A História Real do Folclore Brasileiro ©
Copyright © 2020, Januária Cristina Alves Todos os direitos reservados. Ilustração
© Felipe Amarantes © Marcela Yumi
Diretor Editorial Marianne Sayuri
Diretor Comercial
Pedro Henrique de Melo
Gerente de novos Negócios Thaynna Peixoto
Gerente de Marketing Digital Jaqueline de Oliveira
Editores
Marianne Sayuri Thayna Peixoto
Capa e Projeto Gráfico Felipe Amarantes Marcela Yumi
Designer Assistente Marianne Sayuri
Revisão
Pedro Henrique de Melo Jaqueline de Oliveira
DADOS INTERNACIONAIS DE CATÁLOGO NA PUBLICAÇÃO (CIP) Andréia de Almeida CRB-8/7057
A História Real do Folclore Brasileiro, Januária Cristina Alves; Rio de Janeiro – DarkSide Books, 2017 120p. : il. ISBN: 978-85-9454-079-9 1.Literatura Brasileira. 2.Contos. 3. Horror. I.Título 17-0574
CDD:869.93.
Índice para catálogo sistemático 1. Literatura Brasileira
[2017] Todos os direitos desta edição reservados à DarkSide® Entretenimento LTDA. Rua do Russel, 450/501 – 22210-010 Glória – Rio de Janeiro – RJ – Brasil www.darksidebooks.com
SUMÁRIO Boitatá { O horror em chamas }
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Boto cor de rosa { O encanto do boto }
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Cuca { Às margens do horror }
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Curupira { 10 - S82 }
64
Iara { Iara }
80
Lobisomem { Lupino }
98
Mula sem cabeça { A chama do pecado }
111
Saci { Tempat bagi orang yg terlantar }
125
Bibliografia 141
Todas as histรณrias desse livro tem como objetivo homenagear muitos autores que escrevem sobre o folclore nacional brasileiro.
A mãe do medo é a incerteza e o pai do medo é o escuro. Enquanto houver escuro no mundo, haverá medo, haverá monstros como os que você vai ver. - Lobato, Monteiro; O saci.
Introdução “A cultura é de todos: este é o fato primordial. Toda sociedade humana tem sua própria forma, seus próprios propósitos, seus próprios significados. Toda sociedade humana expressa tudo isso nas instituições, nas artes e no conhecimento. A formação de uma sociedade é a descoberta de significados e direções comuns, e seu desenvolvimento se dá no debate ativo e no seu aperfeiçoamento, sob a pressão da experiência, do contato e das invenções, inscrevendo-se na própria terra.” Raymond Williams, um dos fundadores dos estudos culturais ingleses, dá conta nesse trecho de algo importante: os saberes do povo (significado de folclore) e suas expressões cotidianas são criações que contribuem para dar forma a uma sociedade. Alegar distância entre os saberes da elite e os do povo deu ensejo a que estes últimos se vissem colocados num escaninho isolado, associados à produção comunitária, “autêntica” e pura, onde se encontrariam as raízes da verdadeira identidade nacional, advindos sobretudo do mundo rural – visão que nasce do Romantismo europeu, de meados do século XVIII. No Brasil, os estudos folclóricos começaram no século XIX, sob influência do movimento romântico, e tiveram no século seguinte seu desenvolvimento marcado por momentos heroicos e debates ideológicos intensos. A evolução do conceito de política cultural levou a um redimensionamento das atenções, institucionais ou não, à multiplicidade de fazeres e saberes. Simbolicamente, a cultura trata da articulação que os seres humanos fazem com os fatos do mundo, que lhes dão estabilidade. Nesse sentido, não cabe a radical distinção entre o que é popular, erudito ou de massas, registros cujas fronteiras estão cada vez mais embaralhadas na sociedade contemporânea. Williams chama a atenção para dois aspectos da cultura. O primeiro é o que se reporta aos significados que vêm pela tradição. O segundo, o referente à dimensão criativa, onde novos sentidos são elaborados e incorporados.
Se termos como folclore e cultura popular fossem descartados, as peculiaridades de uma miríade de mitos e crenças, artes, folguedos, festas e práticas cotidianas acabariam sendo deixadas de lado. O importante é alterar os modos de tratar e ver esse rico patrimônio, que dialoga e evolui com o tempo, cujo potencial criativo alimenta produções de todas as formas e níveis. É o que se apreende da leitura deste Abecedário: suas personagens são frutos das mais diversas produções, de cantadores populares a autores como Erico Verissimo, de pesquisadores dedicados, como Câmara Cascudo, a contadores de histórias, de artistas letrados e célebres a criadores anônimos e analfabetos. Algumas vêm de tempos remotos, outras se popularizaram num tempo recente. Suas origens, também diversas: europeias, africanas, indígenas. Trata-se de uma produção que permeia não apenas o imaginário e as práticas da população mais pobre, mas que atravessa os vários estratos sociais por processos de interação variados. Assim, o repertório cultural de uma sociedade é formado pelas criações de todos os segmentos que a compõem, independentemente das categorias que historicamente vêm estabelecendo fronteiras entre os diversos níveis de produção.
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ILUSTRAÇÃO BOITATA
BOITATÁ Em maio de 1560, padre José de Anchieta escreveu, na carta conhecida como Descrição das coisas naturais da Capitania de São Vicente, sobre o Boitatá:
[...] vivem a maior parte do tempo junto do mar e dos rios, e são chamados boetatá, que quer dizer “coisa de fogo”, o que é o mesmo como se se dissesse “o que é todo fogo”. Não se vê outra coisa senão um facho cintilante correndo daqui para ali; acomete rapidamente os índios e mata-os, como os curupíras: o que seja isto, ainda não se sabe com certeza.
O escritor João Simões Lopes Neto também descreve a Boitatá em seu livro Contos gauchescos e lendas do Sul, publicado pela primeira vez em dois volumes, em 1912 e 1913:
Quem encontra a Boitatá pode até ficar cego… Quando alguém topa com ela só tem dois meios de se livrar: ou ficar parado, muito quieto, de olhos fechados apertados e sem respirar, até ir-se ela embora, ou, se anda a cavalo, desenrodilhar o laço, fazer uma armada grande e atirar-lhe em cima, e tocar a galope, trazendo o laço arrasto, todo solto até a ilhapa!
Como se pode ver, de boi “a” ou “o” Boitatá não tem nada. A confusão, quem sabe, tenha começado pelo nome: em tupi-guarani, mbae quer dizer “coisa”, e tatá, “fogo”. Como esse fantasma luminoso se 21
mexia de maneira ondulada, foi fácil associá-lo a uma cobra. Ou, talvez, por mboia significar “cobra”, a personagem tenha virado a Mboi-Tatá, a cobra de fogo. Esse famoso ser do folclore nacional nada mais é, então, do que uma cobra transparente que irradia uma luz muito forte dentro da noite. Há quem diga que ela é um touro, com um olho enorme na testa, mas essa não é uma versão muito conhecida no Brasil e talvez tenha sido influenciada pela confusão com o nome da entidade. A Boitatá é o fantasma de uma imensa cobra luminosa. Alimenta-se somente dos olhos de suas vítimas, por isso seu corpo transparente é cheio de olhos que brilham para aterrorizar as pessoas. Alguns dizem que ela pode se transformar num pedaço de pau flamejante e, assim, castigar quem destrói as matas. Dizem que é a protetora dos campos e das reservas naturais e que mata quem queima a terra. Para se livrar do ataque do bicho, a vítima deve fazer como disse João Simões Lopes Neto: ficar imóvel ou então dar-lhe em qualquer parte do corpo com um pedaço de ferro. Em muitas regiões, a Boitatá é conhecida como Cobra-Grande (que pode ser confundida com a Iara), João Galafoice, João Galafuz ou Boiguaçu. A lenda do Boiguaçu é conhecida no Brasil inteiro: sempre que há inundações, ela, que vive dormindo, acorda para comer todos os outros bichos.
OUTROS NOMES: Mboi-Tatá REGIÕES DO PAÍS: Todas ORIGEM: Européia, indígena PERSONAGENS RELACIONADAS: Biatatá, Fogo-Fátuo, Iara, Jaci, João Galafoice, João Glafuz, Mãe do Ouro
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O horror em Chamas My Songs Know What You Did In The Dark (Light Em Up) - Fall Out Boy
A MORTE RASTEJANTE O advogado acaba de sair. Garantiu-me que pode me livrar das grades. Ou pelo menos diminuir minha pena. O chicaneiro de porta de cadeia tem um trunfo: vai argumentar no tribunal que padeço de alguns problemas de ordem psicológica, atenuando minha condenação. Um eufemismo tolo para evitar dizer que não passo de um louco. Não sou louco. Um louco não sabe das coisas que só eu sei. Guardo tudo na memória, gravado com as tintas flamejantes do medo − aquele quadro hediondo de abominações dantescas que presenciei, em corpo e espírito! Agora a morte é apenas um horror ígneo e sibilante, coleando nas sombras. Cada vez mais perto, o horror em chamas se aproxima outra vez. Mboitatá – eis como chamam a morte que sibila em chamas! O horror tomou forma na escuridão da noite. Grotesca e asquerosa é a fome por almas que a coisa possui. O horror ígneo rastejante, a sombra sibilante de fogo do Inferno... Algo medonho que se aproxima. Fede como mil cadáveres chamejantes, e de sua língua bifurcada escorre algo como lavas de vulcão – sua peçonha mortífera e infernal. É o Mboitatá, dizem os índios e caboclos mais antigos, a serpente de fogo de mágicos poderes, a morte sibilante e metuenda. Das profundezas, subindo e subindo dos grotões das margens dos rios do Inferno, através dos vórtices nas fímbrias dos pesadelos mais negros. Arrancar-me-á a cabeça, tenho certeza, como fez com minha mãe e irmãs – seus corpos degolados encontrados fumegando entre cinzas de nossa casa corroboram o que afirmo, embora os tolos homens da lei achem que seja eu o assassino e o incendiário. O advogado me deixou lápis e papel, e aqui estou a escrever tudo o que de fato houve. Se eu ainda estiver vivo quando o causídico voltar, mostrarei os escritos a ele, que provavelmente vai usá-los 24
perante o júri como provas inequívocas de que perdi o juízo, na vã tentativa de livrar-me da prisão. Como se houvesse outra prisão pior do que esta em que vivo, a prisão do medo do horror sibilante, da serpente de fogo sobrenatural que se aproxima para engolir minha alma! Não, eu não temo a morte. Temo apenas o que vem depois dela: a continuação do horror!... Não passamos de meros fantoches nas mãos de entidades terríveis e poderosas, e o Mboitatá é uma delas. É um jogo cruel e tenebroso, os homens não passam de cobaias nas mãos de entidades sombrias. Há somente trevas, dor e morte no carrossel infernal dos mundos visíveis e invisíveis... Já o ouço... Já ouço o sibilo flamejante nas trevas... O Mboitatá, o Horror em chamas, é a morte rastejante que se aproxima!... A MISSIVA DENTRO DA GARRAFA Tudo começou numa bela manhã de abril, muito tempo depois de chegarmos ao Brasil, vindos de Providence, nos Estados Unidos. Antes de horrores infernais, quase sempre precedem belezas miríficas e alegrias paradisíacas, e toda treva maldita da morte nidifica seus ovos negros de horror na luz dourada, efêmera e opiácea da paz. Meu pai nos trouxe para o Brasil quando veio para aqui morar e trabalhar como tradutor, pesquisador e professor de antropologia. Logo adoeceu e morreu por causa da malária. Minha mãe logo enfermou também e então nos mudamos do norte para o sul do Brasil, que tinha um clima mais ameno para nós americanos. Sempre fui um sujeito estranho e solitário, é verdade, mas depois que meu pai faleceu, tornei-me o arrimo da família, o que me ocasionou uma série de surtos súbitos de ansiedade, nervosismo e paranoia, que eu ocultava sob o manto do estresse. Lembro que uma de minhas irmãs reclamara da velha casa em que morávamos, lembrava-me que eu devia fazer algo para di25
minuir o cheiro de mofo e bolor que a umidade do local propiciava, bem como das goteiras e picumãs nas paredes e teto. Como tivemos que morar em casa alugada, a coisa ficou meio complicada. Tive que falar com o senhorio, um tipo especialmente repulsivo, indolente, que costumava ler revistas de histórias em quadrinhos de horror. Dele obtive um “amanhã mando consertar”. Resolvi eu mesmo dar um jeito. Consegui um martelo e comecei a bater no reboco úmido do quarto, só para ver no que ia dar. Da pequena rachadura escorria um filete tênue de certo líquido viscoso que presumi tratar-se da água de algum cano enferrujado. Num acesso de raiva, já que a parede era um tanto sólida apesar de úmida, desferi um golpe com o martelo, com força, e não foi preciso mais que duas ou três pancadas para descobrir algo inacreditável. O reboco caiu úmido e recoberto com uma camada fétida de bolor. A parede era oca, e havia uma espécie de nicho nela. Dentro do nicho, uma estranha e antiga garrafa, ali oculta desde muito tempo. De imediato o filete tênue que escorria cessou. Realmente não era bem um vazamento ou goteira, mas uma estranha e pegajosa umidade. Havia um velho e puído papel dentro de uma garrafa, um manuscrito antigo. Retirei a rolha e puxei com o indicador. Inúmeras histórias fantásticas de mensagens dentro de garrafas foram contadas durante todos os tempos, de modo que isto me exacerbou a curiosidade. O que estava escrito naquele manuscrito suplantava em horror a imaginação mórbida de um Edgar Allan Poe ou de um Lovecraft, e deixava para trás a força imaginativa e macabra de um conto de Paulo Soriano. Era qualquer coisa de fantástico e inominável que nem os voos geniais da mente talentosamente delirante de um Henry Evaristo poderiam tecer em nuanças sombrias; eram, pois, quedas vertiginosas e terríveis criadas pelas quimeras em pesadelos mais vorazes do que a Swirnea evaristiana. 26
Tal manuscrito era uma carta de abominações, uma missiva ou diário de medo e horror escrita nervosamente com a letra de alguém que mergulhara na voragem de conhecimentos e verdades proibidas ao senso comum. Resumirei o conteúdo negro da carta, cortando certos trechos, para que ninguém de mente sã saiba de certos segredos que deveriam mofar nas tumbas do olvido. A carta era de um jovem estudante chamado Manuel Gudryan, que no ano de 1974 fora a Maremontes, no sul do Brasil, em busca de uma vida melhor, alugando uma pequena casa no subúrbio, exatamente a mesma casa em que eu, minha mãe e minhas irmãs agora morávamos! Gudryan cursava Antropologia na Universidade de Maremontes, e, embora fosse ateu por convicção, era interessado por casos e estudos insólitos e sombrios. Com efeito, era um desses tipos que procurava provar que o sobrenatural era uma farsa ou um delírio. Maremontes, com suas antigas e anacrônicas casas de telhados pontiagudos e góticos, seu cemitério e seu pântano medonho, era o terreno propício para a mente investigativa e cética de Gudryan. Cercada de inúmeras lendas indígenas e mitos do folclore, povoada por assombrações grotescas e tenebrosas, a cidade antiga era como que uma cidadela de mistérios cravada no interior do sul do país. Creio mesmo que em toda lenda ou mito folclórico subjaz uma verdade oculta; no seu imo ou raiz, há uma verdade que causa assombro a qualquer mente empedernida e presa nos grilhões do ceticismo estéril. Há, nessas lendas medonhas, uma verdade multifacetada em sua essência, transmutada de horrores reais. A imaginação popular, quase sempre pueril, apenas tornava tudo hiperbólico e distorcido, ocultando uma realidade assustadora. Uma dessas histórias ou lendas folclóricas oriunda de antigas e estranhas tradições de tribos indígenas falava de uma enorme 27
serpente de fogo, vinda de um mundo paralelo ao nosso, mística dimensão invisível cujo portal se abriria em certos dias e horários ou condições mentais e psíquicas especiais, catalisadas por chás alucinógenos ou estados alterados de consciência. Era o Mboitatá, o horror em chamas, rastejando pelos campos da terra do céu e do inferno! Eu sabia, através de leituras anteriores, quase tudo sobre as plausíveis hipóteses da pluralidade dos mundos habitados e das entidades do invisível, do universo multidimensional e das fronteiras além dos sonhos e da morte. Já lera a respeito da Teoria das Supercordas da Física Quântica, da existência da Quarta Dimensão ou Quarta Vertical, tão apregoada por visionários e místicos gnósticos. Tinha, pois, a noção assustadora das tremendas possibilidades do hiperespaço e fenômenos da antiga ciência jinas. Os relatos da carta com ares de diário falavam de certas passagens mágicas que levavam a locais tenebrosos e fantásticos demais para as hodiernas mentes prosaicas dos céticos empedernidos. Tais portas espirituais ou etéreas às vezes também podiam ser abertas com fórmulas e chaves esotéricas. Basicamente, todo o processo mágico era não apenas espiritual, metafísico e mental, mas, sobretudo, físico. Uma das passagens para o outro mundo ou o túnel astral que unia as coisas do mundo desconhecido com o nosso, dizia a carta de Gudryan, ficaria debaixo de determinada cripta num cemitério abandonado de Maremontes, perto do famigerado Pântano da Coruja Corcunda. Porém, havia outras entradas, porque a região de Maremontes estaria situada numa encruzilhada interdimensional desde prístinas eras, quando os espíritos, deuses e demônios vagavam visíveis nos plano físico. Entre a arraia-miúda ou populaça supersticiosa de Maremontes, havia comentários, à boca pequena e entre persignações, de coisas estranhas que rastejavam sibilantes perto da necrópole antiga e do pântano malcheiroso, relatos de uma colossal cobra de 28
fogo vagando também pelos campos. Era o horror em chamas, Mboitatá, a cobra de mil venenos ígneos! Não faltou quem se aventurasse a pesquisar esse suposto gênio ou elemental do fogo. Certo grupo de rosacruzes e gnósticos foram vistos perto do Pântano da Coruja Corcunda, passando pelo cemitério abandonado. Tais pesquisadores, no entanto, nunca mais foram vistos, e o desaparecimento misterioso fez surgir um burburinho entre o povo supersticioso de Maremontes. Alguns levantavam a hipótese tétrica de que os pesquisadores haviam sido engolidos pelas fauces flamejantes do horror de fogo. Todavia, acabaram-se encerrando tais buscas e investigações, já que parte do pântano era coberto por areias movediças abissais e névoas densas e espectrais, o que dificultava as procuras. Em outros trechos da carta, Gudryan asseverava ter visto e sentido coisas estranhas e inomináveis. Dizia ter sonhos horrendos, em profundos lagos de matéria onírica perturbadora. Pesadelos macabros e demoníacos, governados por algo dantesco e rastejante, feito de fogo e veneno, uma coisa de fogo chamada Mboitatá, o Horror em chamas. Nessas loucas e aterrorizantes aventuras de pesadelo, Gudryan quase sucumbira à hipótese de que esses sonhos negros seriam reminiscências assombrosas de jornadas fantásticas por golfos sombrios, em orbes situados além da fronteira que separa o nosso mundo do outro.
