Pequeno experimento de mundo #1: Compartimento de estar e partir

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS CENTRO DE ARTES CURSO DE LICENCIATURA EM ARTES VISUAIS

Trabalho de conclusão de curso apresentado como requisito parcial à obtenção do título de Licenciada em Artes Visuais, do Centro de Artes, na Universidade Federal de Pelotas. Orientadora: Profa. Dra. Helene Gomes de Sacco

Pelotas, inverno de 2015



Orientadora: Profa. Dra. Helene Gomes Sacco

Banca Examinadora: Profa. Me. Carolina CorrĂŞa Rochefort _____________________________ Profa. Dra. Larissa Patron _____________________________ Profa. Me. MĂĄrcia Regina Pereira de Souza _____________________________ Pelotas, inverno de 2015



Para nรณs, que acreditamos na serventia da mentira e da poesia.



agradecimento Minha sincera gratidão aos sonhadores que encontrei nessa jornada de quatro anos de formação. O anseio da emergência ambulante pontilhou encontros sensíveis, nos quais a expansão de viagens apoiavam-se no conselho que meu nono me deu, antes de cruzar o oceano: “O longe não existe, a gente sempre chega lá”. Agradeço intensamente à minha família, por me permitirem sonhar e por também sonharem comigo. Miguelângelo, Eunice, Mateus e Jeff, amo vocês mil mil mil, cem cem cem (até apertarem a pontinha do meu nariz). À Capes, à professora Larissa Patron e ao professor José Luiz Pellegrin, por auxiliarem de alguma forma na transformadora habitação lusitana. E a esta que possibilitou a construção de uma família portuguesa: Carlinhos, Carol doce mais doce de Coimbra, Lucas, Sidnei, Lucas G., Monique, Diego, Allan, Renanzinho, Tocco, Cimar e Carmenzita. Às visitas feitas por carta, carne ou satélite nessa distância de dois anos. Em memória à Elisa, por me conduzir e ser presença nesse mundo sensível. Aos noninhos e suas lindas cartas em italiano. À Paulinha, Nina e Fritz pelas bergamotas cruzadoras de oceano. À Helenize, Dieizon, Bode e Esther, grata pelo endereço disponível e troca de postais. À Valéria, Maria Amália, Cassol e Leandro, pelo alento revigorante do encontro. À Dona Lúcia e às irmãs Dall Ross, por me resguardarem em seus lares portugueses. À querida orientadora Helene Sacco, e sua imensa paciência em meio a surtos desestabilizantes. Sua compreensão, estímulo e acolhimento me fizeram acreditar que somente no território da arte posso ser sincera comigo mesma. Grata por abrir espaços e resistir em meio ao inferno. Grata por fazer que minhas dúvidas me movam e por praticar uma orientação feita de afetos. Aos novos encontros no retorno, cheios de delicadeza e doçura: Ana Paula, Helicóptero, Gustavo, Márcia, Carol, Yuri e Lena.



Depois que atravessarem o muro e a tarde os caracóis cessarão. Às vezes cessam ao meio. Cessam de repente, porque lhes acaba por dentro uma gosma com que sangram os seus caminhos. Vêm os meninos e os arrancam da parede ocos. E com formigas por dentro passeando em seus restos de carne. Essas formigas são indóceis de ocos. Ah, como serão ardentes nos caracóis os desejos de voar! Manoel de Barros







resumo Este texto é resultado de reflexões que permeiam a criação artística de um objeto feito para experimentar o mundo. Este é entendido como uma concha que é (re)inventada e leva consigo apreensões de uma vida em viagem. Transporta utensílios de observação e pesquisa do espaço percorrido, tal como pequenos objetos que percorrem sua existência como corpos celestes na orbita de um planeta. Esses objetos, por sua vez, nascem depois da (re)construção da carapaça e constituem-se como publicações de livros de artista, contribuindo então para os encontros e trocas desse mundo (re)inventado. Após sua criação, o objeto artístico ganha outra dimensão, quando habita o cotidiano e desenvolve ações poético-educativas na cidade de Pelotas, Rio Grande do Sul. Sua inserção no espaço propõe um metalugar em contraponto aos não-lugares cotidianos, ao fluxo incessante. Dessa maneira, as ações visam à sua contínua (re)invenção, entendendo a experiência como educação, e assim sustentando a potência de outros espaços para aprender, para viajar. A pesquisa levanta questionamentos acerca de viagens, deambulações urbanas e experiências presentes no percurso infindo de construção do Compartimento de estar e partir. Palavras chave: Viagem. Experiência. Arte. Educação. Reinvenção.

