Garcia e Keller - Deuses Americanos os Deuses Capitalistas na Obra de Neil Gaiman

Page 1

UNIVERSIDADE DO GRANDE ABC

DEUSES AMERICANOS: OS DEUSES CAPITALISTAS NA OBRA DE NEIL GAIMAN

ANDRÉ MENDES GARCIA MARCOS KELLER

Santo André 2009


1

DEUSES AMERICANOS: OS DEUSES CAPITALISTAS NA OBRA DE NEIL GAIMAN

Trabalho de conclusão de curso para o curso de Licenciatura Plena em História da Universidade do Grande ABC. Orientadora: Angélica Höffler

Santo andré 2009


2

Dedico aos amigos e a todos os amantes da literatura, da música e de todas as artes. (André Mendes Garcia)

Dedico a Deus, e a todo o resto da criação, que por si só é uma arte. (Marcos Keller)


3

AGRADECIMENTOS Agradeço a família por acreditar em meu potencial, aos amigos que me ajudaram quando necessário, à minha companheira pelo auxílio e pelo apoio e à Professa Angélica Höffler pela orientação sábia e precisa. (André Mendes Garcia)

Agradeço a todos que me ouviram remoer idéias, aos amigos que desempenharam um papel especial nesse trajeto, a minha família que me apoiou sempre, a quem me acompanha ao auxílio da Professora Angélica Höffler e ao meu colega e parceiro nessa empreitada André Mendes Garcia. (Marcos Keller)

- Você precisa entender essa coisa de ser deus. Não é magia. E só ser você, mas aquele você em que as pessoas acreditam. É ser a essência concentrada e aumentada de si mesmo. É se transformar em trovão, ou no poder de um cavalo galopante, ou em sabedoria. Você absorve toda a fé e fica maior, mais legal, mais do que humano. Você cristaliza. [...] - Então, um dia esquecem que existe, não acreditam mais em você e não fazem mais sacrifícios... não se importam, e quando você percebe, está misturando cartas pra confundir quem passa na esquina da Broadway com a Rua 43. (GAIMAN, 2004. p.333 -334)


4

Resumo DIAS, Marcos Keller; GARCIA, André Mendes. Deuses Americanos: Os Deuses Capitalistas na Obra de Neil gaiman. 2009. 59 p. Dissertação (Licenciatura Plena em História) – Universidade do Grande ABC, Santo André, 2009.

Observar uma obra literária, fruto da cultura pop, como meio de compreender a sociedade pós-moderna, decodificando seus símbolos e interpretando-os a partir dos conceitos e pensamentos de diversos teóricos, que pensam a Sociedade de Consumo e a Industria Cultural.

Palavras chaves: Neil Gaiman, Indústria Cultural, Sociedade de Consumo, Capitalismo, Pós-Modernidade, Deuses Americanos.


5

Abstract

Analyze a literary composition, appear in the pop culture, as way to understand the after-modern society, decoding and interpreting its symbols them from the concepts and thoughts of diverse theoreticians, who think the Society of Consumption and the Cultural Industry.

Words keys: Neil Gaiman, Cultural Industry, Society of Consumption, Capitalism, Post Modernity, American Gods.


6

Sumário

Introdução ........................................................................................................................ 7 1 – Vidas Breves e A Casa de Bonecas – Neil Gaiman, Pós Modernidade e Indústria Cultural ............................................................................................................................. 9 1.1 – Conceituando ....................................................................................................... 9 1.2 – A Pós Modernidade ........................................................................................... 11 1.3 – Autor e Obra ...................................................................................................... 14 1.4 - Shadow e a Industria Cultural............................................................................. 16 1.5 - Industria Cultural, Definição de Adorno e Representação de Gaiman ............... 19 2 – A Terra dos Sonhos e Espelhos Distantes – As Semelhanças Entre os Novos e Antigos Deuses e o Processo de Seus Declínios e Ascenção ....................................... 21 2.1 – Os deuses e principalmente os novos deuses................................................... 21 2.2 – Capitalismo e Religião ....................................................................................... 28 2.2.1 - Conceito e Situação ..................................................................................... 28 2.2.2 – O Capitalismo como Religião ...................................................................... 31 2.3 – Velhos Deuses e Novos Deuses - Influência no cotidiano ................................. 35 2.4 – A ascensão dos novos deuses .......................................................................... 40 3 – Fábulas e Reflexões – Pensamentos sobre consumo, Arte e Indústria cultural. ...... 53 CONSIDERAÇÃO FINAL ............................................................................................... 57 Bibliografia...................................................................................................................... 58


7

Introdução Neil Gaiman é um escritor, que surge como tal, dos trabalhos envolvendo histórias em quadrinhos, as populares HQ’s ou Banda Desenhada. Formado como jornalista, Gaiman tornou-se conhecido nos anos 80 por seu trabalho com Miracleman e Orquídea Negra. Sua obra mais conhecida e reconhecida é Sandman, uma HQ adulta, publicada pela DC Comics, no início dos anos 90, que tem como personagem principal uma personificação do sonho, é uma história violenta, sombria e repleta de seres mitológicos. Mas nesse estudo, utilizaremos uma obra mais recente chamada, Deuses Americanos, publicada originalmente em 2001 nos Estados Unidos e em 2002 no Brasil. Deuses Americanos conta história de Shadow, um homem que perdeu tudo na vida e passa a trabalhar para Wednesday, que posteriormente revela ser o Deus Nórdico Odin, sob seus serviços Shadow descobre antigos deuses que estão em decadência, buscando sobreviver da pouca adoração que conseguem obter enquanto perdem espaço para novos deuses, surgidos de ícones capitalistas como a TV, o Cartão de Crédito e a Internet. Deuses Americanos é uma fantasia moderna, que como os contos mitológicos antigos, é uma metáfora da sociedade, no caso, da sociedade contemporânea que abandona cada vez mais seu misticismo e religiosidade para abraçar uma cultura de consumo e tecnologia, que substituem os primeiros como forma de se entender o mundo e atribuir sentido à própria existência. Essa idéia de consumo como um fetiche religioso, foi discutida outras vezes por pensadores como Guy Debord, Theodor Adorno e Zygmunt Bauman, e Gaiman levanta novamente a discussão, dessa vez em uma obra romanceada acessível, e em uma época em que o consumismo tão comum e presente em nossas vidas e se mostra cada dia mais agressivo e sempre incontrolável.


8

Nosso objetivo com este trabalho é primeiramente buscar as relações da obra de Gaiman, com a nossa sociedade, no intento de "traduzir" suas metáforas e verificar como elas se aplicam na sociedade ocidental contemporânea, pautando nossas conclusões em pensadores reconhecidos no meio acadêmico. A Primeira parte da nossa pesquisa será focada no dissecar do livro de Gaiman, pontuando alguns conceitos e traduzindo as principais metáforas. No segundo capítulo ocorre o transcorrer do processo histórico da formação dessa sociedade, as conexões com o livro de Gaiman, buscam fundamentar em conjunto com outros pensadores, os momentos e motivos que levaram a sociedade ocidental européia e americana a deixar de ser governada por seus deuses criadores místicos e passou a ser governada por "deuses criados capitalistas". No terceiro capítulo nosso objetivo passa a ser de cunho mais reflexivo, buscando questionar se dessa sociedade nada se aproveita, em especial daquilo que pode ser chamado de “industrial”, que é referente ao produto da indústria cultural e o que faz parte dela. Pode parecer contraditório criticar a indústria cultural partindo de um autor que surge da indústria dos quadrinhos, escrevendo para mega empresas que difundem uma ideologia como Marvel Comics e DC Comics, as donas de personagens que segundo Umberto Eco (2008), são os mitos modernos, e tem a mesma função dos antigos mitos de educar e servir de exemplo comportamental. Mas nosso objetivo também é fazer uma defesa dessa cultura que denominamos como “pop”, de Popularidade e não popular, buscando encontrar no meio da indústria cultural trabalhos reflexivos, e mostrar sua utilidade como instrumento para pensar a sociedade. Esse é um dos motivos que nos levam a dissecar Gaiman, um autor que esta no centro da Indústria Cultural, e apresenta um trabalho que defendemos como potencialmente reflexivo.


9

1 – Vidas Breves e A Casa de Bonecas – Neil Gaiman, Pós Modernidade e Indústria Cultural

1.1 – Conceituando Wondering and dreaming The words have different meanings Yes they did...1

A início, faz-se necessário a pontuação em alguns conceitos que ajudam no nortear este estudo. O livro é retrato, produto e reflexo da sociedade em que foi concebido. Pois quando concebido, o autor imprime, objetiva ou subjetivamente, suas críticas pessoais, sua análise e visão de mundo, logo, a obra torna-se um retrato da sociedade contemporânea a ela, e assim um depoimento sobre a política e cultura da sociedade, a visão de uma época a partir de outras leituras possíveis, interpretando o simbolismo que nasce na concepção da obra. Mesmo o texto mais simples ou medíocre possui material incutido para que seja feita uma complexa análise da situação em que foi escrito, pois mesmo o escritor que não possui uma técnica bem desenvolvida esforça-se em descrever, criar ou recriar uma sociedade com cultura e política através de elementos externos, internalizados por ele em seu contato com o mundo. Então, a literatura reflete a história e torna-se um documento importante para a análise da própria história. Partindo da concepção acima, Neil Gaiman, sendo um escritor, não se encontra distante da situação descrita. Suas obras são, portanto, reflexo da sociedade em que ele a concebeu. Gaiman trabalha principalmente com temas relacionados à fantasia, e o faz tecendo suas histórias em um misto de um real mundano e um irreal fantástico, em suas histórias, por exemplo, é plenamente possível encontrar deuses de culturas distintas, executivos de empresas e seres mitológicos almoçando em um restaurante Mc’Donalds na tarde de um dia qualquer. 1

Matilda Mother. Sid Barret. Pink Floyd – The Pipers At The Gates Of Dawn. Faixa 1, EMI Records, 1967.


10

Essa peculiar característica de Gaiman compor suas histórias leva a ressaltar a igualmente peculiar forma com que ele observa a Cultura, interpretando e compreendendo, não apenas a sua aparência, mas a forma como é configurada, e se configura de forma específica em cada sociedade. Concordando com a concepção de BAUMAN que diz que: “A noção de cultura, nascida e configurada no terceiro quartel do século XVIII ([...]quando a filosofia da história, a antropologia e a estética, todas reordenando em harmonia a visão do mundo em torno de idéias e atividades humanas, igualmente nasciam), [a cultura] Destinada a uma carreira específica de pessoas específicas que, por causalidade, viviam em épocas específicas” (BAUMAN, pg 161)

Portanto Gaiman entende a cultura como viva e mutante, cuja compreensão deve ser feita, entendendo as causalidades do período em que corresponde à sociedade. Essa idéia de cultura e como ela se relaciona com a sociedade tem como força complementadora a concepção de Gaiman do Imaginário, que se posiciona como espelho e fonte de luz da cultura. Antes de prosseguir com a definição de Imaginário, deve-se atentar, à diferença existente dentro da idéia de cultura entre Cultura de Massa e Cultura Popular, Marilena Chauí, propõe diferenciá-las, relacionando Cultura de Massa à cultura oriunda da classe dominante (que a elabora e impõe) e Cultura Popular à oriunda da classe dominada (que por meio de muitos aparatos ideológicos incorpora a Cultura de Massa a sua Popular). Chauí diz que: "a dimensão cultural popular como prática local e temporalmente determinada, como atividade dispersa no interior da cultura dominante, como mescla de conformismo e resistência". (CHAUÍ, p.43) Voltando ao Imaginário, a relação do real mundano e irreal fantástico, para Gaiman se une no tecer do mundo, aparecendo em suas obras como representante simbólico do não-lugar onde essa relação se dá na sociedade, transportando-o para uma arena que espelha o mundo tido como “real”, a relação existente intermitantemente no Imaginário de uma sociedade.


11

Conforme já dito, como fruto de seu tempo, o Imaginário que o autor representa é obviamente situado temporariamente na sociedade contemporânea ao século XX-XXI, BACHELARD defende a relação irreal/real como necessária e presente em todos e tudo, uma vez que: “a função do irracional é psiquicamente tão útil quanto a função do real. Durante o dia, o homem constrói o real graças ao espírito científico, durante à noite, o homem sonha o imaginário.. Só recebemos realmente a imagem quando a admiramos” (BACHELARD, p.46)

Ao longo deste estudo, mais será acrescentado e desenvolvido quanto à questão do Imaginário, pois uma definição precisa de Imaginário seria uma visitação ao esforço do personagem mítico Sísifo uma vez que a sua pena no Hades era de empurrar uma pesada pedra de mármore montanha acima e que esta pedra sempre tornava a rolar ladeira abaixo, reiniciando o trabalho infinitamente. Assim é o Imaginário, que se modifica em sua interpretação, e parece não admitir ser colocado em um parâmetro ou processo de racionalização, o que só revela ainda mais a importância do esforço de compreendê-lo.

1.2 – A Pós Modernidade Old Bailey se lembrou de quando as pessoas realmente viviam na cidade, não apenas trabalhavam — época em que desejavam coisas, riam, construíam casas decrépitas que ficavam inclinadas umas sobre as outras, todas cheias de gente fazendo barulho. Pois bem, o barulho, a sujeira, o fedor e a cantoria da viela próxima dali (então conhecida, pelo menos coloquialmente, como Viela da Bosta) eram notórios naquele tempo, mas agora ninguém vivia na cidade. Era um lugar frio e sem graça, cheio de escritórios, de pessoas que trabalhavam de dia e iam para casa à noite, em locais distantes um do outro. A cidade não era mais um lugar apropriado para viver. Ele até sentia saudade do mau cheiro.2

Para compreender a funcionalidade implícita na obra de Neil Gaiman, bem como suas criticas e simbolismo, é necessário um vôo, mesmo que raso, sobre o 2

GAIMAN, Neil. Lugar Nenhum. Tradução: Juliana Lemos. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2007. p. 176 – 177.


