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CONCEPTUAL arte pra além da arte |DEZ. 2014

ABAQUARS | 1



EDITORIAL | REVISTA CONCEPTUAL

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uando começamos a revista, confessa a entidade que vos escreve, querido leitor, não tínhamos a menor ideia do eixo gravitacional que a ditaria. Pensamos em artistas à moda do tutu, do feijão tropeiro, do acarajé, mas descobrimos o quão influenciados somos pela cultura pra longe da latino-américa, e que porventura devamos algo axs artistas da reflexão, da crítica, da ruptura, gringos. Na hora, em matutos de dezinutos, decidimos não negar tudo o que nos foi ensinado pop e art pour l’art - blasé, mas arrancar da contemporaniedade os movimentos mais trangressores e a posteriori, experimentais. Imbuímo-nos dos seguintes: conceito, coito, casamento (extra)corpório e, finalmente, a concepção. A concepção da ideia, do grau de envolvimento ao caráter além do formalismo modernista, o termo indefinível e ao mesmo tempo o termo mais abusado de definições: a arte, e sobre todas as locuções – o que é arte, afinal? Contida nas páginas está uma viagem às revoluções artísticas pra cima do grau da psicodelia teórica, como se Duchamp fosse um anarco-punk com molotovs, Marina fosse uma guerrilheira experimentalista, Gutai fosse um coletivo terrorista, e inúmeros outros componentes de carne e matéria cinza, todos fazendo frente ao que pode ser mais contemplativo, conservador e normativo do universo das artes. Criamos a revista “Conceptual” para recolocar em pauta o papel emancipatório das manifestações artísticas, rediscutir as noções de corpo e instrumento, empirizar – sem reducionismos – a crítica de obras contemporâneas e modernas. Esta é uma magazine abrasileirada de resistência, transgressão, violência, em prol do conceito, da concepção, da criação dum mundo onírico – por vezes inteligível, mas sem o distanciamento da realidade de Platão – na busca por liberdade do ato artístico. Antes de tudo é locomotiva de reflexão, de maieutica, de pré-nirvana, da cabeça do bicho-homem, contra o neandertalismo erudito dos reacionários críticos, do deus-mercado. Do pixo à Kosuth, ou melhor, de Kosuth ao pixo, da arte conceitual à uma arte revolucionária recheada de ideologias, da performance cênica de Cildo à politização de Ana Lira, saem o mix definitivo, caipirinha à moda vera cruz, ou pra ser mais franco, cosmopolitan demode fin de l’art. Uma revista de desfoco, desconstrução e contraprodução, nada arqueológica, partidarista – se realmente há um partido concreto no cosmos de experimentação contemporâneo -, anti-cristã, anti-beleza, anti-culto, anti-doutrinária, anti-matéria. Pois, como dizemos; a vida imita a arte, cerebralmente, muito mais que a arte imita a vida, e não importa quantas Monalisas digam o contrário. Eu penso, logo, transgrido.

Revista Conceptual

CONCEPTUAL ABAQUARS | 1 3


ÍNDICE

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| Revolução e assimetria

8 10 12 16

| Intervenção anônima

| Fronteiras artísticas

| Transgressão e arte marginal

| Por dentro de Kosuth


CONCEPTUAL DEZ | 2014

20 24 28 30 34

| Análise e reflexão

| Matéria e desmatéria

| Arte e protesto

| Choque e transcendência

| Crítica social multimídia


e assimetria

Revolução

DUCHAMP,

READY-MADE-PENTAGRAMAS E O ANTICRISTO

Uma revolução sem a necessidade de patente para a arte contemporânea, mas que para o além da justiça, seja nomeada de: Duchamp

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omeço o artigo reproduzindo em totalidade das letras o que Thierry De Duve disserta em uma revista de mestrado, “Kant depois de Duchamp”, esse ao tempo pós-moderno, das interrogações postas por Duchamp, pop-art, neodadaísmo, etc, todas pela realocação da locução fazer arte, rediscutindo os valores modernistas acerca da arte (e porque não dizer civilizatórios): “Aqueles eram os tempos, meu caro / Imagine-se um jovem artista ou um jovem intelectual, um estudante talvez, nos últimos anos da década de 1960 e início dos anos 70. (Se você é da mesma geração que eu, deverá ser fácil). A Guerra do Vietnã alastrava-se. Se ainda não tinha queimado seu certificado de alistamento ou seu sutiã, pelo menos já pensara 4 | CONCEPTUAL

Por Marcos Sokabe

nisso. Talvez você não vivesse nem em São Francisco, nem em Paris, mas, mesmo assim, o Flower Power e, o Maio de 68 estavam próximos. Fosse seu herói McLuhan ou Marcuse, a promessa de liberdade da aldeia global e da sociedade multidimensional parecia ao alcance da mão. Você ouvia Jimi Hendrix e Janis Joplin, e, se não estivesse ocupado construindo uma cúpula de Bucky Fuller em seu jardim, provavelmente estaria folheando o Whole Earth Catalog à procura de uma forma de dar vazão a sua criatividade. “Faça” era seu lema. Agora, relaxe e aproveite o que Jack Burnham dizia naqueles tempos: “Obviamente, não importa mais quem era é bom artista ou quem não é; a única questão sensata é – como já foi compreendido por alguns jovens – por que nem todo mundo é?”. Aqueles eram os tempos, meu caro, e Jack

Burnham sabia a canção de cor.” Eu, necessariamente, precisarei tomar partido na construção desse texto - que implicará, dentre outras mazelas, a tentativa de combater ferrenhos adoradores do modernismo sem a instrução acadêmica, em curtas exposições sobre Duchamp [se há um ente da transgressão e que o mesmo em corpo seja Duchamp, por mais que o artista nunca tenha se assumido jesus da arte contemporânea e anticristo do formalismo modernista, calando-se, esse merece a justiça das compreensões]. Jean Clair, diretor do Museu Picasso em Paris, conhecido por ser um crítico voraz a art contemporain, passou parte de sua vida explanando os conceitos de Duchamp, e classificando-o como mote/ser responsável pela “condição deplorável da arte contemporânea, la fin del’art”. Diz que os trabalhos de Du-


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champ marcam a chegada de um novo mundo de possibilidades da arte e de seu fazer, mas, claro, com enorme frivolidade ao sugerir que esse tal mundo novo de experimentações não passa de uma vertente de adoração ao que é repugnante, abjeto, horrível e repulsivo. Se vê numa linha de pensamento sobre a morte do “gosto”, definida antes por Kant num culto à celebração e que o bom gosto seria um valor universal inerente da humanidade, ou melhor, não inapto, mas um dever. Como se o emergir de uma cultura não baseada na contemplação, e que viesse de contramão à linha evolucionista que o modernismo implicita, desencadearia um declínio do conceito de arte e nosso empobrecimento enquanto seres humanos e consumidores da arte. Joseph Beyus e Clement Greenberg assinavam a morte de Duchamp, que embora fossem disso-

