, só há violência quando se produz uma negação da condição humana, uma vítima. Só existe a vítima porque um ato violento negou nela, total ou parcialmente, sua alteridade humana. A potência mimética da violência induz a sua prática como ato de normalidade, normalizando a existência das vítimas como um subproduto inevitável das sociedades. A mimese naturaliza as vítimas como efeitos colaterais de práticas estruturais naturalizando-as qual paisagem cotidiana de nossas sociedades. A repetição mimética dos atos de violência, desde a tortura institucional até a violência familiar, a torna algo corriqueiro com o que parece teremos que nos acostumar, como parte constitutiva do nosso ser cultural ou social. Este é primeiro efeito da mimese. Outro efeito mais perverso da potência mimética da violência se manifesta quando inclusive algumas vítimas tendem a reproduzir nos outros a violência que eles sofreram, como algo natural. Por exemplo, muitas vítimas da violência familiar tendem a reproduzir a violência vivida ou sofrida sendo eles verdugos contra outras vítimas da sua própria família. Esta espiral perversa do mimetismo da violência está no âmago de muita violência familiar contra a mulher, crianças e idosos que se reproduz com naturalidade sem que o violento tenha remorso da sua barbárie. O potencial mimético da violência induz o violento a cometê-la de forma trivial. A mimese normaliza a violência como um comportamento natural das pessoas, de grupos sociais e até de sociedades inteiras. Ainda há um terceiro efeito da violência, desta vez sobre Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 59

59

06/11/2016 13:25:00


aquele que a comete, o violento. O potencial mimético da violência afeta diretamente o violento. Ninguém sai imune da prática da violência. O violento não poderá praticar a violência sem sentir seus efeitos perversos. A violência provoca no violento uma progressiva desumanização de modo que a cada ato de violência se internaliza nele a barbárie como um ato normal. Isso já é um efeito do mimetismo. Ao internalizar a violência como comportamento normal, o mimetismo provoca, no agressor, uma perda de sensibilidade sobre o outro. A mimese desumaniza o violento ao ponto de apagar sua capacidade de reconhecer no outro um semelhante. A potência mimética da violência vai anulando a capacidade de reconhecer no rosto do outro uma alteridade humana. O violento, na medida que pratica a violência como um ato normal, se embrutece ao extremo de não reconhecer no olhar do outro o rosto de um semelhante. A violência apaga no violento a capacidade de enxergar no olhar do outro um lampejo de humanidade. Para o violento, o rosto do outro não passa de uma máscara vazia sem significado7. A mimese da violência apaga nele uma parte da capacidade ética de reconhecer no outro um ser humano como ele. A repetição mimética da violência vai se tornando para ele um ato normal. Ele se normaliza como violento e normaliza a violência como método legítimo, natural e eficiente para conseguir os fins que pretende. Cada ato de violência o afunda num embrutecimento desumanizador sem limite definido. Todas as estratégias de barbárie requerem táticas de embrutecimento e desumanização dos violentos ou verdugos. A mimese é uma potência inerente à violência que se presta eficazmente a esta tarefa. A reprodução mimética da violência 7  Neste ponto remetemos aos estudos de Emmanuel Levinas a respeito da violência como negação da alteridade humana em que o rosto tem um significado além da mera face. O rosto é o símbolo através do qual reconhecemos a revelação da humanidade do outro e vemos nele um semelhante diferente. (Id. Totalidade e infinito. Lisboa: Ed. 70, 2000).

60

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 60

06/11/2016 13:25:00


consegue que o violento veja na vítima um mero objeto negativo que deve ser negado. Ao normalizar a violência, o violento apaga os rasgos humanos do outro e reduz seu rosto a um conceito sem significado. Ele é um bandido, um subversivo, um marginal, um terrorista, um ser sem significado. A mimese apaga a significação do rosto humano8. Um rosto insignificante está exposto a uma violência natural. A insignificância do rosto torna o ser humano vulnerável a toda violência. Ainda poderia se dizer que a violência só é possível porque houve um trabalho prévio de apagamento da significância do rosto do outro. Quando o violento se confronta com um rosto com significado para ele, a potência mimética da violência se dilui. A diminuição da potência mimética da violência é proporcional ao significado do rosto. Um rosto com pleno significado dissolve a possibilidade de qualquer violência. É muito difícil cometer violência quando se reconhece no outro alguém com um significado importante para mim. Para que a violência aconteça é necessário produzir o violento como um ser que repete a violência de forma mimética. O violento é um produto, desumanizador, da própria mimese violenta que ele pratica. Ele, ao praticar a violência, se produz a si mesmo como um ser embrutecido, capaz de cometer a barbárie de forma mimética sem qualquer remorso. A potência mimética apaga nele a capacidade de indignar-se com o sofrimento do outro e ativa o dispositivo da normalização que legitima a violação do outro como um ato natural para um fim desejado. Esta é uma lógica biopolítica amplamente difundida nas sociedades modernas. O embrutecimento do violento é uma condição necessária para que a violência possa se reproduzir como um ato de normalidade institucional e pessoal. 8  Para Levinas o rosto tem uma relação não violenta, desarma a violência: “O rosto recusa-se à posse, aos meus poderes. Na sua epifania, na expressão, o sensível ainda captável transmuda-se em resistência total à apreensão”. (Id. op.cit. p. 176) Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 61

61

06/11/2016 13:25:00


Neste ponto, cabe lembrar que os torturadores têm que ser produzidos como tais. A terrível Escola das Américas tinha (e ainda tem) como objetivo primeiro produzir o torturador como um ser insensível para o outro. As técnicas para insensibilizar o torturador são muitas e sofisticadas, cientes de que delas depende a eficiência futura da tortura. Todas estas técnicas de tortura foram amplamente ensinadas, durante as ditaduras, em muitos dos corpos de seguridade dos Estados do cone sul. Ainda na atualidade, por um efeito mimético não neutralizado, tais técnicas se transmitem de forma subterrânea, clandestina, entre agentes do Estado. Guantánamo é o símbolo contemporâneo dessa continuidade mimética no continente. A prática habitual da tortura como técnica de interrogatório contra suspeitos consentida e até legitimada em Guantánamo não é um ato pontual irrelevante, senão a ponta do iceberg que reproduz mimeticamente uma prática de Estado. O fato de ela se cometer num território ocupado fora dos EEUU, também não é casual. Guantánamo é o paradigma do campo biopolítico que representa a continuidade das torturas praticadas neste continente durante os últimos estados de exceção. Os torturadores de Guantánamo são discípulos daqueles que na Escola das Américas ensinaram técnicas de tortura aos militares do Cone Sul e outros países latino-americanos. Guantánamo é o paradigma da reprodução mimética do campo em que a vida humana se torna pura vida nua no estado de exceção. A potência mimética não se detém na subjetividade humana, ela contamina também as instituições e estruturas sociais. A potência mimética tende a contaminar o conjunto das relações sócias tornando a violência um hábito cultural. Ela inocula-se nos âmbitos institucionais do Estado sob o manto de tática normal para governar as vidas perigosas. A legitimação da violência no Estado contém um potencial que a torna mais perigosa já que o Estado detém o monopólio legal 62

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 62

06/11/2016 13:25:00


da violência. A ele lhe cabe o direito exclusivo a monopolizar toda a violência, como dispositivo para defender da violência dos outros9. A coexistência, no Estado, do monopólio legal da violência e a persistência de uma potência mimética, produz uma combinação sombria e ameaçadora para o conjunto da sociedade. A potência mimética permanece oculta nas instituições do Estado sob o véu do naturalismo, tendendo a consolidar o que podemos denominar de uma cultura da violência. As instituições não estão isentas desta contaminação. Pelo contrário, na medida em que o mimetismo da violência se torna algo normal numa sociedade, as instituições tendem a ser naturalmente violentas. A violência tende a incorporar-se como parte natural de seu agir institucional. O potencial mimético da violência também se inocula nas práticas institucionais ao ponto de torná-las práticas normais de governo. Ao deter o monopólio legal do uso da violência, o Estado se arbitra como uma forma de violência legal cuja única legitimidade é a de defender de outra qualquer violência que ameace a vida humana inocente. Mas quando a mimese da violência latente em muitas instituições do Estado induz a praticar a violência como uma tática de governo, a potência letal dessa violência se multiplica ao extremo. A combinação de mimese e monopólio da violência, quando devidamente articulada, se torna uma temível máquina biopolítica de controle humano em grande escala. A barbárie em grande escala das últimas ditaduras militares se explica, em grande parte, porque o mimetismo da violência não foi desconstruído e continua contaminando muitas das instituições públicas do 9  Este seria um dispositivo imunitário que a biopolítica utiliza como mecanismo para sacrificar umas vidas, que considerar ameaçadoras, para preservar as vidas normais. Sobre a dimensão da biopolítica (cf. ESPOSITO, Roberto. Immunitas. Protección y negación de la vida. Madrid: Amorrurtu, 2005)

Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 63

63

06/11/2016 13:25:00


Estado, notadamente as áreas de segurança, polícia e defesa. A prática da violência como método de governo biopolítico de populações perigosas nunca deixou de praticar-se. Ainda pior, as práticas de violência, os métodos de tortura, as táticas de repressão, entre outras, nunca deixaram de ensinar-se nas escolas militares ou policiais e sempre foram consideradas uma possível tática de governo. O imaginário social da violência necessária sobreviveu na reprodução mimética de uma prática não reconhecida. O potencial mimético da violência também pode embrutecer as instituições sociais e o próprio Estado quando interiorizam a violência como uma prática habitual de governo institucional. O embrutecimento produzido pelo mimetismo tira a capacidade crítica dos próprios atos, impede aos agressores e violentos perceberem que suas práticas são atos de violação da alteridade do outro. Eles as justificam como práticas normais e necessárias para resolução de conflitos. Este é o ponto cego a que conduz o mimetismo da violência e o ponto álgido da lógica biopolítica. O esquecimento, cúmplice da mimese da violência Após a análise crítica sobre o mimetismo da violência e sua lógica biopolítica, a questão que nos colocamos é como neutralizar o potencial mimético da violência. O desafio que nos cabe é esboçar uma estratégia eficiente para tal finalidade. Se assim o fizermos, talvez poderemos quebrar a espinha dorsal de uma violência histórica que vem assolando nossas sociedades desde suas origens modernas. Entre as tentativas ensaiadas para neutralizar o potencial mimético da violência, destacamos duas práticas políticas que se mostraram ineficientes e ainda cúmplices de tal mimese. Um caminho que se mostrou ineficiente para neutralizar o potencial mimético da violência foram os discursos formais e 64

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 64

06/11/2016 13:25:00


racionalistas. A mimese da violência não se neutraliza através da confecção de instrumentos jurídicos formais de caráter procedimental10. Por mais que estes sejam importantes e até necessários, são insuficientes para neutralizar o potencial mimético da violência. Por exemplo, as seqüelas da violência que os séculos de escravidão provocaram não se anularam através do ato formal da libertação dos escravos. Os decretos da Nova República no Brasil não apagaram as marcas da violência histórica e estrutural. De igual modo, não foram as transições formais das últimas ditaduras que apagaram o potencial mimético da violência institucional no Estado. Muitas dessas transições foram meras transações11 negociadas pelos interesses dos militares para perpetuar sua influência no Estado e ainda comandar todo o processo de modo a não serem julgados por seus atos de violência e manter o poder de agir com violência, se o considerarem pertinente. O caráter transacional, negociado pela força, de nossas democracias as torna muito vulneráveis à continuidade da potência mimética da violência nas suas instituições. A dificuldade de realizar uma autêntica justiça transicional dos regimes autoritários encontra seu maior obstáculo no caráter transacional imposto pelos próprios militares. A transação histórica dos estados de exceção para as novas democracias carregou consigo uma parte importante do potencial mimético da violência institucional.A transação não permitiu fazer uma transição. Não houve um trânsito para a democracia senão que se negociou a continuidade de uma lógica 10  Compartilhamos com Reyes Mate que “o traço mais característico da justiça moderna – traço que comparte com a justiça dos antigos – é a alergia ao passado”. (MATE, Reyes. Memórias de Auschwitz. São Leopoldo: Nova Harmonia, 2005, p. 267). 11  Devo esta observação crítica entre transição e transação, como figura semântica e política das ditaduras latino-americanas, a Jair Krischke, Coordenador do Movimento Justiça e Direitos Humanos, na sua conferência no XIII Corredor das Idéias do Cone Sul, realizado 14/09/2011, na Unisinos, São Leopoldo –RS. Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 65

65

06/11/2016 13:25:00


autoritária enquistada ainda na violência institucional que ameaça as frágeis democracias e se manifesta na truculência e tortura praticadas por muitos elementos do Estado. Não são os atos formais de governo que neutralizam o potencial mimético da violência, ainda que se reconheça sua importância para articular o modelo institucional de qualquer sociedade. Não é o aumento de discursos racionalistas que dissolvem a potência mimética da violência. Há algo que permanece nas instituições quando as mudanças se restringem a meras arquiteturas formais do direito. Também não são o incremento de códigos morais, que só conseguem normatizar ainda mais a vida dos sujeitos sujeitando-os aos interesses institucionais, que possibilitam neutralizar a mimese da violência. Não devemos confundir a formalidade do discurso com sua eficiência nas subjetividades e nas instituições. No caso da violência, o vácuo que existe entre ambos é grande ao ponto de tornar o discurso algo vazio quando a violência entra em ação. A segunda prática política que consideramos ineficiente e ainda cúmplice da violência é o esquecimento. A mimese da violência tem no esquecimento um ponto neurálgico para a sua existência. O esquecimento é o grande aliado do potencial mimético da violência. A amnésia é condição necessária para a perpetuação da violência. Amnésia e violência coexistem como aliados estratégicos. É comum propor o esquecimento da violência como o meio eficiente para neutralizá-la e evitar seqüelas posteriores. Porém, é justamente o esquecimento que possibilita a perpetuação da violência. A potencia mimética da violência nunca pode ser esquecida senão que fica recalcada. O esquecimento não anula a violência senão que a recalca. O recalque é um dispositivo antropológico e político que oculta uma realidade como 66

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 66

06/11/2016 13:25:00


inexistente, embora ela continue ativa. O recalque da violência a oculta possibilitando sua persistência na sombra. A violência recalcada pelo esquecimento se perpetua como potência ativa nas estruturas e nas práticas sociais. O recalque provocado pelo ato formal de esquecimento comprime a violência nas sombras do inconsciente humano ou nos porões das instituições, mas não a neutraliza. Pelo contrario, o recalque esconde a potência mimética da violência com a aparência de esquecimento quando na verdade ela permanece como potencia ameaçadora que virá a se perpetuar em atitudes individuais ou em segmentos institucionais. O esquecimento não neutraliza a violência, pelo contrario, é seu cúmplice mais eficiente. O esquecimento é condição necessária para que a violência se perpetue. O esquecimento sempre opera como um mecanismo formal de silenciamento oficial dos atos de violência cometidos, mas não consegue neutralizar o potencial mimético de sua reprodução. Ao impetrar um ato formal de esquecimento, a violência fica recalcada na interioridade dos hábitos individuais e institucionais, ainda que clandestinamente. A sombra do recalque dá uma aparência de superação da violência quando na verdade ela permanece ativa como potencia ameaçadora pronta para reaparecer em qualquer circunstância. O recalque é sempre clandestino, o que torna seus efeitos mais imprevisíveis. A violência da barbárie que fundou nossas sociedades não foi apagada pela passagem do tempo. Ela nunca foi esquecida porque o esquecimento por si só não neutraliza a violência, pelo contrário, a ativa como força oculta12. A violência se esconde 12  As teses de filosofia da história de Walter Benjamin insistem neste ponto, como a Tese II: “[...] O passado traz consigo um indicador secreto que o remete à redenção. Acaso não sentimos a lufada do mesmo ar que respiraram aqueles que nos precederam?” (Id. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1996, p. 223). Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 67

67

06/11/2016 13:25:00


sob a capa do esquecimento para agir mais intensamente pela potência mimética nos porões das instituições e das práticas sociais. O tempo não apaga a violência, a esconde. Ocultada sob aparência do esquecimento, a violência contagia as estruturas, instituições, práticas e valores de nossas sociedades. As contínuas tentativas de esquecer a violência só contribuem para ocultar seu potencial auto-reprodutor. As políticas de esquecimento como determinadas formas de anistia, eis de ponto final, leis abolicionista, novos contratos, novas repúblicas, pretendem passar páginas da história como se nada tivesse acontecido. Porém o passado não se anula, ele é constitutivo de nosso presente. Nenhuma sociedade parte de um ponto zero da história, ela tem que apreender a carregar sua história como parte de sua realidade. A temporalidade sincrônica que a noção moderna de progresso propugna, desconhece que a história contém uma temporalidade diacrônica pela qual o passado nunca passou totalmente13. Os acontecimentos ocorridos são parte constitutiva de nosso presente. O contrato social tende a desconhecer a injustiça histórica e pretende partir de um ponto zero de acordos políticos para apagar a história passada. A diacronia inerente ao acontecimento histórico se manifesta especialmente ativa nos eventos de violência. Para o ser humano e para as sociedades, o passado nunca passa totalmente. O tempo conecta o presente com o passado através da experiência do acontecimento. O passado sempre forma parte de nosso presente. Somos, em parte, o passado que vivemos. O tempo não apaga os acontecimentos, pelo contrário, os recompõe conectando as vivencias do presente 13  Neste ponto remetemos aos estudos de Benjamin, em especial suas Teses sobre filosofia da história. Na tese V, diz: “A verdadeira imagem do passado perpassa veloz. O passado só se deixa fixar, como imagem que relampeja irreversivelmente, no momento que é reconhecido”. (Id. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1996, p. 224).

68

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 68

06/11/2016 13:25:00


com as experiências do passado14. Por isso a barbárie não pode ser apagada por contratos, nem esquecida por atos institucionais. Não se nega de forma arbitrária a influência do passado no nosso presente, nem se pode anular os efeitos diacrônicos que a barbárie provocou. O passado da violência assombra nosso presente, especialmente quando se pretende passar a página através de atos voluntaristas e racionalistas de esquecimento. O esquecimento não anula a violência, pelo contrário, a esconde como potência oculta pronta para agir. A ocultação da violência pelo esquecimento alimenta sua reprodução e a perpetua como ameaça permanente. A violência social e institucional do nosso presente não está descolada dos episódios de violência histórica de passado. Todas as tentativas de esquecimento político da violência histórica só contribuíram para reforçar sua permanência como prática normalizada das instituições sociais e do comportamento cotidiano. Esquecimento e violência se atraem e se complementam historicamente. A violência naturalizada faz da barbárie uma forma natural de regulamentar as relações sociais e de resolver os conflitos. A violência normalizada reduplica seus efeitos ao se constituir em meio legítimo e fim justo para solução de todos os conflitos sociais. Este é o objetivo original das instituições que sancionam a violência como seu meio legítimo para conseguir determinados fins políticos. O esquecimento da violência perpetua a barbárie sob a forma de tradição natural. Não poderemos entender muitos dos atuais episódios de violência estrutural que assolam nosso país, como é o caso das milícias armadas no Rio de Janeiro, da persistência da tortura sistemática por parte de agentes da polícia, entre outras, se 14  Sobre a importância da temporalidade diacrônica para recompor a injustiça histórica recomendamos a leitura: MATE, Reyes. Meia-noite na história. Comentários às teses de Walter Benjamin sobre o conceito de história. São Leopoldo: Unisinos, 2011. Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 69

69

06/11/2016 13:25:00


não as compreendermos como efeitos decorrentes de uma violência estrutural ocultada nas instituições por dispositivos de esquecimento. A violência é narrada desde a perspectiva dos vencedores como uma violência natural da história para que avance de forma progressiva a sociedade. O progresso se tornou uma categoria manipulada pelos vencedores da história para naturalizar a violência como meio legítimo da composição das sociedades. As vítimas “meras florzinhas (sic) pisoteadas na beira da história”, segundo Hegel, são olhadas como efeitos colaterais necessários e inevitáveis. Desta forma, o esquecimento da violência e das conseqüências trágicas que provoca para as vítimas, se tornou a condição necessária da perpetuação da violência. Porque a violência que se nega pelo esquecimento tornará a repetir-se pela impunidade. Memória e violência Esboçadas as duas falsas soluções (atos racionalistas formais e políticas de esquecimento) amplamente utilizadas para neutralizar a violência, cabe nos perguntar se ainda podemos ensaiar alguma proposta de solução para tamanha potência destruidora. Podemos sustentar a tese de que se o esquecimento é a alavanca mimética da violência, a memória atua como seu freio. A memória consegue neutralizar, em grande parte, a potência mimética que naturaliza a violência. Cabe perguntar, como a memória consegue dissolver a potência mimética da violência? A memória contém uma potência anmanética que se opõe de forma eficiente à potência mimética da violência. A amnámese é a potência humana que consegue trazer para a luz aquilo que o recalque tinha ocultado sob aparência de esquecimento. O ser humano tem a possibilidade de reconstituir seu passado no presente, presentificar o passado ao ponto de torná-lo atual. 70

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 70

06/11/2016 13:25:00


Essa potência absolutamente singular é a anámnese. A anámnese não é a mera possibilidade de reter lembranças, como os animais, senão a potência de trazer o passado para o presente. A anámnese resgata os acontecimentos passados e os atualiza. Ela consegue passar da mera lembrança animal à reconstituição da memória. A memória é a possibilidade de significar o passado a partir de nosso presente. A anámnese nos permite construir o sentido de nossas lembranças. Ela nos dá o poder de significar o nosso passado, de fazê-lo presente pelo sentido que ele tem para nós hoje. Devido a essa potência diacrônica, a anámnese penetra nos porões inacessíveis da violência recalcada e a traz para a luz do presente expondo a sua brutalidade. A potência anamnética desmascara a pretensa naturalidade de potência mimética da violência. A anámnese recompõe o acontecimento do passado como uma realidade que toca nosso presente. A anámnese constrói as pontes significativas de uma história ocultada pelo recalque. Deste modo, a amnanese neutraliza a mimese da violência. A violência sobrevive através da amnésia. Sua potência mimética se reproduz naturalmente porque se ocultou amnesicamente. A potência mimética resgata as conseqüências perversas de toda violência sobre a vida das vítimas. A memória é produzida pela história da mesma forma que a história é produzida pela memória15. A memória produz a história porque quebra a compulsão atemporal da inteligência biológica animal e introduz a temporalidade na experiência humana. Mas não é qualquer memória que neutraliza a potência mimética da violência. Os violentos (os vencedores em geral) também utilizam a memória como recurso para legitimá-la. A memória dos violentos atua como mais um artifício ideológico para legitimar a violência. A memória que tem possibilidade de 15  Sobre a relação entre memória e história, cf. RICOEUR, Paul. A memória, a história e o esquecimento. Campinas: Unicamp, 2007. Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 71

71

06/11/2016 13:25:00


neutralizar a potência mimética da violência é a que decorre do testemunho das vítimas. Aqueles que foram vítimas da violência têm uma experiência única de sua barbárie. Seu testemunho revela a perversão inerente ao ato de violência. O testemunho da vítima atualiza anamneticamente o lado sombrio e terrível da violência desarmando sua pretensa legitimidade. O testemunho e a testemunha da violência contêm uma potência anamnética singular que mostra a perversão da potência mimética da violência. Só a potência anamnética das vítimas contém a possibilidade de neutralizar a potência mimética da violência. A memória dos violentos tende a ocultar os efeitos da violência sobre a vida humana. A memória dos vitimários roduz atos de legitimidade da violência. A potência anamnética das vitimas contém um olhar próprio sobre a história que revela o lado perverso da violência histórica. O desvelamento da perversão oculta na história desconstrói a pretensa naturalidade da violência mostrando a sua intrínseca inumanidade. A potência anamnética das vitimas revela um lado oculto da história que parecia não existir e que permitia à violência perpetuar-se como algo natural. O lado sombrio da violência, revelado pela memória das vítimas, traz consigo um novo imperativo histórico: a urgência ética de neutralizar os dispositivos naturalistas da violência. A potência anamnética das vítimas tem o poder de desarmar a potência mimética da violência porque ao confrontá-la com as conseqüências da barbárie, a violência fica deslegitimada. O rosto humilhado das vítimas é um operador ético que atua como elemento neutralizante dos dispositivos de naturalização e legitimação da violência. A memória das vítimas, a anámnese de sua violação, tem a potência de desconstruir a reprodução mimética da violência. Ao trazer para luz a perversidade da violência, se inibe a sua reprodução mimética. O dispositivo naturalizador da violência que a reproduz como algo normal 72

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 72

06/11/2016 13:25:00


fica desconstruído quando se rememoram as conseqüências da barbárie. A tendência a continuar utilizando a violência como um método normal de governo e de gestão política fica profundamente questionada, desconstruída, quando confrontada com a memória de suas conseqüências. Os atos de memória atualizam as barbáries históricas como meio eficiente para evitar sua repetição. A violência esquecida tende repetirse como ato de normalidade. Considerações finais Para concluir, temos que esclarecer que a potência anamnética das vítimas não advém do ressentimento nem da vingança, senão da justiça. Uma justiça que é muitas vezes abafada pelos acordos políticos, pelos atos contratuais que pretendem a passar página da história, apagando (ingenuamente) os acontecimentos vividos. A memória das vítimas introduz no debate uma nova perspectiva de justiça que é a justiça anamnética16. A memória da violência não tem por objetivo o ressentimento. Se assim for, e poderá acontecer em casos particulares, tal memória não contribuirá para fazer justiça às vítimas, senão para recalcar nelas a dor na forma de ressentimento insuperável. Há que diferenciar memória de ressentimento. A memorização da violência não é motivada por ressentimento senão por justiça. A justiça histórica só poderá realizar-se ao se fazer uma memória da injustiça cometida contra as vítimas17. 16  Sobre a justiça anamnética: cf. MATE, Reyes. Memórias de Auschwitz. São Leopoldo: Nova Harmonia, 2005 17  Horhkeimer já desenvolveu a tese de que o crime é evidente a quem o comete e a quem o sofre (vitimário e vítima), mas para que ele seja acessível às gerações futuras será necessário alguém que dele faça memória. Sem a memória o crime se apagará no esquecimento da história. Admite Horkheimer que só Deus poderá conservar as injustiças olvidadas e deste modo fazer justiça (divina) aos injustiçados da história. Ainda termina sua reflexão com Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 73

73

06/11/2016 13:25:00


O ressentimento é provocado pelo trauma. Sociedades traumatizadas pela violência podem cair na tentação de sobreviverem amedrontadas pelo ressentimento. O medo dos ressentidos não supera a violência, pelo contrário, a possibilita. O medo é amplamente utilizado como tática biopolítica de controle social. Por isso em alguns casos particulares das vítimas da violência, o esquecimento poderá ser o recurso final para superar o trauma. O paradoxal é que o trauma existe porque há uma violência recalcada no inconsciente pessoal ou social. Ela parece estar esquecida, mas existe recalcada. O recalque provoca a angústia do trauma. No trauma a violência não está esquecida, sobrevive recalcada. Para superar o trauma, há que se fazer memória do acontecimento. Só a memória, sempre dolorosa, poderá liberar as vitimas e as instituições do trauma da violência. Ao trazer para a luz a violência ocultada pelo trauma, fica transparente a sua barbárie, o que representa o começo de sua desconstrução. Os atos de esquecimento só serão eficazes para superar o trauma da violência quando sejam conseqüência dos atos de memória. De igual modo, os atos institucionais de anistia só serão legítimos e ainda eficientes para neutralizar a potência mimética da violência, quando decorram de atos de memória história e de devidos processos de justiça. Em segundo lugar, é conveniente afirmar que a memória da violência não tem por objetivo a vingança. A memória que invocamos não tem por objetivo vingar-se dos violentos utilizando seus mesmos métodos. O objetivo da rememoração da violência histórica é não cometer uma segunda injustiça contras as vítimas da violência18. O esquecimento perpetra uma grave questão: “Pode-se se admitir isto e não obstante levar uma vida sem Deus? Tal é a pergunta da filosofia”. (Id. Apuntes. 1950-1969. Caracas: Monte Ávila, 1976, p. 16). 18  Certamente, não poderemos naturalizar a memória como uma faculdade intrinsecamente boa. Há perigos na memória e há perversões da memória, mas isso não invalida sua absoluta pertinência para uma justiça histórica. Sobre

74

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 74

06/11/2016 13:25:01


uma segunda injustiça ao apagar da história a injustiça e a violência cometida. Ao esquecer a injustiça histórica se apaga da história os que sofreram a sua violência, as vítimas. O esquecimento é uma segunda violência. Uma violência simbólica que impede a justiça histórica. A justiça das vítimas só pode ser feita pela memória da injustiça sofrida19. Quando determinadas políticas de “transação”, propõem o esquecimento da tortura, o olvido dos mortos e desaparecidos, a negação da política repressiva do Estado como parte dos acordos políticos, se comete uma dupla injustiça. Se nega a brutalidade da injustiça perpetrada, neste caso pelo Estado, e ainda se pretende a morte histórica das vítimas condenando-as ao olvido. O olvido é uma segunda morte das vítimas. É como proclamar oficialmente que elas nunca existiram e que não têm relevância para nossa realidade e nosso presente. Esquecer as vítimas e a violência contra elas cometida supõe impetrar sua morte histórica. A morte histórica das vítimas, seu olvido, é uma segunda injustiça, uma injustiça histórica. Frente a isso, se contrapõem o testemunho e memória das vítimas como meios para construir uma justiça histórica que por ser tal há de ser uma justiça anamnética. A memória das vítimas é condição necessária para a superação dos traumas pessoais e sociais vividos pela violência. Só a memória pode perdoar. Só a memória pode anistiar. O olvido não pode perdoar porque não lembra. O esquecimento simplesmente nega a realidade da violência. Só a potência anamnética poderá fazer justiça histórica às vítimas, e ainda desarmar a potência mimética da violência. Poderá se falar em os perigos da memória: cf. TODOROV, Tzvetan. Los abusos de la memoria. Barcelona: Paidós, 2000. 19  O paradoxal do esquecimento é que, como afirma Reyes Mate: “Sem memória não há, pois, injustiça, mas tampouco justiça”. (Id. Tratado de la injusticia. Barcelona: Trotta, 2011, p. 292). Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 75

75

06/11/2016 13:25:01


anistia e perdão como resultado final da justiça anamnética. Ainda tem que se diferenciar entre perdão e anistia. O perdão sempre será direito das vítimas, o Estado poderá, como máximo, anistiar legalmente mas não perdoar moralmente20. O perdão é uma prerrogativa ética das vítimas, que pode ter uma grande importância política, a depender dos contextos históricos21. Só quem sofreu o trauma da violência tem a possibilidade de perdoar como ato moral e político extremo. De igual modo as vítimas da violência também tem o direito de nunca perdoar. O perdão é uma dimensão ética (e teológica) com potencialidades políticas nos contextos de reconciliação. Mas são as vítimas que têm a iniciativa e o direito do perdoar ou não22. O Estado poderá anistiar, ou não, legalmente, mas não tem a prerrogativa do perdão. A efetivação do perdão pessoal ou da anistia institucional só poderá acontecer através de um ato de memória histórica do acontecido. Só a rememoração possibilita a superação do trauma da violência. Só a potencia anamnética pode desconstruir o poder mimético da violência. A justiça anamnética exige o devido processo. Os torturadores hão de ser julgados, processados e condenados. Só depois do devido processo e da sentença emitida é que se poderá falar na pertinência política da anistia e no direito moral do perdão. Tanto o perdão como a anistia exigem justiça, e a justiça devida 20  Sobre as dificuldades e possibilidades políticas do perdão cf. o último capítulo, “o difícil perdão” de: RICOEUR, Paul. A memória a história e o esquecimento.Campinas: Unicamp, 2007. 21  Cf. ZAMORA, Jose A. ( Org.). El perdón y su dimensión política. In. MADINA, Eduardo; MATE, Reye (org) El perdón, virtud política. En torno a Primo Levi. Barcelona: Anthropos, 2008, p. 57-80. 22  Destacamos a posição de Derrida de que o perdão é incondicional, radical no sentido semântico de que se perdoa o imperdoável ou não existe o perdão. “Por acaso não tem que manter que um perdão digno desse nome, se é que alguma vez se realiza, deve perdoar o imperdoável, e isso sem nenhuma condição?”. (cf. DERRIDA, Jacques. “El perdón”. In: In. MADINA, Eduardo; MATE, Reyes (org) El perdón, virtud política. En torno a Primo Levi. Barcelona: Anthropos, 2008, p. 123).

76

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 76

06/11/2016 13:25:01


às vítimas exige o direito à memória e verdade das violências cometidas. No processo de justiça ananmética, os atos de memória, os monumentos de memória, pessoal e coletiva, são quesitos imprescindíveis para neutralizar a violência mimética que permanece recalcada nos porões das instituições e na sombra do inconsciente humano. A memória pessoal e institucional é pré-requisito da justiça. Não pode haver justiça sem memória da injustiça. A memória da barbárie é necessária para que se inicie o devido processo de julgamento social e histórico do acontecido. Ao reclamar a instituição da comissão da verdade, a criação de memoriais da violência, o registro público em praças, ruas, monumentos dos nomes dos vitimados (e não dos ditadores e torturadores como ainda ocorre em nosso país), ao exigir o julgamento, ainda que de difícil execução no nosso país, dos responsáveis da barbárie, não se está querendo vingança, nem se está pretendendo revanche. Os objetivos da justiça anamnética são: neutralizar o potencial mimético da violência e fazer justiça histórica às vítimas. Pois o que se oculta pelo esquecimento, voltará a repetir-se pela impunidade. Referências BENJAMIN, Walter. “A doutrina das semelhanças”. In. Id. Obras escolhidas I. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1996. DERRIDA, Jacques. “El perdón”. In: In. MADINA, Eduardo; MATE, Reyes… (org) El perdón, virtud política. En torno a Primo Levi. Barcelona: Anthropos, 2008, p. P.113-141. ESPOSITO, Roberto. Immunitas. Protección y negación de la vida. Madrid: Amorrurtu, 2005. HORKHEIMER, Max. Apuntes. 1950-1969. Caracas: Monte Ávila, 1976. Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 77

77

06/11/2016 13:25:01


GEBAUER, G.; WULF, C. Mimese na Cultura. São Paulo, Annablume, 2004. GIRARD, René. O bode expiatório. São Paulo: Paulos, 2004. GIRARD, René. A violência e o sagrado. São Paulo: Paz e Terra/ UNESP, 1990. LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e infinito. Lisboa: Ed. 70, 2000. MADINA, Eduardo; MATE, Reyes… (org) El perdón, virtud política. En torno a Primo Levi. Barcelona: Anthropos, 2008. MATE, Reyes. Meia-noite na história. Comentários às teses de Walter Benjamin sobre o conceito de história. São Leopoldo: Unisinos, 2011. MATE, Reyes. 2011.

Tratado de la injusticia.

Barcelona: Trotta,

MATE, Reyes. Memórias de Auschwitz. São Leopoldo: Nova Harmonia, 2005. RICOEUR, Paul. A memória a história e o esquecimento. Campinas: Unicamp, 2007. RUIZ, Castor M.M. Bartolomé. Por uma crítica ética da violência. São Leopoldo: Unisinos, 2009. TODOROV, Tzvetan. Paidós, 2000.

78

Los abusos de la memoria. Barcelona:

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 78

06/11/2016 13:25:01


Cultura democrática e emancipação na América Latina: entre Habermas e Amartya Sen José Marcos Miné Vanzella A universalidade da democracia no enfoque abrangente da cultura argumentativa Propomos a questão da investigação da pretensa universalidade da democracia unindo dois discursos que possuem um viés pragmático e performativo reconstrutivo. Primeiramente abordamos com Amartya Sem o viés pragmático para na sequência atendermos a perspectiva de Habermas. Sen (2010a, p. 53) afirma que “A democracia, é óbvio, não se apoia apenas em um único ponto, mas envolve muitos pontos inter-relacionados, porém, vale a pena perguntar, qual é o eixo central da democracia? A questão-chave para o autor indiano é não prender-se ao modelo institucional. “A democracia, […] tem de ser vista […] primariamente em termos de “racionalidade pública”, inclusive a oportunidade para a discussão pública e também como participação interativa e encontro racional.” (2010a, p. 54) Sen afirma que: Em sua busca de objetividade política, a democracia tem de tomar a forma de uma racionalidade pública construtiva e eficaz. (2010a, p. 54) Pois além da eleição: “a força e o alcance das eleições dependem crucialmente da existência de um debate público aberto” (2009, p.12). A adequada compreensão do debate público implica que os valores individuais podem mudar durante a deliberação. Sen passa a apresentar experiências, que estão presentes Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 79

79

06/11/2016 13:25:01


em várias partes do mundo para refutar aqueles que identificam a democracia exclusivamente com o Ocidente. Ele afirma: “temos de nos interessar pela história da participação popular e da razão pública em diferentes regiões e países.” (2011, p. 356). Ele lembra que a experiência grega não teve impacto imediato em Roma e a oeste da Grécia, porém, “por outro lado, algumas cidades da Ásia – no Irã, Báctria e Índia – incorporaram elementos de democracia em governos municipais em grande parte sob influência grega.” (2010a, p. 55). O debate público não floresceu apenas na Grécia, mas em diversas regiões e civilizações antigas. Sen elenca alguns importantes exemplos começando com a Índia. O primeiro desses grandes conselhos teve lugar em Rajagriha, logo após a morte do Buda Gautama, 2500 anos atrás. O mais grandioso desses conselhos – o terceiro – ocorreu sob os auspícios do imperador Ashoka no século III a. C. […] Ashoka também tentou codificar e propagar o que deve ter sido uma das mais antigas formulações de regras para discussão pública – um tipo de versão antiga das Regras de ordem de Robert do século XIX. (PPL p. 56)

Ele procura demonstrar que a democracia não é um conceito totalmente grego e ocidental no caso específico da Índia, ele lembra que em 1947 quando a Índia se trona a maior democracia do século XX: Jawaharlal Nehru, por exemplo, depositou particular ênfase nas regras políticas dos imperadores Hindus, tais como Ashoka e Akbar. (2009, p.25). Naquele contexto, o presidente da comissão que elaborou o rascunho da constituição estudou detalhadamente a história dos governos democráticos locais e lançou mão de princípios universalistas desenvolvidos no Ocidente para configurar a atual constituição da Índia, sem, porém, abandonar sua história e tradição. Mas o que importa reconhecer aqui é que o ideal do

80

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 80

06/11/2016 13:25:01


debate público está fortemente ligado às práticas sociais. E é esse debate público que mantém esse funcionamento ele está enraizado em antigas tradições culturais. É importante notar que a implantação da democracia moderna na Índia não foi o efeito de uma intervenção e expressão do domínio inglês, ela também foi o reencontro com raízes profundas deste país de cultura tão rica e diversa. Sen também lembra que: […] quando na década de 1590 o grande imperador mongol fazia seus pronunciamentos na índia sobre a necessidade de tolerância, e se ocupava com a promoção do diálogo entre pessoas de fé diversas […] a Santa Inquisição ainda florescia na Europa. Giordano Bruno era queimado em praça pública por heresia me Campo dei Fiori, em Roma. (2010a p.58)

Outro exemplo significativo de tolerância e respeito com as diferenças deu-se com o Imperador Saladino que acolheu o filósofo judeu Maimónides, perseguido na Europa por intolerância (2009, p.28). Sen também mostra que a discussão pública já estava há muito tempo enraizada em outros países não ocidentais como o Japão, que em 604 produziu a chamada Constituição dos dezessete Artigos. (2010a, p.58). Também na África, Sen lembra um testemunho do próprio Nelson Mandela lembrando-se de sua tribo: “todo mundo que queria falar podia fazê-lo era a democracia em sua forma mais pura.” (2010a, p.58) No continente africano multiplicam-se os conselhos tribais, segundo Sen, considerar a luta por democracia na África como simples imposição ocidental mostra uma incompreensão profunda. “O largo caminho até a liberdade de Mandela começa claramente em casa” (2009, p.117). Sen escreve: A compreensão de Mandela da democracia não foi auxiliada pela prática política que ele via a seu redor, no regime do apartheid, controlado por pessoas de origem europeia

Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 81

81

06/11/2016 13:25:01


que, talvez valha a pena recordar nesse contexto, costumavam definir-se pelo termo cultural “europeu” e não apenas “branco”. Na verdade, pretória pouco podia contribuir para a compreensão de Mandela da democracia. (2011, p. 366)

Nas terras americanas e especialmente latino-americanas e brasileiras, os povos indígenas frequentemente organizam-se e continua se organizando em conselhos, como o Aty Guasu, Grande Conselho do povo Guarani e Kaiowá, representando os mais de 45.000 indígenas no Mato Grosso do Sul. (CAIAPÓ, KAIOWÁ, 2015). Sen afirma: “Em sua forma institucional, a democracia pode ser muito nova no mundo – é praticada por não mais de duzentos anos; contudo, como observou Tocqueville, ela expressa uma tendência na vida social com uma história muito mais longa e difundida.” (2011, p.357-358). Ele reconhece que a ideia de valor universal da democracia é realmente nova e produto do séc. XX. Entretanto, o argumento de que […] “a democracia é uma norma peculiar do Ocidente – não afinada com os valores fundadores de outras sociedades” (2010a, p. 53), mostrou-se insubsistente. Entendendo o papel construtivo do debate público, entende-se que um país deve tornar-se adequado mediante a democracia. O enfoque abrangente da cultura argumentativa mostra que a democracia é a forma de governar promotora da emancipação. Torna-se evidente a discussão pública é importante instrumento de aprendizado, convívio e emancipação humana, presente nos vários povos do mundo, com diferentes configurações culturais. Neste sentido, o governo, através da razão pública, não é coisa imposta pelos ocidentais.

82

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 82

06/11/2016 13:25:01


A democracia e a compreensão e construção dos direitos no pensamento de Amartya Sen Vamos abordar agora a questão do papel positivo da democracia moderna na compreensão e construção dos direitos. Não temos uma acepção plenamente unívoca de democracia, pois as democracias configuram-se diferentemente. Retornando sua forma institucional, Sen apresenta um conceito nos seguintes termos: A democracia acarreta certas exigências, como são certamente o direito ao voto e o respeito mesmo aos resultados eleitorais; […] Mesmo assim, algumas eleições podem resultar uma falácia se se produzem em um marco onde as diferentes partes não contam com a oportunidade adequada de apresentar seus pontos de vista e seus programas, ou se o eleitorado não goza de liberdade para informar-se e considerar as colocações dos contendentes. A democracia é um sistema exigente e não só uma condição mecânica […] tomada de forma isolada. (2009. p.73, tradução nossa).

Dentre as condições exigentes da democracia moderna, estão os direitos políticos. Porém existe uma linha de argumentação, que os direitos políticos de nada valem diante da miséria. Coloca-se nesta linha de argumentação uma pergunta falaciosa: “o que deve vir primeiro - eliminar a pobreza e a miséria ou garantir liberdade política e direitos civis, os quais afinal de contas, têm pouca serventia para os pobres?” (2010b, p 194). Ele apresenta três considerações que conduzem a preeminência dos direitos políticos: 1. Sua importância direta para a vida humana associada a capacidades básicas (como capacidade de participação política e social) 2. Seu papel instrumental de aumentar o grau Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 83

83

06/11/2016 13:25:01


em que as pessoas são ouvidas quando expressam e defendem suas reivindicações de atenção política (como as reivindicações de necessidades econômicas); 3. Seu papel construtivo na conceituação de “necessidades” (como a compreensão da “necessidade econômica” em um contexto social.) (SEN, 2010b p 195).

A democracia, pela afirmação dos direitos fundamentais impacta diretamente a vida humana e as capacidades básicas. Ela afirma direitos de educação e dignidade humana. As exigências da democracia apontam para a superação de toda situação de miséria que afronta a dignidade humana. Além, disso, a participação política tem um valor intrínseco para a vida e o bem-estar dos homens (2009, p.73) As reivindicações políticas e sociais encontram mais canais de manifestação e efetividade, tornando-se um instrumento eficaz, para afastar as maiores iniquidades. Por fim, o aspecto construtivo diz respeito a uma tomada de consciência mais aguda sobre os direitos e a afirmação das ações necessárias para atendê-los (2009, p.74). Nas palavras do autor: “O exercício de direitos políticos básicos torna mais provável não só que haja uma resposta política a necessidade econômica, como também que a própria conceituação – incluindo a compreensão – de ‘necessidades econômicas possa requerer o exercício desses direitos.” (2010b p. 202) Isso acontece porque os direitos civis e políticos conduzem a eleições informadas e conscientes, que permitem uma melhor avaliação dos problemas sociais e políticos (2009, p.75). As sociedades democráticas apostam nos ganhos da cooperação, mas essa pode procurar ordens distintas, elas precisam escolher entre a distribuição justa dos benefícios e os arranjos possíveis. As realizações da democracia dependem não só das regras e procedimentos que são adotados e 84

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 84

06/11/2016 13:25:01


salvaguardados, como também do modo como oportunidades são usados pelos cidadãos (2010b, p. 204). Com a afirmação de nossas democracias formais, abriram-se oportunidades para afirmações substanciais da justiça e da igualdade. Sen apresenta o exemplo da Índia onde o ativismo dos partidos evitou as fomes crônicas (2010b, p.205). Amartya Sen retira do papel construtivo da democracia, mais um argumento para reforçar o valor universal da democracia. Ele também faz as seguintes considerações: Se a análise prévia é correta, então a afirmação de que a democracia é um valor universal não segue um só mérito particular. Existe uma pluralidade de virtudes, incluindo para iniciar a importância intrínseca da participação e a liberdade política na existência humana; segundo, a importância instrumental da participação política para garantir responsabilidade dos governos e a prestação de contas; e terceiro, pelo papel construtivo da democracia na formação de valores e para o entendimento das necessidades, direitos e obrigações. (SEN, 2009, p. 78, tradução nossa.)

Esta passagem soma três argumentos que valorizam positivamente a democracia sintetizando sua abordagem nas palavras, intrínseca, instrumental e construtiva. Essa exposição nos permite observar que Amartya Sen adota uma perspectiva de exposição pragmática dos motivos, argumentos e valores da democracia. Ele não se apega ao conceito de democracia, mas tenta mostrar seus vários usos nas várias culturas. Dos vários usos extrai seu valor universal, como enfeixamento compreensivo do sentido destas várias manifestações. Ele também questiona o sentido usual de ‘universal’ nos seguintes termos: “Quando Mahatma Gandhi proclamava o valor universal da não violência, não estava discutindo a acepção em Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 85

85

06/11/2016 13:25:01


todo o planeta desta noção, apenas só que as pessoas dispunham de boas razões para considerá-la algo universal” (2009, p. 79). Nesta perspectiva qualquer pretensão de universalidade supõe a possibilidade de argumento em contrário. Em sua perspectiva Sen afirma que tem ocorrido grande mudança durante o séc. XX em relação à aceitação da democracia. Além dos protestos contra a supressão de direitos democráticos ocorrem movimentos favoráveis à democracia. É evidente que a participação política, permite que seus interesses sejam melhor atendidos. Como é sabido, a democracia cria toda uma rede de proteção aos que enfrentam dificuldades econômicas e tem mostrado significativo êxito no combate à fome. Assim conclui: Tentei discutir nestas páginas uma série de assuntos relacionados com a afirmação da democracia como valor universal. O valor da democracia inclui sua importância intrínseca na formação dos valores […] Estes méritos não têm um caráter regional, nem local, como tão pouco o tem a defesa da disciplina e da ordem. A heterogeneidade dos valores parece caracterizar a maior parte, se não que todas as culturas. O argumento cultural não determina, nem constrange em excesso as opções que devemos escolher hoje. Escolher entre essas opções tem que fazer-se aqui e agora, tendo em conta o papel funcional da democracia, do qual depende a causa do modelo democrático no mundo contemporâneo. Se trata de uma causa que possui uma grande força e que não depende de contingências locais. A potência desta ideia que reivindica a democracia como valor universal reside, em última instância, nesta força. É neste terreno onde se situa um debate que não pode ser descartado por imaginários tabus culturais, nem por pretendidas predisposições de nossos

86

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 86

06/11/2016 13:25:01


respectivos passados. (SEN, 2009, p.90 -91, tradução nossa).

Com a colocação da força da ideia de democracia ligada à importância intrínseca na formação dos valores, na sua heterogeneidade e na funcionalidade não se esgota a potência da ideia da democracia que reivindica valor universal. Amartya Sen em seu livro “A ideia da justiça” também nos possibilita mais elementos significativos. Que começam com a afirmação do […] papel central da argumentação pública para a compreensão da justiça. Esse reconhecimento nos leva a uma ligação entre a ideia de justiça e a prática da democracia, […]. (2011, p. 358) Esse nexo corresponde, com as devidas ressalvas, em Habermas ao nexo interno de direito e democracia. Para Sen: “Na verdade, uma grande mudança na compreensão da democracia tem sido provocada pelas obras de Rawls e Habermas, e por uma vasta literatura recente sobre esse assunto,” (2011, p.358) tratase da ideia que desloca a democracia do modelo institucional restrito ligado à eleição para o governo através da discussão. Sen conecta a atual compreensão da democracia ocidental com uma antiga abordagem indiana: Um exemplo com certo interesse e relevância é uma importante distinção entre dois conceitos de justiça encontrada na antiga ciência do direito indiana: niti e nyaya. A primeira ideia niti, diz respeito tanto à adequação organizacional quanto à correção comportamental, enquanto a última, nyaya, diz respeito ao que resulta e ao modo como emerge, em especial, a vida que as pessoas são realmente capazes de levar. (2011, p. 17)

Sen faz dois comentários muito significativos sobre Habermas: O tratamento habermasiano da argumentação pública é em muitos aspectos, mais amplo que o rawlsiano, como o próprio Rawls reconheceu. A democracia também recebe uma forma Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 87

87

06/11/2016 13:25:01


processual mais direta na formulação de Habermas do que em outras abordagens, incluindo a de Rawls, […] No entanto Habermas fez uma contribuição verdadeiramente definitiva para o esclarecimento do amplo alcance da argumentação pública e, em particular, da presença dupla no discurso político de “questões morais de justiça” e “questões instrumentais de poder e coerção”. (2011, p. 359)

Como podemos perceber a abordagem de Amatya Sen que compreende o aspecto construtivo dos direitos está enraizado nas teorias de Rawls e Habermas. Com a incorporação de elementos significativos de Habermas ao lhe reconhecer contribuições definitivas. Mas um elemento de conexão fundamental entre esses autores é a relação entre justiça e argumentação pública. Ligação desenvolvida por Habermas em “Direito e democracia” e expressa por Sen nos seguintes termos: O papel crucial da argumentação pública na prática da democracia coloca todo o tema da democracia em estreita relação com o tópico central deste livro, isto é, a justiça. Se as exigências da justiça só podem ser avaliadas com a ajuda da argumentação pública, e se essa argumentação está constitutivamente relacionada com a ideia de democracia, então existe uma íntima conexão entre justiça e a democracia, que partilham características discursivas. (2011, p 360)

Essa compreensão Cultural, contemporânea da democracia enquanto governo por meio do debate público, inaugurada na Alemanha por Habermas desde “Mudança estrutural da Esfera pública” e nos Estados Unidos por John Rawls, permite compreender que a cidadania se aprende praticando. A 88

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 88

06/11/2016 13:25:01


participação no debate público político é a grande escola da emancipação. A reconstrução da legitimidade entre facticidade e validade, direito e democracia Uma vez que a universalidade da democracia, a partir da sua compreensão abrangente da cultura argumentativa, pode ser apresentada como fato a partir de Amartya Sen. Pode-se agora melhor compreender as contribuições de Habermas, referidas pelo próprio Sen com a ligação entre a participação política, o diálogo e a interação pública, a justiça e a democracia. No autor alemão a questão da universalidade da democracia deita raiz em sua teoria do agir comunicativo, na esfera pública e no nexo interno entre direito e democracia. Habermas entende que só no âmbito da tensão entre facticidade e validade é que a questão da legitimidade de direitos pode ser adequadamente pensada. Segundo o autor: “princípios normativistas correm o risco de perder o contato com a realidade social, e princípios objetivistas, deixam fora de foco qualquer aspecto normativo, […].” (1997a, p. 23) Porém, se guardadas as devidas reservas vindas das abordagens desmascaradoras do capital e do poder, pode-se manter a partir da teoria do agir comunicativo a suposição: “Direito associação de membros livres e iguais, cuja coesão resulta simultaneamente da ameaça de sanções externas e da suposição de um acordo racional motivado.” (1997a, p. 25) Neste sentido a abordagem do direito passa a ser dupla, objetivadora e performativa. A questão da legitimidade do direito deve ser abordada a partir do enfoque comunicativo, sem que esse perca o contato com a perspectiva objetivista. Segundo nosso autor: “O mundo como síntese de possíveis fatos só se constitui para uma comunidade de interpretação cujos membros se entendem entre si sobre algo no mundo, no interior de um mundo da vida compartilhado intersubjetivamente.”

Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 89

89

06/11/2016 13:25:01


(1997a, p. 31) Neste sentido, o entendimento precede e é condição de qualquer agir estratégico. Porém, os falantes podem dizer sim ou não na comunicação, contudo: os pressupostos comunicativos […] têm de ser admitidos factualmente por todos os participantes todas as vezes que desejarem entrar numa argumentação, com pretensões de verdade ou validade. (1997a, p. 34) Habermas demostra essa tese no capítulo III de sua vasta obra Teoria do Agir comunicativo. (2012). “Quando, porém, um ator deseja entender-se com outros atores sobre condições a serem preenchidas em comum para que tenha sucesso em suas ações, a regra amarra a sua ‘vontade livre’ através de uma pretensão de validade deontológica.” (1997a, p. 51) Neste sentido a permissão para a coerção jurídica é deduzida de uma expectativa de legitimidade vinda da vontade livre. Habermas não esquece que: “Sociedades modernas são integradas não somente através de valores, normas e processos de entendimento, mas também sistemicamente, através de mercados e do poder administrativo”. (1997a, p. 61) Por esse motivo: “Com muita frequência o direito confere a aparência de legitimidade ao poder ilegítimo” (1997a, p. 62) Entretanto, esse juízo ético de um poder ilegítimo só pode ser coerentemente alcançado numa abordagem que tendo objetividade não descarte seu teor normativo. Neste sentido pode-se entender como o direito moderno estrutura-se a partir de um sistema de normas positivas e impositivas que pretendem garantir a liberdade e estão associadas a uma pretensão de legitimidade e não apenas a dominação. (Cf. 1997b, p.307). Na compreensão habermasiana o nexo interno com agir comunicativo, supera a concorrência entre direitos humanos e soberania do povo, ambos são fundamentais para legitimar o direito. Por isso: “A legitimidade do direito deve ser compatível com os princípios morais da justiça e da solidariedade universal bem como com os princípios éticos de uma conduta de vida 90

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 90

06/11/2016 13:25:01


auto-responsável.” (1997a p.132-133) O ponto de partida é a constituição da autonomia do cidadão, na qual o ethos passa pelo crivo de fundamentações pós-tradicionais. “Através do médium de leis gerais e abstratas, a vontade unificada dos cidadãos está ligada a um processo de legislação democrática que exclui per se todos os interesses não universalizáveis.” (1997a p.135-136) Habermas esclarece então o nexo interno entre a soberania do povo e direitos humanos que não reside simplesmente na autonomia política, mas em seu conteúdo normativo, neste sentido a decisão da maioria tem que ser compatível com os princípios morais e éticos. (1997a Cf. p.137) Neste sentido também se esclarece o sentido da cooriginalidade da autonomia privada e pública o qual ensina “serem os destinatários simultaneamente os autores de seus direitos.” (1997a p.139) A autonomia privada e pública, bem como seus limites é definida no mesmo processo do exercício autônomo da autonomia política, visto que os direitos privados são intersubjetivos, constituídos no médium do próprio direito. O princípio da democracia, que não pode ser opor aos direitos humanos tem que preservar cada um dos parceiros do direito. Os direitos políticos fundamentais têm que institucionalizar o uso público das liberdades comunicativas na forma de direitos subjetivos, direitos públicos e privados possuem, portanto um nexo interno. Com isso se explicita no pensamento de Habermas a ligação entre a participação política, o diálogo e a interação pública, a justiça e a democracia como indicado por Amartya Sen. Nesta reconstrução da legitimidade das ordens políticas modernas, Habermas vincula a legitimidade do direito democrático à racionalidade deliberativa e ao princípio da justiça, bem como ao respeito aos direitos humanos. Trata-se por tanto de uma nova compreensão da democracia que vai muito além do modelo tradicional limitado às eleições. Ela também mantém uma importante compreensão do Estado de Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 91

91

06/11/2016 13:25:01


direito segundo Habermas: O Estado é necessário como poder de organização, de sanção e de execução, porque os direitos (individuais, políticos e sociais) tem que ser implantados, porque a comunidade de direitos necessita de uma jurisdição organizada e de uma força para estabilizar a identidade e porque a formação da vontade política cria programas que tem que ser implementados. (1997a, p. 171)

Pode-se verificar que o papel do Estado aponta para um conjunto de prestações de serviços à população. “Somente nesta forma anônima o poder comunicativamente diluído pode ligar o poder administrativo do aparelho estatal à vontade dos cidadãos” (1997a, p. 173). Situado perante uma esfera pública mais ampla e independente o poder administrativo pode distanciar-se dela. Contudo para Habermas; A produção de um direito legítimo implica a mobilização das liberdades comunicativas dos cidadãos (1997a p.185). Quando a opinião pública se manifesta com veemência e as manifestações tomam as ruas, elas podem orientar, mas não substituir as ações do Estado fazendo frente aos condicionamentos sistêmicos do poder e do dinheiro. O direito ultrapassa as fronteiras dos discursos de justiça e inclui problemas de auto-entendimento e de compensação de interesses. Porém é preciso supor que os programas negociados e obtidos discursivamente podem ser justificados moralmente. O direito constitui o poder político e viceversa. Isso cria entre ambos um nexo que abre e perpetua a possibilidade latente de uma instrumentalização do direito para o emprego estratégico do poder. […] No entanto essas relações de troca alimentam-

92

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 92

06/11/2016 13:25:01


se de uma normalização legítima do direito, a qual, conforme vimos, tem parentesco com a formação do poder comunicativo. (1997a, 211-212)

Apesar do reconhecimento dos condicionamentos da lógica do poder e da economia, não se pode esquecer que o direito também é fruto do entendimento racionalmente motivado. Habermas lembra os tipos de jogos de linguagem que estão na base do direito: “Em negociações […] pode formar-se uma vontade geral agregada; em discursos hermenêuticos de auto-entendimento, uma vontade geral autêntica; em discursos morais de fundamentação uma vontade geral autônoma.” (1997a, p. 225) Entretanto, esses processos genéticos do direito exigem ainda que “os discursos conduzidos representativamente sejam porosos e sensíveis aos estímulos, temas e contribuições informais e argumentos fornecidos por uma esfera pública pluralista.” (p.227) Essa relação de porosidade à esfera pública é importante fonte de legitimidade do direito, pois nela manifesta-se a soberania do povo. Deste modo, o poder administrativo conecta-se com o poder comunicativo, tanto pelos discursos internos de negociações, auto-entendimento e morais, como pelas manifestações externas da opinião publica e da vontade. A educação para a cidadania democrática deve ser colocada a partir de seus fundamentos, princípios e valores compartilhados por um lado, e condicionamentos sistêmicos econômicos e políticos por outro. Habermas afirma: “nenhuma espécie necessita de um período tão longo de educação no seio de uma família e de uma cultura pública compartilhada intersubjetivamente pelos semelhantes.” (2007, p. 19-20). Coloca-se numa perspectiva transformadora: “Felizmente, tal saber preliminar que adquirimos junto com o aprendizado

Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 93

93

06/11/2016 13:25:01


de uma determinada linguagem não está definido de uma vez por todas.” (2007, p. 22). As pessoas, na prática cotidiana, se encontram com outras e assumem os vários enfoques pronominais que lhes permite formar suas identidades pessoais e sociais. As pessoas formam suas identidades pessoais e sociais mediante narrativas, o agir comunicativo renova o saber cultural, social e as identidades pessoais “As estruturas simbólicas do mundo da vida se reproduzem pelos caminhos que dão continuidade a um saber válido e que estabilizam a solidariedade grupal, formando atores imputáveis.” (2012b, p. 252). Há assim um desenvolvimento complexo e de conjunto, da cultura, sociedade e personalidade. A ampliação da contingência pessoal deve representar um incremento na liberdade e a renovação das tradições passa a depender cada vez mais da capacidade inovadora dos indivíduos. A personalidade passa a ter uma identidade autodirigida, a partir da possibilidade de dizer sim ou não em processos de interpretação e cooperação. Um movimento similar acontece com as normas da sociedade, que passam a depender dos processos de criação e fundamentação. Tem-se um movimento dialético que pode ser descrito nos seguintes termos: apresenta e critica a abordagem comunicativa, exposição e critica a abordagem sistêmica, síntese dialética de agir comunicativo e colonização do mundo da vida. Luis Sergio Repa explica que o processo de formação dos subsistemas controlados pelo dinheiro e pelo poder significou para Habermas o desacoplamento do mundo da vida, o qual eles encaram apenas como um mundo circundante, enquanto seguem sua lógica própria. (2008, p. 66). Na sequência Habermas comenta os dois grandes caminhos da modernização que se desenvolveram pela via capitalista e pela via do poder administrativo. Repa afirma que: “[…] é estruturalmente possível modificar politicamente, por meio da esfera pública e do direito, ou seja, no contexto de um Estado de direito 94

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 94

06/11/2016 13:25:02


democrático, as relações entre mundo da vida e sistema.” (2008, p. 68). Para talhar essa mudança a teoria do agir comunicativo, assume a ideia orientadora da possibilidade de processos de aprendizagem (HABERMAS 2012b, p. 689). A esfera pública critica lugar do aprendizado democrático emancipador O próprio Habermas, em “Mudança estrutural da esfera pública” (1984), descreve a formação e da esfera pública política e seu importante papel. Já no contexto tradicional fica claro que é errôneo empregar o termo público no singular, pois desde o início desenvolvem-se uma pluralidade de esferas públicas concorrentes (1984, p. 9). Com a formação da esfera pública burguesa, na Alemanha, forma-se desde o séc. XVIII uma esfera pública de discussão, inicialmente com dimensão restrita, e formação na leitura dos clássicos. No parágrafo 13, intitulado Publicidade como princípio de mediação entre política e moral (1984, 126ss) Habermas explicita o papel da publicidade em Kant, mostra o papel dos professores e filósofos, perigosos para o Estado, mas necessários para o progresso do povo. Habermas entende que é preciso demonstrar como é possível, ao público deflagrar um processo crítico de comunicação pública por meio dessas organizações que também o vassalizam. (1999, p.19) A pluralidade é uma primeira condição deste aprendizado e contribuição. Outra condição reside no fato de que os ideais do humanismo burguês foram remetidos para além da realidade constitucional que os contradiz. Habermas entende a importância dos diferentes recursos de integração social para estabelecer o novo equilíbrio. Neste sentido um espaço público funcionando politicamente depende da sustentação de tradições culturais de modelos de socialização, de uma cultura política própria a uma população habituada à liberdade. (1999, p.25) Mas o mais importante ainda são as formas de institucionalização dos

Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 95

95

06/11/2016 13:25:02


suportes de um espaço público não investido pelo poder. (1999, p.26) Pois elas possuem independência, frente o poder políticoeconômico. Desse modo, Habermas afirma: O núcleo institucional da sociedade civil é constituído por esses agrupamentos voluntários fora da esfera do Estado e da economia, que vão para citar apenas um exemplo, das igrejas, das associações e dos círculos culturais, passando pelas mídias independentes, associações esportivas e de lazer, clubes de debate, fóruns e iniciativas, até organizações profissionais, partidos políticos, sindicatos e instituições alternativas. (1999, p. 25)

É evidente que são associações que contribuem para a formação da opinião pública fora do Estado, e que exatamente por isso podem cobrar do mesmo o que lhe falta em relação aos ideais burgueses não cumpridos bem como dívidas para com um passado não atendido. Já desde “Mudança estrutural da esfera pública”, Habermas escreve: […] sob as condições da social-democracia de massas, o contexto comunicativo de um público somente há pouco fechado da opinião “quase-pública” passa a ser intermediado com o setor informal das opiniões até então não públicas através de uma “publicidadecrítica.” Em esferas públicas internas a organização. (1984, p.290)

Aqui também entra a contribuição dos religiosos e suas associações, que preservam potenciais de exigências éticas e morais ao sistema funcional. Temática que será mais desenvolvida no pensamento de Habermas em sua fase mais recente. A educação política faz-se nas comunidades. 96

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 96

06/11/2016 13:25:02


Considerações finais Após ter-se compreendido a argumentação de Sen sobre a democracia, que não se reduz ao modelo ocidental, nem a sua versão institucional, mas remete ao governo por meio da discussão pública, presente nos vários povos. Foi possível compreender o conjunto de valores que a democracia apresenta, para sustentar sua universalidade. Inclui-se neste conjunto de argumentos em prol da democracia, os nexos, entre direito legitimo e democracia desenvolvidos por Habermas. Desta forma compreende-se o nexo entre liberdades publicas e privadas, direitos humanos e democracia, poder comunicativo e administrativo. Finalmente, pode-se apresentar a recepção da questão do debate público na América Latina a partir de Dussel, o qual o faz na: “Ética da libertação: na idade da globalização e da exclusão”. Dussel propõe e de certa forma realiza um amplo diálogo filosófico entre Norte e Sul e entre Sul-Sul. Após longa exposição das várias correntes do pensamento de nosso tempo lembra que o faz, como afirma Carlos Beorlegui estabelecendo para este diálogo o critério formal da ética do discurso (2010, p. 877). Elemento que compõe seu projeto de ampliação da razão, o qual porém é pensado para além dos horizontes europeus. Ele pretende uma filosofia alternativa, um pensamento que acolha as colocações dos outros constituindo uma filosofia “transmoderna”, com pretensões de maior amplitude e universalidade que a pós-modernidade europeia, por ser pensada a partir destas periferias do sistema mundo. Segundo Dussel, não se trata de uma defesa da razão por ela mesma. Se trata da defesa das vítimas dos sistemas presentes, da defesa da vida humana em risco de suicídio coletivo. (1999, p. 450). Segundo comenta Beorlegui para Dussel:

Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 97

97

06/11/2016 13:25:02


A solução está em saber conjugar uma razão universal baseada na defensa de toda vida humana, e legitimada e concretizada a traves do consenso de todos os afetados, com o correspondente respeito às diferenças e ao dissenso. Daí que conclui Dussel: «a cuestión no é Diferencia ou Universalidade, mas sim Universalidade na Diferencia, e Diferença na Universalidad» (2010, p. 879)

Beolegui confirma que Dussel assim aponta para a ampliação da razão, no sentido de ampliação do debate público e da democracia, na defesa das vítimas e dos mais prejudicados do sistema mundo. Trata-se das vítimas da modernidade, da colonização e do capitalismo transnacional. Estes grupos de diferentes aspiram não apenas seguir sendo diferentes, mas uma nova ordem mundial. A Filosofia da libertação centra sobre tudo no desenrolar de uma ética baseada na econômica, que privilegia o princípio material da defesa de toda vida humana, desde a constatação das vítimas do “sistema-mundo” que domina a realidade (2010, p. 880). Neste sentido a emancipação e a libertação apontam na América Latina, não para o cancelamento da democracia, por ter raízes europeias, mas para o reconhecimento de suas próprias raízes nos vários cantos do mundo ligadas à ampliação da razão e da justiça, além do sistema mundo, com maior atenção às vítimas, a universalidade e a diversidade. Fica claro que trata de um aprendizado com o outro que não o repete, mas lhe acrescenta algo a partir de seu lugar hermenêutico. Ao receber a tradição da democracia a filosofia da libertação procura ampliá-la e enriquecê-la a partir da compreensão das vítimas do sistema mundo.

98

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 98

06/11/2016 13:25:02


Referências BEORLEGUI, Carlos História del pensamiento latino americano. Una busqueda incessante de la identidade. Biobao: Deuto, 2010. 3ed. CAIAPÓ CAIOÁ. Disponível em http://nacaoindigena. com/2015/06/09/carta-dos-conselheiros-guarani-e-kaiowada-aty-guasu-para-o-presidente-da-comissao-de-direitoshumanos-da-camara-dos-deputados/Acesso em 07/09/ 2015. DUSSEL E. D. Ética da libertação na idade da globalização e da exclusão. Petrópolis: Vozes 2002. ______. Vattimo: Postmodernidad y transmodernidad. Diálogos com la filosofía de Gianni Vattimo , México, Universidad Iberoamericana, 1999 HABERMAS, Jürgen. A nova obscuridade. Trad. Luiz Repa. São Paulo: UNESP, 2015. ______. Na esteira da tecnocracia. Trad. Trad. Luiz Repa. São Paulo: UNESP, 2014. ______. Teoria do agir comunicativo. Trad. Paulo Astor Soethe e Flávio Beno Siebeneichler. São Paulo: Martins Fontes, v1, 2012a. ______. Teoria do agir comunicativo. Sobre a crítica da razão funcionalista. Trad. Paulo Astor Soethe. São Paulo: Martins Fontes, 2012b. v. 2. ______. Ay, Europa! Trad. José Luis López de Lizaga, Pedro Madrigal y Francisco Javier Gil Martin. Madrid: Trotta, 2009. ______. Entre naturalismo e Religião. Estudos Filosóficos. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro, 2007. ______. A crise de legitimidade do capitalismo tardio. Trad. Valmireh Chacon. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999. Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 99

99

06/11/2016 13:25:02


______. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,1997a. v. 1. ______. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,1997b. v. 2. ______. Pensamento pós-metafísico. Trad. Flávio Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990ª.

Beno

_____. Prefácio. O espaço público, 30 anos depois. 1990b. Disponível em: <https://drive.google.com/file/d/0B-vWcDYCK P5sMGUzYjQ3NDMtYTRiZC00ZjBlLWFmZDUtYzJmNGQ1N2QyMG Ew/view?ddrp=1&hl=pt_BR>. Acesso em: 20 ago. 2015. ______. Mudança estrutural da esfera pública. Trad. Flávio R. Kothe. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984. MENDES, R. D. Apresentação. In: SEN, Amartya. Desigualdade reexaminada. Tradução de Ricardo Doninelli Mendes. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 2012. REPA, L. S. Direito e teoria da ação comunicativa. In: NOBRE, Marcos; TERRA Ricardo (Orgs.). Direito e democracia: Um guia de leitura de Habermas. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 55-71. SEN, Amartya. Desigualdade reexaminada. Tradução de Ricardo Doninelli Mendes. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 2012. ______. A ideia de justiça. Tradução de Denise Bottmann e Ricardo Doninelli Mendes. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. ______. Temas chave do século XXI. In: in SEM, A; KLIKSBERG, Bernardo. As pessoas em primeiro lugar: a ética do desenvolvimento e os problemas do mundo globalizado. Tradução de Bernardo Ajzemberg e Carlos Eduardo Lins da Silva. São Paulo: Companhia das Letras, 2010a. 100

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 100

06/11/2016 13:25:02


______. El valor de la democracia. Trad. Javier Lomeli Espanha: El Viejo Topo, 2009. ______. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. Revisão Técnica de Ricardo Doninelli Mendes. São Paulo: Companhia das Letras, 2010b.

Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 101

101

06/11/2016 13:25:02


El consenso democrático de Habermas. Debates frente a la demanda por el reconocimiento de la identidad cultural de los pueblos indígenas en América Latina Juan Jorge Faundes Peñafiel. Introducción Este trabajo se enmarca en la búsqueda de un concepto articulador del reconocimiento demandado por los pueblos indígenas en América Latina, con cuyo propósito nos hemos empeñado en dar cuenta de los debates teóricos más relevantes y principales paradigmas en disputa frente al reconocimiento de la diversidad indígena y las tensiones que ello supone en un contexto democrático –labor que supera los objetivos de este trabajo-, considerando, entre otras, las cuestiones de la libertad, la igualdad, el multiculturalismo y la interculturalidad. En particular, aquí revisamos los caminos y las eventuales limitaciones que ofrece la racionalidad comunicativa y la propuesta de deliberación democrática de Habermas. Para ello, explicamos aspectos centrales de su noción de consenso y de la legitimidad del derecho; luego entramos en la cuestión del universalismo recogido desde el denominado “patriotismo constitucional”, confrontándolo con algunos contrapuntos teóricos que nos parecen pertinentes atendida la especificidad de la demanda por reconocimiento de la identidad cultural de los pueblos indígenas en Latinoamérica. Finalmente planteamos algunas reflexiones a la luz de estos debates y procuramos ofrecer respuestas posibles a un problema que sigue abierto.

102

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 102

06/11/2016 13:25:02


Racionalidad comunicativa y deliberación democrática, conceptos centrales: Habermas plantea una teoría de la democracia basada en una ética comunicativa enlazada a los procesos de deliberación colectiva, sostenida en la capacidad comunicativa de los sujetos relacionados intersubjetivamente, como presupuesto de los consensos en lo público, los cuales, a su vez, constituyen la base de la construcción democrática. En síntesis, Habermas plantea que es necesario distinguir “la razón comunicativa” de la “razón práctica”. La razón comunicativa ya no se limita solo al sujeto, ni se identifica con un macrosujeto estatal-social. La razón comunicativa se hace posible a través del medio lingüístico que permite concatenar las interacciones y estructurar las formas de la vida. La razón comunicativa “viene inscrita en el telos que representa el entendimiento intersubjetivo y constituye un ensemble de condiciones posibilitantes a la vez restrictivas”. La racionalidad comunicativa, a diferencia de la razón práctica, solo tiene un contenido normativo en la medida que quien actúa comunicativamente “no tiene más remedio que asumir presupuestos pragmáticos de tipo contrafáctico”. Concluye entonces, por una parte, que “la tensión entre la idea y la realidad irrumpe en la propia facticidad de las formas de la vida lingüísticamente estructuradas” y, por otra, que la “la razón comunicativa posibilita, pues, una orientación por pretensiones de validez, pero no da ninguna orientación de contenido determinado para la solución de tareas prácticas, no es ni informativa ni tampoco directamente práctica” (2005, pp. 6566). La ética comunicativa supone el reconocimiento mutuo de la diferencia, la inclusión de la diversidad, mediante la ilimitada comunidad de comunicación, en que todos los

Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 103

103

06/11/2016 13:25:02


integrantes de la sociedad moderna participan de “una cultura política que resuelve los conflictos discursivamente”, cuyo presupuesto radica en que los participantes “se acepten recíprocamente como iguales y reconozcan la responsabilidad recíproca frente a los acuerdos logrados (ARAYA, 2011, pp. 8889). Como señala Habermas, “los participantes, a través de la validez que pretenden para sus actos de habla, o bien se ponen de acuerdo, o bien constatan disentimientos que en el curso posterior de la interacción los participantes tienen en cuenta de común acuerdo” (2005, p. 80). Entonces, el concepto de entendimiento conduce “a un acuerdo racionalmente motivado alcanzado entre los participantes, que se mide por pretensiones de validez susceptibles de crítica” (1987, p. 110), en que la construcción de la identidad personal coincide con los procesos de socialización y la construcción de la comunidad” (ANDREU, 2012). Habermas y el consenso democrático como fuente de legitimidad: Para Habermas, la teoría de la acción comunicativa busca explicar “cómo puede efectuarse la reproducción de la vida social sobre un terreno tan frágil como el de [las] pretensiones de validez transcendedoras”, en que el derecho, en la forma de derecho positivo, es el medio para tal explicación, porque posibilita comunidades “que se entienden a sí mismas como asociaciones de miembros libres e iguales, cuya cohesión descansa en la amenaza de sanciones externas y simultáneamente en la suposición de un acuerdo racionalmente motivado” (2005, p. 70). Luego expone que la interacción comunicativa se articula por el estado de derecho y en él “se desarrolla la formación de la voluntad política, la producción legislativa y la práctica de las decisiones judiciales”, las cuales aparecen, así, “como parte de un proceso más amplio de la racionalidad de los mundos de la vida de las sociedades modernas” (2005, p. 67). 104

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 104

06/11/2016 13:25:02


En relación con la legitimidad y validez del derecho, la legitimidad, por una parte, viene dada por la expectativa de que las normas garanticen la autonomía por igual a todos los sujetos -explica-. Y la validez de una norma jurídica, por otra, se da cuando el estado garantiza, a la vez, que la norma sea obedecida y que se den “las condiciones institucionales para que la norma se produzca en términos de legitimidad” (HABERMAS, 2005, p. 646). Luego, ante la pregunta de cuál es la fuente de la legitimidad, especialmente frente a la diversidad de las democracias pluralistas, señala que ella radica en el procedimiento deliberativo democrático seguido para la producción del derecho y ello se justifica, a su vez, porque éste permite “el libre flotar de temas y contribuciones, de informaciones y razones”, con lo que la formación del consenso político queda en condiciones falibles de alcanzar resultados “más o menos racionales” (HABERMAS, 2005, p. 646). Agrega que esta proposición se funda en dos aspectos. Primero, el derecho cumple funciones sociointegradoras, porque “junto con el sistema político articulado en términos de Estado de derecho, el derecho representa una especie de fianza o aval que cubre funciones sociointegrativas”, el derecho articula una especie de “trasmisión” a través de la cual estructuras de reconocimiento recíproco se “transfieren de forma abstracta, pero vinculante, a interacciones entre extraños que se han vuelto anónimas y que vienen mediadas sistemáticamente”. En síntesis, el derecho tanto estabiliza expectativas de comportamiento, como “asegura las relaciones simétricas de reconocimiento recíproco entre portadores abstractos de derechos subjetivos” (2005, pp. 646-647). Segundo, porque los ordenamientos jurídicos modernos solo pueden obtener su legitimación a partir “de la idea de autodeterminación”, ya que los ciudadanos en todo momento “han de poder entenderse Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 105

105

06/11/2016 13:25:02


también como autores del derecho al que están sometidos como destinatarios” (HABERMAS, 2005, p. 647). Los aportes de la teoría de la racionalidad comunicativa de Habermas impactarán sobre las teorías de la democracia constitucional, porque ella relevará la dimensión moral de la democracia a partir de su visión de las acciones comunicativas de la sociedad que se someten a la racionalidad procedimental del derecho que, a su vez, se valida en la deliberación colectiva desarrollada bajo el procedimiento democrático (ANDREU, 2012). Bajo este postulado, se entenderá que la esfera de lo público es un espacio en que los excluidos pueden problematizar la (su) condición de desigualdad mediante el principio de deliberación societaria para construir consensos racionales (VELÁSQUEZ, 2010, p. 63) Habermas, ahondando en el problema de la legitimidad del derecho, explica que un ordenamiento jurídico tiene que garantizar tanto el reconocimiento recíproco en sus derechos por todas las personas, como “leyes que sean legítimas en la medida en que garanticen iguales libertades a todos” (2005, p. 94). Agrega que las normas morales cumplen con este requisito, pero en el caso de las normas del derecho positivo es el legislador quien ha de cumplirlo, por lo que en el sistema jurídico el auténtico lugar de la integración social es el proceso de producción de normas (2005, p. 648). De ahí que a los sujetos “se les exige que salgan del papel de sujetos jurídicos privados” y, entrando en el papel de ciudadanos, adopten el rol de “miembros de una comunidad jurídica libremente constituida” en la que un acuerdo sobre los principios normativos que regulan la vida en común (consenso) se pueda alcanzar “mediante un proceso de entendimiento atenido a reglas normativamente reconocidas” (2005, p. 94). Luego la integración social se produce porque impone restricciones a los sujetos que usan el lenguaje y los obliga “a exponerse a los 106

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 106

06/11/2016 13:25:02


criterios públicos de racionalidad propios del entendimiento intersubjetivo” (HABERMAS, 2005, p. 94). La integración social en este mundo de la vida –dice Habermas- se ve amenazada “por una tensión explosiva entre facticidad y validez”. Se trata de un riesgo de disentimiento siempre presente, “pues viene escrito en el propio mecanismo del entendimiento” y que conlleva altos costos a considerar. En consecuencia, en la práctica comunicativa cotidiana, la contingencia, la crítica – el conflicto-, interactúan continuamente contra “los patrones de interacción sobre los que hay consenso, las lealtades y las habilidades” (2005, p. 83). Luego, continúa revisando las limitaciones de la integración social como fundamento de la racionalidad comunicativa. Explica que en la medida de la evolución social, del crecimiento y complejización de las sociedades contemporáneas, se amplían los espacios para el disentimiento, cresen las condiciones de imposibilidad de la integración social. Por ello, dicha integración, vista desde la perspectiva de los mundos de la vida, solo logra explicar algunos “grupos pequeños y relativamente indiferenciados”. Señala entonces Habermas que se debe recurrir a la fuerza legitimadora del derecho, como una racionalidad exenta de la moral, radicada “en los procedimientos que institucionalizan exigencias de fundamentación y las vías por las que ha de procederse al desempeño argumentativo de tales exigencias” que se centran en definitiva en el núcleo racional de la imparcialidad, moral y práctica. No obstante lo anterior, aclara el autor que siempre habrá una moralidad implícita en las “cualidades formales del derecho”, como la fundamentación de normas y la aplicación vinculante de ellas. Se establece consecuentemente una “conexión constructiva entre derecho vigente, procedimientos legislativos y procedimientos de aplicación del derecho” (2005, p. 448). Así, “lo moral” del derecho, solo dice relación con que la Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 107

107

06/11/2016 13:25:02


racionalidad del procedimiento debe “garantizar la ‘validez’ de los resultados obtenidos conforme a ese procedimiento. Pero los procedimientos jurídicos se aproximan a las exigencias de una racionalidad procedimental perfecta porque llevan asociados criterios institucionales y, por tanto, criterios independientes, conforme los cuales puede establecerse desde el punto de vista de un “imparcial” si una decisión se produjo conforme a derecho (2005, p. 557). Entonces, solo en la medida que el consenso, como voluntad colectiva, sea generado de forma comunicativa y producido por los mecanismos institucionales como norma jurídica, es posible cumplir con la premisa ética racional de que el derecho “solo puede conservar ya su fuerza de integración social haciendo que los destinatarios de esas normas jurídicas puedan a la vez entenderse en su totalidad como autores racionales de esas normas” (HABERMAS, 2005, p. 96): La conexión entre Estado de derecho y democracia se explica conceptualmente porque las libertades subjetivas de acción del sujeto de derecho privado y la autonomía pública del ciudadano se posibilitan recíprocamente […] Para una praxis dadora de Constitución no basta introducir un ‘principio de discurso’ a cuya luz los ciudadanos puedan juzgar si el derecho que establecen es legítimo. Antes es menester institucionalizar a su vez jurídicamente precisamente aquellas formas de comunicación en las que haya poder formarse de modo discursivo una voluntad política racional. Al tomar el principio de discurso forma jurídica se transforma en un ‘principio de democracia’ (HABERMAS, 2005, pp. 652-653)

Al respecto, analiza Habermas que los derechos fundamentales, como constitutivos de toda forma de organización

108

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 108

06/11/2016 13:25:02


entendida como comunidad jurídica “de miembros libres e iguales” reflejan la vinculación horizontal de los ciudadanos, en una especie de orden germinal. Pero señala que “este acto autoreferencial de institucionalización jurídica de la autonomía ciudadana” presenta falencias esenciales, como la imposibilidad de estabilizarse a sí mismo. El mutuo reconocimiento de la interrelación comunicativa quedaría solo en la retórica porque “no puede ni consolidarse ni perpetuarse sin organizar, o sin recurrir funcionalmente, a un poder estatal”. Conforme estas prevenciones, para que la relación entre autonomía privada y autonomía pública en que se desarrolla el sistema de derechos logre constituir un continuo, el proceso institucional de producción de normas tiene que incluir “al poder político que el derecho presupone como medio”. A este poder político, tanto la producción del derecho, como la potestad de ordenar conforme el derecho, deben su “fáctica capacidad vinculante” (2005, p. 199). Agrega a continuación que el “derecho a iguales libertades subjetivas de acción se concretiza en derechos fundamentales que, en tanto que derechos positivos” llevan anexas amenazas de sanción que aseguran su cumplimiento contra vulneraciones o intereses que les resisten. Se trata de la reserva a la violencia institucionalizada cuyo ejercicio legítimo corresponde al Estado. Luego, “el derecho a iguales derechos” como miembros voluntarios de la comunidad jurídica, supone un cuerpo colectivo delimitado en el espacio y el tiempo, “con el que sus miembros se identifiquen y al que puedan imputar sus acciones como partes de un mismo medio de interacción”. Pero advierte Habermas que ese colectivo solo podrá ser una comunidad jurídica si se articula por medio de un entre central facultado para representar al todo. Por ello, el Estado ejerce “su capacidad de organización y autoorganización para mantener hacia el exterior y hacia el interior la identidad de la convivencia jurídicamente organizada” (2005, p. 200), porque

Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 109

109

06/11/2016 13:25:02


la conexión entre derechos fundamentales y soberanía popular radica en que “la exigencia de institucionalizar jurídicamente la autolegislación solo puede cumplirse con ayuda de un código que a la vez implica el garantizar libertades subjetivas de acción judicialmente accionables” y la igualdad en el ejercicio de tales derechos y libertades, solo puede manifestarse mediante un procedimiento deliberativo democrático (HABERMAS, 2005, pp. 653-654). El “patriotismo constitucional” y el reconocimiento de la identidad cultural: El concepto de patriotismo constitucional de Habermas no se sitúa ni en lo étnico, ni en lo cultural o en un nacionalismo, sino que se expresa en los principios democráticos de una Carta Constitucional que respeta los derechos humanos de todos como iguales, se abre a la pluralidad de sujetos a quienes confiere el estatus de ciudadanos (2005, p. 628). El patriotismo constitucional, visto como “una mirada no comunitarista”, supone una cultura común basada en la aceptación de diversas formas de vida y culturas, en el contexto de una república inclusiva y pluralista (ARAYA, 2011, pp. 94-95). Habermas describe el pluralismo como propio de una cultura política republicana que permite la integración social de las identidades nacionales, incorporando el respeto a las diversas formas de vida y variadas tradiciones culturales, para organizar democráticamente una sociedad multicultural, donde la identidad colectiva debe poseer las características supranacionales o posnacionales. Plantea una ética comunicativa como base de la construcción deliberativa de los consensos en que el patriotismo constitucional supone un régimen político democrático sostenido en el principio de igualdad democrática y no la concepción de una comunidad prepolítica étnico-nacional en que el componente cultural 110

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 110

06/11/2016 13:25:02


introduce el conflicto y erosionaría la misma posibilidad democrática (ARAYA, 2011, p. 96)1. El patriotismo constitucional de Habermas es la expresión positiva de la legitimación procedimental de la generación del derecho que hemos explicado, por lo tanto no es en sí un presupuesto moral, pero sí normativiza la ética comunicativa, y no debe suponer ningún proyecto (moral) ni pre ni supra constitucional (étnico, cultural o nacional –que responda a algún nacionalismo-). Este patriotismo constitucional se expresa mediante los principios democráticos de una Constitución que respeta y asegura la vigencia de los derechos fundamentales, definidos deliberativamente, con lo que confiere un estatus de “igual a los iguales”, de ciudadano. Ahora bien, vale prevenir que el patriotismo constitucional no sería, en principio, acultural, porque reconoce que los sujetos se enmarcan en contextos culturales, pero propone una identidad colectiva común, por sobre las identidades culturales particulares, como las étnicas, una identidad ciudadana que caracteriza la democracia liberal pluralista, sostenida en el respeto de los derechos fundamentales como parte del eje institucional generador, articulador y asegurador del derecho. Para Habermas la universalidad de los derechos humanos se basa en permitir la tolerancia, la solidaridad y la pluralidad de las identidades particulares, lo cual para él es solo realizable más allá de las costumbres de una comunidad (ARAYA, 2011, p. 89). Para él, el sistema de derechos fundamentales se extiende a la totalidad de las personas que integran la comunidad política y la validez del ordenamiento jurídico “apunta por encima del Estado democrático de derecho y tiene por meta una globalización de los derechos” (HABERNMAS, 2005, p. 654). En consecuencia, bajo esta perspectiva, la solidaridad de la 1  En este mismo sentido véase: BENHABIB (2006), CORTINA (2010). Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 111

111

06/11/2016 13:25:02


ética del discurso de Habermas comprendería la capacidad de identificarse con el ‘otro’, quien debiera tener recíprocamente las mismas posibilidades de articular sus necesidades y argumentos. De nuestra parte, formulando desde ya algunas prevenciones, nos parece necesario observar que el planteamiento precedente no advierte suficientemente de los problemas teóricos subyacentes a la pretensión simultanea del universalismo jurídico y el reconocimiento étnico, porque, la “aceptación de diversas formas de vida y culturas”, requiere el desarrollo de presupuestos políticos, sociales, culturales e institucionales que no son factibles de incluir sin enfrentar coyunturas de relevancia, entre otras, siguiendo la perspectiva que llamaremos “intercultural”, implica asumir que la convivencia en la diversidad supone conflictos (FORNETBETANCOURT, 2011, pp. 37-38). Incluso, como veremos, se sostiene que la propuesta de Habermas involucra un proyecto político civilizatorio europeo occidental (DUSSEL, 2006). Así, nos preguntamos si el patriotismo constitucional de Habermas logra fundamentar una democracia, más que pluralista, que podamos calificar de multicultural o intercultural, ya que solo opera “procedimentalmente”, como fondo institucional para la articulación jurídica deliberativa de un régimen democrático liberal que puede dar lugar o sostener los más diversos programas políticos y subjetividades políticas, sin necesidad de abrirse al reconocimiento de la cultura, a dimensiones colectivas de ella o sin recurrir a un fundamento étnico-cultural. En consecuencia, vemos en Habermas una posición democrática liberal, consensual, podemos decir “pluralista universalizante”, por cierto dialógica, pero que no satisface del todo ni la perspectiva del “multiculturalismo”

112

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 112

06/11/2016 13:25:02


(liberal)2 y toma mayor distancia aún de la corriente del reconocimiento intercultural que hoy sostiene la filosofía crítica latinoamericana3, porque para desarrollar el proceso dialógico deliberativo exige una renuncia a la identidad cultural4. Bajo el enfoque intercultural que seguimos, un diálogo de orden cultural está sujeto a porosidades, matices, aprendizajes y desprendimientos, pero, al mismo tiempo, se sostiene desde la identidad colectiva de los sujetos (Echeverría, 2005), abierta al diálogo entre múltiples culturas. Sin identidad el diálogo merma sus posibilidades de articulación, porque habría un interlocutor en cuya esencia está ausente, una parte “sin parte” (RANCIÈRE, 1996). Ahora bien, sí consideramos que, frente a una comunidad política cuya historia ha experimentado el conflicto y la ruptura (escenario de las demandas indígenas por reconocimiento en América Latina), la búsqueda del patriotismo constitucional radica en cómo dotarla de una nueva identidad colectiva (ARAYA, 2011, p. 95). Pero, esta finalidad no es suficiente para asumir una dinámica social pluralista abierta a las distintas identidades culturales. Porque, hemos visto que la búsqueda de Habermas refiere a una “identidad política común”, democrática en la virtud procedimental de permitir la deliberación colectiva, legitimándose en ella, pero que, como racionalidad procedimental que es, precisamente, prescinde del estadio de las justificaciones morales del derecho, donde ubica las consideraciones culturales. Así, cuando incluye las cuestiones culturales dentro de las cualidades de la identidad del orden colectivo, las hace prescindir de su valor jurídico o legitimador del derecho y las supedita a la identidad política 2  TAYLOR (1992), KYMLICKA (1995), BENHABIB (2006) y CORTINA (2010). 3  Entre otros: FORNET-BETANCOURT (2011); SALAS (2003); DUSSEL (1998). 4  En este mismo sentido, criticamos la propuesta de “Justicia Imparcial” de Rawls (1995, pp. 37-50). Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 113

113

06/11/2016 13:25:02


democrática común (HABERMAS, 2005, p. 628). No obstante lo anterior, desde el punto de vista de su innovación y su virtud de haber abierto las visiones clásicas de la democracia formal, la introducción del principio de deliberación “coloca en el seno de la discusión sobre la democracia un procedimentalismo participativo que se apoya en la pluralidad de formas de vida existentes en las sociedades contemporáneas”, como una forma colectiva de ejercicio del poder político basado en “un proceso libre de presentación de razones entre iguales” (VELÁSQUEZ, 2010, p. 63). Luego, la razón comunicativa, si bien no determina una forma de vida en particular, sí haría posible que diferentes comprensiones de éstas sean compatibles sin perder, por ello, la capacidad crítica propia de la pluralidad democrática (ARAYA, 2011, p. 87). Pero la negativa de Habermas a incorporar dentro de la ética comunicativa la dimensión colectiva de la cultura, puesta en valor político y jurídico, será vista por sus críticos, ya no como una ampliación del pluralismo democrático, sino como una poco comprensible oposición al reconocimiento de la diversidad, en particular la indígena, porque, paradójicamente, la racionalidad comunicativa de Habermas afirma la intersubjetividad y el reconocimiento del otro, pero al mismo tiempo, excluye la valoración normativa de la identidad cultural en su dimensión colectiva (GÓMEZ, 2000). Consenso y deliberación, debates frente al reconocimiento de la identidad cultural: En primer término, Dussel, al igual que Habermas, busca respuestas para el problema de los procedimientos que otorgan legitimidad a las acciones e instituciones políticas, la democracia y el derecho. Así, plantea que el primer requisito de legitimidad es la posibilidad de participación simétrica, desarrollada conforme las éticas dialógicas basadas en la 114

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 114

06/11/2016 13:25:02


razón práctica discursiva. Pero se distancia de Habermas y de la visión procedimental de la democracia, planteando una concepción normativa de ella que repara en la necesidad de asegurar las condiciones empíricas, materiales, de simetría entre los ciudadanos, como condición de la participación democrática deliberativa. Señala Habermas intentaría ajustar los principios morales discursivos abstractos al principio democrático o del derecho, con lo que solucionaría el problema de la normatividad, pero cae en el formalismo, porque solo se encontrarían “principios políticos formales: el democrático o del derecho” (DUSSEL, 2006, p. 48). Mientras, para Dussel, la democracia es “crítica, liberadora o popular” (2006, p. 55). En términos históricos, el pueblo como actor principal cuestiona sucesivamente el grado de democratización conquistado y reinventa la democracia una y otra vez (2006, p. 75). Luego respecto del consenso democrático, institucionalizado en la deliberación legislativa, como fuente de legitimidad jurídica, Dussel, si bien inicialmente acepta la noción de consenso en términos ideales, luego con mucha claridad incorpora como distorsión imprescindible la necesaria presencia y respeto de las minorías (2006, p. 57). A continuación, en la misma línea, critica la idea de consenso en Habermas y destaca la situación práctica de la votación como “acuerdo imperfecto”, porque –sostieneno hay decisión perfecta, “la votación no es un acuerdo, sino una suma de opiniones individuales ponderadas en relación de la evaluación de cada uno, su responsabilidad y no por un acuerdo”, porque la votación por definición cierra, interrumpe una discusión que es por eso un proceso inacabado. Por lo tanto, “la decisión adoptada por votación no es la verdad práctica, sólo es el acuerdo alcanzado hasta el momento (imperfecto, con efectos negativos inevitables)”, es un instrumento humano finito en la búsqueda de otras decisiones mejores (DUSSEL, 2006, p. 57).

Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 115

115

06/11/2016 13:25:02


En consecuencia, concluye Dussel, el “principio de legitimación crítico” o de una “democracia liberadora”, se distancia mucho de la “democracia liberal”, se sostiene en un “consenso crítico” que, por sobre la idea de consenso deliberativo, liberal, se caracteriza “por la participación real y en condiciones simétricas de los oprimidos y excluidos” (2006, p. 75). Luego, -para Dussel- se trata de la demanda y el derecho de “participar como iguales en un nuevo momento institucional (el nuevo orden político)”. Así, no se lucharía por la inclusión, en un sentido habermaciano, sino por la transformación (2006, p. 75). En otra línea de debate, Rancière, desde su racionalidad del “desacuerdo” pone en duda la fundación de una filosofía política democrática ensamblada en el principio de igualdad y, desde ahí, cuestiona la ética comunicativa porque ésta supondría el recurso a una igualdad ideal imposible entre interlocutores que actúan bajo la distorsión que genera la propia interpelación igualitaria (1996, 18). Luego, para él, la política supone siempre una ruptura de la lógica del arkhè (2006, p. 63), una lucha entre actores ya constituidos, un litigio enraizado incluso en la disputa por el lugar ocupado y por el habla dentro de este lugar (1996, p. 41-42). Por ello, en el pensamiento de Rancière “el terreno de lo político” -en nuestro caso entendido como las luchas por el reconocimiento-, sólo adquiere sentido cuando el principio de “la igualdad de cualquiera con cualquiera” opera como el fundamento de un orden determinado (DURÁN, 2010). Entonces, bajo esta perspectiva, “no es la desigualdad la fuente originaria de producción de identidades políticas litigiosas, sino que precisamente su opuesto, esto es: la apelación al principio igualitario” (DURÁN, 2010, p. 1). En consecuencia, para Rancière se trata de un diálogo entre iguales que no lo son, pero que se suponen en igualdad, como un espacio de interacción y contradicción que llama la racionalidad del 116

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 116

06/11/2016 13:25:03


“desacuerdo” de la política (1996, p.7). Luego, a partir de estas premisas, Rancière construirá su concepto de la política y la democracia, como una lucha constante y rescilente por la igualdad, imposible en su completud (1996, p. 23), inestable, “en cuyo seno convive, amenazante y permanentemente, la posibilidad de su colapso” (DURÁN, 2010, p. 1). Entonces, el desafío radicaría en asumir una racionalidad política consiente de las posibilidades agonísticas, pero abierta a la construcción de consensos intersubjetivos (DURÁN, 2010, p. 1). Pero estos consensos, a diferencia de la ética discursiva de Habermas, no constituyen un presupuesto de la interlocución, sino que participan de la interacción política de la construcción del orden. Como concluye Durán, “lo cierto es que la racionalidad política, pensada de esta forma, necesariamente tendrá como horizonte el alcance de formas de equilibrio capaces de impedir la fractura siempre posible de la convivencia democrática”, como una interacción “de partes que actúan en su condición de tales” dentro del cuerpo social. Pero no puede ser objeto de diálogo ni negociación aquello que -como la igualdad- “opera como presupuesto mismo de la interlocución” (DURÁN, 2010, p. 1). Así, la racionalidad comunicativa se fundaría en un presupuesto erróneo, porque, a la par de que tal igualdad no existe en la facticidad social, tampoco es lógicamente posible, salvo en términos de su enunciación como principio formal de razonamiento: la igualdad en tanto poder “ser parte” que, a su vez, convierte a la política en la lucha de “la parte sin parte” por la igualdad (RANCIÈRE, 1996). La dinámica política descrita por Rancière nos permite explicar lo que para nosotros se involucra en la dinámica del reconocimiento, porque el autor edifica una teoría que tomando distancia de la racionalidad comunicativa de Habermas, piensa la dominación y la intersubjetividad en toda su violencia y potencialidad humana que, en definitiva, en una solución Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 117

117

06/11/2016 13:25:03


paradójica, resulta en una interpelación por la inclusión, por el reconocimiento del otro. Por su parte, Magdalena Gómez (2000), plantea que la propuesta de Hábermas frente a la demanda por reconocimiento de la diferencia cultural evidencia una contradicción. Para ella, si bien el autor alemán formula una propuesta para el reconocimiento, al mismo tiempo niega su derecho a la diferencia, al excluir la identidad cultural como un valor normativo. La autora se sorprende cuando Habermas “prioriza el enfoque más convencional de la teoría jurídica de los derechos individuales para rechazar el planteamiento de los derechos colectivos”. Explica que Habermas en su libro “La inclusión del Otro” lo que hace es limitar la inclusión, ya que, si bien se abre al tema de “las minorías ‘nacidas’”, como fenómeno que emerge en las sociedades pluralistas, en especial, en las sociedades multiculturales, existen otros caminos para el objetivo de una inclusión de esta naturaleza sí abiertos al reconocimiento de la diferencia, sin que con ello se afecten los principios constitucionales, como la igualdad (GÓMEZ, 2000, pp. 1048-1049). Laclau y Mouffe, siguiendo a Habermas5, se preguntan ¿Qué valores sustantivos debiera compartir un grupo para distinguir entre un nivel normativo referido al todo, al sistema legal general y otro referente a las identidades culturales que existen como particularidades al interior de ese orden?. Vayamos viendo. Primero: Es perfectamente posible articular un orden social democrático en que “muchas de las demandas de una identidad 5  Laclau y Mouffe (2004, p. 247) citan a Jürgen Habermas en (versión en inglés) The Inclusión of de Other. Studies in Political Theory, Cambridge (EEUU), MIT Press, 1998, p. 225 [trad. esp.: La inclusión del otro; estudios de teoría política, Barcelona, Paidos, 2002]. Nosotros hemos tenido a la vista en este trabajo la versión en español de 1999 de la misma obra que corresponde a una traducción de la versión alemana de 1996 (Habermas, 1999).

118

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 118

06/11/2016 13:25:03


más global sean ‘universales’ en su contenido y atraviesen una identidad de pluralidades étnicas” (LACLAU y MOUFFE, 2004, p. 246). Pero, estas identidades de pluralidades étnicas también tienen sus propias suturas-parciales (pretensiones universales no suturables totalmente) y sus propias articulaciones, con el todo, sus lugares de poder y “con-entre” las otras partes. Precisamente, la apertura a la diferencia colectiva requiere una forma institucional de Estado de menor concentración del poder, con mayores porosidades políticas e institucionales que permita en forma blanda una mayor articulación de la diferencia. En lo institucional se tratará de un Estado en que el lugar del poder, no solo es vertical –hegemónicamente hablando- sino que también teje, entrelaza, articula, edifica puentes, para construir una suerte de homogeneidad de sus partes heterogéneas. Sin duda cuando la identidad cultural juega un rol más preponderante, la afirmación de una “estabilidad inestable” (DURÁN, 2010) cobrará más fuerza. Segundo: nos parece posible el diseño de un marco institucional intercultural en que la interculturalidad puede ser, por una parte, el valor central acordado por la comunidad política, axiológicamente instalado en el orden normativo (regularmente en la Constitución), que como acuerdo fundamental común de apertura a la diferencia cultural y a los derechos que ella involucra, permite, al mismo tiempo, articular los procedimientos y puentes para el reconocimiento recíproco y el diálogo agonístico entre pueblos (particularidades), en el marco del todo que siempre será parcial como comunidad política organizada, democrática y multicultural. Habermas y su contribución al reconocimiento de la diversidad indígena latinoamericana: Sin abandonar las cuestiones planteadas sobre nociones como la del consenso, de la inclusión y sobre una ética que en el afán de la pluralidad margina la dimensión cultural de la política y del derecho, no podemos dejar de lado el esfuerzo Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 119

119

06/11/2016 13:25:03


de Jürgen Habermas, en a lo menos dos sentidos. El primero, desde la mirada de la historia del pensamiento crítico, impacta la reflexión del siglo XX, marcando una ruta que enriquece los debates sobre el reconocimiento y el respeto de la diversidad. El segundo, la racionalidad comunicativa de Habermas aportará un instrumental epistemológico fundamental en la construcción dialógica de una ética intercultural, por sobre las críticas y deconstrucciones que se le plantean a la ética del discurso. Como señala Salas, desde su enfoque de diálogo intercultural, la ética discursiva contribuye como ética normativa, ya que “asocia el vínculo entre la ciencia y la ética acerca de la derivación de normas, y plantea explícitamente los problemas generados por la racionalidad instrumental” y la crisis valórica de la modernidad. Con todo, aún puede revisarse desde América Latina cómo esta ética del mundo de la vida “puede responder a una hermenéutica de la praxis” (SALAS, 2013, p. 43). También es posible destacar el pensamiento habermasiano por haber logrado instalar una crítica a las visiones que reducen la democracia a un equilibrio mecánico de intereses y preferencias, “manifestados a través de un voto que selecciona a los líderes que llevarán a cabo las políticas escogidas”, porque aquel sistema no logra explicar cómo las identidades políticas son constituidas y reconstituidas a través de la deliberación en la esfera pública, condición constitutiva de la política que exige tener en cuenta las luchas de “la pluralidad de voces que una sociedad democrática abarca” (LACLAU y MOUFE, 2004, p. 18). Por otra parte, la propuesta de Habermas será clave para el “liberalismo multicultural” (CORTINA, 2010) que presentará relecturas en su tarea de considerar la diferencia en la construcción del derecho, para la cual complejiza la noción clásica de la igualdad, solo centrada en la libertad individual, asumiendo que la construcción del derecho ya no puede resolverse solo en la suposición de un pacto, sino que 120

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 120

06/11/2016 13:25:03


tal producción jurídica se realiza por sujetos comunicados y se legitima por rumbos institucionales que establecen un marco deliberativo, emergiendo la necesidad de incluir la dimensión política junto a la jurídica. Pero, al mismo tiempo, deja abierta una suerte de paradoja que, para sus críticos, más que freno, será rumbo para nuevos desarrollos teóricos: ¿cómo abrir el derecho a incluir la diferencia?, ¿cómo plantear una ética comunicativa entre sujetos considerando sus identidades culturales?, ¿es legítimo cerrar el marco conceptual a la posibilidad de derechos colectivos que reconocen la diversidad?. Conclusión Habermas, desde su ética comunicativa, plantea una propuesta que se ha calificado de pluralista, con un marcado discurso de apertura a la diferencia en el plano individual, pero que separa las luchas por el reconocimiento en el plano colectivo, étnico y cultural, porque sostiene que con ellas se estaría dando pié a un nacionalismo étnico que implicaría la negación de la acción comunicativa (1999, p. 160). Pero esta premisa introduce una fisura paradójica en la ética comunicativa, porque, por un lado, se sostiene una ética que requiere el reconocimiento recíproco de todos los interlocutores sociales, pero, por otro, algunos de ellos no pueden formar parte plena de la interlocución. Así el reconocimiento termina siendo a lo menos parcial porque se omite una de las dimensiones constitutivas del (de los) sujeto(s), su identidad cultural. Finalmente, visualizamos dos presupuestos basales de la democracia, concatenados paradójicamente y en tensión: conflicto y diálogo (FAUNDES, 2015). Conflicto, propio de la dinámica intercultural. Y diálogo, sostenido en el aseguramiento de las condiciones materiales de existencia de todos los sujetos (SALAS, 2003). El diálogo así, se sitúa en un campo de conflicto, pero al mismo tiempo constituye un imprescindible para la

Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 121

121

06/11/2016 13:25:03


deliberación democrática, para aquella articulación factible y falible que arroja las formas normativas e institucionales, siempre finitas y en transformación. Luego, nuestro enfoque supone, entre otros aspectos, el consenso sobre ciertos mínimos éticos y el establecimiento de un espacio común entre fronteras culturales que, por cierto, son en igual medida fronteras comunicativas articuladas por los propios actores sociales, con lo que solo hay consenso si hay reconocimiento. Pero este consenso supone asegurar condiciones materiales a los sujetos y recoge el sentido de una propuesta intercultural, conflictiva y dialógica. Así, la integración social radicada en el derecho que postula Habermas sería solo “un orden deseado”, siempre inacabado, una “utopía del consenso”, un “horizonte utópico” de la democracia (LECHNER, 1984). Bibliografía ANDREU, Joan (2012). Teoría de la acción comunicativa, ética del discurso y racionalidad democrática. Una aproximación a alguno de los planteamientos de J. Habermas. En: http://www.cesag.org/ghcs/tempsdecomunicar/?p=325 febrero 2014).