12

período em que o autor e sua obra surgem, uma era complexa em suas especificidades, e que ainda não possui um conceito fechado sobre si mesmo, uma vez que a Pós-Modernidade vigora até os dias de hoje. O conceito de "Pós-Modernidade", próximo do que é atualmente usado, se deu em 1979 na obra “A Condição Pós-Moderna”, pelas mãos do filósofo JeanFrançois Lyotard. Mas, anteriormente, ainda em 1930, Perry Anderson em "As Origens da Pós-Modernidade" (1999) se refere a Frederico de Onís como o autor do termo, que teria sido originalmente concebido para se referir a um movimento de refluxo conservador dentro do movimento sócio-cultural vigente que era denominado Modernismo. Em sua origem, pós-modernismo significava a perda da historicidade e o fim da "grande narrativa" - o que no campo estético significou o fim de uma tradição de mudança e ruptura, o apagamento da fronteira entre alta cultura e da cultura de massa e a prática da apropriação e da citação de obras do passado. A Pós-Modernidade segundo JAMESON é sempre relacionada à nova posição do consumo em um tipo novo de sociedade, que também é chamada de “sociedade pós-industrial". JAMESON diz que: "qualquer ponto de vista a respeito do pós-modernismo na cultura é ao mesmo tempo, necessariamente, uma posição política, implícita ou explícita, com respeito à natureza do capitalismo multinacional em nossos dias" (JAMESON. p. 29).

O período denominado de Modernidade foi marcado pela confiança extrema na infalibilidade e progresso da razão técnica, nos discursos utópicos de transformação e desenvolvimento social, e pelo desejo, quando não tentativa de aplicação mecânica e esquematizada de teorias abstratas na realidade. Segundo JAMESON: “essas novas máquinas podem se distinguir dos velhos ícones futuristas de duas formas interligadas: todas são fontes de reprodução e não de ‘produção’ e já não são sólidos esculturais no espaço. O gabinete de um computador dificilmente incorpora ou manifesta suas energias específicas da mesma maneira que a forma de uma asa ou de uma chaminé” (JAMESON apud ANDERSON, 2002. p.105).


13

Perry Anderson em “As origens da pós-modernidade”, completa que o “modernismo era tomado por imagens de máquinas [referência as Industrias e a racionalização] enquanto que o pós-modernismo é usualmente tomado por “máquinas de imagens” (p.105) uma referência a fascinação que o progresso tecnológico digital tem nos presentes dias, por intermédios de cores, propagandas e possibilidades, que vão muito além até mesmo do próprio objeto de fascínio. Portanto, compreende-se que a Pós-Modernidade é um período onde a relação cultura/capital, se estreita de forma nunca antes vista, sendo um momento histórico inédito para o indivíduo humano. Sérgio Paulo Rouanet autor de “As origens do Iluminismo” (1987) diz que: “depois da experiência de duas guerras mundiais, depois de Aushwitz, depois de Hiroshima, vivendo num mundo ameaçado pela aniquilação atômica, pela ressurreição dos velhos fanatismos políticos e religiosos e pela degradação dos ecossistemas, o homem contemporâneo está cansado da modernidade. Todos esses males são atribuídos ao mundo moderno. Essa atitude de rejeição se traduz na convicção de que estamos transitando para um novo paradigma. O desejo de ruptura leva à convicção de que essa ruptura já ocorreu, ou está em vias de ocorrer (...). O pósmoderno é muito mais a fadiga crepuscular de uma época que parece extinguir-se ingloriosamente que o hino de júbilo de amanhãs que despontam. À consciência pós-moderna não corresponde uma realidade pós-moderna. Nesse sentido, ela é um simples mal-estar da modernidade, um sonho da modernidade. É literalmente, falsa consciência, porque consciência de uma ruptura que não houve, ao mesmo tempo, é também consciência verdadeira, porque alude, de algum modo, às deformações da modernidade” (ROUANET, 1987 p.73)

O significado da Pós-Modernidade portanto, é extremamente confuso e complexo, uma vez que nega valores antigos, enquanto emprega difíceis conceitos revisitados e postos em prática nas situações extremas que permearam o século XX ao longo de seu desdobrar. Esse conturbado cenário é o pano de fundo onde se desdobra esse estudo.


14

1.3 – Autor e Obra Tuck you in, warm within Keep you free from sin Till the sandman he comes [...] Exit light Enter night Take my hand Off to never never land 3

Neil Richard Gaiman nasceu em Portchester, no sul da Inglaterra, em 10 de novembro de 1960, portanto inserido no contexto Pós-Moderno. É considerado pela crítica, um dos maiores roteiristas de quadrinhos dos últimos 20 anos. Atualmente, mora em Minneapolis nos Estados Unidos. Casado e pai de três filhos. Antes de se envolver com quadrinhos, Gaiman trabalhou como jornalista, sua primeira obra em formato de HQ foi “Violent Cases”, que realizou em parceria com

o

desenhista

Dave

McKean,

“Violent

Cases”

alcançou

um

rápido

reconhecimento, e Gaiman e McKean foram convidados a ingressar na DC Comics, uma notória editora estadunidense de quadrinhos, onde trabalhariam com uma personagem de segunda linha chamada Orquídea Negra. “Orquídea Negra” foi muito bem aceita e elogiada, a história bem conduzida, adulta e de cunho poético em sua narrativa, deu uma nova personalidade e uma nova vida à personagem. Gaiman foi então, convidado a conduzir uma revista mensal, revitalizando outro antigo personagem da “Era de Ouro” dos quadrinhos - período que compreende as décadas de 1940 e 1950, onde surgiram os primeiros super- heróis estadunidenses – o personagem escolhido foi Sandman. Gaiman descartou praticamente todo o antigo personagem, que de um milionário que saia à noite, vestido com uma máscara de gás, um chapéu de feltro e uma capa e colocava os bandidos para dormir com uma arma de gás, passou para 3

Enter Sandman. Hetfield/Ulrich/Hammet. Metallica. Faixa 1. Elektra, 1991.


15

uma criatura mítica, ancestral à espécie humana, baseada na lenda do personagem que sopra areia mágica nos olhos das pessoas para trazer o sono, Gaiman compôs assim, um intrincado universo, permeado por inúmeras referências mitológicas e literárias,

e

criou

segundo

sua

própria

concepção,

uma

“representação

antropomórfica do sonho”. “Deuses Americanos” é o título da obra premiada, tratada com primazia nesse estudo, é também o romance que consagrou o autor, projetando-o para um campo além das obras em formato de graphic novel ou histórias em quadrinhos. O livro conta a história de Shadow um detento que é liberado da prisão um dia antes de cumprir totalmente sua pena como um gesto, quase que de caridade, do diretor do presídio para que Shadow possa ir ao funeral de sua esposa e de seu melhor amigo, pois, ambos morreram em um fatídico acidente de carro – onde o pênis do seu melhor amigo é encontrado na boca de sua esposa – o acidente leva tudo o que Shadow tinha, ou pensava ter, marca o fim da sua vida no mundo penitenciário e o início de um mundo exterior onde as principais pessoas de sua vida estão ausentes, uma vez que tudo o que Shadow tinha fora da penitenciária era sua esposa, seu melhor amigo e uma proposta de emprego prometida por ele. Por fim, alguns acontecimentos, aparentemente ao acaso, fazem com que Shadow acabe por conhecer um homem misterioso, que se denomina Wednesday, personagem que no decorrer do livro se revela como sendo uma representação do deus nórdico Odin, segundo o imaginário americano, Wednesday revela que está por vir uma guerra entre os deuses antigos (anglo saxônicos, indígenas, africanos, etc...) e uma safra de novos deuses oriundos das crenças do mundo moderno, que conforme a cultura da qual são frutos, suas facetas de representações são os principais ícones do mundo moderno, eles são a televisão, as auto-estradas, os cartões de crédito, a internet entre outros.


16

A maior parte de suas obras misturam elementos de magia e mitos, com elementos da vida contemporânea e referencias culturais, criando um ambiente realista que convivem seres fantásticos e pessoas comuns, seus personagens costumam ter personalidades bem definidas, o que reforça o seu realismo, fazendo que os seres mitológicos se tornem perfeitamente compatíveis com o mundo contemporâneo. Suas referências históricas para ambientação dos mitos e cenários de algumas histórias são precisas, demonstrando a pesquisa feita para sua elaboração e contribuindo para sua verossimilhança. “A maioria das minhas pesquisas era sobre fatos históricos, porque fiquei um pouco obcecado em dar os detalhes corretos. Assim, nas histórias sobre a Revolução Francesa e sobre o Imperador Norton (nota do UHQ: Sandman # 29 e 31, respectivamente) era o tipo de coisa que eu queria ter certeza que meus detalhes estavam corretos. Isso valeu também para Homens de Boa Fortuna (nota do UHQ: Sandman # 14) e, você sabe, as histórias com Shakespeare. Os estudiosos e professores de Shakespeare estão ensinando essas histórias em universidades agora. E uma das razões para isso, é justamente porque os detalhes estavam corretos.” (GAIMAN, 2001)

1.4 - Shadow e a Industria Cultural I gotta admit that I’m a little bit confused Sometimes it seems to me As if I’m just being used Gotta stay awake Gotta try and shake this creeping malaise If I don't stand my own ground How can I find my way out of this maze?4

Em “Deuses Americanos”, prontamente nos é apresentado Shadow, um expresidiário que perde tudo o que tinha, essa condição da personagem é fato recorrente nas obras de Gaiman. O autor tem por hábito usar essa condição para situar o leitor em seu universo, introduzindo uma personagem “comum” que se 4

Dogs. Waters/Guilmour. Pink Floyd – Animals. Faixa 2, EMI Records, 1977.


17

assemelhe aos que compõem a massa populacional, em outras obras do autor se observa personagens parecidos, como Richard Mayhew de “Lugar Nenhum” (2007) e Charles Nancy de “Os Filhos de Anansi” (2006), na visão de Gaiman a essa é a principal característica da personalidade da personagem “comum”, a ausência de atitude e uma atuação passiva perante as adversidades recorrentes a vida e ao desenrolar da história. Shadow a personagem principal de “Deuses Americanos” segue essa estética. É um homem comum, e tem a característica ausência de personalidade e inerente atuação passiva ante o mundo que o rodeia, sendo então uma “sombra” (Shadow) do ser humano, assim como o coletivo é uma sombra da humanidade. Em diversos momentos, ao longo do livro, Shadow é descrito simplesmente aceitando aquilo que lhe é imposto, e suas raras escolhas quando feitas estão préselecionadas em um leque limitado de possibilidades. Isso pode ser confirmado no trecho que segue o momento em que recebe a notícia da morte de sua mulher: “Shadow não disse absolutamente nada, Entorpecido, embalou alguns de seus pertences e distribuiu a maior parte. Deixou para trás o Heródoto, de Low Key, o livro de truques com moedas e, com um sofrimento momentâneo, abandonou os discos de metal pálido surrupiados da oficina, que haviam servido como moedas. Haveria moedas, moedas de verdade, do lado de fora. Shadow fez a barba. Vestiu-se com roupas civis. Atravessou uma porta depois da outra, sabendo que nunca mais as atravessaria no sentido contrário. Sentia um vazio por dentro.“ (GAIMAN, p. 21)

Essa atuação passiva encenada por Gaiman é também citada e trabalhada por Gianni Vattino que traz uma interpretação que caracteriza essa situação do indivíduo inserido na relação Cultura/Capital da Pós-Modernidade, ele diz: “a chamada "pós-modernidade" aparece como uma espécie de Renascimento dos ideais banidos e cassados por nossa modernidade racionalizadora. Esta modernidade teria terminado a partir do momento em que não podemos mais falar da história como algo de unitário e quando morre o mito do Progresso. É a emergência desses ideais que seria responsável por toda uma onda de comportamentos e de atitudes irracionais e desencantados em relação à política e pelo crescimento do


18

ceticismo face aos valores fundamentais da modernidade. Estaríamos dando Adeus à modernidade, à Razão (Feyerabend) Quem acredita ainda que "todo real é racional e que todo real é racional"(Hegel)? Que esperança podemos depositar no projeto da Razão emancipada, quando sabemos que se financeiro submetido ao jogo cego do mercado? Como pode o homem ser feliz no interior da lógica do sistema, onde só tem valor o que funciona segundo previsões, onde seus desejos, suas paixões, necessidades e aspirações passam a ser racionalmente administrados e manipulados pela lógica da eficácia econômica que o reduz ao papel de simples consumidor”(VATTINO, 2001. p.32)

Theodor Adorno e Max Horkheimer seguem dizendo que e segundo os estudos dos mesmos, é um ponto crucial que caracteriza o indivíduo sob a influência do manifestar da Industria Cultural, Adorno diz que “A Indústria Cultural impede a formação de indivíduos autônomos, independentes, capazes de julgar e de decidir conscientemente.” (HORKHEIMER; ADORNO, 1997), portanto, esse indivíduo esta presente em todas as esferas da sociedade e é maioria absoluta da humanidade, uma vez que a Industria Cultural se infiltra em tudo que é produto, a banda britânica The Beatles compôs uma canção intitulada “Nowhere Man”, lançada em 1965, ela reflete o indivíduo pós moderno, no mundo capitalista cotidiano. “Doesn't have a point of view, Knows not where he's going to, Isn't he a bit like you and me? […] He's a real nowhere man, Sitting in his nowhere land, Making all his nowhere plans For nobody. Making all his nowhere plans for nobody. Making all his nowhere plans For nobody.5"

Shadow se assemelha então com o homem de Adorno, o Nowhere man dos Beatles, o homem da pós-modernidade de Vattino, uma vez que todos estão situados na contemporaneidade e compartilham da característica ausência de autonomia e impotência ante o mundo. Shadow mesmo depois da morte da mulher

5

Nowhwre Man. Lennon/McCartney. The Beatles – Rubber Soul. Faixa 4, Apple Records, 1965.