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nantes nas opiniões centrais – Beyus assinalava o descrédito a Duchamp quando o mesmo calou-se e não quis ditar as correntes desse novo logos, insinuando que seu silêncio ao conseguir colocar o urinol nos museus e não definir uma tese forte acerca do cenário da arta contemporânea, agiu de efeito reverso ao não inferir que todo homem é um artista. De forma megalomaníaca dizia que então o papel renegado por Duchamp seria de seu trabalho e que cabia a ele formalizar a dialética de “que todo homem é um artista”. – Greenberg, ao contrário, rejeitava Beyus, ignorava os movimentos conceituais, Fluxus, e nunca comprara a ideia de toda manifestação humana era passível de interpretação artística. - convergiam no abate ao artista francês. – vejamos que ambos julgam o componente Duchamp, Beyus alertando sobre sua negligência, e Greenberg com asco

a não-separação do que entende-se por vida e arte. (os caminhos teóricos de Greenberg são mais complexos e até em certo momento agradece a Duchamp por colocar em pauta a possibilidade de que cada homem tem em seu viver uma potência à arte, mas que não cabe aqui dissecar tudo, afinal, estamos falando de utopias, de universos oníricos, dos ímpetos dos artistas conceituais e contemporâneos, e cair na finitude da teoria seria uma traição). Uma das críticas mais violentas de Duchamp, além da relação arte x vida, sem dúvida nenhuma, foi a elitização. Alguns seriam apropriados, outras obras não. É inevitável que a patir de suas transgressões, indaguemo-nos do seguinte: ao massificarmos o fazer artístico e retirarmos dele o valor iguaria, singularidade, não estaríamos contribuindo para um deus-mercado? Uma pergunta que não pode ser feita à Duchamp enquanto constituidor da arte em 1916, com o ready-made, posto que seria anacrônico. Mas que cabe à pop-art. – por mais que ideologicamente a pop-art tenha dito-se contra a mercantilização da arte, a miscigenação com a propaganda, marketing e consumo in loco, aconteceram inegavelmente. Seria Duchamp o responsável pela aproximação do mercado de consumo a arte na atual contemporaniedade? não creio em tal associação, se caissemos nessa, obrigados seríamos a traçar uma linha arqueológica a todos os contra-movimentos antecedentes à Duchamp, como os dadaístas e a ideia que o mundo é uma grande arte, por exemplo. A perversão da arte dita por Kant e mastigada por Clair demonstra uma tendência possessiva ao conservadorismo artístico, ao establishment de produção modernista. O quão absurdo é proliferar o mantra dos críticos pró-modernismo – devemos lutar com todas as forças contra esse lado repulsivo da arte. em pleno 2014, no estopim da civilização em questionar os aparatos de repressão, ainda somos bombardeados com discursos celibatários defendendo o culto à contemplação, o que tento explicitar no exemplo a seguir; - li, numa faceta de desdém ao que consideram arte repulsiva, um teórico comparando a arte gótica e sua mais-valia a chocar o


público. Diz-nos sobre uma escultura do período gótico tardio em que apresenta-se uma figura de um corpo em decomposição, como seria se tivesse enterrada em seu túmulo, e que a figura putrefata do mesmo corpo não fora feita no intuito de nos chocar perversamente, mas de causar insights sobre nosso estilo de vida até o arremate, a posteriori salvação, logo nos serviria para mostrar-nos o verdadeiro caminho a seguir – oras, usando este exemplo esdrúchulo, o teórico retroafirma que os ready-mades de Duchamp não possuem nenhum valor emancipatório, apenas o mais baixo nível de espetacularização. Duchamp faria tudo o que fez, produziria tudo o que produziu, apenas por seu valor de perturbação? Não haveria mecanismos nada mascarados que causariam reflexão social?

READY-MADES-PENTAGRAMAS

É bem verdade que a cultura cristã contamina a sociedade, e o campo das artes não escapa com saúde. Do início da produção artística, remetendo-nos no momento em que a consideramos assim, na idade média, celebrávamos o culto aos santos e aos deuses católicos. Com a chegada do renascimento, tais valores não foram amordaçados completamente, substituindo o papel dos deuses ao papel dos homens. Representávamos homens a figura perfeita de deus. Passamos a festejar a originalidade do artista, sua

proeficiência, sua humanidade pra além do homem comum, e constituimos novos órgãos para a arte. Trocamos a legimitidade de pintar deuses pela legimitidade de pintar homens. Isso nos diz que a cultura cristã de adoração continuou intacta, apesar do escambo de representações. Certas coisas mereciam e logo eram consideradas arte, outras não. Os ready-mades de Duchamp quebraram com essa estética; ele veio para destruir com o tradicionalismo, romper com as noções intelectuais das artes modernistas. “Basicamente, qualquer coisa que pudesse causar apoplexia entre os amantes de arte burguesa convencional era dadaísmo aceitável; o escândalo era seu principio de coesão.”, concluiu Eric Hobsbawn. Questiona-se as noções exteriores de percepção das artes, estruturadas em Descartes. Os ready-mades transplantavam os significados de objetos rotineiros e os colocando como posto de arte, através das intervenções do artista. Duchamp com os RM e o urinol, (“A fonte”) - mais famosa intervenção objetivava dar novas interpretações e sentidos distintos e libertários ao fazer artístico, vociferando com o comprometimento antigo e datado com o considerado belo. Ele acreditava que a obra artística deveria conter, acima de tudo, seu caráter conceitual, arte mental – evoluida depois propriamente na arte conceitual e na negação da necessidade do artista em fazê-la – contribuindo para uma vasta liberdade artistica. Do verbete dicionarizado, pentagrama: “Geom. Pentágono regular estrelado, usado

como distintivo pelos pitagóricos; o mesmo que pentáculo.” Do sentido não-laco, pentagrama: assume-se diversos significados, dos Babilônios, da cultura pagã, da matemática. “O pentagrama invertido (com duas pontas para cima) significa a verdade sobre o fato de o Espírito ser apenas uma faceta da matéria. Pode-se observar também que o Pentagrama com duas pontas para cima aparecia, como um dos símbolos da Baphomet.” Coloco para, dentro das capitanias hereditárias (metafísicas) dos conceitos de artes modernistas, por vezes cristianitas, algo pode ser rejeitado sem que compreenda-se seu valor, por pura e simplesmente rejeição ao que é diferente. Duchamp sofrera disso, e colocado ao posto de assassino da cultura da arte humana, por simplesmente questionar os valores dominantes na sociedade. Marcel Duchamp não queria para si o posto de anticristo (visto que anticristo entra em combate à cultura cristã e sua opressão, portanto, deixemos os preconceitos de lado), de revolucionário, ainda mais por que sempre negara isso em sua trajetória de vida - experimentou a pintura no começo de sua carreira, desaprovado no cubismo, na escola de Belas Artes, até a construção de ready-mades a partir de 1913. A importância histórica de sua arte deve ser esmiuçada infinitamente, a fim de entendermos o marco à nossa liberdade humana de produzir artisticamente, e sobre todas as coisas, ser livre enquanto ser. O CONCEPTUAL | 7


anônima

Intervenção

Eleições, esvaziamento e rebeldia Através de fotografias de propaganda eleitoral, Ana Lira capta em “Voto!” cenário de insatisfação Por Lucas Goldstein

