TFG I | Projeto Urbano para o Córrego do Engenho: resgate das margens na periferia de São Paulo

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PROJETO URBANO PARA O CÓRREGO DO ENGENHO:

resgate das margens na periferia de São Paulo MARIA CATARINA DE LAMAS DIAS ORIENTADORA: PROFª MA. LUIZA SOBHIE MUÑOZ 1


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Maria Catarina de Lamas Dias

Projeto urbano para o córrego do Engenho: resgate das margens na periferia de São Paulo

Trabalho Final de Graduação apresentado ao curso de Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho”, campus de Presidente Prudente. Orientadora: Profª Ma. Luiza Sobhie Muñoz

Presidente Prudente 2022 3


resumo


Ao longo do processo de urbanização de São Paulo os córregos, rios e ribeirões eram vistos como uma barreira para avanço da cidade. A metrópole que se consolidava pelo avanço da industrialização se beneficiou da grande presença de água, principalmente para a produção de energia elétrica. Todavia, essa abundância hídrica impedia a ocupação de terras muito próximas aos cursos d’água em razão de serem áreas inundáveis, além de muitos rios e córregos já estarem poluídos, configurando um ambiente insalubre. Como

solução, as canalizações e

tamponamentos se tornaram amplamente empregados para controlar e esconder os rios nas porções mais valorizadas da cidade. Por outro lado, as margens dos córregos que percorrem as periferias foram tomadas por assentamentos precários baseados em autoconstrução, sem qualquer controle do poder público. O resultado desse sufocamento resultou na intensificação da poluição das águas, como também das inundações, recorrentes todos os anos. Sem dúvida um relacionamento conturbado entre a Palavras-chave: córregos urbanos,

cidade de São Paulo e seus rios.

periferia, inundação, assentamentos precários, São Paulo - SP.

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sumário


Introdução

08

1. Relação histórica São Paulo x Rios 1.1. O papel das várzeas na cidade de São Paulo entre 1850-1950 1.2. Abastecimento de água, produção de energia (e ganho de terras) 1.3. Código das Águas 1.4. Consequências da exploração industrial no século XX: canalização, produção residencial e sistema viário

12 13 14 16

2. A ocupação da zona sul de São Paulo 2.1. Santo Amaro: de município independente à zona sul da capital 2.2. Periferização de São Paulo: formação do Capão Redondo

25 26 35

3. O córrego do Engenho e arredores: uma análise socioambiental 3.1. A sub-bacia do Pirajuçara: ocupação, enchentes e escolha da área de estudo 3.2. Análise do recorte

41

18

42 52

4. Estudos de caso: projetos em córregos urbanos no Brasil e América Latina 4.1. Projeto Urbano Córrego do Antonico 4.2. Rutas Naturbanas

76 77 82

5. Diretrizes de projeto 5.1. Considerações finais

87 90

Referências bibliográficas

91

Anexos

95 7


introdução


Rios e córregos no início da formação de São Paulo foram de imensa importância para seu crescimento. Eram necessários para as atividades mais básicas como abastecimento e transporte de pessoas e mercadorias. Ao longo da urbanização, essa boa relação foi se transformando em empecilho para o avanço e modernização da cidade. Intervenções hidráulicas foram adotadas em massa, tanto para a contenção das cheias, quanto para o enfrentamento da crise sanitária. Essas obras, em sua maioria, se concentravam na zona central da cidade. Já nas áreas mais afastadas, as margens de córregos comumente serviam de base para as construções irregulares. Com o passar dos anos, a população periférica foi crescendo e as problemáticas sanitárias e de inundações foram se agravando, visto que muitas das ocupações eram clandestinas e raramente contavam com infraestrutura urbana adequada. H ouveram

avan ç os

quanto

ao

saneamento básico e tentativas de contenção de enchentes com as canalizações e instalação de reservatórios de amortecimento, mas a população mais vulnerável que vive perto de córregos segue convivendo com essas problemáticas. 9


Este trabalho tem o objetivo de

uso e ocupação do solo, além de análise de

compreender os conflitos entre a cidade de

dados relativos a inundações, áreas de risco,

São Paulo e seus rios com ênfase no contexto

imóveis ociosos, dentre outros tópicos via mapa

periférico, a fim de basear diretrizes de projeto

georreferenciado.

que promovam a reconciliação da cidade com

Re c orrem os

primeiramente

aos

os cursos d’água, principalmente nas áreas mais

processos históricos relativos ao período de

frágeis social e ambientalmente.

industrialização-urbanização da cidade a fim de

Como objeto de estudo propomos um

entender o que levou São Paulo a renegar seus

trecho do córrego do Engenho, localizado no

rios. Na sequência buscou-se tratar do mesmo

distrito do Capão Redondo, zona sul de São

momento histórico, mas tendo como cenário o

Paulo. Ele é um dos afluentes da sub-bacia do

ex-município de Santo Amaro que agora compõe

ribeirão Pirajuçara, cuja maior problemática é

grande parte da zona sul da cidade. Com isso

o seu histórico de inundações. Na extensão do

adentramos o distrito do Capão Redondo, na

córrego do Engenho é possível notar a presença

tentativa de compreender a formação da periferia

de assentamentos precários que despejam o

e o função dos rios nessa conjuntura.

esgoto diretamente no curso d’água.

É feita uma análise geral da bacia

A escolha do tema se justifica pela

hidrográfica do Pirajuçara com o intuito de

relevância das águas urbanas, recurso primordial

contextualizar o espaço físico e a produção da

para a vida, que protagoniza conflitos de natureza

cidade, com ênfase no conflito protagonizado pela

social e ambiental gerados pela ocupação

rede hídrica e o avanço das ocupações urbanas.

desenfreada do solo urbano como um todo, mas,

Fazemos isso com base em trabalhos feitos sobre

sobretudo, das áreas de várzea.

a bacia, além de material disponibilizado pelo

Os procedimentos metodológicos

portal Geosampa. Só então nos concentramos

empregados foram pesquisa bibliográfica para

na área definida, avaliando sua situação atual por

formulação de embasamento teórico acerca

meio de mapas, ocorrências, estudos e trabalhos

dos temas principais,

de campo.

trabalhos de campo

para registros fotográficos e levantamento de 10

O trabalho inclui também exemplos de


gestão dos cursos d’água urbanos, do Brasil e América Latina, baseados em requalificação de áreas degradadas e valorização de espaços verdes e de lazer.

11


1. Relação histórica São Paulo x Rios


1.1. O papel das várzeas na cidade de São Paulo entre 1850-1950 Desde o início de sua fundação, a paisagem de São Paulo era marcada pela forte presença de rios e córregos. A relação, no entanto, se mostrou conturbada desde pelo menos o século XIX, quando a instalação de indústrias tomou preferência por terras próximas aos cursos de rios e suas várzeas, já que eram abundantes e economicamente mais acessíveis. Antes desse período, os terrenos alagáveis eram sabiamente desocupados, não servindo para os usos residenciais nem para as estradas, usados por carros movidos por tração animal (LANGENBUCH, 1971). Contudo, as áreas topograficamente mais baixas serviam muito bem para o transporte sobre trilhos. E, se estas fossem banhadas por algum rio, se tornavam mais interessantes para o fim industrial, juntando assim Esse capítulo se propõe a explorar a perspectiva histórica da dinâmica entre a cidade de São Paulo e sua rede hídrica a partir de meados do século XIX, período anterior ao processo de metropolização. O objetivo é entender os processos urbanos que levaram ao enquadramento dos rios como elementos problemáticos, visão essa que perdura até hoje.

o espaço de produção e o meio de escoamento da mercadoria (PETRONE, 1955). “A mudança de foco da economia da cafeicultura para a indústria urbana, no final dos anos 1920 e a consolidação do sistema ferroviário estimularam a tendência de se ocupar as planícies que circundavam a cidade e as várzeas dos rios com instalações industriais” (GOUVÊA, 2016, p. 17). 13


A preferência por locais de várzea se justificava pelo baixo custo, grande oferta de

1.2. Abastecimento de água, produção de energia (e ganho de terras)

terras, possibilidade de transporte fluvial e, ainda,

Na segunda metade do século XIX a

a utilização do rio como canal de lançamento de

cidade viria a sofrer uma violenta crise hídrica.

esgoto (LANGENBUCH, 1971).

Os chafarizes, largamente usados desde o

Era comum também a atividade extrativista de areia, argila e pedregulho dos

século XIV, não eram mais suficientes devido, principalmente, ao aumento populacional.

leitos dos rios. Segundo Kahtouni (2004) as

“A distribuição de água de São Paulo, na década de 1860, era uma rede mista onde 80% da água consumida pelos moradores não era proveniente dos chafarizes da vila, mas sim, de cisternas, da coleta direta em rios, da venda de água pelos aguadeiros” (GOUVÊA, 2016, p.170).

indústrias produtoras de telhas e tijolos eram as que predominantemente se instalavam ao longo do Tietê “O fluxo dos antigos batelões, que sobreviveu até o início da década de 1970, foi muito significativo, levando e trazendo materiais de construção para os pequenos portos” (KAHTOUNI, 2004, p. 37).

A

qualidade

da

água

oferecida

naturalmente pelos rios já não era segura. Pelo menos até a metade do século XIX, para ter acesso à água, a maior parte da população de São Paulo se via obrigada a se abastecer com as águas poluídas do rio Tamanduateí (KAHTOUNI, 2004). Nessa época: “as águas do sistema hídrico que interagiam com a cidade eram consideradas sinônimo de doenças, contaminação e falta de urbanidade, em um sentido muito cultural dos cidadãos, os quais, de fato, encontravam-se expostos às imundícies dos cursos d’água das áreas centrais e consolidadas de São Paulo” (KAHTOUNI, 2004, p. 67).

14


Esse cenário dá início à criação dos primeiros parques públicos de São Paulo, com a intenção de preservar as nascentes dos mananciais (KAHTOUNI, 2004). São datados dessa época os parques Fontes do Ipiranga (1893) e Cantareira (1896). As águas coletadas nas nascentes do Cantareira eram transportadas até os reservatórios existentes no início do século XX, o da Avenida e o da Consolação. Um potencial projeto que não se concretizou foi o uso do rio Tietê como manancial para a cidade, acompanhado de uma proposta para o tratamento de suas águas, proposto por Saturnino de Brito em 1905 (KAHTOUNI, 2004). Segundo Kahtouni (2004), as obras relacionadas aos recursos hídricos tinham mais urgência quando o objetivo era a geração de energia elétrica. A autora aponta a rapidez na retificação do rio Pinheiros, com o propósito de abastecimento do reservatório do Guarapiranga que, por sua vez, serviria para garantir um volume de água necessário para o funcionamento da usina hidrelétrica Edgard de Souza em Santana de Parnaíba. Petrone (1955) também alegava que o abastecimento de água e retirada de esgoto não acompanhavam a expansão urbana da metrópole.

“O serviço de águas e esgotos não conseguia alcançar o ritmo acelerado do crescimento urbano. Foi também na primeira década do século que a cidade passou a ser mais bem servida de água; graças à utilização de mananciais da Serra da Cantareira e do rio Cotia. Todavia, registravam-se muitos contrastes de um bairro para outro, o mesmo acontecendo com a rêde de esgotos” (PETRONE, 1955, p.149).

A produção de energia elétrica era altamente necessária na metrópole industrial que São Paulo estava se tornando. Contudo, a companhia Light, responsável pela retificação do rio Pinheiros, não estava interessada apenas no potencial de produção de energia. Com o intuito também de ganhar as várzeas, a empresa conseguiu a permissão para “beneficiar os terrenos sujeitos a inundação” (GOUVÊA, 2016). Em troca, a Light poderia cobrar pelos serviços executados, o que, segundo Gouvêa (2016), gerou uma margem de lucro muito maior do que o custo do investimento. “[…] as obras nos rios de São Paulo somente puderam ser realizadas no momento em que a propriedade da terra e da água adquiriram uma forma econômica definida sem a qual não poderiam ser inseridos no processo de valorização do espaço através da obtenção de renda” (GOUVÊA, 2016, p.26) 15


1.3. Código das Águas

Mais adiante, o Título VI, Capítulo

Em 1934 foi criado o Decreto nº 24.643,

único intitulado ÁGUAS NOCIVAS fala sobre os

conhecido popularmente como Código de Águas.

dejetos advindos de atividades antrópicas e suas

O seu objetivo inicial era, como está justificado

consequências jurídicas. Temos, no art. 111:

logo nas primeiras linhas do texto, “controlar e incentivar o aproveitamento industrial das águas” (BRASIL, 1934). Nesse trecho fica claro qual era a prioridade de uso das águas no território nacional. Há também menção e destaque para a produção de energia hidrelétrica. No art. 71 do Capítulo II da Lei, denominado ÁGUAS COMUNS, é afirmada a livre utilização da água, não sendo apontada nenhuma distinção entre os usos doméstico, agrícola ou industrial. A única obrigação era que se mantivesse o fluxo do curso d’água à jusante e não houvesse refluxo à montante, a fim de não prejudicar os outros lotes que também fossem banhados pelo rio ou córrego:

O texto mostra como era necessária apenas a autorização do órgão competente para que se pudesse, dentro dos parâmetros legais, poluir um curso d’água. Ainda que fossem pagas as indenizações preconizadas nos arts. 112 e 116 da lei, o rio continuaria a ser o local de descarte dos efluentes industriais e agrícolas se necessário.