19

e do melhor amigo, viaja de avião de volta para casa, visita a academia fechada do amigo, onde ele trabalharia, seguindo então o roteiro pré-estabelecido, ele o faz pois não havia recebido a alternativa do leque predeterminado, que vem na forma de uma proposta de emprego feita por um homem completamente estranho e desconhecido (Wednesday/Odin). Essa proposta de emprego vem como uma nova alternativa de vida, vinda de um deus caído, cujo nome Wednesday, Quarta-Feira, dia consagrado a esse deus no calendário nórdico, remonta também a personagem Quarta-feira companheiro imaginário na ilha perdida, um parceiro inexistente, para dar significado a uma existência vazia, se essa existência não é significada por meio do capital, toda e qualquer tentativa de fazê-la por outro meio pode ser loucura. A alternativa é a oportunidade de escolha, dada por um poder superior, o homem sombra (Shadow) recebe a alternativa de diversos locais, desde os deuses antigos (a religião) quanto dos deuses novos (oriundos do consumismo), mas suas escolhas em nada interferem no desenrolar da história, mesmo sendo a personagem principal.

1.5 - Industria Cultural, Definição de Adorno e Representação de Gaiman Eu quis cantar Minha canção iluminada de sol Soltei os panos Sobre os mastros no ar Soltei os tigres E leões nos quintais Mas as pessoas da sala de jantar São ocupadas em nascer e morrer...6

A Industria Cultural, termo cunhado por Adorno em 1947, seria o “[...] conjunto de meios de comunicação como, o cinema, o rádio, a televisão, os jornais e as revistas, que formam um sistema poderoso para gerar lucros e por serem mais 6

Panis Et Circenses. Gilberto Gil/Caetano Veloso. Os Mutantes. Faixa 1. Polydor, 1968.


20

acessíveis às massas, exercem um tipo de manipulação e controle social [...]” (Movendo Idéias, p.2), mas sua influência se alastra a bem mais do que isso, pois a Industria Cultural tem em sua principal característica, não aquilo que ela virtualmente seria, mas os efeitos de sua existência. A Indústria Cultural ao mesmo tempo que homogeneíza seus produtos apresentados pelos meios de comunicação que a compõe, não apenas adapta seus produtos ao consumo da massa, mas com o uso da propaganda e veiculação, adapta a massa ao consumo dos produtos. Determinando em larga medida o próprio consumo, enquanto molda homens e mulheres a serem compostos de seus interesses, afogando os indivíduos em uma relação de serem aquilo que tem. Segundo Adorno essa relação utiliza-se de elementos característicos do mundo industrial moderno, outorgando sentido ideológico a todo esse sistema enquanto mascara as relações humanas de forma a resultar em um antiiluminismo. Uma vez que o iluminismo propunha a libertação dos homens do medo, da opressão, do mito e do misticismo do mundo, utilizando como ferramenta para essa realização, a ciência e a tecnologia, onde o homem seria então senhor da ciência e técnica. Esse proposto progresso, segundo Adorno, resultou-se então no seu oposto, no antiiluminismo, vitimando o homem em um novo engodo, onde o homem tornou-se servo e produto da técnica que deveria orquestrar, onde o verdadeiro maestro é a Industria Cultural, que incessantemente trabalha unicamente para a apropriação de mais lucro, contendo o desenvolvimento da consciência das massas, essa é a interpretação do algoz, no trecho “[a Industria Cultural] impede a formação de indivíduos autônomos, independentes, capazes de julgar e de decidir conscientemente”(ADORNO,1999. p.42). Em “Deuses Americanos” a Industria Cultural é apresentada como uma força não nomeada, poderosa e atuante, que exerce influência tanto sobre os homens quanto sobre os deuses, pois a influência que modifica o pensar e o agir


21

dos homens, influência o imaginário humano, e a modificação nesse imaginário é o que caracteriza aparência, poder, influência e quem são os deuses e para onde o homem encaminha a sua adoração. Como descrito acima, Gaiman parece comungar da visão de Adorno sobre a situação da sociedade presente, uma vez que seus deuses marginalizados que mendigam adoração e admiração em todos os cantos. 2 – A Terra dos Sonhos e Espelhos Distantes – As Semelhanças Entre os Novos e Antigos Deuses e o Processo de Seus Declínios e Ascenção

Onde as forças que compõe os lados opostos em luta, são reconhecidas, suas naturezas são reveladas, e um funeral é lembrado.7

2.1 – Os deuses e principalmente os novos deuses

“Uma questão que sempre me intrigou é o que acontece com os seres demoníacos quando os imigrantes se mudam de sua terra natal. Americanos de ascendência irlandesa lembramse das fadas, americanos de ascendência norueguesa, das nisser, americanos de ascendência grega, das vrykólakas, mas só no que diz respeito a eventos acontecidos no Velho Continente. Certa vez, quando perguntei por que os demônios não são vistos nos Estados Unidos, meus informantes riram confusos e disseram ‘Eles têm medo de cruzar o oceano, é muito longe’, chamando atenção para o fato de que Cristo e os apóstolos nunca estiveram na América. “ (DORSON apud GAIMAN, 2004. p. 10)

É com o trecho acima, retirado do prefácio “Aviso aos Viajantes”, que Gaiman inicia seu livro “Deuses Americanos”, esse pequeno fragmento é uma dúvida e uma resposta. Gaiman questiona-se sobre onde estão os deuses e demônios, e chega à conclusão de que, segundo a sua obra, como Cristo e os

7

Dias, M.V.K. Você Se Lembra?


22

apóstolos, estão aqui, estão em conjunto com as lembranças e a multi-cultura que compõe cada sociedade, mas suas narrativas, são antigas, descrevem seus atos no velho continente. Os deuses estão vivos, vivos nas memórias, vivos sem o glamour e a adoração antiga, mas vivos. Então, quem recebe a adoração inesgotável do ser humano nos dias atuais? Wednesday/Odin responde: “Assim, como todos vocês tiveram oportunidade de descobrir sozinhos, existem novos deuses crescendo nos Estados Unidos, apoiando-se em laços cada vez maiores de crenças: deuses de cartão de crédito e de auto-estradas, de internet e de telefones, de rádio, de hospitais e da televisão, deuses de plástico, de bipe e de néon.” (GAIMAN, 2004, p.113)

Os velhos deuses há muito se conhece, são os personagens das velhas histórias, descritos em livros sagrados, nas Epopéias de Gilgamesh, na Bíblia, no Torá, nas narrativas usadas para regrar a vida nas sociedades pré Revolução Industrial, são as entidades amadas e temidas, que arrebanhavam multidões em seus rituais e que são lembrados em livros de história, e lembranças antigas. Mas os novos deuses, as entidades que segundo a obra de Gaiman seriam os mais atuantes e próximos do nosso mundo moderno, os monarcas da realidade atual, são descritos com menos detalhes em “Deuses Americanos” e isso, não sem propósito, uma vez que os novos deuses são entidades sem história, são mal definidos, pois não possuem uma mitologia que justifiquem sua existência, não possuem uma funcionalidade para explicação de algum aspecto natural, não são parte de um mecanismo para compreensão da realidade, eles são meramente fruto de uma função objetiva do capital, que acabaram por receber tanta importância que teriam

se

tornaram

divindades

com

suas

respectivas

representações

antropomórficas, que se sabe quais são, mas que não se relacionam objetivamente com seus objetos. Assim Gaiman os descreve, para que sejam entendidas, como


23

criaturas deificadas oriundas da racionalidade técnica, segundo Adorno, se explica o motivo da má definição e má caracterização dos novos deuses, que se dá graças à racionalidade técnica, que não consegue ver o corpo senão como algo idêntico a ela, portanto, preso estritamente sob um ângulo técnico que vise principalmente utilidade e funcionalidade. A razão assumiu o formato da máquina e o corpo se tornou sua imagem e semelhança. Portanto, os novos deuses são destituídos de justificativa e antecedentes, negando-se como linhagem dos antigos deuses eles destroem ainda mais sua justificativa à existência, e se agarram simplesmente ao presente e a sua aparente utilidade, dizendo sempre que podem estar acima de todas as situações, mas em seu âmago, temem a destituição de seus tronos, conforme ocorreu com seus negados antepassados. A Obra de Gaiman é então, antes de tudo, uma referência aos problemas culturais existentes em nosso século. A existência de deuses oriundo do capital, que é lido na obra de Gaiman, representa uma observação significativa feita por Guy Debord, que considera o caráter religioso com que as mercadorias são tratadas, e onde o que antes era feito por tradição hoje ganha a função comercial, Debord diz que:

“A satisfação, que a mercadoria abundante já não pode fornecer pelo uso, acaba sendo procurada no reconhecimento do seu valor enquanto mercadoria: com o uso da mercadoria bastando-se a si mesmo; e, para o consumidor, basta a efusão religiosa para com a liberdade soberana da mercadoria. As ondas de entusiasmo por um dado produto, apoiado e relançado por todos os meios de formação, propagam-se, assim, a grande velocidade. Um estilo de roupa surge de um filme; uma revista lança clubes que por sua vez lançam panóplias diversas. O gadget exprime os fatos de tal forma que, no momento em que a massa das mercadorias cai na aberração, o próprio aberrante se tornar uma mercadoria especial. Nos porta-chaves publicitários, por exemplo, que não mais são comprados, há dons suplementares que acompanham os objetos de prestigio vendidos ou resultantes da troca em sua própria esfera. Nestes penduricalhos pode se reconhecer a manifestação do abandono místico à transcendência da mercadoria. Aquele que coleciona porta-chaves que acabam de ser fabricados para colecionadores acumula as indulgências da mercadoria, um sinal glorioso da sua presença real entre os seus fiéis. O homem reificado


24

proclama a prova da sua intimidade com a mercadoria. Como nos arrebatamentos dos convulsionários ou miraculados do velho fetichismo religioso, o fetichismo da mercadoria atinge momentos de excitação fervente. O único uso que ainda se exprime aqui é o uso fundamental da submissão.” (DEBORD, p. 38)

A assimilação de tradições, práticas ou objetos, para que estes sejam destituídos de seu sentido e ganhem uma nova utilidade que corresponda a consumo, e assim possa servir aos novos deuses e a Industria Cultural, é observada de muitas formas, em “Deuses Americanos” Wednesday/Odin conversa com uma jovem garçonete, que se diz pagã, mas não reconhece nenhum deus ou ritual pagão, ele a questiona sobre práticas pagãs, e insinua a Easter (Eostre ou Ostera, ou ainda Ishtar ou Astarte), uma deusa pagã cujas muitas práticas, sobreviveram até os dias contemporâneos sobre a faceta de serem cristãos. Segue o trecho: Chegaram a um café de calçada, entraram e sentaram-se. Só havia uma garçonete, que usava um piercing na sobrancelha para marcar sua casta, e uma mulher fazendo café atrás do balcão. A garçonete avançou na direção deles, sorrindo automaticamente, fez com que se acomodassem e anotou os pedidos. Easter colocou sua mão fina nas costas da mão quadrada e cinzenta de Wednesday. - Estou dizendo... estou me dando bem. Nos dias da minha festa eles ainda se refestelam com ovos e coelhos, com doces e com carne, pra representar o renascimento e a cópula. Usam flores nos bonés e dão flores uns prós outros. Fazem tudo isso em meu nome. Mais e mais a cada ano. Em meu nome, lobo velho. - E você engorda e enriquece com a idolatria e o amor deles? ele disse, seco. - Não seja babaca. De repente, ela pareceu muito cansada. Deu um gole no mochaccino. - É uma questão séria, querida. Certamente eu concordo que milhões e milhões deles dão lembranças uns prós outros em seu nome, e que ainda praticam todos os rituais da sua festa, até mesmo saem caçando ovos escondidos. Mas quantos sabem quem você é? Hein? Por favor, senhorita. A última frase foi dirigida à garçonete, que perguntou: - Quer mais um expresso? - Não, querida. Só queria ver se consegue resolver uma discussãozinha que estamos tendo aqui. Minha amiga e eu discordamos a respeito do significado da palavra "Easter", quer dizer, "Páscoa". Será que você sabe o que quer dizer?