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entro do mês passado, a jornalista, fotógrafa e artista visual recifense Ana Lira teve dois motivos para visitar a capital paulistana: além de ministrar uma oficina de produção urbana, sua obra “Voto!” participa da 31a Bienal de Arte de São Paulo. Tomando boa parte do piso térreo, “Voto!” é composta por quatro painéis fotográficos translúcidos, que expõem um cenário comum aos brasileiros. Nas palavras da própria artista, “são fotografias de restos de cartazes de propaganda política, que ficaram espalhados pelas ruas de Recife”. Sempre tendo a cidade como cenário de seus projetos, Lira captou planos fechados que denunciam o esvaziamento da política brasileira. Uma crítica à superficialidade das alianças feitas entre agremiações adversárias e uma denúncia do uso indiscriminado do espaço público para fins eleitorais. Trabalhando há quase uma década, Ana Lira produz um trabalho com forte tendência política. Ela acredita que essa potência sempre tenha existido na arte, e que 8 | CONCEPTUAL

reaparece com certa frequência. “Dependendo de como as dinâmicas sociais se articulam, você tem ciclos em que isso aparece mais e outros em que isso aparece menos. Acho que agora, até pelo próprio contexto em que a gente tem vivido [das manifestações de junho de 2013] , isso está emergindo mais.” Foi durante a faculdade de Jornalismo que Ana Lira descobriu a fotografia. Desde então, a artista participou de diversos coletivos de imagem, literatura e comunicação, desde 2006 tendo a cidade como campo de atuação. Lira passou um ano e meio trabalhando com curadoria em Aracajú, mas o tema urbano a fez retornar à Cidade Maurícia. “Trabalhei muito com produção, mas sempre continuei com trabalhos fotográficos. A cidade sempre me chamou muito a atenção, era uma temática que estava mexendo muito comigo.” Desde seu retorno, Ana Lira passou a perseguir o tema, muitas vezes coletivamente. É um dos criadores do Direitos Urbanos, plataforma virtual de debate político e estratégias artísticas em Recife. Visando uma vivência urbana cada vez mais coletiva e inclusiva,

trata-se de um grupo com objetivo social e pautas definidas, dentre as quais a valorização do espaço urbano, subsídio e valorização do transporte público e a participação popular efetiva, através de um conselho municipal. Se encontram em um blog (http://direitosurbanos. wordpress.com) e em uma comunidade no Facebook, atualmente com cerca de 30 mil membros. Graças à dinâmica coletiva em que quase sempre trabalhou, Ana Lira faz parte de uma geração de artistas brasileiros multimidiáticos, usando de um suporte como ponto de partida rumo a processos que ultrapassam fronteiras. A partir de participações como na 31 edição da Bienal de Arte de São Paulo, Ana Lira aumenta sua rede na mesma proporção que seu trabalho atinge mais pessoas. “Estou sempre me relacionando com outros artistas. A fotografia é o meu centro, o pilar do meu ponto de vista, mas estou sempre interagindo com figuras de outras áreas. Criar redes de parceria fortalece os trabalhos. Tem sido muito estimulante”. O



artísticas

Fronteiras

O Limite da Arte Como a biografia ou o desejo de mudá-la influi no campo artístico Por Diogo Sugaya

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erta vez Charles Bukowski disse que o melhor de um escritor, é justamente o livro que este produz. Conhecer os escritores pessoalmente seria simplesmente algo terrível, decepcionante, pois os autores não são necessariamente suas obras. Esta reflexão podemos estender não apenas para o mundo da literatura. Truffaut nunca bebeu veneno, sabendo ou não que era veneno, servido por uma amante; fez apenas alguns filmes magistrais com este teor, que podemos classificar como sendo ultra romântico, adaptando, às vezes, livros ou documentos históricos para a grande tela do cinema. Além de “A Sereia do Mississipi” aqui supracitado, Jules e Jim” e “A Historia de Adele H.” exemplificam este ideário romântico que não se transpõem exatamente para a realidade na biografia de vida conhecida do cineasta . O mesmo não se pode dizer de “Os Incompreendidos”, uma clara alusão a sua conturbada infância. E assim, em certos casos, os artistas podem mais do que retratar 10 | CONCEPTUAL

suas vidas, exorcizar seus traumas. Francis Bacon pintou “The Black Triptychs” sobre o ex-namorado e modelo, George Dyer que se suicidou em um quarto de hotel que ambos dividiam. O sofrimento e desespero na sequência de telas é um espelho do emocional do pintor frente ao trágico fato. Frida Kahlo, Edvard Munch e Van Gogh, para citar alguns, são outros pintores que igual e notadamente, produziram séries de quadros baseados no mesmo intento de superação ante um fato grave e opressor da realidade. Devemos observar também que uma obra de arte não respeita o tempo. É possível corrigir o que deu errado, reescrever uma frase, gravar outra cena ou passar uma nova camada de tinta. Ao contrário da vida, que como disse Chaplin, “não permite ensaios”. É possível até retratar uma existência desejada, não a real. Marc Chagall tem inúmeros quadros em que está ao lado da sua mulher, mesmo após ela falecer. Chagall chegou a dizer “será que Deus, ou alguma outra pessoa, me dará a força de inspirar o sopro da pre-

ce e do luto para dentro das minhas pinturas, o sopro da prece para a redenção e a ressureição?” É crível, em suma, viver em função do objeto artístico, que em ultima instância, de maneira fria, é o que é: Um objeto. Não nasce, vive e morre como nós. Beira, inclusive, a eternidade, seja pelos poderes de cópia, reprodução até ilimitado das obras que temos hoje, seja pelo poder de ícone que se conservará na imaginação das pessoas que será passado nas mentes com maior ou menor fidelidade, ao longo das gerações. Os limites entre o artista e sua obra são determinados pelo próprio artista, seu alcance, inestimável. O


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e arte marginal

Transgressão

O GRITO DA PERIFERIA Invertendo a lógica social num país onde pixar é crime e roubar é arte Por Julia Barreto

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pixação, movimento artístico típico da cidade de São Paulo, tomou as ruas, desde seu início, como um enorme protesto à estrutura do sistema dos grandes centros urbanos, que é exatamente o grande fator excludente da relação entre a cidade e pixadores. Inicialmente, em São Paulo a pichação se estabeleceu com um cunho político, diretamente ligado à luta contra a Ditadura Militar com a tão conhecida frase “abaixo a ditadura”. Anos depois, na década de 80, com grande influência dos punks e de bandas como Kiss e Iron Maiden, o pixo mudou de cara. As letras ganharam novas formas, e os pixadores começaram a reivindicar a grafia do termo com “x” - esta troca é a marca da transgressão da norma culta descrita pelos dicionários e gramá12 | CONCEPTUAL

tica, uma vez que a subversão da ordem é uma característica marcante do pixo - e o movimento assumiu novos objetivos, agora mais caracterizados pela ideologia anarquista. O movimento que se deu de forma singular em São Paulo, se estruturando como arte de uma maneira que não é encontrada em nenhum outro lugar no mundo - não por acaso em uma das cidades com os maiores índices de desigualdade social - sempre foi tratado criminalmente, sendo, basicamente, o reflexo da estruturação dessa sociedade que exclui o periférico e valoriza os padrões pré-estabelecidos pela elite. O pixo não é em si a arte, mas o conceito que ele propõe e representa. Ainda assim, pode ser considerado hoje como uma das expressões artísticas mais latentes das grandes cidades, pois, é a própria cidade. O pixador ocupa e intervém um espaço

que não é bem-vindo e não faz parte se comunicando com seu igual. Mas o pixo não nasceu sozinho, o grafitte tem um contexto bastante parecido. Mas ainda assim é muito mais aceito pela sociedade, pois se adéqua melhor aos padrões artísticos que a sociedade está acostumada. Enquanto o graffite trabalha e articula desenhos, o pixo trabalha com letras, o que o configura não só como arte, mas como uma linguagem construída paralelamente ao português. Para o fotógrafo Choque, autor do ensaio dos “Pixadores em Ação”: “[a pixação] É uma intervenção urbana de atitude e estética muito singulares, e que surgiu fruto da desigualdade social latente desta cidade. A pixação durante os seus 30 anos de existência foi tratada e estudada somente na esfera policial.” O pixo, como movimento

