Te conheci em abril. Dois meses depois, após 15 dias chorando por você ter desaparecido sem explicação, decidi escrever essa carta.
IMAGEM DE MIM NO FUNDO DO RIO
você se foi e o que eu chorei dava para se tornar o início de uma nascente
Você sumiu na semana em que eu havia iniciado um estudo sobre a relação entre arte e a subjetividade. Nomeei esse meu campo de pesquisa de “paisagem interna”. Contemplar, observar em si as angústias, belezas, relevos, rios e trazer isso pra fora; conectar essa paisagem interna com a externa.
No entanto, Yara, meus planos de estudo para esse mês não aconteceram exatamente como eu estava prevendo. Eu só conseguia pensar em você, precisamente no que nós fomos, no que você foi para mim. Paisagem interna em clima de garoa londrina, furacões esporádicos cruzam o campo. Um tanto quanto desagradável mas interessante de se observar.
A vida é curiosa: estudei sobre artistas que lidam com a subjetividade de relações pessoais, quando pensar sobre a minha, tomou conta dos meus dias.
— se as mulheres fracassaram em produzir arte “universal” porque estão aprisionadas no “pessoal”, por que não universalizar o “pessoal” e torná-lo objeto da nossa arte?
Hannah Wilke fez essa pergunta, e assim como outras muitas mulheres de sua época, começou a fazer uma arte intimamente ligada com o seu cotidiano. Hannah foi a primeira artista que comecei a pesquisar para entender, o que era para mim, essa “paisagem interna”.
Enquanto li sobre o seu trabalho, fiquei profundamente tocada com a sua capacidade de olhar para o que a incomodava e conseguir traduzir tudo isso de maneira sensível e tão inteligente. Durante toda a sua carreira, lidou com partes extremamente íntimas de si, muitas vezes trazendo isso com seu próprio corpo. Seus relacionamentos, o abandono que viveu por parte do seu ex marido, a opressão em viver sendo mulher, a morte de sua mãe, o processo da própria morte devido a um câncer de mama. Tudo isso fez parte do trabalho de Wilke. Se para mim, abraçar a vulnerabilidade é um caminho que construo aos poucos, para Hannah Wilke é um processo visceral.
Um dos trabalhos que me marcaram foi Intercourse With, performance de 1978. Nela, Hannah vai se despindo aos poucos enquanto ouve mensagens telefônicas deixadas em sua caixa postal por amigos, amantes, colegas e familiares. A nudez como a vulnerabilidade de estar e construir relações pessoais (talvez essa seja uma das coisas que eu mais tenha medo). Com o decorrer do vídeo, se percebe que Wilke se despe para revelar que seu corpo está coberto com os nomes dos indivíduosqueescuta;elaentãocomeçaaremovermetodicamenteosnomesatéquetodososvestígiostenhamdesaparecido.Comonossasrelaçõesnosmarcam,quemsomosnóscomesemelas?
Não te contei, mas em maio eu tive uma ideia para um trabalho. Por volta das três da tarde, a luz do sol bate em uma determinada posição na janela colorida do meu banheiro que brilha preenchido de um tom laranja rosado. Queria nesse horário que você me ajudasse a gravar um vídeo, ou talvez uma fotoperformance. Eu iria me despir e entrar no box para tomar banho, ao me lavar eu também limparia o chão e as paredes ao meu redor que teriam sido previamente pintadas por mim com uma paisagem azulada. Talvez eu me sentasse no chão em algum momento, buscando recriar a clássica fotografia que Gordon Parks fez da Helen Frankenthaler em seu estúdio, seu corpo está envolto em azul. Ainda não pensei como seria o final, mas esses dias, lendo sobre a performance da Hannah Wilke, imaginei outra cena: eu me despindo, entrando no chuveiro rodeado pelas paredes pintadas de azul. Ligo a água, você aparece, também nua, e silenciosamente entra para tomar banho comigo.
Quando te conheci não sabia dizer o que tinha achado do encontro, gostar de você foi algo construído com o tempo. Como uma música que ouço pela primeira vez; há algumas que logo de primeira me cativam, já outras não tenho certeza. Posso descobrir que não gosto ou posso também ir percebendo, no decorrer das vezes em que vou escutando, outras nuances e o espaço dela ir crescendo dentro de mim. Tem coisas que só são percebidas com o tempo. Você foi assim, igual aquela música do Fábio de Carvalho, a cada vez que eu escutava, gostava mais.