abstract This text is the result of reflections that permeate the artistic creation of an object made to experience the world. This is understood as a shell that is (re)invented and carries seizures of a life on the road. Carries observation tools and equipments used to the covered space research, such as small objects that roam its existence as celestial bodies in orbit of a planet. These objects, in turn, are born after the (re)construction of the shell and constitute themselves as artist's books, so contributing for meetings and exchanges of this (re)invented world. After after its creation, the artistic object gains another dimension when inhabits the everyday places and develops poetic and educational actions in the city of Pelotas, Rio Grande do Sul. Its insertion in space proposes a metalugar as opposed to daily nãolugares, to the incessant flow. Thus, the actions aimed at their continuing (re)invention, understanding the experience as education, and thus sustaining the power of other places to learn, to travel. The research raises questions about travel, urban wanderings and experiences present in the endless journey of the building of the Compartimento de estar e partir. Keywords: Travel. Experience. Art. Education. Reinvention.



itinerário introdutório INÍCIOS DO MUNDO A fundação de uma obra não é a produção infinita de objetos: é a formulação de uma possibilidade de vida. Hélio Oiticica

Este não é um livro sobre viagem, embora una-se a elas. Seria antes sobre devaneios, manchas, metamorfoses imaginadas, transfigurações experimentadas, nódoas de imagem, festejos de linguagem. Aqui, constituem-se reinvenções sucessivas de uma aurora de vida, de fragmentados trajetos que se iniciam com despertares e adormeceres. E a Terra, que viaja pelo Cosmos dentro da Via Láctea com as galáxias mergulhadas no universo, é só mais um exemplo de que viagem é sempre percurso, transformação. Eu sei que poderia falar sobre outros assuntos, coisas que me inquietam, como por exemplo a especulação imobiliária ou a paralisação da linha de ônibus, e de fato, essas coisas me importunam, só que elas não me movem. O que move é o deslocamento mutante, o decurso entre uma coisa e outra, e é justamente por isso que faço um convite de leitura, dando ênfase àquilo que esta pesquisa ainda pode vir a alterar-se a partir da sua interpretação. Seu olhar provavelmente atravessará agitações que percorrem a investigação como um novelo, como uma meada tramada em nó, deparando-se com uma escrita esdrúxula e hiperbólica que incorpora sentido aos peculiares mapas-memórias, que por sua vez, aparecem como uma dobra 1 incitante dos fios emaranhados. Como certifica o filósofo francês Gilles Deleuze (1995), as linhas são responsáveis por arrastar o pensamento através do movimento das coisas, ao longo de veios desenhados nas profundezas, das linhas de fuga, das bifurcações que os nós constroem. É por esse motivo que esses impulsos dobrados apontam uma (re)invenção pessoal e artística que é convertida em matéria, transfigurada em proposta de ação-experimento. 1

A noção de dobra de Gilles Deleuze é aqui entendida como uma visão de mundo, pois o mundo inteiro se encontra dobrado. Essa noção é interpretada na presente pesquisa por meio da entrevista do seu Abecedário (1888-1889) e junto ao artigo A dobra deleuziana: o mundo como potência de invenção de Rosane Neves da Silva (2004).