UM SIBILO NAS TREVAS Uma noite, Manuel Gudryan acordou assustado, suando em bicas. Passara o dia todo lendo e estudando certos alfarrábios de ocultismo e magia satânica. Lera o terrível Necronomicon, do árabe louco Abdul Alhazred, com suas páginas mofadas de um conhecimento negro; lera o Necrosophia, com sua loucura e blasfêmia escritas com o sangue de inocentes; devorou o obsceno, anacrônico e demoníaco Diário sombrio de Kolga Salba; lera o mais abominável de todos, o Chaves Proibidas dos Ignotos, do satânico yogue Camaysar Audremalon, que foi traduzido no século XX pelo poeta e aventurei29
ro de terras exóticas Júlio Leófitas, bardo errante que acabou desaparecendo nas selvas de Madagascar. Muitos outros tomos terríveis de ciências ocultas e ancestrais Manuel Gudryan lera, saturando sua mente com coisas insólitas e abomináveis. Pela vidraça viu os campos varridos pela aragem noturna e a névoa densa rodopiando como o espectro de uma bailarina pelos campos, ao luar exangue. Vez por outra lufadas súbitas e inesperadas vinham forte lá de fora, e Gudryan parecia ouvir um sibilo medonho ecoando nas trevas. Contavam as lendas indígenas que Mboitatá rastejava das chamas dos infernos invisíveis para peregrinar em busca de vítimas pelos campos do sul. O demônio de fogo rastejante exigia ritos e sacrifícios das tribos e dos caboclos degenerados em cultos negros, e os gritos de frenesi e transe das gargantas dos adoradores da serpente de fogo soando como um hino lúgubre em louvor à escuridão. Na lareira, segundo a carta de Gudryan, o fogo crepitava estranhamente. Uma estranha energia mística e diabólica parecia pairar no ar, como uma maldição milenar. Arrepiou os cabelos da nuca ao ver um estranho e inopinado vento. De onde viria aquela lufada de um frio sepulcral, se todas as janelas do recinto haviam sido fechadas? A carta contava tudo isso, e ainda hoje tenho receio em me lembrar das passagens e dos parágrafos de sombras. Resumirei, cortando os horrores maiores descritos, queimando a maldita carta e, assim como Manuel Gudryan, escreverei o meu próprio relato o qual deixarei ao advogado ou a quem interessar possa como prova de que passei por horrores sobrenaturais e não sou um louco. A carta de Gudryan contava tudo. Houve então um sibilo dentro da noite, e o sibilo aumentou, e de repente um estrondo, seguido de uma algaravia confusa, talvez numa língua indígena arcaica. Gudryan viu pela vidraça, ao longe, nos campos gélidos do sul em plena invernia, algo como um fogo veloz e serpentino vindo em direção a casa. Sentiu uma vertigem. 30
ALÉM DOS PORTAIS NEGROS DO PESADELO Manuel Gudryan parecia ter desmaiado. Algo dentro das mofadas covas de sua mente sibilava em fúria e fogo, como um jorro místico de um horror ambulante penetrando, se arrastando em sua consciência, e então algo como uma porta ou fenda se abriu, dividindo o mundo real do sobrenatural, ou mais precisamente interpenetrando-os. Sentiu-se como um sonâmbulo entre labaredas de um labirinto físico e espiritual. O medo por fim foi vencido pela curiosidade inata de Gudryan, e o seu lado cético ia morrendo aos poucos, dando lugar a uma nova mentalidade aberta aos fenômenos paranormais ou sobrenaturais. Ele penetrara numa dimensão mágica e sinistra que existia ao mesmo tempo e no mesmo lugar que a nossa. Meio alucinado, escorregava aos trambolhões num limbo de fogo vivo. Era uma viagem de pesadelo, uma jornada ultracósmica por um misterioso golfo astral ou etéreo de infinita extensão abismal. Um cair vertiginoso numa eternidade imemorial e caleidoscópica, em páramos desconhecidos e inauditos, regiões ignotas dos universos adjacentes ao nosso, onde estrelas errantes e aziagas bailavam em nebulosas ardentes e constelações negras de pura demência e contumaz maldade, nascidas do caos de mortas galáxias de perversão. Ele era como uma formiga humana num vórtice psicodélico transcendental de ultraterrenas realidades, rodopiando em ventos gélidos e nômades. A missiva prosseguia deste modo assombroso e inaudito. Gudryan tinha penetrado os domínios tétricos de uma entidade flamejante, algo como o reino de um elemental de fogo. Grossa e espectral neblina pairava e cobria toda a cidade de pesadelo: era a mesma Maremontes, mas vista de outro modo, de um prisma mais sombrio. Era como a contraparte sinistra e malévola do lugar, a contraparte astral ou diabólica daquela região do sul. Gudryan abriu a janela da ”outra” casa, e além, nos campos, vultos e o clarão do fogo serpentino. Um clarão leproso emanava da 31
lua, que cintilava como o olhar de um gigantesco demônio entronizado no alto do céu cor de cova recém-aberta. Não era mais um largo e extenso muro de alvenaria que circundava a casa. No adro, entre a igreja da cidade e o cemitério perto do pântano, uma névoa. A cidade era outra cidade, uma cópia ou simulacro da verdadeira. Era outra, mas ao mesmo tempo a mesma no espaço-tempo. Como o reflexo da lua num lago de ácido sulfúrico ou sangue fumegante, a cidade era sombria, funesta, funérea, assim como os campos, o pântano e o cemitério. Estrelas rubras pintavam o céu em tons de aquarela sanguinolenta. Ciprestes podres tinham o aspecto deformado, retorcido, assemelhados as figura de uns velhos, esquálidos e encarquilhados cadáveres redivivos numa procissão do Inferno. Manuel Gudryan jurava que estranhos e invisíveis olhos o observavam como uma cobra hipnotiza um pássaro antes de atacá-lo.
NAS CHAMAS DA LOUCURA Manuel Gudryan começou a enxergar coisas que na realidade física ele não enxergava. Era uma espécie de loucura selvagem e transcendental, e, nas chamas dessa loucura esotérica, ele tinha a consciência dos mundos. Sua visão tinha assumido proporções extraordinárias, ele agora não via apenas com os olhos físicos, mas com os olhos da mente também. Via os muitos mundos embutidos uns nos outros. Via o próprio imo de moléculas e átomos na dança cósmica coruscante da vida e da morte, um balé místico nas matérias astrais mutáveis e que turbilhonavam sempiternamente num fluxo de eternidades estupeficantes. Não estava num sonho ou pesadelo, porém mais além deles, num estado de consciência plena muito além da consciência da vigília comum. Era um estado transcendental de visão jamais 32
sonhado pelo mais louco dos poetas ou visionários, uma morte em vida, uma apoteose de caos e loucura, uma vertigem aterrorizante. Tudo isso sei porque li a carta de Gudryan. Havia um parágrafo que falava da estranha procissão de índios, caboclos e negros, reunidos num festival muito mais macabro do que um Kuarup. Gudryan falava também de como ele saiu pela porta da casa como um sonâmbulo. O proprietário asqueroso da casa, aquele senhorio torpe, abjeto e detestável, estava na procissão, sendo ele mesmo um quase índio, um mameluco degenerado. Sorria com escárnio e deboche incomuns. Um pajé ensandecido saltitava e gritava sinistramente do seu lado, dançando nu em louvor ao horror de fogo. Gudryan entrara na procissão, misturando-se à horda de fanáticos, e estremeceu ao ver que, durante a caminhada e dança, não ficavam marcas dos pés, nem dele e nem dos adoradores da cobra de fogo. Então, sempre nas sombras da noite fantástica, Gudryan viu a turba sinistra encaminhando-se para algum lugar nos recônditos dos campos do sul. Encontraram um buraco escavado na terra, e todos desceram pelos degraus feitos de crânios humanos, descendo em espiral, pelas profundezas, nos subterrâneos daquela Maremontes prodigiosa. Eles levavam archotes que emitiam uma luz bruxuleante naquela escuridão infernal. A descida pareceu interminável, mas logo todos chegaram a uma espécie de templo subterrâneo ou catacumba sinistra. Então pareceu a Gudryan que eles estavam no antro de Mboitatá. Entre duas colunas de granito esverdeado, numa espécie de altar, dançavam grotescamente sacis e curupiras sombrios. 33
Era um altar rubro aquele, recendia a sangue coagulado. Atrás, uma estranha luz de tonalidade ambarina cintilava foscamente, malignamente, como um embrião luminoso de um ser ígneo surgindo paulatinamente. Ao som de pífaros, flautas e ocarinas, um coral de vozes diabólicas entoava em uníssono um cântico macabro e profano, verdadeiro hino de pestilência e insanidade. Manuel Gudryan pôde ver aquelas silhuetas, seus vultos grotescos. Eram índios mais velhos e mal-encarados provavelmente de uma tribo esquecida, confabulando com os sacis e curupiras. Eram uns tipos altos e magros, segurando tacapes feitos de ossos humanos, pareciam fiéis fervorosos do culto da serpente de fogo. E trauteavam sons mântricos, como que a convocar forças elementais ígneas de indescritíveis poderes. Foi de modo inopinado que a luz ambarina apagou. Glacial lufada varreu o lugar, segundo as palavras de Gudryan em sua longa missiva. Então aconteceu uma coisa apavorante, e Gudryan tentou se autocensurar na carta, riscando passagens que seriam pouco críveis para uma mente sã. Censurara partes que seriam inacreditáveis demais. E agora era visível que sua caligrafia se tornava nervosa, sobretudo, esdrúxula. Então o horror atingiu seu grau máximo. A coisa veio. Foi por entre as sendas da escuridão, escreveu Gudryan, que ele viu algo que deslizava pesadamente como um rio de fogo. E o murmúrio dos índios aumentou numa só voz: ”Mboitatá! Mboitatá!” Aquilo ou aquela coisa não era do nosso mundo. Era como uma besta dantesca e rastejante nascida das cloacas purulentas e imundas, filha da cópula de elementais imundos da lama e do fogo de todas as perversões e paixões humanas acumuladas durante eras e eras desde a aurora primeva do mundo. Talvez fosse uma personificação pútrida da loucura cultivada como uma flor negra pelo mais negro dos egoísmos, um rebento cósmico ígneo da lascívia estelar de divindades tartáricas em esgotos cósmicos. Ou uma mórbida e louca fantasia de piagas de tribos mortas num sonho alucinante. 34
Era ele, o deus-demônio ou gênio do fogo Mboitatá, o horror em chamas, a cobra de fogo de mil venenos! Não rezava desde a infância, mas Gudryan caiu de joelhos e implorou a todos os deuses, inclusive Tupã, para que o livrasse daquela serpente ígnea. Então, antes de perder totalmente a consciência, Gudryan viu a fenda interdimensional se abrir, e houve então um vácuo e um silêncio mortal. Só depois ele acordaria e escreveria a carta. A missiva de Gudryan terminava com estranhas reticências, como se algo houve interrompido de súbito sua redação. Depois de refletir sobre o conteúdo da missiva de Manuel Gudryan, atirei-a no fogo da lareira. O que teria acontecido com Gudryan após terminar de escrever aquela carta? Não sei. Hoje estou aqui, preso. Mas antes, naquela noite em que terminara de ler a carta de Gudryan, algo ocorreu... O silêncio da noite foi quebrado por um sibilo e o som de algo se arrastando lá fora. Fui até a janela, algo iluminava a noite, como um grande fogo-fátuo. Fechei as cortinas. Algo se pôs a empurrar a porta, e eu via pelas frestas a luz de um fogo infernal. Gritei. Pus-me a pôr a tranca na porta, colocando uma mesa para atravancá-la ainda mais. Alguma coisa continuava pressionando a porta. Não me lembro do que aconteceu depois. Há um hiato maldito em minha memória. Sei que acordei aos berros no leito de um hospital, depois de ser encontrado pelos bombeiros a alguns metros da casa. A casa onde eu e minha família morávamos havia sido incendiada, e só restaram cinzas. Da casa e de minha mãe e irmãs. Falaram de piromania, mas eu não entendi. Eu não era nem louco e nem incendiário. Disseram que eu teria sérios problemas com os homens da lei. Então foi aqui que acabei terminando meus dias, na cadeia. Acabarei aqui estes meus escritos que deixarei sobre o catre da prisão a guisa de carta, como fez Gudryan naquela outra noite. 35
Tenho tido pesadelos horrendos com a gigantesca cobra de fogo. Mboitatá assombra meu sono. Aqui, nesta cela, enquanto aguardo o julgamento, sei que Mboitatá virá me buscar. Quando anoitece, um sibilo medonho se faz ouvir. Vem me buscar, eu sei. Vem rastejando nas sombras. Está chegando, vai me levar esta noite... Mboitatá, o Horror em chamas, a serpente de fogo dos mágicos terrores!... Oh, meu Deus, ajuda-me! Ajuda-me!...Socorr...
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ILUSTRAÇÃO BOTO COR DE ROSA
BOTO COR DE ROSA Quem já não ouviu falar que alguém é “filho do Boto”? E quantas dessas pessoas não tem pai conhecido? Sim, até hoje, em muitas regiões do Brasil, o Boto é pai de muita gente que não conhece o seu. Por isso a lenda é uma das mais famosas de Norte a Sul do país. O Boto é um homem muito bonito, atraente, sedutor, exímio dançarino e bebedor, está sempre vestido de branco com um elegante chapéu na cabeça - do qual não se separa, pois ele, na verdade, esconde o orifício da respiração do Boto - e sua função é seduzir as moças incautas para depois engravidá-las (o que a gente não sabe é se todos os filhos do Boto também se transformam em botos ou se permanecem homens). Quando o dia amanhece, o belo rapaz vira um boto, que dizem proteger os rios e as canoas durante os Temporais, conduzir os cardumes para as margens dos rios para que fiquem próximos dos remansos e praias, e acompanhar as embarcações que levam mulheres grávidas. Também conhecido como Golfinho do Amazonas, Boto-Cor-de-Rosa, Boto-Vermelho, Boto-Branco e Piraiauara, o Boto é muito popular na região amazônica e aparece especialmente nas festas juninas. É dessa região que vem a crença de que ele carrega uma espada presa ao seu cinto; e, quando é hora de voltar ao leito do rio, é possível observar que todos os seus apetrechos são, na verdade, outros seres das águas metamorfoseados. A espada é um poraquê (peixe-elétrico), o chapéu é uma arraia e o cinto e os sapatos são outros dois tipo de peixe. Também no Amazonas, acredita-se que o Boto pode assumir a forma de uma mulher, que tem cabelos até os joelhos e que faz com que os homens a sigam até o rio, quando estão os pega pela cintura e os mergulha nas águas profundas. 39
No Amazonas e no Pará, garante-se que, além do Boto, há a Bota, que se deixa possuir sexualmente pelos pescadores e seringueiros, apaixonando-se por ele e perseguindo-os sem deixá-los em paz. Aqueles que tornam-se seus amantes correm o risco de contrair uma doença chamada “uiara” ou doença de boto, que causa crises nervosas, sensação de sufocamento, convulsões e angustia. A figura do Boto, assim como a da Iara, originou-se das tradições europeias. Com ela, guarda alguma semelhança pelo fato de ser uma entidade aquática, também como o Uauiará dos índios, que engravida as mulheres ao transformar-se num mortal, e a Poronominare. O animal boto-tucuxi, boto-cinza ou boto-vermelho, possui uma propriedade diferente das dos demais: seus olhos secos servem de amuleto para atrair as moças que são difíceis de conquistar. É só olhar para a moça através do olho de um boto e pronto! Ela cairá de amores pelo rapaz! Dizem também que o tucuxi tem a característica de salvar os que estão naufragando, empurrando-os para a terra.