artístico, propõe que os moradores


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da cidade se coloquem como meros observadores da conversa entre a periferia, tendo como sua essência a realização do movimento oposto ao da cidade: excluir os incluídos. Mais do que uma conversa cheia de revolta entre as periferias - a pixação trouxe uma nova ideia para dentro da arte: o foco agora é o artista. Ele é a arte em si, exposta em riscos monocromáticos que se refletem a partir do próprio autor do pixo, uma assinatura, uma marca. Os expectadores são outros pixadores – representantes de toda uma classe historicamente excluída, compondo mais que um grupo artístico, mas uma camada periférica da sociedade – que reconhecem as marcas e signos dos artistas. Há divisões, regras e status dentro do contexto do pixo em São Paulo: quanto mais alto for a pixação, por exemplo, mais reconhecido o artista. Verificamos assim, que a transição do foco da arte para o próprio artista desloca a valorização do produto final para a produção e processo do mesmo: quanto mais desafiador o prédio a ser escalado, maior visibilidade no cenário artístico das periferias. Mas será que a pixação é um fenômeno recente ou um grito de revolta que reflete um comportamento humano que há milhares de anos o homem apresentou? Estariam eles reinterpretando, de alguma forma, o que a arte rupestre começou? Nesse período, os homens não tinham preocupação em definir se o que faziam era arte ou não. Mas, de qualquer forma, as marcas deixadas por eles são o registro de uma tentativa de se expressar graficamente e deixar registrada sua maneira de pensar e de agir. Hoje, os homens saem das cavernas (favelas) com o mesmo objetivo de antes, mas ocupam artisticamente uma sociedade que não concordam e incomodam com um dos pontos mais fracos do homem elitizado: a estética. O

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de Kosuth

Por dentro

A Inovação de Joseph Kosuth Por trás de um grande artista, sempre há um ser pensante extraordinário Por Diogo Sugaya e Marcus Leite

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onsiderado por muitos o maior artista conceitual vivo, o norte americano Joseph Kosuth tem um olhar muito específico do que a arte deve ser. Sabe delinear muito bem o conceito idealizado e realça-lo através de sua apresentação. Isso pode ser notado ao se deparar com uma de suas obras, seja a emblemática “Uma e Três cadeiras” ou outro de seus trabalhos mais recentes em neon. Para Kosuth, uma obra de arte não precisa ser necessariamente bela ou esteticamente agradável, ela existe para provocar reflexão, suscitar questionamentos. Segundo ele, “ser um artista significa questionar a própria natureza da arte”. Nascido em 1945, em Toledo, Ohio, centro-oeste dos Estados Unidos, Kosuth é um dos grandes pioneiros da corrente artística conceitual. Estudou no Museu de Design de Toledo de 1955 a 1962 - anos em que teve aulas particulares com o pintor belga Line Bloom Draper. Porém, com o passar do tempo, preferiu se aventurar no campo da arte conceitual. Em 1965, 16 | CONCEPTUAL

Kosuth se mudou para Nova York, para cursar a Escola de Artes Visuais, onde mais tarde passaria a cursar, também, a faculdade. Com o amadurecimento e a visão mais estruturada sobre a arte e seu vasto campo de compreensão, Kosuth largou o pincel e entrou de vez para o novo movimento que imergia naquele período - década marcada pela busca de um campo expandido. Como muitos outros artistas conceituais, Kosuth veio para questionar e romper com os parâmetros artísticos tradicionais. Estudou antropologia e filosofia na Nova Escola de Pesquisa de Nova York, o que também repercutiu em suas obras. Por trás de Kosuth não há, apenas, um artista, mas sim um estofo filosófico muito bem estruturado e presente. O norte americano se baseia na filosofia de Wittgenstein e de Platão - em que as ideias, e não o mundo material, apresentam de maneira fundamental o que precisa ser extraído, aprendido com a realidade. Em cima disso, Joseph Kosuth veio a criticar os principais representantes da pop art, Andy Warhol e Roy Lichtenstein, que incialmente, em sua visão, eram questiona-

dores, mas depois caíram na tentação das cores. “Os artistas não devem ser amados pela forma, mas pela ideia por trás do trabalho”. Assim como Marcel Duchamp, Kosuth fez repensar, ao surgir no mundo artístico, o que faz de uma obra de arte, justamente uma obra de arte. Para ele, a intenção do artista do que seja, já cria a definição. E isto, abre uma porta na arte para a qual não há mais volta. Antigamente, artista era quem se apropriava dos materiais e esculpia, pintava. Hoje, com essa nova definição, isso não é mais uma regra. Não importa se foi Kosuth que instalou os neons em “Five Words in Green Neon” ou se foi ele que montou as caixas de vidro em “Box, Cube, Empty, Clear, Glass - A Description”. O mérito - como diria Lawrence Weiner, grande artista conceitual - não está em na sua, mera, apresentação visual, e sim na sua idealização e na reflexão que provoca no público, sendo assim, não mais necessário a execução de tal concepção. Ao olhar uma das criações de Kosuth, elas não causarão um efeito emocional como uma obra expressionista; nem serão pessoal,


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no sentido de fazer alguma alusão biográfica ou a um fato histórico segundo sua percepção, tão pouco uma obra para contemplação. São obras auto explicativas e reflexivas, que, diga-se de passagem, não estão aí para serem contempladas e veneradas esteticamente, mas que são apresentadas para trazer o próprio espectador para dentro da ideia, do conceito. Mas para além de qualquer opinião em relação a seu trabalho e argumentos contra ou a favor de sua concepção artística, temos Joseph Kosuth como redefinidor do mundo da arte, e isso por si só, já é algo grandioso, digno de ser respeitado por todos, inclusive aqueles que o contestam freneticamente. O 18 | CONCEPTUAL


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e reflexão

Análise

Uma e três cadeiras Refletindo e traçando relações extra-sensoriais com aquilo que se coloca por detrás de uma das obras mais espetaculares da arte conceitual Por Marcus Leite

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laborada no ano de 1965 e exposta ao público em 1970, no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque (MoMA), a obra “Uma e três cadeiras”, do conceptualista norte-americano Joseph Kosuth, tem como característica principal a formação de um caráter artístico plurilinguístico, exemplificado pela mescla de três diferentes elementos que dizem respeito a uma mesma essência conceitual. As formas dialógicas da obra de Kosuth, representadas, fundamentalmente, pelas dimensões imagética, linguística e extralinguística, exploram as percepções sensoriais de seus espectadores/leitores, estimulando-os a conceber diferentes visões sobre a mesma arte apresentada. Exemplo fidedigno da arte conceitual, a obra de Kosuth se notabi20 | CONCEPTUAL

lizou como representação da revolução artística que o conceitualista sempre defendeu ao longo de sua carreira. Para ele e tantos outros artistas conceituais, a arte precisa se estabelecer como fonte de informação, e não como concepção, meramente, estética. Esse aspecto característico da arte conceitual - de priorizar o conceito e a ideia, ao invés de venerar a face estética - se exemplifica de maneira evidente na obra de Kosuth. Em termos estruturais, ela se divide em três diferentes elementos: uma cadeira comum, dobrável e de madeira; uma fotografia em prata coloidal da mesma cadeira, ampliada e tirada de dentro da própria galeria; e uma fotocópia de uma definição da palavra cadeira, retirada de algum dicionário de língua inglesa. A cadeira de madeira, apresentada como ideia física e colocada

no centro da obra, é compreendida como exemplo da prática de ready-made, já que o artista se apropria de algo que já estava feito, realizado com finalidade prática, para eleva-lo à categoria de obra de arte. Com isso, a cadeira é tirada de seu contexto usual e recolocada em um ambiente de museu, o que provoca a ressignificação do objeto “cadeira” e, como elemento pertencente a uma obra de arte, a desobjetificação do objeto como tal, ou seja, a privação de sua função principal – agora compreendida como objeto a ser analisado e não sentado em cima. Por sua vez, a fotografia da cadeira, identificada como forma representativa do objeto e posicionada à esquerda da “cadeira física”, desperta questionamentos a respeito da verdade e da imitação do espaço em um museu, isto é, brinca com a ideia de representação característica de