(28

ARAYA, Jorge (2011). Jürgen Habermas, Democracia, inclusión del otro y patriotismo constitucional desde la ética del discurso. Rev. chilena de derecho y ciencia política, N° 2, V.3 , pp. 8598. BENHABIB, Seyla (2006). Las reivindicaciones de la cultura. Igualdad y diversidad en la era global. Buenos Aires: Katz. CORTINA, Adela (2010). Justicia cordial. Valencia: Trotta. DURÁN, Carlos (2010). Proyecto desigualdades. Tendencias y proyectos emergentes en la estratificación social. En:http:// 122

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 122

06/11/2016 13:25:03


www.desigualdades.cl/wp-content/uploads/2009/09/ ponencia-carlos-duran-mesa-participacion-politica.pdf (1 febrero 2014). DUSSEL, Enrique. —. (1998). Ética de la liberación en la edad de la globalización y exclusión. Madrid: UNAM-Trota. —. (2006). 20 tesis de política. En:http://www.ceapedi.com. ar/imagenes/biblioteca/libros/282.pdf (22 de abril 2014). ECHEVERRÍA, Bolivar (2005). Vuelta de Siglo. Mexico: Fundación Editorial el perro y la araña. FAUNDES, Juan Jorge. (2015) “Recomprensión intercultural de los derechos humanos. Apuntes para el reconocimiento de los pueblos indígenas en América Latina”. En, Justiça do Direito, V. 29 N°1 1 (2015). FORNET-BETANCOURT, Raúl (2011). La Filosofía Intercultural y la dinámica del reconocimiento. Temuco: Ediciones Universidad Católica de Temuco. GÓMEZ, Magdalena (2000). Derecho indígena y constitucionalidad. En, CASTRO, M. (comp.), Actas XII Congreso internacional de de derecho consuetudinario y pluralismo legal: desafíos del tercer milenio, Vol. II, pp. 1029-1050. Arica: U. de Chile, U. de Tarapacá. HABERMAS, Jünger. —. (1987). Teoría de la acción comunicativa. Madrid: Taurus. —. (2005 [1998]). Facticidad y Validez. Sobre el derecho y el estado de derecho democrático en términos de teoría del discurso. Madrid: Trotta. —. (1999). La inclusión del otro. Estudios sobre teoría política. Barcelona: Paidós. Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 123

123

06/11/2016 13:25:03


KYMLICKA, Will (1995). Multicultural Citizenship. Oxford: Oxford University Press. LACLAU, Ernesto y MOUFFE, Chantal (2004 [1985]). Hegemonía y estrategia socialista. Hacia una radicalización de la democracia. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica. LECHNER, Norbert. (1984). La conflictiva y nunca acabada construcción del orden deseado. Santiago: Flacso. MOUFFE, Chantal (2003). La paradoja democrática. Barcelona: gedisa. RAWLS, Jhon. (2011[1995]). Fondo de Cultura Económica.

Liberalismo político. México:

Rancière, Jack. (1996). El desacuerdo. Política y Filosofía. Buenos Aires: Nueva Visión. —. (2006). Política, policía, democracia. Santiago: LOM. SALAS, Ricardo. —. (2003). Ética Intercultural. Santiago: Ediciones UCSH. —. (2013). Antonio Sidekum y Raúl Fornet-Betancourt: Ética, reconocimiento y discurso intercultural. Utopía y Praxis Latinoamericana, Año 18, N° 60, pp. 41-55. TAYLOR, Charles (1992). Multiculturalism and “the Politics of Recognition”, Princeton University Press, Princeton. VELÁSQUEZ, Fabio (2010). Democracia y particpación en América Latina. En, Ciudadanía activa. Iniciativas para fortalecer la democracia. Cartagena de Indias: Ed. Tec. de Bolivar.

124

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 124

06/11/2016 13:25:03


O sujeito pronominal descaracterizado: filosofia da consciência e individualismo Jovino Pizzi Introdução A teoria do agir comunicativo de Habermas suscitou – e continua propiciando – uma infinidade de considerações. No final do século passado, ela foi motivo de inúmeras análises. Ainda hoje, é tema de estudos, pesquisas, encontros, textos etc. A listagem é enorme e parece que não vai a se encerrar tão cedo. O que está por detrás da proposta de Habermas? Em poucas palavras, Habermas pretende salientar um tipo de “racionalização social em termos de reificação da consciência” (2012, II, p. 3). Na verdade, sua preocupação se volta a um tipo de racionalização, sublinha o aspecto individual das pessoas. Como diz Habermas, a reificação da consciência é uma das características das sociedades modernas e atuais, e isso salienta o aspecto impessoal e meritocrático dos indivíduos. A consequência é o esmaecimento do social e da intersubjetividade comunicativa, a ponto de afiançar um descompromisso com os demais. Esse é um dos pontos chaves para entender a teoria do agir comunicativo. Por isso, a manifestação em contra ou a favor não pode ser o parâmetro de uma filosofia interessada no momento presente. Nem mesmo a acusação de europeísmo ou de qualquer outra característica regionalista pode esmaecer a repercussão da teoria do agir comunicativo. Por certo, o pensamento de Habermas não se resume à obra Teoria do Agir Comunicativo, mas ela é, sem dúvidas, um dos aspectos fundamentais de sua Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 125

125

06/11/2016 13:25:03


filosofia em torno aos conceitos relacionados ao “contexto histórico e teórico” de “uma teoria da ação” vinculada a uma “comunidade de comunicação” (HABERMAS, II, p. 4). Essa comunidade de comunicação apresenta um duplo rosto, pois ela é, ao mesmo tempo, “ideal” e “real”. Daí, então, a defesa de uma “intersubjetividade invulnerada” entre sujeitos coautores, de modo a possibilitar o “entendimento não coagido dos indivíduos entre si e da identidade de um indivíduo que se entende livremente consigo mesmo” (HABERMAS, II, p. 4). A pretensão deste artigo não é defender ou acusar, mas apenas salientar um aspecto essencial na teoria de Habermas. Trata-se de salientar que a “validade intersubjetiva” dos proferimentos supõe uma relação comunicacional entre sujeitos, na qual o uso dos pronomes pessoais indica uma forma de reconhecimento entre os sujeitos coautores. Em outras palavras, ao reconhecer os papéis de cada sujeito participante, a inter-relação exige uma consideração equitativa entre os três pronomes pessoais (singular e plural). A negação de tal equidade permite aventar que a terceira pessoa (singular ou plural) seja tratada como alguém estranho, antissocial ou indesejado. No caso latino-americano, essa forma de descaracterização do sujeito assume um tipo de dualismo, no qual a comunidade de comunicação rejeita os coautores que estão vinculados a um estilo de vida ou assumem um modus vivendi alheio à tradição europeia. Embora a expressão “europeia” seja genérica e polivalente, trata-se, então, de designar um modelo eurocentrista e da influência exercida pela Europa sobre os países de outros continentes. Ao mesmo tempo, o século XXI reserva um aspecto peculiar para a América Latina. A maior parte dos países ibero-americanos do continente passou de ditaduras para um modelo político democrático – ainda que insipiente. 126

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 126

06/11/2016 13:25:03


Embora a democracia também seja um termo controverso, a proposta de pensar a América Latina pós-ditaduras não significa simplesmente distinguir ou separar etapas históricas, e nem mesmo esquecer a brutalidade dos regimes militares. A intenção apenas deseja salientar as democracias insipientes e, por isso mesmo, com resquícios autoritários e, ainda, sem preocupação com a diversidade de suas gentes. No fundo, a passagem das ditaduras militares a um modelo democrático mantém os princípios do individualismo possessivo – na linha de Macpherson – cuja característica é a impessoalidade e a meritocracia. Embora as considerações a respeito das políticas afirmativas – como é o caso do Brasil –, ainda assim persiste um modelo individualista e cada vez menos preocupado com o âmbito social. No fundo, o critério do agir é demarcado pelo interesse pessoal e a busca de realização profundamente individualizada, algo intrínseco à filosofia da consciência. Hume na era da filosofia da consciência Na tradição liberal inglesa, David Hume (1711-1776) é, sem dúvida, um dos expoentes mais sugestivos para delinear o sistema das liberdades individuais. No entanto, o vocábulo liberalismo, “como um ente abstrato é uma tarefa bastante difícil pois, a rigor, existem tantos liberalismo quanto são seus doutrinadores e mesmo quantas são as experiências sociais concertas nas quais este paradigma é ou foi hegemônico” (TAMBARA, 1998, p. 11). Embora de forma um tanto confusa, o liberalismo defende a independência dos indivíduos. Por isso, a necessidade de um tipo de contrato social, priorizando as escolhas privadas (incluindo a opção de consciência, de opinião, de manifestação e, inclusive, de organização). Os governos não devem, pois, interferir em tais escolhas, porque a essência do liberalismo consiste no “reconhecimento do desejo individual

Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 127

127

06/11/2016 13:25:03


como fato básico de uma associação civil moderna” (MINOGUE, 1996, p. 422). Na tradição ocidental, a Inglaterra realizou as mencionadas “experiências sociais concretas” – de acordo com a expressão de Tambara. Mas não foi só isso, pois também se destacaram pensadores com um teor liberal muito acentuado. Nesse rol, Locke seria um dos expoentes mais destacados. Todavia, em seus desdobramentos, aparecem autores ligados ao Utilitarismo, por sua vinculação com o ideal de felicidade, aspecto que levou Rawls a escrever uma crítica significativa contra o próprio ideal de utilidade (MINOGUE, 1996, p. 422-423). Embora as modificações adverbiais do caráter semântico e pragmático do liberalismo, sua constituição teórica nutre a reificação da consciência individual. Para um leitor de Habermas, existe uma considerável desconfiança relacionada aos “limites dessa teoria”, haja vista a formação das identidades dos sujeitos coautores na participação de uma comunidade de comunicação. A formação das identidades é, pois, um processo de interação, e não uma escolha individual. Nessa linha, a desconfiança em relação a todos os autores que dão prioridade ao individualismo como tal. Nessa linha, um dos autores ingleses emblemáticos é Hume. Considerando a teoria do agir comunicativo, pode-se afirmar que, em Hume, o sujeito é caracterizado desde uma razão centrada exclusivamente em si mesmo. Esse seria, pois, o postulado básico da crítica aos pressupostos do filósofo inglês. A “razão centrada no sujeito” aufere, nas palavras de Habermas, uma sobrecarga excessiva ao sujeito individualizado – ou seja, o individualismo possessivo – e, em decorrência, mantém o sujeito metafisicamente isolado do seu contexto intersubjetivo. É evidente que Habermas não está se referindo a Hume. A inferência é nossa, presumindo a possibilidade de 128

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 128

06/11/2016 13:25:03


uma interpretação da filosofia em torno às três etapas do seu desenrolar: a era do ser, a era da consciência e a era da linguagem. Essa é a proposta deste texto. No desenho apresentado por Habermas – entre as três diferentes eras da filosofia –, Hume permanece na era da consciência. Na verdade, os substratos da consciência acabam esgotando-se e, então, acabam dissolvendo-se na “transição para o paradigma da compreensão” (HABERMAS, 1990, p. 277). A exaustão dos arquétipos da filosofia da consciência decorre, principalmente, da pressuposição “sentimental de solidão metafísica” e da discrepância ligadas a oscilações febris entre as maneiras de ver transcendentais e as empíricas, entre a autoreflexão radical e um incompreensível que não pode ser recuperado reflexivelmente, entre a produtividade de um gênero que se gera a si próprio e um original anterior a todo a produção (HABERMAS, 1990, p. 277).

Essas considerações podem auxiliar no balizamento do lugar que Hume ocuparia no pensamento de Habermas. Em primeiro lugar, o ato ou o efeito das “oscilações febris” denota a forma de compreender o transcendentalismo como uma idealização carregada de paixões. Em outras palavras, trata-se de algo que ofusca a razão comunicativa. Em segundo, esse turvamento decorre da autorreflexão individual próprio do solipsismo, também nomeado de individualismo metodológico ou, ainda – na esteira de Macpherson (1979) –, de “individualismo possessivo”. Em terceiro lugar, a citação acima reforça esse individualismo na medida em que a origem e a supervisão dos fundamentos está no próprio indivíduo. Dessa forma, as formulações e as postulações relacionadas a qualquer argumento seguem as “ilusões isoladas”, de forma a impedir a transparência da “totalidade de uma vida ou de um modo de vida coletivo” (HABERMAS, 1990, p. 280). Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 129

129

06/11/2016 13:25:03


Mais uma vez, é preciso frisar que tais considerações de Habermas não têm Hume como foco. Em outras palavras, trata-se de situar Hume no contexto da filosofia da consciência. Suas considerações apontam a saída da filosofia do sujeito, enfrentando dois tipos de racionalidade: a comunicativa e a razão centrada no sujeito. Para Habermas, de Platão a Popper, há uma espécie de logocentrismo unilateral; no caso de Hume, a convergência volta-se aos sentimentos. Tal concepção impede a compreensão da globalidade do mundo da vida (HABERMAS, 1990, p. 291). Na linha de Habermas, a filosofia da consciência apresenta outro aspecto preocupante. Trata-se da exclusiva compreensão de saber como “saber de algo no mundo objetivo” (HABERMAS, 1990, p. 291). Em outras palavras, a racionalidade monológica “encontra seus critérios em padrões de verdade e fatos que regulam as relações do sujeito que conhecesse e age com o mundo dos objetos possíveis ou dos estados de coisas” (HABERMAS, 1990, p. 291). Deste modo, a concepção de bem e do justo encontram respaldo quando houver uma correlação entre o idealizado pela consciência do indivíduo e a sua demonstração empírica, ou seja, a evidência dos fatos comprovados cientificamente. E esse é um dos aspectos fundamentais da meritocracia, pois cada um deve fazer por merecer o que possui e tem como próprio. Para Hume (1984), há uma vantagem das ciências matemáticas sobre as morais. Em outras palavras, “a exatidão é sempre proveitosa à beleza e o raciocínio justo ao sentimento delicado. [...] O caminho mais suave e pacífico da vida humana segue pelas avenidas da ciência e da instrução” (HUME, 1984, p. 135). No caso, Hume está procurando justificar a considerável vantagem da “filosofia exata” em detrimento ao obcurantismo da “filosofia profunda e abstrata”, uma “fonte inevitável de incerteza e erro” (HUME, 1984, p. 135).

130

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 130

06/11/2016 13:25:03


Em decorrência, o substrato do conhecimento evoca a causalidade e a substância dos fatos, a ponto de rejeitar a teoria das ideias gerais. De acordo com Hume, a ideia geral (ou universal) deveria representar todos os indivíduos de determinado tipo. Se, por um lado, haveria uma aproximação entre os pressupostos de Hume e Habermas – no que tange à desconfiança e à recusa da metafísica – o abismo entre eles se evidencia quando se trata da subjetividade da mente (em Hume) e a intersubjetividade relacional (em Habermas). Para Hume, a conexão “que sentimos na mente, essa transição costumeira da imaginação passando de um objeto para o seu acompanhante usual, é o sentimento ou a impressão que nos leva a formar a ideia de poder ou conexão necessária. Nada mais há que descobrir aí” (Hume, 1984, p. 163). As provas da existência de um objeto particular estão na sua conexão com outro é a evidência suficiente que a mente deve ter e, portanto, prova da compreensão de cada fenômeno em si. Nesse caso, a prova é da experiência cujo processo faz com que a mente consiga identificar a passagem do pensamento de um objeto para outro (HUME, 1984, p. 164). Evidentemente, há, no acima exposto, um debate mais sistemático. Não é intenção defender ou acusar Hume. Apenas deseja-se mostrar qual interpretação seria possível caso as três eras (da filosofia), supostas por Habermas, sejam plausíveis. O abandono dos pressupostos da filosofia da consciência reclama, pois, a revisão do papel das ciências empírico-formais e da própria razão centrada exclusivamente no sujeito. Em outras palavras, “o princípio da subjetividade e a estrutura da autoconsciência” (HABERMAS, 1990, p. 30) não são suficientes para a filosofia prática. Na verdade, poder-se-ia afirmar que os pressupostos da filosofia da consciência se associam a uma concepção tecnocrática – impessoal e meritocrática, portanto –, “segundo a qual o processo de modernização é orientado por Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 131

131

06/11/2016 13:25:03


imperativos de ordem objetiva, sobre os quais não é possível exercer qualquer espécie de controle” (HABERMAS, 1990, p. 78). Ao constatar essa estrutura funcional do pensamento moderno, cuja base está na contraposição entre a subjetividade monológica e o procedimento comunicativo, pode-se entender, então, a distância – ou o completo abandono – de Habermas em relação a Hume. No entanto, a tentativa de aproximação significa o reconhecimento dos dois enquanto pensadores de épocas distintas. Habermas insiste no diagnóstico de nosso tempo e Hume retrata um contexto inglês do século XVIII. O problema da autorregulação: o empoderamento do individualismo Como foi salientado, Hume se insere em um contexto moderno. Entre outros aspectos, os acontecimentos ligados à religião e seus desdobramentos na sociedade inglesa são de per si significativos, pois podem contribuir para entender não apenas a religião em si, mas também suas consequências. Por exemplo, a queima dos hereges (aqueles que não acreditam na doutrina católica) fez com que a religião passasse a receber, principalmente na Inglaterra, um tratamento diferenciado. Não se trata apenas da antipatia em relação aos católicos. O impulso religioso substancial da Reforma Protestante deixou patente que as famílias que continuassem no credo católico seriam cosideradas adoradoras da “velha religião”. Na prática, a convenção designava a continuidade da orientação religiosa, mas em condições de máximo sigilo. Além de proibir a construção de igrejas, os cristãos eram impedidos de celebrar sua fé em lugares públicos e, nessa situação, desautorizados a exercer atividades sociais. A transgressão era castigada com penalidades, cujas sansões eram severas ao extremo. Com o tempo, essa orientação possibilitou novas 132

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 132

06/11/2016 13:25:03


compreensões do papel da religião a ponto de o culto e a adoração referirem-se a questões ligadas à consciência individual de cada sujeito ou dos simpatizantes de cada credo ou orientação religiosa. Esse é um fator importante para entender, ainda hoje em dia, a disposição em considerar a fé como um ato voluntário de caráter particular. Em outras palavras, a religião e todas as matérias concernentes à fé devem reservar-se ao âmbito da consciência particular. O tema apresenta, sem dúvida, desdobramentos dos mais variados. Mas há, de certa forma, um elemento importante: o dilema entre a consciência individual e as objetivações práticas. Em outras palavras, da perspectiva habermasiana, a releitura de Hume o situaria no horizonte da filosofia da consciência e, por isso, seus pressupostos não compactuam com as exigências de uma interação mediada linguisticamente. Assim, a comunidade de comunicação e a validade dos proferimentos se ressentem de um reconhecimento geral. Neste sentido, não só a religião, mas também o âmbito moral passaria a ser um tema de índole subjetiva. Com isso, entende-se também as raríssimas menções de Habermas a Hume. Essa perspectiva resulta ser deveras controversa não apenas para o âmbito moral, mas também para a política e para a convivência social. No fundo, o modelo liberal defende a autorregulação, uma espécie de força natural que ordena as transações entre os indivíduos e, por isso, o parâmetro na orientação do agir obedece a conjuminância dos interesses particulares. No espaço familiar, os atores são identificáveis. Todavia, em um horizonte mais amplo, os atores não podem calcular os limites de seu agir. Por isso, os sujeitos experimentam a sensação de estarem livres de qualquer imposição, isto é, uma independência de qualquer constrangimento físico ou moral. Tal estado de disponibilidade dos sentimentos revela uma atitude de confiança no próprio indivíduo. A capacidade individual de Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 133

133

06/11/2016 13:25:03


autodeterminação é um desígnio “natural”, por assim dizer, capaz de compatibilizar autonomia e livre-arbítrio. Esse seria o sentimento ou a percepção do individualismo monológico. Em outras palavras, a autonomia representa uma forma audaciosa de agir, um empoderamento individualizado que transforma o indivíduo em empreendedor. Na verdade, as decisões têm em vista a execução de planos privados. Assim como a religião, as metas obedecem convicções privadas. Esse condicionamento natural afasta-o dos compromissos recíprocos com os demais, de modo que o agir se transforma em atividade voltada à satisfação de suas necessidades materiais. A relação com os demais é, assim, pautada pela impessoalidade, ou seja, um tratamento essencialmente impessoal. Nesse caso, a distribuição dos bens não ocorre devido ao senso de justiça, mas motivados por uma espécie de “providência” encarregada de mover e ordenar os “esforços dispersos dos indivíduos na busca de seus próprios benefícios e com sua própria – particular – intenção” (CONILL, 2004, p. 102). No fundo, a solução das disparidades de interesses viria dessa liberdade natural, como “se” a espontaneidade refletisse apenas uma intenção da vontade irrefletida. Essa inclinação aparece também em Adam Smith. O modelo smithiano caracteriza-se pelo modo de entender o indivíduo enquanto alguém que não presume de objetivos comuns. Nesse sentido, consolida os alicerces do individualismo metodológico, tal como foi delineado por Macpherson, centrando-se muito mais no alvitre individual de cada sujeito que na responsabilidade moral do agir. Essa perspectiva está delineada por Macpherson, cuja “posição niveladora” garante a todos os indivíduos enquanto possuidores de sua própria liberdade, uma exigência para, através disso, aceitar a sociedade de mercado, mais 134

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 134

06/11/2016 13:25:03


precisamente, de rentistas (PIKETTY, 2014). Para Macpherson, existe uma reiteração de que “o ser só é humano enquanto único proprietário dele próprio. Só enquanto é livre de tudo, menos das relações de mercado, é preciso se converter todos os valores morais em valores de mercado” (MACPHERSON 1979, p. 278). Em sua análise, Macpherson menciona Hobbes, Harrington, Hume e Bentham, autores que consolidaram as suposições de que o indivíduo “é humano” apenas enquanto “proprietário de sua própria pessoa”, aspecto que, no fundo, fortalece “relações de mercado”, e nada mais (MACPHERSON, 1979, p. 283). Em razão disso, a propositura de uma legislação para regular a conduta se ressente, ainda hoje em dia, de duas percepções: por um lado, um ceticismo radical e, por outro, de uma urgência sem precedentes. Para os céticos, a sociedade está submetida a uma série de tiranias, dominadas por oligopólios privados e mega corporações (midiáticas, sindicatos, organizações da sociedade civil etc.) às vezes mais poderosas que os Estados nacionais, com o qual não há possibilidade nenhuma para uma aposta democrática. Os que insistem em uma regulação evidenciam um conjunto de “ideias reguladoras”, as quais servem para orientar a ação dos sujeitos e, ao mesmo tempo, definem critérios para validar as diferentes práticas de gestão, as profissionais e, inclusive, as de controle regulamentário. Esses aspectos levam a sublinhar a segunda perspectiva, ou seja, insistir em um marco normativo capaz de indicar critérios de ação e com idoneidade para valorizar as distintas práticas. Na verdade, o dilema ou o déficit relaciona-se à questão: “o que significa responder por...?” O individualismo possessivo (ou metodológico), tão bem descrito por Macpherson, alimenta uma perspectiva aterradora em relação à democracia e à racionalidade pública. Os liberais mais persuadidos enxergam na intersubjetividade comunicativa e no compromisso público um fantasma, ou seja, algo que pode ser aterrador para suas Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 135

135

06/11/2016 13:25:03


pretensões particulares e, por isso, a democracia, participação política, opinião pública e, inclusive, os movimentos sociais se transformam em temas incômodos. Nesse sentido, alguns setores, como é o caso dos mass media, disseminam uma espécie de fobia ao cotidiano e ao popular. Não poucas vezes, os próprios meios de comunicação se transformam em veículos dessa espécie de satanização das manifestações de minorias ou, inclusive, de lutas reivindicatórias de entidades, associações ou grupos que aspiram por justiça social. Para ele, embora seja difícil, talvez impossível admitir, é necessário, todavia, propor um remédio adequado a ilimitada liberdade de expressão (HUME, 2004, p. 105). No caso, a aspiração de liberdade se reflete na manifestação individual a respeito de qualquer assunto ou tema. Nesse sentido, sua preocupação a respeito da liberdade de expressão é uma inquietude que não trata exatamente de impor limites, mas de estabelecer regras orientadoras não apenas para as manifestações particulares e quaisquer governos democráticos, mas também para os mercados. Sem regras mínimas, existe somente desconfiança entre todos, um dos prolemas elementares para qualquer sociedade. A falta de regras e princípios indica que as bases das relações intersubjetivas permanecem nutridas por um individualismo radical, ou seja, por um egoísmo sem dialogicidade. Daí, então, a mão invisível, encarregada de garantir o “bem geral”. Os sentimentos morais e a falsa mão invisível A literatura sobre a influência de Hume em Adam Smith (1723-1790) é extensa. De certa forma, há uma aproximação especial em relação às questões dos sentimentos morais. As paixões ou os desejos são, para Hume, “as fontes diretas e imediatas das ações” (CORTINA; MARTÍNEZ, 2005, p. 67). Eles regem a vontade. Sua proposta trata de refutar o pensamento 136

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 136

06/11/2016 13:25:03


racionalista, tanto por ser demasiado idealista como pela sua incapacidade em reconhecer a influência das paixões humanas. Para Hume, o âmbito moral é questão de sentimentos subjetivos de aprazimento ou desagrado e somente indivíduo pode saber o que ele sente diante de fatos objetivos. Apesar de tudo, não poucas vezes, os estudos sobre Smith não refletem as duas dimensões de sua proposta. O “outro Adam Smith” não é uma anedota (CONILL, 2004, p. 94). Na maioria das vezes, a riqueza das nações parece ter prevalência, enquanto a teoria dos sentimentos morais é relegada a um segundo plano. Apesar das controvérsias entre as duas posições, para Smith, economia e ética não podem andar dissociadas, pois o sujeito moral possui também uma dimensão social. Em outras palavras, “o indivíduo vive dentro de uma comunidade humana, organizada política e economicamente, na qual acredita descobrir um determinado ordenamento que parece funcionar conforme princípios naturais” (CONILL, 2004, p. 95). Por isso, o sujeito moral e social e o sujeito econômico representam as duas faces da mesma moeda. Smith modifica a percepção grega da economia, que identificava a “casa” como o espaço das transações econômicas, para dar lugar ao mercado e à empresa (fábrica), voltados para “a produção mediante a divisão do trabalho, a distribuição, a troca de bens e o consumo (CONILL, 2004, p. 95). Na verdade, o filósofo e economista escocês se insere no contexto moderno, cuja abrangência das relações políticas e econômicas apresentam um horizonte mais abrangente. O novo cenário indica que o lugar habitual das inter-relações deixou de ser a “morada” restritamente familiar para alcançar esferas muito mais amplas, modificando a percepção grega da oiko-nomia, isto é, uma tarefa restrita à administração do lar. Nessa orientação, Adam Smith oferece uma percepção

Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 137

137

06/11/2016 13:25:04


política da economia. Não se trata, portanto, de uma mão invisível. Seu ponto de partida é o indivíduo, isto é, um sujeito que se move em um contexto social, cujos vínculos obedecem à normatividade da liberdade natural. Para ele, o princípio que motiva a interação advém da propensão a trocas e permutas. A primazia dos bens acentua a impessoalidade nas relações com os demais. Por isso, as percepções morais estão relacionadas a maior ou menor capacidade de cada sujeito em sentir simpatia com os hábitos dos outros. O vínculo mútuo entre os indivíduos consiste na preocupação de como é possível uma sociedade de sujeitos livres. Ao tratar de separar utilidade e simpatia, Smith salienta os aspectos motivacionais da atividade econômica, ligados, todavia, a uma “sociedade comercial”. Nesse sentido, a estrutura psíquica dos sentimentos e afetos necessita de uma comunicação entre indivíduos e, além disso, de “mecanismos de coordenação das relações que surgem da tendência ao intercâmbio, que é o mercado”. Por isso, o interesse individual necessita de mediações comunicacionais e “instâncias de controle (como a justiça) que esse interesse individual necessita na ordem social” (CONILL, 2004, p. 98). Para Smith, as transações econômicas ocorrem da mesma forma como “aconteciam nos céus”. Sob a proteção divina, tudo ocorria em conformidade às “leis fixas que nenhum homem inventou nem pode mudar” (ALVES, 1983, p. 175). Nesse sentido, as atividades humanas, especialmente no campo da economia, obedecem à orientação da mão invisível – “encarregada de fazer com que tudo concorra para o bem geral” – e, por isso, ninguém pode faltar ao cumprimento de seus ditames. Como é possível perceber, a proposta de Smith sustenta uma idealização que delimita a imanência dos fatos a um determinismo transcendentalmente peculiar. A orientação do 138

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 138

06/11/2016 13:25:04


agir obedece a leis idênticas àquelas que harmonizam os céus. Elas determinam as relações humanas a ponto de impor um modo de pensar, de valorar e de conformar qualquer transação econômica. Nesse sentido, as decisões dependeriam muito mais dessa força invisível da motivação particular de cada sujeito, e não propriamente da responsabilidade e do compromisso mútuos. Ao defender que as ações morais estão relacionadas aos sentimentos, Smith deixa claro que há um elemento fundamental para a vida humana: o aspecto interior do sujeito. Essa proposta valora a faculdade sentimental, salientando o aspecto invisível das ações humanas, pois os sentimentos se relacionam às experiências afetivas de prazer e desprazer, de simpatia e antipatia, de alegria ou sofrimento, etc. Esse aspecto invisível se defronta com elementos objetivos da conduta moral. Em outras palavras, o agir moral deve desvencilhar-se das ingerências externas. O mérito e o demérito da conduta humana se submetem a uma disposição interior, pois a mão invisível se encarregaria de garantir para que tudo conflua para o bem geral. No entanto, essa motivação interna responde a um interesse nas relações de troca, ou seja, na reciprocidade de considerações e serviços entre indivíduos análogos e afins. Do contrário, cada indivíduo deveria prover sua absoluta independência dos demais e a respeito de todas as coisas necessárias e convenientes para seu próprio sustento. A grande suspeita está em reduzir a fundamentação dos juízos dos sentimentos, da conduta e, inclusive, do senso de dever à invisibilidade, como se tudo obedecesse a essa mão invisível. Essa invisibilidade se depara com a argumentação atual das éticas da responsabilidade, que insistem nas consequências das decisões e na imputabilidade das ações. Embora o risco de os efeitos das ações serem opostos às intenções – consequências não intencionadas –, “cabe esperar que cada parte cumpra sua Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 139

139

06/11/2016 13:25:04


função nas relações de troca” (CONILL, 2004, p. 100). Essa exigência permite que o resultado dos mecanismos de troca seja avaliado e, em vistas dessa confiança recíproca, as relações entre as partes não cessem, isto é, prossigam futuramente. Considerações finais A interpretação de Hume pode ser exagerada. Mas há, sem dúvida, motivos para a desconfiança. Os sintomas concernentes às “convicções morais privadas” (HABERMAS, 2000, p. 385) fazem parte de um contexto e, por isso, seus pressupostos não se aproximam à filosofia da linguagem. No âmbito do agir comunicativo, é necessário “uma fundamentação substancial que escape da concepção da filosofia da consciência” (HABERMAS, 1997, p. 184). Ou seja, a preocupação consiste em consolidar as bases de uma “sociedade e a racionalidade comunicativa” (HABERMAS, 2000, p. 185). Nessa perspectiva, as estruturas da cultura burguesa da França e da Inglaterra dos séculos XVIII e XIX perderam seu lugar proeminente. Assim, o tipo de liberalismo pressuposto por Hume e, inclusive, por Smith, não encontra mais plausibilidade, pois carece sobremaneira de um componente linguístico-comunicativo. Em segundo lugar, a teoria do agir comunicativo é, sem dúvidas, um referencial capaz de enfrentar o individualismo atual. A defesa do indivíduo pode ocorrem frente à necessidade de participação dos sujeitos enquanto coautores. A coautoria significa o papel de todos os sujeitos, cujo tratamento pronominal realça a interação entre todos. Essa ideia se contrapõe a qualquer tipo de individualismo. Com isso, não há impessoalidade ou meritocracia, pois a utilização dos pronomes pessoais requer a equidade entre as três pessoas (singular ou plural). Não há, portanto, um pronome pessoal na voz passiva, neutro e/ou, por vezes, antissocial. Ao mesmo tempo, a defesa do indivíduo encontra um 140

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 140

06/11/2016 13:25:04


substrato forte na perspectiva de um sujeito descentralizado. Na verdade, isso significa uma revisão do antropocentrismo, a ponto de transformar o humanismo – na melhor das hipóteses – em um antropocentrismo mitigado. Embora as características da filosofia ainda sejam antropocentristas, o ideal de uma sociedade justa supõe uma intersubjetividade também com os não humanos e a natureza, aspecto que conduz a reconhecer esses sujeitos também como coautores da convivência em um oikos-cosmos-logos. Referências ALVES, R. Filosofia da ciência. Introdução ao jogo e suas regras. 4 ed., São Paulo: Brasiliense, 1983. CONILL, J. Horizontes de economía ética. Madrid: Tecnos, 2004. CORTINA, A. e MARTÍNEZ, E. Ética. São Paulo: Loyola, 2005. HABERMAS, J. O discurso filosófico da modernidade. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1990. HABERMAS, J. Ensayos políticos. 3 ed., Barcelona: Península, 1997. HABERMAS, J. Perfiles filosófico-políticos. Madrid: Taurus, 2000. HUME, D. Investigações sobre o entendimento humano. In: Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1984, p. 11312002. MACPHERSON, C. B. A teoria política do individualismo possessivo. De Hobbes a Locke. São Paulo: Paz e Terra, 1979. MINOGUE, K. R. Liberalismo. In: OUTHWAITE, W.; BOTTOMORE,

Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 141

141

06/11/2016 13:25:04


T. Dicionário do Pensamento Social do Século XX. Rio de Janeiro: Zahar, 1996, p.420-424. PIKETTY, Thomas. O Capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014. REACH, Angus Bethune. Manchester and the textile districts in 1849. Manchester: Helmshore Local History Society, 1972. TAMBARA, E. Liberalismo. In: PIZZI, J.; KAMMER, M. (Org.). Ética, economia e liberalismo. Pelotas: EDUCAT, 1998, p. 1122.

142

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 142

06/11/2016 13:25:04


Novos desafios no trato dos direitos humanos: As tensões entre mera formalidade e demandas por sua efetividade (Uma análise ético-filosófica sob viés crítico-realista)

Lorena Freitas Introdução O objeto deste artigo é o exame da crise e dos limites heurísticos da matriz liberal-individualista a qual, no que concerne aos direitos humanos, tenta circunscrever sua exegese a um caráter de mera promessa formal, confundindo (deliberadamente ou não) o aspecto (necessário, porém não suficiente) de sua garantia instrumental com as demandas sociais por sua concretização. Tal objeto será efetivado através do exame de um problema secular em nosso país, qual seja a questão do acesso à terra, isto é, da (não) implementação de uma reivindicação histórica de nossa sociedade, a reforma agrária, a qual, por mera via da aplicação da Constituição vigente, no que concerne à função social da propriedade, andaria bastante naquilo que envolve a sua expressão real na vida social. Por isso, e para abordar o esgotamento teórico e prático da mencionada matriz paradigmática liberal-individualista, é que se faz uso dessa questão premente na realidade brasileira - mais especificamente, nordestina a qual ganha a forma do problema a ser enfrentado. Isto significa que se trata de responder a seguinte questão: quais as causas pelas quais o secular problema agrário resta como questão pendente de solução em nossos tribunais, em termos de concretização Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 143

143

06/11/2016 13:25:04


jurídica? A hipótese que norteia a pesquisa é a de que, embora a questão agrária, por sua complexidade, demande esforço de outras esferas estatais, cabe ao judiciário concretizá-la e à doutrina, cuja função é inafastável para o direito, esclarecêla. Mais especificamente: a filosofia (e a teoria do direito), em suas vertentes centrais, tratam a função social da propriedade como uma proposição genérica / abstrata, de caráter meramente programático e, no geral, limitam-se a uma aplicação privatista da Constituição, situação que pode ser pesquisada sob o viés realista da racionalização legal da vontade e dos interesses que estão no cerne de qualquer decisão. Para testar tal hipótese, foram usados os recursos de um aparato bibliográfico e decisional concernentes à organização de uma pesquisa que tem produzido investigações - esse artigo é uma delas - desde 2012 e que conformam observatório sobre a função social da propriedade da terra. Isso tem resultado em estudos que examinam e fornecem argumentos no campo da teoria e da práxis sobre a concretização da função social da propriedade enquanto direito fundamental e suas repercussões positivas do ponto de vista social. Isto porque o desvendar da temática proposta ancorado num olhar descritivo, isto é, materialista / realista (sem, nem por isso ou apesar disso, deixar de ser filosófico), notadamente em questão tão premente quanto o conflito por terra, consegue dar conta, com mais amplitude e profundidade, da compreensão das matrizes sociais e jurídicas do conflito. Tal olhar repercute na medida em que se opõe àquelas perspectivas cujo foco é inteiramente voltado a apontar como a legislação deveria ser ao invés de examiná-la como efetivamente 144

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 144

06/11/2016 13:25:04


é e compreendê-la em suas condicionantes sociais, sem que isso signifique abrir mão da potencialidade crítica que tem o desvelar do direito como ele objetivamente se apresenta ao aplicador. Por isso mesmo é que a hipótese de pesquisa será levada adiante tendo em consideração um aspecto bastante peculiar, pois, na medida em que consiste num estudo das práticas sociais, visa desenvolver uma reflexão crítica acerca de um momento específico, ou seja, a aplicação do direito e suas implicações éticas. Por isso, e para efeitos de delimitação do objeto, o conflito por terra rural será sempre caracterizado por aquela situação em que uma das partes recorre à tutela estatal, o que, em um dado momento, requer decisão judicial e na qual a disputa envolve, alternada ou cumulativamente, ações de resistência à desocupação, enfrentamento pela posse, uso e propriedade de terras. No que concerne ao marco teórico, a abordagem será pautada na convergência de matrizes filosóficas no campo da ética prática que entendem o direito de propriedade enquanto feixe de obrigações do titular perante a comunidade e cujo marco se reflete numa atitude descritiva preocupada em examinar, sob uma ótica realista e enquanto um dado de fato da razão prática: juízes e tribunais são quem concretizam normas, o que nada tem a ver com uma atitude apologética de um decisionismo no qual a vontade é entendida de forma isolada e colocada, em caso de conflito, acima do teor normativo. Por critério metodológico dividiu-se o presente artigo em três partes: Na primeira, cuida-se de estudar como se expressa o conflito entre direito de propriedade, sua função social e os

Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 145

145

06/11/2016 13:25:04


motivos pelos quais ela leva a uma visão algo deslocada do que efetivamente acontece nos “caldeirões dos tribunais”1. Na segunda parte, serão examinadas as bases teóricas pelas quais se trata o direito pelo foco descritivo e, com isso se pretende contribuir filosoficamente com essa atividade, esclarecendo-a e fornecendo-lhes argumentos que melhor a qualifiquem. Aqui, o realismo será tomado apenas enquanto uma resposta dentre outras, só que mais adequada e com potencial heurístico mais ampliado para apontar caminhos e compreender a forma jurídica. Na terceira parte - em nosso ver, a principal - serão examinados os padrões de argumentação e justificação, isto é, um exame dos fatos sociais e como eles se expressam quer numa realidade empírica, o Estado da Paraíba, sem relevar de discutir o uso de topos e figuras retóricas para obtenção de adesão dos destinatários, pois embora curial a existência de um aparato estatal que vise garantir o cumprimento das normas, quanto mais elas forem fundadas no consentimento e menos na coerção, tanto melhor, na medida em que ganham em legitimação (FEITOSA, 2012, p. 385-388). Com isso, o objetivo geral do artigo constitui-se em fazer uma análise em relação aos conflitos de terra, com o fim de qualificar a atividade de decisão em questões dessa natureza da maior relevância social, dado o impacto social do conflito e enquanto campo eminentemente teórico, cuja finalidade deve ser esclarecer a práxis dos que decidem. Direito de propriedade x função social – enquadrando teoricamente o conflito Nessa primeira parte se procura observar a repercussão que a visão liberal – apologética – do direito de propriedade 1  A expressão “caldron of the courts” é de CARDOZO (2005, p. 6).

146

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 146

06/11/2016 13:25:04


teve e tem na interpretação privatística do mesmo, herdeira que é de um modelo do século XVIII-XIX, a ideia da propriedade como direito erga omnes, influência essa que marca, desde a formação inicial, o operador de direito. Esse trato do direito, que de certa forma perdura até hoje, é permeado por ilusões de referência e por um discurso aparentemente neutro que não leva em conta a ideologia contida na forma jurídica e que, por isso mesmo, subestima o direito enquanto lugar de poder, dominação e justificação. Aparentemente de forma contraditória, tal perspectiva liberal está mais focada em uma atitude prescritiva perante o direito empiricamente verificável do que em entender como ele efetivamente funciona, notadamente em seus padrões de argumentação, justificação e tomada de decisões, desnudando o fato que entre o compromisso da razão com a vontade, no direito concreto, a segunda predomina.2 Como isso se reflete ao exame dos conflitos sobre direito de propriedade privada de extensas porções de terra, como ocorre no Brasil, que segue no que concerne a sua questão agrária vitimada por um atraso secular, iniciando-se de logo pelo status teórico do problema. A questão da propriedade foi bem estabelecida - e segue guardando atualidade – por um jusfilosófo que não pode ser tido na conta de um “maximalista” – trata-se de Duguit. Ele, ao criticar a concepção absoluta do direito de propriedade privada, aponta algumas de suas consequências danosas, pois diz que a propriedade não é direito subjetivo do proprietário: é função social do possuidor de riquezas (DUGUIT, 2006, P. 147159, 173). 2  Sobre as concepções que discutem o direito como atividade da razão ou de atos de vontade (que, quase sempre, são manejos retóricos da racionalidade e de uma suposta “vontade geral”), ver: (KAHN, 2001, pp. 9 e 15; ELY, 2010, p. 44ss). Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 147

147

06/11/2016 13:25:04


Ora, tais conflitos não são problemas pontuais e têm raízes longínquas, desde a primeira lei de terra promulgada no país, a Lei 601/1850, que consagra em legislação específica, pela primeira vez, a propriedade privada de terras, regulamentando e consolidando o modelo de grande propriedade rural. Os resultados contemporâneos dessa herança jurídica, cultural e política são evidentes no país, no Nordeste e, em especial, na Paraíba: a questão social - via de regra - é tratada enquanto “caso de polícia” com o fim de proteger uma infinitésima parte do corpo social, notadamente se se leva em conta que, já no final da década passada, em nível nacional, propriedades rurais com mil ou mais hectares de dimensão representavam apenas 1,4% do total de propriedades. No entanto, esses donos de grandes propriedades detinham 49,4% das áreas rurais do país, ou seja, quase metade das terras nas mãos de pouco mais de 1% de proprietários (CARDIM, 2013). E essa problemática evidenciou-se claramente a partir da Constituição de 1988, na medida em que esta buscou equilibrar, em âmbito normativo, a tensão entre direito de propriedade privada da terra, momento estático, quando ela é regulada em lei em termos de pertença ao seu titular, ou seja, como um poder subjetivo (questão, como se verá adiante, tratada em: GRAU, 2001:248) com as exigências de sua função social, seu momento dinâmico, isto é, de uso, na qual que é regulada em razão do fim social a que se destina, ou seja, enquanto função (GRAU, 2001, p.249; GRAU, 2000, p.197). Com isso restaria compatibilizada a objeção de Duguit entre o que o mesmo tachava de “noção realista de função social” em dicotomia com uma possível “noção metafísica de direito subjetivo” (DUGUIT, 2006, p.17-38, 167-198). Essa questão é examinada, sob uma abordagem brasileira, dentre outros, em Jorge Couto (1998, p.192-193, 148

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 148

06/11/2016 13:25:04


219-226, 262-267, 284-285, 299-305), ao analisar o que chama de “a construção do Brasil” e também por Darcy Ribeiro (1995, p.149-153, 228-240, 241-244, 447-455), quando analisa a acumulação primitiva cuja base foi o massacre indígena, ao início da colonização; a opressão aos negros como mão-de-obra substituta dos índios e, por fim, o uso de imigrantes, os quais tomaram o lugar dos antigos escravos. A análise desses dados aponta para o conúbio entre o latifúndio - caracterizado por Kautsky (1968, p.172-178) pela centralização de grandes extensões de terra por um restrito número de proprietários – e as instituições do Estado com o fim de se manter uma ordem social fundada num suposto “direito implícito de ter e manter terras improdutivas” (RIBEIRO: 1995:201), evidenciando, ao mesmo tempo, “as dores do parto” e os “confrontos” para que se realize o que ele chama de “o destino nacional” (RIBEIRO, 1995:447-455). Diga-se, de logo, que há outras fontes referenciadas quando da contextualização desse conflito secular dado que o problema agrário não é apenas jurídico e sim histórico e social3. E é em consequência dele que, hoje, o que se tem, e desde a metade do final do século XIX, no Brasil, é uma agricultura capitalista num país que não fez, ainda, sua reforma agrária. No campo brasileiro, até por causa dessa conformação capitalista da atividade, já não se tem mais, a não ser residualmente, o pequeno camponês, isto é, aquele “que tem pequeno pedaço de terra ou a arrenda, não maior o do que o possível de cultivar 3  Ainda no ‘estado de arte’ dessa pesquisa é obrigatório serem mencionados: Caio Prado Jr (especialmente “A formação do Brasil contemporâneo”, 2011), Nelson Werneck Sodré (“A Formação histórica do Brasil”, 1968), Alberto Passos Guimarães (“Quatro séculos de latifúndio”, 1989), Moisés Vinhas (“Problemas agrário-camponeses do Brasil”, 1968) e Jacob Gorender (“O escravismo colonial”, 1976), para citar alguns dos principais. Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 149

149

06/11/2016 13:25:04


com sua família e o estritamente necessário para seu sustento” (ENGELS, 1997, p.137). Dessa não distribuição de terra, resultou um inchaço das cidades, com a formação de enorme exército industrial de reserva e mão-de-obra barata e uma política pública a ser feita, para reverter esse ciclo: garantir terra, crédito e estrutura aos trabalhadores rurais e camponeses, como modo, através da aplicação da função social da propriedade, de se criar um mercado interno dinâmico e não um país de esfomeados que drena significativa parte de sua produção da agricultura para o mercado externo (FREITAS, FEITOSA, 2012, p.303-304). Os antecedentes (massacre dos indígenas, regime de escravismo) e as consequências sociais dessa legislação, notadamente no trato da questão da terra com a violência típica dos landlords foram evidenciados pela literatura específica: no início do século, através de Euclides da Cunha (1982, p.161181); depois por Alberto Passos Guimarães (1968, p.21-40) e, mais recentemente, Darcy Ribeiro (1995, p.151, 201, 229, 242). Assim, o marco teórico resulta da opção em valorar a ideia de propriedade enquanto função ao invés daquela de direito subjetivo de propriedade, a qual descomprometeria o titular em relação à coletividade, ou seja, ainda que tenha “o poder de empregar a riqueza que possui na satisfação de suas necessidades individuais”, os demais atos, se não visarem à utilidade coletiva da propriedade imóvel “serão contrários ao direito de propriedade e poderão dar lugar a uma sanção ou a uma reparação” (DUGUIT, 2006, p.186). Direito e Ética entre descrição versus prescrição e olhar interno versus perspectivas externas Pelas razões que se procura examinar nesta secção as

150

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 150

06/11/2016 13:25:04


teorias descritivas do/sobre o direito que conseguem dar conta mais adequadamente da compreensão dos modos e métodos pelos quais as opções valorativas adentram nesse momento decisório na medida em que não se prendem nas ilusões do idealismo jurídico acerca de como o “bom” direito deveria ser, cingindo-se a um recorte operacional cujo foco seria o de examinar seu objeto como ele efetivamente é, procurando tão só melhor compreender e qualificar, fornecendo argumentos e dados, o papel e as funções dos seus diversos operadores, isso porque combina, acerca do direito, tanto uma perspectiva interna quanto a externa (aqui não no sentido que Hart confere a essa distinção em “O conceito de direito”, mas sim entendendo a perspectiva interna enquanto aquela que opera no âmbito mesmo da dogmática jurídica, não questionando seus alicerces e a perspectiva externa enquanto um olhar sociológico e no qual as características, pressupostos e constrangimentos dessa mesma atividade dogmática são questionados, situados historicamente e entendidos enquanto construções culturais cuja função é tão somente viabilizar o funcionamento social)4. A aceitação de um olhar ou perspectiva externa confere um potencial de se perceber o direito como atividade centralmente determinada por atos de interpretação e aplicação, na qual a atividade do legislador é um dado de entrada, como outro qualquer (embora hierarquizados). E tal é assim na medida em que o que confere sentido ao direito é a sua inserção enquanto cultura, isto é, como crenças acerca de como ele equilibra razão (expressada por certa justificação da atividade jurídica como dotada de per si de racionalidade) e manifestação da vontade (enquanto expressão geral da soberania popular) (KAHN, 2001, 4  Hart distingue uma perspectiva da outra com base na observação pela qual se deve diferir o fato de um grupo reconhecer determinadas regras e praticá-las (perspectiva interna) daquela outra situação (perspectiva externa) na qual um observador não as compreende, não as pratica e acha-as sem sentido (HART, 2005, p. 65). Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 151

151

06/11/2016 13:25:04


pp. 38, 52 e KAHN, 1992, p. 1-8). Como lembra Hart, acerca da perspectiva interna ao direito, “uma sociedade com direito abrange os que encaram as suas regras de um ponto de vista interno, como padrões aceites de comportamento” (HART, 2005, p.217-218) e não como predições fidedignas do que as autoridades lhes irão fazer, se as desobedecerem5. A primeira concepção deriva de uma perspectiva centrada na lei, a segunda, a da predição, numa outra perspectiva, focada na decisão. Assim, o que realmente os juristas fazem – e fizeram sempre – é, diante dos casos, decidir (se forem aptos a praticarem atos de vontade / poder) ou propor decisões, como faz o advogado que, através de interpretação enquanto ato de conhecimento, sugere aos juízes e tribunais o caminho a tomar, ou ainda, numa outra hipótese, através de sua atividade teórica, fornecem às partes e aos que decidem argumentos para aplicarem uma ou outra regra e decidirem um dado caso de uma ou outra forma. Por isso que, nesse terreno, deve-se ter o devido destaque, como dotado de maior instrumental quanto ao manejo da justificação como correlato da decisão, a combinação do foco teórico-metodológico proposto pelo realismo com uma análise marxista, isto é, histórico-dialética do direito enquanto parte da totalidade social e por ela condicionada, ao fornecer se não a resposta, mais uma referência para o exame dos problemas que aqui se constituem em objeto de pesquisa, como a seguir se passará a examinar. Por isso, aqui se trata de verificar a aplicabilidade do princípio da função social da propriedade, quando confrontado com a regra que protege o seu caráter privado e teoricamente unitário, ao invés de pluralista, bem como de que formas e 5  “The prophecies of what the courts will do in fact, and nothing more pretentious, are what I mean by the law” (HOLMES JR, 2009, p. 6).