OUTROS NOMES: Boto-Branco, Boto-Cor-de-Rosa, Boto-Vermelho, Golfinho do Amazonas, Piraiauara, Boto-Tucuxi REGIÕES DO PAÍS: Norte (AM, PA) ORIGEM: Europeia, indígena PERSONAGENS RELACIONADAS: Cobra-Norato, Iara, Maria Caninana, Poronominare
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O encanto do boto Creatures - Shinedown
“Helena, acorda, acorda.” “Tá cedo ainda, Lu. Me deixa dormir. “Helena, deixa de preguiça. A gente tem que sair, ir no mercado, fazer tudo que a mamãe pediu. A gente não pode dar nenhum motivo pra ela mudar de ideia. A festa é hoje. Passamos um mês inteiro tentando convencer ela a deixar a gente ir.” “Tá, Lu. Falando assim eu levanto. Vai que a tia Tereza muda de ideia logo agora. Ainda nem acredito que ela nos libertou da prisão.” “Desce rápido pra tomar café e lava essa cara amarrada pra sair. Já vou me adiantando” “Tá bem, menina chata. Eu vou.” Que merda, nem passou das oito ainda. Mas vale a pena, depois de três meses é a primeira vez que a minha tia Tereza me libera do cárcere privado. Nessas horas sinto ainda mais falta dos meus pais e de São Paulo. Eu tinha uma vida quase perfeita lá. Amigos, festas, movimento. Eu vivia da forma como alguém de 16 anos deve viver. Tudo até o acidente. Até os meus pais morrerem. Só sobrou a minha tia para ficar comigo. Ninguém me ouviu quando eu disse que já podia me virar sozinha em São Paulo, morando na minha casa e seguindo a minha vida. Vim parar em Altamira, no interior do Pará. Não tem nada aqui e o pouco que tem a minha tia super protetora não deixa aproveitar, por mais que eu implore. Hora de levantar. A cara no espelho não é das melhores. Odeio acordar cedo. Olheiras, rosto inchado, além do péssimo humor que tenho ao dormir pouco. Hoje preciso passar por tudo isso. Eu e minha prima, Luciana, passamos semanas pedindo para ir a uma festa em um clube da cidade. Tomo uma ducha rápida, me visto e desço correndo para tomar café. Minha tia já está ocupada com seus afazeres diários, adiantando o almoço junto à bancada da cozinha. 42
“Bom dia, tia.” “Bom dia, querida. Bom te ver sorrindo a essa hora da manhã.” “O dia hoje está lindo, deu até vontade de acordar cedo.” “Até parece que eu nunca fui adolescente. Sei bem que vocês duas estão assim pela tal festa.” “Nossa, mãe. Estou me sentindo a pessoa mais interesseira do mundo agora.” “Mas é o que vocês duas são. Só não reclamo porque estou me aproveitando muito bem da disposição de vocês. Andem logo pra ir ao mercado, as melhores frutas e legumes saem logo cedo. Daqui a pouco não vai ter nada de bom pra vocês trazerem pra mim.” “Tá bem, estamos indo, senhora ditadora.” Disse eu entre risadas compartilhadas entre nós três. Apesar das nossas diferenças, era difícil não gostar da minha tia. Ela era uma mulher incrível. Cuidou dos meus avós até a morte dos dois, foi mãe solteira e criou minha prima com um amor imenso. Ela mantinha os negócios da família no ramo de exportação de produtos agrícolas locais com mão de ferro. Ela era uma mulher forte. Só nos prendia muito. Tínhamos uma vida muito confortável para os padrões locais, tínhamos um motorista por nossa conta e alguns empregados na casa relativamente grande que um dia foi dos meus avós. Erámos prisioneiras de luxo. “Luís, vamos rápido ao mercado e depois temos que dar uma passadinha rápida em umas lojinhas pra comprar umas coisinhas pra gente, tá?!” “Dona Luciana, sua mãe não gosta que vocês fiquem rodando pela cidade. Nosso motorista morria de medo da minha tia.” 43
“Ah, Luís! É uma passadinha rápida. Precisamos comprar umas coisinhas pra festa de hoje. Só umas roupinhas e maquiagens. Vai ser um segredinho nosso, por favor.” “Tá bem.” Estava tudo indo como queríamos. Minha prima, um ano mais jovem que eu, conseguia estar ainda mais empolgada que eu para sair. “Ótimo, Lu. Tudo correndo como esperávamos.” “Meninas, comportem-se! Me liguem se algo acontecer e não passem das duas ou eu vou lá buscar vocês.” “Tá bem, tia. Prometo cuidar direitinho da Lu e voltar cedinho.” “Se cuidem, por favor.” “Fica tranquila, tia. Eu sempre saia em São Paulo. Sei me cuidar, tá? Até logo.” Minha tia parecia estar perdendo nós duas. Ela se preocupava muito. Isso passa. Empurrei esses pensamentos para longe. Hoje era dia de festa. “Vamos, Lu. Vamos curtir nossa noite de liberdade.” A tal festa estava longe de ser uma balada paulista, mas era o que tínhamos. Era uma festa com temática dos anos 90. Tocavam músicas que cansei de ouvir em casa com os meus pais. Me deu saudade deles. Não haviam muitos caras interessantes para se olhar, então me concentrei em dançar e curtir com minha prima. Ela parecia nas nuvens. Acho que se sentia mais presa do que eu no fim das contas. Pontualmente aparecia um carinha tentando puxar papo, eu até tentava dar atenção, mas todos eles pareciam meio bobos 44
para mim. Um desses acabou conseguindo a atenção da minha prima. Eu estava sozinha naquela festa meio estranha. Fui ao bar. Pedi uma cerveja e o barman nem ligou se eu era menor ou não, como sempre. Sentei no balcão. Tocava Iris, do Goo Goo Dols. A música tema do filme Cidade dos Anjos. O filme dos meus pais. A saudade bateu muito forte. “Tudo bem, moça?” Perguntou uma voz masculina às minhas costas. “Tá sim. Só me senti um pouco cansada. O cara se sentou ao meu lado e pediu uma cerveja.” “Senti um certo ar de tristeza em você.” A voz dele era doce mesmo por sobre a música alta. Só então eu olhei. Ele era lindo. Moreno, de altura mediana, olhos esverdeados, ombros fortes. Me olhava nos olhos. Senti que estava ficando vermelha. “Não, tá tudo bem mesmo. Essa música me dá saudade de casa. Só isso.” Como assim, de onde eu fui tirar a ideia de falar disso com esse estranho? “Ah! Notei que você não era mesmo daqui. Eu teria lembrado de você. Se importa se eu ficar aqui?” “Não, tudo bem. Minha prima sumiu mesmo. Vai ser bom ter com quem conversar.” “O povo daqui parece chato pra você também?” “Tá tão na minha cara assim?” “Um pouco, mas me sinto deslocado aqui também. Parecem todos um pouco vazios e bobos pra mim. Não chamam a minha atenção.” “Obrigada. Bom saber que não chamo a sua atenção.” 45
“Eu disse que percebi logo que você não era daqui. Você é diferente de tudo que eu vejo aqui. Você tem alguma coisa que me atrai.” Por algum motivo o jeito como aquele estranho me olhava e falava comigo era confortável. Ele mexia comigo. Eu sabia que ele estava se insinuando para mim, mas eu gostava do jeito dele. Estava gostando da atenção, estava me sentindo afim dele. Por que não? “Sabe de uma coisa, me deu vontade de dançar. Quer vir comigo?” Peguei aquele cara pela mão e arrastei ele comigo para a pista. Nem me lembro o que estava tocando. Não lembro o quanto mais falamos no ouvido um do outro e em que momento ele começou a me beijar. Eu fui me deixando levar. Ele tinha um gosto bom. Me fazia sentir leve, sem peso nenhum. Não vi o tempo passar, até minha prima bater no meu ombro e dizer que tínhamos que ir embora. Eu queria seguir minha noite com ele, estava com vontade, com muito desejo. Do beijo, da leveza que ele me dava. Estava com desejo daqueles olhos verdes me olhando e das mãos dele me tocando. Não queria que acabasse. Minha prima me arrancou daqueles pensamentos. “Helena, a gente tem que ir. Já são quatro da manhã. A minha mãe vai matar a gente.” “Merda. Sério que a gente perdeu a hora assim? Como foi que eu perdi a noção do tempo desse jeito?” “Eu preciso ir e nem sei o seu nome.” Ele me levou até o bar e pediu um pedaço de papel e uma caneta pro barman. No guardanapo ele escreveu umas linhas com uma letra bonita e me entregou. “Eu só vou dizer o meu nome se você me encontrar no lu46
gar que eu anotei aí.” “Não sei se vou conseguir te encontrar. Me fala o seu nome, assim te encontro no instagram, me passa o seu telefone e a gente se fala.” “Nada disso, me encontra lá.” Dito isso ele me deu um beijo que me deixou sem ar e foi embora sem nem olhar para trás. Minha tia estava com uma cara horrível quando chegamos, mas nos deixou ir dormir sem brigas. Era mais do que eu esperava. Já no quarto, depois de uma ducha, eu ainda sentia o corpo daquele cara contra o meu e o gosto do beijo dele. Abri o guardanapo, ele anotou uma data e um lugar. Era na sexta-feira seguinte. Em um barzinho na orla do cais da cidade. Eu não sei como, mas eu iria àquele encontro... Os dias correram mais ou menos tranquilos. Minha tia realmente ficou brava pelo atraso, mas parecia feliz por voltarmos inteiras e com sorrisos no rosto. No fim das contas ela até parecia disposta a nos deixar sair novamente. Eu tinha uma chance. Junto com minha prima inventamos um programa com os amigos dela de colégio bem na orla. Ela realmente convidou um monte de gente. Não me importava, era só uma cortina de fumaça para mim. Quanto mais realista melhores chances eu teria de escapar. A sexta-feira chegou com muita empolgação. Eu me vesti para encontrar com o tal cara como nunca havia feito por ninguém. Nem sabia o porquê, mas estava louca para rever ele. Ele me esperava na porta do barzinho. Não sei como, mas ele parecia ainda mais lindo. Entramos e nos sentamos em uma mesa sob uma das janelas que dava para o cais. Eu sentia uma vontade incontrolável de beijar ele. Ele pediu bebidas para dois e algum prato para o qual eu 47
mal olhei. Eu queria ele, desesperadamente. “Me leva pra outro lugar.” Eu disse, impulsivamente. “Tem certeza? Você nem comeu.” “Sim, eu tenho. A gente nem tem muito tempo hoje, minha tia me espera cedo em casa. Só me leva pra outro lugar pra eu ficar só com você.” O que estava acontecendo comigo? Eu queria aquele cara de uma forma incontrolável. Mal conhecia ele e estava deixando todas as noções de autopreservação de lado. Eu só sentia uma vontade maluca de estar com ele a qualquer custo. Ele saiu comigo pela orla e me levou para um ancoradouro, direto para uma lancha muito bonita. Ele andava confiante, sabia para onde estava indo. Passou por um vigia, pediu as chaves da lancha e subimos. Eu não senti nenhuma vontade de perguntar para onde ele estava me levando. Me deixei ser conduzida. Aportamos em uma ilha no meio do rio. Havia uma trilha iluminada. Me sentia em transe, seguindo-o sem questionar. Seguimos então para uma clareira no meio da mata, cercada por tochas e com uma cama no meio. Ele me agarrou e beijou sem gentileza alguma, tirando minha roupa. Pela primeira vez eu desejei relutar, mas meu corpo não respondia. Ele se despiu e me despiu em seguida. Me beijando e me tocando sem nenhuma ternura. Só impulso. Minha mente só levemente lúcida sentia medo, meu corpo aceitava. Fui jogada na cama. Ele penetrou meu corpo sem nenhum amor. Foi então que eu o vi de verdade pela primeira vez. Seus dentes pequenos, as narinas entre os olhos pretos, o nariz longo e a pele lisa e úmida contra a minha. Aquele ser demoníaco tomava meu corpo sem nenhum carinho. Prendia meus braços com as suas mãos enquanto me violava. Haviam pessoas na clareira. Eles se aproximaram, me for48
çaram a beber uma água barrenta em um copo de madeira. Água do rio. Cantando em um transe. Eu apaguei. Acordei na minha cama no dia seguinte. Meu corpo doía. Talvez tenha sido só um sonho ruim. Então vi as marcas no pulso. Senti a dor entre as minhas pernas. Eu não havia sonhado. Encontrei com minha tia na cozinha. Morrendo de medo eu contei tudo para ela. Ela ouviu sem me interromper. “Aconteceu novamente.” Disse minha tia, ao fim. “Como assim, tia?” “O demônio do boto também plantou uma semente dele na sua mãe. Por isso ela foi embora pra São Paulo e nunca voltou, pra ficar longe do rio e do poder dele. Seu pai aceitou e a salvou. Ela pariu a cria do demônio lá. Seu pai o matou e queimou. Foi um erro você ter vindo pra cá. Ele veio cobrar o sangue com sangue. Agora tem uma semente dele em você.” “Como assim, tia?” Eu disse entre lágrimas. “Eu não sei o que fazer, me ajuda, por favor.” “Vamos embora agora. Sua mãe conseguiu fugir. Vamos fazer o mesmo.” Ouvimos então um grito vindo da sala. Minha prima estava caída, com o pescoço rasgado. Luís, nosso motorista, segurava uma faca em uma das mãos e um balde na outra. Atrás dele vinha o demônio na forma de homem. O boto. “Não dessa vez. Dessa vez minha cria nascerá. Eu e meus seguidores vamos garantir isso.” Luís então avançou sobre a minha tia e o boto sobre mim. Entrei naquele transe. Vi minha tia sendo afogada no balde, se debatendo, morrendo aos poucos. O boto dizia no meu ouvido: “Seu sangue e sua vida são do rio agora. Você pertence a 49
mim.” Algo dentro de mim se movia. Eu carregava um filho daquele demônio e não podia fazer nada a respeito. Eu daria à luz ao filho do boto. Eu seria a mãe de um demônio.
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ILUSTRAÇÃO CUCA
CUCA Cuidado com a Cuca Que a Cuca te pega E pega daqui E pega de lá. [...] A Cuca é malvada E se fica irritada A Cuca zangada Cuidado com ela Cuidado com a Cuca Que a Cuca te pega A Cuca é danada Ela vai te pegar.
Quem foi criança nos anos 1970 deve se lembrar desse tema da Cuca do Sítio do Picapau Amarelo, composto por Dori Caymmi e Geraldo Casé, exibido pela TV Globo. Foi nessa época que a literatura de Monteiro Lobato, transposta para a TV, encantou as crianças com suas personagens brasileiríssimas e também com os nossos mitos mais queridos, como a Cuca e o Saci-Pererê. Quando ela aparecia, lá vinha a canção de fundo, e a criançada já se preparava para acompanhar a aventura em que as personagens do sítio iriam enfrentar as maldades da bruxa!... Sim, a Cuca é a bruxa mais brasileira que existe. Presente 53
nas cantigas de ninar...
Dorme nenê Que a Cuca vem pegá Papai foi pra roça E mamãe foi trabalhá...
... E no imaginário de qualquer menino ou menina que não quer dormir, ela é descrita como um ente velho, feio, todo desgrenhado, que aparece de noite para levar consigo as crianças inquietas e insones. Outros a descrevem como uma velha com a cabeça de jacaré - assim era a Cuca do Sítio do Picapau Amarelo -, com uma voz estridente, que só aparece de noite, que anda em cima dos telhados das casas e que entra pelos buracos das fechaduras ou pelos vãos das portas, levando as crianças num saco. Dizem que ela nunca dorme, isso ocorre apenas uma vez a cada sete anos. E que a tortura maior para Cuca é ter um pingo d’agua caindo intermitentemente sobre sua cabeça (em Monteiro Lobato é bem comum se ouvir isso como a maior ameaça á bruxa velha). Como ela é bruxa, se apresenta fisicamente de acordo com as versões das histórias clássicas de bruxas: às vezes como uma coruja, ou uma borboleta negra, ou mesmo uma aranha. No folclore brasileiro, as bruxas são sempre as sétimas filhas de um casal que só teve filhas mulheres (o que também lembra o mito da Cumacanga), e essa moça só escapará de seu destino se sua irmã mais velha for sua madrinha. Por isso, crianças de até sete anos que ainda não foram batizadas são os alvos prediletos das bruxas, que adoram sugar o sangue delas, especialmente se for na Sexta-Feira da Paixão. Para se livrar das feiticeiras, recomenda-se colocar uma tesoura aberta embaixo da cama, espalhar facas pela casa e também salpicar sal em 54
todos os cantos ou ainda esconder uma vassoura atrás da porta. E isso, é claro, vale para espantar a Cuca também! Acredita-se que a nossa Cuca tenha sido influenciada pela Coca de Portugal, onde ela é parente do Bicho-Papão, do Homem do Saco e de outras entidades que assombram e carregam as crianças, como o Tibungue. Lá ela assume a forma de um dragão e São Jorge a ataca com sua lança. Em algumas regiões da Espanha, ela também é Coca, uma serpente de papelão, com patas de grilo, cauda de serpente e um par de asas, que sai todos os anos na procissão do dia de Corpus Christi (festa religiosa católica). A Coca e a Cuca tanto são parecidas que em Minas Gerais a Cuca chama-se Coca, como ilustra uma cantiga muito popular naquelas bandas:
Vai-te, Coca, sai daqui Pra cima do telhado Deixa dormir o menino O seu sonho sossegado.
Em Pernambuco, Cuca representa uma mulher velha e feia, um tipo de feiticeira, também conhecida como Quecuca, Ticuca ou Rolo de Mato. E em tupi-guarani a palavra cuca significa “trago”, “ato de engolir”, de onde vem a ideia de voracidade característica dessa bruxa brasileira.
OUTROS NOMES: Coca, Quecuca, Rolo de Mato, Ticuca 55
REGIÕES DO PAÍS: Todas ORIGEM: Universal PERSONAGENS RELACIONADAS: Bicho-Papão, Cumacanga, Homem do Saco, Quibungo, Saci-Pererê, Tibungue, Tutu
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ร s margens do horror Silfur-Refur - Sรณlstafir
Havia um pequeno vilarejo de pescadores isolado às margens do Rio Esmeralda. Cercado por uma densa floresta tropical, o vilarejo se limitava a um número pequeno de casas de sapê que margeavam o rio. Seus moradores se formavam de uma mescla de descendentes de indígenas que migraram de grupos que habitavam em tribos espalhadas pelo interior da floresta e homens brancos que formaram aquele vilarejo. Devido aos acontecimentos macabros que trouxeram à tona o medo sobre uma lenda milenar que aterrorizava essas tribos, muitos fugiram na esperança de se afastar das zonas próximas as cavernas, onde contavam existir uma poderosa feiticeira com cabeça de jacaré, que dormia apenas uma vez a cada sete anos e raptava crianças durante a escuridão da noite. Com o desaparecimento de crianças nas aldeias, muitos fugiram com seus filhos para longe das zonas onde haviam as cavernas, pois segundo as histórias contadas pelos mais antigos, era no interior dessas cavernas que a bruxa habitava, preparando feitiços e poções em seu caldeirão de horrores inimagináveis. Alguns indígenas que haviam fugido do interior da floresta, encontraram o vilarejo dos homens brancos que haviam fixado seu território naquele lugar. Ali compartilharam seus dons, índios com sua sabedoria sobre a caça, a terra e as ervas, e os homens brancos especialistas na pesca, acolheram aquele povo e os fizeram parte do seu. Os homens brancos contavam sobre como haviam chegado naquelas terras. Explorando territórios, por diferentes motivos, alguns acabaram descartados por seus superiores, amarrados em árvores e deixados para trás. Pelo instinto de sobrevivência, os homens que não sucumbiram, sabendo que seria mortal tentar voltar através da extensa floresta, aprenderam a sobreviver nas adversidades daquele lugar, tornando as margens inóspitas do Rio Esmeralda seu novo lar. A tonalidade esverdeada que deu o nome ao Rio Esmeralda estava enegrecida naquela noite. Nas águas escuras a lua crescente refletia seu brilho, formando um rastro prateado que cintilava sobre 58
a superfície ondulante que a brisa noturna agitava. Um grito estridente anunciava o tempo de um novo horror que aprisionaria as pessoas daquele vilarejo em seus medos mais terríveis. Na porta de uma das pequenas casas de sapê, uma mancha vermelha borrava a terra. O rastro de sangue rubro se espalhava fazendo uma trilha que descia o barranco até o rio. A terra mexida, empapada em sangue, levava uma mãe em desespero a procurar seu pequeno filho que fora arrancado do local onde brincava. O caminho aberto, feito pelo corpo do menino que fora supostamente arrastado, cintilava o sangue na luz do luar, guiando os passos trôpegos da mãe que rumava às cegas para a encosta do Rio Esmeralda. Ajoelhada no topo da ribanceira parcialmente desmoronada, o profundo pranto de angústia daquela mulher despencava em lágrimas que desciam feito cascata encontrando as águas turvas do rio. Suas mãos trêmulas remexiam a terra ensanguentada enquanto suas lágrimas continuavam a gotejar amargura contínua, misturadas com terra, sangue e dor, a dor interna que era expressada nos desenhos angustiantes riscados pelos dedos que remexiam a mistura densa de sentimentos destroçados. Amparada por outros moradores do vilarejo, a mulher se ergue, apoiada em profunda tristeza. A noite ruidosa por sons de animais noturnos trazia de volta o assombro das antigas lendas sobre a velha feiticeira que raptava as crianças desobedientes. Naquela noite, tudo se cobria com um manto negro de assombro e horror que refletia nos olhos aflitos dos moradores do vilarejo. Na manhã seguinte o sol despontou sobre as copas das árvores borrando o céu com uma coloração avermelhada. Parecia que os resquícios da noite passada se retratavam ali, naquele vermelho que tingia nuvens e fazia lembrar os terrores noturnos. A mãe que perdera o filho, debruçada na janela, mantinha os olhos parados no rio, buscando consolo em algo desconhecido, alguma coisa que pudesse trazer-lhe respostas ou ao menos acalentar seu coração em desespero. Os dias não eram mais os mesmos, pois o domínio do 59
medo rondava o lugar. Os homens desciam o rio com seus pequenos barcos, as mulheres pensavam em algo que pudesse livrar seus filhos deste mal que parecia reviver. Sete luas se passaram e o medo teve que ceder espaço para as festividades de Tapiburã, um evento anual em que os aldeões festejavam em nome de uma criatura mítica pedindo-lhe fartura. Caso não celebrassem as festividades de Tapiburã no equinócio de primavera, uma onda de miséria assolaria o território e no Rio Esmeralda não se encontraria mais peixes. Por este motivo, bandejas de peixes e frutas eram ornadas com folhas e flores para ofertar à Tapiburã, senhor da pesca abundante e da fartura. As tochas cravadas na terra tremeluziam o fogo vivo que queimava e inflamava a escuridão da noite. Havia tambores e cantoria, bandejas em folhas de bananeira espalhadas em toda parte. O vilarejo estava enfeitado pelas luzes das tochas e as lindas flores de vários tons que se espalhavam pelo espaço aberto onde a festividade era celebrada. Tudo era preparado de acordo como todos os anos, no período de lua cheia, com música e oferendas. Naquela noite em especial, uma força invisível parecia pairar sobre o vilarejo. Os mais velhos, sentados em suas cadeiras de palha, podiam sentir na brisa o suave sopro agourento que flutuava sobre todos ali. Em meio aos cânticos e tambores um grito rasga a noite, vindo da encosta do rio. Um dos moradores havia ido buscar água com o filho, uma criança de cinco anos que insistiu em acompanhar o pai para encher o jarro de barro. Quando o homem se deu conta, a criatura já havia emergido do rio com sua gigantesca boca escancarada e repleta de dentes pontiagudos. Abocanhou o ombro e parte do tórax no menino, puxando a criança para dentro do rio. O pai, após soltar o grito de desespero, saltou na direção da criatura em socorro do filho. Num movimento brusco com a cabeça, a criatura joga a criança dentro d’água e abocanha o braço do homem que tenta se defender como pode, mas tem o membro amputado e se afasta sentindo extrema dor. A criatura ergue a cabeça engolindo 60
o braço que acabara de arrancar, em seguida torna a abocanhar o menino que se debatia nas águas rasas, carregando seu corpo preso entre as mandíbulas de volta para o fundo do rio. O homem se arrasta barranco acima, desnorteado em seu desespero. O pedaço que lhe restou do braço está terrivelmente dilacerado, com sua extremidade ornada por pedaços de pele e carne regada a sangue. Finalmente deitado na terra, o pai do menino urra como um animal ferido enquanto é consumido por sua excruciante dor. Enquanto alguns habitantes do vilarejo se aproximam para prestar socorro, após ouvirem por entre a cantoria os gritos cortantes daquele homem, como pai que acaba de perder o filho, ele apenas encara o céu negro sobre seus olhos. Sua mente recria a cena de horror recém vivida. Aquele monstro de pele rígida e dentes afiados não era apenas um jacaré enorme, ia além disso. Os olhos da criatura queimavam feito fogo. O animal estava visivelmente controlado por uma força demoníaca. Se sobreviver a hemorragia, aquele homem nunca esquecerá da noite em que olhou nos olhos do demônio encarnado no corpo de um jacaré. Enquanto um pescador tenta estancar o sangue do terrível ferimento, o homem relembra que as lendas podem ser mais reais do que se imagina e em sua mente completamente naufragada em dor e escuridão, aquele homem via, por entre uma fumaça cinzenta, uma feiticeira com corpo de mulher e cabeça de jacaré, remexendo em seu caldeirão memórias sombrias em forma de pesadelo.