25

A garota olhava para ele como se sapos verdes saíssem de seus lábios. Então, disse: - Não sei nada a respeito dessas coisas católicas. Sou pagã. A mulher atrás do balcão disse: - Acho que é a palavra em Latim, ou qualquer coisa dessas, que significa "Jesus se reergueu". - É mesmo? - disse Wednesday. - É, com certeza. Easter. Do mesmo jeito que o sol se levanta ao Leste [east em inglês no original], sabe. - O filho que renasce. Claro... é uma suposição bem lógica - A mulher sorriu e voltou ao seu moedor de café. Wednesday olhou para a garçonete. - Acho que eu vou aceitar mais um café, se você não se incomodar. Mas, me diz, como pagã, quem é que você adora? - Adoro? - Isso mesmo. Imagino que você tenha um campo bem amplo. Então, pra quem você monta o altar da sua casa? Pra quem você se ajoelha e reza ao amanhecer e ao anoitecer? Seus lábios adquiriram vários formatos sem dizer nada antes que ela falasse: - O princípio feminino. É uma coisa de poder, sabe? - De fato. E esse tal princípio feminino seu tem nome? - Ela é a deusa que está dentro de todos nós - disse a garota, com a cor subindo às suas bochechas. - Ela não precisa de nome. - Ah - disse Wednesday, com um largo sorriso de macaco. Então, vocês promovem bacanais poderosos em honra a ela? Bebem vinho de sangue sob a lua cheia, enquanto velas escarlates queimam em castiçais de prata? Entram nuas na espuma do mar, cantando com êxtase à sua deusa sem nome, enquanto as ondas lambem as suas pernas, batendo nas suas coxas igual à língua de mil leopardos? - Você está tirando sarro de mim - ela disse. - Não fazemos nenhuma dessas coisas que falou. Ela respirou fundo. Shadow desconfiou que estava contando até dez. - Alguém mais quer café aqui? Mais um mochaccino pra senhora? Seu sorriso agora era muito parecido com aquele com que os havia recebido na entrada. Eles sacudiram as cabeças, e a garçonete se virou para cumprimentar outro cliente. - Aí está - comentou Wednesday. - Alguém "que não tem fé e não se atreve a se divertir", Chesterton. Pagã de fato. Então. Vamos sair na rua, Easter minha cara, e repetir o exercício? Descobrir quantos dos transeuntes sabem que sua festa da Páscoa se chama Easter em inglês por causa de Easter do Amanhecer? Vamos ver... já sei. Vamos perguntar a cem pessoas. Pra cada uma que souber a verdade, você pode cortar um dos meus dedos das mãos, e quando eu ficar sem nenhum, pode cortar os dedos dos meus pés. Pra cada vinte que não souberem, você passa uma noite fazendo amor comigo. E a probabilidade está do seu lado... Isto é São Francisco, apesar de tudo. Aqui, nestas ruas de precipício, está lotado de idólatras, pagãos e wiccas.


26

Os olhos verdes dela olharam para Wednesday. Eram, observou Shadow, exatamente da cor de uma folha na primavera trespassada pelo sol. Ela não disse nada. - Nós poderíamos tentar - continuou Wednesday. - Mas eu iria acabar com dez dedos nas mãos, dez dedos nos pés, e cinco noites na sua cama. Então não vem falar pra mim que eles adoram você e comemoram a sua festa. Eles proferem o seu nome, mas isso não tem significado nenhum. Não quer dizer nada. (GAIMAN, 2004. p.235-237)

Conforme este trecho, o livro descreve uma situação cada vez mais constante atualmente, que é o desaparecimento da crença em deuses antigos, em substituição dos rituais em fetiches comerciais. As antigas crenças ainda existem, mas, estão destituídas do seu significado original, foram absorvidas pelo sistema capitalista que nos rodeia. Gaiman nos relata um declínio dos deuses antigos e antigas crenças para dar espaço a um novo panteão de Deuses. Essa troca, conforme relata por Debord é vista no fetichismo e na adoração religiosa aos objetos. Em um dos trechos do livro a própria “Televisão” se revela como um objeto de adoração, revela que recebe adoração por intermédio dos aparelhos de TV, altares modernos, e portanto isso á torna algo como uma deusa: A imagem se dissolveu em um chuvisco brilhante. Quando voltou, o Dick Van Dyke Show havia se transformado, inexplicavelmente, em I Love Lucy. Ela estava tentando convencer Ricky a trocar a geladeira velha por uma nova. Mas quando ele saiu, ela foi até o sofá e se sentou, cruzando as pernas, repousando as mãos no colo, e olhando pacientemente através dos anos em branco e preto. - Shadow. Precisamos conversar. Ele não disse nada. Ela abriu a bolsa e tirou um cigarro, acendeu com um isqueiro prateado claro e guardou o isqueiro. - Estou falando com você. Vai responder? - Isso é loucura - disse Shadow. - E o resto da sua vida é bem normal? Dá um tempo, porra. - Sei lá. Lucille Ball falando comigo pela TV é mais esquisito, em uma ordem de magnitude muito maior, do que qualquer coisa que já aconteceu comigo até agora. - Não é Lucille Ball. É Lucy Ricardo. E quer saber o que mais? Eu nem sou ela. Esse é só um jeito fácil de aparecer,


27

tendo em vista o contexto. Só isso. Ela se ajeitou de maneira desconfortável no sofá. - Quem é você? - perguntou Shadow. - Tudo bem. Boa pergunta. Eu sou a caixa dos idiotas. Sou a TV. Eu sou o olho que vê tudo e sou o mundo do raio catódico. Eu sou o tubo dos tolos... o pequeno altar na frente do qual a família se reúne pra adorar. - Você é a televisão? Ou é alguém na televisão? - A TV é o altar. Eu sou aquilo pelo que as pessoas se sacrificam. - Como se sacrificam? - perguntou Shadow. - O tempo que têm - disse Lucy. - Às vezes, umas às outras. Ela levantou os dois indicadores e soprou a fumaça de revólveres imaginários das pontas dos dedos. Então piscou um olho, aquela piscadela famosa e adorada de I Love Lucy. - Você é uma deusa? Lucy deu um sorriso forçado e uma tragada de dama no cigarro. - Posso dizer que sim. (GAIMAN, 2004. p. 141)

Apenas o fato dos novos produtos da indústria capitalista serem adorados como os deuses antigos não é a única semelhança entre esses e os deuses das antigas sociedades. Durante a maior parte da história da humanidade, passando por diversas partes do mundo, os deuses exerceram grande controle e influência sobre as sociedades. Da mesma forma que as religiões influenciaram as sociedades de diversas formas, na indústria capitalista influência e controla os hábitos da sociedade. Se antes a sociedade era regrada pelos costumes religiosos, a indústria vai estabelecer regras e controle muito com maior agressividade. Mas, para compreender se a ideologia que surge do capitalismo, tem os mesmos princípios de uma religião é preciso antes definir o conceito de religião.


28

2.2 – Capitalismo e Religião

2.2.1 - Conceito e Situação God is a concept, By which we measure Our pain.8

“A religião pertence a uma família de curiosos e ás vezes embaraçantes conceitos que a gente compreende perfeitamente até querer defini-los.” (BAUMAN, 1998, p. 205) Como foi dito por Bauman, religião é um conceito que embora pareça simples, se mostra complexo ao tentar defini-lo, a priori, podemos crer que é um conjunto de dogmas e rituais, mas Bauman segue dizendo: Se definirmos religião através de coisas transcendentais, ou através de coisas definitiva, a aplicação prática da definição permanece numa ordem tão elevada e, no fim, tão controversa, quanto a própria definição. Como Thomas Luckman ressalta, “matérias que vêm a ser de significação definitiva para os representantes das últimas gerações anteriores”. Pode-se evitar essa dificuldade tentando obter a descrição do “transcendental” ou “definitivo” dos interlocutores religiosos institucionalizados, mas então, para finalidades práticas e teóricas , termina-se numa tautologia: as igrejas ocupam-se da religião, e religião é o que as igrejas fazem. Ou se deseja caminhar sem muletas institucionais, selecionando fenômenos relevantes segundo a interpretação pessoal ou as intuições populares do “transcendental” ou “definitivo” então se acaba numa rede conceitual apertada demais ou porosa demais, que capta ou exclui em demasia os pensamentos e atos humanos, no inexplorado resíduo do fundo comum da vida. (...) Talvez no caso da religião, mais do que em todos os outros casos, porque a religiosidade não é, afinal, nada mais do que intuição dos limites até os quais os seres humanos, sendo humanos, podem agir e compreender. (BAUMAN, p.208).

E utilizando da definição de Leszek Kolakowski que foi referida por Bauman: “A religião, na verdade, é a consciência da insuficiência humana, é vivida na

8

God. Jonh Lennon. Plastic Ono Band. Faixa 10. Apple Records, 1970.


29

admissão da fraqueza...” (KOLAKOWSKI apud BAUMAN, p. 209), entendemos que a religião é o reconhecimento da fraqueza e da limitação humana, o homem que se reconhece pequeno diante de um universo tão grande e complexo. No século XIX temos a ascensão do pensamento positivista e a ciência se fortalece, o homem, a partir de então começa a dominar a natureza e se ver excluído do circulo natural do mundo, sendo agora, um juiz a conhecer o universo, e não mais um espécime sujeito a natureza. A primeira vista podemos concluir que esse domínio das ciências tenha extinguido a religião, citando até a famosa frase do filósofo Nietzsche, proferida no séc. XIX “Deus está Morto”, já que o homem que agora consegue dominar uma tecnologia que controla as leis naturais, não vê mais a fraqueza em si mesmo, a presença de uma divindade não se faz mais necessária. Mas, em uma análise mais profunda, observa-se as ciências naturais reconhecendo a grandeza do universo, e quando comparado a esta, o homem se vê pequeno, como apenas um grão de areia, observa-se a psicologia revelando um padrão de comportamento no homem, revelando que um homem esquematizado e revelado, constituído de padrões resultantes das experiências de sua vida, observase as ciências sociais alegando que o homem é fruto de seu momento histórico, que pertence a uma inexorável estrutura social que define seu comportamento e que este homem individual não a controla. O homem como coletivo frente à grandeza dessa ciência se vê deixando de ser criatura para habitar no patamar de criador, enquanto individualmente é uma sombra (Shadow) de si mesmo. Então em meio à lucidez, a fraqueza ainda existe, os deuses já não mais, mas o homem individual não controla suas próprias ações, de modo a ainda estar no aparato ideológico da religião, uma nova religião. Nas religiões de modo geral, outro aspecto de extrema relevância se faz presente, sempre aliado e enfatizado a idéia de fraqueza, esta é a idéia de salvação. Ao reconhecer a sua fraqueza o homem passa a buscar o conformismo e a salvação de


30

sua miséria, essa salvação é prometida de maneiras diferentes de acordo com a religião, mas em todas, essa busca interfere diretamente no comportamento e na rotina humana, seja essa salvação a eterna glória póstuma, obtida através de disciplina e sacrifícios como é o caso do islamismo e do cristianismo, ou através de rituais de adoração, sacrifícios de animais, oferendas ou guerras, como as religiões celtas e greco-romanas, ou seja, através do equilíbrio póstumo com a natureza, buscado através do conformiso e pacifismo. Em “Deuses Americanos”, Shadow, o homem comum, encontra Wednesday e conhece o mundo que o acompanha, quando sua vida está em situação difícil, expresidiário, sem emprego, família e amigos. É nesse momento que ele tem seu primeiro contato com esse novo mundo, sua primeira reação frente à oferta de emprego de Wednesday é rejeitá-la, mas muda de opinião, quando descobre que não tem mais nada e começa a peregrinar pelo mundo das deidades caídas e dos deuses do capital. O argumento usado por Wednesday para convencê-lo ao emprego consiste em ressaltar a impotência frente à situação miserável em que a vida de Shadow se encontra neste momento, um estratagema extremamente semelhante ao utilizados por igrejas das mais diversas denominações que assim convertem seus seguidores, revelando a sua insuficiência humana, e necessidade de outrem maior que eles próprios. O homem abriu os olhos. Havia algo de estranho em seus olhos, Shadow pensou. Um deles era de um cinza mais escuro do que o outro. Ele olhou para Shadow. - A propósito - ele disse - sinto muito pela sua mulher, Shadow. Uma grande perda. Foi então que Shadow quase bateu no homem. Mas preferiu respirar fundo. ("Como eu disse, não irrite as vacas nos aeroportos", disse Johnnie Larch, na sua cabeça, "ou elas vão te trazer de volta para cá antes de você dar uma cuspida".) Contou até cinco. - Eu também senti muito - disse. O homem sacudiu a cabeça. - Se pudesse ter sido de outro jeito - lamentou com um suspiro. - Ela morreu em um acidente de carro - disse Shadow. -


31

Existem jeitos piores de morrer. O homem sacudiu a cabeça, lentamente. Por um instante, pareceu a Shadow que o homem não tinha substância; como se de repente o avião tivesse ficado mais real, ao contrário do seu vizinho. - Shadow - ele disse -, não é piada. Não é truque. Eu posso pagar melhor do que qualquer outro emprego que você possa encontrar. Você é um ex-presidiário. Não vai ter uma fila comprida de gente se acotovelando pra contratar você. (GAIMAN, 2004. 27-28)

Um estratagema semelhante também ao empregado por campanhas publicitárias que divulgam seus produtos como necessários, para minimizar a extrema insignificância do homem sombra frente ao mundo, ou mesmo nos meios religiosos, onde certas denominações neopentecostais, pregam o minimizar da insignificância por meio de prosperidade financeira, o homem sombra é então insignificante

frente

à

divindade

e

frente

à

necessidade

do

consumo,

simultaneamente.

2.2.2 – O Capitalismo como Religião You're apartment with a view On the finest avenue Looking at your beat on the street You're always pushing, shoving Satisfied with nothing You bitch, you must be getting old So stop your love on the road All your digging for gold You make me wonder Yes I wonder, I wonder Honey, whaddya do for money? Honey, whaddya do for money? Where you get your kicks?9

Então na Modernidade e na Pós-Modernidade, temos uma crença que atinge a maioria, de que a ciência que não reconhece um mundo espiritual ou 9

What Do You Do For Money Honey. Angus Young/Malcom Young/Brian Jonhson. AC/DC – Back in Black. Faixa 3. Atlantic Records, 1980.