152

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 152

06/11/2016 13:25:04


com base em que teorias da eticidade esses conflitos são examinados. Nesse aspecto, a influência doutrinária no judiciário é claramente delimitada em torno de uma matriz explicativa unitária para a questão da propriedade e na qual se reitera a existência de um disciplinamento comum e de caráter geral da propriedade, na qual se evidencia, por toda uma corrente, a influência de PERLINGIERI (1971, p. 59, 138, 150, 153), muito embora este autor não deixe de falar, em vários trechos de sua obra acerca do tema que “no âmbito de uma situação concreta, a noção de função social, desenvolve papel claramente jurídico e menos político, visto que a atividade proprietária seria valorada in concreto” (PERLINGIERI, 1971, p. 77). Ressalve-se que desde o início da reflexão aqui proposta, sobre o exame descritivo da atividade judicial ao exame do direito de propriedade 6, percebeu-se sua amplitude e que, em consequência, ela precisava se tornar mais restrita. Por isso, dentre a gama de direitos tidos como fundamentais e que servisse de teste para a hipótese de pesquisa se escolheu aqueles que confrontassem o direito individual à propriedade, sua necessária função social e como a ponderação de ambos é tratada na primeira instância e nos Tribunais Estaduais, em comparação com seu exame nas instâncias superiores do judiciário. Isso porque sendo o direito de propriedade uma manifestação material da vida social, acaba por se tornar uma temática crucial para a concepção de sociedade democrática que se defende e, ao mesmo tempo, fruto de acirrados debates 6  Reflexão esta cujos primórdios já se desenvolveram em livros do Grupo de Pesquisa do proponente, juntamente com o Grupo de Pesquisa “Realismo Jurídico e direitos humanos”, coordenado por Lorena Freitas, docente do quadro permanente do nosso programa de pós-graduação (FEITOSA; FREITAS, 2009 e 2012). Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 153

153

06/11/2016 13:25:04


no Judiciário. Não é a toa que já se assinalou que a propriedade pode ser estudada em dois aspectos: o estrutural e o funcional: A dogmática tradicional [...] preocupase somente com a estrutura do direito subjetivo, [...] dispõe sobre os poderes do titular do domínio, fixando o aspecto interno ou econômico [...] e outro, externo, o aspecto propriamente jurídico da estrutura da propriedade. O primeiro aspecto, interno ou econômico, é composto pelas faculdades de usar, fruir e dispor. O segundo, jurídico, traduz-se na faculdade de exclusão de ingerências alheias. Esses dois aspectos, o interno e o externo, compõem a estrutura da propriedade, em seu aspecto estático. Já o segundo aspecto, mais polêmico, é alvo de disputa ideológica, refere-se ao aspecto dinâmico da propriedade, a função que desempenha no mundo jurídico e econômico, a chamada função social da propriedade (1997, p. 311). Grifo nosso

Por isso, se trata de verificar com mais detalhes como cada um dos fundamentos e em que nível e grau, estão relacionados à visão de mundo dos decididores, por um viés pragmático que objetive, em seu final, fornecer um quadro teórico acerca de como essas decisões são tomadas e dos fatores que a orientam e, com isso, fornecer referências estratégicas para a orientação dos que atuam nessas lides. No âmbito específico dos problemas do direito de propriedade, notadamente no campo, há que se registrar a existência de um entendimento eminentemente privatista de tal instituto e que desconsidera sua interpretação à luz da Constituição (FEITOSA, FREITAS, 2012, p. 303-330). Assim, além de verificar o conteúdo das interpretações 154

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 154

06/11/2016 13:25:04


por parte dos tribunais, aqui se faz necessário se examinar as justificações que os tribunais se valem quando da interpretação e aplicação concreta da regra. Em resumo, se trata de verificar como os juízes pensam esse direito fundamental e os aplicam quando há conflito entre direitos, quais as formas de argumentação utilizadas, como isso pode ser analisado do ponto de vista de uma interpretação voltada a garantir a efetividade dos direitos sociais e da função social da propriedade como direito fundamental. Pretende-se, com essa estratégia de análise, mostrar as bases teóricas segundo as quais se concretizam as regras que equilibram direito de propriedade e função social. Entretanto, acerca dessa concretização - e no que concerne a propriedade privada de terras – não basta a prova de regularidade formal de seu título aquisitivo “para que a Administração se sinta impedida de investigar a adequação do exercício desse direito”(ALFONSIN, 2000, p. 205). Note-se ainda, conforme assinalado por Edson Fachin, que “inexistindo garantia constitucional àquela propriedade que descumpre sua função social será razoável concluir que o alcance dessa expressão não admite interpretação ou aplicação de uma regra inferior que contrarie o seu sentido”, isto é, o sentido da norma superior, em razão de que, “em cada época, a propriedade constituiu-se de contornos diversos, conforme as relações econômicas e sociais de cada momento” (FACHIN, 2000, p. 284-285 e 1988, p. 18). A Ética Prática e o exame de uma situação concreta: justificação jurídica e realidade empírica Em 2010, o número de famílias envolvidas em conflitos de terra era de 1.276 famílias, o que significa que o número de conflitos dobrou num curto espaço de tempo.

Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 155

155

06/11/2016 13:25:04


Em 2009, a Paraíba ficou entre os quatros estados brasileiros em que o número de acampados mais cresceu, atrás apenas de São Paulo, Goiás e Pará. Note-se que em 2012, o número cresceu em valores absolutos e relativos, na Paraíba (3.165 conflitos) e no Brasil (cujo total de conflitos foi de 92.113), entendendo-se por “conflito por terra” a ocorrência de despejo e expulsões, as ameaças de realizar esses, os atos de pistolagem, os acampamentos e as ocupações (COMISSÃO, 2012, p. 88) 7. Relatório da Comissão Pastoral da Terra – Nordeste II, órgão vinculado à CNBB, dá conta da ocorrência de sete grandes conflitos por terra envolvendo 2.435 famílias, cinco ocupações envolvendo 630 famílias e a existência de um acampamento com 100 famílias. Ou seja, um total de 13 conflitos (média de 1 por mês!) e 3.165 famílias envolvidas, só no ano de 2012, na Paraíba. Assim, a importância de tal abordagem, para além da gravidade do histórico problema da ocupação e uso da terra, em nosso país, reside também na necessidade, nesse caso, de se conhecer com mais clareza os valores hegemônicos na magistratura a respeito de um tema tão premente, com densa repercussão social e, no próprio direito, em sua prática, em seu ensino e na construção de uma cultura jurídica de viés democrático, na medida em que nos parece curial que não há democracia plena sem resolução da questão agrária, o que implica em tratar da questão – há que se insistir - sob o foco da interpretação do direito de propriedade, em nosso ordenamento jurídico, enquanto condicionado por sua função social (CF 88, art. 5º, XXIII; art. 170, III; arts. 184 a 186; Lei 4504/1964, arts. 2°, 12, 13 e 47 e Lei 8629/93), seu comprometimento ambiental e com a dignidade de seu uso e do trabalho ali exercido, enfim, 7  Especialmente a tabela 4. Para uma análise dos dados históricos acerca da questão, ver: STÉDILE, 2002, p. 103-128.

156

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 156

06/11/2016 13:25:04


como direito fundamental que só adquire sentido se tratrado enquanto feixe de atribuições cujo cumprimento é quem confere sentido a sua existência e não com o viés privatista, incondicionado e erga omnes, que lhes quer atribuir alguns. Como aponta Mário Losano, referindo-se a Constituição: [o artigo 186] é de uma importância fundamental na medida em que fixa os critérios com base nos quais se decide se uma propriedade fundiária cumpre ou não sua função social. Deve-se assinalar que estes critérios são os fundamentos de qualquer ação e devem ser respeitados todos ao mesmo tempo.

Decorre, por essa razão, a necessidade de não se subestimar a reflexão jus-filosófica, pelo viés da prática, em torno dos conflitos entre direito de propriedade e a necessária função social da mesma e nos quais as partes envolvidas sempre reivindicam, quer para um, quer para outro ponto de vista e interesse envolvido, ou o caráter fundamental do direito de propriedade privada (que, diga-se, é pressuposto da própria função social, visto que não haveria de se falar em necessária “função social da propriedade” sem que, previamente, se garantisse o direito de propriedade privada) ou a sua desapropriação em razão de – no segundo ponto de vista, sua função social ter sido violada. Daí a relevância de se de evitar, como ocorre, em geral, na manualística, a mera descrição genérica sobre o direito de propriedade como algo sagrado e intocável, quase que uma expressão máxima dos direitos. A opção por essa abordagem metodológica está ligada à ideia de que o Direito deve ser apreendido na realidade. E essa é a realidade, é a vida social e, com isso, não se descure do Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 157

157

06/11/2016 13:25:04


papel estratégico da filosofia do/sobre o direito em oferecer argumentos dado à relevância desse campo enquanto lugar privilegiado de reflexão sobre aquela atividade. Dessa forma, não cabe a sociedade procurar os valores de do direito em conceitos abstratos, mas sim, na gênese do próprio conflito. Seguindo essa linha, trata-se de indagar o objeto, isto é, de pensar a forma jurídica por uma via metodológica de matriz realista aplicável ao conjunto de questões que envolvem o direito à propriedade em choque com sua função social, eixo basilar de nosso ordenamento e sem o qual a proteção jurídica ao seu exercício privado perde inteligibilidade. Por fim, é de se frisar, ainda que incidentalmente, que cabe ao direito, na atualidade brasileira, um papel importante na busca de solução para os graves impasses no aprofundamento da democracia, que não pode se contentar com promessas formais de promoção do desenvolvimento regional e nacional. A questão da terra é carente, ainda, de solução social, política e jurídica e – portanto – trata-se de apontar essas demandas jurídicas e forjar conhecimentos específicos para a sua adequada resolução, medidas que garantam crescimento econômico com desenvolvimento humano. É este o papel de uma filosofia do direito comprometida com o mundo da vida: de efetiva intervenção para a invenção de processos de inserção social no país e tal não se faz sem a compreensão do trato a um problema crucial que é a questão, no campo, da tensão entre direito de propriedade e a finalidade social que ela deve ter - algo que os tribunais ainda lidam sob uma ótica privatista e cuja solução teórica aponta bem mais na direção da teoria e da filosofia do direito. Nesse contexto, é de pouca utilidade um direito que somente se preocupa com o estudo da natureza jurídica dos institutos tradicionais.

158

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 158

06/11/2016 13:25:04


À guisa de conclusão: conflitos sociais e regulação jurídica: entre o determinante e determinado Para o trato das questões humanas e sociais, importam as contribuições de uma teorização de viés social acerca dos direitos fundamentais, entre eles, o direito à terra e ao trabalho. Assim, a iniciativa de fomentar o debate proposto no presente artigo dá-se no conjunto da necessidade de interlocução dos vários tipos de conhecimento para que se consiga uma comprensão real e aprofundada da questão, seguramente uma das mais importantes agendas para a erradicação da miséria, como se pretende / propala, para os próximos anos na medida em que a reflexão cosntruída por vias isoladas e estanques entre sí, típico de uma concepção filosófica jus-idealista e que concebe o direito com espécie de deus ex machina não consegue enfrentar eficazmente esse que é um dos problemas mais complexos da realidade brasileira. Isso porque a especialização e complexidade das demandas e dos conflitos sociais, tem exigido de todos que pensam o direito um grau de interlocução com outros dados da realidade. E isso decorre, entre outros fatores da quase completa carência, como já se mencionou anteriormente, de uma visão realista /materialista no estudo das questões e de um ensimesmamento dos juristas com sua própria atividade, como se ela fosse absoluta e conteudisticamente (e não apenas metodologicamente) autorreferente. Essa visão formal e isolacionista retira dos juristas uma percepção historicamente situada dos fatos, principalmente aqueles meandros concernentes ao enfrentamento político das questões de conflitos entre dois direitos quando estes são mutuamente excludentes ou mesmo, no caso do direito de propriedade de terras versus sua função social, que convivem num ordenamento único, a segunda pressupondo a primeira, a

Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 159

159

06/11/2016 13:25:04


sua visão privatista sendo considerada prevalente, em choque a um só tempo com o texto normativo, com a realidade dos fatos e com o sentido e alcance que o legislador contituinte, de forma evidente, impôs no texto. A reflexão acerca da questão agrária, no momento em que o país se ufana pela situação de estar entre as dez maiores potências do mundo, visa contribuir em promover uma nova tomada de posição diante do problema, sem negligenciar o aspecto do desenvolvimento humano. Assim, há que se enfrentar, sob a égide das novas demandas sociais do século XXI, as políticas sociais (ou a ausência delas) e o novo papel do Estado brasileiro notadamente naquilo que concerne a questão da agricultura familiar, especialmente os aspectos jurídicos envolvidos nos projetos agrários existentes para a região nordeste e os reflexos humanos e sociais da exploração do trabalhador rural e do não cumprimento da função social da propriedade, o que demanda uma abordagem ancorada na análise de temas como exclusão social, desenvolvimento humano, valores democráticos e cidadania e o papel que a reforma agrária cumpre nas suas promoções, notadamente para os trabalhadores e trabalhadoras rurais e a necessidade de se encontrar novas formas de regulação de conflitos, bem como a otimização dos instrumentos de defesa dos valores não enquanto tais mas porque constitucionalmente expressos. Referências BENTON, Ted (edited by). The greening of marxism. New York: Guilford press, 1996. CARDIM, Silvia; VIEIRA, Paulo de Tarso; Viegas, José. Análise da estrutura fundiária brasileira. In: Boletim interno do Ministério de Desenvolvimento Agrário / INCRA.Texto disponível em: 160

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 160

06/11/2016 13:25:05


http://www.mda.gov.br/portal/nead/arquivos/view/textosdigitais/Artigo/arquivo_95.pdf. Acesso: 1.12.2010. COMISSÃO PASTORAL DA TERRA / CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Conflitos no campo: Brasil 2012. Goiânia: CDTB, 2012. Disponível em: http://www.cptne2.org.br/index. php/component/jdownloads/finish/4-caderno-conflitos/195conflitos-no-campo-brasil-2012.html?Itemid=19 Acesso em 05.05.2013. COUTO, Jorge. A construção do Brasil. Lisboa: Cosmos, 1998. CUNHA, Euclides da. Os sertões: campanha de Canudos. São Paulo: Abril, 1982. DUARTE, Rodrigo. Marx e a natureza em ‘O capital’. São Paulo: Loyola, 1995. DUGUIT, Léon. Las transformaciones generales del derecho privado desde el código de de Napoleón. Pamplona: Analecta, 2006. ENGELS, Friedrich. O problema camponês na França e na Alemanha. In: Marx & Engels – Obras. (1º v.) São Paulo: Edições Sociais, 1997. _____. A MARCA [1882]. In: Crítica marxista, nº 17. Rio de Janeiro: Revan, 2004. FACHIN, Luiz Edson. A justiça dos conflitos no Brasil. In: STROZAKE, Juvelino José (Org.). A Questão Agrária e a Justiça. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000. FEITOSA. Enoque. Direito e humanismo nas obras de Marx no período de 1839-1845. Dissertação de Mestrado. Recife: UFPE, 2004. ________. O discurso jurídico como justificação: Uma análise marxista do direito a partir da relação entre verdade e

Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 161

161

06/11/2016 13:25:05


interpretação. Recife: EDUFPE, 2009. FEITOSA, Enoque. Bobbio e a crítica de Marx aos direitos humanos: o que e quais são os direitos humanos? In: Norberto Bobbio: Democracia, direitos humanos, paz e guerra. João Pessoa: EDUFPB, 2011. FREITAS, Lorena (et alli, orgs.). Direitos humanos e justiça social. João Pessoa: UFPB, 2012. FREITAS, Lorena. Além da toga: uma pesquisa empírica sobre ideologia e direito. Recife: Bagaço, 2009. ______. As ilusões referenciais do juspositivismo e do jusnaturalismo. In: A filosofia e o trágico. Recife: EDUFPE, 2010. _____; FEITOSA, Enoque. Marxismo, realismo e direitos humanos. João Pessoa: UFPB, 2012. GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. São Paulo: Ática, 1976. GUIMARÃES, Alberto Passos. Quatro séculos de latifúndio [1968]. São Paulo: Paz e Terra, 1968. KAUTSKY, Karl. A questão agrária. São Paulo: Laemmert, 1968. LOSANO, Mario. Función social de la propriedade y latifundios ocupados: los sin terra de Brasil. Madrid: Dykinson, 2006. MARX, Karl. Selected writings in sociology & social philosophy (Edited by Tom Bottomore and Maximilien Rubel). London: MacGraw-Hill, 1964. _____. Formações econômicas pré-capitalistas. São Paulo: Paz e Terra, 1975. _____. “Crítica ao Programa de Gotha”. In: MARX, Karl; ENGELS, 162

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 162

06/11/2016 13:25:05


Friedrich. Textos. V.1. São Paulo: Edições Sociais, 1977. _____. O capital: crítica da economia política (volume 3, 2º tomo). São Paulo: Abril, 1983. ­­­ ______. La ley sobre los robos de leña. In: Escritos de juventud. México: Fondo de Cultura, 1987. ______.; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã: teses sobre Feuerbach. São Paulo: Centauro, 2005. NABUCO, Joaquim. Campanha abolicionista no Recife: eleições de 1884. Brasília: Edições do Senado Federal, volume 59, 2005. PRADO JUNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo: colônia [1942]. São Paulo: Companhia de Letras, 2011. RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia de Letras, 1995. SCHMIDT, Alfred. El concepto de naturaleza en Marx. Madrid: Siglo XXI, 1976. SODRÉ, Nelson Werneck. Formação histórica do Brasil [1962]. São Paulo: Brasiliense, 1968. STÉDILE, João Pedro. Landless battalions: The ‘sem-terra’ Movement of Brazil. In: New left review. Nº 15, may-june 2002. VINHAS, Moisés. Problemas agrário-camponeses do Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. VVAA. COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Conflitos no campo: Brasil 2010. Disponível em: http://www.cptpe.org.br/index.php/ downloads/viewdownload/4/190.html. Acesso em 05.01.2011.

Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 163

163

06/11/2016 13:25:05


Direitos humanos e filosofia: integração e diálogo intercultural Enoque Feitosa Também o leão deverá ter quem conte a sua história. Não só o caçador (ACHEBE In GENTILI, 1999, p. 7)1.

Introdução Este trabalho é fruto de uma experiência de intercâmbio entre as culturas jurídicas brasileiras e moçambicanas. Três pressupostos orientam a tese especifica aqui defendida e estão conectados na medida em que procuram tratar de questões correlatas entre si: o primeiro deles é que os atuais processos de integração e complementaridade econômica em vigor no mundo, embora não recentes e dirigidos para o aprofundamento e não para a eliminação de desigualdades, têm chamado nossa atenção na medida do que significam em termos de trocas de experiências entre contextos sociais que, embora de uma raiz social comum, portuguesa, tiveram interações distintas, as quais moldaram diversamente cada uma das culturas jurídicas; o segundo busca apontar para os esforços de integração horizontal, por exemplo, entre nosso país e países latinos 1  No livro “O leão e o caçador: uma história da África subsaariana dos séculos XIX e XX”, a pesquisadora Ana Gentili menciona Chinua Achebe, famoso escritor nigeriano. Ela recorda-nos, com essa sugestiva metáfora, que “a história da África subsaariana foi quase sempre interpretada a partir dos feitos da penetração, da conquista e das exigências colonizadoras das colonizadoras das potências européias”. O contexto da citação se coaduna com as funções de controle e dominação que a cultura jurídica do colonizador cumpriu naquela região. Como temos defendido em outros trabalhos, o direito das potências imperiais se tornou instrumento da dominação e da institucionalização “por cima” do controle social (Ver: FEITOSA, 2008, passim).

164

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 164

06/11/2016 13:25:05


(MERCOSUL), países emergentes (BRICS) e a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, cuja expressão acadêmica é a AULP – Associação das Universidades de Língua Portuguesa; por fim, o terceiro pressuposto trata de ter em conta como se dá a consolidação dessa integração, na forma de criação de redes que impliquem não apenas em troca de experiências, mas que também permita a circulação de idéias, sem pretensões hegemônicas. O direito é examinado nas duas culturas sócio-jurídicas enquanto discurso de justificação, com o que se permite entender o uso que dele se faz como instrumento de solução de conflitos e de convencimento social acerca dessas mesmas soluções, o que proporciona uma realista e intercultural da atividade judicial, acentuando sua compreensão enquanto fenômeno social no qual não se pode relevar sua imbricação com a política, o que permite o aprofundamento dos elementos ideológicos contidos no próprio discurso dogmático que, mesmo cumprindo na sociedade humana um papel civilizatório, não tem porque nublar os elementos não neutros e de controle social nele embutidos. Por fim, restaria incompleto o entendimento do direito se ele não é visto enquanto exercício de interlocução entre diversos atores sociais. Com isso, é preciso que se diga que, mesmo de forma incidental, este trabalho procura atingir uma questão polêmica entre os juristas dos dois países, notadamente aqueles que cuidam da reprodução deste saber, isto é, aqueles que ensinam: para o direito atingir plenamente sua funcionalidade é necessário que reflita as necessidades de cada cultura específica, o que aponta para a necessidade de um diálogo intercultural. Ética prática, direitos humanos e integração O sentido de integração que aqui se pretende discutir Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 165

165

06/11/2016 13:25:05


pode se viabilizar a partir de uma filosofia dos direitos humanos sem pretensão hegemônica e que busque estabelecer esses diálogos entre a realidade e a experiência brasileiras e moçambicanas no que concerne a construção de democracias substantivas, algo possível num ambiente dialógico e que tenha como perspectiva a concretização dos direitos humanos não só enquanto garantias formais, mas enquanto conjunto de políticas que podem contribuir na melhoria da realidade das pessoas, bem como afastado de pretensões prescritivas, preocupando-se com um foco realista de examinar o direito que se tem em cada sociedade e não querer ensinar as outras culturas e vivências como o seu direito “deveria ser”. Assim, se examina discursivamente o direito, num dos sentidos propostos em Ballweg, isto é, como parte das atividades sociais persuasivas com as quais preenchemos as funções básicas da vida em comum – voltada para o ensino e a reprodução dos meios de persuasão, isto é, como atividade prática (BALLWEG, 1991, p. 176-177). Com isso, não é minimamente necessário para que se examine o direito enquanto forma que cada cultura constrói, que também se assimile todo aquele compêndio de ilusões que caracterizam o “senso comum teórico dos juristas” (WARAT, 1994, p. 13)2 visto que a fixação de determinadas crenças não têm o condão de dar mais eficácia nas formas e meios de se utilizar o objeto. Ao contrário: compreender o direito, seus objetivos e finalidades enquanto tecnologia de solução de conflitos ao despir o jurista prático das chamadas ilusões referenciais permite que ele aperfeiçoe sua ferramenta de trabalho em atendimento as 2  A expressão em aspas foi proposta por Warat no sentido de “que se possa contar com um conceito operacional que sirva para mencionar a dimensão ideológica das verdades jurídicas”.

166

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 166

06/11/2016 13:25:05


especificidades sócio-históricas do agrupamento no qual vive e atua. Claro que tal opção de encarar o direito – enquanto fenômeno contextual - deixa o jurista sem a segurança das crenças pré-estabelecidas, mas, por outro lado, permite-lhe se apossar do “ceticismo esclarecido” (HOLMES, 1970, p. 196), colocando no próprio indivíduo a responsabilidade das escolhas que faz acerca de como dotar de maior eficácia a ferramenta social que tem diante de si. Ao mesmo tempo, uma visão crítica do direito serve para prevenir contra a onipotência que leva o jurista a seguir sentindose ou Atlas ou Hércules - com a dura opção de, ou carregar o mundo nos ombros ou de realizar tarefas inimagináveis - e adotar uma atitude mais tranquila, porque centrada em seus limites, de ser um operador do direito voltado a descobrir, muitas vezes por meios tortuosos, os caminhos3 que o leva à decisão que resolva o problema da forma mais eficaz, operativa e socialmente útil que for possível. Embora se reconheça um objetivo prático de se buscar a persuasão nas lides jurídicas, tais questões necessitam, de forma premente, de serem socialmente justificadas no interior de cada cultura jurídica específica. Assim, as formas de persuasão que cada grupo social acata não seriam mais do que meios de realizar o intento da justificação, na medida em que seria pouco provável que quem quer que seja tivesse êxito numa demanda, se acerca dela não conseguisse oferecer boas razões. 3  A metáfora acerca das opções dos operadores do direito em ser Atlas, Hércules ou Hermes, figuras da mitologia grega que, na fantasia humana acerca da criação do mundo, cumpriram diversos papéis, é abordada, com pequenas diferenças da que aqui se faz, ao preferir-se a figura de Atlas, ao invés de Júpiter, em: OST, 1993, p. 169-194. Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 167

167

06/11/2016 13:25:05


Entender o direito como discurso social de justificação – similarmente a moral social, mas dela diferindo dado o elemento da possibilidade de uso de coação legal - implica em notar que a noção essencial aqui contida é de que se deve sempre oferecer boas razões, ainda que em contextos sócio-jurídicos diversos, para justificar aquilo que se pleiteia4. Daí decorre a importância da argumentação, se valendo tanto dos apelos à razão (o logos), quanto dos sentimentos e afetos (o pathos) e mesmo do caráter daquele que pleiteia, o orador, através de seu ethos. Isso porque - como os realistas apontam - e independente de nossas valorações acerca disso, o direito acaba sendo, em última análise, o que juízes e tribunais assim definem enquanto tal, de forma que as instâncias de persuasão social acabam por serem fundamentais, no sentido de em que direção caminhará a atividade decisória. Cultura dialógica e interpretação Assim, se pretende examinar e avançar na consolidação do diálogo no sentido de troca de experiências com uma realidade com a qual o Brasil pouco interage qual seja a dos povos do continente africano, que junto com a América Latina devem se constituir em campo privilegiado de diálogo e intercâmbio não apenas econômico, mas também acadêmico. Trata-se, pois, de refletir nessa secção os motivos pelos quais a interpretação cumpre, na experiência de cada cultura mencionada, menos um papel de descobrir sentido ou alcance da norma, intenção do texto ou do legislador e muito mais um papel de justificação do direito e do poder que lhe é consectário. E desde logo se atente para o objetivo em que será trabalhada, nesta secção, a afirmação de que a interpretação 4  É o caso de: MACCORMICK, 2006, p. 19-23.

168

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 168

06/11/2016 13:25:05


cumpre um papel de justificação. Ela é trabalhada no sentido de fundamentação política do direito, mas também no que lhe atribui Wróblewski ao tratar da oposição entre a justificação ou fundamentação interna e a sua justificação externa, onde a primeira se refere à validade de uma inferência a partir de premissas dadas e a segunda a que põe a prova o caráter menos ou mais fundamentado dessas mesmas premissas. A primeira seria mera questão dedutiva e a segunda vai além, na medida em que argumentar no interior da forma jurídica exige a observação de certos padrões de justificação (WRÓBLEWSKI, 1985, p. 57-68) 5. Dessa forma, em toda ocasião em que for chamado a discutir os problemas que envolvam interesses materiais (e esses são a base fundamental do direito em qualquer cultura jurídica), compete ao jurista combinar o exame adequado da forma jurídica com sua justificação interna. Isso porque o direito pode ser comparado ao mito de Janus, divindade Greco-romana, cuja face bifronte que olha em direções opostas, remete à descoberta dos acessos e saídas,6 o que também pode se apresentar ligado a uma espécie de “mitologia da verdade” visto que Janus representava a divindade dos portões e portas. Tal faz sentido na medida em que a religião, com seu apego ao rito, e o mito, como forma criada pelo imaginário social para tentar explicar o desconhecido, não podem ser 5  No mesmo texto WRÓBLEVSKI reflete sobre tais questões abordando-as mediante três categorizações: a) Teoria descritiva da interpretação legal, b) Teoria normativa [prescritiva] da interpretação legal e, c) ideologia da interpretação legal. Ver obra mencionada, no capítulo “Teoría e ideología de la interpretación”. 6  A raiz do nome é usada, por exemplo, como radical da palavra

“Janeiro”, o mês que “olha” para os dois anos, o que passou e o novo ano (GRIMAL, 1982, p. 115, 118). Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 169

169

06/11/2016 13:25:05


subestimadas em suas influências no direito. Mito e crença são ingredientes fundamentais para a compreensão dessa atividade social que é o direito. Para um exame filosófico, não eurocêntrico e não-prescritivo das culturas jurídicas periféricas A consolidação dessa integração, no que concerne ao campo acadêmico passa, por isso mesmo – para além da consolidação de uma concepção realista e, portanto, não-prescritiva do direito, visto que se pretende um diálogo intercultural e não um transplante de uma cultura jurídica em outra realidade social - pela formação de redes que impliquem não apenas em troca de experiências, mas que também permitam atividades de intercâmbio de idéias, diálogo entre as fontes, dentre tantas e várias formas, através de mobilidade de ambos, produção acadêmica e circulação jurídica, sem pretensões hegemônicas, mas fundamentalmente visando aumentar a aproximação entre o Brasil e uma das importantes vertentes que constituíram o povo brasileiro, o qual – no que concerne aos afro-descendentes – derivou de três grandes grupos: a) os sudaneses, b) os que representavam culturas islâmicas e c) os provenientes da área que hoje corresponde a Angola e os da chamada contra costa, que corresponde ao atual território moçambicano. Note-se que essa aproximação tem um caráter sóciohistórico acentuado e joga na direção de, em ambos os países, combater a exclusão, estimulando a inclusão e a cidadania. Hoje, se trata de aprofundar novas formas de cooperação. Isso por que ainda se afirmando – como se defende nesse artigo, que direito seja - e efetivamente é - poder e dominação, ele também pode evitar o arbítrio e o abuso na medida em que para além do poder ele também se constitui enquanto campo discursivo que argumenta em torno de fatos, mas lida com relatos e no qual a verdade é o que as decisões de juízes e 170

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 170

06/11/2016 13:25:05


tribunais reconhecem como tal. Ora, para enfrentar, nas duas culturas em diálogo (ou em quaisquer outras) a questão do direito como discurso de justificação, os pressupostos dos quais se partiu para construção deste artigo giraram em torno da questão de tomar o uso do direito como instrumento de solução de conflitos e de convencimento social acerca dessas soluções na medida em que o direito é uma “linguagem social”. Além disso, a compreensão do direito só se viabiliza enquanto fenômeno social. É pela sua inserção como fato também político que se um aprofundamento dos elementos ideológicos contidos no próprio discurso dogmático que, apesar de seu papel civilizatório, não tem porque desconsiderar esses elementos ideológicos. Por fim, as relações o entendimento do direito enquanto exercício de interlocução entre diversos atores sociais confere centralidade aos problemas de se deter principalmente nas formas como o direito se apresenta em cada formação social em exame, dado que as mesmas são complementares e não antagônicas entre si, conforme é o entendimento que se defendeu ao longo do texto. No exame das duas realidades sociais, com seus rebatimentos jurídicos, éticos e filosóficos, a opção em focar o direito enquanto campo voltado à dominação e ao exercício do poder7, que legitima não dispensa e nem põe em segundo plano o caráter eminentemente democrático da atividade; 7  Com menciona Eduardo Mondlane - moçambicano que se doutorou em Sociologia nos Estados Unidos, onde se tornou alto funcionário da “Divisão de Territórios Sobre Administração da ONU” e que posteriormente fundou e foi primeiro presidente da FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique) – lembrando um dito popular de seu país: “Quando os brancos chegaram a nosso país, nós tínhamos a terra e eles a bíblia, agora nós temos a bíblia e eles a terra” (MONDLANE, 1995, p. 31). Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 171

171

06/11/2016 13:25:05


ao contrário, o âmbito jurídico se efetiva inclusive no ato de aplicação da norma, o que demanda como é óbvio, atos fundamentados de interpretação. Por isso mesmo é prudente assinalar que beira à ingenuidade a crença pela qual tal atividade envolve, de forma calculadamente planejada, uma estratégia de dominação, como se os juristas fossem meros propagandistas do poder material e de seu elemento formal de controle, o direito. O fenômeno é mais complexo: os juízes agem e decidem conforme determinadas crenças e valores – que geralmente se manifestam no discurso jurídico através de termos vagos tais como justiça e direito, isto é, conforme ideologia, mesmo que disso não tenham plena consciência. Claro que faz parte desse arsenal de crenças justificadoras do direito a afirmação que juízes e tribunais decidem a partir da regra e do caso concreto que lhes cabem apreciar. Mas o processo pelo qual qualquer ser humano usa a razão prática, mostra que entre prováveis decisões a tomar, seleciona-se uma delas dentre variados processos de ponderação que começam pelas hipóteses iniciais de decisão. O que ocorre é que, por imposição do direito moderno, juízes apresentam – em qualquer ordem jurídica - suas decisões de forma dedutiva: da norma abstrata à regra concreta (a decisão), mas o processo ocorre, de fato, exatamente pelo caminho inverso, o que torna a decisão muito próxima de um contexto de descoberta e a sua apresentação de um contexto de justificação. Por isso é que esse mesmo discurso jurídico cumpre função importante na formação de um modelo de justificação das decisões, dado o constrangimento legal de fundamentálas. Dessa forma é que se torna possível não só reconstruir a

172

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 172

06/11/2016 13:25:05


formação do raciocínio e das decisões como fazer uma crítica eficaz à objeção segundo a qual seu processo de formação é inteiramente irracional e sujeito tão somente ao arbítrio dos juízes. Para o direito, portanto, se trata de produzir decisões que façam fazer sentido em termos práticos e que funcionem para os jurisdicionados, bem como para juristas, como possibilidades de traçar previsões, ou, como preferia Holmes, profecias acerca daquilo que juízes e tribunais farão nos casos sob sua apreciação. O ponto crucial é que tal entendimento não se antepõe, ao contrário, coaduna-se com uma atividade que é dialógica, cultural, social e interpretativa e – por isso mesmo - em tudo e por tudo, fundamental para o próprio direito, enquanto essa forma parcial de convivência humana for necessária. Considerações Finais Por fim, é oportuno, a partir de agora, procurar sintetizar os desdobramentos do que foi, até aqui, desenvolvido, neste trabalho, o que conduz à formulação das seguintes conclusões específicas: A primeira visou expor que o discurso jurídico atua socialmente – em qualquer ordem jurídica - como justificação, não apenas do poder estatal, mas daquilo que se poderia chamar de um “funcionamento ótimo” das decisões judiciais como expressão de valores abstratos tais quais justiça e correção e não como a exata expressão do domínio da competência da verdade de quem decide e da interpretação que este constrói da norma. Como temos testado no desenvolvimento das experiências proporcionadas pelo projeto de um diálogo jus-filosófico entre Brasil e Moçambique, essa peculiaridade permeia todos os debates que demandavam o uso do raciocínio judicial, cujo ponto central consiste em não subestimar a necessidade de argumentar também a partir das categorias jurídicas. Dessa Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 173

173

06/11/2016 13:25:05


forma, a busca, nas teorias mais tradicionais de direito, em atribuir-lhe uma suposta neutralidade e de considerá-lo em separado do Estado é o contraponto desta primeira conclusão. A segunda traz subjacente a reflexão pragmática pela qual sendo a atividade jurídica um campo de experimento dos efeitos práticos que uma determinada decisão implica, tal concepção coaduna-se com uma atitude ceticamente esclarecida em relação ao direito que, além de questioná-lo em seus fundamentos, examina-o em suas manifestações, isto é pelo viés de suas consequências no mundo concreto. Por isso que chama atenção o fato de que no curso da evolução social dos dois países, o âmbito jurídico de cada um acabou por desenvolver uma legislação extensa que, de forma aparentemente independente, extrai sua justificação da própria existência e que fundamenta sua evolução, não das condições concretas, mas de si mesma. Assim, se abstrai que o direito tem por origem as condições de vida e que foi o desenvolvimento da legislação como um conjunto complexo que acarretou uma nova divisão do trabalho social com a formação de uma casta de juristas profissionais e, com eles, a ciência do direito que constrói suas próprias regras de verificação de seus critérios. Assim, para os propósitos deste artigo, o que importou foi verificar se o exame das duas ordens jurídicas poderia se explicar por uma visão realista do direito, pelo que se tornou secundário abordar outras compatibilidades entre ambas. A terceira, que atuou em reforço do argumento acima mencionado, pretendeu mostrar como a justificação no direito se expressa através do caráter instrumental da forma jurídica e no âmbito do que dizem juízes e tribunais, com o que – nas duas ordens jurídicas - a aplicação de uma regra de direito a

174

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 174

06/11/2016 13:25:05


um caso particular é na realidade uma confrontação de direitos antagonistas entre os quais o Tribunal deve escolher um. Se alegado que tal posição tornaria a atividade jurídica irracional, necessário se faz notar - e esta é a quarta conclusão – que a racionalidade do direito é constituída no interior do debate jurídico. Logo, não é algo prévio, que o antecede e lhe confere fundamento, sendo, portanto racional aquilo que a comunidade e os seus agentes encarregados de dirimir os conflitos jurídicos assim interpretarem e decidirem, o que, como já se viu na terceira conclusão, logo acima, trata-se muito antes de ser uma disputa teórica, de um problema de fato. Referências FEITOSA, Enoque. O discurso jurídico como justificação: uma análise marxista do direito a partir das relações entre verdade e interpretação. Recife: EDUFPE, 2008. GENTILI, Anna Maria. O leão e o caçador: uma história da África subsaariana dos séculos XIX e XX. Maputo (Moçambique): Arquivo Histórico, 1999 HOLMES Jr., Oliver W. Collected legal papers. New York: Harper, 1970. MACCORMICK, Neil. Argumentação jurídica e teoria do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2006. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Cartas filosóficas. México: Grijalbo, s / d. MONDLANE, Eduardo. Lutar por Moçambique. (Moçambique): Centro de Estudos Africanos, 1995

Maputo

OST, François. Júpiter, Hércules, Hermes: tres modelos de juez. In: Doxa – Cuadernos de filosofía del derecho. Alicante: UA, 1993.

Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 175

175

06/11/2016 13:25:05


WARAT, Luis Alberto. Introdução geral ao direito (volume 1). Porto Alegre: SAF, 1994. WRÓBLEWSKI, Jerzy. Constitución y teoría general de la interpretación jurídica. Madrid: Civitas, 1985.

176

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 176

06/11/2016 13:25:05


Alteridade Ecosófica e Cidadania Sul-Americana: Fundamentos para uma Ética da Vida Neuro José Zambam Sérgio Ricardo Fernandes de Aquino Introdução Este artigo tem o objetivo de apresentar o Tratado da União de Nações Sul-Americanas - UNASUL – como uma alternativa política e sustentável para a organização das nações latinoamericanas a partir da cidadania compartilhada. Sabendo das diferenças que caracterizam o continente, especificamente, a tradição e formação cultural e, com igual evidência, as desigualdades gritantes que assolam a maioria da população. É necessário a proposição de um modelo de planejamento e atuação de forma integrada e com perspectiva de entendimento e efetivação de longo prazo que alcancem além das fronteiras territoriais. Esse contexto demanda um modelo de organização, desenvolvimento e relações entre os povos que abarque além dos seres humanos, a relação com os recursos naturais e ambientais, o direito dos animas, o direito das culturas e as futuras gerações orientadas pela sustentabilidade. A Natureza, especificamente, precisa ser reconhecida como sujeito a ser respeitado pelas suas próprias características. Nota-se que se interpõem um novo contexto e outra dinâmica, menos antropocêntrica, e mais integrada e interdependente. Num cenário com essa característica operase uma transformação na dinâmica da ação política, do direito e das relações interpessoais e dos povos. A Alteridade Ecosófica é a [nova] matriz que orienta, ou Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 177

177

06/11/2016 13:25:05


seja, é um exercício necessário para além das capacidades e proposições dos homens, em vista de estabelecer as condições para uma Ética da Vida. O reconhecimento de outros seres, dotados de “valor próprio”, sinaliza a urgência de se modificar o atual status criado por humanos e para humanos o qual determina um cenário de alta exclusão e reificação. Tudo é objeto, ou, pior, mercadorias. Não existe, sob essa lógica, nenhum modo de vida sustentada e sustentável. O objetivo geral deste estudo é determinar como a Cidadania Sul-Americana, por meio da Alteridade Ecosófica tem as condições de estabelecer novas referências para a convivência na América Latina considerando os inúmeros atores que até o presente não compunham o cenário social e das decisões, assim como, sabendo dos novos cenários e práticas de interação entre todos os seres vivos para uma vida com mais qualidade e, por consequência, um ambiente social com mais justiça e interação. Os objetivos específicos permitirão a instrumentalização do objetivo geral na medida em que se: a) Definir o que é a Cidadania Sul-Americana; b) Definir o que é a Alteridade Ecosófica; c) Reconhecer a Natureza como “ser dotado de valor próprio”; d) Identificar como a atitude moral humana institui uma Ética da Vida, cuja proteção não se limita aos seres humanos, mas para todos os seres que compõem a Comunidade Viva da Terra1. 1  “[...] A vida humana, com todos os seus atributos construídos em bilhões de anos, é condição absoluta de possibilidade, conteúdo e critério universal para toda vivência ética. E a vida dos outros seres torna-se valor ético na medida em que, além de tudo, interfere na vida humana. E de tal maneira o é, que cada cultura, cada comunidade ou grupo, constitui-se num modo (histórico) de sua reprodução. Isso quer dizer que, se temos uma longa histórica atrás de nós, construímo-la (malgrado toda debilidade) coletivamente”. (OLIVEIRA, Jelson; BORGES, Wilton. Ética de Gaia: ensaios de ética socioambiental. São Paulo: Paulus, 2008, p. 138).

178

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 178

06/11/2016 13:25:05


Por esse motivo, é necessário destacar o problema de pesquisa pela seguinte indagação: Qual modelo de Cidadania se deseja constituir para ampliar o reconhecimento da Natureza como “ser próprio” e fundar outro ethos capaz de compreender a integridade ecológica e ecosófica da vida? A resposta provisória para essa pergunta designa, como apropriado para o argumento proposto para este estudo, o modelo sugerido pelo Tratado Constitutivo da União de Nações Sul-Americanas quando se suscita uma Cidadania ativa pela participação e responsabilidades comuns no citado território. É a partir desse agir comum, e fundamentado pelos saberes dos povos originários andinos, que a Natureza é reconhecida, inclusive pela legislação, como “ser próprio”. O desvelo desse “novo sujeito” precisa, de modo permanente, ser exercitado pela Alteridade Ecosófica. Esse, como se percebe, são os pressupostos de um outro ethos que funda essa identificação sul-americana: a Ética da Vida. A fundamentação da temática em questão prioriza a contribuição de pensadores latino-americanos, Boff, Gudynas e Estermann a fim de demonstrar que a produção jurídica e filosófica local tem condições de orientar essa conjugação de interesses, organizações, acordos e outros em diálogo tenso e respeitoso entre todos e, interagir com outras produções, sejam com abordagens diferenciadas, seja com concepções de outros centros de reflexão e pesquisa com realidades diferenciadas. Essa é uma dinâmica que afirma, questiona e amplia as concepções locais, ampliando seus horizontes e contribuindo eficazmente para as reais condições de justiça numa região complexa, sofrida, desigual. Esse contexto ocorre num território que abriga uma ampla biodiversidade, tradições culturais e experiência histórica. Existem várias adversidades

Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 179

179

06/11/2016 13:25:05


que nem sempre são favoráveis à consolidação da Democracia2 na América do Sul, mas essa condição não significa, em nenhum momento, o abandono da proximidade cultural e natural capaz de sintetizar a unicidade vital da identificação de seus povos, da sua fauna e flora, de seus diferentes ecossistemas. Utilizar-se-á, como método de abordagem, o HipotéticoDedutivo. No tratamento dos dados, escolheu-se o Método Cartesiano. As técnicas de pesquisa são Pesquisa Bibliográfica e Documental3, Categoria4, Conceito Operacional5 e o Fichamento. Por uma Cidadania de Responsabilidades comuns na América do Sul Numa perspectiva de participação democrática, não é possível que a Cidadania implique tão somente num status político e jurídico indiferente com todas as misérias causadas contra o Homem e a Natureza. Ser cidadão, hoje, começa a ganhar contornos de responsabilidade os quais avançam sobre os limites territoriais do Estado-nação. Na medida em que se observam temas cada vez mais 2  No sentido próprio de Democracia, Zambam rememora: “A democracia é uma opção vital para a justiça social e seu valor moral se amplia, se aprofunda e se fortalece quanto mais seus valores e princípios se integram na vida das pessoas, nas relações que cada uma constrói e no aprimoramento das respectivas instituições”. ZAMBAM, Neuro José. Amartya Sen: liberdade, justiça e desenvolvimento sustentável. Passo Fundo: IMED, 2012, p. 238.

3  Segundo o mencionado autor: “[...] Técnica de investigação em livros, repertórios jurisprudenciais e coletâneas legais.” PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia da pesquisa jurídica: teoria e prática. 12. ed. São Paulo: Conceito Editorial, 2011, p. 207. 4  Nas palavras de Pasold: “[...] palavra ou expressão estratégica à elaboração e/ou expressão de uma idéia”. (PASOLD, 2011, p. 25). (Grifos originais da obra em estudo). 5  Reitera-se conforme Pasold (2011, p. 37): “[...] uma definição para uma palavra ou expressão, com o desejo de que tal definição seja aceita para os efeitos das idéias que expomos [...]”.

180

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 180

06/11/2016 13:25:05


complexos e transversais entre as culturas, a ação destinada a criar perspectivas de integração não pode insistir no atual modelo de consumo, de produção, de trabalho (semiescravo). Nessa linha de pensamento, veja-se as palavras de Gudynas6: Uno de los factores de mayor peso en generar esta ciudadanía de “baja intensidad” se debió a las reformas de mercado que tuvieron lugar en América Latina desde mediados de la década de 1970. Es importante revisar algunos aspectos claves de ese proceso desde la ecología política, ya que explican muchas situaciones actuales. La perspectiva neoliberal acepta un conjunto mínimo de derechos individuales, bajo una expresión negativa, y por lo tanto no reconoce la existencia de derechos sociales, y menos los referidos al ambiente. También se rechaza cualquier forma de intervención social, en tanto no existe el conocimiento adecuado y suficiente como para justificar esas acciones. Se entiende que las personas actúan esencialmente como agentes individuales, y em lugar de ciudadanos los individuos se comportarían como “consumidores”. Entonces resulta que el ámbito de interacción privilegiado es el mercado, donde compran y venden bienes y servicios, los que supuestamente les asegurarían la calidad de vida. Apenas se acepta la presencia estatal únicamente para garantizar un conjunto de derechos mínimos, tales como la seguridad o salud, y para asegurar el funcionamiento del mercado.

Sob semelhante argumento, e no desejo de se criar, mais e mais, um progresso medido por um crescimento infinito, especialmente na Economia, o ser humano explora e domina 6  GUDYNAS, Eduardo. Cidadania ambiental e metas cidadanias ecológicas. Revista de Desenvolvimento e Meio Ambiente, Curitiba, Universidade Federal do Paraná – UFPR, n. 19, p. 58/59, jan./jun. 2009. Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 181

181

06/11/2016 13:25:05


a Natureza sem qualquer espécie de reconhecimento como ser próprio que é. Josef Estermann7, nessa linha de pensamento, propõe uma alteridade cuja base é a Ecosofia8 a fim de saber que o mundo natural não pode ser medido por critérios econômicos, estéticos, morais a partir do nosso ponto de vista: [...] considero que la filosofía andina no es solamente un asunto etno-folclórico, ni netamente histórico, sino una necesidad epistemológica para poder “develar” los puntos ciegos de una tradición enclaustrada en un solipsismo civilizatorio, fuera éste llamado “eurocentrismo”, “occidentocentrismo” o “helenocentrismo”. El tema de la alteridad (u “otredad”), planteado por el filósofo judío lituano “marginado” respecto al mainstream occidental, Emmanuel Lévinas, y recuperado por la analéctica de la Filosofía de la Liberación latinoamericana, me parece fundamental a la hora de tocar el tema de la Naturaleza. Y esto sería ya una ampliación del tema de la alteridad desde las tradiciones indígenas, saliendo del andro- y antropocentrismo todavía vigentes en Lévinas y parte de la filosofía liberacionista, incluyendo en las reflexiones también al otro y la otra no-humanos, es decir la alteridad ecosófica. Me parece que uno de los puntos “ciegos” de la tradición dominante de Occidente, al menos desde el 7  ESTERMANN, Josef. Ecosofía andina: Un paradigma alternativo de convivencia cósmica y de Vivir Bien. FAIA - Revista de Filosofía Afro-In do-Americana. España, VOL. II. N° IX-X. AÑO 2013, p. 1/2.

8  A proposição da Ecosofia em Guattari é essa articulação ético-política entre três registros ecológicos: o ambiental, o das relações humanas e o da subjetividade humana. Segundo o mencionado autor, somente nessa interação - conflituosa, trágica - entre o “Eu” interior (subjetividade) e o mundo exterior “[...] - seja ela social, animal, vegetal, cósmica - que se encontra assim comprometida numa espécie de movimento geral de implosão e infantilização regressiva. A alteridade tende a perder toda a aspereza”. (GUATTARI, Félix. As três ecologias. Tradução de Maria Cristina F. Bittencourt. Campinas, (SP): Papirus, 1990, p. 8).

182

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 182

06/11/2016 13:25:05


Renacimiento, ha sido justamente el tema de la alteridad “ecosófica”. Aunque la tradición semita (judeocristiana) haya introducido al discurso ontológico determinista y cerrado de la racionalidad helénico-romana las perspectivas de la “trascendencia”, “contingencia” y “relacionalidad”, es decir: la no-conmensurabilidad entre el uno y el otro, entre el egocentrismo humano y la resistencia de la trascendencia cósmica, religiosa y espiritual, la racionalidad occidental moderna se ha vuelto nuevamente un logos de la “mismidad”, del encerramiento ontológico subjetivo, de la fatalidad que tiene nombres como “la mano invisible del Mercado”, “coacción fáctica” (Sachzwang), “crecimiento ilimitado” o “fin de la historia”.

Quando agir cidadão é fundamentado pelo cuidado e responsabilidade por outro sujeito no qual aparece diante de sua consciência, é improvável que haja a continuidade dessas atitudes exploratórias ou de “colonização do Outro”, especialmente o mundo natural, pois a sua comunicação não ocorre nem na dimensão da fala, tampouco da língua. Os clamores da Terra são ainda mais silenciosos quando se criam “ouvidos seletivos”. Por exemplo: que espécie de Cidadania9 é capaz de engajar, de estimular, de fazer com que as pessoas participem contra os abusos das atividades extrativistas, sejam as minerais, animais ou vegetais? Veja-se: aqui há uma dupla preocupação: a violência na qual se produz contra a Natureza é, também, contra o Humano, pelo trabalho excessivo, mal remunerado e com más condições para exercer o labor, mas, principalmente, contra a 9  “A la altura de nuestro tiempo parece conveniente admitir incluso propugnar esse ‘colecionismo’ de ciudadanías, o sustituir la ciudadanía unilateral, por una ciudadanía multilateral. Esta última consistiría en ir más allá de una mera ciudadanía diferenciada [...], en el interior del Estado, [...]”. (PEREZ-LUÑO, Antonio Enrique. La tercera generación de derechos humanos. Cizur Menor (Navarra): Editorial Arazandi, 2006, p. 239/240). Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 183

183

06/11/2016 13:25:06


sua saúde biopsíquica10. Novamente, rememora Acosta11: El punto de partida de esta cuestión radica, en gran medida, en la forma em que se extraen y se aprovechan dichos recursos, así como en la manera em que se distribuyen sus frutos. Por cierto que hay otros elementos que no podrán ser corregidos. A modo de ejemplo, hay ciertas atividades extractivistas como la minería metálica a gran escala, depredadora en esencia, que de ninguna manera podrá ser “sustentable”. Además, un proceso es sustentable cuando puede mantenerse en el tiempo, sin ayuda externa y sin que se produzca la escasez de los recursos existentes. Sostener lo contrario, aunque se sostenga esta posición en una fe ciega en los avances tecnológicos, es practicar un discurso distorsionador. La historia de la región nos cuenta que este proceso extractivista ha conducido a una generalización de la pobreza, ha dado paso a crisis económicas recurrentes, al tiempo que ha consolidado mentalidades “rentistas”. Todo esto profundiza la débil y escasa institucionalidad democrática, alienta la corrupción, desestructura sociedades y comunidades locales, y deteriora gravemente el medio ambiente. Lo expuesto se complica con las prácticas clientelares y patrimonialistas desplegadas, que contribuyen a frenar la construcción de 10  “Tudo é feito mercadoria. E somente pode ter acesso aos bens de mercado quem tem poder aquisitivo. A grande maioria está fora do mercado, porque o poder aquisitivo é insuficiente. O mercado, nesse sentido, é sacrificialista. É como um Moloc que cria vítimas e exige mais e mais vítimas. Entre as vítimas estão a própria natureza e a humanidade como um todo, cujo futuro se vê seriamente ameaçado”. (BOFF, Leonardo. Ética da vida: a nova centralidade. Rio de Janeiro: Record, 2009, p. 50). 11  ACOSTA, Alberto. Extractivismo e neoextractivismo: dos caras de la misma maldición. Disponível em: http://www.cronicon.net/paginas/ Documentos/paq2/No.23.pdf. Acesso em 20 de agosto de 2015.

184

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 184

06/11/2016 13:25:06


ciudadanía.