Tendo conhecido o que precisava de humano para ser entendida como tal, manifesto-me aqui por outro lado, pelo que é necessário de inumano2 para desconcertar-me e reconstruir-me. É dessa maneira que conduzo a pesquisa, acreditando ter sofrido o processo de metamorfose de diferentes espécies animais, desiguais espaços e distintos mundos. Só que esse tipo de metamorfose não se explica, é coisa vivida, não feita. Essa mutação talvez possa ser equiparada à canção Metamorfose Ambulante (1973) de Raulzito (1945-1989)3 e tudo aquilo “sobre o que eu nem sei quem sou”, preferindo viver em constante mudança do que ser o mesmo todos os dias. Ela ainda pode ser aludida através da célebre novela literária de Franz Kafka (18831924) Metamorfose (1915) na qual enfatiza a condição grotesca e cruel da humanidade que estranha uma nova forma, que rejeita e esconde do mundo aquilo que sofreu transformação. À vista dessa inexplicável mudança, é que anuncio o caráter visceral do estado aberto e ilimitado daquilo que sou, daquilo que verdadeiramente todos somos, pois, a metamorfose é a gente quem faz. Dessa forma identifico-me concomitantemente como animal, pessoa, educadora, pesquisadora, e artista-etc 4 a fim de utilizar proposições artísticas como uma experiência de educação em arte, oferecendo um novo mundo ao ordinário, um lugar capaz de mover percepções por simplesmente estar. O estar aplica-se aqui em contrapartida à abundante mobilidade contemporânea, e portanto, traz um estudo sobre o perceber, sobre como criar uma situação para demorar-se, como interromper o fluxo cotidiano através de estratégias lúdicas de ocupação do espaço, ou ainda, de que maneira auxiliar a construir uma cidade menos espetacular, mais lúdica e experimental. No entanto, essa pesquisa nasceu quando nada disso eu percebia, porque encontrava-me em exílio. Durante o tempo que permaneci em Portugal, fiquei sem território, sentia-me como se estivesse desalojada de mim. Não sei por que, mas de repente avolumei a vontade de não ser passagem, não permanecer mais transitoriamente nos não-lugares no qual percorria. Eu 2

Se procuro essa situação inumana, acho conveniente esclarecer que ela não tem definição a partir do estado atroz, sádico. Aquilo que é inumano parte da concepção de quem não sabe ou não pode ser humano. E não, ao que rapidamente associa-se, tal como, o que é inumano é o que não apresenta comportamento ou sentimento considerado normal no ser humano; antihumano, desumano. Mas, o que será de fato, o estado normal humano? 3 Raulzito refere-se ao apelido comum do cantor e compositor brasileiro Raul Seixas. 4 Termo definido por Ricardo Basbaum, tendo sua significação dentro do subtítulo “superfície entrópica: chão”. 18


ansiava habitar os lugares, sonhava em transformar os não-lugares em lugares cheios de experiência presente. Foi então que determinei essa forma de vida: ocupar espaços com uma espécie de presença não condizente a que presenciamos hoje. Afinal, como afirma o filósofo tcheco Vilém Flusser (2011, p. 51) “Exilados são pessoas desenraizadas que buscam desenraizar tudo a sua volta para criar raízes”. E era isso que eu estava arriscando: estar junto dos outros, habitar o passadiço, criar raízes na correnteza. Talvez essa sensação de exílio estrangeiro tenha se ampliado quando parei em frente às transformações e perguntei: Que mundo é esse que não pertenço? Qual é meu território? Será que perdi a noção de lugar? Será que quando retornar, ainda me localizarei? Sentirei-me pertencente de um território? Por consequência a tais questionamentos, comecei a trocar cartas com ausências-presentes, e por meio delas percebi que o que proponho fazer é justamente o próprio corpo que me habita. Ou melhor, as presenças ativadas por ausência são minha matéria e substância. É dessa forma que aparece o objeto poético-artístico-educativo Compartimento de estar e partir e dentro das metamorfoses, ele é identificado como uma concha (re)inventada que permanece em todas mutações. Esse objeto é o centro das investigações imersas na monografia Pequeno Experimento de Mundo #1, e assim, transita em meio ao caracolar da experiência de busca sensível e conceitual, entre o formigamento de sua emanação até o descolamento, em que se constitui como uma plataforma que incorpora coleta de lugares e pessoas que passam e ficam, que ultrapassam margens culturais, poéticas e geográficas. É então, vinculada a essas questões e em processo de formação enquanto artistaeducadora, que procuro entender, por meio da criação-construção do Compartimento de estar e partir, de que maneira minha produção artística se reúne, e como isso reflete na forma que construo um mundo móvel com propósito de construir um espaço de ensino sensível que não seja propriamente o ambiente escolar. Pequeno Experimento de Mundo #1: Compartimento de estar e partir é um espaço sem coordenadas precisas, não se fixa permanentemente em algum lugar, podendo ser entendido como um metalugar 5 que se transforma no percurso, na viagem. É um infindo work in process. Seu nascimento se dá a partir do entendimento de arte aliada à vida, de criação 5

Conceito inventado que implica a descoberta, nas transformações dos lugares praticados.