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ILUSTRAÇÃO CURUPIRA
CURUPIRA A essência do Curupira é ser protetor das matas e da caça, o demônio da floresta, responsável pelos barulhos misteriosos que ali se ouvem, pelos medos que as pessoas sentem ao passarem por ela, pelo desaparecimento dos caçadores, pelo esquecimento dos caminhos. Esperto, ele engana todos os que caçam e faz com que se percam na floresta. Faz acordos com eles e oferece-lhes armas que nunca falham em troca de comidas, bebidas e outros presentes. Há muitas controvérsias a respeito de sua aparência e sua diabruras, mas de quem ele é não se tem muitas dúvidas! Em Maio de 1560, na carta conhecida como Descrição das coisas naturais da Capitania de São Vicente, o Padre José de Anchieta assim escreveu sobre o Curupira:
É coisa sabida e pela boca de todos corre que há certos demônios, a que os Brasis chamam corupira, que acometem aos índios muitas vezes no mato, dão-lhe açoites, machucam-nos e matam-nos. São testemunhas disto os nossos irmãos, que viram algumas vezes os mortos por eles. Por isso, costumam os índios deixar em certo caminho, que por ásperas montanha, quando por cá passam, penas de aves, abanadores, flechas e outras coisas semelhantes como uma espécie de oblação, rogando fervorosamente aos curupiras que não lhes façam mal.
Mais conhecido como Curupira (em nheengatu, língua indígena derivada da família tupi-guarani, curumi significa “menino” e pira, “corpo”, ou seja, “corpo de menino”), ele também é chamado de Currupira, Gurupira, Corubira, Matuiú, Caiçara e, em alguns casos, é confundido com a Caipora e com o Zumbi. Dizem que é casado 64
com Caci, considerada a Mãe da Mara, e é pai de Pitanga, de Acauã - que enlouquece as mulheres com seu canto de mau agouro e faz os homens chocarem pedras como se fossem galinhas pondo ovos -, de Matintapereira - aquele que anda nas encruzilhadas pedindo fumo para pitar - e do Uirapuru - o pássaro do canto maravilhoso. Tal como muitas das personagens do nosso folclore, sua aparência desperta discussões acaloradas. Do que ninguém tem dúvida é de seus pés virados para trás. Em boa parte do Brasil, o Curupira aparece como um menino de corpo peludo, com um olho só no meio da testa e um nariz bem pontudo. Em outros lugares, ele é um ente que não possui nenhum orifício no corpo e tem dentes verdes (há quem afirme que são azuis!). Em algumas regiões, ele aparece careca, sem articulações nas pernas e com orelhas enormes. Musculosos, dotado de muita força, também é visto como alguém que suga sangue dos andantes do mato. Contam que o Curupira anda sempre ao lado da companheira, em casal, e que aparece quase sempre de repente para desorientar os caçadores, escondendo-se depois para ficar rindo do desespero deles. Como tem os pés virados para trás, deixa qualquer um confuso se tentar segui-lo, fazendo as pessoas procurá-lo exatamente na direção contrária à que tomou. Mora nos buracos ou nas partes ocas dos troncos das árvores. O Curupira mostra e depois esconde a caça, e não permite a captura de bichos recém-nascidos, muito novinhos ou prenhes. Ai de quem matar “por gosto” e sem necessidade; O curupira torna-se um inimigo implacável desse tipo de caçador! Dizem que ele próprio se transforma na caça, e que, assim, o caçador jamais pode alcançá-lo, mesmo que ele nunca saia de seu campo de visão. O Curupira deixa-se levar para longe do caminho e então o caçador fica ali, perdido, sem nunca achar a saída. Outro castigo é fazer a flecha ou a arma do caçador correr atrás dele mesmo, matando-o na hora. Ou transformar os amigos ou familiares do caçador na própria caça, e o homem, quando vai ver quem ou o que matou, encontra os próprios parentes queridos! 65
Ele também pode atacar o caçador e bater muito nele, uma surra tão grande que a vítima se esquece até de quem é e fica maluca. O Curupira assobia alto e de forma estridente e anda montado num porco-do-mato, guiando as manadas desses bichos. Também é muito amigo dos cachorros selvagens. Antes das grandes tempestades e trovoadas, ouve-se, nas matas, uma batida nos troncos das árvores. É o Curupira que “testa” cada uma delas, e também as raízes das samaumeiras, para ver se conseguirão resistir às intempéries. Ao ouvirem esses barulhos, os caçadores devem ficar atentos e se proteger do que vem por aí! Há quem diga que o Curupira faz isso só para confundir mais ainda os andarilhos das matas… E o que fazer quando se está sendo perseguido pelo espero Curupira? Largar pelo caminho muitos cipós trançados pode ser uma solução. O menino dos pés virados vai parar para tentar desmanchar os nós dos cipós, e, com isso, a pessoa ganha tempo para fugir de sua vista. Se não tiver cipós, vale deixar cruzes de madeira, que ele também vai tentar desmanchar. Vejam só um trecho do poema intitulado “O Curupira”, escrito em 1861 pelo maranhense Antônio Marques Rodrigues:
O Curupira
De dia não busca a estrada O guerreiro Curupira, Porque dorme a sono solto À sombra da sucupira.
Mas de noite, quando a lua 66
Prateia as águas da fonte, E a fresca brisa sussurra, Ei-lo que surge do monte.
Montados numa queixada, Rompe do bosque a espessura; Da onça não teme as garras Tendo três palmos de altura!
Da jandaia a verde pluma Na fronte reluz, ondeia; O arco, as pequenas flechas, Garboso nas mãos maneia.
Assim anda, pula, e corre De noite pelas estradas, E após si em tropel marcha Uma vara de queixadas.
O grunhido, o som dos passos O trilhar dos rijas dentes, Quebranta a mudez da selva, 67
Acorda os pobres viventes.
Pula aterrado o macaco, Verga a folha das palmeiras; Sai a cotia da toca, Foge do maro às careiras.
Quando encontra o Curupira No caminho um viandante, Para depressa, e atrevido Opõe-se a que marche avantes.
Irado, solta do peito Agudo silvo estridente, E logo em volta se ajunta A sua guerreira gente.
Os olhos tornam-se brasas, Põem-se em ordem de batalha; A queixada amola os dentes, Que ferem como navalha.
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Ai! do pobre caminhante, Se o temor o tem tomado; Perde a fala, fica escravo, Sendo em porco transformado!
Mas, se investe os inimigos, E de nada se apavora, De repente o Curupira Pelo valor se enamora!
De peleja cede o campo, E reparte o seu tesouro: Ricas pedras de brilhantes, Rubins, esmeralda e ouro!
O povo Bakairi, do Mato Grosso, diz que há um duende tão danado quanto o Curupira, a Caipora e o Saci-Pererê. É o Kilaino. Esse ser mora no mato ou no morro e assume a forma que quiser. Come ratos e pássaros e grita muito para desviar do caminho quem anda no mato. Se alguém grita no meio da floresta, ele responde e deixa a pessoa com muito medo. Também esconde a água que existe na região com muito medo. Também esconde a água que existe na região, as caças mortas e as setas que são atiradas pelos índios. O Kilaino faz ainda com que as pessoas derrubem de suas mãos o que estão segurando e outras traquinices que deixam qualquer um maluco! Outro aparentado do Curupira é o Motucu, que também recebe o nome de Demônio dos Pés Virados. 69
OUTROS NOMES: Caiçara, Corubira, Currupira, Gurupira, Korupira, Matuiú REGIÕES DO PAÍS: Todas ORIGEM: Indígena PERSONAGENS RELACIONADAS: Caipora, Canhambora, Guajara, Guariba, Jaci, Mãe da Mata, Mapinguari, Matintapereira, Motucu, Saci-Pererê, Tibarané, Uaiuara, Uirapuru, Zumbi
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10 - S82 Dark Side - Bishop Briggs
A estrada é longa e sinuosa, densa por conta do matagal ao redor que arranha o vidro e faz meu pulso acelerar. O verde das folhas parece preto devido a neblina dentro do carro. O fumo queima há mais de meia hora e apenas a ponta alaranjada aparenta ter destaque. Me sinto um pouco desorientada devido ao álcool, e o chacoalhar do carro na estrada de terra me deixa ainda mais enjoada. Giro a maçaneta e abaixo um pouco o vidro, o ar gelado me atinge com força, assoprando meus cabelos para trás. A fumaça começa a se dissipar, e os vidros começam a ganhar forma novamente. Permito-me tomar uma grande quantidade de ar antes de fitar Tobias. Seus olhos permanecem na estrada enquanto o fumo continua queimando. Meus olhos ardem e minha garganta parece seca como lixas se tocando. Arrisco um diálogo, após o que parece um ano. “ Eu não gosto deste lugar” meu riso sai trêmulo, e minha fachada de garota descolada não parece tão verdadeira agora. “Tem... rumores sobre o que acontece por essas matas” prossigo, sentindo minha garganta se fechando. Ele sorri, perfeitos dentes claros e caninos desenhados. Fiquei encantada ao vê-lo me dar atenção no bar, o cabelo ruivo e cheio de redemoinhos cacheados me encantaram logo de cara. Sem que eu percebesse sua barba por fazer já estava arranhando meu pescoço e logo estávamos no carro, prontos para fazer sexo em qualquer lugar que encontrássemos. Isso foi há quase meia hora atrás, muitos, muitos quilômetros atrás. “Relaxa, são apenas rumores” ele me encara, olhos negros como a noite atrás da janela dele. Sinto um arrepio percorrer meu corpo, algo em seu jeito calmo não me passa segurança e o desejo foi substituído há muito pelo medo. “Ou vai dizer que está com medo do Curupira?” ele gargalha e me lança um olhar de esguelha. “O quê? Não!” praticamente arfo, tentando fazê-lo acreditar o contrário. Querer não demonstrar medo parece fazer eu demonstrar mais medo. “É que sabe, estamos longe e...” 72
“Shhh...” ele põe o dedo na minha boca e o carro para momentaneamente. “Aqui ninguém vai nos escutar.” “Não é uma boa ideia” digo, mantendo minha mão no lacre do cinto de segurança. “Eu vou primeiro, para provar que não há nada aqui” sussurra após roubar um beijo. Tento protestar, mas ele já saiu. Acena para mim e o farol amarelado o ilumina, logo o vejo retirar as calças e ficar apenas de blusa e cueca. Saio do carro, arrependendo-me a cada instante. Paro em frente a ele, quase que imediatamente suas mãos grudam na minha cintura e puxam meu vestido pela cabeça. O vento gelado faz meus pelos se eriçarem. Apenas a calcinha e o sutiã preto me mantém vestida. Ele me deita em cima do capô do carro e sinto-o me cobrir, beijando-me fervorosamente. Deixo que o êxtase me invada novamente, que suas mãos percorram meu corpo e me digam que alguém me deseja apesar de todas as minhas imperfeições. De todos os caras, ele me desejou. Esqueço-me do mundo ao redor e a chama do prazer me invade. Suas mãos alcançam meus tornozelos e... Meu grito é tão alto que me assusto. Meu pé está virado em um ângulo estranho, mais pelas mãos dele do que por si só. Chuto-o instintivamente, fazendo-o tropeçar em suas próprias pernas. Salto do capô e bato com força no chão, minhas mãos e rosto recebendo o impacto. Ergo-me, correndo para o matagal, meu tornozelo lançando pontadas fortes a cada passo. Faço tanto barulho que pássaros alçam voo e tornam a noite menos silenciosa. Desvio de uma árvore no meio do caminho e suas raízes acertam meu tornozelo torcido, meus braços se agarram ao tronco, mas eu deslizo e bato com força na raiz dura. Minhas costelas queimam e minha coluna estrala. Desajeitada, me escondo, pondo a mão na boca para controlar minha respiração ofegante. Sinto-me zonza, meu coração palpita e me sinto prestes a desmaiar. O cheiro de álcool parece sair pelos poros junto com meu 73
suor, e folhas escorrem pelo meu cabelo, junto com o que aparenta ser sangue. “Eu sei que está aqui” Tobias grita. O mato se quebrando faz com que eu não tenha coragem de partir para lugar nenhum, seu barulho me confunde e seu assovio na noite escura me causa ainda mais arrepios. “Vou encontrar você!” Rastejo para longe da árvore e vejo o momento que ele encontra a raiz também, quase caindo. Permaneço de quatro, andando no meio do mato longe do campo de visão dele. Não tenho escolha senão ignorar a repulsa e o medo de animais peçonhentos e seguir em frente. O mato alto e as árvores próximas também o escondem de mim, mas é o farfalhar das folhas que entregam a posição dele, assim como a minha. Esqueço qualquer sinal de resguardo que minha mente lança, meu corpo quer correr e fugir dali. Afundo na lama de um córrego que cruza um dos pontos a minha frente. O cheiro faz minhas narinas dilatarem e o calor com o suor atraem ainda mais mosquitos. Meu tornozelo ferido me derruba, a dor é tão lancinante ao mover a perna que não consigo me segurar. O barulho é alto e a água lamacenta esguicha ao redor. Não consigo evitar o agouro quando as mãos de Tobias me puxam novamente, meu cabelo atado aos seus dedos. “Sua vadia” ele grita, algo pontudo destacando-se prateada em sua outra mão. Ergo um braço para proteger meu rosto e a ponta afiada atravessa meu pulso e sai do outro lado. É apenas dor. Dor. Dor. 74
Dor. Acotovelo-o entre suas pernas. Sua mão vacila e a faca pende sozinha. Levanto, pronta para correr, apesar da dor, da confusão e do cansaço. Fios rasgam-se ao serem prendidos com força pela mão dele. Vejo tufos escorrerem entre seus dedos e minha cabeça queimar devido aos arrancados. Prossigo, tonta, tentando entender o que está acontecendo e se realmente está acontecendo mesmo comigo. Lembro das conversas na cidade, o bicho que mata pessoas, entorta seus pés, confunde mulheres, engana homens. Cabelo vermelho, pés para trás, tornozelos quebrados, gosta da mata, ama lugares que tenha fumo e bebidas... tudo aquilo não era a respeito de um monstro, era sobre ele... Prendo a respiração quando saio em uma clareira. O cheiro pútrido me atinge com tanta força que sinto como se tivesse batido contra uma parede. Há corpos caídos, se decompondo, despedaçados de tantas maneiras diferentes que não consigo reconhecer nada. “Peguei você.” “Arr!” grito, ao senti-lo trombar comigo. Giramos pelo matagal, sendo freados pelos corpos cheios de vermes. A faca se afunda ainda mais em meu pulso, e lágrimas embaçam a minha visão. Tusso, entorpecida pela dor e pelo cheiro. “De longe você foi a mais difícil” ouço Tobias falar. A dor na minha cabeça me deixa alerta, onde deveria existir fios escorre sangue. Apoio-me sob um cotovelo e viro, encarando-o. O céu noturno tem um tom de azul mais escuro, diferente do preto que eu havia pensado antes. A cabeleira ruiva dele não me parece tão atraente agora, mas parece emitir um brilho sedutor, um brilho mortal. “Por quê?” É tudo o que pergunto. “É a minha natureza. As pessoas respeitam aquilo que temem. Ao menos, as crenças no que temem os tornam cautelosos, evita com que prejudiquem ou julguem algo. Tem vezes que é 75
preciso que um mal aconteça para que percebam o erro que sempre cometeram” finaliza, ajoelhando-se ao meu lado. “E o que eu fiz para você?” rujo, gemendo com a dor. “Você se aventurou. Persuadir você foi a coisa mais fácil que fiz. Sua falta de apreço pelo bom senso a pôs aqui.” Noto pela primeira vez que ele está sem a camiseta, porém, permanece de cueca, esverdeada, escura como as folhas ao redor. “Eles vão saber que foi você. Nem todo mundo vai acreditar nesta história de Curupira, já estão atrás dos corpos, vão pegar você” sorrio, será que a dor já tirou toda a minha sanidade? “Acha que eu sou o único, sempre terá mais. Em todo lugar... você já está morta!” Suas mãos agarram meu pescoço e eu engasgo. O aperto firme me faz arquejar. Tento acertar um soco nele, mas minha mão tomba. Estou perdendo a consciência. Meu pulso acerta minha perna e a faca me desperta. Seguro em seu cabo com a mão livre, leva poucos segundo entre o momento que puxo com força a faca, o grito sufocado faz o aperto dele parecer ainda mais firme. A única coisa que tomo consciência antes de desabar é a faca sendo fincada no olho dele.
Nota do jornal local: O Guarda-florestal Celestino Montreal, responsável por encontrar o corpo de vinte e seis pessoas na mata, foi liberado da delegacia de homicídios. De acordo com a Polícia Civil, Celestino ajudou a solucionar um dos casos de maior complexidade da história da região, além de salvar a vida de uma jovem que havia sido relatada como desaparecida por amigos e parentes. A mãe da jovem Laura Tibetano Rodrigues, que quase morreu na sexta-feira (14) após levar uma “facada” e ter um torno76
zelo lesionado, está muito abalada com o acontecimento, após ter presenciado o resgate da filha e de outros corpos da vala no meio da mata. “Ela não parava de sussurrar Curupira e dizer que não acreditava nele”, relatou a mãe da jovem. O caso repercutiu na região devido à semelhança a crença em algo sobrenatural nas redondezas. Outros parentes de pessoas desaparecidas vieram ao necrotério para tentar reconhecer os corpos encontrados. Já o outro jovem, morto com uma facada nos olhos, não sobreviveu durante a transferência para um hospital local. O caso segue em mistério, já que segundo os médicos, a única sobrevivente não tem apresentado um estado mental confiável. O delegado responsável pelo caso explicou que devido ao trauma, a jovem precisaria primeiro passar por um tratamento antes de conseguir depor. Disse também que há poucos elementos que caracterize as mortes como um genocídio, afinal, não havia nenhuma conexão entre as vítimas. A população segue apavorada e um toque de recolher foi orientado até que tudo tenha sido esclarecido.
Nota do jornal local: Na noite de ontem (13), a jovem que mobilizou uma vigília, Laura Tibetano Rodrigues, se enforcou na casa de tratamento que residia desde que o Guarda-florestal Celestino Montreal a resgatara. A mãe alega que em uma carta deixada pela filha, há indícios de que não tenha sido um suicídio, afinal, ela escrevera em trechos desconexos frases que remetiam a um diálogo. Frases pintadas com tinta nas paredes também causaram estranheza da população. “Peguei você” e “São apenas rumores” causaram indagações das funcionárias e parentes de pacientes. Afinal, nenhuma tinta ou pincéis eram permitidos ali.
ILUSTRAÇÃO IARA
IARA Sem dúvida, a Iara é um dos mitos mais queridos do Brasil. E, tal como ela, o mito da mulher que mora nas águas - y-íara em nheengatu significa “Mãe-d’Água que vive no fundo do rio” - é comum a muitos povos do mundo. As sereias, as mulheres que são metade peixes e metade humanas, estão presentes em toda a literatura mundial, como afirma Luís da Câmara Cascudo em Geografia dos mitos brasileiros (1947): “As sereias constituíam um patrimônio comum aos povos navegadores [...] A sereia de Portugal é a Sirena espanhola [...] a Zar dos Abíssínos [Zãr ou Zaar da Etiópia], a Rusalka [Rusalka] dos moscovitas [...] a Loreley alemã”. Há muitas lendas sobre a Iara e uma das mais conhecidas é a que diz que ela era uma guerreira índia muito inteligente e corajosa, e seu pai a elogiava muito. Por isso, seus irmãos tinham muita inveja dela e planejaram matá-la. Ela ouviu a conversa deles e então resolveu matá-los antes. Assim o fez, e depois fugiu para dentro das matas. Mas o pai, furioso com o que ela havia feito, a perseguiu até encontrá-la e como castigo a lançou no rio Solimões. Os peixes a salvaram da morte e, como era noite de lua cheia, ela se transformou em uma bela sereia. A personalidade da Iara é controversa. Ela é linda, sedutora, possui um canto maravilhoso e, assim, atrai homens e mulheres para o fundo do mar. Ali eles visitam o palácio encantado dela e nunca mais serão os mesmos… Ainda que voltem para a terra, seu desejo será sempre retornar ao fundo das águas e, por isso, acabam morrendo afogados. A lenda “O Uiara do Jaraguá”, escrita por Armando Guerrazzi na seção “Lendas e fábulas indígenas” de uma edição de 1938 da Revista Cultura, descreve bem o encantamento que envolve a figura da Iara:
E ela assumiu veste cada vez mais brilhantes, enquanto a 80
fisionomia da moça irradiava felicidades. Pérolas lhe afogavam o pescoço, diamantes lhe reluziam os dedos, e os braços ebúrneos da Uiara tinham o lácteo das espumas do mar. Sentara-se depois a um trono e recebia das jovens, reverências. Perfumes exalavam as tapeçarias magníficas, ao modo dos palácios orientais. As cores do ambiente mudavam de irisações, num espetáculo original, ao passo que harmonias em surdina se elevavam, entre vozes misteriosas, como qualquer coisa de exceder a fantasia humana.