“Os donos ou possuidores de prédios atravessados ou banhado pelas correntes, podem usar delas em proveito dos mesmos prédios, e com aplicação tanto para a agricultura como para a indústria, contanto que do refluxo das mesmas águas não resulte prejuízo aos prédios que ficam superiormente situado, e que inferiormente não se altere o ponto de saída das águas remanescentes [...]” (BRASIL, 1934). 16

Se os interesses relevantes da agricultura ou da indústria o exigirem, e mediante expressa autorização administrativa, as águas poderão ser inquinadas, mas os agricultores ou industriais deverão providenciar para que as se purifiquem, por qualquer processo, ou sigam o seu esgoto natural. (BRASIL,1934)

Um decreto viria a atualizar em 1938 o Código das Águas, atuando no sentido de favorecer a privatização de alguns cursos d’água. O art. 3º do Decreto-Lei nº 852, fornece o seguinte conceito de águas públicas de uso comum: “São públicas de uso comum, em toda a sua extensão, as águas dos lagos, bem como dos cursos de águas naturais, que, em algum trecho, sejam


flutuáveis ou navegáveis por um tipo qualquer

século passado: a crise sanitária.

de embarcação”. Kahtouni (2004) usa como exemplo o rio Tamanduateí que, já em 1849, não era navegável graças às obras de retificação às quais foi submetido. Dessa forma, suas águas não eram mais consideradas patrimônio público. Segundo a autora, isso implicou na ocupação das margens por instalações fabris que, após o decreto, poderiam utilizar até o limite do aproveitamento do terreno, atingindo assim diretamente o leito do rio. Com a terra passando a ser particular, não era mais necessária a autorização governamental para interferir nas águas que a banhavam (KAHTOUNI, 2004). Segundo Petrone (1955), em 1932 havia cerca de 2.100 estabelecimentos fabris na cidade, e esse número saltou para 12.000 em 1947. Nos anos seguintes esse número só fez crescer. Como já dito anteriormente, existiam vantagens que atraiam o segundo setor para próximo da rede hídrica. Sendo assim, é inegável que o desenvolvimento de São Paulo como uma metrópole industrial se deu, mesmo que não principalmente, pela abundante presença de rios. Porém, esse crescente movimento fabril agravou um problema que já existia desde meados do 17


1.4. Consequências da exploração industrial no século XX: canalização, produção residencial e sistema viário Essa questão ganhou relevância na virada do século XIX para o XX, com os surtos de epidemias atingindo as capitais brasileiras (KAHTOUNI, 2004). O que agravava essa situação era o desinteresse tanto da população quanto do governo, sendo que ambos usavam os rios mais próximos da cidade, Anhangabaú e Tamanduateí, como depósito de esgoto. A respeito do governo, os dejetos advindos das atividades do próprio matadouro municipal eram, desde 1852, despejados no rio Anhangabaú (KAHTOUNI, 2004). Nesse cenário, as doenças eram causadas principalmente pela poluição das águas, se fazendo necessária a discussão de

tempo que servia como depósito de lixo. A preocupação com as epidemias decorrentes da má qualidade das águas incentiva uma série de intervenções urbanísticas, como canalizações e aterros, no início do século XX. Essas obras se concentravam nas áreas centrais da cidade, por causa da alta densidade populacional (KAHTOUNI, 2004). Era importante não só controlar os rios e córregos com as canalizações, mas também escondê-los, já que sua presença estava vinculada a doenças. “O nascer do século XX concretiza na cidade de São Paulo uma febre de dessecamentos, canalizações, aterros e obras de redução das grandes superfícies de água aparente, febre nascida das preocupações epidemiológicas e com higiene do “final do século”, parte de um movimento mundial” (KAHTOUNI, 2004, p. 67)..

soluções para os locais insalubres das cidades

É importante destacar que o pensamento

(KAHTOUNI, 2004). Em São Paulo, a problemática

higienista aplicado às cidades, difundido com a

se concentrava no Vale do Anhangabaú e na

remodelação urbana de Barão de Haussmann em

várzea do Carmo. Dentre as possíveis soluções,

Paris, justificaria alguns dos projetos implantados

estavam a canalização e o fechamento dos cursos

em São Paulo. Segundo Travassos (2004), esse

d’água (KAHTOUNI, 2004). Segundo Travassos

pensamento seria apoiado pela elite cafeeira, não

(2004), a ação na várzea do Carmo era mais

só com o intuito prático de modernização, com

urgente, visto a contradição no uso das suas

a implantação de infraestrutura viária, rede de

águas: captação para abastecimento ao mesmo

equipamentos e serviços, mas sim intencionando

18


uma aproximação estética e cultural do Brasil com as cidades europeias. A técnica que num primeiro momento foi utilizada para o afastamento de esgoto, se tornou uma oportunidade para as companhias de urbanização. As soluções de canalização poderiam transformar brejosas reservas de terras em loteamentos destinados às classes mais altas da sociedade. A Companhia City, autorizada a atuar no Brasil desde 1912, é até hoje uma das empresas de maior relevância no campo imobiliário, sendo responsável pela implantação de bairros paulistanos de alto padrão como o Jardim América, Alto da Lapa e o Pacaembu (D’ELBOUX, 2020). Tomando este último como exemplo, a origem tupi-guarani do seu nome já se mostra bastante significativa: “Atoleiro”, ou ainda “terras alagadas”, segundo o Dicionário Ilustrado Tupi Guarani.

Figura 1 - Propaganda de venda da Cia. City no Pacaembu.

Fonte: acervo Cia. City

(CANHOLI, 2014). A vista disso, as classes mais altas tinham

Para que fosse possível sua implantação,

acesso a tecnologias que permitiam que os

foram feitas obras de canalização e tamponamento

loteamentos não fossem afetados negativamente

do córrego Pacaembu, e assim foi aberta a

pela rede hídrica da cidade, pelo menos em

avenida homônima e o Estádio Municipal Paulo

um primeiro momento. “As novas tecnologias

Machado de Carvalho sobre o curso d’água.

de canalização e retificação, desenvolvidas

Mesmo com todo investimento aplicado na gleba,

primeiramente por questões sanitárias, [...]

não foi suficiente para evitar as inundações que

passam a ser largamente utilizadas para ganhar

viriam a atingir o local a partir da década de 1960

terras dos rios.” (KAHTOUNI, 2004, p. 79). 19


Segundo Kahtouni (2004), projetos

populacional justificavam uma nova configuração

urbanos, muitas vezes se utilizando de

viária em São Paulo. O Plano de Avenidas de

canalizações, eram direcionados a valorizar o

Prestes Maia e Ulhôa Cintra de 1929 veio para

banco de terras de grandes empresas, como

tornar palpável o pensamento sobre mobilidade

a Light e a anteriormente mencionada City.

urbana da época. Os fundos de vale foram usados

Enquanto isso vários bairros permaneciam

para dar lugar às vias, não só porque a topografia

sem o fornecimento de água ou recolhimento e

acidentada se apresentava como barreira, mas

tratamento de esgoto (KAHTOUNI, 2004).

também porque propiciava características

Com a conquista da porção de terras

vantajosas ao tráfego rápido. “[...] uma trincheira

antes ocupada por rios, o mercado imobiliário se

natural que possibilitava a eliminação de

beneficiou dos altos preços que poderia cobrar

cruzamentos em nível” (TRAVASSOS, 2004, p.

graças a série de modificações no território

42). Além do que, o já mencionado Código das

das águas, além da grande demanda por solo

Águas não apresentava nenhum tipo de restrição

urbanizado na primeira metade do século XX.

quanto a ocupação e pavimentação das várzeas.

O ambiente antes estigmatizado, dá lugar a

A primeira via a ser executada foi a

belos loteamentos ajardinados que suprem o

Avenida Nove de Julho sob o mandato de Fábio

anseio pelo consumo das classes privilegiadas

Prado. Contudo, o Plano só ganhou força com

da sociedade paulistana.

a gestão de Prestes Maia entre 1938 e 1945.

Das relações cidade-rios mais presentes

Foram feitas ligações entre os bairros da zona

até hoje, a abertura de vias de fundo de vale é um

Leste e o centro; os bairros urbanizados pela

destaque relevante a ser feito. Desde 1920 era

companhia City ganharam diversas avenidas de

especulado o aumento do uso do automóvel em

fundo de vale como a Avenida 23 de Maio (ao

detrimento da operação de bondes e circulação

longo do córrego Itororó), Avenida Pacaembú

de pedestres. Esses últimos eram inclusive

(sobre o córrego homônimo) e finalizada a obra

vistos como empecilhos à mobilidade urbana

da Nove de Julho (córrego Saracura), dentre

(TRAVASSOS, 2004).

outras (TRAVASSOS, 2004).

Fatores como expansão urbana e aumento 20

O Plano se tornou um parâmetro


tanto para a abertura de avenidas da cidade

região do ABC (TRAVASSOS, 2004).

quanto para a concepção de projetos futuros.

O Plano não considerava um planejamento

Encomendados pela prefeitura de São Paulo na

global para o enfrentamento às inundações. Era

década de 1950, os Planos Moses e Sagmacs

proposto intervenções pontuais de acordo com

usam de base a abertura de vias de fundo de

a demanda (TRAVASSOS, 2004). Acreditava-se

vale aliado à canalização (TRAVASSOS, 2004).

que com as obras de canalização diminuiriam

Já em 1969 é publicado o Plano Urbanístico

as ocorrências de inundações, posto que é

Base que tratava da estruturação urbana da

possível aumentar a vazão do canal para que

região metropolitana, abordando serviços de

a água escoe mais rapidamente. Esse avanço

saneamento básico, abastecimento de água e

tecnológico tornou propício sua larga utilização

drenagem urbana.

principalmente nas décadas de 1970 e 1980,

Este último não ganha detalhes das obras para o controle de enchentes, apenas algumas diretrizes são traçadas. Travassos (2004) especula

entrelaçando de vez o sistema viário e rede de drenagem (TRAVASSOS, 2004). Trava s s os

(2 0 0 4)

a p ont a

uma

dois motivos dessa indefinição. O primeiro é

aleatoriedade nas propostas de novas vias,

que não estava decidido o papel das várzeas

sendo que algumas não faziam parte nem do

urbanas, visto que o recente Código Florestal

plano viário nem do Plano Diretor. A construção

havia delimitado uma faixa de 30 metros para

dessas avenidas de fundo de vale era encarada

a preservação de rios e córregos. O segundo

mais como projeto de melhoramento urbano

é que não se sabia ainda as consequências

do que um plano para garantir a mobilidade

hidrológicas da intensa urbanização, com bruta

(TRAVASSOS, 2004). Em 1974 a prefeitura de

impermeabilização do solo e ocupação da cidade.

São Paulo assinou um contrato de financiamento

Na época, as enchentes na bacia do rio

com o BNH, Banco Nacional de Habitação,

Tamanduateí eram as mais recorrentes, uma vez

para a canalização de 38 córregos na cidade.

que haviam obstruções no canal que impedia a

Seriam 60 km de canalizações e 55 km de vias.

vazão correta. A área afetada ia desde a zona

Originalmente esse contrato previa a canalização

central, próximo ao mercado municipal, até a

de 470,42 km e nenhuma menção a abertura 21


de vias lindeiras. É perceptível que as obras na

dessas ações pode ser visto até hoje. Na figura

rede hídrica não eram suficientes por si só, seria

2 vemos os pontos de alagamento e inundação

importante também que houvesse vinculação

registrados em 2021 e sua associação com a

com a rede viária, proporcionando desse modo

malha urbana.

uma “utilidade” para as áreas de várzea.