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devoradora do corpo, das sensações apropriadoras de mundos, e é dessa forma que também proponho pensar a experiência em relação ao trabalho, aos desdobramentos e as metamorfoses possíveis. Desse jeito, substancia-se assim: na medida em que é pequeno tende para dentro, na medida em que é mundo tende para fora. É por isso que abraça a constante dilatação entre a sua potência criadora e a relação com quem adentra esse metalugar. Somente essa expansão e contração respondem àquilo que distingue os limites espaciais 6 entre interior e exterior, entre dentro e fora da concha, entre aqui e lá. É pequeno, porque é modesto e não tem pretensão de se tornar grandioso ou imponente. É experimento, porque simultaneamente carrega a disposição atenta a observá-lo e reinventá-lo na tentativa de expandir existências e de sacudir o universo. É mundo, por fim (ou começo) porque carrega partículas da esfera terrestre e arrisca-se a converter em pausa, um poema meu e seu de como vemos e sentimos a imensidão. É desse modo, que apresento a concepção de que tudo contido na presente investigação está no meio, em um domínio de campo entre a descoberta de espaços matriciais e linhas de horizonte. É um novelo que não encontra ponta, e o movimento que toma não segue uma lógica retilínea com princípio, um meio ou um fim. Aqui tudo é meio. Não sigo para qualquer lugar, mas evoluo em espécies e espaços. O estar entre não quer dizer ser uma coisa ou outra, quer dizer ser temporariamente uma coisa e outra. É estar no meio de (...) transformação. Não é somente estar no meio ou em um meio, mas ser o próprio meio de experimentação, integrando conceitos, pensamentos, afetos, ambientes e acreditando que a escrita nada tem a ver com significar, “mas com serpentear, cartografar, mesmo os territórios ainda por vir” (Deleuze, Guattari, 1996, p. 13). A metodologia volta-se à cartografia, como modo de pesquisaintervenção para produção de subjetividade, experimentando e ressignificando esse método em permanente processo criativo. A direção 6

Francesco Carero (2013) apresenta a dimensão de espaços e suas dualidades: Enquanto Milton Santos (1996) chama espaços indeterminados como espaços opacos, considerados como abertos do aproximativo e da criatividade, em oposição aos luminosos, considerados como espaços fechados da exatidão, racionalizados e racionalizadores. Deleuze e Guattari diferenciam o espaço estriado e liso, em que, por sua vez, os nômades estão ligados ao espaço liso, espaço vetor de desterritorializações, em oposição ao estriado, espaço sedentário territorializado. O caminhar transurbante seria, então, buscar esses espaços nômades, opacos, lisos, dentro da própria cidade luminosa – espaço estriado por excelência, ou como Careri (2013, p.13) diz, o jogo do limite espacial seria buscar a “cidade nômade que vive dentro da cidade sedentária”. 20