A aparência da Iara também é controversa. Os registros a descrevem de várias maneiras. Muitos a conhecem como a clássica figura da sereia: uma mulher loura, de olhos profundamente azuis, possuidora de uma voz encantadora. Essa é a raiz europeia do mito. Para os índios a Iara pode ser descrita da seguinte forma, como relata o folclorista João Simões Lopes Neto em Contos gauchescos e lendas do Sul (1912-13): “A Uiara - ou Mãe-d’água - é um demônio macho-fêmea dos rios. É um tapuio ou tapuia de rara beleza, morador do fundo dos rios ou lagos e que fascina aquele que cai em seu poder, induzindo a pessoa a lançar-se n’água”. E na tradição africana a Iara pode ser comparada a Iemanjá (deusa do mar) ou Oxum (deusa dos rios), as sedutoras mulheres que habitam as águas, que se vestem de branco e azul ou amarelo. Mas essas, entretanto, não são metade humanas e metade peixe. É costume presentear essas deusas com perfumes, joias, pentes e tudo o mais que possas agradá-las. Dizem que, assim, elas ajudam os pecadores a voltarem com seus cestos cheios. O mito da Iara está associado, com o de outros seres das águas, como o Boto, o Ipupiara, o Cobra-Norato ou Cobra-Grande, e também Sucuriju, mas se distanciou deles criando uma identidade própria. Na Amazônia, por exemplo, assume a forma de uma cabocla metade mulher, metade peixe, e é responsável por cavar a ribanceira dos rios, atrapalhando a navegação dos pescadores e também as plantações de milho e mandioca, só por traquinagem. Dizem que 81
às vezes se transforma num cágado e fica na beira da água; quando a pessoa o pega, transforma-se na Mãe-d’Água. Na região do rio São Francisco, em Pernambuco, a Mãe-d’Água também é conhecida como Avó-d’Água, guardando exatamente as mesmas características. No livro Tarde (1919), Olavo Bilac dedica um poema à Iara:
A Yara
Vive dentro de mim, como num rio, Uma linda mulher, esquiva e rara, Num borbulhar de argênteos flocos, Yara De cabeceira de ouro e corpo frio, Entre as ninfeias a namoro e espio: E ela, do espelho móbil da onda clara, Com os verdes olhos úmidos me encara, E oferece-me o seio alvo e macio. Precipiro-me, no ímpeto de esposo, Na desesperação da glória suma, Para a estreitar, louco de orgulho e gozo… Mas nos meus braços a ilusão se esfuma: E a Mãe-d’Água, exalando um ai piedoso, Desfaz-se em mortas pérolas de espuma. 82
OUTROS NOMES: Mãe-d’Água, Uiara REGIÕES DO PAÍS: Todas ORIGEM: Universal PERSONAGENS RELACIONADAS: Barba-Ruiva, Boitatá, Boto, Cobra-Norato, Ipupiara, Marido da Mãe-d’Água, Sucuriju
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Iara
Iara Mermaid - Skott
Há um tempo atrás fui num desses terreiros de Umbanda, daqueles que os milagres ocorrem e as energias percorrem nossa alma. Esse templo era morada no Amazonas e além de rico visualmente, era rico em energia. Lembro da aflição em que me encontrava para poder encontrar meu filho: um jovem pescador, o qual foi aos rios e nunca mais voltou. Meu filho sempre sonhou em desfrutar da Amazônia, só não contava que o contrário ocorreria. O rio desfrutara de sua jovialidade e sumiu com seu corpo. Há dias vinha procurando meios de encontrar meu filho antes de retornarmos a nossa casa em São Paulo, mas toda busca era tola e em vão. Até que certa moça mencionou o templo o qual eu estava: disse saber de magia, de reza e coisa brava. Falaram-me sobre certa lenda de Iara, dessas dos livros infantis. “Sabe fia, as coisa por essas banda num são fácil como a sinhazinha pensa” Um homem incorporado numa entidade com traços da escravidão (até então, denominava-se um preto velho) disse-me, revezando as palavras com as baforadas do cachimbo. “Eu imagino que não sejam. Eu só quero encontrar meu filho... Temos de voltar para nossa casa em São Paulo, essas férias neste maldito lugar foram um erro” Não me preocupei em soar mal-educada com uma entidade a qual procurava me ajudar. O preto velho ria, mas teu riso calmo de vovô não me acalentava, pior: demonstrava a tranquilidade daquele espírito com meu caso. Fui enfezando-me e desatei em lágrimas. Eu tinha de encontrar o meu menino. Era minha última saída aquela conversa. “Sinhá, o nego veio vai falar pra tu onde seu fio tá...” Emaranhada na fumaça do cachimbo e nos olhos cerrados do médium incorporado, fiz-me ansiosa. “Ora, se sabe onde ele está, diga-me: começarei uma busca o quanto antes. Você quer dinheiro? Eu lhe pago, eu tenho. Meu marido quem mandou desbravar toda essa mata para exploração. 85
Anda, diga onde ele está.” Eu estranhei o preto velho ter soado desinteressado quando falei de dinheiro. Permaneceu na mesma posição. Tua quietude me espantava. “A sinhá guarda o pataco” Creio que ele quis dizer dinheiro em seu dialeto “Disso não preciso. O nego vai te conta onde seu fiinho tá.” “Então ande, fale!” Mal podia esconder a ânsia e as borboletas que fugiram do meu estômago e foram para a cabeça; causando uma enxaqueca tremenda em curiosidade. “Embaixo do rio fia, ele tá embaixo do rio...” Eu juro que puxei o ar, respirei o mais fundo necessário para não sair quebrando aquela tenda. Não acredito ter escutado o óbvio de um, até então, ser de luz. Na hora acreditei ser tudo marmotagem. “Você só pode estar brincando. Fez eu perder meu tempo. Não sabe a dor que sinto no peito? Eu sei que meu filho está embaixo do rio...” Só as mães sabem o falhar do segurar o choro, quando o assunto é filho. Quando me vi, desabava em pranto. Prestes a me levantar e retirar-me. “Mas ele tá vivo, fia...” A voz do homem fez eu interromper a ação de me erguer e sumir. Limpei as lágrimas e não escondi meu olhar de confusão. “É fia... Ele tá vivo, vivinho da silva. Mas não por muito tempo. Seu fio tá no reino das águas doces, mergulhado nos braços de paixão da Iara...” O modo com o qual o homem usou das palavras fez-me arrepiar. Não, eu não iria acreditar numa lenda antiga. Mas de algum jeito, meu coração de mãe fez-se crédulo nas verdades de um preto velho. “Não pode ser, você está brincando comigo...” Tentei esconder a verdade que sentia “Não há lógica nenhuma nisso. O se86
nhor deve estar usando esse conto porque eu me chamo...” “Iara?” O preto velho acrescentou e outro calafrio percorreu meu corpo. Engoli em seco. E só aí lembrei que não havia dito meu nome a ele ou a mais ninguém dali. “Sim...” Congelei minha palavra num silencio árduo. “Poucos foram os que conheceram de perto a sereia das águas amazônicas...” O preto velho puxou teu cachimbo e eu pude ver da tua fumaça sair a silhueta de uma belíssima sereia. A fumaça dançava aos meus olhos e devagarinho, como num bailar de cascatas cristalinas entrei em transe. E cada palavra daquele ser, ecoavam em minha mente numa outra cena. “Todos sabem, fia minha, que essas banda é cheia de histórias. Mas Iara, ah, Iara não é só uma história... história é sobre o que já passo... Iara não passo, ela é presente nos rios e na vida de quem respeita suas águas e não cai nos seus encantos...” Conforme o preto velho falava, via numa cascata dourada uma sereia a se pentear. Olhos cor de jambo — pareciam doces, deliciosos de se mirar. Como se fitar teus olhos fosse vislumbrar um paraíso cítrico de paixão, ela exalava a natureza na visão. Imergida no teu charme, pude desenhar teu corpo com meu ver: era uma adocicada selvageria admirar teus seios. Teu ar de índia me remetia a caçar teus lábios carnudos. Mal pude reparar na enorme cauda a qual misturava-se no cristal das águas. Pois me peguei devota do teu cantar, deixando-o possuir todo o meu ser. Ela chamava por mim Ela precisava de mim Eu iria até ela... Até que vi de relance, meu filho em teus braços. Em beijos molhados. Perdendo-se nas correntezas do corpo de Iara. 87
Pasmei com a visão das águas cristalinas: enxerguei um rio de sangue. Cascatas densas e gritos de pavor, urros masculinos e reclamações de misericórdia. “Fia...?” Retornei ao chamar do preto velho. Minhas mãos estavam gélidas e eu não recordava nem mais onde estava ao certo. A visão que tive pelo cachimbo da entidade me cobriram em verdade “A sinhá tá me escutando?” Segui de olhos arregalados. Pasma. Sem responder aos seus chamados. O que eu havia visto, meu filho nos braços de Iara, eu estava lá. Eu vi tudo. O médium logo começou estalar os dedos ao meu redor e a cada passar de dedos, pude ir voltando desse transe amedrontador. Lidar com meu ceticismo agora não seria mais problema, meu interior já acreditava cegamente em tudo. “Eu vi...” “A sinhá acredita agora?” O velho deu um risinho no canto da boca. Agora estava com um galho de arruda na mão. Apenas concordei com a cabeça, seria difícil demais assumir crer numa visão em voz alta. “O que eu devo... o que devo fazer...” Balbuciava ofegante, ainda inerte com o que meus olhos viram. E com o desejo aflorado. Eu jamais senti atração por mulher alguma, mas Iara, estava na minha mente. O preto velho me entregou um rosário junto à sua ervinha de arruda e deu um risinho baixo. Colocou seus itens sobre minhas mãos e fechou meus dedos, dando-me teu aperto de mão. “Reza fia, só reza e vai ao encontro da sereia. Vai onde seu minino sumiu e fala cum ela...” “Não, mas isso não. Eu não vou voltar ao local do desaparecimento do Daniel...” E lá estavam as lágrimas caindo do meu rosto. 88
Pesarosas sobre o rosário de uma entidade. Meu filho de quatorze anos me veio a mente, naquela visão conturbada, mergulhando no corpo daquela mulher. Desatei o pranto e meus olhos sangravam a dor de uma mãe assustada. A entidade levou agora a arruda e o rosário ao meu peito. Perfurou minha alma com seus olhos misericordiosos e de um médium incorporado vi uma lágrima cair. “Quem escuta Iara cantar fia, tem que seguir ela... Não tem jeito. Cê entende o nego? O único jeito de salva teu fio, é seguir a sereia.” “Mas se eu for até ela e padecer?” “Suncê ama seu minino?” Questionou o preto velho. “Mais do que tudo!” “Então tu num há di padecê...” E dali nos despedimos. Sai daquele terreiro com os olhos marejados de pudor — o que vi não seria apagado jamais. Mas meu coração estava acalentado. Ainda caminhando até a saída pude sentir tudo em câmera lenta, como se o mundo fosse parando aos pouquinhos e apenas minha tristeza fluísse sobre meus olhos. As moças de saia dançando numa velocidade pequenina, os atabaques sendo tocados na maior cautela do tempo. Virei-me para fitar uma última vez aquele preto velho... E ele não estava mais lá Ele nunca esteve E nunca mais o encontrei.
CANTO DA SEREIA Era tolice tentar dormir ou até mesmo cochilar. Fechar os 89
olhos me levava a um breu de maldição. Quando sai daquele terreiro questionei-me sobre todas as lendas as quais aprendemos. Saci, Mula-sem-cabeça, Lobisomem... Os folclores de nossa terra. Se Iara era real, todos eles de certo modo eram. Meu marido não atendia minhas ligações, como de costume. Ele mal se preocupou com o desaparecimento de Daniel e realmente se importava apenas com a exploração de terras na Amazônia. Maldita foi a hora em que trouxe meu filho para conhecer este lugar sozinha. O que seria um passeio de alguns dias, tornou-se o meu maior pesadelo. Daniel estava desaparecido há uma semana. Em meio ao turbilhão de pensamentos sombrios os quais pesavam meu travesseiro. Lembrei-me do preto velho. Como ele me fez apenas com seu olhar enxergar minha verdade absoluta: uma mulher infeliz, num casamento infeliz, fazendo de tudo para manter as aparências por conta de dinheiro. De nada adiantou. Com meus olhos fechados nas tentativas de adormecer, uma melodia suave ecoou. Assustei-me e levantei de olhos arregalados, o coração mal cabia no peito. Fechei os olhos e ao invés da escuridão, enxerguei ela. Eu a vi de novo. Iara. Novamente arregalei a visão e levantei da cama. Cada vez que eu piscava, enxergava teu semblante avassalador. Buscando forças, consegui chegar a pia do banheiro, e fazia da água da torneira tentativa de tirar-me daquela loucura. Diabos, estaria eu insana? Por mais que eu molhasse meu rosto, eu fechava os olhos e a enxergava. Até num certo momento não conseguir mais abrir os olhos. O cantar da Iara ecoava com as batidas do meu coração e o corpo da sereia juntava-se aos meu. Tua pele molhada. Os cabelos negros da sereia prendiam-me como uma rede prende um cardume. 90
E naquela noite eu me toquei como nunca havia me tocado. Naquela noite eu me entreguei a uma sereia. E me rendi aos braços do demônio das águas doces. Acordei cercada de homens, todos nus e me servindo café da manhã. Assustada os enxotei de meu quarto e liguei para a recepção do hotel — eu havia saído na noite anterior. Mas não me recordava disso. Céus, Iara estava me possuindo. Eu não sabia mais quem era eu. Meu nome ser Iara deixava a situação ainda mais confusa. Fui ao calendário e já haviam passado três semanas após o desaparecimento de meu filho Daniel. Titubeei para trás. Ontem quando vi haviam se passado apenas uma semana. Não pude hesitar levar as mãos à cabeça de preocupação e emergir em confusão. Certamente eu teria sido possuída após ter tido uma visão com à sereia. Eu tinha de agir, eu não podia deixar isso ocorrer novamente. Precisava encarar meu medo, salvar meu filho. Nessa hora as palavras do preto velho vieram a minha mente. Meu ser sabia exatamente o que fazer. Sai do hotel — aliás, um dos únicos mais apropriados para a região Amazônica a qual fiquei hospedada — e segui caminhada para o rio. As águas que haviam sumido com meu filho. Era dia e o sol judiava dos meus olhos. A caminhada era longa, mas minha determinação fez de horas quase minutos — ou minha percepção assim o fez. Me assustei ao chegar, pois não havia visto esse paraíso com os meus próprios olhos. Daniel havia me dito sobre vir nadar sozinho neste lugar, mas jamais me apresentou. Cascatas se encontravam em harmonia, peixes saltitavam e pássaros exóticos presenteavam os ares com um cantar perfeito. Estava eu com o rosário do preto-velho na mão, arrepios 91
por todo o corpo e sentindo uma presença. Iara estava ali, eu sentia meu desejo aumentar. “Apareça!” Bravejei e só ouvi o barulho da cachoeira em resposta. Nada acontecia. Optei então por ficar nua e adentrar as águas cristalinas. Eu não posso mentir que meu nome faz honra à Iara. Pois a beleza a qual eu detinha, homem nenhum recusava. Fiz das águas lar de minhas curvas. “Daniel!” Quanto mais fundo ia ficando, sons de afogamentos iam crescendo. Era meu filho, eu tinha certeza que era Daniel. Quando me dei conta o rosário que segurava, havia sumido nas águas e o desespero se fez mais gélido do que as águas. A vontade de recuar era grande, mas eu já estava ali. As frases do preto velho martelavam em minha mente. Eu ia encarar de frente essa sereia e recuperar meu filho. As águas se rebuliçaram e os gritos de socorro aumentavam ao meu redor, mas não havia ninguém. Estava mergulhada até os seios mas eu podia sentir minha alma afogar-se no medo. Era dia, mas a visão que eu tinha não era clara. Fiquei estática esperando aquela turbulência passar. Uma mão nas minhas costas Uma palpitada a mais no meu peito Virei-me Era Daniel, meu filho, com os olhos encharcados de lágrimas.
CASCATAS DE DESESPERO Saímos das águas e Daniel estava abraçado comigo. Ficamos um tempo chorando. Não podia crer que meu filho estava realmente a salvo. 92
“Mãe, o que eu vi, foi horrível... “ Agarrado em meu peito, Dani contava sua experiência traumática nos braços de Iara “Ela deixou eu afogar num reino escuro. Eu me afoguei, afoguei, mas não morria. Parecia estar condenado a sensação de sufocação eterna. Mãe, eu não sei o que aconteceu, ouvi uma música bonita e quando vi tudo estava perdido. Me perdoe” Meu filho mal conseguia formar palavras de tanta conturbação. Seus olhos reluziam pesadelos assombrosos. “Eu estou tão feliz em te ter aqui, não vamos falar nisso. Está bem?” Segurei sua cabeça e abracei o olhar dele ao meu “Vamos embora deste maldito lugar amanhã mesmo, seu pai já comprou nossas passagens de volta pra São Paulo. Tudo isso foi um erro.” “Não mãe, a gente não pode voltar...” “Por quê?” Questionei, olhando para os olhos pesarosos de meu menino. “A sereia quer você” Seu tom de voz me causou arrepios. Soltei Daniel de meu abraço “Ela só me deixou sair, caso você entrasse no rio. Mãe, eu não quero que a senhora vá, precisamos dar um jeito de sair daqui.” Peguei Daniel pelo braço e o puxei, para enfim sairmos da beira daquele inferno em cascata. Mas na minha tentativa: meu filho começara a cuspir água e a afogar-se em terra firme. “Daniel!” Eu tentava socorrê-lo, mas meu menino cuspia sem parar e sufocava. Teus olhos claros esbugalhados de pavor. As veias saltando e tua alma de criança sendo encaminhada para o fim. Não deixaria meu filho padecer. “Iara!” Berrei ao horizonte. A neblina brincava sob à cachoeira “Eu ficarei, mas deixe meu filho ir.” Como num passe de mágica, meu menino estava melhor e em pé, respirando com dificuldade, mas não apresentava mais sinais de afogamento. “Daniel, vá ao hotel e busque por ajuda. Mas em hipótese 93
alguma retorne a este lugar, você me entendeu?” Segurei ele nos ombros e encarei teu olhar como a última vez “Não me questione, eu voltarei. Mas eu não estou pedindo, estou ordenando que saia daqui agora. Eu te amo muito.” Não deixei com que ele terminasse e o instiguei a correr o mais rápido possível. Com meu filho livre eu conseguiria lidar com a diaba das águas. Virei-me à cachoeira e tudo estava lindamente tranquilo. A tranquilidade perfeita para a minha perturbação. “O que você quer de mim, Iara? Pra mim você não passa de uma lenda perturbadora. Aliás, não acho justo termos o mesmo nome” Peguei da beira do rio uma pedra e arremessei nas águas “Podem me confundir com essa assombração que tu é.” A pedra caiu no cristalino da correnteza. Devagarzinho uma melodia começara a disputar a atenção de minha audição junto com a suavidade das cascatas. O som vinha de todos os lados e eu parecia numa redoma acústica. Tentei tapar os ouvidos, mas era impossível. O canto de Iara era uma desgraça gostosa de se viver, pois ele me trazia algo que eu não tinha há muito tempo: tranquilidade. Meu coração preenchia-se num bem-estar tremendo e estar nas garras da sereia não me parecia péssima ideia. Quando vi já estava nadando e com a água até o pescoço. Um sorriso bobo impossível de segurar. Até então mergulhar e sentir meus cabelos bailarem nas correntezas, cada fio acariciava os peixes — de diversas cores e tipos — as pedras reluziam no fim do rio e estar embaixo da água me dificultava a respiração, mas facilitava a alma a descansar. A canção ia ficando mais prazerosa conforme mergulhava. Quando já no fundo do rio encontrei a sereia de minha assombração. O susto de a ver fizeram com que bolhas escapassem e o ar faltasse. Iara passeava ao meu redor como um caçador estuda a sua 94
presa e apressou-se a nadar em círculo. Um redemoinho armou-se no rio de água doce. A sereia armava ao meu redor um turbilhão de correntezas, me senti no olho do mais perverso furacão, com cada parte do meu corpo perdendo a vida e dando lugar ao adeus. Mas algo inusitado ocorrera na magia de Iara. Conforme o redemoinho aumentava, seu som ecoava a melodia perfeita para meu terror. Minhas pernas deram lugar para uma cauda E a cauda de Iara viraram pernas. Quando dei por mim entendi exatamente o que estava havendo: Iara estava passando sua maldição à frente. Não por coincidência nossos nomes eram os mesmos. A mulher nadou até a superfície no fim do caos e eu a persegui com dificuldade. A índia adentrou a mata antes de eu dizer qualquer coisa e desapareceu. Tentei sair da cachoeira ou qualquer outra coisa, mas eu estou presa aqui. Eu sou Iara e preciso encontrar uma outra mulher para passar a maldição que habita nessas águas cristalinas. Mas até lá a única maneira de me alimentar é pelo beijo de desespero dos homens afogados. Temo essas águas pois a cada dia minha sede de naufragar corações aumentam e sinto-me perversa. Se ouvir meu canto essa noite, por favor, venha me visitar... Tenho o dom de nos seus mais prazerosos sonhos adentrar. Salve-me.