Podemos concluir, portanto, que a

No mesmo ano, o município de São

relação entre a cidade de São Paulo com seus

Paulo encomendou o levantamento de todas as

rios não era saudável desde pelo menos meados

bacias hidrográficas da cidade, visto o crescente

do século XIX. Nesse período pré-metropolitano,

problema com a drenagem urbana. Segundo

as indústrias se instalavam próximas aos cursos

Travassos (1995), no documento intitulado como

d’água, dado que os terrenos nas várzeas tinham

“Mapas e diagnósticos das bacias de drenagem

menor preço e eram consideravelmente maiores.

do município de São Paulo” foram analisadas

Não era incomum que o esgoto industrial fosse

130 sub-bacias, das quais apenas uma tinha

jogado nesses rios. Além disso, as áreas mais

indicação para se preservar a vegetação e, por

baixas eram muito úteis para as instalações de

consequência, os córregos. O relatório faz uma

estradas de ferro.

observação quanto aos córregos canalizados que

Com a intensificação das atividades

tivessem avenidas marginais “um bom exemplo

fabris, a cidade demandava uma grande produção

de aproveitamento racional de fundo de vale” e

de energia. Para tal, foram necessárias obras de

ainda associa erosão do solo, assoreamento e

represamento e retificação de rios. Enquanto

inundações com córregos não canalizados (SÃO

isso, as redes de abastecimento de água e

PAULO (SP),EMURB, COGEP, COPLASA, 1974,

saneamento básico não avançavam de acordo

apud TRAVASSOS, 2004, p.63).

com o crescimento exponencial da cidade. A

Fica claro que o binômio canalização-

junção desses fatores, associada a intensa

vias de fundo de vale era tido como uma solução

poluição das águas, repercutiu em uma severa

lógica e irrefutável, amplamente utilizada pelos

crise sanitária em São Paulo. Os rios se tornariam

órgãos públicos e encorajada pelos estudos

sinônimo de insalubridade.

acerca de drenagem urbana. O desdobramento 22

Como panaceia para conter essa situação


Figura 2 - Ocorrências de

alagamento e inundação de 2021 em São Paulo

Fonte: Geosampa, organizado pela autora, 2022.

23


problemática, as canalizações passaram a ser

é somente entendida como potência se estiver

implantadas. De início se tornaram presentes

relacionada à produção, seja de energia, de

apenas no centro, acompanhadas de diversas

terra, ou de qualquer outro elemento que gere

modificações na paisagem urbana, numa tentativa

retorno financeiro. No entanto, quando não há

de embelezamento aos moldes europeus.

esse interesse, a rede hídrica é vista como um

Contudo, ao longo do século XX, essa tecnologia

empecilho na paisagem urbana e é desejado que

foi largamente utilizada. As companhias de

seja controlada e escondida. Ainda assim, nos

urbanização viram um potencial de valorização

períodos de chuva, os rios não fazem diferença

dos seus bancos de terra, à medida que eram

entre asfalto, construções ou mata ciliar, e tomam

beneficiados pelas obras de canalização e aterro

de volta o lugar que lhes pertence.

de várzeas. O governo municipal também contribuiu para o avanço da urbanização em áreas naturalmente inundáveis. Para dar espaço ao automóvel como novo modal, foi investido considerável orçamento público em canalização de rios e córregos, associando a rede de drenagem ao sistema viário. Esse casamento tinha a promessa de cessar as inundações que vinham se tornando cada vez mais frequentes em São Paulo. Aparentemente não estava sendo levado em conta a intensa impermeabilização do solo pela qual São Paulo estava passando (e continuaria a passar). A perspectiva que temos acerca dos cursos d’água ainda reflete a relação conturbada cultivada por pelo menos dois séculos. A água 24


2. A ocupação da zona sul de São Paulo 25


2.1. Santo Amaro: de município independente à zona sul da capital Este subcapítulo pretende mostrar as principais relações entre São Paulo e a então cidade vizinha Santo Amaro. A intenção é entender o início do processo de ocupação da zona sul de São Paulo, principalmente da porção oeste do rio Pinheiros. Há um estreitamento de laços ao longo dos anos até que, em 1935, se tornam apenas um município. A área compreende atualmente quinze distritos inteiros, dentre eles o do Capão Redondo, A seguir abordaremos o processo histórico da ocupação da zona sul de São Paulo, onde está localizada a área de estudo definida para este trabalho. Nela encontramos também algumas relações Rios x Cidade não abordadas no capítulo anterior. Partiremos do extinto município de Santo Amaro, passando pela conurbação com São Paulo, o que acabou resultando em seu anexo pela capital. Por seguinte, será discutida a ocupação do Capão Redondo, destacando a periferização baseada na “industrialização de baixos salários”. Isso intensificou a implantação de assentamentos precários, frequentemente constituídos em terrenos ambientalmente frágeis como encostas e margens de córregos. 26

onde se localiza o recorte escolhido. Cabe salientar que existem poucos trabalhos escritos sob a ótica de quem habitava Santo Amaro no período de análise. A maior parte dos relatos aqui colocados partem do ponto de vista de estudiosos da cidade de São Paulo. Isso resulta em um olhar praticamente unilateral em que a percepção dos santamarenses sobre a capital se faz escassa. A partir do início da metropolização de São Paulo, entre 1915 e 1940, Santo Amaro seria anexado à capital graças às fortes ligações criadas até o momento. “Como corolário do estreitamento funcional de natureza metropolitana, o município de Santo Amaro foi anexado ao de São Paulo em 1934” (LANGENBUCH, 1971, p. 139). O antigo


povoado, que passou a ter título de município em

Villaça (2001) intitula o processo de

1832, compreendia grande parte da atual zona

“absorção” de uma cidade pela outra como

Sul de São Paulo.

conurbação e explica que se origina da desconformidade entre o limite administrativo e da relação socioeconômica/desenvolvimento físico entre municípios. Esse movimento já vinha ocorrendo por anos antes que se firmasse a oficial anexação de Santo Amaro. O autor pontua alguns elementos importantes para a caracterização desse processo urbano: o deslocamento de pessoas, principalmente se for diário, e o vínculo por meio de canais de comunicação, destacando o telefone. É claro que essas características, principalmente falando do último parâmetro, não se enquadram perfeitamente às dinâmicas encontradas entre os séculos XIX e XX.

Figura 3 - Sobreposição do mapa do extinto município

de Santo Amaro e atuais distritos de São Paulo (escala e posicionamento aproximados).

Fonte: José Yalenti (1938), Acervo do Museu Paulista da USP, organizado pela autora (2021).

“Mesmo admitindo-se a existência de um conjunto de critérios para a delimitação de uma área metropolitana hoje, é forçoso reconhecer que tais critérios não seriam válidos para outras épocas, uma vez que as vinculações socioeconômicas e seus níveis de intensidade variam com o tempo” (VILLAÇA, 2001, p. 52).

Há ainda um outro modo de classificação, agora quanto ao tipo de núcleo urbano. Essa expressão pode ser usada para nomear um 27


aglomerado urbano que está no entorno de um centro polarizador, segundo Villaça (2001). Ele apresenta quatro possíveis cenários, sendo todos eles “puros”, ou seja, dificilmente um município poderia se encaixar perfeitamente em apenas um deles. Colocando Santo Amaro como núcleo urbano e São Paulo como centro polarizador, temos duas possibilidades de enquadramento. O primeiro é descrito como um município que atingiu considerado desenvolvimento enquanto

Figura 4 - Rua Direita, Praça Floriano Peixoto. No centro da imagem está a Catedral de Santo Amaro. Fonte: Acervo digital de Carlos Fatorelli.

cidade, tendo uma autonomia socioeconômica a partir de um núcleo central de serviços que permitiu seu crescimento urbano, principalmente porque estava distante do centro polarizador (VILLAÇA, 2001). A segunda possibilidade é apresentada como cidades muito pequenas, mas que tinham certa relevância até o século XIX. O autor pontua que essas ainda têm os centros com aspecto colonial, pois não fizeram parte do processo de metropolização. Quanto a esse último ponto, Santo Amaro não manteve seu centro histórico intacto, mas permanecem algumas obras como a Praça Floriano Peixoto, datada de 1894, e a atual Catedral de Santo Amaro, construída em 1924. 28

Figura 5 - Rua Direita, Praça Floriano Peixoto e, à esquerda na imagem, o coreto remanescente.

Fonte: Acervo digital de Carlos Fatorelli.


Produção no “celeiro da Capital” Edmundo Zenha (1952) se referiu ao ex-município como “celeiro da Capital”. Essa

descido de todos os sertões da redondeza. Da capital também afluía gente, porque a festa era famosa” (ZENHA, 1952, p.133).

colocação foi feita no seu estudo histórico no

Em 1900, a capital inaugurava sua linha

qual afirma que Santo Amaro contribuía com

de bondes elétricos e, em apenas cinco anos,

parte considerável do que era consumido em

os bondes tracionados à burro tinham sido

São Paulo na década de 1880. Segundo Raffard

integralmente substituídos. Já em 1906, após

(1892, p. 206, apud LANGENBUCH, 1971, p.

sucessivas discussões, inaugura-se a única linha

23), “A exportação consiste em madeiras de

interurbana a ser criada, ligando finalmente São

construção, lenha, pedra de cantaria e bruta,

Paulo à Santo Amaro (LANGENBUCH, 1971).

víveres, aguardente de milho, galinhas, ovos,

Como citado anteriormente, alguns dos

algum toucinho e poucos carneiros” e há também

itens de maior relevância que Santo Amaro

relatos de cultivo de gêneros alimentícios como

exportava tinham origem nas árvores (madeira

cereais. Essa produção serviu de argumento para

para construção, lenha). Entretanto, antes que o

a concessão da ferrovia que, posteriormente,

transporte sobre trilhos chegasse para facilitar

ligaria as duas cidades.

o percurso, notava-se que o então município

Mas antes que o novo meio de locomoção

estava perdendo mercado. O primeiro fator foi

chegasse a Santo Amaro, o transporte de

a chegada da ferrovia previamente em outros

mercadorias era feito por carros de boi, os quais

arredores de São Paulo, tornando o transporte

eram empregados nas estradas que ligavam o então

da mercadoria mais barato. Um segundo fator

município à capital, ganhando inclusive apelido de

foi a escassez do produto de origem vegetal,

“caminho de carro”, segundo Langenbuch (1971).

visto a intensa extração feita nos anos anteriores

Além da produção agropecuária, Santo Amaro se

(LANGENBUCH, 1971).

destacava na função religiosa. Nas datas festivas

Ainda assim, de acordo com Langenbuch

é mencionado que “A Festa do Divino Espírito

(1971), Santo Amaro não perdeu a importância

Santo punha uma certa vibração no ambiente

para a capital e seus habitantes. Com o

estagnado. A vila se movimentava com povo

avançado processo de industrialização na 29


Pauliceia, a produção de energia elétrica era algo imprescindível. “A necessidade de fornecimento de eletricidade no processo de industrialização

consolidaram Santo Amaro como “subúrbio recreativo de São Paulo” (LANGENBUCH, 1971, p. 118).

fazia com que fosse necessário produzir água,

Vemos aqui que a inclusão da água na

ampliando a necessidade de apropriação e

vida urbana era um cenário possível. A busca

controle sobre os rios” (GOUVÊA, 2016, p. 22).

dos paulistanos por um lugar de lazer fora de São

Desse modo, em 1907 iniciam-se as

Paulo indica a falta desses espaços na cidade.

obras de represamento do rio Guarapiranga,

Ainda que a represa tenha sido construída com

aumentando o volume das águas do Tietê em

o propósito da produção de energia, percebemos

períodos de estiagem. A represa garantiria a

a potencialidade de ambientes onde a água é

constância de água para produção de energia

protagonista. Mesmo porque os límpidos rios e

pela usina hidrelétrica “Edgard de Sousa”,

córregos de Santo Amaro já eram procurados

localizada na atual cidade de Santana de Parnaíba

pela população da capital antes da construção

(LANGENBUCH, 1971).

da represa do Guarapiranga (CAMARGO, 2008).

Para além da função produtora, Santo Amaro também servia como área de lazer da capital. Era comum que os paulistanos se deslocassem para atividades de recreação mesmo antes do bonde elétrico atingir Santo Amaro. A represa se tornou um grande atrativo para prática de esportes, como por exemplo o iatismo. Posteriormente o “tramway” facilitou a as idas e vindas dos residentes de São Paulo. “A reprêsa do Guarapiranga oferecia ao paulistano um elemento de êste desconhecia nos arredores imediatos da cidade, qual seja uma grande superfície líquida em área de fácil acesso”. Ambos elementos 30

Figura 6 - Velas na represa do Guarapiranga.

Fonte: Acervo dos sócios de Yatch Clube Santo Amaro.