32

metafísico, nenhuma existência póstuma e um reconhecimento de suas fraquezas baseado num mundo físico e lógico, então qual a salvação para fugir da miséria humana? Como o homem pode se ver livre de sua insignificância nesse mundo em que nenhum ser divino o protege e o promove? No mundo pós-moderno, a salvação não pode ser póstuma, já que essa existência pós-vida é posta em dúvida pela ciência, logo, a salvação, a fuga da insignificância humana deve ser feita em vida, o homem sombra tem como fuga para existir e se significar, apenas a busca incessante por um poder aparente, legitimado por outros homens, o destaque de um entre a multidão, uma sensação de grandeza diante de seus iguais, diante da humanidade que assim como ele é inexistente.

“Happiness is a warm gun (Bang, bang, shoot, shoot) Happiness is a warm gun mama When I hold you in my arms And I feel my finger on your trigger I know nobody can do me no harm Because happiness is a warm gun mama10”

Essa canção dos Beatles, traduz a sensação pelo poder que salva o homem de suas fraquezas, a busca do homem pela divindade, que pode ser dada pelo poder bélico que traz a sensação de controlar a vida e a morte, de estar acima de qualquer outro ser humano e de proteção contra qualquer mal, mas esse poder já não é o suficiente, já que há poderes muito maiores, como o político, capaz de controlar nações e um poder que hoje se mostra maior que o poder político, e mais prazeroso: o poder econômico.

10

Happiness Is A Warm Gun. Lennon/McCartney. The Beatles. Faixa 8, Disco 1. Apple Records, 1968.


33

No livro de Gaiman, há um grupo a serviço dos “novos deuses”, liderado por World, uma possível referencia ás multinacionais, ou ao domínio global do capitalismo, todos os componentes desse grupo tem nome de lugares indefinidos como Town (cidade), Road (estrada), Woody (floresta), lugares comuns a todo o planeta, carros chefes do capitalismo, demonstrando assim, seu domínio onipotente. A submissão ao capitalismo não é demonstrada de forma explícita, mas pode ser compreendido através do comportamento burocrático e empresarial desse grupo: Não vale o incômodo. Tem questões de jurisdição demais, e só posso tirar algumas cartas da manga em uma única manhã. Vamos ter bastante tempo. Só volta pra cá. Estou ocupado tentando organizar o encontro de diretrizes. - Algum problema? - É um concurso pra ver quem me irrita mais. Propus que fizéssemos aqui. Os caras da técnica querem que seja em Austin, ou talvez em San José, os jogadores querem em Hollywood, os intangíveis, em Wall Street. Todo mundo quer que seja no seu próprio jardim. Ninguém vai ceder. (GAIMAN, 2004. p. 261)

É fato conhecido que hoje, um empresário que controla uma grande corporação pode influenciar a política de diversas nações, o poder do capital afeta diretamente a vida de toda a população, já que controlam o mercado de trabalho que atualmente afeta a vida de grandes populações, controlando a vida e o meio de sobrevivência das pessoas de classe mais baixa, as grandes corporações e complexos industriais adquirem os meios de produção que produzem os bens de consumos que são necessidade básica à nossa sobrevivência, assim, quem está a sua margem não pode ter mais que uma subvida, de tal forma que essas duas características combinadas torna o poder capitalista capaz de destituir um homem de sua própria consciência. Com o desenvolvimento da burguesia, isto é, do capital, desenvolve-se também o proletariado, a classe dos operários modernos, que só podem viver se encontrarem trabalho, e que só encontram trabalho na medida em que este aumenta o


34

capital. Esses operários, constrangidos a vender-se diariamente, são mercadoria, artigo de comércio como qualquer outro; em conseqüência, estão sujeitos a todas as vicissitudes da concorrência, a todas as flutuações do mercado. O crescente emprego de máquinas e a divisão do trabalho, despojando o trabalho do operário de seu caráter autônomo, tiram-lhe todo atrativo. O produtor passa a um simples apêndice da máquina e só se requer dele a operação mais simples, mais monótona, mais fácil de aprender. Desse modo, o custo do operário se reduz, quase exclusivamente, aos meios de manutenção que lhe são necessários para viver e perpetuar sua existência. (MARX, K.; ENGELS, F, 2000. p 51-52)

Essa onipotência do capitalismo cria um novo “deus”, esse deus não é os empresários isoladamente, mas essa entidade que se mostra de forma obscura e até mística que é todo o sistema capitalista, uma entidade sem face definida, prazerosa e impiedosa, intangível, onipresente, indestrutível e onipotente. Esse novo “deus” não age só, necessita de outras entidades, tão obscuras quanto ele, como a indústria cultural e a propaganda, que age divulgando suas idéias e criando, quando não condicionando a aceitação e adoração a sua existência, “convertendo os homens para se tornarem seus fiéis”, tornando-se assim a sua “igreja”. Esse domínio dos “novos deuses” sob o governo no livro de Gaiman é explicita, no trecho abaixo eles demonstram poder utilizar entidades governamentais e acervos militares para os seus próprios interesses: Town pensa que deveria ter contratado um batalhão da S.W.A.T. para pegar aquela porra de Winnebago, ter colocado minas terrestres na estrada, ou uma porra de uma arma nuclear, que teria mostrado que eles realmente estavam com más intenções. Era como o senhor World dissera certa vez... Estamos escrevendo o futuro em Letras de Fogo. (GAIMAN, 2004. p. 262)

Mas se existem os deuses, também existem os santos e os anjos, e se existe o papa, existe os bispos e os padres, da mesma forma no sistema capitalista pode ser notada toda uma hierarquia eclesiástica de pequenos e grandes burgueses, de marketeiros, artistas e até intelectuais que servem aos interesses capitalistas, e a busca por esse status, o consumo, a inclusão nas altas classes


35

dessa hierarquia, acaba criando no homem uma ilusão de poder, e a possibilidade de fugir de sua fraqueza, de sua sombria insignificância, criando assim uma ilusão de salvação. Assim vemos que não por acaso na história conta por Gaiman, muitos dos deuses são representações dos meios de comunicação de massa, como o rádio, a TV e a Internet, e através desses toda a propaganda cultural e transmitida à população que é divulgada a ideologia capitalista. Assim, a partir do mesmo princípio das antigas religiões cria-se uma religião moderna, com uma estrutura de fé e servidão, semelhante a toda e qualquer igreja, dispondo de seu próprio clero, corpo eclesiástico, seus próprios deuses, relíquias e sua própria salvação.

2.3 – Velhos Deuses e Novos Deuses - Influência no cotidiano Oh father high in heaven Smile down upon your son Whose busy with his money games His women and his gun Oh Jesus save me!11

No livro “Deuses Americanos” vemos esses novos deuses, representados pela televisão, pelo cartão de crédito, pela internet, entre outros, são “deuses” jovens, já que são frutos de uma sociedade capitalista, que nasceu na Revolução Industrial no final do século XVII, e o surgimento desses teriam se dado conforme essa sociedade se desenvolve, então podemos dizer que eles têm pouco mais de algumas décadas, enquanto os antigos existem há milênios. Essa nova “religião” formada pelo sistema capitalista passa a influenciar na rotina do ser humano, modificando todo seu modo de vida, de forma semelhante às antigas religiões.

11

Hymn 43. Ian Anderson. Jethro Tull - Aqualung. Faixa 8, Chysalis Records, 1971.


36

No trecho abaixo, o Deus “Internet” diz que “reprograma” a realidade, ou seja, ele a modifica, tornando o seu ambiente e não do dos seus adversários. - Diz a ele que a gente reprogramou a realidade. Diz que a linguagem é um vírus, que a religião é um sistema operacional e que as orações são a mesma coisa que a porra do spam. Diz isso a ele ou eu mato você - disse o jovem do meio da fumaça, docemente. - Entendi - falou Shadow. - Pode me deixar aqui. Eu posso fazer o resto do caminho a pé. O jovem assentiu com a cabeça. - Foi bom conversar com você. O fumo o havia amaciado. - Entenda que, se a gente matar você, a gente vai deletar a sua pessoa. Sacou? Um clique e você vai ser substituído por um monte de uns e de zeros. Cancelar a operação não é uma opção. (GAIMAM, 2004. p. 51)

Essa influencia pode ser notada em maior ou menor escala em diversos aspectos da vida cotidiana, e tanto as antigas religiões dos deuses e mitos quanto à nova religião de valores obtidos no capitalismo, atuam de forma semelhante, mas através de ferramentas diferentes como veremos a seguir. A alimentação foi influenciada pela religião, hindus são vegetarianos, judeus não comem carne de porco e durante a Idade Média os cristãos passavam por longos períodos de jejuns em virtude dos períodos de sacrifício espiritual, assim como os mulçumanos e a maioria delas adotam alimentos e bebidas consideradas sagradas ou profanas, como a bebida usada para selar a parceria entre Wednesday e Shadow: Wednesday voltou para a mesa, três drinques facilmente acomodados em suas mãos que pareciam patas. - Southern Comfort e Coca pra você, Mad Sweeney, meu homem, e um Jack Daniel's pra mim. E isto é pra você, Shadow. - O que é? - Experimenta. A bebida tinha uma cor dourada amarelo-tostada. Shadow deu um golinho, sentindo o gosto de uma mistura esquisita de amargo e doce na língua. Ele conseguia sentir o gosto do álcool no fundo, além de uma mistura estranha de sabores. Lembrou-lhe um pouco o destilado da prisão, fermentado em um saco de lixo com frutas podres, pão, açúcar e água, mas era mais doce, e muito mais estranho.


37

- Tudo bem - disse Shadow. - Eu experimentei. O que é? - Mulso - disse Wednesday. - Vinho de mel. A bebida dos heróis. A bebida dos deuses. (GAIMAN, 2004. p. 38)

Os novos deuses também influenciam em nossa rotina alimentar, nós comemos o que é disponibilizado pelo mercado, e absorvemos os desejos que nos são impostos pela propaganda, além de estudos científicos que definem o que é sagrado ou profano. A propaganda vinculada nos grandes meios de comunicação criou uma cultura de alimentar-se de comida pré-preparada além de estipular datas para cada tipo de refeição, além de suas marcas que são expostas repetidamente para os consumidores, através de uma propaganda que cria um desejo subliminar por ela, tornado-as sagradas aos seus consumidores. Já a ciência, através de inúmeras pesquisas, definindo o que qual consumo é benéfico ou maléfico, quando divulgadas através dos meios de comunicação de massa, cria-se uma procura ou uma repulsa por essa dieta que foi divulgada, criando assim seus alimentos sagrados ou profanos. O modo de se vestir os padrões estéticos também são influenciados pelas religiões, embora sejam poucas as vezes em que as vestimentas são impostas, com exceção de seus sacerdotes, muitas vezes há proibições de acordo com as crenças e pudores, e há as recomendações para celebrar dias sagrados e ornamentações e pinturas em homenagem as seus deuses. Na sociedade contemporânea, a imposição das vestes é intensa, o sistema capitalista cria sua moda e a modifica rapidamente, e mesmo que não tenha nenhuma sanção oficial, há sanções morais para quem não se veste de acordo com os padrões, se certa pessoa pertence a um determinado grupo, deve se vestir como esse grupo, se não é excluída dessa sociedade. Essa distinção através da roupa sempre existiu de modo a tornar as vestes parte da identidade de quem usa, mas antes da ascensão do capitalismo, a identificação pela roupa estava restrita às


38

classes sociais, já que só as classes dominantes conseguiam ter roupas mais luxuosas, e a cultura, já que climas e vegetações diferentes geram vestes diferentes, mas na sociedade contemporânea, a roupa é usada de forma ideológica de modo que revela quais são suas crenças, usadas para segregar grupos uns dos outros de forma semelhante aos hindus que utilizam as cores da roupa para diferenciar castas. A rotina e as atividades econômicas também sofrem influencias religiosas. Na grande maioria das religiões antigas, surgiram e se desenvolveram em sociedades predominantemente agrícolas, então a rotina do trabalho é submetida às condições naturais, são os fenômenos atmosféricos, o clima, a condição do solo e as estações do ano que rege esse trabalho agrícola, fenômenos esses que são constantemente atribuídos aos deuses e essas atividades são paralisada durantes festas e feriados religiosos, que também determinam os dias e horários em que cada pessoa pode exercer suas atividades de lazer. E eles agradeceram, regozijaram-se e beberam até cair. Naquela noite, na escuridão enfumaçada do salão, o bardo cantou canções antigas para eles. Cantou sobre Odin, o Pai de Todos, que se sacrificara com tanta coragem e nobreza quanto outros que foram sacrificados para ele. Cantou sobre os três dias durante os quais o Pai de Todos ficou pendurado na árvore do mundo, com a lateral do corpo perfurada e gotejante por causa das feridas feitas à ponta de lança. Ele cantou todas as coisas que o Pai de Todos havia aprendido em sua agonia: nove nomes, nove runas e duas vezes nove amuletos. Quando falou sobre a lança que perfurou a lateral do corpo de Odin, o bardo urrou de dor da mesma maneira que o Pai de Todos tinha gritado em sua agonia, e todos os homens tremeram, imaginando sua dor. (GAIMAN, 2004. p. 62)

A influência da indústria capitalista na rotina é tamanha que não apenas define os momentos de cada atividade, mas estabelece rígidos horários para cada atividade humana. Partindo do horário de trabalho que cada trabalhador deve seguir para satisfazer suas necessidades e os desejos criados pela sociedade do consumo, observamos que mesmo as atividades de lazer ou de satisfação pessoal


39

tem horários pré-definidos, há o momento certo para cada necessidade, comer, dormir, higiene, relações sexuais, e para cada tipo de lazer, mesmo essas atividades são regradas, são convencionadas a se realizar em determinado dia, clima ou horário, convenções de datas e horários pré-estipulados que são divulgados pelos meios de comunicação de massas acatados pela sociedade. Durante séculos, a religião esteve diretamente ligada à política, durante toda a Idade Média e Idade Moderna, o chefe de estado era determinado de acordo com princípio divinos, os reis possuíam essa posição devido a direitos divinos, que lhes davam o poder político, no Egito o próprio faraó era um representante dos deuses na terra e ainda hoje nos países islâmicos o líder de governo é o líder religioso. O clérigo medieval constituía uma classe superior e vista com prestígio, mesmo o baixo clero, essa posição entre os representantes religiosos se repete em todas as sociedades, desde a Mesopotâmia e o Egito Antigo até as tribos indígenas americanas. O código de leis em sua maioria foram forjados com base em princípios religiosos e muitas vezes julgado pelos representantes do clero, então até mesmo as regras legais eram controladas pelos “deuses”. Hoje, com exceção dos países islâmicos, a religião perdeu sua força política, se tornando apenas um guia espiritual. Os códigos de leis tem sido montados a partir de princípios científicos e filosóficos, guiados nos princípios iluministas que buscam a democracia, inventada pelos gregos, que buscam regras que beneficiam a maioria da população. Se o princípio da política é o bem comum para todos, então os líderes políticos devem ser escolhidos através de eleições, para que toda a população tenha o direito de opinar. Se o líder é escolhido através de eleições, para que determinado político seja escolhido, ele deve ser conhecido. Hoje temos, os meios de comunicação de massa, a tv, o rádio ou o jornal, onde uma um discurso pode chegar a milhões de pessoas espalhadas por milhares de quilômetros, logo, quem controla esses meios de comunicação tem mais chance de


40

ser conhecido pela população, com o apoio da indústria da propaganda, torna-se uma pessoa carismática e atraente para exercer um cargo político importante, e ambas indústrias pertence ao sistema capitalista, controlado pelas classes dominantes, assim, podemos concluir que a política, as leis, antes controladas pela religião, hoje é controlada pelo sistema capitalista.