que se pretende tomar se dá sem distanciamento, já que a experiência está imersa em todo meio, e assim, a investigação abordará questões relevantes no que se entende por valor qualitativo de uma pesquisa poético-educativa, relacionando-se ao fazer artístico e à possível capacidade de invenção e reinvenção de mundos. Dela brotarão três etapas entrelaçadas: o desenvolvimento de uma base teórica, a construção prática do objeto artístico e a instalação deste no espaço urbano. É por isso que a estrutura capitular da pesquisa se faz tal como o verdejar de Deleuze e Guattari (1996, p. 21). Afinal, “a árvore não é verde, ela verdeja” e ao utilizar o verbo infinitivo em todos os processos do Pequeno Experimento de Mundo #1, conservo aqui o movimento de uma vida que indica situações transitórias. São os próprios acontecimentos que estão contidos no verbo infinitivo e não na qualidade concedida ao substantivo. Logo, a concha vista como sujeito só existe como nome que atribui múltiplos encontros. Porque são os encontros que a tornam concha. Os acontecimentos dão afeitos, fazem nascer reações em cadeia: o viver, morrer, rememorar, verdejar. Pois se morre de inúmeras formas, nunca se acaba de morrer, e da mesma maneira nunca se acaba de viver, de rememorar ou verdejar. Todo acontecimento é uma névoa. Se os infinitivos “morrer”, “amar”, “mover”, “sorrir” são acontecimentos, é porque há neles uma parte que sua realização não basta para realizar, um devir em si mesmo que está sempre, a um só tempo, nos esperando e nos precedendo como uma terceira pessoa do infinitivo, uma quarta pessoa do singular. Sim, o morrer engendra-se em nossos corpos, produz-se em nossos corpos, mas chega de fora, singularmente incorporal, e fundindo-se sobre nós como uma batalha que sobrevoa os combates, e como um pássaro que sobrevoa a batalha. (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 78) Diante disso, ressalto um importante saber: essa escrita percorre camadas de texto que vão desde uma casca rígida, uma camada intermédia, até a mais leve. É preciso fazer permanência sobre o texto, mas também é necessário abandonar sua fatigante estrutura para percorrê-lo. Afinal, a leitura aqui é demorada e constrói um tempo diferenciado do ritmo cotidiano, ela requer habitação e partida, pois é justamente isso que faz as viagens. Com tal característica, no capítulo Caracolar procuro realizar um movimento espiral apresentando conceitos amplos, referindo-se ao sujeito e

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ao objeto envolvidos no contexto. Esse bloco é literalmente a casca espessa de um caracol. É o corpo denso e conceitual da pesquisa. Nele propõem-se andanças, passagens e intervalos para entender a noção de viagem, questionando e refletindo os lugares da cidade, a mobilidade e a prática de espaço. Porém, é aqui que, sobretudo, concentro-me em entender que viajar é preciso, mas sonhar também o é. É possível viajar sem se deslocar, ir ao mundo afora e explorar nosso interior. É assim que faço desse primeiro capítulo o início de uma leitura enquanto viagem de descoberta, de outras verdades possíveis, pois é através dela que somos transportados, trocamos de ambientes, partimos para o desigual. Por isso, deixo um recado: o melhor das viagens é esperar por elas. No capítulo Formigar, serão deslocadas inquietações dormentes que envolvem a construção do objeto artístico em questão, abordando questionamentos que brotaram em seu transcurso da imaginação até o estado tangível. Assim, aparecerão conceitos relevantes que explanam a percepção, a necessidade do ato da criação, a concepção do termo artista-etc e a potente dimensão de (re)invenção minha e do mundo. É a partir disto que serão aludidos alguns trabalhos artísticos que dão forma a concha, e que me fazem mergulhar no processo de sua emanação. Já no capítulo Assobiar, arrisco-me a expor as consequências do experimento. É dessa forma que pretendo pensar educação em arte por meio da experiência, e assim, coloco-me no papel de artista-educadora que media seu próprio trabalho em meio à cidade, em meio ao fluxo cotidiano. Essa proposição aventura-se na criação de um ambiente de interação, onde o público passante, a partir do instante em que para e rompe seu trajeto, deixa de estar na dimensão distante e passiva do observador, mas coloca-se como emancipado, participador e viajante junto à concha. Sei que tudo isso, em um primeiro momento, forma um quadro fragmentado e difuso, mas, na verdade, tudo se conecta, desdobra-se, alterase e pertencem-se mutuamente. Portanto, recomendo que organize sua sala de leitura, afaste os objetos e abra pelo menos um pequeno espaço com fenda infinita e o deixe sem uso, porque tudo que transborda da escrita está um tanto desarranjado, misturado e pode seriamente atingir seu aposento. Feito isso, prepare-se para mergulhar em um espaço vivido, em uma casca que olha a cidade, que atravessa viagens, encontros, que transforma e modifica a percepção dos lugares. Um espaço que vê experiência como

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cartografia, que propõe uma prática de territórios ordinários, de recintos intermediários. Portanto, previno desde já, que nessa escrita você encontrará mais transbundâncias do que problematizações, mais imprecisões do que respostas, mais correspondências do que diferenças, mais movimento do que estabilidade. E talvez, no fim, será menos importante saber do que sonhar, ver do que tatear no invisível.