O fundamento para uma Cidadania Sul-Americana12, como aduz o artigo 18 da União de Nações Sul-Americanas – UNASUL, se revela por essa liberdade continental para se compreender as virtudes e vícios de outras culturas, mas, principalmente, de des-vendar a Natureza, essa Mãe generosa, como sujeito próprio, inclusive de direitos, como se observa nas constituições do Equador e Bolívia. Somente uma Cidadania de feições multilaterais, que consolide a atitude moral humana, respaldada, ainda, pela sua dimensão política e jurídica continental, é que cria possibilidades de ampliar e reconhecer outros “atores” nesse theatrum mundi os quais não se limitam pela indiferença dos contornos territoriais do Estado-nação. O tema da Natureza e sua importância como “ser próprio” é transversal. Não é possível que apenas uma entidade estatal seja capaz de trazer respostas satisfatórias diante da alta complexidade que essa preocupação sugere. As diferentes redes que se constituem entre os seres vivos perpassam a lógica burocrática e legislativa criada pelas soberanias nacionais e necessitam de outra lógica a qual favoreça essa relação inter-espécies. É preciso, sim, de uma Cidadania cuja lógica seja do cuidado13. A composição dessa unidade a partir da biodiversidade 12  “A Cidadania continental demanda uma introspecção maior do nosso sentimento de filiação pela natureza humana inscrita na diversidade antropológica e biológica do único local que nos acolhe: o Planeta Terra. Viver continentalmente desvela a clareza de um fato ainda obscuro: a nossa Pátria comum é a Terra”. (AQUINO, Sérgio Ricardo Fernandes de. O direito em busca de sua humanidade: diálogos errantes. Curitiba: CRV, 2014, p. 30). 13  Para Boff, essa condição se traduz como “[...] desvelo, solicitude, diligência, zelo, atenção, bom trato. [...] O cuidado somente surge quando a existência de alguém tem importância para mim”. BOFF, Leonardo. Saber cuidar: ética do humano, compaixão pela terra. 15. ed. Petrópolis, (RJ): Vozes, 2008, p. 91. Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 185

185

06/11/2016 13:25:06


terrestre reivindica uma postura ética por parte do ser humano cujo epicentro não é a dimensão antropológica, mas outra na qual o diálogo interespécies suscite cumplicidade, complementaridade, cuidado, respeito e responsabilidades comuns. Os cenários de intensas fatalidades no mundo e, especialmente, na América do Sul, suscitam esse desprezo de nossas ações morais no sentido de proteger e preservar outros seres próprios além da família humana. O preço dessa omissão desmedida é a implacabilidade da Natureza contra todos. Alteridade Ecosófica: o projeto para uma Ética da Vida O ethos fundante – seja na acepção dos costumes ou da “casa”, da “habitação” – se manifesta por meio da Alteridade Ecosófica. Essa é a imagem de uma Cidadania que contribui para a manutenção dos povos os quais coexistem, de forma harmoniosa, com a Natureza, sem desprezá-la, marginalizá-la ou destruí-la. O des-velo dessa proximidade e reconhecimento conduz para uma Dignitas Terrae. Não pode admitir, num cenário de ampla biodiversidade - compreendida, nesse momento, pela diversidade de espécies, de ecossistemas e da genética na qual constitui o mundo da vida – que apenas a voz humana ressoe por todos os territórios. Em cada lugar, existe um saber que esclarece, mais e mais, essa proximidade entre os seres e constitui a integridade ecológica da Terra e não pode ser desprezado ou ignorado. Por esse motivo, é necessária uma Alteridade Ecosófica, cuja matriz não seja apenas entre aqueles que pertencem exclusivamente à família humana, mas reconhecem suas origens biológicas. A partir dessa (demorada) epifania, Nessa linha de pensamento, Boff destaca: A vida, como vimos, é frágil e vulnerável. Está à mercê do jogo entre o caos e o cosmo. 186

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 186

06/11/2016 13:25:06


A atitude adequada para a vida é o cuidado, o respeito, a veneração e a ternura. [...] São essas atitudes que nos abrem à sensibilização da importância da vida. Elas implicam a mudança do paradigma cultural vigente, assentado sobre poder-dominação, e a introdução de um paradigma de convivência cooperativa, de sinergia, de enternecimento por tudo o que existe e vive. Em razão dessa viragem, urge redefinir os fins inspirados na vida e adequar os meios para esses fins. Só assim a vida ameaçada terá chance de salvaguarda e promoção. (BOFF, 2008, p. 75-76)

A constituição de uma Ética da Vida por meio da Alteridade Ecosófica torna significativa à proposição de uma Cidadania SulAmericana. A partir desse novo cenário, o qual se projeta para o mundo, as posturas indiferentes criadas – e imobilizadas – pelo status político e jurídico daquela Cidadania tradicional, de caráter Liberal ou Republicana, aos poucos, esmaece diante de uma compreensão alargada desse estar-junto-com-o-Outrono-mundo. Esse argumento se desenvolve, ainda, devido à preocupação internacional para se desenvolver outros modos de uma convivência sadia entre humanos e não humanos. Dois exemplos acerca da uma Ética da Vida, pautada por uma Alteridade Ecosófica, surgem em dois documentos: o primeiro é reconhecido pela Organização das Nações Unidas – ONU – desde 1983 denominada como Carta da Terra14. O segundo representa 14  “I. RESPEITAR E CUIDAR DA COMUNIDADE DA VIDA. 1. Respeitar a Terra e a vida em toda sua diversidade. a. Reconhecer que todos os seres são interligados e cada forma de vida tem valor, independentemente de sua utilidade para os seres humanos. [...] 2. Cuidar da comunidade da vida com compreensão, compaixão e amor. a. Aceitar que, com o direito de possuir, administrar e usar os recursos naturais vem o dever de impedir o dano causado ao meio ambiente e de proteger os direitos das pessoas. b. Assumir que o aumento da liberdade, dos conhecimentos e do poder implica responsabilidade na promoção do bem comum. II. INTEGRIDADE ECOLÓGICA. 5. Proteger e restaurar a integridade Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 187

187

06/11/2016 13:25:06


expressão da vontade dos povos sul-americanos aprovado em 2010 na cidade de Cochabamba. Esse documento é intitulado Declaração Universal dos Direitos da Mãe Terra15. Na medida em que o ser humano é tomado pela epifania de que não está separado da Natureza, mas é Natureza também, cria-se condições de uma saudável e harmoniosa convivência socioambiental, legada para tudo e todos e não apenas os seres dos sistemas ecológicos da Terra, com especial preocupação pela diversidade biológica e pelos processos naturais que sustentam a vida”. Disponível em: http://www.mma.gov.br/estruturas/agenda21/_arquivos/carta_terra.pdf. Acesso em 15 de nov. de 2015. Grifos originais do documento estudado. 15  “Artigo 1 A Mãe Terra é um ser vivo. A Mãe Terra é uma comunidade única e indivisível, autorregulada, de seres interrelacionados, que sustém, contém e produz todos os seres; Cada ser se define por suas próprias relações como parte integrante da Mãe Terra; Os direitos inerentes da Mãe Terra são inalienáveis e derivam da mesma fonte de existência; A Mãe Terra e todos os seres têm seus direitos reconhecidos nesta Declaração, sem distinção e nenhum tipo de discriminação entre seres orgânicos e inorgânicos, espécie, origem, uso para os seres humanos ou qualquer outro status; Todos os seres da Mãe Terra têm direitos, que são específicos à sua condição e apropriados para sua região e função, dentro da comunidade nas quais existem; Os direitos de cada ser estão limitados pelos direitos de outros seres e qualquer conflito entre esses direitos devem se resolver de maneira a manter a integridade, equilíbrio e a saúde da Mãe Terra. Artigo 2 Direitos inerentes da Mãe Terra. A Mãe Terra e todos os seres que a compõem têm os seguintes direitos inerentes: Direito à vida e existência; Direito de ser respeitada; Direito à continuação de seu ciclo e processos vitais, livre das alterações humanas; Direito de manter sua identidade e integridade como ser diferenciado, autorregulado e interrelacionado;-Direito à água como fonte de vida; Direito ao ar puro; Direito à saúde integral; Direito a estar livre da contaminação, da poluição e de dejetos tóxicos e radiativos; Direito de não ser alterada geneticamente e modificada em sua estrutura, ameaçando sua integridade ou funcionamento vital e saudável; Direito a uma restauração plena e pronta pelas violações aos direitos reconhecidos nesta Declaração, causadas pelas atividades humanas; Cada ser da Mãe Terra tem direito a um lugar e a desempenhar seu papel em Pacha Mama, para seu funcionamento harmônico; Todos os seres têm o direito ao bem estar e a viver livre de tortura ou trato cruel pelos seres humanos”. Disponível em: http://planetasustentavel.abril.com.br/noticia/atitude/ declaracao-universal-direitos-mae-terra-551452.shtml. Acesso em 15 de nov. de 2015. Grifos originais do documento estudado.

188

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 188

06/11/2016 13:25:06


humanos, sejam nas gerações presentes ou futuras. Veja-se: nenhum ser humano tem capacidade alta mediúnica de prever, com precisão, quais serão as necessidades futuras da Humanidade, mas o mínimo possível para a perpetuação da Vida constitui preocupação permanente no momento presente: água, ar e terra. As medidas que se direcionam a manter padrões de Vida sadios para todos os seres vivos representam uma atitude cidadã transversal a qual não se limita às determinações jurídicas nacionais de votar e ser votado. Ao contrário, amplia-se essa dimensão ativa para verdadeira participação porque se conhece as características de um projeto cujo ponto central de preocupação é vida para tudo e todos. Considerações finais A legitimidade de acordos internacionais depende de inúmeras circunstâncias que precisam ser consideradas de forma integrada, das quais se podem destacar, as referências democráticas, a intensidade da participação dos envolvidos, os compromissos assumidos e as condições para a sua efetivação. As demandas de integração na América Latina são históricas e existem diversas iniciativas para a solução, por exemplo, o Tratado do Mercosul. Em período recente, operou-se o Tratado da União de Nações Sul-Americanas - UNASUL – com as credencias importantes para o aprimoramento das suas relações entre os povos, não restritas à diplomacia oficial e dependente da atuação do Estado limitado ao território, com suas características peculiares e com condições de construírem de forma democrática, integrada e cooperativa às condições de justiça entre os povos, culturas e nações caracterizadas por inúmeras diferenças. A Justiça, nesse contexto, não conseguirá diminuir as desigualdades, se, antes, não compreender a integridade da vida. Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 189

189

06/11/2016 13:25:06


A introdução da Natureza com sua diversidade e seus recursos na condição de sujeito implica a mudança de comportamento individual, comunitário e social em vista da construção de novos referenciais de relacionamento. O princípio da Alteridade Ecosófica que fundamenta essa concepção precisa ser esclarecido, assimilado e praticado no interior de cada espaço territorial. Uma relação pautada pela condição de sujeitos, isto é, entre os humanos e a natureza, dinamiza a forma de pensar e agir obrigando o exercício da alteridade no seu sentido genuíno, qual seja, uma relação entre iguais, sabendo da sua incapacidade de igualar-se. A explicitação das diferenças expõe a alteridade e cria as condições para a tolerância, o entendimento e a solidariedade, valores caros à humanidade e à democracia. O Homem, tradicionalmente visto como o agente principal e com os poderes de domínio e uso sobre os demais, tem sua identidade pautada pela responsabilidade, respeito, prudência e devotamento para com os demais. Ocorre, como consequência, uma relação que chamamos de imbricada e sistêmica porque é interdependente, solidária e cooperativa. As diferenças não mais são ameaçadoras ou precisam ser eliminadas, mas integradas e contribuem para o equilíbrio social, a maturidade humana e a administração equitativa dos recursos disponíveis. A UNASUL, antes de ser uma inovação política e administrativa, é um tratado com caráter didático e pedagógico para o continente latino-americano, que adota o bem-comum no seu sentido amplo e inclusivo. As condições de bem viver incluem as culturas, os cidadãos, a natureza, as instituições e, especificamente, as futuras gerações. Estas, embora não existam, clamam para uma educação moral e política a partir das suas reais condições de existência. 190

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 190

06/11/2016 13:25:06


Esse é um apelo que contempla o presente em sua totalidade e advoga pela atuação a partir da Alteridade Ecosófica. Um ator ainda não-existente é uma referência moral capaz de questionar, interpor e orientar a justiça no continente sulamericano e, numa escala maior, latino-americano em vista da sua existência real, possível e com graus de certeza precisos. Não se trata, em nenhum momento, de uma utopia abstrata ou quimérica, mas concreta a qual expressa, principalmente, a cultura de povos ancestrais que habitam, há séculos, as terras da América do Sul. Por esse motivo, percebe-se que a hipótese apresentada no início deste estudo está confirmada porque é a cultura sulamericana e o desejo de sua integração, afirmada pelo Tratado Constitutivo da União de Nações Sul-Americanas – UNASUL – que se torna possível elaborar e exigir uma Cidadania comum aos povos deste continente. Essa (nova) atitude demanda reconhecimento de outros seres que interferem – positivamente – na nossa manutenção biopsíquica e rememoram que a Comunidade da Vida é plural. O Homem participa na sua melhoria, mas deve respeitar seu “tempo próprio”, ou seja, seus ciclos de reprodução, regeneração, a sua singularidade estrutural, seus processos, as suas funções, entre outros. É a partir dessa condição que se enxerga a unicidade da expressão integridade ecológica da Vida. Esta América Latina, cujo passado é dominado pela escravidão, violência e abusos contra tudo e todos, será capaz de vencer a voracidade dos pseudo-sujeitos da atualidade e assumir a UNASUL como a sua identidade e o território como a sua casa comum? A resposta para essa indagação somente surge com o estímulo e a viabilidade de mecanismos os quais insistam nas responsabilidades comuns de cidadãos sul-americanos, os

Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 191

191

06/11/2016 13:25:06


quais, a partir da Alteridade Ecosófica, incluam outros “atores” nesse diálogo e se funde, de maneira perene, numa Ética da Vida. Referências AQUINO, Sérgio Ricardo Fernandes de. O direito em busca de sua humanidade: diálogos errantes. Curitiba: CRV, 2014. BOFF, Leonardo. Ética da vida: a nova centralidade. Rio de Janeiro: Record, 2009. _____. Saber cuidar: ética do humano, compaixão pela terra. 15. ed. Petrópolis, (RJ): Vozes, 2008. ESTERMANN, Josef. Ecosofía andina: Un paradigma alternativo de convivencia cósmica y de Vivir Bien. FAIA - Revista de Filosofía Afro-In do-Americana. España, VOL. II. N° IX-X. AÑO 2013. GUATTARI, Félix. As três ecologias. Tradução de Maria Cristina F. Bittencourt. Campinas, (SP): Papirus, 1990. GUDYNAS, Eduardo. Cidadania ambiental e metas cidadanias ecológicas. Revista de Desenvolvimento e Meio Ambiente, Curitiba, Universidade Federal do Paraná – UFPR, n. 19, jan./ jun. 2009. OLIVEIRA, Jelson; BORGES, Wilton. Ética de Gaia: ensaios de ética socioambiental. São Paulo: Paulus, 2008. PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia da pesquisa jurídica: teoria e prática. 12. ed. São Paulo: Conceito Editorial, 2011. PEREZ-LUÑO, Antonio Enrique. La tercera generación de derechos humanos. Cizur Menor (Navarra): Editorial Arazandi, 2006. ZAMBAM, Neuro José. Amartya Sen: liberdade, justiça e desenvolvimento sustentável. Passo Fundo: IMED, 2012. 192

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 192

06/11/2016 13:25:06


Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 193

193

06/11/2016 13:25:06


Do mundo-da-vida à educação da cidadania ativa Anderson de Alencar Menezes Introdução O artigo parte de um pressuposto fundamental da epistemologia habermasiana, a categoria de Mundo da Vida (Lebenswelt) que na sua atribuição específica representa no pensamento habermasiano o lugar da cultura, da arte, da estética e principalmente da sedimentação de valores como a cooperação e a solidariedade. O nosso intuito fundamental é de reconhecer os pressupostos da análise habermasiana no que tange a uma possível leitura e interpretação das biografias educativas e da possibilidade de uma educação não-escolar relidas a partir dos parâmetros habermasianos. De fato, o contexto não-escolar ou a ideia dominante de território educativo pode nos ajudar a compreender outras dimensões da teoria habermasiana aplicada ao contexto educativo. O que nos faz recuperar a ideia de ator social dentro deste prisma de interpretação de uma educação que prima pelo esclarecimento e pela emancipação. Mundo-da-Vida Habermasiana

e

Território

Educativo:

Uma

Leitura

O mundo-da-vida é um tema particular em Husserl, e que é retomado por Habermas. Na acepção deste último, o mundoda-vida compreende a esfera da cultura e das relações pessoais espontâneas que ocorrem cotidianamente entre as pessoas, 194

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 194

06/11/2016 13:25:06


Ele diz respeito àquela esfera das autoevidências, onde as pessoas se comunicam e se entendem sobre algo no mundo (objetivo; social ou subjetivo), sem a necessidade de ter de pôr em questão os seus proferimentos linguísticos (MUHL, 2003, p. 17).

O mundo-da-vida contém em seu interior a própria educação, compreendida, em sentido amplo, como uma das principais formas de expressão da cultura humana. O mundoda-vida, o educativo para além da escola, pode suscitar a seguinte indagação: quais as condições de possibilidade para que um ato educativo, por fazer parte do mundo-da-vida e ser concebido como ato espontâneo e assistemático, possa ser crítico e emancipatório? No contexto natural do problema em questão, a pergunta seria: em que sentido o ato educativo pode fazer frente à colonização do mundo-da-vida? O mundoda-vida é o âmbito por excelência da potencialização do agir educativo e nele reside a possibilidade de resgatar o valor das agências educativas enquanto produtoras de conhecimento e de cultura. Neste sentido, no mundo-da-vida está a realização da razão comunicativa que bloqueia em sua forma e conteúdo, as ações da razão estratégica. O educativo consolida-se no mundo-da-vida, em que as relações se dão de uma forma livre e isenta de dominação. O mundo da cultura, nos seus postulados, trabalha de uma forma ímpar o ser humano em sua inteireza, recuperando a dimensão simbólica que é a dimensaão mais constitutiva e essencial da natureza humana. Conforme Pinto (1996): “Os alunos devem descobrir, nos dramas históricos do mundo-da-vida, escolarmente revividos, o sentido antropológico das suas aprendizagens e a vocação solidária do seu estatuto cívico” (p. 510). Então, compreende-se que o mundo-da-vida é o espaço em

Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 195

195

06/11/2016 13:25:06


que se pode sedimentar a educação para a sensibilidade frente ao calculismo e infalibilismo da razão instrumental. Bem como a educação para a solidariedade face à competição exacerbada do mundo sistémico. E, pode também, naturalmente, numa tendência cada vez mais crescente, substituir o instrumental pelo simbólico. Este, aqui, entendido como cultura em um sentido duplo: como, por um lado, auto-formação da espécie humana e, por outro, como manifestação antropológica dos gestos, signos e significados. De fato, o mundo-da-vida, enquanto esfera educativa por excelência, deve permear, no âmbito da sociedade civil, nichos de debate e discussão em que a verdade, a autenticidade o respeito e a cidadania devam nortear as ações dos indivíduos em sociedade. Formar para a dimensão ética da vida humana, eis o escopo do mundo-da-vida, enquanto espaço de socialização e sedimentação da democracia e dos seus valores. Nesse sentido, escreve Muhl (2003), [...] o mundo-da-vida deve ser o referencial prioritário do trabalho pedagógico, pois é nele que a identidade da pessoa se constitui e que se encontram os potenciais de mudança social; ele é o destino comum dos humanos e nele encontramos as explicações para nossos problemas e as soluções para os nossos conflitos; nele os indivíduos agem interativamente e produzem valores e suas identidades culturais (p. 288-289).

Na base fundamental do mundo-da-vida há um substrato sólido de democracia. Cabe ao educativo, formado no âmbito do mundo-da-vida, formar para a consciência cidadã, enquanto engajamento: sócio-político, cultural e religioso. Compreendese que o mundo-da-vida se situa bem na complexidade da escola da vida com todos os seus dramas, possibilidades e conquistas. Neste sentido, as relações entre mundo-da-vida e 196

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 196

06/11/2016 13:25:06


território educativo têm uma explicação e uma relação que gostaríamos de brevemente descrever. Segundo Matos (2002), Talvez se possa dizer que falta ainda definir o essencial, o que seja isso de território educativo, não propriamente o âmbito territorial coberto pela rede escolar local, mas o território como referência simbólica da ação, o espaço propriamente dito de intervenção pedagógica, esse espaço sem fronteiras que agora temos pela frente a partir do momento em que o espaço escolar é substituído pelo educativo. Esta substituição do escolar pelo educativo parece uma coisa de somenos importância e, todavia, reside aí o principal quebra-cabeças do território educativo (p. 101).

A partir das afirmações de Matos (2002), devemos salientar a relação existente entre mundo-da-vida (Lebenswelt) e território educativo, numa leitura habermasiana do educativo. Esta relação é pautada por dois aspectos bem salientados por Matos (2002): a de perceber o território como referência simbólica da ação e a de compreender esse espaço sem fronteiras que agora temos pela frente a partir do momento em que o espaço escolar é substituído pelo educativo. Para Canário (2006), podemos falar de duas lógicas de territorialização educativa, a primeira, “do ponto de vista da administração”, e, a segunda, “do ponto de vista dos atores locais e dos projetos construídos” (p. 102). A primeira é gestionária, ou seja, fundada na racionalização administrativa do sistema escolar e cujos princípios estão orientados pelas tônicas do sucesso e da eficácia. Na perspectiva habermasiana, esta lógica gestionária se insere no que Habermas chama de mundo-sistêmico, formado pelo mundo das empresas e dos negócios, orientados por uma razão teleológica cujo fim último Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 197

197

06/11/2016 13:25:06


é a reprodução material da vida e da sociedade e cuja linguagem é a do dinheiro e do poder. É a lógica do sistema vigente. Já a segunda lógica de territorialização educativa se enquadra na categoria habermasiana de mundo-da-vida, aludida anteriormente. É como nos diz Canário (2006), Do ponto de vista dos atores locais e dos projetos construídos a partir da base, a lógica é outra: está em questão a geração de dinâmicas locais que permitam reforçar a dependência da ação educativa relativamente ao contexto, o que só é possível se privilegiar, na ação educativa, o ponto de vista e os saberes dos atores locais (crianças, famílias, educadores, administradores). Esta perspectiva implica romper com uma visão desvalorizada das comunidades e das crianças, geralmente presente nas políticas oficiais e, ao contrário, privilegiar a visibilidade dos pontos de vista de quem aprende... Por outro lado, a superação das modalidades históricas (e próprias) da organização escolar é indispensável em um processo de contextualização da ação educativa, na medida em que só essa superação poderá permitir a construção de respostas adequadas à diversidade. Uma outra concepção dos espaços escolares e outra relação entre espaços escolares e nãoescolares, tal como a construção de outros tempos e outros ritmos constitui a espinha dorsal de projetos educativos orientados para a contextualização (p. 102).

Nesta mesma perspectiva, Correia (1999), ao falar da relação entre “escola e comunidade – da lógica da exterioridade à lógica da interpelação”, apresenta uma relação imbricada destas realidades no território educativo. A crítica se faz ao tentar mostrar a relação de estranheza entre escola e comunidade como duas realidades impermeáveis. Os apelos 198

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 198

06/11/2016 13:25:06


desta relação sublinham a emergência de certos paradigmas, como o da exterioridade e da continuidade que se fundam em modelos estadocêntricos regidos por uma certa concepção funcionalista e mercadológica da escola e da educação. Estas duas lógicas não conseguem articular os princípios de uma ação comunicacional que prime pela lógica da interpelação, em que a gestão das conflitualidades existentes tende a incorporar as diferenças interpeladas pelo tecido sócio-educativo. A partir da lógica da interpelação adquire especial relevo a ideia do projeto e do ator. E neste contexto, afirma Correia (1999), [...] que importa recriar as potencialidades transformantes do projeto. Por um lado, o projeto tende a deixar de ser pensado no interior de uma lógica de planificação que subentende que a ação educativa é sempre uma intervenção de alguém sobre outrem, para ser encarado como um processo de recriação tanto da escola como da comunidade; não se trata, nesta perspectiva, de construir um projeto para a comunidade, mas de produzir tanto a Escola como a Comunidade no processo de produção do projeto. Por outro lado, o projeto tende a desferencializar-se da atividade cognitivo-instrumental para se pensar como uma atividade comunicacional construída na gestão discursiva dos litígios, na reabilitação da conversação e dos discursos e ocupado com a construção do sentido. O projeto educativo, neste paradigma da interpelação sustentado num pensamento reticular, constrói-se construindo um espaço propenso ao desenvolvimento de uma intertextualidade, construindo um espaço polifônico que se ocupa da invenção da cidadania e da construção do sentido da vida (p.131).

Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 199

199

06/11/2016 13:25:06


Neste sentido, este espaço polifônico é poroso à intertextualidade que se dá e se desenvolve no território educativo e no âmbito de uma lógica discursiva, a qual tem como ponto de partida a compreensão de uma educação não-escolar na ótica dos princípios da razão comunicativa habermasiana. A Construção Comunicativa de uma Educação Não-Escolar Como pensar uma educação não-escolar a partir do mundoda-vida? Talvez, esta seja uma questão de fundo e que nos ajude a compreender a importância de um discurso, dominante hoje, sobre uma educação não-escolar que se manifesta de forma cada vez mais real e concreta na ideia de cidade educadora. A este respeito, nos diz Pinto (2004), Tal é o incentivo que nos chega do movimento das cidades educadoras. Pela consciência dos seus agentes sociais e, desde logo, dos políticos com poder democrático de decisão – a cidade assume o seu papel educativo em todas as sedes do desenvolvimento comunitário. Alarga-se, consequentemente, o conceito de educação. Educação é formação de todos, em todas as oportunidades e espaços do quotidiano, ao longo de toda a vida. Emerge, assim, a importância da educação não formal e informal, com a subsequente relativização da educação formal. A escola passa a ser todo o território; a educação torna-se efetivamente permanente: a educação para uma vida cultural e socialmente multiativa em qualquer fase do percurso da vida dos indivíduos. Facilmente se advinham os benefícios de uma estratégia de mobilização municipal centrada nesta ideia holística de cidade educadora (p.151-152).

Nesse sentido, pensar a educação não-escolar a partir da escola significa apresentar o surgimento, a natureza e as

200

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 200

06/11/2016 13:25:06


finalidades desta e apresentar as possibilidades e os desafios de se pensar a educação e o educativo indo-se além dos espaços escolares. Agrada-nos muito a ideia de Matos (1999) sobre as astúcias da razão escolar na sua obra, Teorias e Práticas da Formação: contributos para a Reabilitação do trabalho pedagógico. E principalmente quando este autor nos fala da imagem da peripécia ao retomar a Poética de Aristóteles para quem a peripécia se constituía como um recurso técnico essencial ao efeito do trágico no teatro, no sentido de evento inesperado. É como nos diz Matos (1999), Do ponto de vista das suas condições de emergência, como fenômeno social espontâneo, a peripécia, como “ato de circular enquanto se conversa”, associado ao “imprevisto”, parece, naturalmente, ligado à existência dum acontecimento marcante que afeta as expectativas normalizadas dos sujeitos relativamente à ordem natural, social ou moral, determinando doravante uma relação problemática e intrigada, com essa ordem, até que seja encontrada uma explicação para o acontecimento. Pode acontecer que essa explicação ocorra, apenas, em consequência dos efeitos catárticos, produzidos pela conversa em comum, mercê a exteriorização/ interiorização de argumentos pró e contra, que são intersubjetivamente atuantes, criando uma ordem de persuasão psicológica mais forte que aquela que já existia, antes de serem postos à prova os operadores simbólicos socialmente disponíveis. Neste caso, não se produziu necessariamente um novo conhecimento, mas reforçouse a eficácia do senso comum... Nesta perspectiva, peripécia corresponde às ‘voltas que o discurso dá’, ou, mais exatamente, as ‘voltas que o discurso faz dar’, o que se deve Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 201

201

06/11/2016 13:25:06


entender como significando a construção da realidade pelo discurso (p.105-107).

Como o nosso propósito é o de pensar o educativo indo além da escola, isso significa dizer que não estamos defendendo uma sociedade sem escolas1, como o fazia Illich (1973), que propunha uma radical desescolarização da sociedade. A nossa perspectiva ao defender o não-escolar não se opõe à ideia de uma educação escolarizada. O fato é que ao pensar a escola, a percebemos como um dos territórios da ação educativa, pois, a escola não deve se transformar no lócus monopolizador de toda ação educativa. Cada vez mais, a escola está se tornando muito mais vulnerável, sobretudo com o advento da modernidade e da predominância de um discurso excessivamente mercantilizante. Para Bourdieu e Passeron (1995), e no que se refere especificamente à crítica que nos parece ainda bem atual destes autores e que aqui destacamos, não obstante a data original desta obra ser o ano de 1970, a escola assumiu uma feição reprodutora das desigualdades sociais servindo de reprodução ideológica de uma elite dominante. A crise pela qual vem passando a educação escolarizada se insere num contexto maior da sociedade. A escola precisa dialogar com os vários segmentos da sociedade, pois ela tem se tornado obsoleta, deixando de cumprir o seu papel de formar 1  A maior parte dos nossos conhecimentos adquirimo-los fora da escola. Os alunos realizam a maior parte de sua aprendizagem sem os, ou muitas vezes, apesar dos professores. Mais trágico ainda é o fato de que a maioria das pessoas recebe o ensino da escola, sem nunca ir à escola. Todos aprendemos a como viver sem o auxílio da escola, sem nunca ir à escola. Todos aprendemos o como viver sem o auxílio da escola. Aprendemos a falar, pensar, amar, sentir, brincar, praguejar, fazer política e trabalhar sem interferência de professor algum... Metade dos habitantes desse planeta jamais colocou os pés numa escola... Os alunos nunca atribuíram aos professores o que aprenderam. Tanto os mais brilhantes quanto os mais bobos sempre confiaram na sorte, leitura e esperteza para passar nos exames, motivados pela vara ou pelo desejo de fazer carreira (ILLICH, 1973, p. 62-63).

202

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 202

06/11/2016 13:25:06


para a cidadania ativa os seus alunos e professores. A escola está em crise porque assumiu o instrucionismo como mola-mestra do ato educativo em detrimento do ensinar, e muito mais ainda do formar. A ausência de sentido do trabalho escolar é o mais agravante neste contexto, tanto para os professores como para os alunos. É como nos diz Canário (2006), A grande questão, presente nas escolas, é a ausência de sentido para o trabalho escolar, não só para os alunos, mas também para os professores. Este é o caráter essencial da crise de legitimidade da instituição escolar. A inserção social das atividades escolares em uma realidade territorial que transcenda as fronteiras escolares constitui um aspecto decisivo para esta construção de sentido. É por isto que se torna importante saber muito bem o significado do conceito de território que utilizamos, sobretudo de ‘território educativo’, não o confundindo nem o reduzindo a um ‘território escolar’ (p. 100).

A educação não-escolar surge no contexto do desenvolvimento da concepção de território educativo. Matos (2002), chama de Cidade Convivial, e Correia, de Polis Educativa (1998). Este, ao situar a questão da escola e nos pôr no âmago da questão, a concebia como uma cidade a construir, em que o problema passa a ser a discussão da gestão da conflitualidade entre o escolar e o não-escolar. O fato é que, como este autor nos diz: “a escola é regida atualmente por uma lógica da eficácia baseada na racionalidade sistêmica, cuja pretensão é a de substituir o princípio de justiça educativa presente no âmbito do território educativo”. Neste sentido, ainda Correia na mesma obra, A questão da cidadania coloca-se, pois, no

Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 203

203

06/11/2016 13:25:06


centro do modelo estratégico global sem que ele forneça uma razão tecnicamente imperativa para optar entre as diferentes alternativas formuladas. O que este modelo nos permite é dar visibilidade à ideia de que a crise de uma concepção de escolarização legitimada por um modelo de justificação simples, onde o princípio da igualdade de oportunidades é único referente acionado na identificação dos problemas e na justificação das soluções, não exige que a escola substitua este princípio de justiça pela lógica da eficácia, mas, antes, que o integre num sistema complexo de justificação múltipla onde coexistem vários princípios de justiça (p. 139).

Neste sentido, precisamos recontextualizar e reconfigurar o sentido da ação educativa que não se esgota numa racionalidade técnica, mas apela para opções de natureza ética, cívica e política. Por uma Educação Não-Escolar: Entre as Biografias Educativas e a Revalorização Epistemológica da Experiência O mundo-da-vida (Lebenswelt) é um âmbito fundamental para que a educação não-escolar possa se desenvolver em sintonia com uma razão mais ampla e, portanto, mais complexa. Com a crise da educação escolarizada em seus moldes atuais, a educação não-escolar aparece em cena de uma forma notável. O fato é que a educação não-escolar vai recuperar dois âmbitos fundamentais de toda a experiência humana: primeiro, ela retoma a pessoa na sua subjetividade e significação (biografias educativas) e, segundo, retoma, a experiência como episteme. Ora, a escola sempre teve dificuldades institucionais em lidar com a pessoa e com as suas experiências. As barreiras criadas por uma educação escolar em relação às experiências que os indivíduos trazem à escola eram, em nome de uma 204

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 204

06/11/2016 13:25:06


perspectiva positivista, objetiva e neutra. Neste sentido, a educação não-escolar oferece uma dupla contribuição para a formação dos percursos educativos dos sujeitos envolvidos em seus processos. Primeiramente, podemos falar de uma retomada das biografias educativas, e, neste sentido, gostaria de citar Josso (2002), em sua obra, sobre: Experiências de Vida e Formação. E, em um segundo momento, falar de uma revalorização epistemológica da experiência. No meu modo de entender, nestes dois pressupostos epistemológicos encontram-se a grande guinada e reviravolta operada pela educação não-escolar. No primeiro pressuposto, a questão-chave é a redescoberta do recurso crescente às biografias educativas. Nas palavras de Josso (2002), A temporalidade biográfica é aqui aproximada, tal como ela se deixa ver nas histórias de vida contadas sob o ângulo de questões tais como: Como me tornei no que sou?; Como acontece que penso o que penso?; E como é que aprendi o que creio saber, saber-fazer, saber-ser e saber-pensar? A avaliação do que há a fazer consigo mesmo, com os outros, com as coisas e com o seu meio natural deve poder comparar um antes e um depois, para fazer emergir os indícios de um resultado da ação ou da atividade. À escala de uma vida, a avaliação mobiliza todas as projeções e simbolizações de que somos portadores. O fato de me referir a uma cosmogonia teísta ou não teísta torna a minha disponibilidade para a aprendizagem e para a mudança mais ameaçadora quando as ideias, os conceitos, as práticas com as quais a atividade educativa me confronta, contradizem, de todo ou em parte, esta cosmogonia. Nós somos habitados por mitos, inconsciente estrutural, dirão uns,

Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 205

205

06/11/2016 13:25:07


inconsciente arquetípico, dirão outros (p. 154-155).

É interessante notar como o saber biográfico é um contributo fundamental e essencial para os dispositivos de formação. Seria, neste sentido, a formação centrada nas histórias de vida. Este enfoque muda toda a compreensão dos processos educativos que desloca o ensinar e põe em relevo o aprender (sujeito aprendente). Ou seja, o sujeito da autopoiesis, em que a criatividade e a inventividade ocupam um lugar de destaque no espaço da investigação-formação. O sujeito como autor e ator de sua própria formação. O saber biográfico tem uma relevância no processo de formação quando restitui ao campo educativo a complexidade de uma formação que passa, primeiro, e, sobretudo, pela formação e constituição da subjetividade. De fato, o saber biográfico, aqui citando Dominicé (1996), é um dispositivo formativo que permite-nos alterar a realidade do tempo que não se exaure numa temporalidade formal e institucional circunscrita pelos espaços instituídos mas que nos põe em contato com temporalidades que invocam outros ritmos e outras adaptações, como também a exigência de novos desafios e experiências centradas no sujeito entendido como autor e ator de sua aprendizagem. Portanto, para Dominicé (1996) a biografia não é uma autobiografia, pois o pesquisador exige de seus interlocutores que estes reconstruam seu percurso de vida segundo uma direção que ele considera decisiva em relação a sua pesquisa. Neste sentido, uma biografia recontada é uma biografia educativa. Neste sentido, podemos falar de uma revalorização epistemológica da experiência a partir de três níveis fundamentais: 1) da emergência da pessoa como sujeito de sua própria formação; 2) da diversidade de modalidades de 206

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 206

06/11/2016 13:25:07


aprendizagem e 3) dos diferentes graus de formalização da ação educativa. Quanto ao primeiro nível, o da emergência da pessoa como sujeito de sua própria formação, deve-se notar um aspecto fundamental que é o de acentuar a formação como construção de si e de sentido. O grande problema da educação escolar é justamente fazer com que os seus atores descubram o sentido do trabalho escolar. Aqui, com a revalorização epistemológica da experiência, o sujeito se autocompreende de modo ativo, em que o aprender se constitui como uma figura-chave no seu processo de desenvolvimento. Este processo implica construção da liberdade do sujeito que aprende sabendo que a construção de si e daqueles outros envolvidos no processo é uma arte. Neste âmbito, adquire significatividade o aprender em detrimento do ensinar e até mesmo do saber, entendido como saber-objeto. O aprender evoca outras tantas experiências significativas na vida do sujeito que fundamentalmente, se constróem fora do âmbito escolar. É, justamente, nesta percepção que as experiências de vida ou os percursos das histórias de vida ganham significatividade. Ou seja, a experiência se constitui em aprendizagem quando se dá na escola, mas, fundamentalmente adquire relevância quando se dá fora do âmbito escolar. Daí a revalorização epistemológica da experiência. Nesta perspectiva, é científico não só o que se ensina na escola, mas, sobretudo, o que se aprende no mundo não-escolar, ou melhor, dizendo, no mundo-da-vida. O segundo nível diz respeito à diversidade de modalidades de aprendizagem, que se dá em três âmbitos: autoformação, heteroformação e ecoformação. Na autoformação, que é o trabalho que o sujeito exerce sobre si mesmo, entendemos que todo o processo formativo é um processo de autoconstrução Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 207

207

06/11/2016 13:25:07


da pessoa ao longo da vida. Neste sentido, a educação nãoescolar, por revalorizar as figuras do aprender, põe em relevo as experiências de vida que o sujeito faz em sua trajetória existencial. No segundo âmbito, fala-se de um processo denominado de heteroformação, que é o modelo da interação social. Neste âmbito, a educação não-escolar reforça um aspecto fundamental para o processo educativo em que a educação é eminentemente socialização de ideias, de sentimentos, de frustrações, de ideais. A educação é essencialmente relação e intersubjetivação de nossas intenções e desejos. No terceiro âmbito, no da ecoformação, deve-se sublinhar o papel da educação não-escolar no território, pois todo processo educativo se dá num contexto, ou seja, no ambiente em que está inserida. Aqui, ao nosso modo de ver, está a maior contribuição da educação não-escolar, pois nos faz perceber que para a educação não há fronteiras, sejam elas: físicas, psíquicas, culturais e territoriais. No terceiro nível, ao falar de uma educação formal, tipo de educação, dispensada pelas escolas podemos, fazê-lo, a partir de diferentes graus de formalização da ação educativa. Uma outra, designada como educação não-formal e caracterizada pela flexibilidade dos horários, dos programas e dos locais, tem por base o voluntariado. E, por fim, uma educação informal fundada mais na autoformação e na ecoformação. Neste sentido, a educação informal se insere no processo amplo e difuso de socialização. A Emancipação como Categoria-Chave para a Interpretação do Mundo Educativo na Contemporaneidade A “emancipação” tornou-se uma categoria de interpretação para entender o papel das instâncias e dos atores educativos na contemporaneidade. É evidente que a exigência de emancipação, numa democracia, deve ser um imperativo. 208

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 208

06/11/2016 13:25:07


Neste sentido, a postulação de uma sociedade esclarecida terá como requisito fundamental a construção de um espaço público, em que se possa sedimentar a cidadania ativa e a autonomia dos sujeitos em sociedade. É o que nos diz Adorno (1995), Para precisar a questão, gostaria de remeter ao início do breve ensaio de Kant intitulado, resposta à pergunta: o que é esclarecimento? Ali, ele define a menoridade ou tutela e, deste modo, também a emancipação, afirmando que este estado de menoridade é auto-inculpável, quando sua causa não é a falta de decisão e de coragem de servir-se do entendimento sem a orientação de outrem. Esclarecimento é a saída dos homens de sua auto-inculpável menoridade ( p. 169).

Na contemporaneidade, deve-se notar as fortes tendências de “irracionalismos” e os “subjetivismos” que assolam a compreensão do homem atual, fadando-o a fracassar no seu projeto humano. A emancipação, como fruto de uma pedagogia crítica, visa a formação de cidadãos que incidam no Estado mediante a participação nas várias representações da sociedade civil. Todavia, o clima cultural hodierno é adverso à emancipação. Neste sentido, como já notamos, a escola e outras agências educativas tornaram-se instâncias reprodutoras de sujeitos débeis, e, psicologicamente frustrados na expectativa de um futuro mais promissor. É neste contexto singular que confirmamos o que diz Pinto (1996), O objetivo pedagógico da escola (numa acepção normativa da pedagogia) é formar o cidadão-humano mediante um processo de ensino-aprendizagem esclarecido. E tal implica que, no mesmo processo, Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 209

209

06/11/2016 13:25:07


o conhecimento seja aprendido com a compreensão da sua dupla validade técnica e emancipatória para o mundo histórico-social da vida. Se não for assim, contrariando o cognitivismo puro do ensino tradicional, estará a realizar-se na escola o reducionismo funcional do saber que Edgar Morin diz verificar-se no interior das próprias ciências submetidas ao princípio da abolição do sujeito da epistemologia Analítica: o saber já não é para ser pensado, refletido, meditado, discutido, por seres humanos para esclarecer a sua visão do mundo e a sua ação no mundo, mas é produzido para ser armazenado em bancos de dados, e, manipulado por poderes anônimos, citando Edgar Morin na sua obra ‘Ciência com Consciência’ (p. 498-499).

Na leitura habermasiana do conceito de Emancipação aplicado às instâncias e aos atores da educação, adquire especial relevo o tema da formação para a emancipação, o qual engloba a prática educativa no interior da sala de aula, perpassando a discussão do desenho curricular e do conteúdo programático, até às organizações sociais tais como partidos políticos, sindicatos, ONGs etc. No âmbito, estritamente escolar, no dizer de Pinto (1996), cabe então: À escola, na sua função própria, na situação ideal de imunidade a intenções espúrias, ser uma instituição subversiva: educa para a mudança no sentido do progresso. É o que tinha em mente Kant quanto, dirigindo-se aos homens que fazem planos de educação, observa que os jovens devem ser educados em vista do futuro – um futuro possível e melhor – e não do presente. A educação é imanentemente progressiva e não conservadora (p. 511).

210

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 210

06/11/2016 13:25:07


É nesse sentido e perspectiva que gostaríamos de que este nosso estudo, cujo título é “Educação e Emancipação: uma leitura crítico-reconstrutiva em Jürgen Habermas” fosse compreendido. Pois aqui procuramos tocar nos elementos fundamentais daquilo que nos propomos discutir no âmbito do pensamento habermasiano. De fato, problematizamos, ao longo deste itinerário, a relação porosa entre o escolar e o nãoescolar, sendo estas noções relidas à luz dos princípios da teoria do agir comunicativo que propõe a construção de sujeitos mais autoconscientes de sua tarefa no mundo, ao mesmo tempo em que promove sujeitos éticos e comprometidos, com a construção da cidadania, fruto de uma pedagogia de inspiração críticoemancipadora. Considerações finais A intuição habermasiana centra-se numa epistemologia da comunicação, em que a razão não pode ser reduzida aos meros mecanismos da técnica e da ciência. O conceito de Emancipação aplicado ao tema educacional foi o tema gerador do presente estudo. De fato, tentamos aqui perceber como a epistemologia e a metodologia da teoria do agir comunicativo podiam interagir com os espaços educativos, sejam eles escolares ou não. A postulação aqui de um diálogo entre filosofia e educação foi o que resultou na discussão das teses do pensador alemão para o âmbito educativo na contemporaneidade. Neste sentido, Habermas não trata de temas educacionais de forma direta, mas o seu postulado teórico-metodológico pode servir e tem servido de base e fundamento para as teorias educacionais na contemporaneidade. Os horizontes educativos, relidos à luz da teoria do agir Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 211

211

06/11/2016 13:25:07


comunicativo, trouxeram algumas inquietações fundamentais, principalmente, na relação estabelecida entre território educativo e mundo-da-vida e a perspectiva de construção e a efetivação de uma ação comunicativa fora do âmbito escolar, mas, também, percebida como implícita nele. O presente estudo se inscreve como uma colaboração, a partir de uma epistemologia construtivista, com a qual procuro apresentar, de forma crítica para o âmbito educativo, os desdobramentos, encaminhamentos e problematizações do agir comunicativo habermasiano. Não se trata de “concluir”, portanto, mas de apresentar vias de discussão numa sociedade tão marcadamente autoritária; principalmente, quando se trata de educação, política e cidadania, como ainda é o caso, infelizmente, do país em que vivo. Referências ADORNO, Theodor. Educação e Emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. CANÁRIO, Rui. A Escola tem Futuro? Das promessas às incertezas. Porto Alegre: Artmed, 2006. CORREIA, José Alberto. Para uma Teoria Crítica em Educação. Portugal: Porto Editora, 1998. ______. “Relações entre a Escola e a Comunidade: da lógica da exterioridade à lógica da interpelação”, Aprender, 22, PortoAlegre, 1999, pp. 129-134. DOMINICE, Pierre. L’Histoire de Vie comme Processus de Formation. Paris: L’Harmattan, 1996. ILLICH, Ivan. Sociedade sem Escolas. Rio de Janeiro: Vozes, 1973.

212

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 212

06/11/2016 13:25:07


JOSSO, Marie-Christine. Experiências de Vida e Formação. Lisboa: Educa, 2002. MATOS, Manuel. Por falar em formação centrada na escola. Porto: Profedições, 2002. MUHL, Eldon. Habermas e a educação: ação pedagógica como agir comunicativo. Passo Fundo: UPF, 2003. PINTO, Fernando Cabral. A Formação Humana no Projeto da Humanidade. Porto: Instituto Piaget, 1996. ­­­ ______. Cidadania, sistema educativo e cidade educadora. Lisboa: Instituto Piaget, 2004.

Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 213

213

06/11/2016 13:25:07


Formar o Cidadão: sociedade civil, cidadania e educação nas Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito de G. W. F. Hegel Marcos Fábio Alexandre Nicolau Sobre as dimensões da formação cultural hegeliana Ao refletir sobre o processo de formação cultural (Bildung)1, Hegel o compreendeu tanto como uma libertação quanto como o próprio trabalho de libertação, ou seja, ele é uma ação libertadora, expressão máxima do requerido “dever para consigo” (HEGEL, 1989, p. 310 [§41]) que possibilita ao indivíduo a liberdade, pois o capacita a atuar de acordo com princípios cada vez mais universais. Nesse momento do desenvolvimento do espírito em suas Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito, o filósofo ensina, ao menos formalmente, a subordinar o interesse particular ao bem universal. Esse ensino dá-se a partir de uma dimensão teórica e uma dimensão prática. No entanto, Hegel não propõe uma formação teórica restrita ao mero acúmulo de informações, pois não é “coisa 1  Dentre as proposta de tradução ao complexo termo alemão, a de Suarez (2005, p. 192) surge como uma das que mais se aproxima ao significado evocado por essa ideia, ao preferir a terminologia Formação Cultural às demais traduções para a língua portuguesa – Meneses também optou por essa expressão no decorrer do Prefácio à sua tradução da Fenomenologia do Espírito (2002). Traduzir a Bildung pela expressão Formação Cultural é uma proposta que garante sua complexidade, pois é revestida por um significado duplo, a saber: o ideal pedagógico formativo assentado em solo institucional, cultural, e o ideal de um autocultivo, não necessariamente atrelado a uma instituição formativa.