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uma obra de arte dentro de um local que apresenta as mais variadas formas de representação da realidade. Já a fotocópia da definição da palavra “cadeira”, fixada na parede, à direita do objeto, e apresentada como forma verbal do elemento principal da obra de arte, traz para a análise conceitual a natureza linguística da proposta artística idealizada por Kosuth. Nesse sentido, a fotocópia estabelece a fronteira entre aquilo que nos é apresentado como real e único e aquilo que encaramos de maneira indireta e imagética, construído, essencialmente, em nossas mentes. O interessante da obra de Kosuth, é que, analisando os diferentes elementos que a compõem, compreendemos que não existe um objeto artístico único nessa concepção. As diferentes formas utilizadas para se contextualizar o elemento principal da obra, a cadeira, são apenas artifícios a serviço da ideia idealizada pelo artista. Nesse sentido, a partir de três corpos, monta-se uma obra inteira. Ao observar a obra de arte e, por conseguinte, as três formas de apresentação ali delineadas, surge no espectador a seguinte pergunta: em qual desses três elementos, desenvolve-se a verdadeira identidade do objeto da obra? Em um deles, em alguns, em todos ou nenhum? A relação entre os elementos é indissolúvel e cada um deles é fragmento material da própria realidade. Os objetos mantêm uma ligação entre eles, no qual o elemento concebido na obra entra numa dimensão mais ampla, constituída pelas pers-

pectivas que a compõem como forma imagética e linguística. A cadeira, apresentada de maneira visual através do objeto e da foto, mantem uma relação com a sua representação linguística. Se, por exemplo, o espectador se dirigir à parede e centrar a sua visão à definição da palavra cadeira, ele formará em sua mente a ideia imagética da cadeira que viu anteriormente. Agora, se ele ler a mesma definição sem ter a cadeira ao seu lado ou sem ter visto ela antes, ele tirará seus olhos do objeto em si, e aproximará, dessa maneira, a ideia de cadeira em sua mente. Eleva-o, assim, além do simples reconhecimento. Nesse contexto, Kosuth se assemelha à

teoria estipulada pelo filósofo francês Jean Paul Sartre, que definiu os diferentes campos que se apresentam na relação entre imagem e coisa. Na definição de Sartre, existem dois campos que regem a propriedade de um objeto: o plano da imagem, constituído pela cor, forma e posição do objeto que forma em sua mente, e o plano real, sinalizado pelo objeto em sua essência física. Sintetizando a filosofia de Sartre à obra de Kosuth, podemos afirmar que os três elementos de “Uma e três cadeiras” mantêm a mesma identidade de essência, mas não de existência, já que são diferentes em formas de apresentação. Assim, todos elementos tem autonomia de 22 | CONCEPTUAL

cada parte do corpo e, por meio da construção discursiva verbo-visual, desencadeiam uma ligação de sentidos, contribuindo para a própria compreensão do título da obra. Portanto, o que Kosuth faz é estimular o espectador a interagir com a obra de arte, trazendo a sua ideia própria de cadeira para a discussão. Essa intenção do conceptualista é ratificada no próprio titulo da obra, que sugere quatro cadeiras, e não três: a apresentada na sua forma física, a representada através da fotografia, a explicitada por meio da definição e, a mais importante de todas, aquela que é formada na cabeça e na reflexão de cada espectador e leitor que se entretêm com a obra – característica que não é levada, normalmente, em conta pelos parâmetros estéticos do idealismo artístico. Em tese, Kosuth não é um simples artista conceitual. Ele vai muito mais além. Suas obras de arte o elevam a um patamar elaboracional heteróclito. Pensa de maneira plural e dinâmica, conciliando diferentes formas e produzindo, acima de tudo, uma concepção extraordinária para cada uma de suas representações artísticas. “Uma e três cadeiras” é tampouco uma simples obra de arte. Igualmente a seu autor, na obra não se trata apenas de apresentações diversas de um mesmo elemento. Paralelamente à própria origem, a obra nada mais é que a representação mais fidedigna do próprio modo pensante do artista que a concebeu: magnífico. O



e desmatéria

Matéria

GUTAI ART Relato de quando visitei o Guggenhein e tive um ataque epilético extra-sensorial Por Marcos Sokabe

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o começo de 2013 fiz uma viagem para os Estados Unidos com minha família. O turismo já estava demarcado; visitaríamos o MoMA, o American Museum of Natural History, Metropolitan Museum of Art e o Guggenhein, dentre outras milhares de paisagens dos cartões postais ianques. Em cada centro de arte, no subsolo da visitação, existiam pequenas salas com apetrechos para se comprar. Típico. Tive a impressão que nesses pequenos market-cults, a lotação fazia-se muito maior que propriamente dentro dos museus. Em reviravoltas do relógio e a tontura do fuso horário, qualquer um é capaz de achar que está numa lojinha vagabunda do empire state building, comprando canecas do king kong. 24 | CONCEPTUAL

No museu de história nacional vi diversos gringos, turistas latinos, dando voltas nos dinossauros e escutando com tradutor as explicações das maquininhas biológicas - cada espécie de ser vivo pré-histórico tinha um. Alguns alunos de artes, provavelmente da Universidade de Nova York, desenhavam numa daqueles folhas grandes, beges e resistentes, comuns a escolas de desenho, um esqueleto distinto. Os(as) meninos(as) eram indiferentes a nós, turistas. No MoMA, lembro me de ter tido a sensação de pequenez, não do museu, mas de mim. Ao mesmo tempo que encantava-me com o tamanho e as contruções arquitetônicas, pensadas propositalmente, senti-me um grão de feijão, como se aquela imensidão, fruto das mãos de humanos, estivesse ali exclusivamente para me por

no lugar, sabe? Me fazer entender que certas pessoas são titânicas, e outras, ridiculamente pequenas. Obviamente, «A Noite Estrelada» de Van Gogh não contribuira com minha saúde intelectual. Ao ver o explendor do De sterrennacht, correspondente do pós-impressionismo, e claramente o artista rompera com o movimento devido à utilização de cores, significados particulares, e pinceladas, fora inevitável minha contemplação, o mais agressivo estado de inércia, de ver, de forma nua, algo pintado por deus. Não cái de joelhos porque ainda possuia algumas horas de visitação. O Metropolitan, localizado bem na região central da cidade, intercalada por inúmeras vias equiláteras, planejadas para que o trânsito favorecesse os táxis amarelos, e que devido a tanto, ajudava na locomoção de turistas, parecia um grande


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ponto de encontro de estrangeiros. A frente era linda – e é apenas dessa simples palavra que me aproprio na descrição – e gigante. Datada de 1872, sua estrutura realmente remetia a quem quer que fosse imediatamente ao clássico. Dentro; uma coleção de pinturas européias do século XII ao XX, renascimento e escassas pitadas de cultura oriental.

homem oriental se rastejando pela lama, todo em preto e branco. Vídeos curtos, de uns 4 minutos, com imagens desfocadas, causavam um desconforto na boca do estômago. Eu estava de frente, por sorte, com a ideia de arte que mudaria minhas concepções pra sempre. Do nome Gutai, que significa incorporação, é um grupo que veio da pós-guerra vivida no Japão, e que contém radicalidade em suas manifestações. Jiro Yoshinara fora o primeiro a enfrentar o reacionarismo artítisco nipônico da época. Na grafia, entendemos as associações, ao contrário do que se pensa, Gutai nada tem a ver com o concreto, mas a concretização, «The kangi usado para escrever» gu «significa ferramenta, medidas, e uma maneira de fazer algo, enquanto ‹tai› significa corpo. No manifesto escrito em 1956, Yoshinara, artista componente do grupo, descreve as noções direcionais do Gutai; questionando nossa fascinação com a beleza, nossa obsessão em reproduzí-la enquanto belo. Comemora o pro26 | CONCEPTUAL