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compêndio para uso de bichos IMPORTÂNCIA DO ÍNFIMO Portanto, como conhecer as coisas senão sendo-as? Jorge de Lima

No trajeto percorrido, vivido e escrito da presente pesquisa, acabo metamorfoseando-me em peculiares espécies animais7. Tudo isso sem criar qualquer pretensão zoológica, mas sim poética, dotada de movimento e sensibilidade. Essas transformações que o espaço produz, dimanam de uma inquietude geográfica misturada aos desassossegos causados pelo tempo, pelas horas, estações, pelas nuvens no céu. Na verdade, acho que comecei a incorporar multiplicidades da animália quando passei uma noite no deserto do Saara, em um verão escaldante que faziam mínimos 55°C. Após andar uma hora e meia de camelo ou dromedário (na sua comum confusão sobre a quantidade de corcovas), tinha, como única bagagem seis litros de água potável e, no caminho do acampamento, tive o fascínio de ver o pôr do sol deslizar sobre as dunas de areia. De imediato, imaginei estar contemplando um pôr do sol do asteroide B612, pois é realmente inevitável encontrar-se no deserto e não lembrar no conselho do Pequeno Príncipe, de parar debaixo das estrelas e de uma encantadora lua cheia e ficar i n t e i r a m e n t e s e m p r e s s a. Essa lentidão só fez reviver suas palavras como se fossem minhas (SAINT-EXUPÉRY, 2009, p. 76): “O que torna belo o deserto, é que ele esconde um poço nalgum lugar.” Ame o deserto. “Eu sempre amei o deserto. A gente senta numa duna de areia. Não se vê nada. Não se sente nada. E no silêncio alguma coisa irradia”. O que fez despertar meus olhos foi uma falha, uma falha luminosa, era como se no deserto existisse uma rachadura no mundo e era ali que a luz entrava (ou saía). Foi assim que a vontade desmedida de fazer parte disso tudo se propagou em mim. Em meio à imensidão arenosa, agachei-me, senti a textura do grão sob meus pés e mãos e recolhi uma porção desse infinito. Tenho absoluta certeza de que essa ação foi responsável por tudo. Ela registra o resíduo de demoradas erosões que é simultaneamente o elemento 7

A palavra animal deriva do latim anima, no sentido de fôlego vital.


último e multiforme da minha aparência. Ali, apanhei minha vida triturada num bocado de grãos, composta por uma substância arenosa de todas as coisas. E só agora sei que peguei isso na areia, esse querer de ser um animal tão mutante, com tantas divisões possíveis. Essa possibilidade de solicitar um todo incontestável, pois a primeira coisa que um animal tem é um mundo. É curioso, como afirma Deleuze (1988, p. 3), pois muita gente, muitos humanos não têm mundo. Vivem a vida de todo mundo, de qualquer um, de qualquer coisa. Já os animais, os animais têm mundo, eles solicitam um todo. Certamente, você já tenha se deparado com a fabulosa aptidão dos animais de marcar território. Seu canto, seus excrementos, suas posturas. E como esses animais são verdadeiramente extraordinários por conter a capacidade de arquitetá-lo, de invocar seu mundo e assim construir esse território é quase o nascimento da arte. O território é, portanto, o domínio do ter, mas ele só é válido em relação ao momento em que existe a saída deste. Quando o animal sai desse território, ele desterritorializa-se, experimenta outros lugares, aventura-se. Quando transfiro-me por simples evolução, para uma vida que toma uma nova atitude fecunda e liberta, chego àquilo que talvez no fundo me pertence e estou destinada: uma maestrina simuladora das espécies. Acho que só posso explicar essa circunstância de metamorfismo, com o que Alice submersa ao País das Maravilhas respondeu à lagarta, que sentada sobre o cogumelo e fumando seu narguilé perguntou (CARROLL, 2002, p. 41): “Quem é você?” Alice respondeu: “Sei quem eu era quando acordei hoje de manhã, mas acho que me transformei várias vezes desde então”. De tal forma, acredito que antes de mais nada, preciso admitir que esta é uma proposição. Uma proposta de criar um território, um mundo, de “lançar mundos no mundo”8, como lindamente canta Caetano Veloso.