Estreitamento de laços No período entre 1915 e 1940 viam-se loteamentos surgindo mais próximos do limite norte de Santo Amaro, dentre eles Caxingui e Vila Gomes. Não é possível saber exatamente a localização de assentamentos em Santo Amaro, pelo menos enquanto ainda era município independente. Todavia, em 1939, foi produzido um mapa assinado por José Yalenti no qual mostra o antigo município (anexo I). Nele há o traçado de vias como a Estrada do Circuito Itapecerica (atual Estrada de Itapecerica) e outra que, pelo desenho e localização, possivelmente é a atual Estrada do Campo Limpo. Apesar de ter o nome de alguns possíveis aglomerados da época, como Campo Limpo e Capão Redondo, arruamentos e ocupação não fazem parte da composição dessa cartografia. Um fator poderia dar início a um “reativamento” em povoados instalados ao longo das estradas, como era o caso de muitos em Santo Amaro. Como complementação às ferrovias, foram inauguradas algumas linhas de ônibus para dar continuidade à locomoção sobre trilhos em São Paulo. Langenbuch (1971) denomina esses povoados como “povoados-

Figura 7 - Recorte do mapa de Santo Amaro, em destaque

a Estrada de Itapecerica e, possivelmente, a atual Estrada do Campo Limpo.

Fonte: José Yalenti (1938), Acervo do Museu Paulista da USP, marcações feitas pela autora (2021).

entroncamento” e descreve: “Trata-se de povoados funcionalmente relacionados ao trânsito pelas estradas; contém postos de gasolina, botequins, restaurantes, vendas. Os mais expressivos dêstes povoados se situam em entroncamentos rodoviários de certa importância. [...] Aí ocorre, por exemplo, a confluência de pessoas [...], vindas das estradas secundárias e que demandam o ônibus que circula pela estrada principal” (LANGENBUCH, 1971, p. 160).

O autor ainda menciona como um dos principais: “Taboão (hoje “cidade” de Taboão da Serra [...], no entroncamento da estrada de Embu 31


fabris (PETRONE, 1955).

Essa soma de

fatores tornava Santo Amaro atrativa para as atividades do segundo setor, possibilitando seu desenvolvimento. Se iniciava, assim, o processo de conurbação entre as cidades.

Figura 8 - Recorte do mapa de Santo Amaro, entroncamento das vias em destaque.

Fonte: José Yalenti (1938), Acervo do Museu Paulista da USP, marcação feita pela autora (2021).

com a de Campo Limpo” (LANGENBUCH, 1971, p. 161). É possível notar no mapa da figura 8 a localização aproximada da confluência das vias, embora os nomes tenham mudado. Apesar de ser descrito por Langenbuch (1971) como “modesto” no início do século XX, o autor afirma que esse povoado-entroncamento tinha o “equipamento comercial mínimo”, o que contribuiria para seu crescimento em alguns anos. Contudo, segundo Petrone (1955), Santo Amaro conheceria uma expansão significativa a partir da industrialização. Terrenos maiores dos que eram encontrados na capital, acompanhados de preços mais acessíveis e proximidade com a ferrovia eram buscados para instalações 32

“Graças notadamente ao desenvolvimento industrial, tais núcleos puzeram-se a crescer nos últimos anos, em ritmo comparável ao da metrópole se bem que em menores proporções; suas áreas urbanizadas passaram a expandir-se em direção à cidade de São Paulo, ao mesmo tempo que esta avançava também na direção daquelas” (PETRONE, 1955, p.132).

Ainda que a atividade industrial não se mostrasse tão expressiva quando comparada com bairros da capital como Mooca e Brás, ela teve papel fundamental no crescimento da cidade em direção à São Paulo, chegando ao ponto de perder sua independência enquanto município. “Para o Sul, a metrópole em marcha emitiu o seu mais alongado tentáculo, pois conseguiu alcançar o velho núcleo de Santo Amaro, dominando-o por tal forma, que lhe tirou a autonomia administrativa” (PETRONE, 1955, p. 160). Vale pontuar que o desenvolvimento acelerado que se viu em Santo Amaro no início do século XX aconteceu principalmente, senão


exclusivamente, na sua porção nordeste. Petrone

Utilizando o mapeamento feito em 1954

(1955) destaca que o avizinhamento com a capital

onde estão cartografadas não só as vias, mas

se deu pelas seguintes rotas:

também as ocupações feitas até esse período, é

“[...] o crescimento foi maciço, embora por meio de caminhos diversos: seguindo a linha de bondes, através do Brooklyn Paulista; em continuação à Vila Mariana, por intermédio do Jabaquara; através da região de Congonhas, por meio da AutoEstrada; e pela atual avenida antiga Estrada de Santo Amaro” (PETRONE, 1955, p. 132).

possível ver como a porção leste do rio Pinheiros era significativamente ocupada. Enquanto que na porção oeste há o registro de apenas uma parte mais próxima ao rio Pinheiros.

Na figura 9 vemos nas marcações as vias de ligação e os bairros citados pelo autor.

Figura 10 - Mosaico do levantamento aerofotográfico da zona sul de São Paulo em 1954.

Fonte: Vasp Cruzeiro (1954), disponibilizado pelo portal Geosampa (2021).

Esse fato pode acusar que, dentre outros Figura 9 - Vias mais importantes no início do século XX que ligavam Santo Amaro à São Paulo segundo Petrone (1955). Bairros destacados da esquerda para a direita: Brooklin Paulista, Villa Marianna e Congonhas.

Fonte: José Yalenti (1938), Acervo do Museu Paulista da USP, marcações feitas pela autora (2021).

motivos, até aquele momento não havia uma quantidade relevante de construções para se fazer tal documentação. As poucas aerofotos da parte oeste mostram as tímidas ocupações que se concentravam em pequenos agrupamentos. Na figura 9 vemos os núcleos urbanos no antigo 33


território de Santo Amaro e as ligações principais

Primeiramente, desde o século XIX, existiam

com a paulicéia.

relações comerciais baseadas em insumos

Comparando

as

dimensões

dos

agrícolas, com Santo Amaro ganhando o título

assentamentos urbanos destacados (figura 11), é

de “celeiro da capital” (ZENHA, 1952). Teria

evidente que os que estão instalados na margem

um papel fundamental também na produção de

leste do rio Pinheiros são mais expressivos do

energia elétrica quando, a partir de 1907, se inicia

que os encontrados a oeste. O rio, aqui, pode

o represamento do rio Guarapiranga.

significar uma barreira à expansão física da cidade.

Ademais, a proximidade física entre as duas cidades, agregada a abertura de ferrovia e rodovias, facilitava o trajeto entre ambas. Alguns anos depois essas rotas se tornaram importantes eixos de implantação de loteamentos. A represa manifestou uma segunda função, dessa vez quanto espaço para atividades de lazer, despertando interesse dos santamarenses e, principalmente, dos paulistanos. Isso revelou a escassez, mas também a potencialidade de áreas de lazer que colocassem a água como um elemento principal.

Figura 11 - Mosaico do levantamento aerofotográfico da zona sul de São Paulo em 1954.

Fonte: Vasp Cruzeiro (1954), disponibilizado pelo portal Geosampa (2021).

Baseado nas informações aqui expostas sobre o extinto município de Santo Amaro, podemos concluir que uma série de fatores contribuíram para o processo de conurbação e, eventualmente, em anexo à cidade de São Paulo. 34

Porém, o destaque maior é dado para o processo de industrialização, partindo de São Paulo e indo em direção ao município vizinho. As vantagens de instalação estavam nas dimensões dos lotes disponíveis e no valor mais baixo, quando comparado ao que era oferecido na capital, sem falar na disponibilidade de mão de obra. Além disso, a estrutura logística compartilhada já se fazia presente.


A conurbação foi um produto da correlação entre um núcleo urbano, por tanto

2.2. Periferização de São Paulo: formação do Capão Redondo

tempo considerado estagnado, e o centro

Este subcapítulo busca entender como

polarizador, o qual demandava mais espaço

se deu o processo de urbanização da periferia

para sua expansão. O domínio físico, encaixado

da zona sul de São Paulo, mais especificamente

inicialmente no limite municipal, extrapolou o

do Capão Redondo. Será importante para a

que vinha se intensificando por anos na esfera

compreensão da estrutura socioespacial atual

econômica. A oficialização foi realizada por meio

que encontramos na área de estudo escolhida.

do decreto estadual 6.983 de 22 de fevereiro

Na primeira metade do século XX, Petrone

de 1935, o qual extinguiu o município de Santo

(1955) caracteriza a transformação industrial pela

Amaro, integrando seu território aos limites de

qual a cidade de São Paulo estava passando.

São Paulo.

Ele enumera alguns fatores que levaram ao desenvolvimento de indústrias em solo paulistano. Dentre eles é possível destacar: a farta mão de obra disponível em razão, primeiramente, de população imigrante e, posteriormente, da crise cafeeira e êxodo rural; fornecimento de energia elétrica; e a rede de transporte da cidade (PETRONE, 1955). Tais elementos viriam contribuir também com a instalação de indústrias no então município de Santo Amaro, acarretando, por sua vez, na ocupação de longínquas terras rurais, como é o caso do Capão Redondo. Segundo pesquisa feita por Camargo (2008), o início da ocupação do Capão Redondo foi por volta de 1914, e se deu pela busca de caçadores vindos da Bela Vista (centro de São 35


Paulo) por um local de lazer, onde pudessem

fundiária, a inserção de tecnologia na produção

aproveitar a fauna, flora e as límpidas águas dos

rural, juntamente com a desvalorização das

córregos que percorriam as fazendas do bairro.

relações trabalhistas rurais estão no centro

Antes disso, o Capão já tinha sido mencionado

do movimento de migração do campo para

como bairro rural em 1908, sendo provavelmente

a cidade, segundo Maricato (1995). Essa

mais antigo do que acusa a data, segundo

sucessão de eventos podem explicar a massa

Langenbuch (1971).

de trabalhadores vindos de outros estados em

No recente núcleo suburbano foi fundado

busca de oportunidade na cidade de São Paulo.

o Instituto Adventista de Ensino em 1915,

No começo da ocupação do distrito,

implantado à beira da Estrada de Itapecerica,

o desmembramento de propriedades rurais

uma das vias mais importantes da zona sul até

demonstrava uma alternativa para se estabelecer

hoje. A novidade, segundo Camargo (2008), atraiu

nos arredores de São Paulo (CAMARGO, 2008).

seguidores da religião para o Capão Redondo

Segundo relato de um antigo morador, transcrito

para que pudessem colocar seus filhos no colégio

por Camargo (2008, p. 23), entre as décadas de

de educação adventista. Tal instalação pode ter

1940 e 1950 conseguir terras no bairro não era

contribuído para a ocupação do bairro nesse

complicado: “[...] era só encaminhar um pedido

início de urbanização. Percebia-se também um

à Câmara Municipal de Santo Amaro (município

contingente de imigrantes vindos de Minas Gerais

na época). Normalmente esses pedidos, depois

e de estados do Nordeste.

de analisados, eram concedidos aos seus

Os instrumentos legais, tanto urbanos

requerentes.”

quanto fundiários, instituídos na segunda metade

A autora chama atenção para as indústrias

do século XIX, marcaram as relações capitalistas

que estavam se instalando em Santo Amaro na

do solo, gerando exclusão territorial (MARICATO,

década de 1930, apontando que parte da mão-

1995). O status da terra como mercadoria, a

de-obra migrante contribuiu para a ocupação e

partir de 1850, denota a impossibilidade de

processo de urbanização do Capão Redondo.

trabalhadores sem recursos se tornarem

Como visto anteriormente, Petrone confirma que

proprietários. (MARICATO, 1995). A concentração

o desenvolvimento do município nas primeiras

36


décadas do século passado se deu principalmente

o paulistano de escassos recursos, atormentado pelo pagamento dos aluguéis e pelo desconfôrto da pequena casa ou do “cortiço” situados na cidade, não tem dúvida em adquirir o seu lote, no justificado anseio de possuir sua casa própria, embora grandes distâncias venham a separá-lo do local em que trabalha” (Petrone, 1955, p.164).

pela implantação de fábricas. Se aproximando da metade do século XX, Petrone (1955) destaca que os novos loteamentos localizados na periferia da cidade tomam extensas porções de terras, visto que a especulação imobiliária na época já afastava a população mais pobre de áreas valorizadas e providas de total infraestrutura urbana: “Tudo isso serve para demonstrar a maneira completamente anormal e sem nenhum planejamento pela qual se vão processando tais loteamentos. Mais grave ainda é o fato de estarem sendo ocupadas áreas muito distantes do centro da cidade, ao mesmo tempo que, dentro dela, continuam a existir vazios, à espera de valorização” (Petrone, 1955, p. 164).