O Guggenhein foi o último que visitei, e como em todo bom epílogo, guardou-se como a surpresa final. Era época de inverno, começo do ano nos EUA, e batia um frio abaixo de zero. Nos primeiros dias, a neve cobria o Central Park de cabo a rabo, e até um morador que passeava com sobretudo com seu cão vira-lata nos parou. Pediu que ti-

rássemos uma foto dele e mandassemos para sua irmã no Alasca. Vendo a inutileza de seu pedido, perguntou donde éramos, e dissemos, com orgulho, do Brasil, com um sotaque liquefato de tupiniquim e inglês. – A capital do Brasil é São Paulo? – perguntou. Demos risada e seguimos caminho para o museu. Nada poderia interferir, e pode ser muito louco a nossa necessidade de conhecer outros países quando mal conhecemos o nosso, digo, tinhamos planejado obsessivamente os pontos de parada, e que deus nos livrasse de perder uma visita aos museus gringo. No Guggenhein, decidi caminhar em direção ao Kandisnky. Habitava um mural de mais ou menos 3 por 3, quadrado, numa parede. Dei-me por satisfeito depois de dezenas de minutos interpretando suas obras, quando, ouvi sons retorcidos e gemidos que muito se assemelhavam a humanos grunindo, por mais metafórico que seja a comparação, no andar de cima. Conheci a Gutai Art, companhia japonesa de arte experimental, e rememoro-me ainda hoje da surpresa que tive ao ver gravações de um


cesso de dano ou destruição de forma a revelar a vida interior de um determinado material ou objeto, buscar para além da base comum de estética, o serviço das ruínas: “Mas o que é interessante a esse respeito é o romance, beleza a ser encontrada em obras de arte e arquitetura do passado que mudaram sua aparência, devido aos danos do tempo ou destruição por desastres no decorrer dos séculos. Isso é descrito como a beleza da decadência, mas não é, talvez, que a beleza que o material assume quando é libertado de artificial make-up e revela suas características originais? O fato de que as ruínas nos recebem de forma calorosa e gentilmente depois de tudo, e que eles nos atraem com a suas rachaduras e descamação de superfícies, isso não poderia realmente ser um sinal de o material se vingando, tendo recapturado sua vida original? .... “ Nesse contexto, o movimento Fluxus está absolutamente ligado com a Gutai, seja na sua crítica de desapropriação ao estilo modernista de contemplação, seja nas suas performances artísticas.

Arte Gutai não muda o material: ele traz à vida. Arte Gutai não falsifica o material. Na arte Gutai o espírito humano e o material atingem as suas mãos um ao outro, mesmo que eles sejam de outra maneira oposta um ao outro. O material não é absorvido pelo espírito. O espírito não força o material em sua apresentação. Se deixarmos o material como é, apresentando-o apenas como material, então ele começa a nos dizer alguma coisa e fala com uma voz poderosa.

Na volta para meu país de origem, em cada hora de viagem, guardo no peito a transgressão que pude apreciar na ida fatídica ao museu. Vang Gogh, Impressionismo, dinossauros, pinturas renascentistas. Nada chegou tão perto de me emancipar quanto o dia em que conheci a Gutai Art. Antes de ir embora, comprei uma camiseta do museu. Sim, sou um hipócrita. Mas nunca me pareceu tão apropriado ser um. O

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e protesto

Arte

Diversos olhares sobre violência na Bienal de SP Com base nas manifestações do ano passado, obras de arte retratam a violência policial e a realidade que é, normalmente, distorcida nos noticiários e meios de comunicação do país

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Bienal de São Paulo chega a sua 31ª edição em 2014, com cerca de 300 obras de 111 artistas expostas no pavilhão do Parque Ibirapuera. Os curadores perceberam o clima de insatisfação que tomou o país após as jornadas de junho de 2013 e decidiram realizar uma exposição conectada com o momento político que o país vive. Diversas obras possuem um caráter ideológico fortíssimo, algumas vezes até deixando de lado o acabamento artístico para passar uma mensagem política. Como é o caso da obra do artista pernambucano Gabriel Mascaro que expôs uma cartilha de orientações aos policiais infiltrados nas manifestações, denominada Não é sobre sapatos. A obra de Mascaro denuncia como a violência às vezes é criada pelos próprios policiais e explorada de maneira quase que panfletária pela grande mídia, como forma de justificar mais repressão e deslegitimar as mobilizações. O título Não é sobre sapatos se refere a um dos tópicos do documento, que ensina aos policiais identificarem os ma28 | CONCEPTUAL

Por Victor Labaki

nifestantes pelos seus calçados. A maneira como a violência é noticiada pela imprensa não está presente somente na obra acima. O artista argentino Juan Carlos Romero expõe sua obra chamada Violência (1973-77) que relata através de fotos dos jornais da época como às vezes o mesmo fato era tratado como violência por ter sido cometido por um manifestante, mas visto como algo comum quando cometido por um policial ou autoridade. Romero ainda consegue abordar como a violência se tornou algo completamente banal por conta de noticias desse tipo. Ainda sobre violência policial, o videoclipe Wonderland, da banda de hip hop Tahribad-ı İsyan, criado pelo artista turco Halil Altende, mostra jovens correndo da policia para denunciar a destruição de assenta-

mentos com séculos de existência em Sukule, no centro de Istambul, para dar lugar a imensos empreendimentos imobiliários - essa sensação de revolta e descontentamento daria origem aos protestos turcos após a destruição do parque em Gezi, também no ano de 2013. A obra de Halil dialoga muito com outro vídeo presente na exposição, dessa vez no último andar, que se passa no cemitério de Perus aonde foram escondidas alguns restos mortais de militantes pela ditadura civil-militar brasileira. A obra Apelo, feita por duas artistas brasileiras, Clara Tammi e Débora Maria da Silva, mostra uma senhora dizendo frases do tipo “Mesmo que me ameacem com fuzis e me aprisionem com as leis. Eles não vão me fazer viver com medo”. Com isso, as artistas propõem uma reflexão sobre o drama das mães das periferias brasileiras que ainda perdem seus filhos para a violência policial e em grande parte dos casos sem saber aonde seus ossos foram jogados. Com obras desse tipo, a 31ª Bienal de São Paulo cumpre um papel importante na difusão de uma visão de mundo contrária a que está pos-


ta, colocando em xeque fatos e costumes que precisam ter seu fim. Os curadores já haviam dito que essa seria uma Bienal ideológica, algo que havia tempos que não acontecia em bienais. Dessa maneira, a Arte não se desconectou da realidade brasileira e sim, a retratou mostrando o que ainda há de mais podre no Brasil: a violência que não ouvimos no rádio, televisão e jornais. A Bienal mostra a violência real que está presente no cotidiano da maioria das pessoas do Brasil, que muitas vezes é distorcida pelos grandes meios de comunicação como maneira de desviar o foco da real causa de tamanha violência. O Quando: 6 Setembro a 7 de Dezembro Horário: ter, qui, sex, dom e feriados: 9h às 19h (entrada até 18h) / qua e sáb: 9h às 22h (fechado às segundas) Local: Pavilhão da Bienal no Parque do Ibirapuera Preço: Gratuita CONCEPTUAL | 29


e transcendência

Choque

O ESPETÁCULO ESTÁ EM TODA PARTE Marina Abramovic, avó da live art, de body artist a ícone-pop, extrema, empírica e chocante, conseguiu transplantar da vida seu maior e mais significante leitmotiv – o que nos define como seres humanos - a performance Por Marcos Sokabe