— Fogo eterno
Eu nunca sei terminar as conversas que eu começo
Eu nunca deixei as pessoas irem embora
E se você souber da invencibilidade da memória
Você se lembra do que eu te disse naquele dia? “Yara, acho que estou encantada por você mais do que eu imaginava”. Você não respondeu, só riu. Na verdade, o riso já era uma resposta, mas no momento não percebi. Não me culpo, estava submersa tentando entender esse sentimento que via crescer no cotidiano criado em conversar com você. Uma sensação parecida acontece quando estudo sobre algum artista, vou estudando e meu fascínio por seu trabalho aumentando. “J’aime la vie quotidienne”, Annette Messager, a segunda artista que dediquei para minha pesquisa, disse essa frase em uma entrevista que li semana passada. A forma com que ela e Hannah lidam com o universo pessoal é contrastante: nos trabalhos de Wilke não existe espaço para o riso. Já Messager expressa seus sentimentos com um tom de humor. Vendo seus diários e escritos, me peguei dando risada algumas vezes. Ela externaliza o que sente de forma lúdica, misturando o autobiográfico com a ficção. Cria personagens para partes muito específicas de si, da mulher que coletou receitas e não fez; da mulher apaixonada dizendo os homens que ama e que não ama; da mulher que quer ser mãe e não o é, e então cria um painel enorme com fotos de bebês para serem seus. Como sente que o olhar deles confirma a farsa de que ela não é a mãe, Messager risca cada um dos olhos daquelas crianças e pensa “agora sim são meus”. Eu lia parando para rir, deslumbrada com a forma que ela exterioriza suas pequenas loucuras. É preciso ter coragem para transformar a própria vida em objeto de estudo.
Nos diários, instalações e desenhos, a palavra sempre teve papel principal no trabalho de Annette “Eu amo meu nome. Amo a idéia de meu nome me permitir enviar mensagens, como garrafas ao mar”, Annette Mensageira. Palavras se tornam e são imagens. São imagens enquanto continuam sendo palavras que evocam um som, um sentimento. Qual seria a imagem para o seu nome, Yara? Yara, Yara, Yara. Aquela que encanta os homens para as profundezas da água.
Imagem de mim no fundo do rio.
Você se foi e o que eu chorei dava para se tornar o início de uma nascente.
Nosso segundo encontro foi naquele bar que só tocava música dos anos 80. As cadeiras eram daquelas de plástico, então não dava para a gente sentar pertinho uma da outra. Você como eu ama o toque, então tivemos que, em determinado momento ignorar a mesa e colocar as cadeiras o mais próximas possível uma da outra. Semana passada eu voltei a este bar com a Sara, em geral somos monotemáticas em nossos assuntos: só falamos de mulher. Mas nesse dia conversamos sobre arte e ela me disse algo tão lindo: “ser artista para mim é ir deixando a pele fina para ter a possibilidade de ser atravessada pelo sensível do mundo”. Ter a pele fina me faz sentir demais, queria às vezes ser concha. No entanto, ter pele é o que me possibilita tocar e ser tocada.
— Eu lhe escrevo todo o tempo, sempre, veja você, nada mais além disso. Nada. Talvez esteja escrevendo mil cartas suas, para lhe dar cartas de minha presente vida. E você, você vai fazer com elas o que eu gostaria... que você fizesse com elas. Isto é, o que você quiser.
Dois anos atrás, muito antes de eu ter miragem de um dia te conhecer, eu vi um filme da Marguerite Duras tão lindo que é a quarta vez que o assisto: Aurélia Steiner (Melbourne). Nele, ouve-se Duras ler cartas fictícias de uma poeta para seu amante enquanto passam imagens de uma viagem de barco ao longo do rio Sena. Navegação por paisagem de águas calmas e coração turbulento. É o segundo filme que vejo de Duras onde ela narra uma história, enquanto imagens outras, as que se ouve, são mostradas. O rio fica carregado de simbologia. Conversa entre o externo e o interno, a paisagem acontece dentro e fora, no rio e na carta, as duas se sustentam por si só e também se misturam, se influenciam, trazendo potência e qualidade uma à outra, o mundo atravessando a pele. A força da paisagem da carta às vezes muda a paisagem do rio, mas outras horas o rio tem potência individual para estar por si só. Ora se submerge na paisagem do Sena, ora na da carta. Em uma das cenas o barco navega pela água que está resplandecendo pela luz do pôr do sol. Arcos a atravessam. Há uma pessoa no alto da ponte. E ouço:
— Você costumava dizer: nada permanece. Mas esse caminho, esse rio, como voltar ao nosso amor? Como? A luz afunda, aparentemente atrás das árvores, há um vento, está congelando, o jardim está cheio de pássaros e o gato enlouquecendo, com fome. E para mim, é tudo a mesma coisa.