A alternativa possível para os imigrantes era se estabelecer em áreas pouco valorizadas, podendo ser no centro com seus cortiços, ou então na distante periferia: “Outros loteamentos, porém, influem sôbre o crescimento da cidade e chegam a orientar sua expansão. Uns são oferecidos a baixo preço, atravéz de prestações módicas, quando não acompanhados por uma certa quantidade de tijolos. Naturalmente,

O Capão Redondo se mostrava como uma das opções para a mão de obra recém migrada. Percebemos assim que entre 1900 e 1950 houve uma aceleração no crescimento tanto da cidade de São Paulo, quanto na extinta Santo Amaro. O processo fundamental que acarretou em tal desenvolvimento foi a industrialização, que se beneficiava de elementos que São Paulo tinha a oferecer, como a mão de obra abundante e energia elétrica. Por sua vez, mais pessoas foram atraídas para a metrópole, vindas de outras regiões do Brasil. Era farta a oportunidade de emprego, mas não é possível dizer o mesmo das condições básicas para se viver e morar em São Paulo. Já na segunda metade do século XX o processo de urbanização periférica se intensificava. Maricato (1995) chama atenção para o descolamento entre a norma requerida pelas instituições governamentais e a realidade 37


que se concretizava longe do centro da cidade.

temos uma enorme discrepância entre a cidade

No seu texto é usado como exemplo o Código

planejada e a cidade real.

de Obras de São Paulo (Lei 8.266) que vigorou

Portanto, o caminho encontrado pela

entre 1975 e 1992. Nele são normatizados

camada popular foi o loteamento ilegal associado

detalhes minuciosos de como a construção

à autoconostrução. Deriva dessa chamada

poderia ser executada, fixando a espessura

“modernização excludente” as periferias de São

de paredes internas e externas e dimensões

Paulo. A moradia irregular é implantada em glebas

mínimas para cômodos de estabelecimentos

de regiões desvalorizadas, em áreas públicas ou

comerciais e de serviço. Enquanto isso, em

privadas, que contenham, geralmente, algum tipo

1990 era estimado que cerca de 2,4 milhões

de restrição ambiental (MARICATO, 1995).

de pessoas moravam em loteamentos ilegais no município (MARICATO, 1995). “[...] qual é o papel das leis que pretendem regulamentar procedimentos detalhados do universo individual do interior da moradia, quando a maior parte das moradias e do contexto urbano constituem um imenso universo clandestino que ignora normas mais gerais e básicas?” (MARICATO, 1995, p.10)

Maricato (1995) defende que a produção urbana ilegal foi incentivada, principalmente, pelos baixos salários oferecidos pelo setor industrial e insuficiência do Estado em atender às necessidades da camada da população que não tinha acesso ao mercado imobiliário formal. Alia-se isso a normas reguladoras que limitaram a oferta de moradia aos trabalhadores urbanos, e 38

Com dados disponibilizados pela Secretaria de Municipal de Urbanismo e Licenciamento (SMUL), podemos ver o levantamento censitário nas décadas de 1950 a 2010 e comparar o crescimento populacional do Capão Redondo com a cidade de São Paulo. O distrito demonstra um aumento da população com ênfase para as décadas de 1960 a 1980. A cidade já tinha passado por um crescimento estrondoso no fim do século XIX/início do século XX, mas nas décadas mencionadas também revela um certo crescimento. Esse período marcará a intensificação das ocupações irregulares no Capão Redondo. Maricato (1995) afirma que a legislação que regulamenta a produção urbana contribui para a ordenação do uso do solo mas,


principalmente, para a segregação espacial. São nas áreas rejeitadas pelo mercado imobiliário que os mais pobres têm a possibilidade de morar. Esses terrenos estão geralmente em áreas ambientalmente vulneráveis como beira de córregos e encostas de morros, associados assim a riscos de inundação e desmoronamento, além de propensão a doenças vinculadas à água poluída. Maricato (1995) traz dados quantitativos de 1987 quanto a esses cenários. “[...] 49,3 % das favelas de São Paulo tem alguma parte localizada em beira de córrego, 32,2% estão sujeitas a enchentes, 29,3% localizam-se em terrenos com declividade acentuada, 24,2 % estão em terrenos que apresentam erosão acentuada e 0,9 % estão em terrenos de depósitos de lixo ou aterro sanitário. Do total, 65 % estão situadas em área pública e 9 % em terrenos

de propriedade mista, ou seja, pública e privada.” (MARICATO, 1995, p.31)

A ilegalidade é muitas vezes usada de argumento para que a exclusão seja validada e reafirmada. Um exemplo exposto por Maricato (1995) é o da SABESP que, entre os anos 1989 e 1992, se recusou a estender sua rede de fornecimento alegando que os lotes que seriam beneficiados eram ilegais. Algum tempo antes a mesma companhia ampliou sua rede para loteamentos irregulares, que inclusive estavam instalados em área de proteção a mananciais. O intuito da obra era baixar a taxa de mortalidade infantil, objetivo que foi de fato alcançado. A arbitrariedade é recorrente no contexto periférico. Vemos isso também com a tolerância do Estado em face da produção ilegal do solo.

Figura 12 - População de São Paulo e Capão Redondo ao longo das décadas.

Fonte: Portal Histórico Demográfico do Município de São Paulo (SMUL-PMSP), organizado pela autora, 2022. 39


Há indiferença quanto a ocupações em áreas de risco geológico ou de proteção ambiental. Percebemos uma relação de acordo entre as ações dos órgãos públicos municipais e o mercado imobiliário. Enquanto um determinado terreno não for de interesse do mercado, ele permanecerá da maneira que a população conseguir se instalar. Essa tolerância não pode ser encarada como uma benfeitoria do Estado, por deixar que as pessoas tenham onde morar, mas sim condescendência com a má qualidade de vida urbana da população. A contradição entre o que era exigido por lei e o que estava sendo produzido em termos de cidade se perpetua até os dias atuais. Não importa se a terra é pública ou particular, ou ainda, se existem restrições ambientais quanto à ocupação. Enquanto as políticas públicas de habitação não forem efetivas, a população mais vulnerável continuará recorrendo a formas irregulares de habitação. Para investigarmos tais consequências na prática, definimos uma área de estudo dentro da bacia hidrográfica do Pirajuçara. O recorte está localizado em volta do córrego do Engenho, no distrito do Capão Redondo. 40


3. O córrego do Engenho e arredores: uma análise socioambiental 41


3.1. A sub-bacia do Pirajuçara: ocupação, enchentes e escolha da área de estudo A bacia hidrográfica do Pirajuçara é uma das que compõem a bacia do rio Pinheiros. Sua área tem cerca de 72km² e abrange parte dos municípios de São Paulo (40km²), Embu das Artes (12km²) e Taboão da Serra (20km²) inteiro. O ribeirão que nomeia a bacia nasce em Embu das Artes e segue em direção nordeste, fazendo limite entre Taboão da Serra e São Paulo onde, Exposto o panorama geral entre produção da cidade e o lugar dos cursos d’água na urbe, adentrarmos a partir de agora um espaço físico que concentre esses temas principais. A análise se fundamenta tanto em eventos históricos recentes, quanto em parâmetros urbanísticos, geológicos, ambientais e sociais. Tais elementos são de extrema relevância para a compreensão da situação da área de estudo definida, correlacionando assim o processo e o produto urbano atual. Num primeiro momento optamos por trabalhar com a bacia hidrográfica do Pirajuçara, investigando brevemente suas características, para só então delimitar a área de estudo dentro do município de São Paulo. 42

posteriormente, deságua no rio Pinheiros. Seu curso principal tem 19,3km de extensão e entre os principais afluentes é possível destacar o córrego Poá, que também tem a nascente em Embu das Artes e deságua no Pirajuçara entre Taboão da Serra e São Paulo. Na figura 14 está a localização da bacia em relação aos três municípios citados. Canil (2007) afirma que a área da bacia do Pirajuçara, por conta de suas características geológicas naturais, tem suscetibilidade ao desenvolvimento de processos erosivos. Esse evento tem sido agravado com a modificação no uso e ocupação do solo ao longo dos anos e é um dos motivos pelo quais se tem uma numerosa ocorrência de inundações. A precipitação é um fenômeno natural que acentua os processos erosivos. Quando


ocorre a degradação do solo, os sedimentos são transportados pelos cursos d’água e depositados no seu leito com a redução da vazão do canal. Nos períodos de chuva há também um aumento no volume de água nos rios e córregos, que, dependendo da intensidade, pode superar o limite da calha (leito menor) transbordando assim para as várzeas (leito maior). Canil (2007) explica que esse evento, denominado de inundação, é intensificado porque as calhas estão muito assoreadas e isso dificulta o escoamento das águas.

Leito maior de inundação Leito menor Figura 13 - Esquema do leito menor e maior de um curso d’água Fonte: Tucci (2005).

43


Figura 14 - Localização da bacia hidrográfica do Pirajuçara.

Fonte: Geosampa, organizado pela autora, 2022.

44


Breve histórico de ocupação e a problemática das enchentes

por população de baixa renda, principalmente migrante e nordestina (CUSTÓDIO, 2002).

Entre os anos 1920 e 1950 a porção

A problemática das inundações já

sudoeste de São Paulo foi valorizada por alguns

se impunha na década de 1960. As enchentes

fatores, dentre eles: construções institucionais

nessa época atingiam principalmente o centro de

de grande porte como o Jockey Club, a Cidade

Taboão da Serra (CUSTÓDIO, 2002). Segundo

Universitária e o Estádio do Morumbi; ocupações

Ostrowsky (2000), os bairros mais próximos ao

residenciais dos bairros de Pinheiros e Vila

rio Pinheiros também sofriam com as cheias

Madalena; abertura das avenidas Corifeu de

do ribeirão em 1959, como consta no jornal da

Azevedo Marques, Morumbi e Francisco Morato;

região.

modernização das pontes sobre o rio Pinheiros (João Dias, Eusébio Matoso, e Cidade Jardim); e inauguração das rodovias Régis Bittencourt e Raposo Tavares (CUSTÓDIO, 2002). A professora Vanderli Custódio aponta que tais elementos incentivaram a ocupação urbana da bacia do Pirajuçara, enfatizando as obras rodoviárias. Entre as décadas de 1940 e 1960 foram implantados diversos loteamentos na área da bacia, alguns projetados pela companhia City, como é o caso do Jardim Guedala (1956) e Morumbi (1965). Se consolidaram também nesse

“AMEAÇA RESIDÊNCIAS O CÓRREGO PIRAJUÇARA - O córrego está ameaçando de desabamento várias casas e diante de tal ameaça, solicitam-se medidas urgentes de canalização e limpeza de seu leito Tornase cada vez mais agudo e ameaçador o problema das enchentes em nossa região; o mais condenável, porém, é que o fenômeno, de exclusiva responsabilidade do poder constituído vem ocorrendo há longos anos sem que as necessárias providências sejam tomadas [...].ou seja, canalização de vários córregos e desobstrução de galerias” (A GAZETA DE PINHEIROS, 03.abr.59, apud OSTROWSKY, 2000, p.66).

período loteamentos de classe média, com destaque para Vila Sônia (1951), Jardim Peri-Peri

A intensa ocupação da bacia sem o

(1959) e Monte Kemel (1958). Com a construção

controle municipal só fez piorar a questão da

da ponte João Dias, os bairros do Campo Limpo

drenagem urbana. Silva (2009) afirma que, como

e Capão Redondo foram rapidamente ocupados

medida de saneamento e combate às enchentes, 45


a partir da década de 1980 se intensificaram as

Aliado à canalização, foi inaugurado em 1986 o

obras de canalização e retificação do Pirajuçara,

último trecho da Avenida Eliseu de Almeida, que

acompanhadas de avenida de fundo de vale.

faz a ligação entre os distritos do Campo Limpo

Como já visto anteriormente, acreditava-

e Butantã.

se que essas obras eram apropriadas para se

Custódio (2002) aponta que com o intenso

ocupar áreas de várzea, além também de se

crescimento demográfico entre 1960 e 1980, as

diminuir as ocorrências de inundações. Juntando

inundações passaram a atingir também o Campo

isso ao movimento de valorização imobiliária que

Limpo, na região da antiga fábrica da Sharp.

derivam dessas intervenções, os moradores faziam pressão para que o poder público tomasse tais medidas ao longo do Pirajuçara (OSTROWSKY, 2000). “Quando havia enchentes, os moradores culpavam o governo municipal e pediam a canalização do mesmo. Os córregos já serviam de depositário de lixo e esgoto. Quanto ao sistema de drenagem, reclamava-se que, por ocasião das chuvas, as galerias não suportavam o acréscimo de água e também estavam sempre entupidas. As reivindicações eram sempre pela canalização de trechos dos córregos” (OSTROWSKY, 2000, p.68).