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Live art, do que é aproximação à viva arte ou arte ao vivo, liquidificadas no contêiner da arte performática. Estrangeirismos no grau mais descritivo, de tangência, denominam comumente a arte de performance como body art, performance art – e assim que emerge-se para a sociedade, como se a complexidade da arte e da crítica e dos milhares de elementos de signo pudessem ser reduzidos a um indispensável: o corpo. Gasto o primeiro parágrafo para explicar os conceitos sobre a live art, para que seja abarcado todo o mantra, toda a teia, toda a complexidade justamente: produto não mercantil – esse devendo-se da dificuldade em produzir massivamente a arte de performance, ou capturá-la em operações para que se torne algo 30 | CONCEPTUAL

consumível – a mesma é o resultado das experimentações ocorridas no pós-moderno, com a chegada de Duchamp, da arte conceitual, da negação ao formalismo moderno, e até diversas manifestações artísticas ocorridas no vanguardismo europeu. Trouxe à tona de forma intensa o questionamento sobre as definições do fazer artístico, de seu papel, agora, transgressor, reflexivo, rejeitando a escala formalista que classifica entre o que é ou não digno somente através de uma possível natureza contemplativa. ora, para compreendermos em substância o valor da live art, devemos esmiuçar o membro componente, ou o órgão mais vital, de sua composição – o corpo. Embora o elemento da presença seja algo abstrato, discutível, de raiz sentimental e pouco consigamos academizá-las, é primordial que ela se faça presente.

A presença do corpo humano vivo e vivente na obra, capaz de alterar ressonâncias racionais em nossas percepções, tem potência para violentar nossa sensatez ao que refere-se a impressão exterior para com a interior – não é raro que em apresentações performáticas o público se depare com impressões incomuns e que fogem da realidade; dimensões de altura, peso, distância, etc, inúmeros, contam-se, nas obras de expressão cênica, a representação do movimento, do gestual, da ideia, entretanto, entende-se que o corpo humano é mero instrumento de apresentação de uma ideia. Feita então a confusão: o corpo é essência, mas também, conjuntamente, ao mesmo instante sem atraso, uma máquina de transmissão. Sim, a proximidade com o teatro é evidente, mas não tão cabível como se pensa. Pela definição de Rossi-


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ni, a performance independe-se do teatro pelas zonas de indefinição, campo contrariamente a dramaturgia, não necessita de uma trama, de uma ligação auto-referencial e contextos à obra, valendo-se e enriquecendo-se da mera articulação do objeto, da relação entre tempo e espaço, imaculando o presente, o aqui-agora. Tal ponto de ruptura demonstrou-se primordial no pouco de dicionarização que temos sobre a live art – a fuga do espectro da ficção, dos lirismos, das metaforizações (embora a espetacularização seja uma vertente), comuns ao teatro e outras correntes artísticas, deram liberdade plena de atuação e exposição, com a crueza dos corpos nus, como se incitassem sem timidez o seguinte a humanidade:

Há na vida o princípio da arte, e na arte o princípio da vida, como se as duas palavras fossem definições estreitas de um todo e não a antítese de arte x realidade. Se juntássemos ambas num corpo só, e esse mesmo fosse humano apropriadamente, teríamos o entendimento-chave acerca da onipresença, oniciência e onipotência tanto da arte quanto da vida, tanto numa não-coisa só.

Neste centeio de resumos, Marina Abramovic torna-se uma das mais importantes e recentes artistas da história, não tão somente da vitrine da performance. O nível de sua violência é perturbador, focando-se nas seguintes relações de suas manifestações artísticas, público x obra e corpo x limites. Perturbador porque deveras tenciona os extremos em suas apresentações, os extremos físicos do corpo, os extremos psicológicos, os extremos de passividade com a plateia.

CONSIDERAÇÃO PRIMEIRA

Na série Rhythm, dividida entre diversos índices numéricos, Marina deixa-se ser assistida numa brincadeira real com facas afiadas, deita32 | CONCEPTUAL

-se em uma estrela de fogo, fica sob os efeitos de drogas, coloca-se a disposição do público para interação e etc. Todas colocam em cheque a relação da artista com os presentes, e porque não dizer que afronta nossa locação no mundo frente aos absurdos e opressões que enxergamos, sentimos. diz-nos, quieta, sobre o que é ser audiência para freak-shows, sociais, individuais, tanto faz. Deseja expor o ser humano genérico e retrodeclarado civilizado em situações de terror absoluto, de máxima estranheza, a fim de causar alguma sensação.

CONSIDERAÇÃO SEGUNDA

Marina carrega saberes empíricos em suas composições. Ao trazer intersecções e experiências suas ao longo da vida, e de nenhuma forma negá-las, a artista cria um sentimento angustiante de empatia; como se pelo fato dela ser um corpo de carne, ossos, pele, unha e materiais metafísicos, todos nós não sejamos tão diferentes assim uns dos outros. Veja; nega-se a ficção, lança a realidade ao nível mais aterrador possível, realocando objetos básicos de nosso dia-dia, dissecando a céu aberto nossa rotina. E, talvez, não exista nada mais emancipatório que o ato de nos colocarmos no lugar de outrem. Filha de comunistas heróis de guerra, ioguslava, Marina não procura universalizar o mundo, ou causar insights acerca de um planeta onírico, platônico, ao contrário, coloca em suspenso a discussão sobre o agora, a atuante rotina. E é sua maior virtude. Ulay é frequentemente citado nas referências sobre Marina: amante por 12 anos e parceiro de performance, viveram durante 5 num carro pela Europa, sobrevivendo de apresentações, compartilhando a pobreza, inseparáveis. As duplas-obras pretendiam rediscutir as relações entre homens e mulheres e seus supostos egos e identidades, nasceram daí “Relation in Space”, onde corriam por uma sala, “Breathing In/Breathing Out”, respiravam da boca um do outro até que ficassem inconscientes, “AAA-AAA”,

gritando sem parar por um certo período, Imponderabilia, nus, obrigavam os presentes a encostarem nos dois devido ao posicionamento do ambiente e escolhiam a quem encarar, atos do título “um só corpo de duas cabeças”, como gostavam de denominarem-se. Ainda a última antes da separação – ambos caminharam pela muralha da China, cada um sob um ponto inverso, para que 3 meses depois se encontrassem, no centro da construção. Em “A artista está presente”, exibida no MoMa, 2012, Marina cria uma espécie de retrospectiva de sua vida [autobiográfica, é como se a separação de Marina-artista e Marina-pessoa não existisse], ao contar sua trajetória na live art, ela também nos conta como foi a sua vida de fato, cada produção artística fora reflexo de sua experenciação enquanto mulher, cidadã, criança. Não exibiu-se somente o lado produtor dela, mas Marina por inteiro. O documentário feito na mesma ordem, mostra a preparação da exposição-retrospectiva, composta por vídeos e reproduções ao vivo delas e de seus alunos, iniciada nos anos 70.