2.4 – A ascensão dos novos deuses I'll tip my hat to the new constitution Take a bow for the new revolution Smile and grin at the change all around Pick up my guitar and play Just like yesterday Then I'll get on my knees and pray We don't get fooled again Don't get fooled again No, no! Meet the new boss Same as the old boss12

A partir dessa análise notamos que o sistema capitalista atua onde a religião perdeu sua força, se antes era a religião que controlava a política e a população e expressava o verdadeiro poder absoluto sobre a sociedade, hoje esse poder é exercido pelo sistema capitalista. Para uma melhor análise de como essa troca de poderes ocorreu, recorreremos a Karl Marx e sua análise sobre religião e ideologia: A produção de idéias, de representações e da consciência está em primeiro lugar direta e intimamente ligada à atividade material e ao comércio material dos homens; é a linguagem da vida real. As representações, o pensamento, o comércio intelectual dos homens surge aqui como emanação direta do seu comportamento material. O mesmo acontece com a produção intelectual quando esta se apresenta na linguagem das leis, política, moral, religião, metafísica, etc., de um povo. São os homens que produzem as suas representações, as suas idéias, etc, mas os homens reais, atuantes e tais como foram condicionados por um determinado desenvolvimento das suas forças produtivas e do modo de relações que lhe 12

Won't Get Fooled Again. Pete Townshend. The Who – Who’s Next. Faixa 14, MCA Records, 1971.


41

corresponde, incluindo até as formas mais amplas que estas possam tomar. A consciência nunca pode ser mais do que o ser consciente e o ser dos homens é o seu processo da vida real. E se em toda a ideologia os homens e as suas relações nos surgem invertidos, tal como acontece numa câmera obscura isto é apenas o resultado do seu processo de vida histórico, do mesmo modo que a imagem invertida dos objetos que se forma na retina é uma conseqüência do seu processo de vida diretamente físico. Contrariamente à filosofia alemã, que desce do céu para a terra, aqui parte-se da terra para atingir o céu. Isto significa que não se parte daquilo que os homens dizem, imaginam e pensam nem daquilo que são nas palavras, no pensamento, na imaginação e na representação de outrem para chegar aos homens em carne e osso; parte-se dos homens, da sua atividade real. É a partir do seu processo de vida real que se representa o desenvolvimento dos reflexos e das repercussões ideológicas deste processo vital. Mesmo as fantasmagorias correspondem, no cérebro humano, a sublimações necessariamente resultantes do processo da sua vida material que pode ser observado empiricamente e que repousa em bases materiais. Assim, a moral, a religião, a metafísica e qualquer outra ideologia, tal como as formas de consciência que lhes correspondem, perdem imediatamente toda a aparência de autonomia. Não têm história, não têm desenvolvimento; serão antes os homens que, desenvolvendo a sua produção material e as suas relações materiais, transformam, com esta realidade que lhes é própria, o seu pensamento e os produtos desse pensamento... Não é a consciência que determina a vida, mas sim a vida que determina a consciência. Na primeira forma de considerar este assunto, parte-se da consciência como sendo o indivíduo vivo, e na segunda, que corresponde à vida real, parte-se dos próprios indivíduos reais e vivos e considera-se a consciência unicamente como sua consciência. (MARX, K.; ENGELS, F, 2005. p. 51-52)

De acordo com Marx, não é a religião, a filosofia e a política que definem a rotina, a produção e o comércio material da sociedade, e sim a mão contrária, sendo elas definidas diretamente pelo do modo de produção, e consequentemente, se modificando ao tempo em que esse modo de se produzir muda. A religião das antigas sociedades que legitima o poder por vezes divinos dos reis, imperadores e faraós, é produto do modo de produção, das relações comerciais e políticas de suas épocas, assim como a cultura e a rotina que ela impõe. Então, a interferência dela na rotina de uma sociedade se da por motivos


42

materiais, onde se a religião diz quais são os alimentos sagrados, é por que esses são mais fartos ou mais raros, quando estabelece jejuns e longos períodos de fome, é porque a produção de alimentos não é suficiente, e a falta desses devem ser justificados de uma maneira ideológica convincente, que mascare a divisão desigual. O próprio estabelecer de festas periódicas de fartura, comumente religiosas, tem a funcionalidade pratica de ser válvula de escape, para legitimar o poder divino e real sobre períodos de abundância natural de alimentos. E se influência diretamente no poder político, no intuito de legitimar a exploração de uma classe por outra, para revestir de político agora somado ao caráter divino, uma posição conquistada através da manipulação e assim obter aceitação e subjugação dos dominados. Em “Deuses Americanos” não há uma descrição clara e precisa sobre como os deuses surgem, mas podemos buscar a referência em outra obra do autor que contêm o embrião de “Deuses Americanos” bem como definiu toda a linha de trabalho do autor, a série de histórias em quadrinhos “Sandman”, a obra que consagrou Neil Gaiman. Em uma entrevista, o autor diz que durante a série “Sandman” teve a idéia para “Deuses Americanos”. It definitely started while I was doing Sandman. I remember writing a big speech for Loki about halfway through "The Kindly Ones," just after he reveals himself for the first time, where he starts ranting about the old gods and new gods and gods of car crash and hospital and so forth. And I remember at the time going, "This is something really nice and interesting, but I do not have the time or space to start exploring at this point. I think that was definitely one of the starting points, was Loki's rant. I think the Ishtar sequence would have been perfectly at home in American Gods, although it was enormous fun for me to write the Queen of Sheba stuff, the Bilquis stuff, which is very different, and of course is much more extreme in a way that you can do in prose and could not hope to get away with in comics.


43

Em “Sandman” Gaiman sugere que a origem dos deuses está nos sonhos dos homens e se alimentam de sua fé, a fé como condição de sobrevivência também é vista em “Deuses Americanos”, baseado nisso e na entrevista acima, que afirma uma ligação entre “Deuses Americanos” e “Sandman” podemos concluir que as duas histórias mantêm a mesma lógica e as mesmas regras para os seres fantásticos. Assim, vemos que os deuses dependem dos homens para sua sobrevivência, e a consciência humana que cria os seus deuses e conforme muda a sua mentalidade, e o seu mundo, organização, modo de produção, rotina e cultura, seus deuses mudam também. Ou seja, o modo de produção define a religião e o sistema de poder, isso também é valido para Gaiman. Partindo do que foi analisado até aqui, a mesma influência que a religião têm sobre as sociedades pré-revolução Industrial, o capitalismo têm na sociedade contemporânea. O capitalismo tem suas primeiras manifestações em meados dos século XIII, mas só vai atingir seu ápice no século XVIII, com a Revolução Industrial, mas a característica do sistema capitalista, essa crença religiosa em suas bases, não surge com a Revolução Industrial, esta é só a mudança necessária no modo de produção que desencadeia as mudanças na sociedade que vai resultar nesta sociedade crente no capitalismo, possivelmente onde surge o embrião dessa “nova religião”, mas para que uma religião cresça é necessário que suas idéias sejam divulgadas, é necessário, além de uma população disposta a aceitar devido ao seu meio de sobrevivência, uma igreja, clérigos e profetas que ensinem e divulgue seus dogmas, esse profeta do sistema capitalista, é a Indústria Cultural, que necessita de um ambiente propício para que se desenvolva. Não se poderia, de todo modo, falar em indústria cultural num período anterior ao da Revolução Industrial, no século XVIII. Mas embora esta Revolução seja uma condição básica para a existência daquela indústria e daquela cultura, ela não é ainda condição suficiente, É necessário acrescentara esse quadro á existência de uma economia de mercado, isto é, uma economia baseada no consumo de bens; é necessário, enfim, a ocorrência de uma sociedade de consumo, só verificada no


44

século XIX em sua segunda metade. (COELHO NETO, p10. 1981)

Teixeira Coelho nos diz que para que a Indústria Cultura apareça é necessária uma sociedade de consumo, que segundo a definição de Bauman: “Quando falamos de uma sociedade de consumo, temos em mente algo mais que a observação trivial de que todos os membros dessa sociedade consomem; todos os seres humanos, ou melhor, todas as criaturas vivas “consomem” desde tempos imemoriais. O que temos em mente é que a nossa sociedade é uma ‘sociedade de consumo’ no sentido similarmente profundo e fundamental, de que a sociedade de nossos predecessores, a sociedade moderna nas suas camadas fundadoras, na sua fase industrial, era uma ‘sociedade de produtores’. Aquela velha sociedade moderna engajava seus membros primordialmente como produtores e soldados; a maneira como moldava seus membros , a “norma” que coloca diante de seus olhos e os instava a observar, era ditada pelo dever de desempenhar esses dois papéis. A norma que aquela sociedade colocava para seus membros era a capacidade e a vontade de desempenhá-los. Mas no seu atual estágio final moderno (Giddens), segundo estágio moderno (Beck) Supramoderno (Balandier) ou pós moderno, a sociedade moderna tem pouca necessidade de mão de obra industrial em massa e de exércitos recrutados, em vez disso, precisa engajar seus membros pela condição de consumidores. A maneira como a sociedade atual molda seus membros é ditada primeiro e acima de tudo pelo dever de desempenhar o papel de consumidor A norma que nossa sociedade coloca aos seus membros é a da capacidade e vontade de desempenhar esse papael.” (BAUMAN, 1999. p 87-88)

Então para que exista a “religião capitalista” é necessária a indústria cultural, que para que essa se desenvolva é necessária uma sociedade de consumo. Ou seja, a condição necessária para que exista a adoração pela mercadoria e pelo lucro, é necessária uma sociedade que em que a principal norma seja consumir, essa norma reflete o modo de produção da sociedade que com o avanço tecnológico deixou de necessitar de tamanha mão-obra, mas passou a necessitar de um numero maior de consumidores, consumidores que geram o lucro para a indústria capitalista.


45

“Esse é o quadro caracterizador da indústria cultural: revolução industrial, capitalismo liberal, economia de mercado, sociedade de consumo. E esse, o momento histórico do aparecimento de uma cultura de massa – ou pelo menos, o momento pré-histórico. É que de um lado surgem como grandes instantes históricos dessa cultura os períodos marcados pela Era da Eletricidade (fim do século XIX) e pela era da Eletrônica) a partir da terceira década do século XX) quando o poder de comunicação dos meios eletrônicos se torna praticamente irrefreável. E por outro lado, na medida em que a cultura de massa está ligada ao fenômeno do consumo, o momento de instalação definitiva dessa cultura seria mesmo o século XX, onde o capitalismo não mais dito liberal, mas agora um capitalismo de organização (ou monopolista) criará as condições para uma efetiva sociedade de consumo cimentada, em ampla medida por veículos como a TV.”(COELHO NETO, p. 12)

No livro de Gaiman, a maioria dos deuses são personificações de invenções do final do século XIX e do século XX, símbolos da modernidade e pósmodernidade de nossa sociedade de consumo. Para que seja possível consumir, a população necessita de dinheiro, que se consegue principalmente com o trabalho, a partir do momento que a mercadoria se torna um objeto de adoração, e que o homem não medira esforços para obtê-la, ele se entregará ao trabalho, aceitando o que lhe for imposto, para poder alcançar seu objeto de desejo. Onde quer que tenha conquistado o poder, a burguesia calcou aos pés as relações feudais, patriarcais e idílicas. Todos os complexos e variados laços que prendiam o homem feudal a seus “superiores naturais” ela os despedaçou sem piedade, para só deixar subsistir, de homem para homem, o laço do frio interesse, as duras exigências do “pagamento à vista”. Afogou os fervores sagrados do êxtase religioso, do entusiasmo cavalheiresco, do sentimentalismo pequeno-burguês nas águas geladas do cálculo egoísta. Fez da dignidade pessoal um simples valor de troca; substituiu as numerosas liberdades, conquistadas com tanto esforço, pela única e implacável liberdade de comércio. Em uma palavra, em lugar da exploração velada por ilusões religiosas e políticas, a burguesia colocou uma exploração aberta, cínica, direta e brutal. A burguesia despojou de sua auréola todas as atividades até então reputadas veneráveis e encaradas com piedoso respeito. Do médico, do jurista, do sacerdote, do poeta, do sábio fez seus servidores assalariados.