Atendendo a solicitação da população residente, entre as décadas de 1970 e 1980 o ribeirão Pirajuçara foi parcialmente canalizado. A demora na conclusão das obras foi acompanhada de enorme expectativa para que se findassem as enchentes no local, o que não se concretizou.

46


Reservatórios de amortecimento

negativamente a paisagem urbana por conta das

Em 1995 se inicia em São Paulo um

suas grandes dimensões. Na figura 15 podemos

novo capítulo nas tentativas de contenção de

ter ideia do tamanho do reservatório da Sharp

enchentes. O reservatório de contenção do

comparando o caminhão posicionado no canto

Pacaembú, popularmente conhecido como

inferior direito da imagem.

“piscinão do Maluf”, foi o primeiro no município a ser implantado. A finalidade dessa infraestrutura hidráulica é, segundo o Departamento de Águas e Energia Elétrica (DAEE), “acumular as vazões que excedem a capacidade de escoamento dos cursos d’água (rios e córregos). São instalados em locais críticos, normalmente em áreas contíguas ou no próprio leito dos cursos d’água”. O primeiro a ser implantado na bacia do Pirajuçara foi o reservatório Nova República em 2000. Ele está no município de Taboão da Serra e tem capacidade de conter 110.000m³. O mais

Figura 15 - Reservatório de amortecimento da Sharp.

Fonte: Foto: Luciano Piva (27 de dezembro de 2011), Caderno de Bacia Hidrográfica (2020).

recente é o reservatório Olaria, inaugurado em 2014 e tem capacidade de armazenar 120.000m³. Destaque também para o reservatório da Sharp, o maior da bacia do Pirajuçara com capacidade de 500.000m³. Atualmente são um total de sete reservatórios. Essas estruturas apesar de terem um relevante papel na contenção de inundações, ficam inutilizadas a maior parte do ano por conta da sua monofuncionalidade. Impactam também 47


Figura 16 - Localização dos

reservatórios de amortecimento. Fonte: Geosampa, Caderno

de Bacia Hidrográfica (2020),

organizado pela autora, 2022. 48


Escolha da área de estudo

O IPVS é um índice realizado pela

A bacia perpassa o território de três

Fundação Seade que mede a desigualdade

municípios e, por motivos de se ter um maior

social e áreas de concentração de pobreza

volume de dados e pesquisas em relação aos

dentro do estado de São Paulo. As informações

outros, optamos por escolher um recorte dentro

consideradas para a formulação do índice são:

de São Paulo. Dentro deste limite definido, a

renda, grau de escolaridade, saúde, condições

bacia do Pirajuçara banha seis distritos: Capão

de inserção no mercado de trabalho, acesso aos

Redondo, Campo Limpo, Vila Andrade, Vila Sônia,

serviços prestados pelo Estado e oportunidades

Morumbi e Butantã. Os três primeiros compõem a

de mobilidade social.

subprefeitura do Campo Limpo e os três últimos

Outros elementos relevantes como

fazem parte da subprefeitura do Butantã. O

densidade demográfica, número de domicílios

recorte de estudo foi escolhido com base em

em favela e domicílios não atendidos pela rede de

três parâmetros principais: O índice Paulista

esgoto também foram levados em consideração.

de Vulnerabilidade Social (IPVS), ocorrências

Na figura 17 temos essa relação por distrito.

de inundação/alagamento e área suscetível a inundação.

Figura 17 - Densidade demográfica, estimativa de domicílios em favelas e proporção de domicílios não conectados à rede geral de esgoto por distrito.

Fonte: Observa Sampa, organizado pela autora, 2022. 49


Figura 18 - IPVS, ocorrência de inundação/alagamento e áreas alagáveis.

Fonte: Geosampa, organizado pela autora, 2022.

50


Figura 19 - Recorte da área de estudo, no Capão Redondo

O trecho do córrego do Engenho dentro

Fonte: Geosampa, organizado pela autora, 2022.

do limite do Capão Redondo concentra todos os pontos abordados: IPVS entre baixa e muito alta vulnerabilidade social, ocorrências de alagamento/inundação, além de contar com os maiores números de domicílios em favelas e não conectados com a rede de esgoto. Entendemos, portanto, que essa área é prioritária para análise e proposição de alternativas visando amenizar suas problemáticas. 51


3.2. Análise do recorte O recorte de estudo tem cerca de 0,96 km² está limitado ao norte pela Avenida Alto de Vila Pirajussara e ao sul pela Avenida Dom Rodrigo Sanches. Na figura 23 vemos a área em imagem de satélite e o curso do córrego sobreposto. O córrego está em sua maior parte canalizado, mas as técnicas se distinguem. No trecho sul foi usado concreto tanto nas paredes

Figura 20 - Trecho canalizado em concreto (Vila Elenice).

Fonte: Acervo pessoal, 20 de junho de 2021.

quanto no leito. Na parte central indo até o limite norte utilizaram muro de gabião, ora fazendo a contenção de ambas as margens, ora apenas de uma. Nesse caso o leito natural foi preservado. Há menos de um quilômetro de distância da sua nascente, o córrego já se encontra poluído, contendo muito lixo e com a água cinzenta e turva. No único trecho natural as margens apresentam algumas poucas árvores, mas o solo

Figura 21 - Trecho com

contenção das margens

com muro de gabião sob

a vegetação (Sebastião A. Cunha).

Fonte: Acervo pessoal, 20 de junho de 2021.

está aparentemente erodido, o que contribui para o assoreamento do canal e consequentemente para os eventos de inundação.

Figura 22 - Trecho com as margens naturais.

Fonte: Acervo pessoal, 20 de junho de 2021.

52


Figura 23 - Recorte da área de estudo, no Capão Redondo.

Fonte: Geosampa, organizado pela autora, 2022. 53


Figura 24 - Densidade demográfica por setor censitário.

Fonte: IBGE (2010), Geosampa, organizado pela autora, 2022.

54


Considerando a figura 24, notamos uma certa homogeneidade quanto à densidade demográfica. Os três setores censitários que indicam menor densidade podem ser explicados pela falta de atualização dos dados demográficos, uma vez que o último censo foi feito há mais de dez anos. Se fizermos a comparação entre esse mapa e a imagem de satélite, veremos que dois desses setores têm um padrão de ocupação parecido com os que foram classificados com densidades maiores. O setor maior que está na parte sul tem de fato uma menor presença de construções, o que indicaria menor densidade demográfica. Mas, ainda assim, possivelmente está desatualizado quanto à classificação de 2010.

55


Figura 25 - Ocupações irregulares do recorte.

Fonte: Geosampa, Google Earth, organizado pela autora, 2022.

56


De acordo com as definições do portal HabitaSampa, desenvolvido pela Secretaria Municipal de Habitação (SEHAB), a favela se caracteriza por assentamentos espontâneos em que a população de baixa renda e alto grau de vulnerabilidade constrói a própria moradia de forma precária. Os terrenos ocupados podem ser públicos ou particulares e as redes de infraestrutura urbana são insuficientes. A implantação delas no recorte está intimamente relacionada com o curso do córrego

Figura 26 - Número de domicílios e ano de ocupação das

do Engenho e seus afluentes, mas também

Fonte: HabitaSampa, organizado pela autora, 2022.

com as áreas que pertencem ao poder público municipal. Confirmaremos isso mais adiante com o mapa da figura 29.

favelas.

Esses loteamentos, geralmente ocupados por população de baixa renda, sofrem com

A maior parte das favelas se iniciou na

desconformidades como largura das ruas,

década de 1960, período de maior crescimento

tamanho mínimo dos lotes, implantação da

populacional do Capão Redondo. Tais ocupações

rede de infraestrutura, entre outros. Essas

continuaram a se formar até o início do século

irregularidades configuram uma paisagem árida,

XXI.

carente de arborização, espaços livres e de lazer Os loteamentos irregulares por sua vez

por causa da alta densidade construtiva.

são assentamentos que tiveram a iniciativa de

A figura 27 mostra os loteamentos

um agente promotor/comercializador, o qual

irregulares identificados anteriormente (figura

não recebeu a autorização dos órgãos públicos

25). Para sabermos a data aproximada de

responsáveis para a concretização do loteamento

ocupação recorremos aos croquis patrimoniais

ou, quando aprovado, é feito em desacordo com

disponibilizados pelo Geosampa. Nos documentos

o projeto e com a legislação urbana (SEHAB).

constam os projetos de loteamento e ano de 57


aprovação no qual as ocupações irregulares estão inseridas. O loteamento Vila Firmino (A) foi aprovado em 1982 e contava com duas áreas livres, uma de 580m² e outra de 442m². Na menor, mais próxima de um afluente do córrego do Engenho, está localizada parte da favela Afonso Domingues (3). A outra área está completamente construída. No Jardim Jerivá (B) localizamos três croquis patrimoniais. O primeiro deles é chamado de Jardim das Rosas, foi aprovado em 1964 e se estende para a esquerda do loteamento irregular. A favela Jd. das Rosas II (1) também faz parte da área. Próximo da divisa com a Vila Elenice temos o segundo croqui, aprovado em 1995. Este é um croqui de uso especial no qual foi aplicado o decreto de utilidade pública para a construção de uma escola. Hoje funcionam nesse lote a UBS Parque do Engenho II, a EMEF Professora Iracema Marques da Silveira e a EMEI Dolores Duran. O terceiro croqui compreende cerca de um terço da área do Jardim Jerivá (B), porção que está à direita do córrego. Foi aprovado em 1982 e não tem indicação de área livre. A Vila Elenice (C) consta no loteamento com sua área total. Foi aprovada em 1985 e não tem nenhuma área livre, apenas uma indicação 58

Figura 27 - Ocupações irregulares do recorte.

Fonte: Geosampa, Google Earth, organizado pela autora, 2022.

de recuo do córrego que não foi cotado. O outro loteamento irregular chamado de Jardim Jerivá (D) aparece em dois croquis patrimoniais. O primeiro, que recebe o mesmo nome do loteamento, foi expedido em 1971 e tem no projeto três áreas livres, uma com 1719,43m², outra com 1469,75m² e a última com 940m². Todas estão edificadas. O segundo croqui pertence ao loteamento regular Parque Lygia aprovado em 1986. A área que o Jardim Jerivá “ocupa” na verdade é a área institucional do loteamento que foi respeitada. Está implantada nela a EMEF Professora Maria Rita de Cássia. O Jardim São Benedito não tem croqui patrimonial. Hoje está dividido em lotes onde a


maioria já está construída. O Jardim Walquíria,

margem direita do córrego também não fazem

que também é considerado favela, tem o croqui

parte de nenhum croqui patrimonial e nem da

patrimonial da sua área inteira. Foi aprovado em

camada de lotes do portal Geosampa (figura 29),

1955 e tinha em seu projeto duas áreas livres,

porém se mostra bem consolidada, contando

mas atualmente está completamente adensado

com pavimentação das ruas e calçadas, além

com moradias.

de construções de baixo e médio padrão. Já

Com

essa

averiguação

podemos

a ocupação localizada ao lado da favela Nova

confirmar a classificação desses aglomerados

Floresta (6) se estende por cinco grandes lotes.

como loteamentos irregulares. Na maioria

Esta parece mais nova, apenas com o esboço

deles existiu um projeto que respeitava as leis

de vias sem pavimentação, com moradias

urbanísticas da época, mas a implantação não se

improvisadas que apresentam diversos tipos de

fez conforme o acordo com os órgãos públicos.

materiais, incluindo lona, madeirite, tijolo e outros.

O que vemos é uma paisagem com pouquíssima vegetação, de ruas estreitas e construções ocupando praticamente toda a área dos lotes, configurando áreas altamente adensadas, impermeáveis e de baixa qualidade urbana. A figura 25 mostra também as ocupações irregulares que ainda não foram computadas pelo poder municipal, mas que identificamos via imagens de satélite e trabalho de campo. Segundo o arquivo de metadados do HabitaSampa, a data de referência de assentamentos precários é de 2016 e não consta data da última atualização. Podemos inferir, portanto, que elas são recentes, implantadas após 2016. Dessas ocupações, as que estão na 59


Figura 28 - Equipamentos urbanos, transporte e áreas permeáveis.

Fonte: Geosampa, Google Earth, organizado pela autora, 2022.

60


Quanto aos equipamentos urbanos

os lotes municipais que seriam destinados às

públicos, no recorte de estudo encontramos

áreas verdes e de lazer estão ocupados por

os das categorias de educação e saúde. Na

moradia. Isso é uma questão problemática tanto

educação são cinco unidades, duas de ensino

do ponto de vista da qualidade de cidade, como

médio (E.E. Jornalista David Nasser, E.E. José

também do ponto de vista do risco hidrológico,

Joaquim Cardoso de Mello Neto), duas de ensino

já que é de suma importância o percolamento da

fundamental (EMEF Professora Maria Rita de

água no solo para que se evite as inundações.