214

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 214

06/11/2016 13:25:07


de memória”, mas sim o desenvolvimento da capacidade de apreensão da estrutura complexa da formulação, compreensão e comunicação dos processos de sua produção. A formação cultural capacita o indivíduo a “mover-se” entre as representações e a formulação das mesmas. Tal capacidade teórica está intrinsecamente relacionada à linguagem: “capacidade de descrever o mundo em conceitos” (HEGEL, 2010, p. 197 [§197]), possibilitando captar na sociedade civilburguesa níveis cada vez mais complexos de sociabilidade, a partir do desenvolvimento da produção, do mercado e do consumo. Evidencia-se a necessidade de criar uma linguagem que dê conta dessa complexidade e apreenda as “vinculações emaranhadas e universais” da realidade socioeconômica. Por sua vez, a dimensão prática desse processo [...] consiste no carecimento que se produz e no hábito da ocupação em geral, em seguida, na delimitação de seu atuar, em parte, segundo a natureza do material, mas, em parte, sobretudo segundo o arbítrio dos outros, e ela consiste num hábito que se adquire por essa disciplina de ter a atividade objetiva e habilidade válida universalmente (HEGEL, 2010, p. 197 [§197])

Essa dimensão prática visa aperfeiçoar a ação laboral em suas habilidades produtivas e técnicas no indivíduo em formação, de maneira que as mesmas tornem-se hábitos na vida dos indivíduos. Por meio dessa formação prática novas formas de transformar a natureza em produtos de âmbito social são desenvolvidas, capacitando os membros da sociedade a suprir cada vez mais eficientemente seus carecimentos. Mas essa formação prática também implica na “delimitação de seu atuar”, seja em sua relação com a natureza, seja com outros arbítrios, ou seja, outros indivíduos. Curiosamente Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 215

215

06/11/2016 13:25:07


é possível depreender uma dimensão ética que vá além da relação entre os indivíduos, mas que se estende à relação homem-natureza, configurando um principio ético-ecológico nessa dimensão prática, pois, se na esfera da moralidade tudo estava delimitado a consciência subjetiva, agora na eticidade o indivíduo deve considerar a natureza em sua faticidade, além do conjunto de consciências históricas que o defronta com seus arbítrios e carecimentos. Por isso, o filósofo alemão considera essa formação como um “hábito que se adquire”, ou seja, uma formação para vida cotidiana, na qual o indivíduo deverá estar preparado para tomar uma série de decisões que não devem considerar apenas sua satisfação, mas as condições materiais para tal e as implicações que terá na vida coletiva. No entanto, a formação cultural não gera igualdade absoluta, na verdade, ela é “universal”, no sentido de ser ofertada a todos, mas não “igual”, no sentido de ser experienciada e desenvolvida da mesma forma por todos. Há uma “desigualdade do patrimônio e das habilidades dos indivíduos” (HEGEL, 2010, p. 198 [§200]) que delimita a participação no desenvolver e usufruir do patrimônio universal. Por isso, a formação cultural não é garantia de igualdade dentre os membros da sociedade, mas de conscientização e organização social. Os indivíduos, em sua contingência, deverão cultivar as habilidades e produzir seus patrimônios particulares como forma de participar do patrimônio universal. Haveria uma “desigualdade entre os homens posta pela natureza”, ou seja, um elemento da desigualdade, que é produzido a partir do próprio desenvolvimento do espírito. Essa desigualdade é elevada pela razão, que, não se pode esquecer, é imanente ao sistema dos carecimentos, até uma diferenciação entre as habilidades, os patrimônios particulares, e mesmo entre a educação intelectual e moral dos indivíduos. O que justificaria uma diferença de estamentos ou classes sociais na sociedade 216

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 216

06/11/2016 13:25:07


civil-burguesa, assim como a divisão e organização do trabalho, o que não será aprofundado aqui2. Direito, lei e cidadania Seguindo a estrutura proposta por sua Filosofia do Direito, ao fim do sistema dos carecimentos o indivíduo, através de sua atividade, sua diligência e habilidade, torna-se membro de um dos estamentos sociais e adquire o reconhecimento dos demais membros. Através dessa retidão e honra do estamento, o indivíduo goza de um direito a propriedade, oriundo da universalidade da liberdade abstrata (cf. HEGEL, 2010, p. 203 [§208]). Depreende-se daí a necessidade de proteger a propriedade adquirida pelo indivíduo através de sua atividade laboral, o que inicia um novo momento da sociedade civilburguesa: a Administração do Direito. Nesse momento da eticidade, interessa saber que é a formação cultural que dá ao direito sua efetividade, na medida em que estabelece o “elemento relativo”, ou seja, a relação recíproca entre os carecimentos e o trabalho. O direito abstrato foi o começo, ainda não justificado, nem determinado, do reino do direito ou da liberdade, isso porque lhe faltava tornar a ideia do direito algo reconhecido, sabido e querido universalmente. O que somente pode ocorrer através da formação cultural, pois somente o indivíduo formado, ciente do que o direito é, poderá 2  Hegel dividira os estamentos, segundo o conceito, em: a) o estamento substancial ou imediato, representado pela agricultura e pela relação familiar, voltada para subsistência e formação básica – cultural e religiosa; b) o estamento reflexivo ou formal, representado pela indústria, pois está relacionado às relações sócio-econômicas geradas pelo trabalho reflexivo e material, motivo pelo qual engendra os estamentos do artesanato, dos fabricantes e do comércio; e por fim c) o estamento universal, que “tem por sua ocupação os interesses universais da situação social” (HEGEL, 2010, p. 201 [§205]), ou seja, os funcionários públicos, que trabalham pelo universal. Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 217

217

06/11/2016 13:25:07


desejá-lo (HEGEL, 2010, p. 203 [§209]) O direito exige a submissão ao dever, isso já fora analisado como sendo um princípio a ser interiorizado nos indivíduos em sua formação. Nessa perspectiva, o texto hegeliano enfatiza que o indivíduo, essa pessoa concreta, ao reconhecer-se como detentor de um direito a propriedade, deve aprender a reconhecer no outro seu igual, inclusive quanto a esse direito. Esse princípio é fundamental para assegurar a vida em sociedade, e implica proteger a propriedade privada. Por isso deve ser um dos conteúdos a ser desenvolvidos pela formação cultural, sendo a compreensão e o assumir desse princípio proporcionados pelo “pensar como consciência do singular na forma da universalidade” (HEGEL, 2010, p. 203 [§209, nota]), que o filósofo depreende do processo de formação. Cabe a essa formação conscientizar o indivíduo de que o direito está fundado sob o conceito de homem enquanto “pessoa universal”. Todos os indivíduos devem ser conduzidos à compreensão de que há uma identidade universal entre os homens, que perpassa suas diferenças. Entretanto, para que isso ocorra, primeiramente, o filósofo teve que formular em que os homens são iguais, já que anteriormente demonstrou a natural desigualdade entre os mesmos, inclusive no próprio desenvolvimento educacional. Nesse sentido, a afirmação: “O homem vale assim, porque ele é homem”, busca justificar o conteúdo universal que a ideia do direito carrega em si. Somente após essa conscientização o direito passa a existir na vida das pessoas, podendo ser conhecido e administrado (cf. HEGEL, 2010, p. 208 [§215]). Pois essa “consciência de importância infinita” dá ao direito sua existência histórica e social, objetivando-o para que seja posteriormente administrado. Nunca se pode esquecer que a formação cultural capacita o indivíduo para que compreenda o mundo como ele é, 218

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 218

06/11/2016 13:25:07


e assim possa intervir conscientemente no mesmo, exercendo sua cidadania. Ser consciente da ideia de direito é condição para realizá-la no mundo3, sendo a realização do direito o ser-aí da vontade livre (Dasein der Freiheit) (cf. HEGEL, 2010, p. 72 [§29]). Esse é mais um passo rumo à efetivação dos ideais da formação cultural hegeliana na ideia do Estado. Hegel não quer defender um cosmopolitismo como o fez Kant, que desconsiderou, segundo seu parecer, as contradições existentes na “vida concreta do Estado” (HEGEL, 2010, p. 203 [§209, nota]). Esse discurso cosmopolita sobre o universal é insuficiente no parecer de Hegel, pois desconsidera a historicidade imanente ao sistema sócio-jurídico a ser erigido na proteção da propriedade. Dada à existência do direito, cabe saber como administrálo. E, como o direito é o ser-aí da liberdade, sua atuação deve fornecer as condições necessárias para a efetivação dessa liberdade. Anteriormente, já fora anunciado que a liberdade está intrinsecamente relacionada com a responsabilidade, pois a consolidação de minha vontade está diretamente 3  Cabe lembrar que “o sistema do direito é o reino da liberdade efetivada” (HEGEL, 2010, p. 56 [§4]), justamente porque implica nessa formação das consciências para o exercer da ideia do direito, e não apenas da ciência positiva do direito. A essa Hegel já tecera suas críticas: “Aliás, a ciência positiva do direito não tem muito a fazer com essa definição, pois essa visa principalmente indicar o que é o direito, isto é, quais são as determinações legais particulares, razão pela qual se dizia em maneira de advertência: onminis definitio in jure civili periculosa [em direito civil, toda definição é perigosa]. E, de fato, quanto mais as determinações de um direito são incoerentes e contraditórias dentro de si, tanto menos são possíveis ali as definições, pois essas devem antes conter as determinações universais, as quais tornam imediatamente visível, em sua nudez, o que há ali de contraditório, aqui, o ilícito.” (HEGEL, 2010, p. 48 [§4, nota]) Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 219

219

06/11/2016 13:25:07


relacionada com a consolidação da vontade dos outros, ou seja, há um princípio de sociabilidade a ser considerado. Disciplinar essa relação é uma das tarefas da formação cultural, o que objetivamente ocorre a partir da lei (cf. HEGEL, 2010, p. 206 [§212])4, que garante as conquistas do indivíduo ao institucionalizar o direito. Segundo Novelli (2009, p. 115), a “lei aparece aqui como tal expressão que não se basta como expediente regulador, mas que precisa mostrar a todos como preservar um valor da organização social”. Somente o homem age disciplinado por um princípio racional historicizado, sendo sua ação dotada de um sentido. Não é apenas o instinto [“o que”] que determina a ação humana, mas os motivos racionais [“porque”] que o levam a agir no mundo [“como”]. Isso não significa que há um princípio social, ou mesmo moral, a priori que deve ser apreendido, mas que as ações dos indivíduos devem ser compreendidas e realizadas de forma consciente. Cabe salientar que, para Hegel, esse princípio não é algo a ser formulado teoricamente, mas apreendido nas próprias ações humanas, ou seja, nos hábitos, pois não expressa algo que deve ser (futuro), mas que é (presente). Quanto a isso, Hegel é explícito: “as leis vigentes numa nação, por terem sido escritas e compiladas, não cessam de ser seus hábitos” (HEGEL, 2010, p. 204 [§211, nota]). Por isso o homem deve receber uma formação que desenvolva essa capacidade de compreensão, somente assim assumirá as leis para-si.5 Essa capacidade 4  O que Jaeschke resumiu nos seguintes termos: “O conceito de direito é a unificação de minha vontade livre com outras vontades livres sob uma lei. O conceito de vontade livre não é o de uma vontade isolada, mas sim o de uma vontade, que, unificada sob a lei da liberdade, é de todos aqueles que gozam do direito.” (JAESCHKE, 2004, p. 37) 5  O que aparentemente está em consonância com a proposta de Kant, quando afirma que um homem não obedece a nenhuma lei que não seja estabelecida por ele mesmo. Sendo a lei um produto da razão, e o homem um ser racional, acataria a lei simplesmente porque é

220

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 220

06/11/2016 13:25:07


de racionalizar sua ação possibilita analisar as leis que a regem, distinguindo-o dos demais animais. Não se pode compreender a lei como algo externo a ação humana, ou seja, um princípio regulativo que se aplica a ação após sua ocorrência, a fim de determiná-la boa ou ruim. Pensar dessa forma implica em uma separação entre lei e ação, ou seja, entre forma e conteúdo, o que para Hegel é um erro. Na verdade, não há diferença entre as leis e os hábitos, ou melhor, a lei não é meramente algo escrito, como palavra morta a ser consultada em caso de uma infração e mero critério teórico para execução de uma pena, mas a descrição de ações efetivas, ou seja, ações históricas que possuem desdobramentos, circunstâncias e consequências: experiências virtuosas – que devem ser motivadas –, e experiências viciadas – que devem ser coibidas (cf. HEGEL, 2010, p. 206 [§212, nota])6. Ao criar uma lei que coíbe ingerir bebidas alcoólicas e em seguida dirigir um veículo automotivo, não estamos apenas presumindo que a bebida influenciará os reflexos do motorista lei, ou seja, porque é racional. Com isso Kant busca demonstrar que a justificação de uma ação não está em seus resultados ou consequências, eles não podem ser o fundamento de uma lei. Assim, a base do direito deve ser obedecer à lei pela lei, e não por causa de suas consequências. Isso não ocorre na proposta hegeliana, que considera os desdobramentos, as circunstâncias e as consequências dos princípios que regem a ação (cf. WEBER, 1999, p. 104-105) 6  Novelli expõe essa característica da lei em Hegel, nesses termos: “a lei não é aleatória e nem casuísta, pois se funda sobre o que já se pratica, isto é, o costume. Este não é posto ao sabor da arbitrariedade, mas somente se constitui e permanece ao sobreviver ao processo histórico que o interpela permanentemente. Sua efetivação é a expressão viva do que as pessoas pensam, desejam e fazem cotidianamente. O que é pensado, desejado, e feito, é tudo o que é querido de modo interessado pelos sujeitos. A escolha confirma a liberdade da vontade que se move pelo querer e pela possibilidade de determinar o querer.” (NOVELLI, 2009, p. 112) Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 221

221

06/11/2016 13:25:07


ao volante, mas estamos atestando que essa combinação é fatal, pois já a experienciamos. Se aplicarmos tal princípio interpretativo às leis, podemos não apenas entendê-las, mas assumi-las. Essa é a proposta hegeliana: assumir a lei não por uma obrigação externa (porque a sociedade obriga, ou por receio de multas, ou por temor de prisão), mas por ser consciente do porque ela existe, dos benefícios e malefícios sociais, e não apenas individuais, que se seguem de sua observância ou não. Porém, ainda que a formação cultural seja o processo que torne isso possível, não se pode incorrer na errônea interpretação de que a educação por ela fornecida “salvará” a sociedade, resolvendo todos os seus problemas. Na realidade, a educação capacita para a vida em sociedade, de forma que os indivíduos estejam preparados para compreender a realidade em suas contingências e deliberar conscientemente sua ação, avaliando e reavaliando os hábitos sociais. Como fora analisado na proposta pedagógica da Fenomenologia do Espírito, isso não significa que não haverá o erro, mas que o indivíduo bem formado será capaz de aprender com esse erro, caso ele ocorra. O que deve ser aplicado aos códigos públicos, que não devem ser perfeitos, mas efetivos, no sentido de que devem acompanhar as transformações histórico-sociais: Exigir de um código a perfeição, que seja absolutamente acabado, que não deva ser capaz de nenhuma determinação ulterior, [...] e pela razão de que ele não pode ser tão perfeito, não o deixar chegar a ser chamado imperfeito, isto é, não o deixar chegar a efetividade (HEGEL 2010, p. 209 [§ 216, nota])

Isso é importante, porque a formação cultural visa efetivar a liberdade, e não torná-la “perfeita”. Em Hegel o efetivo não é o perfeito, é o histórico. Por isso, exigir perfeição, no sentido de completude e conclusão, é não compreender a dialética da 222

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 222

06/11/2016 13:25:07


realidade. A liberdade traz em si particularidade/contingência e universalidade/necessidade. Ambas estão em seu processo de efetivação, pois a liberdade ocorre na contingência do agir particular na necessidade do agir universal, e vice-versa.7 De forma que o efetivo está sempre em processo de efetivação, sendo efetivo justamente por ser efetivar-se constante. Hegel já afirmara na introdução da Filosofia do Direito que: Cada grau de desenvolvimento da ideia da liberdade tem seu direito característico, porque ele é o ser-aí da liberdade numa de suas determinações próprias. [...] A moralidade, a eticidade, o interesse do Estado, cada um é um direito característico, porque cada uma dessas figuras é uma determinação e um ser-aí da liberdade (HEGEL, 2010, p. 73 [§30, nota])

A ideia de liberdade “perfeita”, na qual não haveria qualquer tipo de coação, já fora abandonada por Hegel ao analisar a abstração do livre-arbítrio (cf. HEGEL, 2010, p. 65, §15), pois compreendeu que a liberdade efetiva traz em si a coação, ou seja, impõe um limite, uma restrição: “Quem quer o grande, diz Goethe, deve saber limitar-se” (HEGEL, 2000, p. 97 [§ 13, adendo]). Mas que a ausência de paixão, a retidão, e a moderação do comportamento se tornem costume, [isso] se liga, em parte, com a cultura do pensamento e com a cultura 7  Segundo Weber: “Se houver uma predominância da necessidade, na síntese, o sistema fica totalitário, uma vez que a contingência vai sendo gradualmente eliminada. [...] Se houver uma predominância da contingência, na síntese, o sistema fica anárquico. Portanto, a dialética hegeliana, entendida como um sistema da liberdade, implica considerar toda síntese (nas diferentes figuras) como contendo em si, tese e antítese, superadas e guardadas em iguais proporções. Liberdade inclui, então, a necessidade e contingência igualmente superadas e guardadas.” (WEBER, 2001, p. 317) Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 223

223

06/11/2016 13:25:07


ética direta, que mantém o equilíbrio espiritual sobre o aprendizado do que tem de mecânico e semelhantes dentro de si as assim chamadas ciências dos objetos dessas esferas, a exigida prática das ocupações, o trabalho efetivo etc. (HEGEL, 2010, p. 277 [§296])

A confusão cometida por quem não entende essa dialética está na consideração do universal, pois há uma “diferença entre o universal da razão e o universal do entendimento” (HEGEL, 2010, p. 209 [§216]). Enquanto o primeiro expressa a mediação histórica do particular pelo universal, o segundo expressa a proposta de uma perfeição a ser buscada, mas nunca alcançada, em um perpetuar da aproximação, configurado em uma ética do dever ser8. Embora assuma que tudo é processo, Hegel não adere a um progresso infinito, a uma busca pela perfeição, que rumaria indeterminadamente para o melhor, o que afirma recorrendo a um adágio francês: “o maior inimigo do bem é o melhor” (HEGEL, 2010, p. 209 [§216]). Pois o bem não está no melhor, mas no efetivo. Prosseguindo na leitura desse momento da sociedade civilburguesa, Hegel irá preocupar-se com a aplicação do direito ao particular e ao caso singular, o que implica a formulação de contratos e formalidades, que dotarão o direito a propriedade de força jurídica. O estabelecer de um código jurídico faz-se necessário para determinar os parâmetros de aplicação da lei, que deve corresponder aos hábitos da sociedade. 8  Nunca é demais lembrar que “a filosofia, porque ela é o indagar do racional, é precisamente por isso o apreender do presente e do efetivo, não o estabelecer um além, sabe Deus onde deveria estar,– ou do qual bem se sabe dizer de fato onde está, a saber, no erro de um racionar vazio, unilateral” (HEGEL, 2010, p. 41).

224

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 224

06/11/2016 13:25:07


Mas o que interessa nesse momento é a compreensão de que somente o homem bem formado pode usufruir do ser-aí do direito. Ao tomar consciência da ideia do direito, de forma que reconheça sua efetivação na vida em sociedade, o indivíduo passa a exercê-la a partir do conhecimento que lhe compete enquanto homem cultivado (cf. HEGEL, 2010, p. 215 [§227]). Nesse ínterim, reconhece que o exercer do direito pelos particulares pressupõe a mediação do universal. A consequência dessa mediação pode ser vista em âmbito cível, pois para que não aja uma repressão do crime via vingança, faz-se necessário o erigir de um tribunal, que representará o poder público, na administração da justiça (cf. HEGEL, 2010, p. 211-217 [§219229]). Dessa forma, visando estabelecer uma organização social sólida, que não dependa das subjetividades individuais, o filósofo desvela mais uma necessidade da sociedade civilburguesa: diante das contradições e conflitos sociais, a sociedade deve realizar ações educativas, no sentido de manter a unidade social vigente. O que implica na passagem da esfera socioeconômica para a esfera política, a partir da instituição de instâncias reguladoras no seio da própria sociedade. A mencionada administração da justiça é uma dessas instâncias, que deve ser corroborada pela Administração Pública e pela Corporação. O percurso trilhado até aqui descreve didaticamente o processo de estruturação da vida em sociedade, por isso visa apresentar tanto os problemas que a assolam, quanto as formas de superá-los e garantir a convivência, e não a mera coexistência, entre seus membros. É com esse intuito que as instituições surgem no processo, pois expressam o momento da conquista de uma organização social objetiva que tem sua efetivação no Estado.

Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 225

225

06/11/2016 13:25:07


Embora a sociedade civil-burguesa ainda não seja a esfera na qual é efetivada a liberdade, a eticidade, o surgir de uma organização social cuja finalidade é preservar o interesse dos indivíduos particulares a partir de ações universais já aponta para esse fim. A partir de uma suprassunção (Aufhebung) desencadeada pelo processo da formação cultural, o interesse individual, leitmotiv da sociedade civil-burguesa, convertese no âmbito da corporação em interesse geral, conduzindo seus membros para além dessa comunidade de interesses particulares. Visto que, segundo a ideia, a particularidade mesma faz desse universal, que está em seus interesses imanentes, o fim e o objeto de sua vontade e de sua atividade, assim retorna o elemento ético como algo imanente na sociedade civil-burguesa; isso constitui a determinação da corporação. (HEGEL, 2010, p. 225 [§249])

Enquanto associação de interesses particulares comunitários (cf. HEGEL, 2010, p. 272 [§288]), a corporação, diversamente do que ocorre na família, não promove o interesse geral através de uma imposição da autoridade, mas a partir da confiança de seus próprios membros entre si. Nesse sentido, a corporação prefigura o Estado, porque conduz ao exercer da cidadania, fim ético da ação social. E para o filósofo, a ação social desempenhada na corporação possibilita a convivência e a cooperação entre os membros da sociedade, expressando a atitude esperada por quem passou pela formação cultural. Dessa forma, a corporação é um momento objetivo desse processo formativo, pois nela os indivíduos são conduzidos ao universal a partir de sua colaboração mútua, pois assume o caráter de uma segunda família (cf. HEGEL, 2010, p. 226 [§252]), transmitindo aos membros da sociedade civil-burguesa a força da comunidade ética, pois revelam uma prática que antecipa 226

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 226

06/11/2016 13:25:07


o exercício concreto da cidadania, ou melhor, da efetiva vida ética no Estado. O espírito da corporação, que se engendra na legitimação das esferas particulares, reveste-se ao mesmo tempo para dentro de si mesmo no espírito do Estado, visto que ele no Estado tem o meio de conservação de seus fins particulares. Esse é o segredo do patriotismo dos cidadãos segundo esse aspecto, de que eles sabem o Estado enquanto sua substância, porque ele conserva suas esferas particulares, sua legitimação e a autoridade como seu bemestar. No espírito da corporação, visto que ele contém imediatamente o enraizamento do particular no universal, na medida em que é a profundidade e o vigor do Estado, que ele possui na disposição de espírito. (HEGEL, 2010, p. 273 [§289])

Considerações finais: Como o Estado efetiva o Cidadão (e vice-versa) O terceiro momento da dialética da sociedade civilburguesa corresponde a uma série de ações educativas de caráter público/universal que garantam “que o bem-estar particular seja tratado e efetivado enquanto direito” (HEGEL, 2010, p. 218 [§230]). Dentre essas ações estão a segurança das pessoas, a luta contra o crime, a regulação da economia e a educação (cf. HEGEL, 2000, p. 290 [§236, adendo]). A educação (Erzierung) é um direito do indivíduo, ao mesmo tempo em que é um dever da família e da sociedade civilburguesa – tematizada agora como família universal (cf. HEGEL, 2010, p. 221 [§239]). O desenvolvimento de conhecimentos e atitudes na formação das consciências para a vida social cabe primeiramente a ação escolar, que apresenta, ainda que formalmente, a universalidade aos indivíduos em formação.

Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 227

227

06/11/2016 13:25:08


Assim, essa formação cultural de caráter institucional fornece os fundamentos para uma elevação dos indivíduos à universalidade da vida ética, a ser efetivada na esfera do Estado. Por isso que, primando pela garantia da formação dos indivíduos para a vida social, a administração pública exerce o direito de interferir sobre o processo de formação de seus membros através de uma ação institucional que supervisione e controle as próprias instituições de ensino. A escola, assim como a corporação, configura uma instituição que garante aos indivíduos os elementos necessários à efetivação de um bem-estar particular. Ao formá-los para a universalidade, a instituição escolar prepara os indivíduos para vida ética, cultivando nos mesmos os princípios necessários à efetivação do Estado. A consciência desse papel da instituição escolar inspira na sociedade civil-burguesa uma responsabilidade educativa sobre seus membros, pois a faz reconhecer que seu próprio existir depende da consecução dessa esfera institucional. Assim, mesmo o direito dos pais de educar seus filhos está subordinado a seu dever de formá-los para a vida em sociedade. Não por acaso, Hegel transfere a sociedade civil-burguesa, na falta desse compromisso social dos pais, a responsabilidade de conduzir seus filhos à escola, assim como o de proporcionar-lhes a própria escola. Ela [a sociedade civil-burguesa] tem nesse caráter de família universal a obrigação e o direito, frente ao arbítrio e à contingencia dos pais, de ter controle e influência sobre a educação, à medida que ela se vincula com a capacidade de tornar membro da sociedade, principalmente quando ela não é completada pelos pais mesmos, porém por outros, - igualmente na medida em que para isso podem ser feitas [e] encontradas

228

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 228

06/11/2016 13:25:08


instituições comuns. (HEGEL, 2010, p. 221 [§239])

Essas ações devem promover a educação a todas as crianças, mesmo para aquelas que, comprovadamente, estejam em situação de miséria, cujos pais não possuem condições de prover sua educação. Ora, a sociedade civil-burguesa não poder permitir que os indivíduos sejam privados desse processo formativo, pois isso implicaria na privação de “todas as vantagens da sociedade, da capacidade de aquisição de habilidades ou de cultura em geral” (HEGEL, 2010, p. 221 [§241]). A consequência dessa privação seria o triste fenômeno de uma sociedade na qual os membros desenvolvem a “disposição de espírito da preguiça, à maldade e aos demais vícios que surgem de tal situação e do sentimento de sua ilicitude” (HEGEL, 2010, p. 221 [§241]). Essa é uma das principais preocupações da sociedade civilburguesa na acepção de Hegel, pois a não formação acarreta não participação, a não aquisição da cidadania: A queda de uma grande massa [de indivíduos] abaixo da medida de certo modo de subsistência, que se regula por si mesmo como o necessário para um membro da sociedade, – e com isso a perda do sentimento do direito, da retidão e da honra de subsistir mediante atividade própria e trabalho próprio,– produz o engendramento da populaça, a qual, por sua vez, acarreta ao mesmo tempo uma facilidade maior de concentrar, em poucas mãos, riquezas desproporcionais. (HEGEL, 2010, p. 223 [§244])

Dessa forma, a proposta de um controle sobre determinadas instâncias sociais, como a instituição escolar, não visa controlar a vida dos indivíduos, convém lembrar que o sistema prima pela efetivação da liberdade, mas parte do princípio de solidificar as instâncias que garantem a ordem social.

Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 229

229

06/11/2016 13:25:08


A organização social funda instituições com o objetivo de suprir sua necessidade, no entanto, as mesmas não estão ainda fundadas em princípios universais, mas em princípios puramente instrumentais, ou seja, são exclusivamente criadas para suprir os interesses dos membros da sociedade – instituições de interesse privado. Essas instituições surgem ainda por uma motivação particular, mas representam a abertura das pessoas particulares a uma esfera política, que consolida os direitos adquiridos quanto a sua propriedade privada, o que já implica a primeira figuração da ideia do Estado, consolidada nas instituições públicas, expressões concretas de um Estado constitucional na história: Essas instituições fazem a constituição, isto é, a racionalidade desenvolvida e efetivada no particular, e são, por causa disso, a base firme do Estado, assim como da confiança e da disposição de espírito dos indivíduos para com ele e são os pilares da liberdade publica, visto que nelas a liberdade particular está realizada e é racional, com isso, está presente nelas mesmas em si a união da liberdade e da necessidade. (HEGEL, 2010, p. 239 [§265])

Não por acaso a passagem da sociedade civil-burguesa para o Estado decorre da própria finalidade da corporação, a saber: alcançar o “fim universal” em si e para si, ou seja, sua “efetividade absoluta” (HEGEL, 2010, p. 228 [§256]). Ao proporcionar a seus membros uma efetiva intervenção na vida pública, na medida em que na corporação os indivíduos encontram o enraizamento do particular no universal, a mesma os forma para o universal e torna-se mais um momento do desenvolvimento do Espírito no mundo. A partir de então, Hegel argumentará no sentido de demonstrar que a ideia do Estado é a efetivação desse universal e que, através dela, os indivíduos formados efetivam em si a verdadeira vida ética. 230

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 230

06/11/2016 13:25:08


Referências HEGEL, G. W. F. Filosofia do Direito. Tradução de Paulo Meneses, Et. al. São Paulo: Edições Loyola, 2010. ______. Fenomenologia do Espírito. Tradução de Paulo Meneses com colaboração de Karl-Heinz Efken. Petrópolis: Vozes, 2002. ______. Rasgos Fundamentales de la Filosofia del Derecho o Compendio de Derecho Natural y Ciência del Estado. Tradução de Eduardo Vazquez. Madrid: Biblioteca Nuova, 2000. ______. Propedêutica Filosófica. Tradução Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1989. JAESCHKE, W. Direito e Eticidade. Porto Alegre: EDIPCURS, 2004. NOVELLI, P. G. A. A crítica de Hegel ao conceito de lei em Kant. In: Revista Páginas de Filosofia, v. 1, n. 1, p. 50-73, janjul/2009. SUAREZ, R. Nota sobre o conceito de Bildung (formação cultural). In: Kriterion, v. 46, n. 112, p. 191-198, 2005. WEBER, T. Liberdade e Estado em Hegel. In: FELTES, H. P. M.; ZILLES, U. (Orgs.) Filosofia: Diálogo de horizontes. Caxias do Sul/Porto Alegre: EDUCS/EDIPUCRS, p. 315-324, 2001. ______. Ética e Filosofia Política: Hegel e o Formalismo Kantiano. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999.

Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 231

231

06/11/2016 13:25:08


O resgate do saber teórico e prático e a legitimação de uma comunidade política Ysmênia de Aguiar Pontes Marcos Onete Fontenele Moreira Introdução É fato que se vive hoje em sociedades cuja marca fundamental é a diversidade de valores e horizontes interpretativos. A diversidade cultural e de perspectivas hermenêuticas nos põe diante de um quadro teórico, que tem como marca a pluralidade e a provisoriedade de perspectivas, e que se pergunta como é possível conviver harmoniosamente se os valores são tão díspares. A pergunta que emerge diante de tal realidade é esta: quais valores irão ser o substrato que darão normatividade às configurações históricas intersubjetivas? A partir de quais valores iremos pautar nossas configurações/ relações interpessoais? Não dispomos mais de uma moral unívoca que nos dá um sentido unitário e a partir da qual pautamos nossas relações. Ao que no mundo antigo cabia à religião e à ética dar regras de conduta, hoje cabe ao direito essa tarefa. Em sociedades complexas como a nossa, cabe ao Direito, através do monopólio estatal, solucionar a carência de normatividade. Isso se dá por meio da prescrição de condutas, que combinam legalidade e exercício legítimo do poder (MOREIRA, 2004, p. 177). Isso é o resultado das conquistas advindas com a democracia moderna. O que se pergunta é se isso é suficiente, ou seja, basta ao Estado, mediante a ameaça de sanção, garantir a prescrição pelo uso da força? Um Estado que pauta sua conduta pelo puro uso da força não estaria condenado a extinguir-se justamente porque não encontra

232

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 232

06/11/2016 13:25:08


legitimação para sua existência? Justamente, por isso carece o Estado de legitimação frente a seus cidadãos e isso se faz mediante uma participação da sociedade civil como momento indispensável de legitimação de referido Estado. Após a incapacidade desse modelo de organização social, pautado pelo positivismo jurídico, segundo o qual questões de moral e de direito são questões de foro íntimo, portanto, impossíveis de serem universalizáveis, pressuposto básico de sentenças racionais, em resolver os conflitos inerentes ao tipo de sociedade que se vivencia hoje, a resposta a essas indagações soa negativa. A associação entre poder e direito, engendrada pela modernidade e que tem no Estado-Leviatã de Hobbes sua expressão máxima (VAZ, 2002, p. 177.), em que o conceito de político, diferentemente dos antigos, resume-se ao ato de exercer eficazmente o poder, mostrou-se incapaz de responder aos anseios de uma sociedade em cujo seio repousa a ideia de uma defesa intransigente dos direitos humanos. Dito de outro modo, a marca fundamental do modo de organização das sociedades atuais só se justifica na medida em que o substrato dessa organização encontra abrigo no respeito aos ideais dos direitos humanos. Essa ideia é o mote a partir do qual todas as sociedades deverão erigir-se. Desta sorte, a emergência de um Estado Constitucional de Direito impõe, necessariamente, a necessidade de superação de um Estado positivista na medida em que este identifica o direito com o simples fato da norma jurídica posta. Assim, impõe-se um modelo de Estado que seja capaz de fundamentar racionalmente os direitos fundamentais. Destarte, essa validade racional não pode advir do simples apelo ao lema positivista, que reconhece a validade de uma norma ou identifica a validade dela a partir do simples fato de sua existência. “Assim, a validez normativa... não pode ser apenas a validez formal, típica do Estado Liberal e legalista, que se estabelece primariamente na Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 233

233

06/11/2016 13:25:08


relação entre normas porque regimes autoritários também se adequaram a esta validez, criando-se um abismo entre direito e política ou entre direito e ética”. (FERRAZ JÚNIOR, 2012, p. 20). Dessa forma, resgata-se a distinção basilar do pensamento jusfilosófico ocidental, na medida em que distingue-se ser e dever ser, fato e norma, gênese e validade. A proposta, para furtar-se a esses questionamentos, consiste em se fazer uso de uma teoria discursiva (pragmática) do direito. Só quando se recorre à participação intersubjetiva dos cidadãos na constituição das normas de conduta é que se pode chegar à legitimidade plena de um sistema jurídico. O estreitamento da concepção de saber: um pressuposto empirista frágil A filosofia emerge no Ocidente em um contexto bem específico de crise da civilização grega. Essa civilização entra em crise quando suas convicções, quando seu modo de organização individual e coletivo perde a evidência. As explicações míticas sobre o modo de o homem grego conhecer a si mesmo e ao mundo a seu redor já não são mais aceitáveis. O substrato conceitual de explicação da realidade, seja individual ou coletiva, perde sua razão de ser e sua evidência. Esse tipo de explicação já não é mais razoável: as religiões, o mito, a tradição já não são mais suficientes para explicar a conexão causal da realidade (ARISTÓTELES, 2002, Vol. II, A 3, 983b 1-27), nem muito menos explicar qual o sentido e o lugar da vida individual e coletiva na pólis grega. Desfaz-se, assim, aquela ordem natural, aquela visão ordenadora do cosmos e integradora de valores que conferia homogeneidade ao modo de ser e conhecer do homem antigo. A filosofia então surge como saber capaz de justificar sua pretensão de dizer como o mundo é, de explicitar as diversas conexões existentes entre as esferas da realidade, de conceder sentido ao modo de viver individual e coletivo. Como discurso 234

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 234

06/11/2016 13:25:08


racional, a filosofia é um saber sobre as indagações humanas a respeito do cosmos, sobre o lugar que o homem ocupa nele e, posteriormente, sobre os grandes problemas e inquietações que afligem o ethos humano, na medida em que se discute sobre como o homem deve agir para ser feliz, para ser um ser ético, numa palavra, para atingir o bem (BERTI, 2013, p. 4993). Essas discussões afloram em um contexto de crise daquela sociedade, cabendo à filosofia envidar esforços para elevar o saber humano a um patamar conceitual nunca antes imaginado, cuja característica básica reside na razão demonstrativa (logos apodeixis) e não mais nas narrativas míticas. A tradição greco-medieval concebe a filosofia como um saber englobante, capaz de dar explicações seja a um modo de vida individual, para se atingir a felicidade, seja do modo como o homem deve organizar as instituições sociais de modo que se promova a justiça como um bem comum. Além disso, ela busca explicitar as leis mais gerais do universo de modo a se chegar a uma metafísica, que daria o sentido último do modo como o homem deve ser e agir, seja na vida individual, seja na vida coletiva. Esse modo de se conceber a filosofia passou por profundas mudanças com o advento da modernidade. A própria concepção de saber filosófico passa por mudanças estruturais frente ao advento da eclosão do saber científico. Filosofia não se confunde mais com ciência, nem muito menos se entende como um saber que seria o coroamento do saber científico. Na concepção de saber vigente hoje, a filosofia não se entende mais como saber englobante, capaz de conceituar as diversas esferas do real. À ciência cabe essa tarefa. Falar do real, dizer o que o mundo é, como os fenômenos se comportam é tarefa das ciências, porque ela dispõe de um método próprio e de um aparato conceitual apropriado para problematizar a realidade, na medida em que consegue intervir eficazmente. Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 235

235

06/11/2016 13:25:08


Restou à filosofia, após a revolução copernicana do pensar, operada por Kant, com sua Crítica da Razão Pura (KANT, 1994, B XVI), tratar daquela esfera, que Kant chama de transcendental, que torna possível o homem conhecer o real, o mundo, enquanto fenômenos, enquanto modo de darse ao homem, cuja estrutura conceitual é a responsável pelas afecções da experiência. A partir de agora, a filosofia não fala mais sobre o mundo, ela não tem mais como fazer isso, por limitações estruturais, só resta a ela, então, tematizar aquela esfera que torna possível a ciência falar sobre o mundo. Tratar do real, falar sobre o mundo, isso é tarefa para as diversas ciências. À filosofia cabe explicitar aquela esfera presente na subjetividade humana que torna o conhecimento possível, que garante necessidade e universalidade, ao dado da experiência, por se tratar de uma esfera a priori e necessária (KANT, 1994, B 25-27, A 13). Mas sobre o mundo mesmo nada se pode falar, portanto, o conhecimento humano restringe-se ao mundo fenomênico (KANT, 1994, B XIX - XX). A partir daqui a filosofia se vê frente a várias dicotomias: particular/universal; sujeito/ objeto; teoria/prática; indivíduo/sociedade, e tantos outros dilemas que questionam a objetividade e possibilidade mesma do saber teórico e prático. Diante de uma sociedade tão complexa, heterogênea e efêmera, na qual se vive, parece óbvio que a filosofia não teria muito ou quase nada a dizer, até porque ela, com suas pretensões universalistas, teria um tipo de discurso que não encontraria eco no mundo contemporâneo, portanto, seria um discurso anacrônico. Seu aparato conceitual não se coaduna com um saber fragmentado, particularizado e provisório. Desse modo, em um mundo técnico-científico, a filosofia teria uma tarefa como que terapêutica, um discurso prazeroso para reuniões agradáveis ao fim da tarde, mas que não tem condições teóricas para falar algo responsável ao homem e ao 236

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 236

06/11/2016 13:25:08


mundo de hoje, e isso por dois motivos: primeiro, do ponto de vista teórico, a partir de uma perspectiva empirista, porque a filosofia é incapaz de lidar com a realidade, ela não tem nem instrumental teórico, nem método apropriado para tal intento. Desse modo, é a ciência o único saber responsável porque capaz de universalização, através do seu método empírico-analítico; e em segundo lugar, do ponto de vista prático, a filosofia é incapaz de prescrever normas de conduta, a partir do interdito humeano da falácia naturalista, segundo o qual, de fato, não se deduz normas. Assim as ações são frutos de escolhas individuais, baseadas em motivos intimistas, particularistas, arbitrários dos indivíduos, portanto, não passíveis de universalização. Essa concepção de saber vigente hoje é uma concepção atrofiada de saber e que não só não resolve os problemas nos quais se vive, mas, ao contrário, os acentua. Daí a necessidade de se recuperar uma concepção de saber mais ampla e que incorpore duas dimensões igualmente importantes no ser humano: as dimensões teórica e prática. Nesse sentido, propõe-se alargar a concepção de saber teórico, que não seria redutível às ciências empírico-analíticas e, por outro lado, recuperar a concepção de saber prático como saber responsável e passível de justificação, portanto, postula-se a possibilidade do cognitivismo ético, já que o saber hegemônico, hoje vigente na sociedade pluralista e instrumental (Habermas), rejeita a ideia de uma razão prática, seja ética, (ação/construção do indivíduo) enquanto uma reflexão sobre a ação humana; seja política, (configuração de instituições) enquanto teoria normativa das instituições. Com efeito, a proposta que se coloca é alargar a concepção de saber, tanto teórico quanto prático, e recuperar essa dupla dimensão da vida individual e coletiva na sociedade na qual se vive. Nesse contexto de estreitamento da concepção de saber, o único saber responsável e capaz de trazer benécies ao ser humano é o saber científico, porque capaz de livrá-lo das mazelas Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 237

237

06/11/2016 13:25:08


que afligem a humanidade desde sempre, sejam essas mazelas teóricas ou práticas. Só a razão científica é capaz de elevar o ser humano a um estado de espírito autônomo, portanto, leválo à maioridade, através do uso correto da razão. A hipótese levantada nesse trabalho é a de que essa concepção de saber vigente hoje é uma concepção atrofiada de saber e que não só não resolve os problemas nos quais se vive, mas, ao contrário, os acentua. Não por acaso um pensador como Herbert Marcuse escreveu um livro cujo título, “O homem Unidimensional”, ilustra bem o momento vivido de exacerbação da razão enquanto técnica. Daí a necessidade de se recuperar uma concepção de saber mais ampla e que incorpore duas dimensões igualmente importantes no ser humano: as dimensões teórica e prática. Nesse sentido, propõe-se alargar a concepção de saber teórico, que não seria redutível às ciências empíricoanalíticas e, por outro lado, recuperar a concepção de saber prático como saber responsável e passível de justificação, portanto, postula-se a possibilidade do cognitivismo ético, já que o saber hegemônico hoje vigente na sociedade pluralista e instrumental (Habermas) rejeita a ideia de uma razão prática, seja ética, (ação/construção do indivíduo) enquanto uma reflexão sobre a ação humana; seja política, (configuração de instituições) enquanto teoria normativa das instituições. Com efeito, a proposta que se coloca é alargar a concepção de saber, tanto teórico quanto prático, e recuperar essa dupla dimensão da vida individual e coletiva na sociedade na qual se vive. Nesse contexto de estreitamento da concepção de saber, o único saber responsável e capaz de trazer benesses ao ser humano é o saber científico, porque capaz de livrá-lo das mazelas que afligem a humanidade desde sempre, sejam essas mazelas teóricas ou práticas. Só a razão científica é capaz de elevar o ser humano a um estado de espírito autônomo, portanto, leválo à maioridade, através do uso correto da razão. 238

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 238

06/11/2016 13:25:08


O projeto emancipatório da modernidade, segundo o qual a humanidade iria chegar à maioridade, ao esclarecimento, para usar uma palavra de Kant, através do uso da razão, malogrou. Esse projeto significava a emancipação humana em todos os aspectos da vida individual e coletiva, através do uso progressivo da razão para solucionar os problemas e as contradições humanas. Na verdade, esse projeto iluminista levou a humanidade para eclosão de diversas patologias sociais, a partir de um uso atrofiado da razão; através da colonização do universo simbólico, dos mundos vividos pelas esferas sistêmicas da vida: economia, direito. A razão se imiscuiu com o processo de produção engendrado com o advento do capitalismo, elevando ao limite a especialização do conhecimento motivado pelas regras de produção do trabalho, copiado das ciências ditas exatas, pelas ciências ditas humanas, de sorte que, se antes o saber, a razão eram sinônimos de emancipação humana, hoje essa razão tornou-se técnica enquanto manipulação eficaz no processo de produção. E se a burguesia usou essa mesma razão para libertarse e promover a liberdade, esse discurso foi sedutor, enquanto foi conveniente para efetivar seus interesses, enquanto gestora da sociedade. O desencantamento do mundo, vivido por sociedades complexas como a nossa, na qual explicações míticas, religiosas da realidade são substituídas por explicações conceituais, seja jus-filosóficas ou técnico-científicas, deixou um vácuo epistêmico, na medida em que o mundo da vida foi colonizado por outras esferas administrativas da razão. Ou seja, o conceito de razão com que se trabalha hoje é um conceito atrofiado de razão, na medida em que se confunde razão com ciência, uma vez que apenas discursos científicos são passíveis de legitimação, são os únicos responsáveis, porque capazes de universalização. Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 239

239

06/11/2016 13:25:08


Quando se reflete sobre os amplos aspectos da vida em sociedade, percebe-se facilmente que o uso da razão no seu aspecto apenas técnico-científico, embora altamente necessário e eficaz, é um uso bastante limitado e que perpassa um importante aspecto da vida atual, mas ainda sim, deveras limitado. Sob esse conceito de razão, muitas questões cruciais da vida seriam carentes de legitimação. “Percebe-se que mesmo quando todas as questões científicas possíveis tenham obtido resposta, mesmo assim os problemas da vida não terão sido sequer tocados” (WITTGENSTEIN, 1994, 6.52, p. 279). Essas palavras de Wittgenstein revelam a angústia de um pensador que percebeu a contradição na qual se enredou ao legitimar um uso da razão restrita ao seu aspecto formal-científico. Percebese, pois, que a vida em sociedade tem que ser problematizada em todos os seus aspectos. Diante disso, propõe-se abordar a razão em toda a sua plenitude, legitimando outros aspectos da vida antes negligenciados, ou melhor, impossíveis de serem abordados racionalmente, haja vista a razão não tocar neles, pois incapazes de serem abordados pelo viés de um discurso racional. Nessa perspectiva, esses aspectos da vida eram restritos a abordagens subjetivas, intimistas. Daí a velha máxima: política (ética) e religião não se discutem, uma vez que a discussão pressupõe levantar pretensões de validade e ser capaz de justificar tal pretensão por meio de critérios racionais, em princípio, universalizáveis. Ora, a política (ética) e a religião são frutos de decisões pessoais, emotivas, questões de foro íntimo e preferências subjetivas, portanto, impossíveis de serem universalizáveis. Esse tipo de pensamento fora consolidado pela filosofia analítica no início e meados do século passado. Para essa postura, a 240

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 240

06/11/2016 13:25:08


linguagem fala do mundo por meio de sentenças declarativas, que, em princípio, podem ser verdadeiras ou falsas. Ora, tendo como pressuposto que somente esse tipo de sentença pode ser verdadeiro ou falso, e não estando as proposições normativas dentro desse tipo de sentença, é logicamente forçoso concluir que seu discurso se insere dentro de um contexto em que tais proposições normativas não possuem conteúdo cognitivo, uma vez que suas sentenças não estão dentro do universo das sentenças declarativas, que têm como pressuposto a bipolaridade como sua condição de verdade. Não tratando do que é, mas do que deve ser, do que é justo ou razoável, o discurso filosófico éticopolítico padece de legitimidade frente a um mundo cada vez mais técnico-científico, no qual as diversas esferas da vida são suplantadas pela esfera econômica, tornado as outras esferas órfãs e dominadas por sua lógica. Obviamente essa conclusão ocorre se se assume seus pressupostos, mas dentro da própria filosofia analítica ocorreram vozes discordantes, a começar por Quine, com seu célebre artigo, os dois dogmas do empirismo (QUINE, 2011, p. 37-71). Diante disso, propõe-se abordar a razão em toda a sua plenitude, legitimando outros aspectos da vida antes negligenciados, ou melhor, impossíveis de serem abordados racionalmente, haja vista a razão não tocar neles, pois incapazes de serem abordados pelo viés de um discurso racional. Nessa perspectiva, esses aspectos da vida eram restritos a abordagens subjetivas, intimistas. Daí a velha máxima: política e religião não se discutem. É diante desse desafio que Apel e Habermas emergem no contexto filosófico contemporâneo como aqueles pensadores, cada qual a seu modo, que ousaram discordar das teses das filosofias contemporâneas, notadamente as da analítica e da hermenêutica e, de novo, põem o discurso filosófico como saber responsável, universal e capaz de ser novamente filosofia Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 241

241

06/11/2016 13:25:08


primeira, porque fundamentada em última instância. Embora, nesse aspecto, Habermas tem se distanciado cada vez mais de Apel. Apel e Habermas: uma briga de família. Alargamento da concepção de saber e a legitimação de um Estado de Direito Em Kant, a reflexão transcendental se dá através da pergunta pela estrutura da subjetividade humana que torna o meu conhecimento do mundo possível. Filosofia, para Kant, portanto, só é possível enquanto filosofia transcendental, na medida em que com ela se atinge clareza sobre o método mesmo da filosofia e sua tarefa na vida humana. Filosofia deixa de ser consideração sobre o mundo, como na filosofia antiga, e passa a ser tematização da estrutura da subjetividade no seu encontro com os objetos da experiência. Na filosofia contemporânea, há uma nova mudança. Se na Antiguidade e na Modernidade tínhamos, respectivamente, os paradigmas do ser e da consciência, agora nós temos um terceiro paradigma, que é o da intersubjetividade, que tem na linguagem o seu eixo de articulação. E dentre os filósofos vivos, Apel e Habermas seja talvez o que melhor representem essa escola. Karl-Otto Apel (2000, Vol. II, p. 353) e Jurgen Habermas (2004, p.18), tendo consciência a respeito dos avanços atingidos com a filosofia de Kant, perguntam-se se a filosofia da linguagem pode e deve assumir hoje a mesma função que na modernidade foi reservada à filosofia transcendental kantiana. Se na filosofia da modernidade, abordada enquanto epistemologia, a preocupação era com a consciência, na filosofia contemporânea, o filósofo passa a se preocupar com a linguagem, pois esta assume o lugar antes reservado à consciência na epistemologia tradicional. Deve-se esclarecer que, para ambos os pensadores, não se trata de tematizar a linguagem como um objeto a mais 242

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 242

06/11/2016 13:25:08


para ser considerado dentre muitos possíveis. Trata-se, isso sim, de uma “transformação da própria filosofia” (OLIVEIRA, 1996, p. 249), o que significa, em última análise, uma “[...] reflexão sobre as condições de possibilidade linguísticas da cognição” (APEL, 2000, Vol. II, p. 354). A pragmática transcendental ou universal, seja de Apel ou de Habermas são, com efeito, filhas legítimas da filosofia transcendental kantiana, rearticulada a partir do confronto com duas outras tradições da filosofia contemporânea, a saber, a filosofia hermenêutica e a filosofia analítica. Apel e Habermas são extremamente conscientes do contexto relativista e cético que os cercam e no qual eles vão edificar seus respectivos pensamentos filosóficos. Destarte, eles vão ter que, assim como Kant tentara fazer no passado, justificar a sua filosofia. Aliás, para Apel e Habermas, e essa é uma questão de importância fundamental, toda filosofia que queira minimamente ser levada a sério tem que necessariamente justificar o que faz, esclarecer, de antemão, o seu procedimento para se isentar de qualquer crítica que o acuse de ingenuidade, por não mostrar, pelo menos, com que tipo de filosofia se trabalha e como ela se legitima. Para os pensadores alemães, portanto, a filosofia perdeu a credibilidade de que gozava no mundo clássico e, por isso, é convidada a se explicar. O último grande sistema que tem a pretensão de considerar a totalidade do real em sua filosofia é o sistema hegeliano. Depois dele, essa tentativa é considerada não só anacrônica, mas absurda e incapaz de concretizar-se, pois o mundo filosófico contemporâneo é marcado por uma razão que não tem pretensões universalistas; uma razão que se satisfaz com o particular (CIRNE-LIMA, 1996), uma razão fragmentada e consciente da sua incapacidade de se fundamentar em última instância, portanto, absorvida pela ideia segundo a qual a

Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 243

243

06/11/2016 13:25:08


fundamentação é impossível, e aquilo a que podemos aspirar são afirmações provisórias e contingentes. Essa maneira de pensar é brilhantemente representada pelo método axiomáticodedutivo, coroado pelas ciências empírico-analíticas, cujo procedimento consiste em insistir na provisoriedade de suas teses e na incapacidade de se chegar a princípios últimos (OLIVEIRA, 1996, p. 249-253). É precisamente nesse contexto de crise que Apel e Habermas vão estruturar suas propostas de filosofia, suas particulares leituras do transcendental de Kant e do modo como eles leem a reviravolta pragmática da filosofia, dialogando com as duas correntes de pensamento hegemônicas no mundo contemporâneo. A preocupação primeira desses pensadores será, portanto, em pôr a razão como algo fundamental na vida humana (HABERMAS, 2013, p. 18-20). Escolheu-se um quadro teórico específico, o pensamento transcendental, para enfrentar o problema aludido. O pensamento transcendental aqui é representado por esses dois pensadores, que o reformulam a partir do contato com a reviravolta linguístico-pragmática, principalmente, a partir da pragmática de Peirce. Prefere-se esses dois pensadores ao invés de outros, pois ambos são filósofos transcendentais, que tentam descobrir, cada qual a seu modo, aquela instância que é condição de possibilidade e validade do conhecimento e da ação humanas, enquanto tal. Em ambos os pensadores, temos a mesma preocupação: descobrir o ineliminável na vida humana, chegar àquilo que é pressuposto da própria dúvida. A resposta deles é que diverge: se, em Habermas, a esfera que garante a validade do conhecimento e da ação humana são os pressupostos presentes na linguagem, mesmo que estes pressupostos não sejam últimos, uma vez que dependem sempre dos diversos contextos nos quais ela está inserida, por isso, cada vez mais Habermas aproxima-se de Rorty (contextualismo) e 244

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 244

06/11/2016 13:25:08


Brandom (pragmatismo inferencialista); em Apel, essa esfera de validade se desloca para a práxis linguística, ou melhor, para os pressupostos necessários e irrecusáveis de todo discurso teórico ou prático. Por conseguinte, para Apel, o discurso filosófico é um saber responsável, racional, universal e que, para fundamentar suas teses, necessita ter um método de fundamentação próprio, diferente do usado pela ciência, que se dá por um retorno reflexivo sobre o discurso, sobre a própria linguagem, a fim de se alcançar algo ineliminável na vida humana: as condições pressupostas em todo discurso sensato. Apel trava um verdadeiro debate com as principais correntes do seu tempo, a fim de convencê-las de que o discurso filosófico é um saber responsável e que, para fundamentar suas teses, necessita ter um método de fundamentação próprio, diferente do usado pela ciência, que se dá por um retorno reflexivo sobre o discurso, sobre a própria linguagem, a fim de se chegar a algo irrenunciável na vida humana: as condições pressupostas em toda práxis linguística. Apel pretende, portanto, restabelecer a razão como algo intranscendível na vida humana, mostrando, aos relativistas e céticos, que eles sempre pressupõem aquilo que querem negar. E isso só é possível, segundo Apel, através de uma filosofia transcendental reflexiva da intersubjetividade. Apel discute também as limitações da concepção de razão no seu uso técnico-científico. Ele não quer aqui negar as grandes conquistas da vida contemporânea após a associação entre ciência e técnica. Ele frisa que esse modelo, embora importantíssimo, não esgota o saber humano. E Apel tenta mostar a contradição na qual se envolve o cientista quando pensa ser possível legitimar suas teses ou teorias fazendo uso do próprio discurso científico no qual o método dedutivo é o único possível. Cai-se aqui no que se convencionou chamar de

Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 245

245

06/11/2016 13:25:08


‘trilema de münchhausen’: regresso infinito; círculo lógico ou procedimento dogmático. Interessante notar queApel e Habermas chegam a conclusões opostas fazendo uso da mesma reflexão transcendental mediada pragmaticamente. A cisão entre ambos os pensadores diz respeito à fundamentação da dimensão normativa da linguagem a partir do ponto em que se fundamentam e explicitam os diferentes discursos normativos, seja da moral, do direito e da democracia. Enquanto Apel chega a princípios últimos e irrecusáveis, portanto, a uma fundamentação última e válida a priori das pretensões filosóficas de validade das sentenças pragmático-transcendentais; para Habermas, a essas próprias sentenças devem ser aplicadas o princípio do falibilismo, de modo que ele considera essas condições necessárias da linguagem como contextuais, históricas e contingentes, denominando sua posição de um ‘naturalismo fraco’. Habermas acusa Apel de cair em uma ‘falácia idealista’ na medida em que não trabalhando apropriadamente a concepção pragmática do conhecimento continua situando o transcendental ‘fora desse mundo’. Para Apel, no entanto, Habermas confunde filosofia e sociologia, perdendo cada vez mais a dimensão crítica da linguagem em favor de um destrancendentalização do discurso, e diz que a pergunta transcendental, no sentido inaugurado por Kant, tornou-se hoje mais premente. E a cisão entre os dois pensadores torna-se mais crítica quando Habermas postula um princípio neutro do discurso, fazendo com que Direito e Moral sejam co-originários. Ora, para Apel, o próprio direito e seu aparato coercitivo estatal necessitam de uma justificação racional, filosófica, que não encontra no próprio seio do direito sua razão de ser. Por isso, parte-se do princípio do discurso, como médium intransponível do discurso humano, no qual está contido o princípio moral por excelência e dele decorrem todas as outras esferas de universalização e aplicação de normas de 246

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 246

06/11/2016 13:25:08


condutas que se concretizam através da aplicabilidade desses princípios em contextos históricos específicos por meios de instituições, dentre eles o Direito, que efetivam tais valores já justificados argumentativamente. Diante desses desafios, Apel e Habermas serão os pensadores que buscam uma alternativa na qual a razão seja o baluarte de uma organização social. Com isso, eles farão um resgate da filosofia kantiana, modificada a partir do confronto com o uso pragmático da razão. Assim, eles propõem uma teoria discursiva que perpassa os diversos discursos possíveis: seja o teórico, seja o prático, que se divide em ética e política (direito), uma vez que as teses a que se chega são obtidas tendo no momento do discurso o seu afloramento. Através dos parceiros do discurso chega-se, via explicitação dos pressupostos inerentes a toda linguagem, aos valores que se quer sejam perpetuados por uma sociedade racional, digna, solidária, emancipada e livre das injustiças sociais que assolam a humanidade em pleno século XXI. Algumas questões se impõem diante das propostas de Apel e Habermas, que pensam dentro de pressupostos abertos pelo pensamento transcendental, mesmo que reformulado a partir do confronto com a ‘lingustic turn’. Há proposta viável para a crise porque passa a filosofia, em particular, e a cultura humana, de forma geral, dentro da tradição de pensamento transcendental, na qual Apel e Habermas se movimentam teoricamente? Superar os dilemas, em que se envolve toda filosofia da subjetividade, a partir do paradigma da intersubjetividade, é suficiente para enfrentar-se a crise civilizatória que perpassa a humanidade hoje? Os conceitos teóricos alavancados por Apel e Habermas são suficientes para desempenhar um papel de guardião da dignidade da pessoa humana, dos direitos humanos, de uma Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 247

247

06/11/2016 13:25:08


civilização emancipatória, que tem no direito sua expressão máxima? E, por fim, os valores decorrem única e exclusivamente daquilo que se é convencionado, ou existe uma esfera anterior, que não é redutível ao consenso? Como Apel e Habermas enfrentam essa problemática sem retornar a uma metafísica ingênua, para falar com Kant? A proposta deles é suficiente, ela não redundaria em um círculo vicioso, em que aquilo que se quer provar é condição de possibilidade para o argumento? A verdade decorre do consenso ou é algo anterior a ele? Os limites impostos à filosofia, pelo pensamento transcendental, mesmo que pós-reviravolta linguística, são suficientes para enfrentar essas questões com honestidade intelectual? Não seria mais satisfatório, do ponto de vista conceitual, e seria mais apropriado para equacionar esses problemas, um retorno a uma ontologia, e que é impossível de se chegar a ela dentro de um pensamento transcendental, mesmo que reformulado? Apel e Habermas abrem espaço dentro de suas respectivas filosofias, para se chegar a esse suposto avanço intelectual? É certo que a ontologia aqui mencionada é pensada a partir da primazia da semântica, dentro do conceito de quadro referencial teórico, como sugere Puntel (2008). Essas são algumas indagações que emergem quando se pensa dentro dos limites formais decorrentes da tradição transcendental de pensar. Considerações finais O trabalho tenta discorrer sobre o grande debate que Apel e Habermas travam com as principais correntes do seu tempo, a fim de mostrar-lhes que o discurso filosófico é um saber responsável e que, para fundamentar suas teses, necessita ter um método de fundamentação próprio, diferente do usado pela ciência, que se dá por um retorno reflexivo sobre o discurso, 248

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 248

06/11/2016 13:25:08


sobre a própria linguagem, a fim de se chegar a algo ineliminável e irrecusável na vida humana: as condições pressupostas em todo discurso sensato. Embora, para Habermas, cada vez mais esse fundamento é dependente do contexto, portanto, ele cada vez mais rejeita certezas últimas, e o ineliminável a que chega é sempre dependente do contexto, logo, o ineliminável é dependente das condições que engendram o contexto no qual está inserido. Apel e Habermsas pretendem, portanto, restabelecer a razão como algo indispensável na vida humana, mostrando, aos relativistas e céticos, que eles sempre pressupõem aquilo que querem negar. Esse restabelecimento da razão é feita tanto no nível teórico, quanto no nível da razão prática. E isso só é possível, segundo Apel, através de uma filosofia pragmáticotranscendental reflexiva da intersubjetividade. Somente o resgate dessa dupla dimensão da razão, restabelecendo, assim, o cognitivismo teórico e prático em nossa cultura, chegar-se-á a um ambiente espiritual no qual a obrigatoriedade das sentenças normativas e jurídicas seja sustentada pelo reconhecimento intersubjetivo dos parceiros de uma comunidade real e ideal de comunicação, que encontra sua efetivação maior em um solo histórico no qual o baluarte da organização social se dá através de valores cujo ápice encerrase com um modo de organizar a vida respaldado por uma sociedade que deita suas raízes em um poder estatal radicado no direito, cuja marca maior é a justiça. Referências APEL, Karl.-Otto. Transformação da filosofia I: Filosofia analítica, semiótica, hermenêutica; Vol. II: O a priori da comunidade de comunicação. Trad. Paulo Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 2000.

Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 249

249

06/11/2016 13:25:08


­­­­­ ______. Ética e Responsabilidade. O problema da Passagem para a moral pós-convencional, Trad. Jorge Telles Menezes. Lisboa: Instituto Piaget, 2007. APEL, Karl-Otto; OLIVEIRA, Manfredo Araújo de; MOREIRA, Luiz. Com Habermas, contra Habermas: direito, discurso e democracia. Organizador: Luiz Moreira. Tradução dos ensaios de Apel: Cláudio Molz; Revisão da Tradução: Luiz Moreira. São Paulo: Landy, 2004. ARISTÓTELES. Metafísica. Ensaio introdutório, texto grego com tradução e comentários de Giovanni Reale. Tradução de Marcelo Perine. Vol. I: ensaio introdutório; Vol. II: texto grego com tradução ao lado; Vol. III: sumários e comentário São Paulo: Loyola, 2002. CIRNE-LIMA, Carlos Roberto Velho. Dialética para principiantes. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996. FERRAZ JR., Tércio Sampaio. A Legitimidade Pragmática dos Sistemas Normativos. In: MERLE, Jean-Christophe; MORERIA, Luiz (org.) Direito e Legitimidade. São Paulo: Landy Editora, 2003. ______. Prefácio à segunda edição. In: Otto, Écio. Teoria do Discurso e Correção Normativa do Direito. Florianópolis: Conceito Editorial, 3ª ed. 2012. HABERMAS, Jurgen. A filosofia como guardador de lugar e intérprete. In: Consciência Moral e Agir Comunicativo. Tradução de Guido A. de Almeida, Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1989. ______. Pensamento pós-metafísico. Estudos filosóficos. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990. ______. A ética da discussão e a questão da verdade: organização e introdução de Patrick Savidan. Tradução de Marcelo Brandão 250

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 250

06/11/2016 13:25:09


Cipolla. 3ª ED. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013 ______. Verdade e justificação: ensaios filosóficos. Tradução: Milton Camargo Mota. São Paulo. Edições Loyola, 2004. ______. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Vol. I. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. HERRERO, Francisco Javier. Ética do Discurso. In: OLIVEIRA, M. A. de (org.) Correntes Fundamentais da Ética Contemporânea. Petrópolis: Vozes, 2000. ______. A razão kantiana entre o logos socrático e a pragmática transcendental. Síntese nova fase, nº 52, São Paulo: Edições Loyola, 1991. KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. Introdução e notas de Alexandre Fradique Morujão. 3ª. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994. ______. Prolegómenos a toda a metafísica futura. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1987. LIMA VAZ, Henrique Cláudio de. A Metafísica na Modernidade. In: Escritos de Filosofia III. Filosofia e Cultura, São Paulo: Loyola, 1997. ______. Escritos de filosofia VII: Raízes da modernidade. São Paulo: Loyola, 2002. MOREIRA, Luiz. Fundamentação do Direito em Habermas. 3ª ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004. MOREIRA, Luiz. Introdução à edição brasileira. In: GÜNTER, Klaus. Teoria da argumentação no direito e na moral: justificação e aplicação. Tradução de Cláudio Molz. Coordenação, revisão técnica e introdução à edição brasileira de Luiz Moreira. São

Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 251

251

06/11/2016 13:25:09


Paulo: Landy, 2004. OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. A ética do discurso. In: Ética e racionalidade moderna. 3ª ed. São Paulo: Ed. Loyola, 2002. ______. Ética, Direito e Democracia. São Paulo: Paulus, 2010. ______. Reviravolta lingüístico-pragmática contemporânea. São Paulo: Loyola, 1996.

na

filosofia

______. Sobre a fundamentação. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1993. WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus logico-philosophicus. Tradução, apresentação e ensaio introdutório de Luiz Henrique Lopes dos Santos. 2ª edição revista e ampliada. São Paulo: Edusp, 1994.

252

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 252

06/11/2016 13:25:09


Para além das diferenças de gênero: o enfoque político da ética do cuidado Maria da Penha Felício dos Santos de Carvalho

O patriarcado exclui o amor entre iguais, exclui, portanto a democracia - que se baseia nesse tipo de amor - e a liberdade de voz que ele incentiva. (GILLIGAN, 2010, p.36)

Introdução Desde sua publicação, em 1982, a obra Uma Voz Diferente, da psicóloga norte-americana Carol Gilligan1, suscitou grande interesse entre teóricos de diversas áreas de conhecimento, sobretudo entre aqueles que se ocupam dos estudos de gênero. Na obra, a autora apresenta os princípios da sua ética do cuidado, bem como defende a tese de que mulheres e homens alcançariam graus diferenciados de maturidade moral percorrendo caminhos diversos. Ao sustentar tal tese, Carol Gilligan está colocando em questão a pretensão à universalidade da teoria do desenvolvimento moral do psicólogo e filósofo Lawrence Kohlberg, de quem foi aluna e colaboradora. Assim sendo, mesmo não tendo formação filosófica sistematizada, mesmo tendo construído sua teoria a partir da observação empírica, a crítica de Gilligan ao modelo de Kohlberg pode ser vista como uma contribuição importante para a discussão ética contemporânea, uma vez que contesta o ainda predominante paradigma da moralidade autônoma, que vincula maturidade 1  Carol Gilligan nasceu em Nova York em novembro de 1936. Hoje, aos 79 anos, ainda tem presença acadêmica importante nas Universidades de Harvard e de Nova York. Em 1997, tornou-se a primeira professora de estudos de gênero em Harvard. Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 253

253

06/11/2016 13:25:09


moral ao uso exclusivo de princípios estritamente racionais, puros, nos julgamentos e nas decisões morais. Em escritos publicados a partir de 2000, além de se empenhar em demonstrar que a neutralidade de gênero da teoria universalista de Kohlberg é equivocada – já que o universal é determinado pelo masculino – Gilligan expressa uma nova versão da ética do cuidado. Nesta segunda fase de seu percurso acadêmico, a autora não só aprofunda e amplia posições defendidas em sua primeira obra, como desenvolve certos pontos de vista que tinham sido apenas esboçados em 1982. É, portanto, a partir dessa base que, quase três décadas depois, Gilligan apresenta suas reflexões sobre o cuidado como conceito crítico e político. Sobre a atualidade dos pontos de vista defendidos em sua primeira obra, Gilligan escreve em 2010: A ética do cuidado é mais urgente hoje do que há mais de 30 anos, quando comecei a falar sobre esse tema [...]. Nos Estados Unidos, nosso novo presidente, Barack Obama, no seu primeiro discurso no Congresso, falou sobre os danos causados pela ausência de cuidado – na saúde, na educação, na economia, em relação ao planeta – e enfatizou a necessidade de substituir um ethos de ausência de cuidado e de interesses individuais, por uma ética do cuidado e da responsabilidade coletiva (GILLIGAN, 2010, p.21-22)

Após uma exposição dos principais pontos da ética do cuidado tal como foi elaborada por Carol Gilligan e apresentada, inicialmente, em seu livro Uma Voz Diferente, o presente trabalho se propõe a refletir sobre textos mais recentes desta autora. Com tal propósito, concede-se especial atenção ao texto “Uma voz diferente. Um olhar prospectivo a partir do passado”, produzido em 2010 a partir de uma conferência pronunciada 254

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 254

06/11/2016 13:25:09


em Paris, quando Gilligan foi convidada para a reedição da tradução francesa da sua obra clássica Uma Voz Diferente.2 A conferência foi traduzida para o francês e publicada em uma coletânea dedicada ao pensamento de Carol Gilligan. No texto de 2010, além de falar sobre a atualidade do primeiro livro e reafirmar as ideias defendidas na obra de 1982, Gilligan se preocupa em tornar explícita uma concepção mais abrangente e mais radical do cuidado, agora apresentado como conceito crítico que coloca em questão as relações de poder, as dualidades e hierarquias enraizadas nas sociedades não democráticas; preocupa-se em ampliar o alcance da voz diferente, estendendo-a para todos os grupos discriminados, não só por gênero. Nessa perspectiva, Gilligan vai enfatizar que são igualmente diferentes as vozes dos negros, dos homossexuais, dos imigrantes, dos que pertencem às classes sociais menos favorecidas. Assim sendo, é intenção do presente trabalho destacar a segunda fase do pensamento de Carol Gilligan, o momento em que ela apresenta a voz diferente como sendo a voz da resistência e mostra que a ética do cuidado - por colocar em destaque a voz, as vozes, por enfatizar que cada qual tem uma voz que deve ser ouvida e compreendida - é a ética de uma sociedade democrática. Uma voz diferente Quando, em 1982, Carol Gilligan expôs em In a different voice - psychological theory and women’s development, suas 2  A primeira tradução francesa é de 1986. Um fato curioso a observar é que, embora a repercussão da primeira obra de Carol Gilligan tenha sido bastante grande em diversas partes do mundo – o que pode ser constatado pelas muitas traduções, além dos inúmeros estudos e publicações existentes sobre a autora e a ética do cuidado – na França houve, a princípio, uma certa resistência em reconhecer o tema como importante do ponto de vista acadêmico, sobretudo no campo da filosofia. Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 255

255

06/11/2016 13:25:09


ideias originais a respeito da existência de maneiras distintas de mulheres e homens se posicionarem sobre a moral, ela estava marcando uma forte diferença em relação à teoria do desenvolvimento moral de Lawrence Kohlberg, psicólogo e filósofo consagrado, professor da respeitada Universidade de Harvard. Aliás, é possível supor que a motivação maior para a publicação de Uma voz diferente tenha sido a discordância de aspectos fundamentais da teoria de Kohlberg, de quem Gilligan foi aluna e colaboradora. Inspirado na teoria do desenvolvimento cognitivo de Jean Piaget, Lawrence Kohlberg (1927-1987) criou a sua teoria do desenvolvimento moral na qual defende que, por um processo de amadurecimento, todos os seres humanos têm a capacidade de atingir a plena competência moral, medida pelo paradigma da moralidade autônoma. Em sua teoria, Kohlberg estabelece estágios ou etapas do desenvolvimento moral, em que o estágio mais elevado seria aquele em que as decisões morais são tomadas com base em princípios estritamente racionais, puros, universais. Princípios a priori, diria Kant, de quem Kohlberg é, sem dúvida, conhecedor e herdeiro. As pesquisas de Gilligan, apresentadas em Uma voz diferente, evidenciam que a experiência moral das mulheres difere sistematicamente da experiência dos homens: as mulheres mostram uma orientação ética voltada para a responsabilidade e para o cuidado, enquanto que a moral masculina orientase segundo os princípios do direito e da justiça. Além disso, Gilligan sustenta que a moralidade feminina passa por etapas específicas de desenvolvimento, radicalmente diferentes daquelas que caracterizam o desenvolvimento moral masculino e que são habitualmente consideradas universais. O que Gilligan contesta, sobretudo, é a pretensão à universalidade da teoria de Kohlberg!

256

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 256

06/11/2016 13:25:09


A teoria de Kohlberg Lawrence Kohlberg elaborou sua teoria dos estágios do desenvolvimento moral a partir de um estudo realizado com oitenta e oito meninos de várias culturas e classes sociais diferentes, que foram acompanhados durante vinte anos. Ao longo desse período, foram analisadas as respostas livres do grupo a certos dilemas morais hipotéticos, apresentados como as fábulas, em que são colocados em cena valores e normas éticas conflitantes. Com base nesse estudo, Kohlberg elaborou uma escala para medir o grau de desenvolvimento moral dos sujeitos. Desse modo, ele identificou seis estágios distintos de desenvolvimento moral, agrupados em três níveis, por ele denominados: nível pré-convencional, nível convencional e nível pós-convencional. As principais características dos três níveis são as seguintes: Nível pré-convencional - crianças até 10 anos, alguns adolescentes e poucos adultos: - o correto ou justo reduz-se às regras de quem tem o poder, pode castigar ou premiar, produzir prazer: o justo é o que satisfaz os interesses próprios - não há perspectiva social. O justo é definido pelo ponto de vista do próprio indivíduo - as razões para sustentar o que é correto são: interesse pessoal, evitar o castigo, submeter-se ao poder, evitar causar dano físico a outros, intercambiar favores Nível convencional - maioria dos adolescentes e muitos adultos: - o correto ou justo significa conformar-se a seguir regras, papéis e expectativas da sociedade ou de um grupo social, político ou religioso

Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 257

257

06/11/2016 13:25:09


os juízos são formulados com estrita referência às regras do grupo - há perspectiva social – reorientação de interesses próprios para benefício de outros; colocar-se no lugar do outro; consideração pelo bem estar do outro e da sociedade - as razões para sustentar o que é correto são a aprovação e a opinião social, a lealdade para com as pessoas e grupos, o bem-estar dos demais e da sociedade Nível pós-convencional - adultos; maturidade moral: - o correto ou justo define-se segundo direitos humanos ou segundo princípios de dignidade humana - a perspectiva ética ultrapassa o ponto de vista social; os indivíduos definem valores e princípios não fundados nas expectativas da sociedade, mas na dignidade humana - as razões para sustentar o que é justo estão apoiadas na compreensão de que viver em sociedade implica o compromisso de respeitar e apoiar os direitos dos outros - contrato social: significa comprometer-se com certos princípios percebidos por todos como universalmente válidos Os níveis de desenvolvimento moral seriam progressivos, o que significa, segundo Kohlberg, passar da formulação de juízos puramente heterônomos, baseados em regras de expectativa social, para um raciocínio ético autônomo, fundado em princípios racionais, universalmente válidos.

258

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 258

06/11/2016 13:25:09


Principais críticas de Gilligan (a) Teoria baseada unicamente na avaliação cognitiva: juízos X agir concreto. Gilligan critica o fato de a teoria de Kohlberg se basear na pura avaliação cognitiva dos julgamentos morais, o que quer dizer que não se interessa pela interiorização de atitudes éticas ou por virtudes e valores morais (o caráter não está em jogo – não pode ser avaliado). Não importa que alguém emita um juízo de acordo com o nível pós-convencional e que, concretamente, não siga esse juízo na prática do seu agir. Teoria racionalista excludente: razão X emoção Outro aspecto importante da teoria de Kohlberg que deve ser contestado, segundo Gilligan, é a postura intelectualista, revelada pelo fato de Kohlberg dar grande ênfase aos fatores cognitivos em detrimento dos componentes emocionais no desenvolvimento moral. Desse modo, Kohberg está reforçando a idéia de um suposto antagonismo entre razão e emoção, revelando-se fiel herdeiro da tradição deontológica racionalista, iniciada com Kant. A universalidade dos estágios é equivocada Embora Kohlberg tenha reivindicado universalidade para a sua sequência de estágios, muitos pensadores contestaram sua posição e procuraram demonstrar que nem todos os grupos de pessoas atingem os estágios supostamente mais elevados do desenvolvimento moral. Em Uma voz diferente, Gilligan manifesta uma importante crítica à tese de Kohlberg que sustenta que a moralidade fundada em princípios estritamente racionais, formais e abstratos representa o mais alto grau de

Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 259

259

06/11/2016 13:25:09


desenvolvimento moral para homens e mulheres. Além disso, empenha-se em demonstrar que a neutralidade de gênero da teoria “universalista” de Kohlberg é falsa, uma vez que o universal é determinado pelo masculino. Ora, argumenta Gilligan, se as mulheres não alcançam o grau maior de maturidade moral, estipulado por Kohlberg, o problema não está nas mulheres, mas na metodologia usada. O fato de a perspectiva moral das mulheres diferir em muitos aspectos da dos homens, não quer dizer que seja inadequada ou deficiente. Mas é porque se estabeleceu que a norma é a experiência masculina, que as mulheres sempre são vistas como desviantes da norma, anormais! Assim, o que deve ser questionado, segundo a autora, é o caráter normativo da experiência masculina, e não a capacidade moral das mulheres. A teoria de Carol Gilligan A partir da constatação da não-universalidade do paradigma de Kohlberg, Gilligan propõe outro modelo de desenvolvimento moral - centrado na categoria do cuidado e uma concepção alternativa de maturidade moral. Embora o enfoque no cuidado e na responsabilidade persista ao longo de toda a sequência do desenvolvimento moral feminino, Gilligan vai assinalar a existência de três perspectivas morais e suas respectivas fases transitórias, caracterizadas por visões distintas da responsabilidade e do cuidado. Seguindo Kohlberg, Gilligan também vai nomear os níveis da ética do cuidado como: nível pré-convencional, convencional e pós-convencional. Gilligan assinala que as situações de crise, as experiências vividas de conflito moral e de tomadas de decisão, podem constituir momentos privilegiados para o desencadeamento de situações de transição para os estágios de maior maturidade 260

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 260

06/11/2016 13:25:09


moral. As etapas do desenvolvimento moral, segundo a ética do cuidado, seriam assim caracterizadas: • Nível pré-convencional: decisões centradas no “eu” • cuidado de si mesmo - orientação para a sobrevivência individual • fase transitória: do egoísmo para a responsabilidade Nível convencional: bondade como auto-sacrifício; anular-se para cuidar de outros • cuidado por outros – reorientação dos interesses próprios para o benefício dos outros, abnegação, resignação: aceitação do sofrimento como destino. • fase transitória: do auto-sacrifício à inclusão de si mesmo Nível pós-convencional: • cuidado como princípio moral universal • maturidade moral: equilíbrio entre o cuidado de si e o cuidado dos outros, entre a auto-estima e o interesse e responsabilidade por outros Sublinhar a importância da perspectiva feminina em ética pressupõe, evidentemente, o reconhecimento de diferenças de posicionamento moral no homem e na mulher. Esse ponto de vista de Gilligan é, muitas vezes, interpretado como uma defesa da tese essencialista. Entretanto, é possível considerar que a defesa de Gilligan do valor do ponto de vista moral feminino não visa reforçar a feminilidade da mulher, por oposição à masculinidade do homem, nem tampouco insinua uma hierarquia invertida, isto é, a superioridade natural do sexo feminino em relação ao masculino. Uma vez que a existência de essências ou naturezas diferenciadas não é afirmada em momento algum

Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 261

261

06/11/2016 13:25:09


da argumentação de Gilligan, pode-se inferir que o ponto de vista feminino ao qual ela se refere não é necessariamente, nem exclusivamente, o ponto de vista da mulher. Trata-se, portanto, de reivindicar legitimidade para a voz diferente por meio da qual se expressam, sobretudo, as mulheres. Na verdade, é a própria Gilligan quem enfatiza que, embora seja específico da mulher, o cuidado não é exclusivo do sexo feminino. Há uma passagem em Uma voz diferente especialmente ilustrativa dessa perspectiva não essencialista A voz diferente que eu defino caracterizase não pelo gênero, mas pelo tema. Sua associação com as mulheres é uma observação empírica, e é, sobretudo, através das vozes das mulheres que eu traço seu desenvolvimento. Mas essa associação não é absoluta, e os contrastes entre as vozes femininas e masculinas são apresentados, aqui, para aclarar uma distinção entre dois modos de pensar e para focalizar um problema de interpretação mais do que para representar uma generalização sobre ambos os sexos. (GILLIGAN, 1982, p. 12)

Ampliando a voz diferente... Em sua conferência traduzida e publicada em francês em 2010, Gilligan reforça e aprofunda sua perspectiva não essencialista ao proclamar que “o cuidado e o cuidar não são questões de mulheres; são preocupações humanas”. (GILLIGAN, 2010, p. 26) Nesse momento, ela se empenha em tornar explícita uma concepção mais radical, mais abrangente do cuidado que passa a ser visto como um conceito crítico que coloca em questão as relações de poder, as dualidades e as hierarquias enraizadas nas 262

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 262

06/11/2016 13:25:09


sociedades não democráticas. Na verdade, nessa segunda fase de seu pensamento, Carol Gilligan reelabora certas concepções expostas anteriormente. Nessa perspectiva, preocupa-se em ampliar o alcance da voz diferente, a qual deve ser estendida para todos os grupos discriminados, não apenas por gênero. Trata-se, portanto, de enfatizar que são igualmente diferentes as vozes dos negros, dos homossexuais, dos que pertencem às classes sociais menos favorecidas, enfim, as vozes de todos os grupos que fogem ao padrão consagrado de normalidade. Além disso, no texto de 2010, Gilligan retoma sua antiga preocupação em combater a postura dualista em moral3, combater a tese tradicional que sustenta que os julgamentos e as decisões morais precisam estar fundamentados unicamente na racionalidade, sob pena de não atingirem a objetividade, a neutralidade e a imparcialidade supostamente necessárias para o agir moral autêntico. Ao contrário desse ponto de vista, Gilligan procura evidenciar que outra perspectiva moral é não somente possível, como desejável. Nesse sentido, a ética do cuidado constitui um questionamento radical ao modelo ético dominante e a voz diferente é percebida como a voz que une razão e emoção. Dentre as questões importantes discutidas por Gilligan, em seu olhar retrospectivo sobre Uma voz diferente, destacam-se duas. Uma delas diz respeito à possibilidade de uma abordagem política do cuidado. A outra questão refere-se à pertinência de se considerar a ética do cuidado como uma ética feminista. Um tratamento político do cuidado aparece claramente 3  Vale observar que, no escrito de 2010, Carol Gilligan introduz um referencial teórico novo: o neuro-biólogo Antonio Damásio que demonstra que razão e emoção são biologicamente unidas e que a separação só ocorre como consequência de uma lesão ou de um traumatismo cerebral. (GILLIGAN, 2010, p. 29-30)

Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 263

263

06/11/2016 13:25:09


ao longo do estudo de 2010, sobretudo nos momentos em que Gilligan enfatiza que a voz diferente é a voz da resistência às dualidades e às hierarquias típicas do patriarcado. A ética do cuidado, por colocar em destaque a voz, as vozes, por enfatizar o fato de que cada um tem uma voz que deve ser escutada e compreendida, seria a ética de uma sociedade democrática. É importante sublinhar que, ao discorrer sobre o patriarcado, ao falar a respeito de discriminação, Gilligan não se refere apenas às mulheres, mas é a partir dessa discriminação primeira que as outras se sustentam. Segundo Gilligan, a ideia de patriarcado não se aplica apenas ao domínio de homens sobre mulheres, mas é mais ampla. O patriarcado é uma ordem organizada em torno do gênero, na qual a autoridade é construída sobre a dualidade e a hierarquia; ele [o patriarcado] perpetua uma hierarquia de gênero onde as qualidades consideradas masculinas tornam-se superiores às qualidades associadas ao feminino, e onde o fato de ser um homem significa estar no topo da hierarquia. O patriarcado coloca certos homens em um nível superior a outros homens e todos os homens em um nível superior às mulheres (GILLIGAN, 2010, p. 22)

A partir de suas afirmações de base, quais sejam (1) o cuidado é uma preocupação expressa majoritariamente, mas não de forma exclusiva, pelas mulheres e (2) o patriarcado é um sistema opressor que se perpetua pelo fato de manter uma hierarquia entre pessoas em geral, não apenas entre homens e mulheres, Carol Gilligan vai sustentar sua tese de que a ética do cuidado é uma ética feminista no sentido de colocar em questão a tradicional desvalorização dos sentimentos nos julgamentos e 264

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 264

06/11/2016 13:25:09


decisões morais; a ideia de que há pessoas que são, por natureza, inferiores a outras; a dicotomia clássica entre emoção e razão; em síntese, todos os dualismos hierárquicos que são decisivos para a manutenção do poder e de privilégios. O pensamento de Gilligan, sobretudo na segunda fase, revela o firme objetivo em posicionar-se a favor de todos aqueles que se encontram fora dos centros de poder. Estes não são apenas as mulheres, mas todos os dominados, todos os que têm vozes inaudíveis, anuladas pelas mais diversas formas de exploração. Para concluir, cito uma passagem do texto de 2010 na qual Carol Gilligan sintetiza brilhantemente sua concepção do cuidado como conceito político: Em uma sociedade e uma cultura patriarcais, o cuidado é uma ética feminina, que reflete a dicotomia do gênero e a hierarquia do patriarcado. Em uma sociedade e uma cultura democráticas, baseadas na liberdade de voz e no debate aberto, o cuidado é uma ética feminista: uma ética que caminha na direção de uma democracia liberada do patriarcado e dos males que lhe estão associados: o racismo, o sexismo, a homofobia e outras formas de intolerância e de ausência de cuidado. Uma ética feminista do cuidado é uma voz diferente porque é uma voz que não veicula as normas e os valores do patriarcado; é uma voz que não é governada pela dualidade e hierarquia do gênero, mas que articula normas e valores democráticos (GILLIGAN, 2010, p.25)

Referências BENHABIB, S. O outro generalizado e o outro concreto: a controvérsia Kohlberg-Gilligan e a teoria feminista. In: Feminismo como crítica da Modernidade. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1987, p. 87-106.

Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 265

265

06/11/2016 13:25:09


_______. Una revisión del debate sobre las mujeres y la teoria moral. Isegoría. Revista de Filosofía Moral y política, n. 6, 1992, p. 37-64. BRUGÈRE, F. L’éthique du care. Paris: PUF, 2011 (Col. Que saisje?). BUBECK, D. Care, gender and justice. Oxford: Clarendon Press, 1995. CARRACEDO, J. R. La psicología moral ( de Piaget a Koohlberg). In: Historia de la ética (v. 3. La ética contemporánea), Barcelona: Crítica, 1992, p. 457-499. CARVALHO, M.P.F.S. Sobre justiça e cuidado: integrando razão e afetividade em ética. In: PIZZI, J. PIRES, C. (orgs.). Desafios éticos e políticos da cidadania. Ijuí: Editora Unijuí, 2006, p. 145-160. FLANAGAN, O. Psychologie morale et éthique. Paris: PUF, 1996 (Col. Philosophie Morale). GILLIGAN,C. Uma voz diferente. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1990. Título original: In a different voice - psychological theory and women’s development (publicado em 1982) _______. Une voix différente. Un regard prospectif à partir du passé. In NUROCK, V. (org.) Carol Gilligan et l’éthique du care. Paris: PUF, 2010, p. 19-38 (Col. Débats philosophiques). JAGGAR, A. M. Éthique Féministe. Dictionnaire d’éthique et de philosophie morale (ed. CANTO-SPERBER, M.), Paris: PUF, 1996, p. 553-559. LAUGIER, S. L´éthique d’Amy: le care comme changement de paradigm en éthique. In NUROCK, V. (org.) Carol Gilligan et l’éthique du care. Paris: PUF, 2010, p. 57-77 (Col. Débats philosophiques).

266

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 266

06/11/2016 13:25:09


PAPERMAN, P. LAUGIER, S. (orgs.). Le souci des autres: éthique et politique du care. Paris: Éditions de l’école des hautes etudes en sciences socials, 2011.

Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 267

267

06/11/2016 13:25:09


Política e Filosofia em Arendt e Vattimo Antonio Glaudenir Brasil Maia Ricardo George Araújo Silva

Introdução

O texto apresenta as reflexões de Hannah Arendt e Gianni Vattimo, levando em consideração o panorama do pensamento político do século XX para o qual se demonstraram os esforços teóricos de enfrentamento de toda e qualquer pretensão totalitária. Desse modo, o totalitarismo figura como um fenômeno antipolítico e violento, que impulsionou muitos pensadores a concentrarem suas reflexões sobre as questões políticas. Arendt e Vattimo se inserem nessa constelação, considerando que Política e Filosofia são dois âmbitos intransponíveis para a compreensão crítica do existente e, por isso, devem ser pensadas com base na efetivação da emancipação humana. Tanto Hannah Arendt quanto Gianni Vattimo, para além das diferenças, se esforçaram para fazer valer as razões políticas em detrimento das econômicas que, na sociedade capitalista globalizada, o aspecto econômico se sobrepôs à dimensão da politicidade que deve configurar uma sociedade (democrática), organizada politicamente em função de garantir o espaço público e, especialmente, a prática da liberdade e consequentemente a efetivação da emancipação, não mais a imposição arbitrária de ‘verdades’ absolutas tampouco como um metarelato, que na história assumiu caráter totalitário. Ora, a crítica da metafísica, da verdade absoluta como algo privilegiado de um grupo que conduziria a anulação da pluralidade, da diferença e da esfera pública são os pontos de interseção entre ambos. A concepção arendtiana de política e as reflexões sobre política de Vattimo repelem frontalmente 268

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 268

06/11/2016 13:25:09


a violência totalitária, considerada antitética em relação à política. Filosofia e Política: a crítica de Vattimo a emancipação como metanarrativa Em sua reflexão, Vattimo elege a emancipação como preocupação central de seu pensamento e a define como questão fundamental da Filosofia em sua missão radicalmente política. Em outras palavras, a Filosofia que se propõe a contribuir para a emancipação do homem evidencia o seu propósito político. Ao analisar a vocação filosófica orientada para a politica, Vattimo designa, na obra Vocazione e responsabilità del filosofo (2000), que a tarefa da transformação da sociedade, do homem e do mundo passa pela Filosofia. Desse modo, a questão que prevalece na Filosofia é sempre um bem político, uma questão de comunidade política. Por isso, Política e Filosofia são concebidas, portanto, como as duas articulações de um mesmo modo de práxis orientada para a emancipação humana. Podemos, de antemão, considerar a Emancipação como um metarrelato? Uma intenção que marcou a tradição filosófica nas mais variadas vertentes. E por metarrelato aqui se compreende, seguindo Lyotard em sua obra A condição humana [1988], uma tipologia de discurso que tem uma função de legitimação , reconhecida nos grandes sistemas filosóficos, tais como: iluminismo, marxismo, positivismo, dentre outros. A pergunta vai ao encontro dos relatos emancipadores (entre eles, podemos também citar: o comunismo) que reinaram na modernidade que, sem dúvida, definiam uma ideia da história teleologicamente orientada e de um sujeito revolucionário. Se percorrermos a história da Filosofia encontraremos sempre a presença da emancipação como categoria fundamental, ou seja, parece ser um lugar comum nos mais diversos sistemas filosóficos. Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 269

269

06/11/2016 13:25:09


Desse modo, a Emancipação significa tudo àquilo que os filósofos prometeram. Prometiam um conhecimento melhor da realidade, porque depois seriam mais livres e poderiam intervir sobre a realidade. O próprio Aristóteles, em um dos primeiros livros da Metafísica, fala do fato de que não se pode conhecer tudo, o qual é óbvio, porém, se pode conhecer de tudo através dos princípios. Se eu conheço os princípios, os archai, posso de alguma maneira dominar a realidade. Emancipação é o sonho tradicional da Filosofia: te prometo uma maior felicidade se seguir ou compartilhar o que te ensino (VATTIMO, 2011, p. 26)

Com isso, a Filosofia sempre pensou a Emancipação como se fosse a realização de um modelo dado, um modelo que se dá desde a origem, ou seja, a ideia de emancipação sempre se fundou sobre a pretensão de buscar a efetivação de um modelo originário. Por exemplo, a revolução proletária era concebida como capaz de restituir a verdadeira essência humana, alcançada por meio da lógica de superação crítica que configurou a leitura dialético-emancipativa, a qual inspirou diversas correntes. A luta pela emancipação sempre inspirou, ao longo da história da humanidade, movimentos de contestação das injustiças e das desigualdades. Esta representa, por exemplo, a luta comunista. Mas, a trajetória da luta não alcançou os patamares desejados. Entre as consequências da crise do comunismo mundial se pode incluir também certa perda da confiança no poder emancipatório da Filosofia, na sua capacidade de produzir os efeitos práticos sobre a vida individual e coletiva da humanidade. A queda da revolução comunista na URSS, na China [e também em Cuba], acrescida da condição de guerra e violência que configura nossa atualidade, pode ser associada, de certo modo, a “[...] renúncia da filosofia da sua responsabilidade 270

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 270

06/11/2016 13:25:09


histórica e politica. Quando as armas da crítica não se fazem mais escutar – da opinião pública, dos políticos, etc. – se poderia dizer, usando ainda uma expressão de Marx, que é a crítica das armas a tomar a palavra”. (VATTIMO, 2009, p. 105). A redução da Filosofia a uma situação acadêmica pode traduzir, de fato, ao que Marx propôs nas Teses sobre Feuebarch, aquela que ressaltava que a Filosofia teria a missão de transformar o mundo e não de limitar-se a interpretá-lo. A famosa XI tese de Marx sobre Feuebarch “Os filósofos apenas interpretaram o mundo, é chegada a hora de transformá-lo”(1996, p. 14) é, por assim dizer, motivada por uma fundamentação dialéticoiluminista. Sob a influência da dominação econômica em cada território da vida humana, a Filosofia encontrou a razão de sua redução a uma função meramente ‘descritiva’ da condição humana, ou de auxiliar das ciências – se assim, desejarmos. Aceitando a provocação de Marx, o que ainda pode ser pensado na relação Filosofia e Emancipação? Para responder a tal pergunta é imprescindível reconhecer que na sociedade capitalista impera ainda uma falsa consciência condicionada pela ideologia dominante, sendo, é claro, um ponto de partida apontado por Marx. No entanto, pergunta-se até que ponto se pode mensurar as transformações que a tradição marxista, incluindo Marx, almejava em relação às condições de existência? De início, um ponto de vista deve ser destacado: se reconhece que, embora os filósofos marxistas não tenham transformado o mundo na medida desejada, não significa que o enfoque político estivesse errado, mas, senão que tal tradição se encontra enquadrada na tradição metafísica. Na interpretação de Vattimo, na obra Oltre l’Interpretazione (1994), é importante ressaltar que a transformação do mundo exige previamente uma transformação do modo de pensar, exigência que antecede a própria transformação do mundo. Contrária à maioria dos intérpretes clássicos de Marx, a leitura de Vattimo sobre tal Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 271

271

06/11/2016 13:25:09


tese, entende que a afirmação marxiana não desacredita a Hermenêutica, tendo em vista que Marx manifesta que toda interpretação deve produzir uma transformação, diferente do que ocorre com a descrição que impõe uma realidade. Portanto, a tarefa da Filosofia hoje em dia não é descreve, senão aprender a interpretá-lo de maneira produtiva. Isso permite pensar na perspectiva de um ‘giro hermenêutico’ que vai na contramão da crença dos economistas em uma verdade absoluta e os mercados trabalhassem perfeitamente, do pretexto científico do socialismo, dos erros e da violência de muitos regimes comunistas que resultaram da incapacidade de considerar os aspectos da subjetividade coletiva, que deveriam ser interpretados com o objetivo de inovar nas relações das forças produtivas e do abandono da ideia de que as próprias condições de trabalho garantiriam automaticamente a transformação no modo de pensar. A funcionalidade da verdade das leis do mercado, impostas pelo chamado capitalismo liberal, e as reivindicações científicas de certo tipo de comunismo, são consideradas produtos de filosofias absolutas da história. A busca do pensamento crítico, isto é, da Filosofia que quer mudar o mundo é recordar a ideologia e criticá-la. Marx convida a criticar a ideologia em nome de uma ‘verdade’: o direito do proletariado de fazer revolução fundado sobre o fato do mesmo ver a verdade (do homem, da história e também da economia). Enfim, este direito do proletariado está atrelado a sua capacidade de verdade que é uma atitude, diga-se de passagem, metafísica. Em outras palavras, a emancipação neste caso depende da consciência objetiva (não obscurecida pela ideologia) da verdade. Dessa verdade se pode afirmar que a revolução proletária se efetive como um regime de verdade, ao mesmo tempo em que se apresenta como um regime autoritário o que exemplificaria as tendências do comunismo real do 272

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 272

06/11/2016 13:25:09


tipo soviético, chinês. Entende-se aqui que a propensão da narrativa da emancipação se constituiu não apenas como um ideal regulativo, mas, sobretudo, foi concebida como a grande verdade (absoluta). Sabemos que somos historicamente finitos , e, portanto, também na política sempre corremos o risco de escolhas parciais, que corremos apenas aceitando a negociação com os outros, indivíduos ou grupos, ao mesmo tempo finitos e parciais como nós. Também apenas nos ensinando a sentirmos parte (de um acordo, de um diálogo, até mesmo de um conflito que possamos buscar para regular com normas e tribunais, porém não para eliminar tudo), talvez a filosofia possa começar a transformar o mundo ao invés de limitar-se a contemplá-lo. (VATTIMO, 2009, p. 115)

Para tal análise, recorre-se a leitura que Vattimo fez das objeções de Popper aos chamados ‘inimigos da sociedade aberta’ e sobre a tese do ‘fim da Metafísica’ no sentido que lhe confere a reflexão de Heidegger1. A Filosofia descobre, no fim da Metafísica, em política, que a democracia vem afirmada nesse processo, o que equivale dizer que a realidade não se deixa compreender por um sistema logicamente compacto, aplicável nas suas conclusões à política. Em suma, a Filosofia se encontra 1  Vattimo interpreta assim a concepção heideggeriana de metafísica e elege como ponto de vista de referência interpretativa a dimensão ético-política que o pensiero debole porta consigo: “[...] um pensamento que identifica o ser e o ente, e reduz assim a existência humana à objetividade, prepara – e mesmo determina – uma prática ética e política que pensa poder planificar e manipular os homens exatamente como os objetos. Não são, sobretudo, razões teóricas as que levam Heidegger a recusar e criticar a Metafísica; são razões ético-políticas, as mesmas que inspiraram as vanguardas artísticas e intelectuais do começo do século, por exemplo, o expressionismo ou Ernest Bloch” (VATTIMO, 1996, p. 152). Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 273

273

06/11/2016 13:25:10


impossibilitada de oferecer à política indicações de traços de sua consciência das essências, de fundamentos, etc. [...] se pode identificar simplesmente o fim da filosofia como metafísica com a afirmação, prática e política, dos regimes democráticos. Onde a democracia existe não pode existir uma classe de detentores da verdade ‘verdadeira’ que exercem diretamente o poder (os réis-filósofos de Platão) ou fornecem ao soberano as regras para o seu comportamento. (VATTIMO, 2012, pp. 179-180)

Olhando para a nossa situação histórica atual, devemos reprovar a tentação de nos sentir parte/pertença da ideia de Verdade nesses termos, tendo em vista que o assédio e a imposição de tal procedimento podem, por exemplo, ser reconhecidos na exportação da democracia militarista [no caso norte-americano] ou a difusão do fundamentalismo religioso. A democracia fundada, por exemplo, na Metafísica se converteu em uma metanarrativa, uma força de racionalização das sociedades e a criação de estruturas sociais uniformes e que, por isso, alguns defendem equivocadamente a democracia liberal como ‘única’ forma legítima de governo amplamente ‘aceito’, uma vez que tal sociedade seria o equivalente da fantasia Fukuyama (o fim da história como o triunfo do capitalismo na versão de democracia liberal com ampla aceitação2). Na visão racionalista de uma sociedade que se desenvolve sob a ideia da liberdade econômica capitalista, a democracia é absolutamente utópica, irreal, pois o desenvolvimento social implica uma ampla e profunda discussão da ordem existente (VATTIMO, 2011b). Pensar sob esses aspectos reduziria tudo à política das descrições, que “[...] não impõe o poder para dominar como uma 2  Cf. F. FUKUYAMA, F. Back to the End of History. Entrevista a Philips Matthew. Newsweek (Atlantic Edition); 9/29/2008. Visita: 04 de abril de 2015.

274

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 274

06/11/2016 13:25:10


filosofia; ao contrário, é funcional para a existência continuada de uma sociedade de dominação que persegue a verdade na forma de imposição (violência), conservação (realismo) e triunfo (história)”, a qual Vattimo (2011a, p. 26) associa a violência da verdade, natureza conservadora do realismo e a história dos vencedores. Isso significa no horizonte de reflexão vattimiana que a política fundada na verdade metafísica implica uma política da autoridade. Com isso, Vattimo acredita que a ideia de uma democracia concebida pelos especialistas deve ser abandonada e, para isso, é imprescindível recuperar o papel da Filosofia como ‘intérprete’, acentuando-se a sua superioridade em relação às ciências. Desse ponto de vista, a luta pela desconstrução das grandes narrativas e também do reconhecimento do fim da metafísica como instância de fundamentação absoluta - se assemelha ao ‘fim dos regimes totalitários’ e se acrescenta que os estados democráticos na atualidade podem funcionar corretamente, na condição de um mundo globalizado, evitando que o poder esteja nas mãos de um único sistema político central. A relação do ‘fim da Metafísica’, em sua versão na política, com o descrédito geral das ideologias políticas totalizadoras vem acompanhado da queda das condições políticas de um pensamento universalístico, entendido aqui nas experiências do fim do colonialismo, a explosão de culturas, na crise do mito do progresso, o paralelo desenvolvimento da antropologia cultural que reconhece as diversas subculturas como reação a pretensa centralidade cultural de matriz eurocêntrica. Um dado conexo a este cenário seria o descrédito das representações partidárias em meio às mais diversas transformações das condições efetivas de existência, o que parece, em certa medida, ser algo positivo nas sociedades democráticas no sentido de repensar a conjuntura política. Com a crise das ideologias totalizantes Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 275

275

06/11/2016 13:25:10


e em meio ao processo de esgarçamento da representação política, a democracia parece assumir uma condição cada vez mais paradoxal e complexa, porém, ainda merecedora de atenção especial. A condição da democracia no pensamento de Vattimo vem relacionada com a crise das metanarrativas, com o fim da visão eurocêntrica do mundo sinônima da crise da modernidade, que confunde a universalidade abstrata com a mundialização concreta, como consequência do capitalismo de centro. Disso se conclui que o capitalismo (dito ‘democrático’) de estilo Ocidental não é uma via bastante segura para realizar o bemestar e a liberdade, embora tenha se colocado na ‘vanguarda’ da luta contra o totalitarismo, da construção do mundo ‘isento de ditadores’, como evidenciado na espécie de ocidente americanizado. A crítica a tal perspectiva implica uma postura não apenas teórico-filosófica, mas, em especial, política ante a centralidade do Ocidente e de sua hegemonia política. A queda da centralidade do Ocidente é concebida como liberação das múltiplas culturas e das visões de mundo, as quais não aceitam mais ser consideradas momentos/partes de uma cultura humana geral da qual o Ocidente seria o depositário. Ocaso do Ocidente como dissolução da história de um ponto de vista unitário (‘fim da história’), dissolução da ideia de progresso e de historicidade unilineares, em sua complexidade mais social e política que filosófica. No entanto, um dos primeiros passos em direção da reviravolta é conceber a emancipação como ideal regulativo, espoliado da pretensão de ser um modelo originário. Vattimo (2011b, p. 28) pensa de maneira diferente, quando afirma que “[...] a única possibilidade de emancipação é a ideia de uma redução da violência, e não a realização de um modelo originário. É uma mudança muito importante desse ponto de vista, por 276

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 276

06/11/2016 13:25:10


que implica um ideal político que não é simplesmente um ideal liberal, pois reduzir a violência também significa reduzir a fome, por exemplo”. Sem dúvida, a defesa da posição filosófica que se guia pela redução da violência, pela intensificação do diálogo social, pelo respeito das minorias e pela pluralidade da informação rompe com qualquer pretensão de centralidade do poder. Isso caminha na direção da emancipação, que assume um sentido mais elástico e contemplado por uma diversidade de situações que configurem a existência em sociedades democráticas e plurais. Para reduzir a fome ou a sujeição dos pobres tem que ser feito algo positivo. Tal redução seria uma forma de emancipação. Isso ainda exige a tentativa de recuperação do sentido da Emancipação como necessidade histórica no mundo ainda dominado pelas democracias liberais e pelo ‘desejo’ do capitalismo de impor-se como ideia absoluta de ser o ‘ideal da história humana’. Isso justifica tal necessidade como alternativa ainda mais quando os chamados ‘ideais da história humana’, do ideal de progresso, dentre outros, estão perdendo sua credibilidade em meio à grande crise que marca nossa contemporaneidade. A Emancipação, embora não seja efetivada de forma concludente, representa um limite crítico indispensável frente às condições de existências no século XXI. Considerando a exposição até o presente momento em que, entre outras questões, se criticou os metarrelatos e as posturas globalizantes como negadoras do evento e da política, nossa reflexão continuará na mesma direção. Assim, se manterá também na esteira da critica a todo movimento teórico que pretenda verdade plena sobre os fatos, como se observa no escopo teórico de Hannah Arendt. A Política na perspectiva de Hannah Arendt Quando se trata da política sempre prevalece a tendência Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 277

277

06/11/2016 13:25:10


a buscar uma finalidade fora dela. Assim sendo, a política se apresentou, ao longo da tradição ocidental do pensamento político, como a protetora da liberdade, como organizadora da polis ou guardiã da economia e, em muitos casos, como o outro lado da violência. Para Hannah Arendt (2014, p, 222), a política não responde a nenhuma dessas atividades uma vez que ela tem fim em si mesma, ou seja, é ação em pleno exercício, em outras palavras revela um ‘quem’ e não ‘o que’ é em última instância revelação de identidades únicas e pessoais. Por isso, Arendt coloca política e liberdade como cooriginárias. Nossa autora entende a liberdade como manifestação do homem no espaço público mediado pela ação e pela linguagem, de tal modo que pensar política sem liberdade é ter uma compreensão distorcida da primeira, o que equivale também quando se concebe a segunda sem política. O espaço público é o local no qual uma significa a outra. Com isso, permite-se pensar a existência nessas esferas de uma cooriginariedade. Arendt (2002, p. 38) chama atenção da seguinte forma: “Para a pergunta sobre o sentido da política existe uma resposta tão simples e tão concludente em si que se poderiam achar outras respostas dispensáveis por completo. Tal resposta seria: o sentido da política é a liberdade3”. 3  Esse tema, que aglutina política e liberdade em Hannah Arendt, é por ela discutido ao longo de sua obra e ganha ressonância em grande parte de seus comentadores de tal monta que não podemos considerar esse par conceitual, entendido como cooriginário, como um assunto de segunda ordem. Pelo contrário, revela o alicerce do que Arendt vai propor como política e, nesse sentido, se distanciar do que se tinha feito até então. Ela reforça esse argumento quando assevera que “Somente na liberdade de falarmos uns com os outros é que surge, totalmente objetivo e visível desde todos os lados, o mundo sobre o que se fala [...] A liberdade de partir e começar algo novo e inaudito [...] a liberdade de interagir oralmente com muitos outros e experimentar a diversidade que é a totalidade do mundo – com toda certeza não era e não é o objetivo da política, isto é, algo que possa ser alcançado por meios políticos,mas, ao contrário, a substância e o significado de tudo que é político. Nesse sentido, política e liberdade são idênticas”. (ARENDT, 2010, p. 35)

278

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 278

06/11/2016 13:25:10


Nesta perspectiva, não há como conceber a ação privada da liberdade, pois ela aufere vigor tanto quanto é livre para se manifestar. É disto que é composto o espaço público: elementos plurais e livres. Assevera Arendt (2002, p. 21): “A política baseia-se na pluralidade dos homens. Deus criou o homem, os homens são um produto humano mundano, e produto da natureza humana”. Nesse sentido, afirma-se que a política trata do convívio entre os diferentes, tendo em vista que a pluralidade traz em si o sentido da liberdade, manifesta o direito de todos puderem aparecer e atuar. Nestes termos, a política é plural, porque a liberdade exige a pluralidade como condição sine qua non. Não há liberdade quando um só é dono da verdade4 e os outros não têm o direito de exprimir posições. Assim, para Hannah Arendt, o campo da política é o campo da ação, que somente é possível quando em uso da liberdade, não de uma liberdade teórica, mas de uma liberdade que aparece no mundo fenomênico. Destarte, o campo da política não é o da razão pura como queria Platão nem o da razão prática como aparentemente, segundo Arendt, se pensa que teria sido a posição de Kant, de tal modo que se pode afirmar que a política está em outro campo: o do pensamento plural. A liberdade que encontra na pluralidade sua expressão tem sua constituição no mundo político, no qual ocorrem os negócios humanos. De modo que 4  Política e verdade constitui um outro importante par conceitual no corpus teóricos de Hannah Arendt. Segundo ARAUJO SILVA (2013, p. 100), esta importância se dá tanto pela interferência da capacidade de mentir que muni os homens e, sobretudo, os governos, quando desejam ocultar seus equívocos ou crimes. Tanto pela relação que se encontra na tradição ocidental, que nos revelou a verdade racional em contraponto a verdade factual, que a que interessa ao mundo político e tem como característica uma fragilidade que carece do resguardo do espaço público. Arendt destaca essa problemática quando trata dos documentos vazados do pentágono, que revelaram todo esforço via mentira de encobri os fatos para proteger as decisões malogradas do governo dos Estados Unidos. (Cf. ARENDT, 2004, p. 9) Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 279

279

06/11/2016 13:25:10


uma liberdade apenas teórica não é capaz de acolher a ação uma vez que o campo da aparência é o campo fenomênico e eventual, especialmente, no seu “lócus original, a saber: o âmbito da política.” (ARENDT, 2001, p. 191). Ao identificar o campo original da liberdade como sendo a política, o fazemos com fundamento no fato de que os homens vivem em um espaço público, que é político na sua constituição, já que não temos como conceber o espaço público sem a pluralidade, condição sine qua non para a liberdade, de tal modo que, no espaço público, se experimentam o discurso e a ação, e estes só existem onde houver a liberdade. Disso concluímos que política e liberdade se autoidentificam, não podendo se conceber uma sem a outra, a não ser que admitamos o equívoco da tradição que separou estas em esferas distintas. Apenas assumindo esse equívoco supracitado, se poderia admitir a política como negadora do espaço público e, consequentemente, da pluralidade, da ação e do discurso; assim, no acolhimento deste disparate, poderíamos encontrar política e liberdade destoando. Não obstante, uma identifica a outra, já que a política é o espaço acolhedor da liberdade e, esta, seu sentido. Consoante Hannah Arendt: O campo em que a liberdade sempre foi conhecida, não como um problema, é claro, mas como um fato da vida cotidiana, é o âmbito da política. E mesmo hoje em dia, quer o saibamos ou não, devemos ter sempre isso em mente, ao falarmos do problema da liberdade, o problema da política e o fato de o homem ser dotado de ação; pois ação e política, entre todas as capacidade e potencialidade da vida humana, são as únicas coisas que não poderíamos sequer conceber sem ao menos admitir a existência da liberdade. (ARENDT, 2001 p. 191).