46

A burguesia rasgou o véu de sentimentalismo que envolvia as relações de família e reduziu-as a simples relações monetárias. (MARX, K.; ENGELS, F, 2000. p 47-48).

No livro Deuses Americanos, a ação destrutiva do capitalismo contra religião que é dita por Marx, é relatada nos diversos trechos das agressões dos novos deuses contra os antigos deuses, e na recorrente afirmação de que eles são o futuro e que seus antagonistas são obsoletos e ultrapassados, como no trecho seguinte que descreve o assassinato da deusa Bilquis pelo deus “Internet” e sua acusação de que Bilquis é uma “garota analógica em um mundo digital”, uma deusa fora de ambiente, feita de antigos conceitos em um mundo que não os aceita mais: - Garoto rico, hein? - Mais do que rico - ele diz, deslizando por sobre o estofado de couro na sua direção. Ele se move desajeitadamente. Ela sorri para ele. - Humm. Isso me excita, querido. Você deve ser um daqueles caras ponto com sobre quem eu li no jornal. Ele levanta o peito e, então, solta a fumaça como um sapoboi. - É. Entre outras coisas. Sou um cara da técnica. O carro sai. - Diz pra mim, Bilquis, quanto você cobra pra chupar o meu pau? - Do que você me chamou? - De Bilquis. Depois canta, no ritmo da música da Madonna, com uma voz que não foi feita para cantar: - You are an immaterial girl, living in a material World. Há algo de ensaiado nas palavras dele, como se houvesse praticado o trocadilho na frente de um espelho. Ela pára de sorrir e seu rosto muda, fica mais sábio, mais penetrante, mais duro. - O que você quer? - Já disse. Doce amor. - Eu dou o que você quiser. Ela precisa sair da limusine. Agora está andando rápido demais para se jogar do carro, ela conclui, mas é o que vai fazer se conseguir ganhá-lo na conversa. O que quer que esteja acontecendo, ela não gosta nada daquilo. - O que eu quero. É. Ele faz uma pausa. Sua língua percorre os lábios. - Quero um mundo limpo. Quero ser dono do amanhã. Quero evolução, devolução e revolução. Eu quero levar o meu pessoal das margens do braço do rio pro meio da correnteza


47

do rio principal. Vocês são o submundo. Está errado. Precisamos tomar as luzes do palco e brilhar. Na frente e no meio. Vocês estão tão no fundo no submundo, há tanto tempo, que nem sabem mais usar os olhos. - Meu nome é Ayesha. Não sei do que está falando. Tem outra moça naquela esquina, o nome dela é Bilquis. Nós podemos voltar pró Sunset, você pode ficar com nós duas... - Ah, Bilquis - ele diz e suspira, de maneira teatral. - Só tem um tanto de fé por aí. Estão chegando ao fim do que podem dar pra nós. A falha da credibilidade. Então ele canta mais uma vez, no mesmo ritmo, com sua voz nasal e fora de tom: - You are an analog girl, living in a digital World. A limusine dobra uma esquina rápido demais, e ele cai pelo banco na direção dela. O motorista do carro está escondido atrás de um vidro fosco. Uma convicção irracional toma conta dela, de que ninguém está dirigindo o carro, de que a limusine branca está correndo por Beverly Hilis como Herbie, Se o Meu Fusca Falasse, com seu poder próprio. Então o cara estica a mão e bate no vidro fosco. O carro diminui e, antes que pare de andar, Bilquis já abriu a porta e se jogou, despencando no asfalto. É uma ladeira. À esquerda há uma montanha íngreme, à direita, uma queda livre. Ela começa a correr pela rua. A limusine fica lá, imóvel. Começa a chover, e seu salto alto se torce e escorrega. Ela tira os sapatos com um chute e corre, molhada até os ossos, procurando algum lugar para sair da rua. Está assustada. Tem poder, é verdade, mas é a magia da fome, a magia da boceta. Esse poder a manteve viva nesta terra durante tanto tempo, mas para tudo o mais ela usa seus olhos aguçados e sua cabeça, sua altura e sua presença. Há uma cerca de metal ao lado da rua, na altura do joelho, à sua direita, para evitar que os carros caiam pela encosta da montanha, e agora a chuva corre pela rua transformando-a em um rio, e suas solas dos pés começaram a sangrar. As luzes de L.A. se espalham na sua frente, um mapa elétrico cintilante de um reino imaginário, o paraíso colocado aqui mesmo na terra, e ela sabe que tudo que precisa para estar a salvo é sair da rua. - Eu sou negra, porém bela - murmura para a noite e para a chuva. - Eu sou a rosa de Sharon, e o lírio dos vales. Sustente-me com jarros, conforte-me com maças: porque eu estou enjoada de amor. Um relâmpago em forma de garfo queima esverdeado no meio do céu da noite. Ela perde o chão, escorrega vários metros, ralando a perna e o cotovelo, e está se levantando


48

quando vê as luzes do carro descendo a ladeira em sua direção. Está vindo rápido demais para ser uma velocidade segura e ela considera se deve se jogar para a direita, onde poderia ser esmagada contra a montanha, ou para a esquerda, onde corre o risco de escorregar pela vala. Ela atravessa a estrada correndo, pensando em escalar a encosta da montanha pela terra molhada, enquanto a limusine aumentada vem rabeando ladeira abaixo, inferno, deve estar a 130 por hora. Talvez até esteja deslizando sobre a água que corre sobre a ladeira, e Bilquis enfia a mão em um monte de mato e de terra, vai subir e fugir, e sobe, quando a terra molhada se esfarela e cai de volta na rua. O carro bate na mulher com um impacto que entorta a grade e faz com que ela saia voando pelo ar, como uma marionete. Ela aterrissa na rua, atrás da limusine, e o choque despedaça sua pélvis, fratura seu crânio. Água fria de chuva corre pelo seu rosto. Bilquis começa a amaldiçoar seu assassino, silenciosamente, porque não consegue mexer os lábios. Ela o amaldiçoa quando estiver acordado e quando for dormir, enquanto viver e depois que morrer. Ela o amaldiçoa somente como alguém que é meio-demônio pelo lado do pai poderia amaldiçoar. A porta do carro bate. Alguém se aproxima dela. - Vou were an analog girl - ele canta de novo, fora do tom living in a digital World. (GAIMAN, 2004. p. 283 -284)

Marx relata uma exploração fria do proletário pelo burguês, onde se aboliram os antigos laços religiosos para dar lugar a uma nova relação de troca, uma relação fria, em que a base é o pagamento a vista, no próprio Manifesto Comunista, Marx descreve as consequências da exploração do proletário pelo burguês: O proletariado passa por diferentes fases de desenvolvimento. Logo que nasce começa sua luta contra a burguesia. A princípio, empenham-se na luta operários isolados, mais tarde, operários de uma mesma fábrica, finalmente operários do mesmo ramo de indústria, de uma mesma localidade, contra o burguês que os explora diretamente. Não se limitam a atacar as relações burguesas de produção, atacam os instrumentos de produção: destroem as mercadorias estrangeiras que lhes fazem concorrência, quebram as máquinas, queimam as fábricas e esforçam-se


49

para reconquistar a posição perdida do artesão da Idade Média. (MARX, K.; ENGELS, F, 2005. p 53)

Essa exploração leva a uma revolta do proletário, se a exploração passa a ser nua sem as roupagens sagradas então o proletário passa a atacar quem o explora, para Marx a consequência dessa exploração seria a revolução proletária, mas nos grandes centros capitalista, onde era previsto que a revolução ocorreria, ela não obteve êxito, e nos lugares que ocorreu a revolução socialista, o estado que se manteve no poder desenvolveu um sistema ditatorial que se afastou dos interesses do proletariado: No fim, os interesses de Estado da União Soviética prevaleceram sobre os interesses revolucionários mundiais da Internacional Comunista, que Stalin reduziu a um instrumento de política de Estado Soviético, sob o estrito controle do Partido Comunista soviético expurgando, expurgando, dissolvendo e reformando seus componentes a vontade. A revolução mundial pertencia à retórica do passado e qualquer revolução só era tolerada se a) não conflitasse com o interesse do Estado soviético; b) pudesse ser posta sob controle soviético direto. Os governos ocidentais que, que viam o avanço de regimes comunistas após 1944 essencialmente como uma extensão do poder soviético, sem dúvidas interpretavam corretamente as intenções de Stalin.(HOBSBAWN, p.78. 1995)

Para manutenção do seu poder político, supressão de possíveis revoltas e, a União Soviética, assim como outros países socialistas que surgiram utilizou-se, alem de poder bélico e inteligência militar, da mesma propaganda e dos mesmos meios de comunicação de massa que os países capitalistas. Não basta para a classe dominante, manter uma exploração nua e sem roupagens sobre a classe dominada, sem uma motivação divina ou ideológica. A religião das antigas sociedades que legitima o poder dos reis, imperadores e faraós, certamente é produto do modo de produção, das relações comerciais e políticas de suas épocas. Mas se ela se desenvolveu, ela foi necessária para manter o sistema a que pertenciam. Os antigos egípcios certamente não aceitariam as leis ditadas


50

pelos faraós se esses não fossem representações de Deus na terra, assim como as baixas castas hindus não se conformariam com sua situação de miséria, se esse conformismo não o levasse a uma reencarnação próspera ou ao nirvana e os servos medievais também não se submeteriam à submissão dos senhores feudais, se essa não fosse legitimada por forças divinas. A religião é produto de sua época e contexto histórico, mas ao surgir se torna instrumento fundamental para manutenção do sistema de dominação presente em seu período histórico. A partir da Revolução Industrial e do Positivismo, surge uma nova classe dominante e um novo sistema econômico, um sistema que não tem uma legitimação divina, mas que ainda se estabelece entre dominantes e dominados. Mas para que o domínio se mantenha e para que a exploração não tenha revoltas é necessário um apoio ideológico que faça acreditar que os dominados devem servir aos dominantes. Mas, se esse novo sistema nega a religião de caráter divino e metafísico é necessário uma que seja embasado em princípios mundanos e físicos, que reconheça a miséria humana em contraste com as grandezas naturais e não espirituais e que ofereça uma salvação em vida ao invés da salvação póstuma. Essa religião deve oferecer o fetiche da compra, do consumo, se a salvação não pode ser através da felicidade eterna pós-vida, deve ser através da satisfação dos instintos, do lazer infinito e do luxo e conforto inacabável, e se essas premiações são inalcançáveis, se são apenas promessas, elas devem apenas parecer possíveis e próximas. Possíveis como o final feliz da personagem da novela e tão próximas que são separadas apenas pelo vidro de uma vitrine. No trecho em que Shadow conversa com a “TV”, a “deusa” se insinua e oferece a Shadow tudo que ele desejar, todas as riquezas e prazeres, e fica claro que essa é a “salvação” essa é a oferta desses deuses, ainda neste trecho ela volta a dizer que os antigos deuses são obsoletos e que os novos são a modernidade.


51

Então, Lucy-na-TV, sobre o que a gente precisa conversar? Gente demais tem precisado falar comigo recentemente. E geralmente termina com alguém me batendo. A câmera se moveu para um close: Lucy parecia preocupada, com os lábios apertados. - Eu detesto isso. Detesto saber que alguém machucou você. Eu nunca faria isso, querido. Não, eu quero oferecer um trabalho pra você. - Pra fazer o quê? - Trabalhar pra mim. Ouvi falar dos problemas que você teve com o show dos agentes secretos, e fiquei impressionada com a maneira como você lidou com aquilo. Eficiente, nada tola. Quem é que ia pensar que você tinha tudo aquilo dentro de você? Todo mundo está puto da vida. - É mesmo? - Todo mundo subestimou você, queridinho. Um erro que eu nunca cometeria. Eu quero você ao meu lado. Ela se levantou e andou até a câmera: - Pense assim, Shadow: nós somos o futuro. Nós somos os shopping centers... Seus amigos são umas atrações de beira de estrada vagabundas. Caralho, nós somos shopping centers on-line, enquanto seus amigos ficam sentados no acostamento vendendo num carrinho algum troço que plantaram em casa. Não... eles não são nem vendedores de frutas. Vendem chicotes pra carroças. Consertam corseletes de barbatana de baleia. Somos hoje e amanhã. Seus amigos não são mais nem ontem. Era um discurso estranhamente familiar. Shadow perguntou: - Você conhece um rapaz gordo que anda de limusine? Ela abriu as mãos e virou os olhos comicamente, a engraçada Lucy Ricardo lavando as mãos de um desastre. - O moço da técnica? Você conheceu o moço da técnica? E um bom rapaz. Ele é um de nós. Só não trata bem as pessoas que ainda não conhece. Quando você estiver trabalhando com a gente, vai ver como ele é fantástico. - E se eu não quiser trabalhar pra você, I-Love-Lucy? Ouviu-se uma batida na porta do apartamento de Lucy e a voz de Ricky fora da cena, perguntando a Luuuu-cy por que ela estava demorando tanto, por que eles precisavam estar no bar na próxima cena. Um traço de irritação passou pelo rosto caricatural de Lucy - Caralho - ela disse. - Olha, não importa quanto o velho está pagando pra você, eu pago o dobro. O triplo. Cem vezes mais. Posso dar muito mais do que eles. Ela sorriu, um sorriso cheio de malandragem, um sorriso de Lucy Ricardo. - Peça o que quiser, querido. Do que você precisa? E começou a desabotoar a blusa. - Você nunca quis ver os peitos da Lucy? A tela ficou preta. O timer havia entrado em ação e o aparelho se desligou sozinho. Shadow olhou para o relógio: eram meia-noite e meia. - Acho que não - respondeu Shadow.