Cassia, EMEF Professora Iracema Marques da Silveira) e uma de ensino infantil (EMEI Dolores Duran). Na área da saúde, estão implantadas duas unidades básicas, a UBS Parque do Engenho II e a UBS Jardim Eledy. No recorte e nas proximidades o único meio de transporte coletivo é o ônibus. As linhas que atendem ao local tendem a percorrer as avenidas de maior fluxo, sendo poucos os itinerários que adentram as vias locais, deixando de atender grande parte do recorte. A tendência de implantação nos limites também é aplicável aos equipamentos urbanos, onde o único que escapa à regra é a EMEF Professora Maria Rita de Cássia, localizada um pouco mais ao centro do que o restante. As áreas permeáveis, apresentadas na figura 28, são poucas e concentradas em grandes terrenos particulares. Elas só existem porque não foram edificadas ainda. Como veremos adiante, 61


Figura 29 - Lotes públicos e particulares.

Fonte: Geosampa, Google Earth, organizado pela autora, 2022.

62


Os lotes particulares apresentam

social. A propriedade urbana, por sua vez,

dimensões variadas. A grande maioria deles pode

“cumpre sua função social quando atende às

ser definida como muito estreitos e compridos.

exigências fundamentais de ordenação da cidade

Existe uma tendência de se construir o máximo

expressas no plano diretor” (BRASIL, 1988). A

possível dentro da área do lote, sobrando pouco

função social, portanto, é obrigatória para que

ou nenhum espaço livre, além de ser recorrente

o direito da propriedade seja exercido. Seu uso

construções que dividem uma mesma parede

precisa estar alinhado com os interesses coletivos

de divisa.

que estarão descritos no plano diretor.

Nos lotes medianos estão instalados

O Plano Diretor Estratégico do Município

condomínios verticais ou instituições públicas.

de São Paulo (PDE - Lei 16.050/2014), define no

Porém, outros estão curiosamente pouco

art. 90 os casos e os instrumentos aplicáveis para

ocupados, como é o caso de um conjunto na

que se cumpra a função social da propriedade.

porção sul do recorte, parte do loteamento irregular Jardim Jerivá (B). A divisão lembra uma configuração de chácara, apresentando poucas construções em uma área relativamente grande e com presença de vegetação. Nem todos os lotes têm saída para a via pública, ou são feitos por meio de uma passagem menor. Contrariando tais características, a favela denominada Chácara (4) está sobre dois desses terrenos. Se tratando dos lotes maiores, temos três que foram notificados pela prefeitura por não cumprirem a função social da propriedade. Nos incisos XXII e XIII do art. 5º da Constituição Federal (1988), está garantido por lei o direito de propriedade, desde que se cumpra a função

“O Executivo, na forma da lei, poderá exigir do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado, ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de: I - parcelamento, edificação ou utilização compulsórios; II - Imposto Predial e Territorial Urbano Progressivo no Tempo; III - desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública” (SÃO PAULO, 2014).

É relevante destacar que a aplicabilidade desses instrumentos depende também do local onde o imóvel está inserido no território municipal. Dentro do que determina o art. 91 da mesma lei, os casos encontrados no recorte se encaixam nos incisos I e VII: “I - Zonas Especiais de Interesse 63


Social 2, 3 e 5; VII - na Macroárea de Redução

dividindo a área com parte da favela Sebastião

da Vulnerabilidade Urbana, exclusivamente para

Advíncula da Cunha (identificado por 7 na figura

glebas ou lotes com área superior a 20.000m²

25).

(vinte mil metros quadrados)” (SÃO PAULO, 2014).

No terreno encontramos uma quadra de

Sobre esses imóveis, o maior deles tem

esportes, um caminho pavimentado que liga as

46.195m², foi notificado por não estar construído

ruas Sebastião Advíncula da Cunha e Olímpio

e tem poucas ocupações, que ficam apenas

Rodrigues de Carvalho, algumas mudas de

nas bordas. O segundo maior tem 32.573m²,

árvores, carros aparentemente abandonados e

também foi notificado por não estar construído e

um pequeno canteiro com uma placa indicando

as ocupações se concentram no limite próximo do

“horta”.

córrego. Já o menor tem uma área de 9.723m² e

Nos trabalhos de campo foi possível

nele está implantado um condomínio vertical com

observar que a quadra é frequentemente utilizada

nove blocos de quatro andares cada. O imóvel

por crianças e adolescentes para a prática de

foi notificado porque aparentemente não estava

futebol, inclusive sob a orientação de uma pessoa

sendo utilizado. De acordo com o que consta no

que tem a função de técnico esportivo. O caminho,

portal Geosampa, está sendo aplicado o IPTU

assim como a quadra, se mostra importante,

progressivo no tempo nos três casos.

com a passagem constante de pedestres, mas

Os

ter ren o s

muni c i pa i s

es t ão

majoritariamente próximos ao córrego. A localização dessas áreas foi determinada pelas plantas de loteamento que aproveitaram a existência do curso d’água e definiram seu entorno como a área verde pública. Atualmente esses lotes exercem a função de moradia para dez das treze favelas que encontramos no recorte. O único lote municipal que guarda parcialmente a função de lazer fica bem ao centro do recorte, 64

também de motos e bicicletas.


Figura 30 - Área livre do recorte.

Fonte: Geosampa, Google Earth, fotografias de acervo

pessoal (17 de fevereiro de 2022) organizado pela autora, 2022.

65


Figura 31 - Uso predominante do solo.

Fonte: Geosampa, Google Earth, organizado pela autora, 2022.

66


O uso predominante do solo é claramente residencial. Nessa categoria se destaca o baixo padrão, tanto o horizontal quanto o vertical. Isso pode estar relacionado a autoconstrução amplamente utilizada pela população com menos recursos. Encontramos nesse mapa (figura 31) poucas quadras com o uso predominante que combina residência e comércio/serviço, mas como foi visto durante o trabalho de campo, muitas moradias em outras partes do recorte concentram no piso térreo um pequeno comércio e nos pisos superiores a função de morar. Na área de estudo, inclusive, foi observado que o uso da moradia pode servir como fonte de renda. Não é difícil de encontrar construções com três patamares ou mais que sejam para alugar, praticamente como um condomínio de apartamentos.

67


Figura 32 - Zoneamento.

Fonte: Geosampa, Google Earth, organizado pela autora, 2022.

68


Em consonância com o PDE, o art. 44

ou subutilizados onde se incentiva a ocupação

descreve o que são as Zonas de Interesse Social

por Empreendimentos de Habitação de Interesse

(ZEIS), que cobre grande parte do recorte:

Social (SÃO PAULO, 2014).

“são porções do território destinadas, predominantemente, à moradia digna para a população da baixa renda por intermédio de melhorias urbanísticas, recuperação ambiental e regularização fundiária de assentamentos precários e irregulares, bem como à provisão de novas Habitações de Interesse Social - HIS e Habitações de Mercado Popular - HMP a serem dotadas de equipamentos sociais, infraestruturas, áreas verdes e comércios e serviços locais, situadas na zona urbana” (SÃO PAULO, 2014, p.59).

Com essas demarcações pretende-se

Claramente existe um alinhamento entre a demanda por qualidade urbana e a legislação municipal. Para que essas definições sejam colocadas em prática, o art. 51 da mesma lei determina que o plano de urbanização em ZEIS I tenha uma série de requisitos. Dentre eles é exigido análise sobre o contexto da área, que seja feito o atendimento integral da rede de água e esgoto, coleta de resíduos sólidos, sistema de drenagem das águas pluviais, além da provisão de áreas verdes e equipamentos sociais que complementam a função do morar.

promover melhorias do ponto de vista urbano e

Quanto às Zonas Mistas (ZM) são áreas

ambiental, assim como regularização e provisão

que se propõem a incentivar o uso residencial e

de habitação digna para a população de baixa

não residencial conjuntamente, podendo ocorrer

renda. Encontramos na área de estudo dois tipos

no mesmo lote ou na mesma construção (SÃO

de ZEIS. A ZEIS I compreende áreas ocupadas

PAULO, 2014). Existe uma certa propensão nas

por assentamentos populares onde haja o

áreas propostas, visto que estão próximas às

interesse de se fazer regularização fundiária

avenidas de maior fluxo. Esse uso já se manifesta

e urbanística, construções de novas unidades

com os usos residencial e comercial/serviço nas

habitacionais e recuperação ambiental (SÃO

áreas atribuídas, só que mais timidamente do que

PAULO, 2014). A intenção é manter a população

se espera no zoneamento.

residente com condições urbanas adequadas.

A Zonas de Centralidade (ZC), destacada

A ZEIS II são lotes ou glebas não construídos

em roxo na figura, são classificadas como 69


porções do território que sejam destinadas a usos e atividades típicas de áreas centrais ou subcentrais (SÃO PAULO, 2014). A intenção é que se promova usos não residenciais e que haja qualificação paisagística, como também do espaço público. Podemos entender que essa definição se propõe a criar espaços destinados a práticas culturais e de cidadania da comunidade em volta, uma vez que tal uso geralmente seja pouco fomentado em áreas periféricas. A Zona Eixo de Estruturação da Transformação Urbana Previsto (ZEUP), tem como objetivo incentivar que essas áreas tenham os usos residencial e não residencial de alta densidade demográfica, juntamente com qualificação paisagística e que seja articulada com a implantação de meio de transporte público coletivo (SÃO PAULO, 2014). Atualmente a área está ocupada por casas geminadas. Finalizando as definições temos a Zona Especial de Preservação Ambiental. Segundo o art. 69 do Plano Diretor Estratégico

(Lei

16.050/2014) “[...] são porções do território do Município destinadas à preservação e proteção do patrimônio ambiental, que têm como principais atributos remanescentes de Mata Atlântica e 70

outras formações de vegetação nativa, arborização de relevância ambiental, vegetação significativa, alto índice de permeabilidade e existência de nascentes, entre outros que prestam relevantes serviços ambientais, entre os quais a conservação da biodiversidade, controle de processos erosivos e de inundação, produção de água e regulação microclimática” (SÃO PAULO, 2014, p.66).

São áreas de grande relevância ambiental em solo urbano, com preservação consideradas de interesse coletivo já que garantem a conservação de vegetação remanescente, permeabilidade do solo, além de mitigar os processos erosivos. A única porção determinada como ZEUP no recorte é um conjunto habitacional promovido pelo CDHU iniciado em março de 2014, portanto construído durante a determinação do PDE (sancionado em 31 de julho do mesmo ano). Ainda assim foi conservada uma faixa de vegetação de cerca de ¼ da área total do empreendimento. No âmbito geral, o zoneamento do recorte é condizente com a realidade, propondo principalmente melhoramentos urbanos aliados à promoção habitacional digna e qualificação paisagística. Contudo, em nenhum momento se levou em conta a presença do córrego e as áreas de risco geológico (figura 33). É importante que,


sendo um dos elementos marcantes da paisagem, fosse considerado no sentido de preservar suas margens e promover sua renaturalização.

71


Figura 33 - Risco geológico.

Fonte: Geosampa, Google Earth, organizado pela autora, 2022.

72


Se tratando das condicionantes físicas

a área inundável e as ocorrências de alagamento

e geomorfológicas, a área de estudo apresenta

e inundação de 2021 se concentram próximas

as quatro categorias de risco geológico. Essas

ao local mapeado. Com isso, dentro do recorte

áreas, por definição, são encostas ou margens

essa área se destaca sendo uma das mais frágeis

de córregos que são ocupadas por população

social e ambientalmente.

de baixa renda (SEHAB). Essa combinação intensifica a possibilidade de ocorrências de deslizamentos e solapamentos da margem. Como visto anteriormente, a bacia do Pirajuçara possui características geomorfológicas que potencializam os processos de erosão, intimamente ligado com ambos eventos geológicos. As categorias de risco são calculadas de acordo com a relação entre a probabilidade da ocorrência e as consequências vindas desse processo, aliadas também aos episódios de chuvas intensas ou prolongadas. Sendo assim, R1 é o cenário menos grave, que não se espera ocorrências; R2 é o risco médio, com reduzida possibilidade de eventos geológicos; R3 já é um risco alto, com possível ocorrência de acidentes; e o R4 sendo a situação mais crítica, com grande possibilidade de ocorrência de acidentes. Nas porções em risco vemos que estão implantadas a favela Nova Floresta e uma das ocupações irregulares que ainda não foi reconhecida pelo poder municipal. Além disso, 73


Figura 34 - Síntese do recorte.