Toda essa argumentação fundamenta a afirmação de que 280

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 280

06/11/2016 13:25:10


a liberdade é o motivo que possibilita aos homens conviverem politicamente e, sem a qual, a vida política como tal seria destituída de significado. Portanto, “a raison d’être da política é a liberdade e seu domínio de experiência é a ação”. (ARENDT, 2001, p. 192). A ação que expressa à liberdade é, para Hannah Arendt, aquela que traz em si a condição da pluralidade e a necessidade do espaço público para aparecer5; é a ação que busca manifestar o outro. Nesse sentido, o mundo artificial tem de ser cenário da ação do discurso sob pena de se perder o sentido da política e da liberdade não ter realidade concreta: “Sem um âmbito público politicamente assegurado, falta à liberdade, o espaço concreto onde aparecer” (ARENDT, 2001, p. 195). De tal modo que, sem esse espaço, se pode encontrar a liberdade em qualquer outro lugar menos onde ela faz a diferença para o existir plural dos homens, menos onde ela pode significar suas ações e lhes garantir a possibilidade do novo. Podemos encontrar a liberdade nos pensamentos, nas produções teóricas ou, ainda, nos corações, contudo, nem estes nem aquelas são capazes de manifestar aquilo que realmente importa no espaço público: os assuntos humanos fenomenicamente manifestados, ao contrário, estes ficam no recôndito da interioridade. Assim, temos que pluralidade e espaço público são categorias centrais para a compreensão da cooriginalidade existente entre liberdade e política, sendo possível afirmar que: “a liberdade como fato demonstrável e a política coincidem e são relacionadas uma à outra como dois lados da 5  Cabe aqui destacar que não se trata de um reducionismo ao conceito de ação ou mesmo o entendimento da ação pela ação. Arendt centra-se na ação como capacidade de transcender a sua expressão no mundo. Concordamos com André Duarte quando este coloca que: “Se o aspecto que melhor caracteriza a ação livre é a sua capacidade de “transcender” os motivos e fins que lhes são constitutivos, isso também não significa que Arendt a considere inconseqüente ou autocentrada, isto é, ocupada apenas consigo mesma em seu caráter de pura performance. Arendt jamais defendeu a concepção voluntarista da ação pela ação, do pura agir ou da polique pour politique” (DUARTE, 2000, p, 223) Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 281

281

06/11/2016 13:25:10


mesma matéria” (ARENDT, 2001, p.195). Liberdade essa que só pode acontecer onde for possível ter uma aparência. Portanto, o espaço público é o palco da liberdade. Nesse contexto, a formação da liberdade aparece sempre que for possível o novo se manifestar. Hannah Arendt entende que o mundo da liberdade é o mundo passível de ser cristalizado por meio de uma história narrável, mas, para essa história existir, é preciso um mundo para se viver fabricado por homens que permitem a vida de outros, isto é, que permitem um principium que favorece o aparecer, o nascer, desde que a curta existência entre o nascer e morrer se cristalize por intermédio da narração. A ação livre confere aos indivíduos a possibilidade de produzir algo que possa ser imortalizado pela memória. É evidente que nem todo ato fica guardado na narração, mas apenas aquilo que é relevante. Mas o que é relevante? Para Arendt, é relevante o singular, a ação fruto da habilidade usada no espaço público e visando a felicidade pública. Para tanto, se faz necessário garantir a existência de um espaço no qual o que é relevante para os negócios humanos possa ser preservado na sua teia de relações. A ação e o discurso serão a garantia disso. Por conseguinte, o ponto que queremos expressar é o seguinte: a constituição da liberdade só é possível onde for possível a esta aparecer pelo discurso e ação de forma concreta. Dito isto, toquemos ainda, mesmo que de forma rápida, em outros aspectos da política em Arendt, a saber: a violência e a resistência. Para nossa pensadora a política não subsiste onde vigorar a violência, o silêncio e a negação da vida. O espaço público, nesse sentido, carece da ação frente a esses desmandos que, nas palavras de Arendt, “é preciso sair da zona de conforto se entender com mundo” (ARENDT, 2007, p. 284). As perspectivas da resistência em Hannah Arendt são identificáveis na obra Crises da República na qual destaca o direito a desobediência civil e, sobretudo, quando trata em 282

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 282

06/11/2016 13:25:10


Sobre a Revolução do poder constituinte como o poder que mantém vivo a experiência revolucionária. Nesta direção, o poder constituinte é a representação da perene deliberação que deve animar a vida política e não o poder constituído. Este último, embora necessário, pode tornar-se tirânico se não observar o espaço de ação do poder constituinte, em outras palavras, da deliberação. É importante ressaltar que estas formas de resistência são alcançadas via lexis e práxis, não via violência. Para Arendt, com a existência da violência pode existir tudo, menos política. Todavia, Arendt pelos menos em duas situações limites e específicas ao longo de sua obra defendeu o uso da violência como legítima defesa da vida, a saber: i) na formação do exército de Israel para a defesa dos judeus como povo sem tutela, e, ii) no louvor aos detentos em campo de concentração que resistiram tomando armas de fogo e enfrentando seus algozes. Todos tombaram. Mas, Arendt (2007, p, 199) destacou que “estes homens não fizeram algo apenas por si, mas pela humanidade”. Isto nos parece um indicativo de que, mesmo admitindo que a violência não instaure a política esta, em situações limites da vida, tendem a ser uma via6 necessária. 6  Parece-nos importante destacar que a resistência, por excelência em Hannah Arendt, é a ocupação do espaço público, embora defendamos que em situações limites, como acima citadas, em nosso entender, Arendt tenha recorrido ao uso da violência como uma possibilidade de se resistir em nome da própria vida, somos cientes que este momento já não é político e, nem deve ser perpetuado, todavia, não deixa de ser legitimo uma vez que precisase resistir pela própria vida. Não obstante temos que a melhor resistência é a do uso fruto da liberdade no espaço público como defendeu Arendt e como muito bem explicita Oliveira, a saber: “O caminho a ser percorrido é aquele amparado na tradição. A preservação da recordação e da memória por meio do que significaram os espaços públicos de Resistance justifica a necessidade de que a efetivação de espaços públicos na atualidade possa ocorrer sem o uso de máscaras e de fantasias [...] Diante da ausência de espaços públicos, a opção por esse caminho é uma maneira de se valorizar os movimentos pautados na memória e na recordação de experiência de Resistance (OLIVEIRA, 2013, p, Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 283

283

06/11/2016 13:25:10


Isso nos parece claro em Arendt (2007, p. 200) quando tratando da relação do binômio opressão/resistência ela assevera: “que a opressão tende a tornar a obediência cega em algo mais perigoso do que a rebelião aberta”. Situação experimentada como o horror totalitário do nazismo. É como se ela tivesse a nos dizer; entre dois males se escolhe o menor. Neste caso o da resistência em lugar da opressão. Fica evidente que não é esse o modelo de resistência que deva permanecer na comunidade política, mas, sim, o da ocupação do espaço público via deliberação perene e usufruto da liberdade. Tanto que entendemos que: [...] toda ação política é como um segundo nascimento, ou seja, se com o nascimento físico original os homens aparecem no mundo que precede sua chegada, com a atuação política os homens aparecem para o mundo introduzindo nele sua marca inconfundível. Se em cada novo nascimento está contido a promessa do começo, cada fundação ou constituição do corpo político contém a promessa do respeito às leis (que é a garantia da política). (XARÃO, 2000, p. 170).

Todavia, não se pode tirar dos indivíduos enquanto comunidade política organizada e detentora da capacidade de agir e falar o direito de resistir nas suas mais variadas expressões. Contudo, politicamente espera-se que esteja fundado e resguardado o espaço público, âmbito próprio do dissenso, que ousamos chamar de “berço do consenso”. Como a metáfora propõe este não está pronto no espaço público, lá habita a diversidade, a pluralidade, a complexidade de ideias, pessoas e aspirações. Entretanto, conservado em sua estrutura original, o espaço público tem como marca de suas feições o pleno exercício da lexis e da práxis e, assim sendo, 118). Temos, pois, no espaço público via deliberação e cultivo do espírito das revoluções a melhor resistência via lexis e práxis.

284

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 284

06/11/2016 13:25:10


da deliberação permanente e, desta se buscará o consenso. Tal estrutura deliberativa se apresentará como a melhor forma de resistência, uma vez que mobiliza a comunidade política em torno de temas de seu interesse, via pleno exercício da fala e da ação livres, enquanto instâncias fundantes do espaço público e da vida política, o que, enfim, pode ser ponto de convergência entre os teóricos. Referências ARENDT. Hannah. Jewish Writings. Edited by Jerome Konh and Ron H. Feldman. New York. Schocken Books. 2007. _____.O que é a política? Trad. De Reinaldo Guarany. Bertarand Brasil. Rio de Janeiro. 2002. _____. A promessa da Política. Trad. Pedro Jorgesen Jr. Difel editora, Rio de Janeiro, 2010. _____. Entre o passado e o futuro. Trad. Mauro W. Barbosa, Ed. Perspectiva, São Paulo. 2001 _____. Crises da República. Trad. José Volkmann et al. Ed. Perspectiva. São Paulo. 2004 _____. A Condição Humana. Trad.Roberto Raposo / Revisão de Adriano Correia. Ed. Forense Unvirsitária. Rio de JaneiroRJ.2014 ARAUJO SILVA. Ricardo George. Fiat Veritas, Et pereat mundus: Considerações entre política e verdade. In: Hannah ArendtPluralidade, mundo e Política. Org. Sônia Maria Schio e Matheus Soares Kuskoski. Ed. Observatório Gráfico. Porto Alegre – RS. 2013. CHIURAZZI, Gaetano. (cura). Pensare l’attualità, cambiare l mondo. Milano: Bruno Mondadori, 2008. Duarte. André. O pensamento à sombra da Ruptura: Política

Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 285

285

06/11/2016 13:25:10


e Filosofia em Hannah Arendt, Ed. Paz e terra, São Paulo – SP, 2000. FUKUYAMA, F. Back to the End of History. Entrevista a Philips Matthew. Newsweek (Atlantic Edition); 9/29/2008. Visita: 04 de abril de 2015. HEIDEGGER, Martin. A superação da Metafísica. IN: Ensaios e Conferências [1954]. Rio de Janeiro: Vozes, 1997 LYOTARD, J-F. A Condição Pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olympio, 1988. MAIA, A. G. B. A dimensão ética da Ontologia dell Attualità de Gianni Vattimo. Tese de Doutorado. Universidade Federal de Pernambuco, 2010. 201 páginas. _____. Do ocaso do Ocidente ao comunismo ideal: aspectos ético-políticos do pensamento de Gianni Vattimo. In: ______; SILVA, R. G; ASSAI, H. Filosofia Política, emancipação e espaço público. Paraná: Juruá, 2013. _____. Ocaso do Ocidente e democracia: o comunismo ideal como terceira via? In: PANSARELLI, D. Filosofia latinoamericana: suas potencialidades, seus desafios. São Paulo: Terceira Margem, 2013. MARTINS, M.B. Filosofia pós-metafísica da religião. Curitiba: CRV, 2014. MARX, K. A Ideologia Alemã [1846]. São Paulo: HUCITEC, 1996. MARX, K. ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista [1848]. São Paulo: Ed. Universitária São Francisco, 2005. MONACO, David. Gianni Vattimo – Ontologia ermeneutica, cristianesimo e postmodernità. Pisa: Edizioni ETS, 2006. OLIVEIRA, José Luiz. Considerações de Hannah Arendt acerca do espaço de Resistance. In: Hannah Arendt – Pluralidade, Mundo 286

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 286

06/11/2016 13:25:10


e Política. Org. Sônio Maria Schio e Matheus S. Kuskoski. Ed. Observatório gráfico, Porto Alegre – RS. 2013 VATTIMO, Gianni; ROVATTI, A.P. Il Pensiero Debole. Milano: Feltrinelli Editore, 1983. _____. Addio alla verità. Roma: Meltemi editore, 2009. _____; et al. Le ragioni etico-politiche dell’ermeneutica. Isaiah Berlin, Amartya Kumar Sen, Vittorio Mathieu. Torino: Giovanni Agnelli, 1990. _____. Vocazione e Responsabilità del filosofo. Genova: il melangolo, 2000. _____. Nichilismo ed emancipazione. Etica, política, diritto. Milano: Garzanti, 2003. _____. Ecce Comu. Como si ri-diventa ciò che si era. Roma: Fazi, 2007. _____. Dela realtà. Fini dela filosofia. Milano: Garzanti, 2012. _____; ZABALA, Santiago. Hermeneutic communism – from Heidegger to Marx. Columbia University Press. 2011a. _____. Llegara ser lo que se era. In: GONZÁLEZ, A. G (org). La vida que viene: desafíos, enigma, cambio y repetición después de la crisis. Madrid: Oficina de arte y ediciones, 2011b. XARÃO, Francisco. Política e Liberdade em Hannah Arendt. IjuíRio Grande do Sul: Ed. UNIJUÍ, 2000. ZABALA, Santiago [cura]. Una filosofia debole: saggi in onore di Gianni Vattimo. Milano: Garzanti, 2012.

Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 287

287

06/11/2016 13:25:10


O totalitarismo como negação da liberdade política: compreensão e abertura no pensamento de Hannah Arendt. Alberto Dias de Souza Natércia Sampaio Siqueira Renata Albuquerque Lima Introdução Hannah Arendt (1906-1975) é uma das pensadoras mais festejadas da contemporaneidade, em especial a partir da publicação de sua obra Origens do Totalitarismo (1951), no interior da qual reserva ao interlocutor a proposta de compreender os desígnios e o alcance que os regimes totalitários operaram na primeira metade do século XX. Este trabalho reflete, além de uma postura intelectual elevada, a visão bastante particular da autora acerca dos acontecimentos, muitos dos quais pessoalmente experimentados por ela. Afirma Kohn (2013, p. 36) que, para Arendt, o totalitarismo tornou-se o pano de fundo de seu trabalho porque, ao adentrar no mundo com o bolchevismo e o hitlerismo, nunca mais o deixou. O esforço empreendido pela sua obra tem grande relevância porquanto, na época presente, ganha relevo um estranhamento pelo mundo público, e, desse modo, “estamos em posição de sermos arrastados para o mal, como para o inferno; de cair num espaço vazio […] onde não há nada que nos individualize”. Este alerta nada tem de exagero ou pieguismo, mas, ao contrário, exorta de forma lúcida a reflexão acerca da necessidade de valorização da vida política que, sob mais de um viés, pode ser alienada e abandonada pelos homens. Sob as luzes das considerações de Arendt, a liberdade e a política são termos sinônimos, e, caso o indivíduo encontre-se distante da 288

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 288

06/11/2016 13:25:10


sua esfera política, deixará de ser livre. O presente artigo visa apresentar um panorama das considerações de Hannah Arendt acerca do totalitarismo e sua capacidade de negação da esfera política. Neste intuito, perpassará a noção de sinonímia entre a liberdade e a política defendidas pela autora, a qual culmina nas ideias de ação e pluralidade. A valorização destas últimas, também identificadas com a política, são uma abertura necessária para a superação do totalitarismo. Os textos que serviram de base para o estudo foram o ensaio “O que é liberdade?”, publicado na obra Entre o Passado e o Futuro, e o capítulo 2 da terceira parte do livro Origens do Totalitarismo, intitulado “O movimento totalitário”, ambos de Hannah Arendt. O trabalho traz, ainda, referências a comentadores da obra de Arendt, no intuito de trazer maiores subsídios às reflexões acerca da temática proposta. A compreensão do totalitarismo A passagem dos eventos históricos impacta cada ser humano de uma forma diferente. Por certo, tão plúrimas quanto são as possibilidades da realidade, são as reações dos homens e mulheres ao panorama circundante. Todavia, um traço diferencia as experiências marcantes e potencialmente transformadoras daquelas que irão apenas deixar marcas na memória individual: trata-se do nível de engajamento que o agente exerce no seu nicho de existência. Hannah Arendt foi uma judia que viveu na Alemanha no período da história mais arriscado para um ser humano ostentar esta condição social, qual seja, os anos de vigência do nacionalsocialismo de Adolf Hitler. Intelectual formada antes mesmo do início da Segunda Guerra Mundial, Arendt era engajada nas discussões e nas movimentações sociais judaicas durante a

Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 289

289

06/11/2016 13:25:10


efervescência política que seguiu-se ao fim do conflito de 19141919. Esta condição permitiu-lhe antever que as perseguições iniciadas pelo regime de Hitler não tardariam a recrudescer, de modo que fugiu para a França, onde continuou a sua militância política. Todavia, mesmo naquele país não permaneceu a salvo do jugo opressor, e, após a ocupação nazista, Arendt viu-se na condição de interna em um campo de prisioneiros e imigrantes, do qual escapou por uma confluência de fatores que envolveram sorte e desorganização administrativa (YOUNG-BRUEHL, 1997, p. 158). Pouco depois, imigrou para os Estados Unidos com a mãe, Martha Arendt, e o esposo, Heinrich Blücher. O campo de prisioneiros em que viu-se internada foi desativado anos depois, e seus ocupantes foram enviados para campos de concentração e extermínio (Idem, ibidem), onde, juntamente com milhões de seres humanos, encontraram um trágico fim nas linhas de produção da morte que o totalitarismo nazista gerou. A realidade de choque que Arendt expressa quando discorre sobre os campos de concentração pode ser resumida numa passagem da entrevista que deu a Günter Gauss, na qual afirma que, o momento da sua confrontação com Auschwitz “[…] foi na verdade como se um abismo se abrisse diante de nós, porque tínhamos imaginado que todo o resto poderia de alguma maneira se ajustar, como pode acontecer sempre na política. Mas neste caso não.” (ARENDT, s/n). O caráter cruel do totalitarismo tornou-se uma constante na obra de Arendt. De fato, o prefácio à primeira edição de Origens do Totalitarismo denota que a autora nutre o objetivo de perscrutar este movimento com o intuito de evitar que o mesmo se repita: Este livro foi escrito com mescla do otimismo 290

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 290

06/11/2016 13:25:10


temerário e do desespero temerário. Afirma que o Progresso e a Ruína são duas faces da mesma medalha; que ambos resultam da superstição, não da fé. Foi escrito com a convicção de serem passíveis de descoberta os mecanismos que dissolveram os tradicionais elementos do nosso mundo político e espiritual num amálgama, onde tudo parece ter perdido seu valor específico, escapando da nossa compreensão e tornandose inútil para fins humanos. (ARENDT, 2012, p. 12)

Trata a convicção de descobrir, na verdade, acerca do esforço realizado pela autora no sentido de compreender, opção que, em seu sentir, leva à clareza do pensamento e a abertura de novos sentidos para a apreensão do fato da vida. O ideal da compreensão possibilita, de um modo extremo, a reconciliação do indivíduo com a sua própria realidade. Mas isto não ocorre no sentido de disponibilizar um perdão salvífico, capaz de apagar ou desfazer o que foi feito, o que soa como tarefa irrealizável. Na medida em que, marcado pelo evolver histórico, torna-se um processo em motoperpétuo, compreender representa, para Arendt, “a maneira especificamente humana de estar vivo”, pois todos os homens precisam religar-se com um mundo para quem são estranhos, condição adquirida de suas próprias singularidades (ARENDT, 1993, p. 39). O caminho da compreensão não pode ser baseado no imediatismo dos eventos, por mais intensos ou bárbaros que possam ser. A relevância e o significado dos eventos mais recentes não pode ser mensurada no instante em que eles surgem, mas em sua cessação, “porque a acuidade do pensamento e do juízo é inversamente proporcional à prontidão da tagarelice obstinada na busca constante da novidade.” (CORREIA, 2014, p. XXI). Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 291

291

06/11/2016 13:25:10


A jornada da compreensão será realizada, deste modo, com base na experiência do objeto, a atitude de tentar levar luzes de entendimento à intrincada rede de relações que o ligam e conectam ao mundo circundante. A natureza do totalitarismo encontra seu enfoque máximo na existência de campos de concentração1, mas, mesmo estes locais de terror explícito não se mostram mais que uma das faces do movimento: Os campos e a matança de adversários políticos são apenas facetas do esquecimento sistemático em que se mergulham não apenas os veículos da opinião pública, como a palavra escrita e a falada, mas até as famílias e os amigos das vítimas. A dor e a recordação são proibidas. (ARENDT, 2012, p. 599)

O totalitarismo, de fato, mostrou-se um sistema complexo, e sua apreensão, um desafio. Antes de discorrer acerca da convergência do processo de compreensão resultante da análise de Arendt para este fenômeno, o qual culmina na evidência de negação da política, mostra-se útil discorrer acerca dos modos de instrumentação das práticas totalitárias. O movimento totalitário se mostra voltado à instauração de uma facção política no poder, num ambiente de ativo ressentimento das massas contra o status quo. Dentre seus objetivos destacam-se a busca pela posse da totalidade dos instrumentos de força e violência, a luta pelo domínio total de toda a população da terra e a eliminação de toda realidade rival não-totalitária. 1  Entre os comentadores da obra de Arendt, esta posição é defendida por Young-Bruehl (1997, p. 196), segundo a qual “Arendt chegou à conclusão de que eram os campos de concentração que distinguiam fundamentalmente a forma de governo totalitária de qualquer outra.”; Kohn (op. cit.) também traça esta distinção, chamando o totalitarismo de “mal destruidor-de-mundo”; Magalhães (2001, p. 54) discorre que o extermínio, “como visada explícita, confessada”, adquire feições de algo novo, inédito na história humana.

292

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 292

06/11/2016 13:25:10


Tais metas são alcançadas com o estabelecimento de uma sede oficial, a utilização da Administração do Estado para o seu objetivo de longo prazo de conquista mundial, e a criação de uma polícia secreta na posição de executante e guardiã da experiência de transformar ficção em realidade (ARENDT, 2013, p. 531). O regime busca também inspirar uma lealdade total, na vida e na morte, às figuras de um partido, centrado no ideal de um líder, o qual toma feições demiúrgicas. Não se admite a contestação das palavras oficiais do regime, de modo que a mentira e a manipulação são mantenedoras da ordem estabelecida. De fato, a autora compara a lealdade exigida pelo totalitarismo àquelas mantidas por sociedades secretas ou conspiratórias, sendo certo que a medida necessária de mentiras e desinformações necessárias para a coesão do sistema pode ser descrita em termos da mistura “curiosamente variada” de credulidade e cinismo esperados de cada membro em sua reação às declarações do líder e à ficção ideológica central e imutável do movimento (ARENDT, 2013, p. 519). O cotidiano de um regime totalitário tem a marca distintiva do terror. É a punição em abstrato, que vitima a todos, em prol da garantia de ausência de ameaças ao sistema. É uma “instituição permanente do governo” que já se mostrava presente na ideologia racial nazista (MAGALHÃES, 2001, p. 49). Para Arendt (2012, p. 477), a divulgação propagandística do movimento já traz, em si, a marca do terror, pois carrega em seu conteúdo a noção de que, fora do controle governamental, a existência era fadada à destruição – seja pelo próprio governo ou pelas forças que emergiam contra a nação. Vê-se que, para impor sua ideologia e seus propósitos, o totalitarismo se valia tanto da violência quanto do terror, o que denota o ímpeto de seu alcance, sua ânsia pelo poder. Ele

Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 293

293

06/11/2016 13:25:10


somente poderia existir enquanto estivesse em expansão, uma vez que a dominação total era seu fim último. Daí a noção de espaço vital da doutrina bélica alemã, a qual, aliada aos etéreos padrões de supremacia racial germânica, vinculava a conquista a um direito anterior da suposta raça ariana. A questão a ser colocada neste ponto é a constatação de que atitudes bélicas ou violentas, por si sós, não seria capaz de perfazer os objetivos de um movimento totalitário. É a dominação de todos os setores políticos que, de fato, pode alcançar a agenda de controle integral. Magalhães (2001, p. 50) discorre acerca das primeiras citações do termo totalitário, informando a sua ocorrência na Itália fascista de Mussolini já na década de 1920, sendo certo que, para os intelectuais de então, o vocábulo já se prestaria a “designar um regime onde tudo se apresenta como político”. Vê-se, sob tal prisma, que o exercício da compreensão pode situar o prejuízo mais candente do totalitarismo à vida humana, qual seja, o ataque frontal à esfera política. Todavia, para que se apreenda como esta noção é cara aos estudos de Arendt, deve-se recorrer à identificação que a autora estabelece entre os termos liberdade e política. A identidade entre liberdade e política O ensaio intitulado “O que é liberdade?” traz o excurso de pensamento de Arendt acerca das razões que ligam o conceito de liberdade ao de política. Ela principia suas assertivas com a afirmação de que, no âmbito das questões práticas, tendemos a verificar a liberdade como uma verdade evidente, um axioma suposto em tal profundidade que os juízos e as normas de organização das comunidades humanas são baseadas nela. Entretanto, esta não seria a postura adotada em outros campos do saber, como a ciência (ARENDT, 2014, p. 189).

294

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 294

06/11/2016 13:25:10


Uma vez que admite-se a liberdade como uma verdade instaurada na comunidade política, não tarda a sua identificação com a própria política. A primeira é a razão de existência desta última: A liberdade, além disso, não é apenas um dos inúmeros problemas e fenômenos da esfera política propriamente dita, tais como a justiça, o poder ou a igualdade; a liberdade, que só raramente – em casos de crise ou de revolução – se torna o alvo direto da ação política, é na verdade o motivo por que os homens convivem politicamente organizados. Sem ela, a vida política como tal seria destituída de significado. A raison d’être da política é a liberdade, e seu domínio de experiência é a ação. (ARENDT, 2014, p. 192)

A liberdade, embora entendida por Arendt como um dado intrinsecamente ligado à política, não é visualizado somente sob o prisma da esfera pública. De fato, há no íntimo de cada homem um espaço de experimentação do sentido de ser livre, e tal âmbito não possui significação política. Ele tem importância para o indivíduo porque é nele que se desenvolvem elementos de vontade que impactam nas relações com o mundo, tais como a vontade de expansão e desenvolvimento, a importância conferida ao gênio e à originalidade (ARENDT, 2014, p. 192-3). Arendt enfoca que este verbo interno de manifestação humana é capaz de fazer o indivíduo transcender eventuais condições de paroxismo em sua existência. Ele pode ser escravo e, ainda assim, pela força do seu construto intelectual, ser intimamente livre. O maior contributo do espaço íntimo de deliberação acerca da liberdade é que, nele, o sujeito pode combater-se e subjugar-se, numa forma que pertence apenas a si mesmo. Neste âmbito, ele se encontra mais seguramente defendido que em seu lar (ARENDT, 2014, p. 194). Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 295

295

06/11/2016 13:25:10


A autora reporta ao Cristianismo a equação do fator decisivo para as considerações acerca da liberdade enquanto manifestação interna. A doutrina do livre-arbítrio, na qual o homem, em um processo solitário, identifica e define suas ações de uma forma não-subjugada pela vontade divina, porém influenciada por ela, é tida por Arendt como um fator de tensão para a discussão acerca da liberdade. Ela chega a afirmar que, caso a liberdade não fosse mais que um fenômeno do arbítrio, os antigos não haviam-na conhecido (ARENDT, 2014, p. 204). A solidão ínsita ao processo do livre-arbítrio é vista por Arendt com cautela. De fato, embora seja natural e necessário às reflexões filosóficas, o fato de refletir sozinho não implica necessariamente em estar sozinho. Quando o relacionamento com o próximo, por alguma razão, deixou de existir, surge uma nova relação, desta feita do eu com o eu-mesmo. Esse dualismo é a condição essencial do pensamento, e estabelece o diálogo mantido consigo mesmo. Todavia, a vontade que se origina desta convivência não pode ser livre. A luta entre duas faculdades humanas não conduz a um ponto consensual, mas sempre significará a sobreposição de um aspecto sobre o outro. A ascese cristã exige este embate. Na visão da autora, o processo dois-em-um da solidão põe em movimento um efeito nocivo sobre a vontade, pois, a um só tempo, gerará a sua paralisia e o seu encerramento sobre si mesma. Em suas palavras, “[...] o querer solitário é sempre velle e nolle, querer e não querer ao mesmo tempo” (ARENDT, 2014, p. 206). Surge deste paradoxo a conclusão pelo caráter dual da liberdade identificada como o livre-arbítrio: a vontade tem poder e é impotente; é livre e, ao mesmo tempo, incapaz de se libertar. Na solidão autorreferente, se o homem tem uma vontade, sempre terá duas lutando pelo poder de sua mente 296

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 296

06/11/2016 13:25:11


(ARENDT, 2014, p. 209). O “efeito paralisante” que a vontade exercerá sobre si mesma fica evidente quando analisado sob o prisma de duas atitudes humanas, quais sejam, o ato de mandar e de ser obedecido. Parece pois uma “monstruosidade” o fato de o homem poder mandar a si mesmo e não ser obedecido, uma monstruosidade que só pode ser explicada pela presença simultânea de um eu-quero e de um eu-não-quero. Isso, contudo, já é uma interpretação de Agostinho; o fato histórico é que o fenômeno da vontade manifestou-se originalmente na experiência de querer e não fazer, de que existe uma coisa chamada quero-e-nãoposso. (ARENDT, 2014, p. 206)

Nesta conclusão está o problema central de a vontade, ou o arbítrio, serem identificados com a liberdade: conforme o poder do eu-posso se exauria, a vontade de poder transformouse em opressão. Para o âmbito coletivo, esta noção de liberdade teve efeitos perniciosos. Arendt (2014, p. 210) chega a afirmar que a ideia de relacionar a esfera do ser livre com o poder é forte a ponto de ser possível equacionar o poder com a opressão, ou, ao menos, como governo sobre outros. Há ainda outro vício na consideração da liberdade enquanto vontade ou livre-arbítrio. Trata-se da institucionalização, no seio da organização estatal, do conjunto de vontades individuais como o mote de existência do corpo político. É dizer, Arendt assevera que o ideal de Rousseau em querer substituir a vontade do monarca absoluto por uma miríade de vontades individuais, conduziria necessariamente a uma tirania (ARENDT, 2014, p. 212). Trata-se, na perspectiva do pensador francês, do conceito de soberania. Faz-se justa a ponderação sobre as considerações de Rousseau acerca deste conteúdo. Não se pode tratar a sua

Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 297

297

06/11/2016 13:25:11


obra, como aliás nenhuma construção intelectual, como um dado dissociado do momento histórico. As efervescências sociais da época de Rousseau inspiraram-no a pensar a formatação do Estado de acordo com a vontade da maioria das pessoas que o compunham, historicamente oprimidas e excluídas do processo político. Rousseau cunhou, deste modo, o ideal de vontade geral, que pode ser compreendido por interesse comum. Não se confunde com a vontade de todos, a qual nada mais é que a soma de vontades particulares. Todavia, “quando se tira dessas vontades [as particulares] as mais e as menos, que mutuamente se destroem, resta por soma das diferenças a vontade geral.” (ROUSSEAU, 2013, p. 41). O exercício da vontade geral seria a soberania, e a sua corporificação, o soberano. Este, por seu turno, é o ser coletivo que só por si mesmo se pode representar. A soberania é indivisível, porque a vontade geral também o é. Esta última, ademais, não comete erros, e é sempre reta ainda que muitos queiram frequentemente apenas o próprio interesse. O pacto social conduz a um estado de igualdade diluída e acessível a todos. O interesse comum, que une os votos, generaliza mais a vontade que o número deles; porque nessa instituição cada um se sujeita por força às condições que impõe aos outros: união admirável do interesse e da justiça, que às deliberações comuns dá um caráter de equidade, que vemos perder-se na discussão de todo negócio particular, por falta de um interesse comum, que ajunte e identifique o regimento do juiz com o da Pátria. (ROUSSEAU, 2013, p. 44)

As vontades individuais tornadas soberanas, sob a ótica de Arendt, são “a consequência política mais perniciosa e 298

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 298

06/11/2016 13:25:11


perigosa da equação filosófica de liberdade com livre arbítrio” (ARENDT, 2014, p. 212). Isto porque levaria à completa negação da liberdade humana, ao se perceber que, se todos forem soberanos, ninguém o será. A bem da verdade, apenas a violência poderia manter todos os influxos da multidão de vontades soberanas sob controle, o que desvirtua a noção de liberdade. Arendt assevera, no que pode ser considerado uma aporia, que, para serem livres, os homens precisam renunciar às suas soberanias, pois, do contrário, vão se submeter à opressão da vontade (ARENDT, 2014, p. 213). A alternativa para tanto é a inclusão de seu conceito de ação nas experiências de vida, a partir do pressuposto de que a liberdade não é apenas um processo de escolha. Em um dos pontos líricos do ensaio, Arendt remete à peça Ricardo III, de William Shakespeare, para afirmar que a liberdade é, antes de uma tomada de decisão, um chamamento à existência do que antes não havia. Esta atitude corporifica um dos mais densos conteúdos da obra da autora. Ele é também de suma importância para a compreensão da liberdade, porquanto “ser livre e agir são uma mesma coisa” (ARENDT, 2014, p. 199). Em A condição humana, a ação adquire um matiz essencial. Agir, no sentido mais geral do termo, significa tomar iniciativa, iniciar (como o indica a palavra grega archein ‘começar’, ‘ser o primeiro’ e, em alguns casos, governar), imprimir movimento a alguma coisa (que é o significado original do termo latino agere). Por constituírem um initium, por serem recém-chegados e iniciadores em virtude do fato de terem nascido, os homens tomam iniciativas, são impelidos a agir. (ARENDT, 2009, p. 190)

A ação não dependerá nem do intelecto nem da vontade

Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 299

299

06/11/2016 13:25:11


para existir, embora necessite de ambos para o perfazimento de um objetivo. Ela deriva de um princípio, um dado inspirador que se manifesta no próprio ato realizador. O agir, enquanto princípio, torna-se um molde, um dado que subsiste ao ato mesmo após desaparecem os motivos que o ensejaram. Para Arendt, “os homens são livres – diferentemente de possuírem o dom da liberdade – enquanto agem, nem antes, nem depois” (ARENDT, 2014, p. 198). Se o homem é capaz de agir, pode-se esperar dele o inesperado, o infinitamente improvável. Isto é corolário de que cada ser humano é singular, e, pelo nascimento, surge para o mundo como um ente totalmente novo. Kohn (2013, p. 33) assevera, nesse sentido, que “A espontaneidade humana, politicamente falando, significa que não sabemos os resultados de nossas ações quando agimos e que, se soubéssemos, não seríamos livres.”. No entanto, é preciso salientar que as manifestações dos homens no contexto da ação não se mostram desvinculadas de sentido ou relações; se assim o fosse, não passariam de robôs autômatos, adstritos às atividades que se seguem ao impulso do momento em que vêm ao mundo (ARENDT, 2009, p. 191). O fato é que a maioria dos atos assume a forma de discurso. A atitude se torna relevante na palavra falada em que o autor diz quem é, o que fez, faz e fará. O ato de violência bruta, sem acompanhamento verbal, por outro lado, não é considerado enquanto integrante do agir livre (ibidem). A liberdade, doravante, é resultado do entrelaçamento entre a ação e o discurso. Através destes, o homem se mostra ao mundo, revela sua identidade física na conformação do corpo e da voz (ARENDT, 2009, p. 192). Surge, com nova face, a ideia de estabelecimento de relações com o entorno como parâmetro do ser livre. A política torna-se, portanto, a soma das confirmações 300

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 300

06/11/2016 13:25:11


acerca da liberdade na perspectiva da ação. Para Arendt, toda força destrutiva, mesmo quando inevitável, é em si mesma antipolítica: destrói não apenas nossas vidas, mas também o mundo que está entre elas e as humaniza. Um mundo humano e humanizante não se pode manufaturar, e nenhuma parte dele que tenha sido destruída pode ser jamais reposta. Para Arendt, o mundo não é um produto natural nem criação de Deus; ele só pode surgir por meio da política, que em seu sentido mais amplo, é, para ela, o conjunto de condições sob as quais homens e mulheres, em sua pluralidade e sua absoluta diferença, convivem e se aproximam para falar em uma liberdade que somente eles podem mutuamente se conceder e garantir. (KOHN, 2013, p. 35, grifo nosso)

Faz-se útil uma distinção acerca da ideia de pluralidade. Ela, de fato, não equivale a encarnar de forma completa a figura do outro. A tal instância nomeia-se alteridade, a qual é uma medida da existência plural, e não sua significação. Considerar a existência do outro equivale a conviver com a paradoxal miríade de seres singulares, ao passo em que fundir-se a ele equivale à singularidade única (ARENDT, 2009, p. 189). Na assertiva de Aguiar (2001, p. 74), a pluralidade é o sumo da significação política da ação em Arendt. Através dela, a autora visa afirmar que a dignidade do homem é alcançada mediante o reconhecimento das vozes e do poder dos cidadãos na confecção dos seus destinos, em detrimento a qualquer valor absoluto ou externo. A ideia de pluralidade remeteria para uma dimensão em que é possível unir, a um só tempo, a “mais ampla diferenciação e um igualitarismo radical”. A par da identificação entre a liberdade, a política e a Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 301

301

06/11/2016 13:25:11


pluralidade, fica claro que a experiência de estar vivo implica na consideração das manifestações e expressões de discurso dos outros homens. As opiniões têm um papel decisivo na vida humana coletiva, e a discrepância entre elas, as dificuldades de encontrarem uma via comum para estabelecerem-se significa, na verdade, a higidez da esfera política. Veja-se que, na esteira da crítica de Arendt à vontade geral de Rousseau, se há uma coletânea das vontades individuais em prol de um interesse geral comum, a liberdade deteriorase na opressão; por outro lado, se se propõe o exercício último da alteridade, em substituição à pluralidade, admite-se a imersão de uma mentalidade em outra, com a perda do sentido individual e a condução à singularidade. Assim, a perspectiva plural é antinômica ao sentido da via consensual. Esta é a afirmação de Aguiar (2001, p. 77), que arremata: Poderíamos ir além: ao negar as concepções essencialistas da política, fundadoras do político na co-dependência, e ao colocar a pluralidade, as relações, no centro de sua concepção do político, Arendt dá espaço para compreendermos, contra toda a tradição, que a base da política reside no dissenso. É em razão das diferenças que surgem as relações políticas, as promessas e os pactos originadores da esfera pública.

A liberdade, ao mesmo tempo em que é sinônimo, é uma particularidade humana que deriva da política. Somente em meio aos demais, com a expressão de opiniões e o dissenso entre elas, o indivíduo pode ser livre. As conquistas a que almejam os seres humanos em sua existência coletiva fluem da política e não de um conteúdo externo ou um dado transcendental. Todavia, mesmo esse caráter de autonomia da vida política não pode evanescer em esterilidade. Cabe aos homens a atitude de preservação da liberdade, pois, como visto, as 302

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 302

06/11/2016 13:25:11


conquistas nascerão da ação política enquanto agere, e não pela simples esperança. Há que se garantir um mínimo existencial de parâmetros libertários a fim de o indivíduo poder exercitar seus direitos básicos. Fala-se de um anteparo, um dado prévio aos direitos, que existirá para evitar o ataque insidioso e lento que oblitera o estatuto jurídico íntimo das pessoas. A calamidade dos que não têm direitos não decorre do fato de terem sido privados da vida, da liberdade ou da procura da felicidade, nem da igualdade perante a lei ou da liberdade de opinião […], mas do fato de já não pertencerem a qualquer comunidade. Sua situação angustiante não resulta do fato de não serem iguais perante a lei, mas sim de não existirem mais leis para eles; não de serem oprimidos, mas de não haver ninguém mais que se interesse por eles, nem que seja para oprimi-los. Só no último estágio de um longo processo o seu direito à vida é ameaçado; […] Os próprios nazistas começaram a sua eliminação dos judeus privando-os, primeiro, de toda condição legal e separando-os do mundo para ajuntálos em guetos e campos de concentração; e, antes de acionarem as câmaras de gás, haviam apalpado cuidadosamente o terreno e verificado, para sua satisfação, que nenhum país reclamava aquela gente. O importante é que se criou uma condição de completa privação de direitos antes que o direito à vida fosse ameaçado. (ARENDT, 2012, p. 402)

É a cidadania, para Arendt, o construto político que pode garantir aos indivíduos a participação na esfera pública da vida. Não se trata de uma simples intitulação de direitos, haja vista que tal concepção é incapaz de proporcionar a real participação dos cidadãos na esfera pública. Os indivíduos devem poder agir e participar da vida pública, e não serem meros sujeitos de

Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 303

303

06/11/2016 13:25:11


direitos formalmente instituídos. Assim, a cidadania, ou o direito a ter direitos, “só é possível no âmbito no espaço público motivado pela ação como atividade própria do viver político de homens que se realizam como cidadãos, isto é, como agentes políticos” (MELLEGARI; RAMOS, 2011, p.160). A vivência cidadã constitui a abertura máxima contra as tenazes do totalitarismo. A própria ontologia da humanidade deve ser ligada à sua dimensão política, o que aperfeiçoará, em última análise, a liberdade. Considerações finais Young-Bruehl (1997, p. 211) traz uma curiosa afirmação acerca de Origens do Totalitarismo: Arendt gerou este livro como se fosse um filho seu, e, nesse papel, agiu como historiadora e cientista política. Uma criação vasta, de densidade filosófica profunda, realizada por uma pensadora que não quis ser qualificada como filósofa. A culminação de seu esforço de compreensão foi marcado com um poema curto: “Os pensamentos vêm a mim./ Eu não sou mais uma estranha para eles./ Eu cresço neles como num lugar,/ Como num campo arado”. A tarefa de compreender a ruptura e a inovação que o totalitarismo significou, a um só tempo, leva o intérprete a encontrar um campo arado, onde é possível depositar suas próprias considerações e, a partir delas, colher os frutos para a compreensão de seu próprio contexto. A liberdade e a política são sempre ameaçadas, e vislumbrar os modos pelos quais podem ser fundamentadas, em especial em sinonímia, é uma notável conquista. A ação humana é o ato de trazer para o mundo algo que antes não existia. Esta é a noção máxima da identificação do 304

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 304

06/11/2016 13:25:11


ser livre. A valorização do dissenso, a raiz da vida política, não pode ser alcançada em meio à negação da pluralidade, como visualizou o totalitarismo, mas somente através da comunicação entre os homens, de modo que reconheçam a si e ao entorno. Referências AGUIAR, Odílio Alves. Injustiça e banalidade do mal em Hannah Arendt. In: ASSAI, José Henrique Sousa; SILVA, Ricardo George de Araújo; MAIA, Antonio Glaudenir Brasil (Org.) Filosofia Política: emancipação e espaço público. Curitiba: Juruá Editora, 2013. ______. A política na sociedade do conhecimento. Trans/form/ ação, São Paulo, SP, ano 30, n. 1, p. 11-24, 2007. ______. Filosofia e política no pensamento de Hannah Arendt. Fortaleza: EUFC, 2001. ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo: antissemitismo, imperialismo, totalitarismo. Tradução de Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. ______. A promessa da política. Organização e introdução de Jerome Kohn e tradução de Pedro Jorgensen Jr. 3. ed. Rio de Janeiro: Difel, 2013. ______. Entre o passado e o futuro. Tradução de Mauro W. Barbosa. 7. ed. São Paulo: Perspectiva, 2014. ______. A condição humana. Tradução de Roberto Raposo. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. ______. A dignidade da política: ensaios e conferências. Organização de Antonio Abranches, tradução de Helena Martins e outros. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1993. ______. Hannah Arendt “Zur Person” Full Interview (with English subtitles). Disponível em: <https://www.youtube.com/ Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 305

305

06/11/2016 13:25:11


watch?v=dsoImQfVsO4>. Acesso em: 10 dez. 2015. CORREIA, Adriano. Hannah Arendt e a modernidade: política, economia e a disputa por uma fronteira. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014. DUARTE, André. Hannah Arendt e o pensamento político: a arte de distinguir e relacionar conceitos. Argumentos. Fortaleza, CE, ano 5, n. 9, p. 39-62, jan./jun. 2013. ______. Hannah Arendt e o evento totalitário como cristalização histórica. In: AGUIAR, Odílio Alves; BARREIRA, César; ALMEIDA, José Carlos Silva de; BATISTA, José Élcio (Org.). Origens do Totalitarismo: 50 anos depois. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2001. FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Estudos de Filosofia do Direito: reflexões sobre o Poder, a Liberdade, a Justiça e o Direito. São Paulo: Atlas, 2002. KOHN, Jerome. A promessa da política: introdução. In: ARENDT, Hannah. A promessa da política. Organização e introdução de Jerome Kohn e tradução de Pedro Jorgensen Jr. 3. ed. Rio de Janeiro: Difel, 2013. pp. 07-40. MAGALHÃES, Teresa Calvet de. A natureza do totalitarismo: o que é compreender o totalitarismo? In: AGUIAR, Odílio Alves; BARREIRA, César; ALMEIDA, José Carlos Silva de; BATISTA, José Élcio (Org.). Origens do Totalitarismo: 50 anos depois. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2001. MELLEGARI, Iara Lúcia; RAMOS César Augusto. Direitos humanos e dignidade política da cidadania em Hannah Arendt. Revista Princípios. Natal, v.18, n.29, p. 149-178, jan./jun.2011. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social: ou princípios do direito político. Tradução de Ana Resende. São Paulo: Martin Claret, 2013. 141p. 306

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 306

06/11/2016 13:25:11


SERRAGLIO, Priscila Zilli; ZAMBAM, Neuro José. Homo Politicus: a democracia, a evolução moral e o direito. Pensar, Fortaleza, CE, ano 22, n. 2, v. 20, p. 506-529, maio/ago. 2015. SILVA, Ricardo George de Araújo; SILVA, Napiê Galvê Araújo Silva. A recuperação da política: ação e espaço público segundo Hannah Arendt. Griot - Revista de Filosofia, Amargosa, BA, ano 1, n. 1, v. 3, p. 1-10, jun. 2011. YOUNG-BRUEHL, Elizabeth. Hannah Arendt: por amor ao mundo. Tradução de Antônio Trânsito, copidesque e preparação dos originais por Ari Roitman e revisão técnica de Eduardo Jardim de Moraes. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1997.

Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 307

307

06/11/2016 13:25:11


Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 308

06/11/2016 13:25:11


Sobre os autores Alberto Dias de Souza Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Estadual Vale do Acaraú – UVA. Mestrando em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza – UNIFOR. Professor da Faculdade Luciano Feijão (FLF). Membro do grupo de pesquisa “Relações Econômicas, Políticas e Jurídicas na América Latina”, mantido pela UNIFOR. E-mail: dias-alberto@hotmail.com

Anderson de Alencar Menezes Doutor em Ciências da Educação pela Universidade do Porto (Portugal). Professor Ajunto da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Atua no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE/ CEDU/UFAL) como professor e pesquisador. Integra o grupo de Pesquisa intitulado - Filosofia e Educação e Ensino de Filosofia cadastrado no CNPQ. Trabalha a partir das seguintes linhas de pesquisa: Teoria Crítica e Educação; Filosofia e Educação; Epistemologia e Educação e Hermenêutica e Educação. Membro do Grupo de Trabalho Ética e Cidadania da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (ANPOF). E-mail: alencarsdb@bol.com.br

Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 309

309

06/11/2016 13:25:11


Antonio Glaudenir Brasil Maia Pós-doutor em Filosofia (UFC). Doutor em Filosofia (UFPE/ UFPB/UFRN). Professor do Curso de Filosofia da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA) e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Estadual do Ceará (UECE). Coordenador do Grupo de Pesquisa Filosofia da Religião (GEPHIR/UVA/CNPq). Coordenador Grupo de Trabalho Ética e Cidadania da Associação Nacional de PósGraduação em Filosofia (ANPOF). E-mail: glaudenir@gmail.com Castor M.M. Bartolomé Ruiz Doutor em Filosofia. Professor pesquisador do programa de pós-graduação filosofia, Unisinos. Coordenador da Cátedra Unesco de direitos humanos e violência, governo e governança, Unisinos. Membro do Grupo de Trabalho Ética e Cidadania da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (ANPOF). E-mail: castorbartolome@terra.com.br Cecilia Pires Pós-doutora na área de Filosofia Política em Paris I/Sorbonne. Doutora em Filosofia, na área de Filosofia Social, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Atuou como Professora e Pesquisadora na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Membro do Grupo de Trabalho Ética e Cidadania da Associação Nacional de PósGraduação em Filosofia (ANPOF).. Pesquisadora na área de Filosofia Política. Professora de Teorias da Democracia, no Programa de PósGraduação em Direito na IMED - Passo Fundo. E-mail: ceciliapires.pires@yahoo.com.br 310

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 310

06/11/2016 13:25:11


Enoque Feitosa Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas, ambos da Universidade Federal da Paraíba. É da equipe de Coordenação do projeto de mobilidade internacional CAPES/AULP/UFPB/UEM 50/2014. Membro do Grupo de Trabalho Ética e Cidadania da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (ANPOF). E-mail: enoque.feitosa.sobreira@gmail.com

José Marcos Miné Vanzella Doutor em Filosofia pela Universidade Gama Filho (Rio de Janeiro). Professor e Pesquisador no Programa de Mestrado em Direito do Unisal – U.E. de Lorena (SP). Membro do Grupo de Trabalho Ética e Cidadania da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (ANPOF). E-Mail: enimine@gmail.com

José María Aguirre Oraá Doctor en Filosofía por la Universidad de Lovaina (Bélgica) en 1991. Profesor Titular de Filosofía en la Facultad de Teología de Vitoria y en el Centro de Estudios Teológicos de Pamplona de 1986 a 1994. Desde 1996 a la actualidad Profesor Titular de Filosofía Moral en la Universidad de La Rioja. Defensor Universitario de la Universidad de La Rioja. E-mail: jose-maria.aguirre@unirioja.es

Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 311

311

06/11/2016 13:25:11


Jovino Pizzi Bacharel em jornalismo, doutor em Ética e Democracia pela UJI (Espanha); pós-doutor UFSC e professor dos PPGs em Educação e de Filosofia da UFPel. Autor de diversos livros e organizador de outros mais, além de artigos publicados no Chile, Espanha, Brasil e outros países. Membro do Grupo de Trabalho Ética e Cidadania da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (ANPOF). E-mail: jovino.piz@gmail.com

Juan Jorge Faundes Peñafiel Doctor en procesos sociales y políticos en América Latina, mención Ciencia Política, Universidad Arcis, Chile. Integra el Grupo de Investigaciones Jurídicas de la Facultad de Ciencias Jurídicas de la Universidad Católica de Temuco. Imparte cátedras de Derechos Humanos y Derechos de los Pueblos Indígenas. Docente del Magister en Estudios Interculturales de la Aniversidad Católica de Temuco. E-mail: jfaundes@uct.cl

Lorena Freitas Doutora em Direito e Professora Adjunta na UFPB, Coordena a Pós-Graduação em Ciências Jurídicas (Mestrado e Doutorado). Membro do Grupo de Trabalho Ética e Cidadania da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (ANPOF). E-mail: lorenamfreitas@hotmail.com

312

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 312

06/11/2016 13:25:11


Maria da Penha Felício dos Santos de Carvalho Professora do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ). Mestra em Filosofia pela Universidade Católica de Louvain – Bélgica. Doutora em Filosofia pela Universidade Gama Filho – Rio de Janeiro. Membro do Grupo de Trabalho Ética e Cidadania da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (ANPOF). E-mail: mdapenha@yahoo.com.br

Marcos Fábio Alexandre Nicolau Doutor em Educação pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Professor Adjunto do Curso de Filosofia da Universidade Estadual Vale do Acaraù (UVA). Professor do Mestrado Profissional em Saúde da Família (RENASF/UVA). Coordenador do Laboratório de Estudos Hegelianos (LEH/CNPq). Membro do Gt Ética e Cidadania da ANPOF. E-mail: marcosmcj@yahoo.com.br

Marcos Onete Fontenele Moreira Graduado em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). Mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará (UFC). E-mail: marcos.ofm@uol.com.br

Natércia Sampaio Siqueira Doutora em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Graduada em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Mestre em Direito Tributário pela Universidade Federal de

Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 313

313

06/11/2016 13:25:11


Minas Gerais. Atualmente é Procuradora Fiscal da Procuradoria Geral do Município de Fortaleza e professora da graduação, mestrado e doutorado do Curso de Direito da Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Membro do grupo de pesquisa “Relações Econômicas, Políticas e Jurídicas na América Latina”, mantido pela UNIFOR. E-mail: naterciasiqueira@yahoo.com.br Neuro José Zambam Pós-Doutor em Filosofia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Professor da Escola de Direito da Faculdade Meridional- - IMED – Professor do Programa de Pôs Graduação em Direito – Mestrado, da Faculdade Meridional – IMED. Membro do Grupo de Trabalho Ética e Cidadania da Associação Nacional de PósGraduação em Filosofia (ANPOF). E-mail: nzambam@imed.edu.br; neurojose@hotmail.com

Renata Albuquerque Lima Pós-Doutoranda em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina; Doutora em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza – UNIFOR; Mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Ceará – UFC; Graduada em Direito pela UFC e em Administração de Empresas pela UECE; Professora Adjunta do Curso de Direito da Universidade Estadual Vale do Acaraú – UVA. Professora do Curso de Direito da UNICHRISTUS e Coordenadora do Curso de Direito da Faculdade Luciano Feijão – FLF; Advogada; Membro do grupo de pesquisa “Relações Econômicas, Políticas e Jurídicas na América Latina”, mantido pela UNIFOR. E-mail: realbuquerque@yahoo.com

314

Coletânia GT Ética e Cidadania

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 314

06/11/2016 13:25:11


Ricardo George Araújo Silva Doutorado em Filosofia (UFC), Mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará - UFC, (2006) e Graduação em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará (2003). Foi professor efetivo da universidade Federal Rural de Pernambuco – UFPE e da Universidade Federal Rural do Semiárido – UFERSA. Atualmente é Professor da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA). Coordena o Grupo de Pesquisa em Política, Educação e Ética (GEPEDE). É editor da Revista Reflexões de Filosofia e da coleção Reflexões que tem por objetivo oportunizar publicações na área de Ciências Humanas. Membro do Grupo de Trabalho Ética e Cidadania da Associação Nacional de PósGraduação em Filosofia (ANPOF). E-mail: ricardogeo11@yahoo.com.br Sérgio Ricardo Fernandes de Aquino Doutor e Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI. Professor universitário – Graduação e Mestrado – em Direito e Pesquisador no Complexo de Ensino Superior Meridional - IMED. Coordenador do Grupo de Pesquisa: Ética, Cidadania e Sustentabilidade. E-mail: sergiorfaquino@gmail.com Ysmênia de Aguiar Pontes Mestranda em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Graduada em Letras pela Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA) e em Direito pela Faculdade Farias Brito (FFB). Coordenadora Adjunta e Professora do Curso de Direito da Faculdade Luciano Feijão (FLF). Advogada. E-mail: ysmeniapontesadv@gmail.com Filosofia, Cidadania e Emancipação

Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 315

315

06/11/2016 13:25:11


Final Cc Filosofia, Cidadania e Emancipação - Copia.indd 316

06/11/2016 13:25:11


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.