52

Ele virou para o outro lado e fechou os olhos. Chegou à conclusão de que a razão pela qual ele gostava mais de Wednesday e do senhor Nancy e de todos os outros, do que da oposição, estava bem clara: eles podiam ser sujos e mesquinhos, e a comida deles podia ter gosto de merda, mas pelo menos não falavam um monte de clichês. (GAIMAN, 2004. p. 141-142)

Os novos deuses surgem em substituição aos antigos deuses, usando-se de armas diferentes para alcançar os mesmos objetivos, e esses deuses que se apresentam como senhores do tempo e do espaço não sobrevivem fora de seu ambiente e de seu período histórico e se revelam servos de seus servos, existem para manter os interesses de uma classe dominante e para tornar submissos uma classe dominada, revelando-se um instrumento cuja função é manipular pensamentos e ações assim como Shadow se descobre manipulado pelos deuses ao fim de sua jornada: “A gente precisava descobrir o que mexia com você. Que botões precisávamos apertar para fazer você se mexer. Quem você era.” (GAIMAN, 2004. p 401)


53

3 – Fábulas e Reflexões – Pensamentos sobre consumo, Arte e Indústria cultural. Mais é que lá em cima lá na beira da piscina, olhando simples mortais das alturas fazem escrituras e não me perguntam se é pouco ou demais13

A partir da metáfora de Gaiman, concluímos que os novos deuses surgem para substituir os antigos deuses em um aparato ideológico fechado que se utiliza de ferramenta de domínio e controle de uma classe dominante contra uma classe de dominados, ambos consumidores potenciais, ambas repletas de humanos sombra, esvaziados de sentido e manipulados de modo a procurar justificar a existência, sendo aquilo que podem ter. Essa doutrina de “evangelização” das idéias capitalista consumistas, da adoração e fetiche para com o objeto e a propaganda, tem propagado o consumo de forma extensa e agressiva ao mesmo tempo em que é desordenada, e leva o homem a ter um comportamento alienado, necessitando consumir, estar na moda e ter os produtos modernos, para estar em “comunhão” com seus iguais e com o capital. Para isso o homem sombra necessita do dinheiro, e por tanto trabalhar em um sistema que seleciona e discrimina, onde a tecnologia, que reduz os esforços para uma produção em maior escala não reduz o esforço individual de cada homem, em vez disso, reduz a força de trabalho necessária, criando uma competição onde quem não leva seus esforços ás ultimas consequências será excluído e marginalizado. O dinheiro não é o deus, o sonhos, anseios e ícones tecnológicos adorados o são. “Para essa sociedade, o padrão maior de avaliação tende a ser a coisa , o bem, o produto; tudo é julgado como coisa, portanto, se transforma em coisa – inclusive o homem. E esse homem reificado só pode ser um alienado: alienado do seu trabalho, que é trocado por um valor em moeda inferior as 13

Judas. Raul Seixas/Paulo Coelho. Mata Virgem. Faixa 1, Warner Music Brasil, 1978.


54

forças por ele gastas, alienado do produto de seu trabalho, que ele mesmo não pode comprar, alienado de seus projetos, da vida do país, de sua própria vida, uma vez que não dispõe de tempo livre, nem de instrumentos teóricos capazes de permitirlhe a crítica de si mesmo e da sociedade.” (COELHO NETO, p.11)

Esse homem alienado da condição de que se encontra consome o que é oferecido a ele consumir. E assim, sustenta a indústria que produz seu lazer, com a mesma técnica e iniciativa de divisão de trabalho e linha de produção industrial. Nesse lazer está incluído o cinema e a televisão, e os produtos fonográficos.

Nesse estudo partimos de uma metáfora utilizada por um escritor que surgiu trabalhando em quadrinhos para a DC Comics, pertencente à Warner Bross, e para a Marvel Comics, recentemente adquirida pela Dinsey. Duas empresas gigantes de entretenimento, nenhuma outra representaria melhor a indústria cultural do que essas. Em nossa leitura, usamos um mecanismo e produto da Indústria Cultural para criticar a Indústria Cultural um autor que está no centro da própria Industria Cultural. Mas é inegável que essa obra tem caráter reflexivo e referências históricas precisas, assim possui uma complexidade intelectual inserida em seu simbolismo, ou seja, essa discussão é muito mais complexa do que aparenta.

O próprio Neil Gaiman, então, é fruto da Industria Cultural, nascido em um contexto Pós-Moderno e sujeito a todas as influências e condicionamentos, sendo portanto também um homem sombra assim como sua personagem Shadow. Concluímos que a obra de Gaiman “Deuses Americanos” mesmo sendo oriunda da Industria Cultural, portanto do meio capitalista e, segundo sua lógica, voltada para o intuito de um publico alvo de consumo, assim usufruindo de um mercado “Pop” para existir, a obra traz uma proposta crítica simples de se compreender e interiorizar, enquanto é critica dos valores capitalistas e convida ao leitor para compreender mais sobre a sua própria origem de valores, uma vez que considera o seu país de origem, os Estados Unidos, como um caldeirão multicultural, onde as pessoas desconhecem sua origem e as histórias de seus antepassados, valores esses, obviamente contrários aos do capitalismo de “seja aquilo que você tem”. “Deuses Americanos” é uma obra simultaneamente complexa


55

em uma analise aprofundada, tanto que mesmo ao longo dessas páginas, foram poucos os símbolos decodificados, tendo o livro muitos mais. Partindo dessas considerações acima, segundo Adorno, na “Teoria Estética”, Gaiman esta realizando a antítese mais viável para com a sociedade consumista, esta investindo na arte como arma. Para Adorno, a arte, é a única com capacidade de quebrar as algemas do ser humano, e Gaiman o faz com sigo mesmo, ilustrando o homem sombra a fim de uma emancipação como um ser autônomo, e portanto deixando de ser sobra para ser um ser humano. Enquanto que para a Indústria Cultural e o Capital, o homem é uma sombra e objeto de trabalho e feito para consumo, na arte ele é convidado para ser livre no seu pensar, sentir e agir, isso claro se forem levantadas questões fundamentais a serem feitas por intermédio de subterfúgios, tornando a filosofia e o questionamento acessível, mesmo estando inserido no contexto Pós-Moderno Capitalista. Neil Gaiman então, ao realizar esses questionamentos em sua obra, esta sendo verdadeiramente dialético, no momento em que inserido no contexto que critica, usa os meios de veiculação oferecidos pelo próprio contexto, para propagar informação que o negue. Existe também a crítica ao consumo, mas o consumo é necessário para a sociedade em si, então o que é criticado não é o consumo, propriamente dito, em si, mas essa regramento religioso de uma sociedade extremamente consumista, com o consumo como norma de comunhão, representando uma santa ceia de obrigação e crença com o capital, para que defina a identidade do homem pós moderno. Nessas grandes metrópoles em rápido crescimento todos vieram de algum outro lugar; portanto, praticamente ninguém conhece ninguém conhece ninguém, cada qual tem uma história à parte, e são tantos e estão todos o tempo todo tão ocupados, que a forma prática de identificar e conhecer os outros é a mais rápida e direta: pela maneira como se vestem, pelos objetos simbólicos que exibem , pelo modo e pelo tom com que falam, pelo seu jeito de se comportar. (SEVCENKO, p. 63-64)


56

Então a questão passa a ser não se devemos consumir ou o que devemos consumir, mas por que devemos consumir. A diferença entre um consumo alienado, regrado para o consumo necessário é que o primeiro é consciente, enquanto o segundo apenas é compulsivo. No diálogo entre a TV e Shadow, podemos notar que não foi invenção da TV que criou a deusa “TV”, mas foi o comportamento que as pessoas passaram a ter diante dela que lhe deu esse status, o sacrifício (de tempo e sociabilidade entre as pessoas) e a adoração que lhe deram essa característica divina, então não há critica a televisão em si, mas ao uso que é feito dela, a dedicação que lhe é concedida, a falta de contato entre as pessoas em função da TV. Logo, a partir dessa visão, embora um Deus seja criado pelas ordens superiores é a adoração das massas que pode o tornar legítimo. Então o consumo só se torna o instrumento de dominação se usado de forma inconsciente e da mesma forma a arte, o cinema ou os programas de televisão só se tornarão instrumento de alienação se absorvidos cegamente sem reflexão, se uma reflexão é feita a cada filme, mesmo se ele é feito sobre o roteiro pré-fabricado da indústria cinematográfica para as grandes massas podemos fazer reflexões sobre eles sobre quais idéias estão condicionadas ali e quais ideologias ele quer passar, mesmo que involuntariamente.


57

CONSIDERAÇÃO FINAL

Ao analisar a metáfora de Gaiman, em que os antigos deuses estão enfraquecendo enquanto novos deuses surgidos do capitalismo e da Industria Cultural se fortalece, observamos que a religião e o sistema capitalismo, que se utiliza da indústria cultural como sua “igreja” tem semelhanças na forma que são utilizados como salvação da humanidade, e como influenciam na rotina de uma sociedade e revelam-se ferramentas de domínio de classe, já que conforme os ensinamentos de Marx, a ideologia, a religião de uma sociedade modifica-se conforme modifica a condição material e os modos de produção dessa sociedade. Esse processo de enfraquecimento dos antigos deuses e fortalecimento de novos deuses tem início na Revolução Industrial e no Positivismo, quando o avanço do capitalismo, da ciência e do tecnicismo criou um ambiente em que os novos deuses são mais apropriados para serem utilizados como ferramenta de dominação. Os novos deuses surgem como deuses de uma sociedade que não aceita o misticismo, como idéias surgidas de uma classe dominante para uma classe dominada, prometendo a “salvação” através do status e do prazer, anestesiando as classes proletárias de sua real situação de controle sob as classes burguesas e alienação do produto de seu trabalho. A partir da metáfora de Neil Gaiman, escritor que surgiu no centro da Indústria Cultural é possível uma reflexão sobre a própria Industria Cultural, a dominação de classes e o valor da arte. A arte é fonte de reflexão e lazer, e o uso consciente e crítico da indústria cultural pode tornar uma ferramenta de domínio em fonte de conhecimento, crítica e análise de nossa sociedade, já que o que transforma os ícones capitalistas em deuses e adoração das classes dominadas e são essas as classes que podem legitimar os seus deuses.


58

Bibliografia

ADORNO, T. W. A Indústria Cultural e Sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2002. ADORNO, Theodor W. Textos Escolhidos. Trad. Luiz João Baraúna. São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Os Pensadores) ADORNO, Theodor W. Mínima Moralia: Reflexões a partir da vida danificada. Trad. Luiz Eduardo Bisca. São Paulo: Ática, 1992. ANDERSON, Perry. As Origens da Pós-Modernidade. Trad. Marcus Penchel. Rio: Zahar, 1999. BACHELARD, G. A Poética do Devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 1988. BAUMAN, Zygmunt. Globalização: As consequências Humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. ____. O Mal-Estar da Pós Modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998 BENJAMIN, W. A Modernidade e os Modernos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975. BENJAMIN, W., HORKHEIMER, M., ADORNO, T., HABERMAs, J. Os Pensadores. São Paulo : Abril Cultural, 1980. (Textos escolhidos). CHAUI, Marilena. O que é ideologia? São Paulo, Brasiliense, 1984. ____. Simulacro e Poder: Uma análise da mídia. São Paulo: Perseu Abramo, 2006. ____. Conformismo e Resistência: Aspectos da Cultura Popular no Brasil. São Paulo, Brasiliense, 1996. COELHO NETO, José Teixeira. O que é indústria cultural? São Paulo: Brasiliense, 1981 DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. http://www.cisc.org.br/portal/biblioteca/socespetaculo.pdf

Disponível

em:

ECO, Umberto. Apocalípticos e Integrados. Tradução: Pérola de Carvalho. 6ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2008. GAIMAN, Neil. Deuses Americanos. Tradução: Ana Ban. 2ª ed. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2004.


59

____. O Escritor que resgatou o Sonho nos quadrinhos. São Paulo. 22 de maio de 2001. Entrevista concedida ao site Universo HQ. Disponível em: http://www.universohq.com/quadrinhos/entrevista_gaiman.cfm ____. Interview: Neil Gaiman: American God. . 1 de janeiro de 2002. Entrevista concedida a R. J. Carter. Disponível em: http://www.the-trades.com/article.php?id=1626 HOBSBAWN, Eric. Era dos Extremos: O breve século XX: 1914 – 1991. Tradução: Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras, 1995 HORKHEIMER, M., e ADORNO, T. W., Dialética do Esclarecimento: Fragmentos filosóficos. Trad. Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. MCCABE, Joseph. Passeando com o rei dos sonhos: Conversa com Neil Gaiman e seus colaboradores. São Paulo: HQM Editora, 2008. MARX, K.; ENGELS, F. A Ideologia Alemã. São Paulo: Martin Claret, 2005. ____.Manifesto Comunista. São Paulo: Martin Claret, 2000. ROUANET, Sergio Paulo. As Razões do Iluminismo. São Paulo: Cia das letras, 1987. SANTOS, M. Por uma outra globalização: do pensamento único a mà consciência universal. 6.ed. São Paulo; Rio de Janeiro: Record, 2001. SEVCENKO, Nicolau. A corrida para o século XXI. São Paulo: Cia das Letras, 2001. VATTINO, V. O Fim da Modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 2001.


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.