Fonte: Geosampa, Google Earth, organizado pela autora, 2022.

74


Para sintetizarmos a análise do recorte,

possível uso.

apontamos na figura 34 os atributos mais

Outro aspecto importante de destacar

expressivos, pontuando as fragilidades, mas

é que a única opção de transporte oferecido não

também as possibilidades de ação. As ocupações

atende de forma expressiva a área de estudo.

irregulares foram enquadradas em três categorias de acordo com o nível de suscetibilidade aos riscos hidrológicos (inundação, alagamento) e geológicos (escorregamento, solapamento). As classificadas como baixo risco não apresentam nenhum risco geológico e tem pouca suscetibilidade a inundações. As de médio risco tem alguma tendência de ocorrer eventos hidrológicos ou possui a presença de curso d’água no território. Já as identificadas com alto risco compreendem ambas vulnerabilidades, sendo as áreas mais urgentes quanto à proposição de alternativas. Levantamos também os lotes e glebas não ocupados ou subutilizados. Em sua maioria apresentam vegetação e alguns têm a função de estacionamento. Essas áreas denotam uma potencialidade, mas é necessário fazer um estudo de viabilidade técnica a fim de averiguar suas características topográficas, dimensão física, potencial construtivo, se apresentam vegetação significativa ou se existe alguma apropriação espontânea da comunidade em volta. Esses são alguns pontos relevantes para direcionarmos um 75


4. Estudos de caso


4.1. Projeto Urbano Córrego do Antonico Escritório: MMBB Arquitetos. Local: São Paulo, SP, Brasil. Início do projeto: 2008. O projeto desenvolvido para a favela de Paraisópolis, a segunda maior favela de São Paulo, visa urbanizar parte da comunidade integrando o córrego do Antonico que corta o local. A canalização proposta tem como objetivo produzir áreas livres de lazer e encontro ao longo do curso d’água. Como explicou o arquiteto Milton Braga, “isso era muito importante, porque uma favela tem muitas carências, mas, talvez, a maior delas seja por espaço livre”. Trazendo perspectivas projetuais, foram selecionados dois projetos com diferentes escalas e alternativas para os rios urbanos. O primeiro faz parte de um plano de reurbanização da favela de Paraisópolis, um contexto muito próximo ao da área de estudo. Já o segundo aborda soluções que intercruzam a mobilidade urbana e a preservação de rios em San José, na Costa Rica. Entendemos a importância das proposições estarem alinhadas ao cenário atual que envolvem os assentamentos precários, mas o projeto futuro terá enfoque ambiental-paisagístico.

A preocupação principal era como acomodar o córrego em um canal quando sua vazão aumenta fortemente nos período de chuvas. A alternativa encontrada foi construir não apenas um grande canal, o que geralmente acontece nas canalizações tradicionais, mas dois. Um maior subterrâneo com cerca de 3 metros de profundidade e o menor com apenas 70 cm de altura. Esse último traz a água para perto numa quantidade segura, pois, segundo a equipe de projeto, se uma criança quiser brincar no canal não terá perigo de ser arrastada pela vazão. 77


Figura 35 - Implantação mostrando o canal menor,

vegetação prevista e a faixa de apropriação pelos moradores. Fonte: acervo MMBB Arquitetos, 2008.

Outra estratégia adotada foi tornar o caminho agradável tanto para pedestres quanto para ciclistas. Está prevista a interligação de modais de transporte por meio de uma ciclovia implantada ao longo do percurso da água. Ela se conecta com a ciclovia do córrego Pirajuçara, na Av. Eliseu de Almeida, atingindo também a linha 4 Amarela na altura da estação São PauloMorumbi do metrô. 78


Figura 36 - Situação atual, córrego do Antonico.

Fonte: acervo MMBB Arquitetos, 2008.

Figura 37 - Perfil do córrego no projeto com dois canais.

Fonte: acervo MMBB Arquitetos, 2008. 79


Para implantação do projeto é necessário

lojas. É um meio de fazer com que as pessoas se

que haja remoção das moradias mais próximas

apropriem do local de maneira moderada e que

do córrego, numa faixa de 10 a 15 metros. Serão

não impeça a fruição no espaço público.

poucas, visto que a maioria das construções apresentam bom estado de uso de acordo com os arquitetos. Outro elemento utilizado são as praças implantadas nos encontros de vias, alargando assim o passeio contíguo ao córrego. Serão compostas por paisagismo que irá proporcionar sombra para quem passa por ali, mas também funcionará como filtro para a água. Além disso, as casas mais próximas contarão com uma faixa de dois a três metros para usar como quiserem, podendo implantar varandas, salas, quartos e

Figura 38 - Perfil do córrego no projeto no período de cheia.

Fonte: acervo MMBB Arquitetos, 2008. 80


Figura 39 - Perspectiva do passeio contíguo ao córrego.

Fonte: acervo MMBB Arquitetos, 2008.

81


4.2. Rutas Naturbanas

desrespeitadas por veículos, não garantindo a segurança esperada.

Autores: Trabalho colaborativo entre as

A cidade costarriquenha também

organizações Sum Consulting, PPAR, Río

sofre com a poluição dos seus rios por causa

Urbano, Amigos del Torres, ChepeCletas, Árboles

do despejo irregular de esgoto, indicando a

Mágicos e voluntários.

falta ou insuficiência do sistema de saneamento

Local: San José, Costa Rica, América Central.

básico. As organizações participantes do projeto

Início do projeto: 2016.

perceberam a potencialidade dos rios como

A proposta das Rutas Naturbanas tem o seguinte propósito: “conectar as pessoas à cidade através da natureza”. Elas são vias de uso compartilhado que permitem apenas veículos não motorizados e pedestres a fazerem percursos ao longo dos rios Torres e María Aguilar. Dessa forma, o traçado aproveita os antigos eixos esquecidos pela cidade - os cursos d’água - para conectar cinco regiões administrativas da capital San José. Ao todo, o projeto prevê realizar 25 km que interligam instituições, equipamentos urbanos e parques da cidade. A demanda partiu de duas questões principais: mobilidade urbana e gestão ambiental. Os autores apontam que desde 2012 a terceira maior causa de morte na Costa Rica é de acidentes de trânsito, dos quais os ciclistas são as maiores vítimas. As ciclovias tiveram inúmeros problemas na implantação e são frequentemente 82

elemento de transformação urbana. O plano das rotas naturbanas no rio Torres começa no complexo esportivo da Universidade de Costa Rica (UCR) e segue até o norte do Parque Metropolitano La Sabana, onde a via paisagística se liga com a rua. Já no rio María Aguilar se inicia na Universidade Autónoma de Centro América (UACA), atravessa o Parque de La Paz e vai até a parte sul do Parque Metropolitano La Sabana, também se conectando com a rua.


Figura 40 - Perspectiva do projeto com mobiliário urbano e áreas de descanso.

Fonte: Plano Diretor do projeto Rutas Naturbanas, 2016.

83


Figura 41 - Projeto de implantação.

Fonte: Plano Diretor do projeto Rutas Naturbanas, 2016.

84


Por causa da sua complexidade e necessidade de negociação com instituições, comunidades e proprietários, o projeto foi dividido em três fases conceituais, sendo as ações em curto, médio e longo prazo. A primeira fase considera o início das rotas naturbanas em áreas de lazer e parques públicos; a segunda prevê a continuação em lotes particulares que tenham potencial ou uso comercial; a terceira finaliza ingressando em imóveis residenciais, completando a rota primária. A Ruta Naturbana é uma infraestrutura verde que visa conservar os rios e matas ciliares com a criação de passeios públicos que garantem a mobilidade de pedestres e ciclistas em segurança. Além também de promover a criação de novas áreas de lazer pela cidade, que se interligam com os parques e outros equipamentos urbanos. Foi produzido um profundo estudo sobre os rios e suas especificidades com o intuito de

Figura 42 - Esquema conceitual das fases 1, 2 e 3, respectivamente.

Fonte: Plano Diretor do projeto Rutas Naturbanas, 2016.

se proteger e reforçar a faixa verde contígua, contendo assim o avanço das áreas urbanizadas.

85


Figura 43 - Perspectiva aérea do projeto instalado.

Fonte: Plano Diretor do projeto Rutas Naturbanas, 2016.

86


5. Diretrizes 87


Levando em consideração o conteúdo

escolher permanecer dentro do recorte de estudo.

aqui discutido, as perspectivas trazidas pelos

Sabemos que o ideal seria a realocação em áreas

estudos de caso, além da análise do recorte,

que tenham a oferta infraestrutura e equipamentos

sugerimos algumas diretrizes de projeto. Como

urbanos com sistema de mobilidade consolidado.

proposta geral, apontamos a garantia de acesso

Todavia, sabemos também que a maioria dos

ao saneamento básico e redes de drenagem

empreendimentos habitacionais para a população

urbana por meio de projetos de reurbanização e

de baixa renda são implantados nas periferias

regularização de favelas e loteamentos irregulares

da cidade, sendo assim, que pelo menos a

classificados em baixo e médio risco.

população seja realocada em um espaço no qual

Para as áreas mais vulneráveis a eventos

se sinta pertencente. Para aqueles lotes que não

hidrológicos e geológicos, é importante que haja

se mostrarem vantajosos para HIS de acordo

a remoção de moradias que apresentam alto

com o estudo de viabilidade técnica, destacamos

risco e que seja assegurado à população o direito

a possibilidade de se tornarem áreas livres que

de habitação digna. Isso seria feito por meio de

preservem a permeabilidade do solo.

acompanhamento das famílias pela assistência

Por último, propomos um projeto de

social e cadastro nos programas de habitação de

área livre contígua ao córrego do Engenho, para

interesse popular do município. É fundamental

promover a renaturalização das suas margens

que se assegure a integridade física e moral da

com presença de vegetação, além de criar um

população nessa etapa delicada. Inclusive, a

espaço de lazer para a comunidade em volta,

proposta seguinte vem no sentido de promover

atualmente carente desse direito. Tendo em vista

habitações populares nos lotes ociosos dentro do

a complexidade das propostas, desenvolveremos

recorte para que as pessoas tenham o direito de

no Trabalho Final de Graduação II apenas essa última diretriz.

88


Figura 44 -

Diretrizes de projeto. Fonte: Geosampa, organizado pela autora, 2022.

89


5.1. Considerações finais Podemos concluir, portanto, que os cursos

bens materiais, danos à própria casa e, às vezes, ocasionando na morte de pessoas.

d’água foram subjugados ao longo do processo

A preocupação central dessa população é,

de urbanização de São Paulo, mas foram tratados

portanto, ter um lugar para morar, não importando

de modo distinto dependendo do lugar da cidade

se esses terrenos são ambientalmente frágeis.

que estavam. Nas partes centrais e valorizadas

Com isso outros direitos básicos foram deixados

foi preferido canalizá-los à integrá-los à paisagem

de lado, como acesso à infraestrutura urbana e

urbana de forma coerente. Porém, nas periferias,

equipamentos e serviços públicos. Áreas verdes

as margens de córregos se tornaram o solo base

e de lazer também ficaram em segundo plano.

para moradia. Essas áreas foram crescendo e

O objetivo é o resgate das margens do córrego

sendo ocupadas irregularmente sem que o poder

do Engenho e que elas sejam a possibilidade de

municipal se preocupasse. Para o trabalhador de

encontro entre o direito do lazer da população e

poucos recursos, a periferia era o lugar possível

o direito do rio de reconquistar seu espaço.

para se viver em São Paulo, na medida que o mercado imobiliário regular não era acessível economicamente e a produção de habitação de interesse social ficava muito aquém das reais necessidades. Como última opção, alguns habitam as várzeas de cursos d’água. É nesse momento que a fragilidade ambiental e a social se encontram. As consequências dessa união atingem violentamente ambos os envolvidos. A população ocupa o que era o espaço da água e o torna depósito de lixo e esgoto. Por sua vez, o córrego nos períodos de cheia assola a residência de quem já não tem muito, causando a perda de 90


referências 91


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94


anexos 95


Anexo I: Mapa do extinto município de Santo Amaro

96


Anexo II: Croquis patrimoniais dos loteamentos irregulares

A - Vila Firmino

B - Jardim Jerivá (1 - Jardim das Rosas)

97


B - Jardim Jerivá (2 - Uso especial)

98

B - Jardim Jerivá (3)


C - Vila Elenice

D - Jardim Jerivá (1)

P

99


D - Jardim Jerivá (2 - Jardim Lydia)

100

F - Jardim Walquíria


101 101


TFG I . Arquitetura e Urbanismo . FCT - unesp . Fevereiro de 2022 . Maria Catarina de Lamas Dias . Orientadora: Ma. Luiza Sobhie Muñoz


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