RETALHOS DE INFÂNCIA
A caderneta do aluno … Grandes recordações estão ligadas a essas poucas páginas presas a uma capa branca e roxa que ainda hoje temo. “Quem não trouxe o material ponha o dedo no ar” ouvia eu todos os dias naquela aula que me fazia roer as unhas até ao sabugo quando, desde cedo, sabia que me esquecera do material em qualquer lugar. Nunca sabia onde.
Reflectindo sobre essa época bem passada… até que não era mau de todo. A ingenuidade era desculpa para tudo. De mochila a tiracolo, todas as manhãs era um verdadeiro “inferno” levar-me ao jardim-escola. Diante de esperneios e choros compulsivos via os meus pais afastarem-se, a irem à vida deles. Porém, incomodados com todo aquele aparato. Lá no fundo sei que a vontade deles seria terem-me sempre do seu lado, mas lá lhes dava a folga. Bastavam-me uma a duas horas (coisa pouca!) para que toda aquela azáfama tivesse o seu fim. Ser-se professor longe da zona de residência implica levantar cedo e cedo partir. Eu era talvez uma das crianças que mais cedo entrava por aquele átrio fora, de bibe vestido, à procura de algum ser semelhante que pudesse fazer-me companhia nas madrugadas de Teletubbies. Relembro aquele salão mais facilmente do que relembro o que comi ontem ao jantar. À esquerda, a porta branca da cozinha fazia escapar pelas suas friestas o fresco cheiro a pão acabado de cozer. A ementa afixada na porta era o quebra-cabeças que me atormentava nos primeiros anos de aprendizagem da escrita. O salão, com uma grande carpete que convidava a sentar para assistir à televisão (a única hora a que podia ser vista), era composto por vastas distracções que faziam deliciar os mais novos: desde as mesas onde se moldavam grandes pedaços de plasticina, às estantes com bonecos de todas as formas e feitios. Na enfermaria, a sala fechada do lado direito, ora se tratavam grandes dores de cabeça, ora se descobriam as manhas dos que queriam regressar mais cedo a casa. A entrada neste compartimento podia também levar-nos a um outro destino temido por todos: o gabinete da “Senhora Dona Amélia”, uma senhora a quem até hoje devo muito respeito. A ideia de vestir o bibe nunca foi muito atraente para ninguém que frequentasse nem o bibe amarelo (três anos) nem bibe azul-claro (cinco anos). Imperava a sensação de liberdade nas corridas ao pátio e a vaidade em mostrar as roupas que a mamã fazia questão de combinar. A importância era já outra quando se entrava no primeiro ciclo com o bibe castanho e o
“bichinho” da sensação de crescido que se fazia mostrar. A “forma” desperta em mim uma grande nostalgia. Dois a dois, ordenados pelo nome, seguíamos escola fora, cantando alegremente as frescas canções decoradas com muita insistência. Entre atropelos gramaticais e amnésias musicais desfilávamos efusivamente, inconscientes do que nos rodeava. De aspectos reais. Não ter aquela caneta de cor que cheirava a cocacola ou não ter o último grito da moda das mochilas de “rodinhas” eram a origem de um pequeno grande fim do mundo. Problemas na base do “não ter”. Com o passar dos anos, toda essa inocência se desvaneceu. Toda a imaturidade foi corrigida. A realidade tomou-lhe o lugar. O quotidiano foi e sempre será a luta pela sobrevivência. Mas voltando atrás… Os dias de festa estavam agendados e eram esperados ansiosamente. Desde o S. Martinho onde se petiscavam castanhas assadas acabadas de saltitar na “panela preta”, ao carnaval, onde se desfilavam grandes e variadas indumentárias com direito a concurso de votação. Sim, posso vangloriar-me por ter tido a honra de ganhar o prémio da melhor máscara em 1998, com o disfarce de sevilhana. Foi uma grande conquista! Por falar em conquista, devo deixar registado uma lembrança que considero bastante cruel aos meus queridos dentinhos de leite (que Deus os tenha)! Uma prática bastante comum no meu jardimescola era convencer os alunos a deixar que lhes arrancassem estes pobres coitados quando dessem sinal de pequenas ou grandes oscilações. Eu como tal, era uma grande resistente. Para tal, teria que receber uma recompensa por tamanha coragem. Fazia-se assim um jogo de negócios: dente versus compensação. Cheguei a ganhar amostras de perfumes! Nos intervalos exibiam-se as novas aquisições da semana e quiçá do dia! Digamos que era o tempo das “galinhas gordas” aliado a uma sociedade “média-alta”. Na mochila (cheia até ao cimo) guardava a minha colecção de canetas com cheiros (primeiro que se acabasse a colecção…), os livros que não me esquecia “não sei onde” e a famosa caderneta do aluno (que nunca percebi o porquê de não se chamar de caderneta dos recados se é para isso que ela serve). Esta última era muito temida. A possível acção da professora a escrever naquelas folhas onde se pode ler “correspondência escola-família” era de pôr “os cabelos em pé”! Já quando era a minha mãe a escrever, a satisfação saía vencedora. Ora se desculpava pela cabeça de vento da filha que perdera o livro da sua disciplina, ora justificava uma falta por motivo de doença. Ainda hoje posso constatar o quanto distraída já era no ano de 1996 (portanto com… seis anos!). E passo a citar: “A Mariana perdeu o livro da sua disciplina e só na semana passada se apercebeu do facto. Encomendei outro mas só chegará à papelaria esta semana, motivo pelo qual lhe peço em nome da minha educanda, imensas desculpas pelo atraso.” O recado da professora na caderneta nunca se veio a concretizar… felizmente! Embora castigos tivesse tido alguns. Outro “adamastor” da altura era o famoso ditado. Todas as semanas, no mesmo dia, se
faziam sentir os ânimos à flor da pele com os mesmos. Um pequeno texto era lido lentamente para que se fizesse ouvir bem. Para avaliar o sistema ortográfico era utilizada uma caneta que remetia sempre para uma conotação negativa: a caneta de cor vermelha. Os erros eram assinalados com uma linha por baixo da respectiva palavra e, no final, eram somados e apontados no canto superior direito, lateralmente ao título. O aluno assistia à correcção, ao lado da mesa do professor. Recordo-me do ambiente vivido nesses momentos. As pernas tremiam perante a tensão e a esperança de que fosse esboçado um bonito e redondo círculo na folha. Era o suficiente para voltar para casa orgulhosa do meu desempenho. No final, castigados eram os que se baralhavam com os “v” e “b” e os mais distraídos que se deixavam apanhar por algumas ratoeiras. No fundo da folha, eram colocadas as correcções que tinham de ser repetidas vezes sem conta. Para dar um toque de alegria a todo este ritual, faziam-se desenhos coloridos pela folha, consoante o tema do ditado. Chegou o quarto ano, o tempo do bibe azulão, e as despedidas de uma infância que passara a correr. Esses breves anos deixaram em mim lembranças felizes de recordar, fáceis de permanecer. Adeus tempos de inocência. “Não é bom ser criança: bom é, quando somos velhos, pensar em quando éramos crianças”. Cesare Pavese.
MARIANA BRANCO, aluna de Comunicação Social - ISMT Coimbra