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ILUSTRAÇÃO LOBISOMEM
LOBISOMEN - Menina, você onde vai? Eu vou na fonte - Que vai fazer? Vou levar de comer À minha mãezinha. - O que leva nas costas? É meu irmãozinho. - O que leva na boca? É cachimbo de cachimbar... Ai! Meu Deus do céu. O bicho que me comer, O galo não quer cantar, O dia não quer amanhecer, Ai, meu Deus do céu! (“O Lobisomem e a menina”, cantiga popular.) É bom que se diga que ser lobisomem não é escolha, é uma sina. Um destino ruim, um fardo. Tem de ser o oitavo filho (em alguns registros dizem que é o sétimo) de uma família que já tenha sete 98
meninas. Quando esse menino completa treze anos, numa terça ou numa sexta-feira, ele sai de noite em busca de um lugar onde um jumento tenha se lambuzado, se sujado. Então, tira sua roupa, faz sete nós em toda ela e se esfrega naquele chão. Assim, torna-se lobisomem. O Folclorista Mário Rizério Leite descreve, em Lendas de minha terra (1951), a transformação de um homem chamado Porfírio em Lobisomem: Por ocasião da Quaresma, pressentindo a aproximação do encanto, Porfírio desaparece. Abandona a casa interna-se no mato, em busca de uma capoeira velha. Na quinta-feira santa, por volta da meia-noite, deita-se num espojador de animais, ai permanecendo a rolar de um lado para o outro, envolto em poeira. Quando no relógio da igreja soa a derradeira balada das 24 horas, a transformação começa. Em primeiro lugar os pés, em seguida os braços e finalmente a cabeça e os resto do corpo. Depois se levantam, sacode as orelhas enormes e emite um uivado lúgubre e prolongado. Em seguida, parte em louca disparada, atacando todo o vivente que encontra. E ai sua má sina começa: as orelhas crescem e caem sobre os ombros, como se fossem asas pontudas, o rosto ganha feições de lobo. Há quem diga que ele se transforma em metade homem, metade cachorro, ou ainda em um cachorrão, quase do tamanho de um bezerro. E tem quem garanta que ele é um cachorro com focinho e cara peluda da cintura pra cima e, da cintura para baixo, um porco, com rabo enrolado e tudo mais. Assim que se transforma, o Lobisomem sai em disparada, rosnando e uivando alto. Persegue os animais novos, as crianças, os velhos e as mulheres grávidas para morder o pescoço e chupar o 99
sangue. Ás terças e sextas-feiras, da meia-noite às duas da madrugada, antes de o dia raiar, ele tem de visitar sete cemitérios, sete encruzilhadas, sete altares, sete vilas acasteladas, ate voltar ao lugar de onde saiu e então se transformar em homem de novo. Dizem que é facil reconhecer um homem que vira lobisomem: é magro, muito palido, abatido, tem nariz empinado, sobrancelhas grossas e orelhas pontudas. Costuma bocejar muito, esta sempre enjoado (por causa do gosto de sangue na boca) e adora comidas bastante temperadas, especialmente com sal. Cocô de galinha é seu prato predileto e, por isso, tem um bafo insuportável e os dentes muito sujos. Contam que ele sempre sai cabisbaixo e sorrateiro, de fininho, toda meia-noite, se segunda para terça e de quinta para sexta-feira, para cumprir sua má sina. Dizem que já o viram atravessando aldeias e apagando as luzes dos sítios, antes de os lavradores adormecerem. Os cães dessas fazendas se agitam e correm como loucos. Até o autor pernambucano Gilberto Freyre, em seu livro Assombrações do Recife Velho (1995), faz registro do Lobisomem, que muitos juravam ver nas ruas do Recife:
Do Lobisomem de diz que tem aparecido no Recife em figuras fantásticas, um tanto de homens, um tanto de lobos, de cães danados, de bodes infernais, de gatos com olhos de fogo, de porcos doidos por lama e imundice: monstros que a bala comum não mata, mas só a de prata que tiver levado um banho de água benta.
Quem quiser se defender desse bicho horroroso pode fazer uma “estrela de Salomão” - símbolo antigo, feito com dois triângulos sobrepostos, um com a ponta para cima e o outro, para baixo - com as palhas secas recebidas na igreja no Domingo de Ramos (o domingo que antecede ao de Páscoa). É só pregar essa estrela na porta de casa 100
e o Lobisomem nunca vai passar nem perto. Para que a sina desse monstro seja eterna, é só trocar as roupas que ele deixou no local onde se transformou em Lobisomem por outras novinhas em folha. Quando ele vestir as roupas novas, nunca mais voltara a ser homem. Se os sete nós que ele deu em sua roupa foram desfeitos, também será Lobisomem para todo sempre! E para acabar com o encanto do Lobisomem? Basta causar no bicho qualquer ferimento que sangre. Algumas gotas já são suficientes para que a maldição de desfaça. Agora, para destruir de vez essa criatura, é preciso enfiar uma faca de prata em seu coração ou acertar em seu peito um tiro de bala que tenha sido lambuzada na cera de uma vela de esteve no altar de uma igreja onde tenham sido celebradas três missas na noite de Natal. Dizem ainda que se a pessoa falar três vezes “Ave Maria!” depois que o Lobisomem passar por sua casa correndo feito uma flecha, ele vai explodir e desaparecer de vez. O folclorista I. G. Americano do Brasil, em seu livro Lendas e encantamentos do sertão (1938), afirmou que a Bruxa é irmã gêmea do Lobisomem, já que ela também é a sétima filha de uma família só de mulheres e tem como habito chupar sangue das pessoas: “Ao contrario do Lobisomem, se quem é a irmã gêmea, a Bruxa tem aparência definida: apresenta a forma de uma enorme e horrenda figura, uma coruja, sugadora do sangue das crianças novas”. O Lobisomem aproxima-se do mito da Cumacanga ou Curacanga, como registra o folclorista Basilio de Magalhães em sua obra O folclore no Brasil (1939): No interior do Maranhão [...] existe um mito singular, que se liga simultaneamente aos da Lobis-mulher e do Mboitata: é a Curacanga. Conforme dados fidedignos, ouvidos de quem nasceu naquela zona e que me foram transmitidos pelo dr. J. da Silva Campos, é a seguinte tradição ali corrente: quando qual101
quer mulher tem sete filhas, a ultima vira Curacanga, isto é, a cabeça lhe sai do corpo, à noite, e, em forma de bola de fogo, gira à toa pelos campos, apavorando a quem encontrar nessa estranha vagabundeação. Há, porem, meio infalível de evitar-se esse horrido fadario: é tomar a mãe a filha mais velha para madrinha da ultimogênita. Por essas e outras historias, o Lobisomem é um bicho tão temido até os dias de hoje. Tem Lobisomem em tudo quanto é canto do mundo, conforme explica Luis da Camara Cascudo em seu livro Geografia dos mitos brasileiros (1947): “O Lobisomem nos foi trazido pelo colono europeu. Esta em todos os países e épocas, com historias espelhadas, sob nomes vários, registrado nos livros eruditos.
REGIÕES DO PAÍS: Todas ORIGEM: Universal PERSONAGENS RELACIONADAS: Bruxa, Capelobo, Corpo-Seco, Cumacanga, Labatut, Mula sem Cabeça, Papa-Figo, Uaiuara
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Lupino Eat me, Drink me - Marilyn Manson
Eu sempre gostei do Halloween. As pessoas acham divertido usarem máscaras, fingindo serem monstros assustadores. Eu lutei a vida toda fingindo não ser um. Mas não tive escolha, nem se quer fui apresentado a ela; se tivesse que escolher entre não ser um monstro e morrer, escolheria a morte... eu não sou ruim, entende? A não ser esse pequeno e destrutível segredo que mantenho guardado. Meus olhos lacrimejam, eu tento controlar, mas está completamente fora do meu alcance. É triste porque os vejo todos os dias, converso com eles, rio as vezes. Mas quando acontece, foge de mim, eu não os reconheço. Eu não me reconheço. É assustador porque, ao mesmo tempo em que esqueço completamente e saio do meu eu consciente, me percorre a sensação obscura da transformação dolorosa. É uma estranha e impertinente mudança de estado físico. Tudo se achata. Corpo adere uma aparência anormal, lupina. Me sinto medonho e assustador. Não é como sentimentos que se controla ou pensamentos que se entende com certo tempo. É uma sina. Uma maldição. A noite é minha inimiga, é nela que tudo acontece. Rezo todos os dias para que o sol permaneça no céu, que não vá embora, eu já não aguento mais tanta dor. Não aguento mais causar dor. Neste momento, meu coração está dolorido. Minha pele está estranha, há muitos pelos onde normalmente não tem. Meu rosto; sinto que está esticado, como se estivesse maior. Meus olhos não estão normais, enxergo tudo embaçado. Minhas unhas estão enormes, firmes e pontiagudas, minhas mãos estão machucadas, ásperas e ardem. Meu cheiro não é bom. Estou nu, porém, os enormes pelos cobrem minha nudez. Meus pés estão maiores, assim como minhas mãos. Há fios enormes soltando de meu busto, como bigodes de um felino. Minhas presas cresceram, adquiriram um formato pontiagudo. Eu farejo, sinto cheiro de carne de longe; é carne humana. É um cheiro específico. Solto um uivo horripilante e então, ela cor104
re. Ouço seus passos apressados, quebrando galhos e folhas secas. Ela está com medo, sinto a vibração intensa de seu corpo, percebo que ela está ofegante. O terreno ao qual estamos é variado, ora instável, ora com elevações e buracos. Provável que estejam voltando da casa dos avós. Mas tão tarde, assim? Espera! Ela está com a criança, eu sinto o cheiro dela também; ah não! A criança, não! Crianças; elas são as mais fáceis de detectar. Além da minha audição apurada e olfato preciso, consigo senti-las há uma milha de distância. É difícil para mim acordar no outro dia, ouvindo os gritos histéricos dos pais, ao descobrirem que a única coisa que restou de seus filhos é o manto ao qual os protegem do frio e sangue. Muito sangue. Não posso controlar meus sentidos, não conseguirei ouvir meus pensamentos. É como se eu estivesse preso numa ode, num pesadelo. Mas desta vez a coisa não será como toda sexta-feira, ou nas noites de lua cheia. Desta vez será pior. Terei de saciar minha fome com a mãe e a criança que ela carrega no colo. Corro. Sinto o cheiro da mata a noite. O vento frio corta meus pelos enormes. Estou com raiva, sangue nos olhos. Os pássaros noturnos entoam suas canções melancólicas, cheias de assombro. Paro para descansar, olho de um lado, para o outro. Vejo silhuetas entre as árvores, criadas pela lua cheia que emite seu brilho intenso. Solto mais um uivo assombroso, ouço um grito de susto e desespero. Ela está próximo, bem próximo de mim, eu já sei onde ir! Que ela não deixe a criança cair, é sempre o que peço. Continuo correndo entre a mata, cortando o vento que vem contra mim, passando por árvores enormes e aromáticas, enquanto ouço sua respiração ofegante, muito ofegante. O choro da criança também não ajuda. Ela está dando o máximo de si. Guerreira! Ouço barulho de seus passos cheios de desespero, contra a madeira podre da ponte sobre o rio que corta a mata densa. Meu peito está dilacerado. As vozes em minha cabeça 105
falam mais alto, meus olhos estão vidrados em encontra-la logo. Posso ouvir as batidas do seu coração, o que indica que estou muito perto. Me esquivo, tento voltar, tento não fazer algo ao qual vou me arrepender amargamente no dia seguinte, mas é difícil depois da transformação. Depois de sair complemente de mim, depois que o monstro toma conta do corpo, não há ser humano capaz de fazer com que ele reverta sua sina. É cruel. Eu não quero fazer isso. Eu não posso! Mas quando vejo, é tarde demais. Minhas mãos já estão grudadas em seu corpo, meus dentes cravados em seu pescoço. Ela grita, mas não desgruda da pequenina. Minha mordida soltara um pedaço em seu pescoço, o sangue escorre. Ela leva uma das mãos a ferida, enquanto insiste em correr de mim. Ela chora, chora muito e a criança também chora. Sentida, pois a mamãe dela nunca voltará para casa. Mastigo com gosto aquele pedaço, salivo, o gosto é bom. Preciso de mais. Ataco-a a novamente, desta vez, ainda mais feroz. Ela ajoelha, vencida, cansada e sem muito o que fazer. Minha visão avermelhada das coisas, percebe as lágrimas em seus olhos. Mas é impossível para mim, tentem entender. Eu não poderia ter feito nada. Então solto um uivo pela terceira vez e com minhas garras e força, defiro unhadas até degola-la. Sua cabeça rola até meus pés, e o sangue espicha, enquanto o resto do corpo cai ao chão imóvel, finalmente. A pequena bebezinha, fica estirada no chão chorando, enquanto tento aproveitar o máximo que posso da refeição que acabei de conseguir. A sorte da criança é que ela havia sido batizada, se não eu poderia fazer um banquete completo. A lua está descendo do céu. O vento frio se intensifica na mata. É hora de voltar. Apanho a criança e a deixo na porta de sua casa, não há ninguém a vista. A suspeita de que uma besta corria as ruas escuras tornou-se o medo da pacata cidadezinha. Preciso correr até a fazenda, não posso parar para nenhuma eventualidade a mais. É a minha sina. Preciso me despojar antes das cinco da manhã, antes do galo cantar preciso estar em casa. Corro o máximo 106
que consigo. Amanhã, preciso me preparar para o que vier. ... Bento acordou naquela manhã de sábado. Normalmente acordava com o choro da bebezinha, Elise, ou com o cheiro maravilhoso de um bolo de laranja e café, que sua amada esposa Maíra fazia ao final de semana. Mas aquela manhã aconteceu algo estranho; não havia cheiro de bolo e nem café. A roupa de dormir de Maíra estava no mesmo lugar, sobre a pequena poltrona que colocara próximo ao berço, para amamentar Elise de madrugada. Elise também não estava no berço. Geralmente quem levava a bebê para a cozinha era Bento. Eles brincavam que a pequena havia puxado a preguiça do pai. Bento tinha um sentimento estranho apertando o peito. Uma angustia acometia seu coração, ele não sabia bem dizer o que era. Saiu do quarto apreensivo, passando pela sala e indo à cozinha. Tudo estava do mesmo jeito da noite passada, quando Maíra saiu para visitar os pais. Bento quis ir junto, mas a dor de cabeça pesava seus olhos. Ele não conseguia mantê-los abertos por muito tempo. Então decidiu que iria para a cama mais cedo. Antes de Maíra sair, ele a advertiu, pediu para que não passasse pela mata, indo em direção a ponte. Era um atalho, mas era perigoso. As histórias sobre a besta que corria as ruas da cidade poderiam ser bem verdade. Como explicar as coisas que andavam acontecendo naquele lugar? Galinhas encontradas apenas com os ossos e as penas, o gado de várias fazendas encontrados as mesmas circunstâncias, apenas ossos, nem mesmo o couro foi salvo. Sem contar as criancinhas que ainda não foram batizadas, estavam desaparecendo da noite para o dia. Era uma tristeza tremenda. Bento sentia o coração pulando no peito. Correu até o quarto, vestiu a primeira roupa que encontrou no guarda-roupas. Devido o calor que fazia naquela região no verão, sempre dormia nu. Ficou trêmulo, arregalou os olhos quando ouviu o choro de Eli107
se. Parecia vir do lado de fora. Jogou a camisa que ia vestir em qualquer lugar ali no quarto, abriu a porta da sala apenas de bermuda e lá estava; a bebê enrolada no manto coberto de sangue. Os olhos de Bento inundaram-se de lágrimas. Pegou a filha no colo, sentindo a adrenalina percorrer seu corpo. Onde estava Maíra, sua esposa? O que Elise fazia ali do lado de fora, na porta da sala, sobre o tapete? Seria a besta? Bento correu ao telefone de linha, ligou para os pais de Maíra, que disseram que a filha de fato saiu com Elise no colo, pouco antes da meia-noite. Ainda que advertida sobre passar pela ponte, devia ter passado. Ele chorava, imaginando o que havia acontecido, mal conseguia falar ao telefone. Elise chorava, devia estar com fome. Pobre criança, ia crescer sem o amor da mãe. A buscas começaram. Dois dias e não encontraram ninguém, assim como das outras vezes em que alguém desapareceu misteriosamente da cidade. Fizeram um velório em homenagem a Maíra. O caixão no meio da sala, era simbólico. Sobre ele a manta de Elisa e uma foto de Maíra, eram as únicas coisas físicas que levariam para o túmulo daquela mulher. Bento estava inconsolável, não quis deixar ninguém pegar a filha para que pudesse descansar. Vivia dizendo ter medo de que alguém a deixasse cair no chão, coisa de pai de primeira viagem. Porém, estava frágil naquele momento. Estava de luto. Sua mulher, sua esposa amada, estava morta. Naquela noite, os pais de Maíra foram para a casa de Bento. Ele precisava de ajuda naquele momento delicado. Antônia, sua sogra, pediu para dar banho em Elise. Bento estava insistente, mas com muito custo deixou que a avó desse banho na pequena. Enquanto Antônia pegava a criança dos braços de Bento ele alertou novamente, passando a mão áspera e machucada pelo rosto soado: “Não deixe a criança cair, é só o que peço.”
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ILUSTRAÇÃO MULA SEM CABEÇA
MULA SEM CABEÇA Pisadas rápidas e furiosas, como se fosse um tropel de mil cavalos urrando, lá vem ela. É noite quando ela aparece soltando fogo pelas ventas, é a Mula Sem Cabeça que vem chegando! Não há quem não a conheça nesse imenso Brasil. As historias da Mula Sem Cabeça passam de geração para geração. Se para uns ela só dá o ar da graça na Quaresma - período de quarenta dias que, para os católicos, antecede a Páscoa -, ou ainda a cada sete anos. Como afirma o folclorista Alceu Maynard Araújo, em seu Documentário folclórico paulista (1952), aparência da Mula que não tem rosto, mas urra sem parar, varia de região para região:
É uma mula que não tem cabeça mas relincha. É um animal quase negro, com uma cruz de cabelos brancos. Tem um facho luminoso na ponta da cauda. Geme como uma criatura humana. [Ou] Não geme, relincha, e ao terminar, geme como se morresse de dor.