A escolha de Marguerite Duras de ler a carta com essas imagens não é atoa. A água possui, como um de seus arquétipos, a emoção. Anos atrás, quando eu morava perto do mar, a Angelina me disse que quando se sonha com água é preciso observar como ela está, como a emoção está: se está com barro, translúcida, escura, fria, quente, se tem ondas fortes ou se está calma. Agora, estou no fundo do rio, submersa na noite. Mas sabe Yara, mesmo um rio turvo pode em algum momento se tornar límpido. A água corre, tudo passa. Quando eu era criança, não conseguia acreditar que o rio Tietê da entrada de São Paulo era o mesmo que eu via passar por debaixo da ponte que eu cruzava ali perto de Botucatu. Não sei se já viu, mas é maravilhoso perceber que após 250 quilômetros o rio ganha vida novamente.
Pouco antes de você sumir, comecei a assistir ao filme de Jonas Mekas, As I was moving ahead occasionally I saw brief glimpses of beauty. Com uma duração de mais de quatro horas, faz com que apesar de maravilhoso, não seja um filme fácil de se ver. Fui assistindo pouco a pouco ao longo desse mês. O filme é feito com fragmentos de registros de mais de 30 anos de gravações da vida pessoal do diretor. As imagens – que não estão em ordem cronológica – são interrompidas em alguns momentos com frases que marcam um grupo de acontecimentos: A beleza do calor do verão enquanto se colhe morangos selvagens, A beleza de amigos se reunindo, Central Park no inverno e ocasionalmente aparecem também frases que ajudam a dar o tom da proposta de ausência de narrativa: nesse filme nada acontece O áudio durante as quatros horas varia entre música, silêncio, e falas do próprio Jonas Mekas que discorre sobre suas memórias, sobre a vida que continua sempre e sempre. Vida que nos oferta ora ou outra com milagres no cotidiano. Eles acontecem e vão embora rapidamente, “totalmente insignificantes mas grandiosos”, ele diz. Em determinado momento, em uma cena com sua família e amigos brincando e conversando em um parque repleto de flores, ouve-se Mekas ler um trecho da autobiografia de William Carlos Williams: “Esse é o trabalho do poeta. Não falar em categorias vagas, mas escrever de maneira particular. Como um médico que trabalha com um paciente, com a coisa diante dele. No particular descobrir o universal”. O filme é a pele fina que a Sara me disse, o tempo todo me lembra da felicidade que é se abrir e deixar ser atravessada pela beleza do dia a dia do mundo. Em uma dança fluida entre paisagem interna e externa.
Yara, depois que você se foi, passei quinze dias chorando, até que então decidi te enviar aquela mensagem de despedida para demarcar, finalmente, para mim, que acabou. Nela te disse: “Eu adoro pequenos encontros e esse não foi diferente”. A vida acontece nessas pequenas coisas, que muitas vezes somem quando você menos espera; em um momento, estava feliz em te ver sorrindo e te abraçar por 30 segundos antes de você voltar correndo para trabalhar, em outro, você se tornou memória.
Minha paisagem interna tem um rio, pedrinhas rolam enquanto ele corre, a vida continua.
— As I was moving ahead occasionally I saw brief glimpses of beauty. Yes, la beauté
And it’s still beautiful in my memory
As real as then
Imagem de mim no fundo do rio
Esta publicação foi composta nas fontes Unb Pro e Roboto. Impressão digital realizada na Aster Graf em papel opalina evenglow 120 g/m².
Possui 32 páginas e tiragem de 5 exemplares.
Agradecimento especial à Anna Queiroz, Bianca Rosa, Lucas Matoso e Marcelo Drummond.
Dezembro de 2022, Belo horizonte - MG.