Acredito que uma das mais brutais castrações do discurso racionalizador da ciência seja a composição, senão exigência, de tese, antítese, síntese. Crítica, contraposição, solução. O interlúdio talvez funcione perfeitamente (se bem que não) para as retóricas e dialéticas cientificistas, mas nunca fora capaz de abrigar a dimensão da arte. Por tanto que, quando o segundo co-


mum depara-se com artistas performáticos, não é capaz de entender seu grau de complexidade. A linha do que é aceitável permeia o tangível, e não o macro de sensações e sentimentos. A mesma rejeição que vimos desde o começo da arte; o apego praticamente insolúvel a aquilo que foge da estética dominante, do establishment social. Procriam-se os preconceitos, falácias de evolucionismo da arte, etc. A arte é o que salva a humanidade do absurdo da estagnação, a nível intelectual, sentimental. É dela que nasce a suspensão para que depois exploremos as perguntas, as críticas e revolucionemos. Marina é o retrato descozido disso. Desapropriar o mundo de formalidades artísticas, vociferar a contemplação sem contraponto reflexivo, foram atuações executadas por ela. Em sua voz, reitera-se, propriamente quando indagada sobre o que é live art:

“Posso dar um exemplo muito simples: pegue uma porta e abra ela constantemente, sem entrar ou sair. Se você faz isso por três, cinco minutos, isso não é nada. Mas se você faz isso por três horas, essa porta não é mais uma porta, ela é um espaço, o Cosmos, se transforma em outra coisa, é transcendente. Em todas as culturas arcaicas, rituais e cerimônias eram repetidas sempre da mesma forma e existe um tipo de energia que fica alocada nessa repetição que afeta também o público.”

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social multimídia

Crítica

O CONCEITUAL EXTERIOR Situado entre o neoconcretismo e a arte conceitual, Cildo Meireles capta o melhor em reflexões políticas em estratégias poéticas

Por Lucas Goldstein

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olítico, sensorial, crítico, chocante: todas as palavras se encaixam na obra de Cildo Meireles. Nascido na cidade maravilhosa em 1948, usa a arte de forma distante daquele tempo, refletindo problemas que desde antes persistem. Diferentemente de alguns de seus contemporâneos, é um artista que insere a audiência em instalações que não somente provocam experiências corporais e reflexões de linguagem, como filosóficas, psicológicas e sociais – da qual é notório nas críticas políticas, através de estratégias sensoriais da arte conceitual de seu tempo. Prestes a completar 50 anos de carreira, Meireles é um dos maiores nomes da arte nacional. Reconhecido internacionalmente, o brasileiro já esteve por galerias ao redor do planeta quanto em notas de um real ou 34 | CONCEPTUAL

garrafas de refrigerante. Formado no desenho, Cildo moveu-se para o conceitual simultaneamente aos nomes internacionais, através de propósitos semelhantes – ao lado de Hélio Oiticica, Joseph Kosuth, Lawrence Weiner e outros, esteve presente em Information, uma das primeiras mostras de arte conceitual de grande repercussão, no MoMA, em Nova Iorque. Este conjunto de obras, Inserções em Circuitos Ideológicos, de 1968, é mostra da capacidade do artista em suscitar questões políticas, sociais e de consumo. Através da intervenção em objetos de grande circulação, procura-se aplicar uma circulação de informações não centralizada, desregulada, através de um sistema que, ao contrário da ditadura militar e da comunicação de massa, não necessita nenhum controle. Questão essa agravada pelas intervenções em garrafas retorná-

veis de Coca-Cola, símbolo do imperialismo ianque. Marcadas por silk-screen, variavam de desabafos ásperos como “yankees, go home” a instruções de como utilizar a garrafa para fabricar um coquetel molotov. Em 1975, outra intervenção do tipo, agora diretamente contra o governo ilegítimo: Quem matou Herzog? é uma série de carimbos em notas de cruzeiro, compartilhadas livremente e anonimamente. Horizontal e aleatoriamente, ocorre uma comunicação livre de censura e repressão – horizonte trazido pela arte analítica de Meireles. Hoje se sabe da ligação direta entre EUA e a ditadura: através de documentos revelados pelos próprios americanos, o país yankee foi o pivô do golpe militar de 1964. O dinheiro é um tema recorrente em Cildo Meireles, A relação entre valor de uso e troca é expressada em diversas obras – de cédulas nulas em Zero


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Cruzeiro, de 1976, e Zero Dollar, de 1978, ao pacote amarrado de notas em Árvore de dinheiro, de 1969, em que o valor de notas uma vez úteis, embaladas em bloco e expostas num contexto artístico, torna-se nulo. Um tempo antes, aos dez anos de idade, se mudou com a família para Brasília; em 1963, aos quinze anos, Cildo Campos Meireles iniciou seus estudos em arte na Fundação Cultural do Distrito Federal orientado pelo ceramista e pintor peruano Felix Barrenechea. Através de convite para sua primeira exposição pessoal no MAM soteropolitano, desistiu do sonho de prestar faculdade de arquitetura na Universidade de Brasília. Foi nas décadas de 60 e 70 em que sua arte sofreu as maiores transformações, até se situar entre o neoconcretismo e a arte conceitual, de certa forma como elemento de transição. Ao contrário de Kosuth, por exemplo, seu estilo não é poético por excelência, não se torna a si, somente. Como suas intervenções em objetos de circulação – também em “Quem matou Herzog?”, inserido na merma estratégia das Inserções – propriamente provoca reflexões acerca da sociedade e da sociabilidade, ora através de propostas descentralizadas de comunicação, ora em imersões sensoriais em suas instalações. Meireles faz parte de uma geração de artistas completamente livres

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quanto a suportes. Multimidiáticos, suas obras percorrem pinturas, esculturas, e instalações – estas dotadas de luzes, sons, imagens, aromas. Em Rio oir, idealizado em 1976 e realizado em 2011, existem dois ambientes fechados, com caixas de som: um escuro, coberto pelo som da água; outro coberto por papel laminado, repleto por sons de risadas. Ocorre uma clara oposição entre momentos de expansão e relaxamento, euforia e calmaria, expressão e digressão. Uma ideia simples, que tomou, por força das circunstâncias, um caráter político e reflexivo, exibindo uma suposta dicotomia entre natureza e humanidade. Estes elementos aparecem em diferentes dosagens. Em Espaços virtuais: Cantos, o artista desafia a geometria euclideana como base, projetando 44 espaços de ilusão de ótica: o que seriam cantos nas paredes se desdobram para dentro, no inexistente. Tal percepção depende, é claro, da participação do público na obra, entrando no projeto, a bisbilhotar. Se existe um ponto em comum entre as movimentações artísticas conceituais é a despersonalização do artista e de sua obra, transferindo tal valor, importância no processo da arte ao público, incentivando sua participação e, por muitas vezes,

dependendo dela para acontecer. Críticas sociais não necessitam ser, necessariamente, diretas como nas Inserções; duas décadas mais tarde, já após o final da ditadura, Meireles produziu “Através”. Uma coletânea labiríntica de objetos definidos por nós como barreiras, desde grades de prisão a cortinas de banheiro, translucidamente arranjados e pendurados sobre um carpete de vidro estilhaçado. Em uma apresentação aberta, geram-se diversas interpretações – em um nível analítico e geral, Através é uma crítica à sociedade, composta de muitas barreiras a pessoas que partem de um ângulo da obra, e poucas a outras, com o olhar de cada alcançando diferentes profundidades. Em “Através”, Cildo alcança uma poética social, em que um arranjo internalizado, antiestético e materialmente descontextualizado, provoca resultados externos, reflexões sociais. Talvez, por seguir ao social, em uma via rumo ao externo, a obra de Cildo Meireles possa ser erroneamente situada fora do campo da arte conceitual. Tal conclusão é um erro; a submissão da estética e da materialidade ao conceito é o verdadeiro trunfo do conceitual, e seu diferencial perante a qualquer arte produzida ao longo da história. O




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