Além disso, há quem diga que ela tem uma faixa branca no pescoço. Para outros, na verdade, a Mula é invisível, lembrando a personagem Cavalo Fantasma, e ninguém pode vê-la, só ouvi-la. Fato é que a sina de virar Mula Sem Cabeça é dada como castigo às mulheres que namoram padres, o que é proibido pelo Catolicismo. Conta-se que a mulher que vira Mula normalmente é casada e trais o marido com o sacerdote. Então, quando é meia-noite em ponto, ele se levanta da cama, pula pela janela e deixa o marido dormindo para cumprir sua má sorte. Ninguém detém o seu galope, suas patadas são mortais e vem acompanhadas de barulho de ferro arrastado, seus cascos 111
ferem como facas. Soltando fogo pelo pescoço e pelo rabo, a Mula deixa atrás de si um rastro de medo e destruição, pois costuma matar a coices qualquer um que lhe apareça pela frente, especialmente se ela enxergar suas unhas e seus dentes (então, para chegar perto dela, recomenda-se esconder essas partes). Isso porque, alguns afirmam, ela se alimenta desses dois tipos de elementos do corpo humano. Ela só para de correr quando o galo canta pela terceira vez, no raiar do dia. Transforma-se de novo numa mulher, mas seu corpo guarda as marcas da selvageria: fica todo machucado, e a mulher, muito abatida. A Mula Sem Cabeça é parente do Lobisomem, como conta, em versos e com uma ortografia bem particular em um folheto de cordel, o poeta Luís da Costa Pinheiro, em “O lubzhomem do mar”:
Dizem que a burra de padre É muito mais perigosa Que para desencanta-la Não é de graça me, proza Só corre com tinideira É danada de coiceira, E de presença horroroza
Disem que ela se gera De uma famosa concubina, Na morada de um padre, Que maculou a batina, 112
Por causa da maldição Se vira nessa visão Que é assim tão ferina.
O Fantasma é um monstro Uma visão do luar, Quando aparece ao cristão Põe-se a se envergar, Para o lado do cristão Se ele não correr então Terá que se assombrar.
De modo semelhante ao Lobisomem, a Mula Sem Cabeça deve correr por sete cidades que sair, e para livra-la do encanto só tirando seu sangue, mesmo que seja apenas um pouquinho. Outra maneira é retirar o freio que ela carrega no pescoço (que está sempre sujo do sangue de seus dentes invisíveis), mas, como ela é muito rápida e feroz, essa possibilidade é bem remota! Quando encanto se quebra, dizem que ela volta a ser humana e aparece completamente nua, pois só assim poderá ser devidamente castigada por seu malfeito. Para que ela não se transforme novamente (ou não se transforme nunca) em Mula, o padre devera amaldiçoa-la sete vezes antes de começar a missa (outros dizem que é na hora de consagrar a hóstia santa, antes de tocá-la). A relação da figura da Mula com padre é antiga. Era muito comum que os sacerdotes andassem montados em mulas para se locomover, uma vez que os cavalos eram usados para transportar 113
soldados. A Mula Sem Cabeça provavelmente tem origens ibéricas. No Nordeste, é conhecida como Burrinha de Padre ou apenas Burrinha e, no interior do Maranhão, como Cavala-Canga. No México, dizem que ela se chama Malora, e, na Argentina, Mulánima, Alma Mula, Mula Sin Cabeza, Mujer Mula, Mala Mula, entre outros nomes. A Cumacanga também é aparentada com a Mula Sem Cabeça, uma vez que antes da transformação também era uma mulher concubina de um padre.
OUTROS NOMES: Burrinha, Burrinha de Padre, Cavala-Canga REGIÕES DO PAÍS: Todas ORIGEM: Europeia PERSONAGENS RELACIONADAS: Cavalo Fantasma, Cumacanga, Lobisomem, Saci-Pererê
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A chama do pecado Starway to heaven - Led Zeppelin
A lanchonete estava impregnada com o cheiro engordurado de carne assada acumulado por anos de fumaça da chapa. Curiosamente aquele cheiro não o incomodava mais como nos tempos do Ensino Médio e da faculdade. Sentia-se tonto cada vez que ia àquele mesmo local na hora do lanche e fazia de tudo para que os encontros com a rapaziada não fossem marcados para aquele local. Mas agora, o cheiro era o de menos. Ele sentia, ainda considerava sufocante, mas não mais do que o menor de seus atuais problemas. Sentou-se na mesma cadeira de sempre, colada à parede de onde podia ver tudo através da vidraça. A rua com seus passantes, a banca de jornal a metros para o lado. Do outro lado a fachada imponente do colégio e mais acima o campanário da igreja do seminário. O aglomerado de prédios, bosques e praças se amalgamavam para formar a mesma instituição: o Centro Diocesano de Ensino para Rapazes. Um colégio interno exclusivamente para meninos secundaristas, anexo ao qual havia também o seminário, de onde sairiam os futuros padres. Ele havia passado doze anos de sua vida ali, saiu para a vida clerical, passando por três paróquias até pedir para retornar ao colégio onde desejava ser professor. Prontamente atendido, pois sua inteligência ainda era afamada na instituição, retornou sendo recebido com festa por antigos professores e até colegas de turma que permaneceram no colégio. Colocaram inclusive um quadro de bela moldura, contendo sua foto e uma lista em letras douradas que narrava sua micro biografia e conquistas estudantis. Na lanchonete defronte o colégio, estava tomando o saudoso milkshake — que ratificou logo no primeiro gole não ser mais como antigamente — enquanto folheava um exemplar do quinto volume dos livros de sermões do Padre Antônio Vieira, quando viu entrar uma pessoa, que pela antiga tradição que ele conhecia, não deveria, ou não costumaria estar ali. Havia outra faculdade nas proximidades, inaugurada anos antes de seu retorno e com isso, a lanchonete deixou de ser o point exclusivo dos alunos e funcionário do Centro Diocesano e agora haviam muito mais garotas presentes ali a todo momento. Alguns seminaristas adiaram seus votos de castidade após a nova faculdade 116
abrir e dizem os boatos que flagras ocorreram envolvendo os que já haviam votado. Sentou-se de frente a ele, umas duas mesas depois. Colocou uma bolsa e um livro sobre a mesa e escondeu-se atrás da folha plastificada do menu. O que ele pôde ver foi a cascata negra e volumosa dos cabelos e os braços nus apoiados sobre os cotovelos. Fixou o olhar esperando ver o rosto. Sentiu o perfume adocicado que emanava dela e prometeu duas Ave-Marias caso fosse bonita. Quando o menu caiu na mesa ele aumentou a promessa para vinte. Era linda, tal qual um anjo. Porém, chamou-a para si mesmo de súcubo quando observou seu decote e seu batom vermelho. Ela o viu e sorriu. Ele abaixou a cabeça sentindo o rosto corar. Lembrou a si mesmo os motivos de ter se afastado da vida de pároco para voltar ao colégio e ser professor. Beliscou a própria coxa por baixo da mesa para martirizar-se por tal pecado. “Não! Não de novo” disse a si mesmo. Tentou não olhar para ela e voltou sua atenção para o livro, mas as palavras não faziam sentido. Dedicou-se ao milkshake, mas não era o mesmo de antigamente. Olhou o sol se escondendo atrás do alto campanário do seminário, mas sabia que o sol na mesa ali perto era mais radiante e ardente. Foi vencido e olhou. Ela o encarava sorrindo. Ele esquivou-se das flechadas de olhares e voltou o rosto para a vidraça, olhando para o nada. Após alguns instantes sentiu o perfume mais próximo e calor humano. Ela estava de pé ao seu lado, sorrindo, com um copo de cappuccino na mão e o livro sob a axila nua. Com um indicador coroado por uma longa unha rosa deslizou um pedaço de papel amarelo até perto do copo dele e saiu sorridente. Ele chegou ao seu dormitório em menos de cinco minutos e colocou o bilhete ainda fechado sobre sua mesa. — Vou queimar ou queimarei no inferno — Não queimou. Após um bom tempo de resistência pontificou que não poderia ser nada demais, que ao invés do que pensava, poderia ser apenas uma brincadeira dela. Talvez ela houvesse escrito ‘a bênção, Padre’. Mas quando abriu sentiu 117
o coração palpitar e sua selvagem lascívia despertando. No bilhete estava escrito: ‘me liga e descubra meu nome’ e na parte de baixo o número de um telefone celular. Os pensamentos e vontades foram incontroláveis e quando deu por si, estava discando o número em seu aparelho — Não! Jogou-o sobre a cama e recostou-se à parede. — Amanhã começam as aulas e eu preciso estar bem. Preciso estar consagrado — Voltou ao celular, desligou e o trancou numa gaveta da cômoda. Depois despiu-se por completo e se ajoelhou no tapete ao lado do leito para fazer algo que sempre esteve dentro da sua lista pessoal de fanatismos abomináveis. Puxou uma cinta de sob o colchão. Deu duas voltas com ela na palma da mão e passou a se auto flagelar, dando-se golpes com a ponta da fivela. Rezava entre dentes as vinte Ave-Marias prometidas mais cedo e cada golpe deixava um pequeno hematoma ou corte. Após isso dormiu exausto. Após três dias de aula, autoflagelo e mais um encontro casual com a estudante, ele caiu em tentação e ligou. O nome dela era Pietra e cursava direito. Viram-se no quarto dia na mesma lanchonete e ele tentou dissuadi-la de suas intenções, só para descobrir que a moça não ligava para sua situação clerical, pois considerava uma bobagem todas as formas de religião e de privações pessoais em nome de bens maiores. Ela queria e percebeu que ele também. “Mas eu sou Padre, não posso. Fiz um voto” Mas ela respondia que votos poderiam ser quebrados. Não ao preço que ele já havia pagado. Não queria repetir aqueles erros que o levaram ao profundo desespero. Havia feito um voto, o qual quebrou várias vezes com alguém que deveria ter orientado nos caminhos clericais, alguém vocacionada que o havia procurado como padre, mas que o encontrou várias vezes como amante. Ele, um padre, ela, pretendia ser noviça e posteriormente freira. A atração entre eles tornou-se mais forte que a fé e devoção. Contou tudo isso a Pietra para que ela entendesse o porquê de ele negar-se a ela e acrescentou a parte mirabolante de sua amargura. 118
“Por ter se envolvido com um sacerdote, uma maldição caiu sobre ela e ela se tornou em um monstro horrendo...” “A mula-sem-cabeça?” Pietra riu largamente “O senhor, com essa idade e todo esse estudo acredita nessas lendas de interior?” “Não zombe disso, por favor. Pessoas começaram a amanhecer mortas naquela cidade. Toda sexta-feira aparecia um cadáver com olhos, dedos e dentes queimados...” “Um serial killer...” “Não! Ela veio a mim em forma humana e disse que as mortes não cessariam enquanto eu não fosse dela de novo... Céus! Eu tive que fugir, me recolhi a um monastério...” “O senhor é louco...” A moça saiu assustada deixando o Padre sentindo uma confusão de alívio e perda. Desejava-a, mas seus tormentos da quebra de votos já eram suficientes para incorrer no mesmo erro. A carne era fraca para tão forte tentação, mas decidiu que se fosse ceder, aliviaria sozinho as suas tensões para depois açoitar-se em purgação de pecados. Foi para seu quarto cumprir a penitência do dia sem conseguir afastar Pietra dos pensamentos. Enquanto se flagelava com a fivela do cinto, viu o rosto da jovem que amou e desencaminhou. Aqueles cabelos ruivos sempre preso em um par de tranças. Os olhos cor de mel acima das bochechas rosadas e sardentas. Essa visão sempre vinha lhe torturar, pois o rosto angelical sempre se transmutava nas horríveis expressões demoníacas, com os olhos de um negro profundo e os cabelos cobertos de fumaça. “Amanhã é sexta-feira” lembrou-se e decidiu viajar. Procurar algum lugar isolado para meditar e preparar aulas. Adormeceu após rezar para não ter pesadelos, mas sua prece não foi atendida. De sua cama via clarões de fogos pela janela. Sons de relinches e batidas de cascos entravam pelas frestas da porta e janela. 119
Algo queria entrar e ele tinha certeza do quê. Enfiou-se sob as cobertas com as mãos tapando os ouvidos e assim ficou até que tudo se silenciou. Amanheceu e ele foi despertado com batidas na porta. Levantou-se ainda lembrando do sonho e enrolou-se no roupão. Outro padre estava à porta com uma expressão de desespero no rosto. Anunciou-lhe que uma tragédia havia acontecido. Um dos seminaristas fora encontrado morto no pátio da igreja. Teria sido um infarto? Um AVC? Mal súbito? Várias causas lhe chegavam ao pensamento enquanto seu colega sacerdote lhe descrevia o morto. Sim, sabia de quem se tratava, já o havia visto. Era um jovem magro, que sofria de insônia e passava estas vigílias em meditação na igreja ou em leituras na biblioteca. Outro padre juntou-se a eles avisando-os de que os acessos ao pátio estavam trancados para evitar tumultos e que a polícia já estava a caminho. Ao aproximarem-se de um grupo mesclado de professores, padres e noviços, pôde divisar o corpo caído, coberto com um lençol branco, através do qual erguia-se uma fina fumaça, na altura de onde estaria o rosto. O falecido estava caído em decúbito dorsal, com os pés sobre o terceiro degrau da escadaria que dava acesso à igreja. O braço direito estava para fora do lençol. Um rosário entrelaçado nos dedos enegrecidos. Sentiu-se estremecer. Um curioso puxou o lençol para ver as feições. As órbitas estavam vazias e carbonizadas e a boca assemelhava-se a uma pequena chaminé já no apagar das chamas. Precisava fugir, se esconder. Não foi um sonho. Ela o havia encontrado. Tentou correr, mas uma súbita vertigem o derrubou e o fez convulsionar. Teve alta do hospital apenas cinco dias depois, na quarta-feira à tarde. Durante sua internação nada quis dizer a respeito do seu passamento deixando todos acreditarem que a morte do noviço o abalou a ponto de ter um surto agudo de stress. “Preciso fugir. Preciso fugir. Preciso fugir” repetia para as paredes do quarto enquanto arrancava a batina de si para se autoflagelar novamente. 120
No entardecer da quinta-feira esbarrou com Pietra e trocaram sorrisos, mas não ousaram parar para conversar. Decidiu tomar um ou muitos milkshakes na velha lanchonete engordurada de onde vislumbrou mais uma vez toda a magnitude do Instituto Diocesano. “Meu lar?” Já eram quase dez da noite quando saiu para a rua e resolveu tomar outro caminho de volta ao seminário. Daria a volta pelos fundos. A viela das partes subalternas estavam do mesmo jeito: decadente e mal iluminada. Apenas três postes despejavam seus círculos de luz ao longo de todo o caminho. Iniciou a travessia afirmando para si que algumas coisa em certos lugares não mudam nunca. O mesmo breu, a mesma atmosfera de urina acumulada por anos, lixo, poças d’água, folhas. Distraidamente resvalou o pé em algo mole e consideravelmente pesado mas imóvel. Uma pessoa? Acendeu a tela do celular e conferiu. Havia uma pessoa caída ali. “Será que está desacordada” ao aproximar-se do rosto caiu sentado para logo sair em disparada até o refúgio de seu quarto deixando o corpo sem vida de Pietra para trás, com a boca e os olhos carbonizados. Chegou atônito ao quarto e começou a jogar todos os seus pertences dentro de uma mala. Não ficaria mais ali nem por um instante sequer. Mas o quarto ficou todo iluminado após um barulho de madeira sendo rachada. A luminosidade estava às suas costas, mas mesmo sem olhar ele já sabia quem estava presente. Ao voltar-se vislumbrou o ser hediondo que estava postado na entrada do quarto. A criatura de quatro patas e silhueta muar pisoteava as lascas de madeira que sobraram da porta enquanto uma coluna de chamas elevava-se onde estaria a cabeça emanando um rugido furioso. Ele a encarou sem medo. “Você quer a mim? Venha! Vamos acabar logo com isso!” 121
Na tarde do dia seguinte, arrombaram a porta por conta do cheiro de queimado. Encontraram o padre morto, nu em sua cama. Tinha os olhos e a boca queimados. Sobre seu peito, jazia o cadรกver de uma moรงa sardenta de tranรงas. Olhos cor de mel semicerrados e com as mรฃos enegrecidas do padre ao redor de seu pescoรงo.
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ILUSTRAÇÃO SACI PERÊRÊ
SACI-PERERÊ Azedou o leite? As galinhas estão nervosas? O rabo do cavalo está cheio de nós? A comida estragou? Sumiu alguma coisa de dentro de casa e ninguém consegue achar? A louça quebrou sem ninguém sequer pôr a mão nela? Viu um rodamoinho forte, daqueles que espantam todas as folhas do quintal? É o Saci-Pererê, claro! Considerada uma das personagens mais conhecidas - e queridas! - do folclore brasileiro, esse negrinho de uma perna só tem tantas histórias quantas se consegue contar. São tantas as histórias que um dos nossos maiores escritores, Monteiro Lobato, resolveu reuni-las no livro O Saci-Pererê: resultado de um inquérito (1918), fruto de uma grande pesquisa de opinião sobre aquele que é tido como o mais brasileiro de todos os mitos folclóricos. Naquela época, o mundo vivia a Primeira Guerra Mundial, e Lobato “louvava” a figura do Saci-Pererê como alguém que tinha vindo para “aliviar-nos do pesadelo”: “Por várias semanas alvorotaste meio mundo, oh infernal maroto, e desviaste a nossa atenção para quadrado mais ameno que o trucidar dos povos, Bendito sejas!”. E, a partir de então, o nosso escritor, autor das aventuras que se passam no Sítio do Picapau Amarelo, popularizou o Saci-Pererê de tal maneira que até hoje não há quem não o conheça e não saiba contar pelo menos uma história de suas travessuras. Vejam só como Lobato descreve o esperto negrinho por meio de Tio Barnabé, uma de suas personagens favoritas:
O saci é um diabinho de uma perna só que anda solto pelo mundo, armando reinações de toda sorte: azeda o leite, quebra pontas das agulhas, esconde as tesourinhas de unhas, embaraça os novelos de linha, faz o dedal das 125
costureiras cair nos buracos, bota moscas na sopa, queima o feijão que está no fogo, gora os ovos das ninhadas. Quando encontra um prego, vira ele de ponta pra riba para que espete o pé do primeiro que passa. Tudo que numa casa acontece de ruim é sempre arte do saci. Não contente com isso, também artomenta os cachorros , atropeia as galinhas e persegue os cavalos no pasto, chupando o sangue deles. O saci não faz maldade grande, mas não há maldade pequenina que não faça.
O folclorista Luís da Câmara Cascudo, em Geografia dos mitos brasileiros (1947), também nota a importância de Lobato para a enorme fama do saci: “Quando se fala no Saci-Pererê, sabe-se do “inquérito” que Monteiro Lobato dirigiu e que resultados extensos denunciou para a existência fantástica do duende negrinho”. Porém, para alguns, esse duende é mais do que fantástico, e sua existência é, de fato, indiscutível. É o caso da Sociedade dos Observadores de Saci, que também admite a relevância do trabalho de Lobato:
Em suas histórias, Lobato conta que sacis nascem em “sacizeiros”, taquaruçus que ficam na parte mais espessa das florestas. Ficam sete anos dentro dos gomos antes de poderem sair, e depois vivem no mundo por 77 anos. Depois, viram cogumelos venenosos ou orelhas-de-pau. Nos taquaruçus eles se escondem durante o dia, já que o sol é seu maior inimigo. Segundo as próprias palavras do saci para Pedrinho, no livro de Lobato, eles não precisam aprender nada, pois já nascem sabendo tudo o que precisam. Às vezes são apresentados como possuindo furos no centro da palma das mãos.
A figura do Saci-Pererê aparece no Brasil no final do século XVIII e se populariza no XIX, época em que seu nome era escrito com a 126
letra “y”: Sacy-Pererê. Dizem que vem do tupi-guarani: çaa cy quer dizer “olho mau, olho doente”, e pérérég, “saltitante”. No Diccionario de vocabulos brazileiros, de 1889, o nome da personagem é grafado como Sací, Sací-Pererê e Sací-Sêrêrê, mas também há registros em outras obras de Saci-Taterê e Saci-Sacerê. Na verdade, a figura do Saci-Pererê tem ramificações em muitos lugares, talvez por isso seu nome mude tanto. Fora do Brasil encontramos o Iací-Íaterê, que é o Saci-Pererê do Paraguai, do Uruguai e da Argentina sendo que sua figura pode ser relacionada também com o Kobold alemão mesmo com os elfos. Em Portugal, é bem conhecido como Fradinho da Mão Furada, características que o nosso Saci-Pererê manteve por aqui. Ainda é aparentado com o mito português Pesadelo (para nós, a Pisadeira), que também possui as mãos furadas. Há registros que citam apenas dois tipos de Saci-Pererê: o Saci-Ave e o Saci-Negrinho, que foi o que se tornou mais popular no Brasil. Por isso, não é nada simples falar dele, tamanha a quantidade de informação sobre o danado! Dizem que o Saci-Ave se parece com o anu-branco, um pássaro de bico vermelho. Quando chamado de Sem-Fim, é identificado com uma ave demoníaca, que faz maldades pelas estradas e engana os viajantes mudando as notas de seu canto para que percam o rumo. Tem também a Peitica ou a Maria-Já-É-Dia e o Mantintapereira, que são tidos como tipos de Saci-Ave. Fato é que ele é tão travesso quanto o negrinho de uma perna só. Em muitos lugares contam que o Saci-Pererê, quando perseguido, vira um passarinho, dá risada desse feito e deixa todo mundo admirado com sua esperteza. O Saci-Pererê que nós conhecemos tem diversas características que se popularizaram, mas elas variam conforme a região. Na maioria, trata-se de um negrinho que anda com uma perna só (há alguns lugares contam que veste uma blusa vermelha, mas isso também não é muito comum), sem pelos (já outras dizem que é bem peludo) nem órgãos sexuais, usa uma carapuça vermelha (ou barrete) mágica e fuma um cachimbo (em alguns lugares ele aparece sem esse apetrecho), além de soltar fumaça pelos olhos. Em cada 127
uma das mãos possui só três dedos, e no centro delas há um furo. Quando quer, solta um assobio longo e fino e fica invisível. O folclorista Alceu Maynard Araújo, no primeiro volume de Folclore nacional (1964), apresenta três tipos de saci:
Conhecemos três espécies de saci: Trique, Saçurá e Pererê. O saci mais encontrado por aqui é o Saci-Pererê. É um negrinho de uma perna só, capuz vermelho na cabeça e que, segundo alguns usa cachimbo, mas eu nunca vi. É comum ouvir-se no mato um “trique”; isso é sinal que por ali deve estar um Saci-Trique. Ele não é maldoso; gosta só de fazer certas brincadeiras como, por exemplo, amarrar o rabo de animais. O Saçurá é um negrinho de olhos vermelhos; o Trique é moreninho e com uma perna só; o Pererê é um pretinho que, quando quer se esconder, vira um corrupio de vento e desaparece no espaço.
Além desses, o folclorista José Ribeiro, em Brasil no folclore (1970), ainda apresenta outros, como Saci do Poá, que, como a Mula Sem Cabeça, bota fogo pelas ventas; o Saci-Tererê, que é sedutor de moças e anda passando uma brasa de um furo de uma mão para o furo de outra; o Saci-Taterê, que usa camisa, tem cor de formiga e não espora; o Saci-Sacerê, que usa calça de algodão e entra na água sem se molhar, é treloso, irrita os garimpeiros e apadrinha casamentos; e o Beira-Mar, que lança fogo pela boca e para o sertanejo é um preto baixo e gordo, com dentes brancos e perfeitos, que usa um bastão e não pula. Haja saci! O sonho de qualquer pessoa é pegar o Saci-Pererê. Dizem que quem conseguir roubar sua carapuça terá riquezas sem fim. Ela ajuda a encontrar qualquer coisa perdida se estiver de bom humor. E, se for amarrado, tanto acha o que estiver perdido como também dá tesouros a quem o amarrar. 128
Mas como fazer para agarrar esse negrinho esperto? Espera-se o rodamoinho em que o Saci-Pererê está e então joga-se uma peneira em cima dele, mas essa peneira tem de ser invertida e trançada em forma de cruz. Pronto, ele está preso e só poderá ser solto se fizer o que a pessoa que o capturou mandar. Outra possibilidade é jogar um garfo no rodamoinho; se o garfo pegar no Saci-Pererê e tirar sangue, ele estará preso! Também se pode pegar uma palha tirada de um rodamoinho e dar-lhe três nós, prendendo-a no pé da mesa. Com esse mesmo tipo de artifício pode-se tentar fazer com que ele encontre algum objeto perdido, pois assim se está amarrando o órgão sexual do Saci-Pererê. Enquanto ele não achar o objeto, não se desatam os nós, Ele logo faz a pessoa encontrar o que perdeu porque fica com vontade de fazer xixi. Se um rosário bento ou um terço de capim for atirado no rodamoinho, ele também ficará preso. Pode-se mantê-lo numa garrafa. Se lhe arrancarem o capuz, ele ficará maluquinho e fará qualquer coisa para tê-lo de volta! Se o Saci-Pererê estiver na cozinha e a pessoa quiser prendê-lo, é só dar uma machadada no chão e olhar para o sol, deixando o machado ali, fincado na terra. Quem deu a machadada deve fazer o sinal da cruz e voltar para a cozinha, sem nem olhar para trás. Se a pessoa quiser manter o Saci-Pererê longe, deve chamar três vezes pela Virgem Maria, pois a personagem tem horror a essa entidade. Pode rezar o Credo e também fazer o sinal da cruz e expor um santinho bento. Nunca mais o danado vai voltar ali! As diabruras do Saci-Pererê são infinitas e criativas. Em Minas Gerais, por exemplo, não se faz rosca doce ou biscoito de sexta-feira para sábado, pois, como Saci-Pererê só anda de sexta-feira à noite, ele costuma azedar essas iguarias. Lá também acreditam que ele carrega para matas bem distantes as crianças que são muito desobediente e manhosas, que arruína ninhadas, queima balões e faz o milho da pipoca virar piruá. Há quem diga que ele é especialista em causar dor de barriga em quem come comidas muito gostosas e em judiar de quem não quiser dar fumo de corda para seu cachimbo. 129
Personagem inesquecível, ele está presente na nossa literatura de diversas maneiras, inclusive numa das obras mais respeitadas da nossa tradição literária, Os sertões (1902), de Euclides da Cunha. Sobre ele, diz o autor: “Os sacis diabólicos, de barrete vermelho à cabeça, assaltando o viandante retardatário, nas noites aziagas das sextas-feiras”.
OUTROS NOMES: Beira-Mar, Saci-Ave, Saci-Avisador, Saci-Cererê, Saci do Poá, Saci-Negrinho, Saci-Saçurá, Saci-Sacerê, Saci-Taterê, Saci-Tererê, Saci-Trique REGIÕES DO PAÍS: Todas ORIGEM: Africana, europeia, indígena PERSONAGENS RELACIONADAS: Angoera, Bicho-Homem, Caipora, Canhambora, Chimbamba, Cuca, Curupira, Guajara, Jaci, Matintapereira, Mula Sem Cabeça, Pisadeira, Romãozinho, Tibarané, Tibungue, Zumbi
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TEMPAT Â BAGI ORANG YG TERLANTAR Devil Devil - Milck
Leonardo Azevedo passou a vida procurando edições raras de livros. Entre suas preciosidades estão publicações banidas do cânon bíblico como o Livro de Enoch e o Apocalipse de Tiago. Professor letrado, Leonardo reluta a se adaptar à era dos downloads e obras em pdf. Odeia ler livro na tela do computador. Não há mais espaço na sua casa para guardar livros, eles se amontoam em pilhas pela sala e já chegam até a cozinha. Mesmo assim, continua viajando por cidadezinhas e vilarejos buscando publicações. Sua atual obsessão é um livro negro de pronúncia complicada, Tempat Bagi Orang Yg Terlantar, considerado, como muitos outros, apócrifo. Dizem que contém profecias e revelações perturbadoras sobre a criação deste mundo, e é composto apenas por imagens. As ilustrações surgem aleatoriamente para cada leitor que ousa a se aventurar pelas suas páginas malditas. Leonardo sabe que não deveria procurá-lo. Se foi exonerado é para que continue na escuridão do desconhecimento. Mas a vontade de folheá-lo é muito maior. Anos de e-mails e telefonemas levaram-no a um endereço em Pinhais, a oito quilômetros de Curitiba, onde reside o Sr. Adelar Assumpção. Ele cuida de uma biblioteca de bairro, que muitas crianças costumam frequentar diariamente. Já é noite quando Leonardo bate palmas no portão, chamando por Adelar. Uma coruja observa tudo, lá de cima, no conforto de um galho de pinheiro. Alguns minutos depois, aparece alguém, protegendo-se do frio com cachecol, sobretudo e um gorro do “Charlotte Hornets”: “Pois não?” “Sr. Adelar Assumpção?” “Eu mesmo!” “Sou Leonardo Azevedo, liguei para o senhor hoje cedo.” 132
“Ah, sim, pode entrar, professor! O portão está aberto.” Leonardo caminha com Adelar até a cozinha enquanto conversam sobre os livros. Uma chaleira ferve no fogão antigo e esfalfado. “Toma café, professor?” “Opa! Muito bom!” “Esquenta o coração. Mas, me diga, quer dizer que possui uma versão do livro de Enoch na sua biblioteca?” “Isso mesmo. Fabuloso! Encontrei-o num sebo obscuro em Maringá. Acho que foi em 89. Algo assim. Estava conservado até. Uma sorte!” “E é verdade que Enoch relata um encontro com seres extraterrestres neste livro?” “Ele não escreve exatamente extraterrestre. Relata “...recebi a visita de dois homens de grande cultura, como jamais havia visto na vida. Seus rostos brilhavam como o Sol, seus olhos pareciam lâmpadas ardentes. O fogo era expelido por seus lábios. Suas roupas pareciam plumas. Seus pés eram purpúreos, seus olhos brilhavam mais que a neve. Chamaram-me por meu nome...” “Olhos brilhantes e fogo da boca? Isso até parece descrição do saci!” “O saci? Desconhecia esta descrição. Só conhecia a clássica versão perneta com gorro vermelho.” “Tenho uma edição de Monteiro Lobato intitulada O Saci-Pererê: Resultado de um Inquérito. Coletânea de relatos de pessoas do Brasil todo. Enviaram cartas ao Estado de São Paulo com seus contos e histórias relacionadas ao saci. Alguns casos verídicos! Depois pego para o senhor ver. Neste livro, há definições impressionantes, e entre elas muitos comentam sobre olhos brilhantes e labaredas nos lábios.” 133
Adelar despeja a água fervendo sobre o café no coador, e o perfume se alastra pela casa. A fumaça vaga entre as prateleiras e pilhas de livros sobre os armários, sumindo na escuridão de um quarto escuro. Lá fora, o vento uiva ameaçadoramente. “Enoch descreve neste livro sete mundos diferentes do nosso. Viu neles criaturas aladas com cabeças de crocodilo e pés e caudas de leão. Enoch afirma que, para ele, a viagem durou poucos dias, mas quando voltou para Terra, séculos haviam passado. É o que a relatividade anuncia para uma viagem feita na velocidade da luz. E o livro de Enoch, mesmo que não date do século X, mesmo que não seja contemporâneo da Bíblia, foi publicado bem antes da descoberta da relatividade” conta o professor, enquanto Adelar termina de despejar a água e fecha a térmica. “Muito interessante! Caneca?” “Pode ser!” Adelar serve o café em duas canecas brancas. “Hmm, delícia. Nem forte, nem fraco. No ponto.” “Vamos até a sala, quero te mostrar algumas raridades.” O professor Leonardo senta-se à grande mesa de madeira, encostada na janela. Sorve lentamente o café, tomando cuidado para não queimar a língua. Adelar traz uma caixinha de madeira à mesa, com suprimentos de fumo para cachimbo. “O senhor fuma?” “Não, obrigado. Manda brasa!” Adelar então começa a preparar o calango, socando o fumo com as mãos protegidas do frio por uma luva sem dedos. “Mas o senhor sabe o motivo por que vim até aqui” relembra o professor. “Tem certeza de que deseja aquele livro sinistro?” 134
“Há anos espero por isso, Adelar” O taciturno não responde. Concentra-se em acender a brasa de seu longo cachimbo, exalando numa primeira baforada a fragrância forte de baunilha. A fumaça mistura-se às das canecas de café, tomando conta do espaço. Só então Adelar responde: “Existem livros que deveriam ficar na escuridão e de lá nunca sair.” Leonardo olha em direção ao setor escuro da casa, um corredor que provavelmente leva aos quartos. “Vou lá pegá-lo. Aguarde aqui, por favor.” Adelar volta-se à escuridão. A fumaça do cachimbo desaparece lentamente durante seu caminhar até o quarto. Adelar volta, depois de meia hora, com o livro nas mãos. Descansa-o suavemente sobre a mesa. Na capa, o título “Tempat Bagi Orang Yg Terlantar” gravado em relevo. Leonardo folheia-o cuidadosamente, pulando algumas páginas. Volta, analisa a brochura, cheira. Está claramente deslumbrado. Tanto que não percebe na arma que Adelar tira de dentro do casaco escuro. “Você sabe que não poderá viver depois disso, não é” pergunta, apontando-lhe a pistola prateada. “Sim, eu conheço o mito. Por isso não vim sozinho.” Adelar olha em volta, apontando a arma para outras direções da casa, quando então percebe a luz vermelha que marca seu peito. Leonardo revela: “Meu companheiro está com você na mira desde que entrei. Ele arrebenta seus miolos antes que você pense em apertar o gatilho. Agora me faça o favor de trazer o livro correto. Não me interessa esta cópia banal!” Leonardo saca uma pistola também e manda Adelar depo135
sitar a sua arma sobre a mesa antes de irem até o quarto pegar o livro certo. Lentamente caminham em direção a escuridão. O livreiro sente o cano da pistola em sua nuca enquanto anda. A luz vermelha acompanha-os até sumirem. Do lado de fora, o atirador camuflado; Rodrigo Franco mantém a posição, mirando a sala de Adelar no visor da espingarda. Está muito frio, mas o rapaz aguenta firme na espreita. Nem a fome o abate, pois sabe o valor da missão para a qual fora designado. Horas se passam e os dois não voltam do setor escuro da casa. Rodrigo tenta iluminar algo com a luz vermelha da mira, mas não funciona. Conjectura a possibilidade de ter acontecido algo de ruim. E para piorar, começa a ouvir sons sinistros vindos da floresta. Alguma criatura parece rondar a casa. Talvez seja imaginação, mas Rodrigo não espera para comprovar. Corre em direção à casa chamando por Leonardo. Ninguém responde. Nenhum som. Nada. “Leonardo! Está bem? Leonardooo!” Não acredita que algo pode ter acontecido, afinal não ouvira som algum. Nem barulho de tiro nem batida estanque. Nada. O silêncio imperou desde que Leonardo entrou. Assim que Rodrigo adentra a casa, encosta sua espingarda e troca-a pela pistola de Adelar que estava sobre a mesa. Embrenha-se então na parte escura. Tateia as paredes à procura de um interruptor, mas não encontra. Seus pés vão vasculhando objetos e possíveis corpos. Mas não há nada. Dentro do quarto, consegue descobrir uma janela fechada. Abre o trinco, permitindo que a luz da lua ilumine um pouco. Não há corpos, nem sangue. Nenhum sinal de Adelar ou Leonardo. Apenas um livro velho sobre o piso de madeira carcomido. Na capa, Rodrigo lê “Tempat Bagi Orang Yg Terlantar”. Com o livro nas mãos, vai embora assustado. Ainda dá uma volta lá fora chamando pelo amigo, mas ninguém responde. Intrigado, corre até o carro. Joga as armas no banco de trás e o livro na frente. Para matar a curiosidade, antes de ligar 136
o carro, dá uma folheada no volume. A imagem que lhe aparece é uma criatura, semelhante ao Yamantaka, que é citado no Bardo Thodol, livro dos mortos dos tibetanos. Rodrigo se assusta e fecha logo, desistindo de explorá-lo. Dirige o carro em direção à cidade. Batimentos acelerados. Teoriza na mente o que teria acontecido àqueles dois. Estrada vazia. Olha para o lado e vê uma criatura diabolicamente sorridente saltando na mesma velocidade do carro. Possui olhos brilhantes, fogo nos lábios e se move dando grandes pulos numa só perna de bode. Atrás dela vêm outras. Até que uma escuridão apocalíptica se alastra por tudo, consumindo todos os lugares por onde o carro passa, e enfim engole por completo o carro de Rodrigo. Muitas horas depois, o carro é encontrado abandonado em um acostamento por policiais. Não há vestígios de sangue nem luta. Sobre o banco da frente, o velho livro.
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Bibliografia ALVES, Januária Cristina. Abecedário de personagens do folclore brasileiro: E Outras Criaturas do Folclore. 1. ed. Brasil: FTD Educação, 2017. p. 1-416. AMADO, T. S. E. M; Quando o Saci Encontra os Mestres do Terror: E Outras Criaturas do Folclore. 2. ed. Brasil: Editora Estronho, 2013. p. 1-231. GOETTEMS, Aline; O Lado Sombrio do Folclore. 1. ed. Brasil, 2019. p. 1-144. INSTAGRAM. brooklynsnobs. Disponível em: https://www.instagram.com/brooklynsnobs/. Acesso em: 1 mai. 2020. DARKSIDE. Dark Side Book. Disponível em: https://www.darksidebooks.com.br/. Acesso em: 16 abr. 2020.
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Agradecimento Este ano de 2019, foi um ano de muito aprendizado, de muitas parcerias e de muitas amizades que ganhei este livro. Pensei em desistir algumas vezes, mas não posso desistir de algo que me faz tão bem, escrever. Esse ano, consegui parcerias incríveis com editoras que sempre admirei. Nunca sei por onde começar esses agradecimentos, mas acho que primeiramente devo agradecer aos meus pais que sempre me apoiaram muito com o blog; foi meu pai que me deu o primeiro livro, e desde então não parei mais de ler; e minha mãe sempre está disposta a me ajudar a fazer fotos, achar objetos para compor fotos, e tudo mais. Amo vocês. E claro, meu muito obrigada a todos que me ajudaram a fazer uma obra tão incrível e abraçaram meu projeto. Um obrigada em especial ao Marcio Pacheco, que me deu a ideia de apresentar a ideia a editora DarkSide, ao Jonas Vendrame que sempre me ajuda em tudo, mesmo quando as ideia são loucas demais, e ao Eduardo Casamasso, que nem tenho palavras para descrever a importância que tem na minha vida junto com o Théo! E obrigada a você leitor, que chegou até aqui!
Januária Cristina Alves, Jornalista, Mestre em Comunicação
Social pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo com uma tese sobre jornalismo infantil, especialista em Infoeducação pela mesma Universidade, escritora com mais de 60 obras publicadas para crianças e jovens (e duas para adultos). Ex-roteirista do programa infantil da TV Cultura “Bambalalão” e ex-colaboradora da Maurício de Sousa Produções como roteirista de histórias da Turma da Mônica. Colaboradora de diversos jornais e revistas como Cláudia, Marie Claire, Folha de S. Paulo, Jornal da Tarde, O Estado de São Paulo e Diário do Grande ABC escrevendo sobre Educação, Cultura e Comportamento.
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" Quem escreve um livro cria um castelo, quem o lê mora nele." - Monteiro Lobato DARKSIDEBOOKS.COM
Demônio (De-mô-ni-o): Espírito maligno. Entidade sobrenatural de natureza maléfica; Diabo; Lúcifer. Folclore (Fol-clo-re): As tradições e histórias de um país ou uma comunidade.