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Trecho da canção Livros de Caetano Veloso, lançada no álbum Livro de 1997.

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Sou um caramujo pregado no muro. V a g a r o s a m e n t e tenho costurado viagens, antecipações de lugares, retornos, que desdobrados fazem nascer um abrigo móvel. Por vezes, tenho um comportamento de eternidade, como por exemplo, quando me proponho a subir um barranco de um rio, percorro-o o dia inteiro até chegar amanhã. Quando me desafio a existir, rastejo em círculos para esquivar do sal, caracoleio toda minha vida para encontrar a(s) origem(ns), a(s) definição(ões) e tudo aquilo que envolve a minha forma de pensamento sinuoso.

eu sou um molusco Viajo para conhecer minha geografia. Marcel Reja

Foi confuso dizer exatamente quando aconteceu. A mudança foi gradativa, como a de alguém que envelhece tênue entre um dia e outro, até que de repente, a mutação se tornou uma postura de fato inevitável. Primeiro despontou o desânimo das temperaturas, depois os dias de chuva ininterrupta, a umidade, as rajadas desconsertadas do vento atlântico que levaram-me ao outro lado. Atravessar o oceano, fez mudar as horas nos relógios, os dias em mim. Foi assim, junto aos deslocamentos espaciais e íntimos que me converti em molusco, só que isso aconteceu tão lentamente, que apenas agora começo a convencer-me dessa condição. E é diante de tal descoberta que acredito encontrar o motivo pelo qual iniciei tal pesquisa, pois avolumei interesse em encontrar um porquê em sonhar, em delirar e fixar meus olhos além da infância para imaginar um mundo possível. Os percursos são importantes aqui, e para além dos que pratiquei com minha família e a mudança que fiz de uma cidade interiorana para Pelotas em 2011, pude perceber que nomeadamente a oportunidade de participar de um intercâmbio sanduíche do ano de 2012 a 2014 através da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e a partir do Programa de Licenciaturas Internacionais (PLI) entre a Universidade

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Federal de Pelotas e a Universidade de Coimbra, cultivou o entendimento do período de dois anos consecutivos em Portugal como um lugar intervalar, de cruzamento, onde se revelava a descontinuidade e a diferença no decorrer de uma (re)escrita pessoal. É assim que acredito que esse intervalo pode ser aprofundado pela etimologia da própria palavra, que resulta da conjunção do latim inter: entre e vallum: parede, muro. E, então, uma moradia nesse lugar seria literalmente “entre paredes”, porém, confio profundamente que isso sugere muito além de um ambiente entre muros ou um labirinto, podendo ser interpretado como um lugar de perambulação no mundo, e em mim mesma. Esse período foi construído como um espaço entre contornos, o lugar onde os limites se tocaram, escorrendo pelos interstícios e dissolvendo tudo aquilo que antes era constante. Neste tempo de passagem desfrutei múltiplas experiências, cruzando margens geográficas, culturais e poéticas como também, ultrapassei o domínio da disciplina e linguagem íntegra de artes visuais, convergindo com o que se conhece como “outras áreas” do universo da arte. Isso pôde decorrer junto ao curso de Estudos Artísticos da Universidade de Coimbra que abrange linguagens específicas, ao que se conhece como uma “formação interdisciplinar”, se é que podemos dividir campos de sensibilidade artística em disciplinas. O fato é que isto resultou em uma interpretação do campo artístico como uma esfera heterogênea, que aglutina em uma combinação de estruturas existentes, misturando os espaços por onde vaguei. Essa condição de aprendizado em curso acabou construindo o entendimento acerca do conceito de fronteira geográfica e de linguagem artística, compreendendo não como uma linha a ser ultrapassada, mas como um espaço no qual o sentido pode multiplicar-se e fragmentar-se, visto que a arte é uma operação da expressão e assim, necessita ter sua demarcação alargada para dar conta do mundo interligado de sentidos. Foi só no retorno que consegui absorver tudo (ou quase) do que vivi. Mas, pensar no que se vivencia, é preciso transpor, contestar a tradição local, seguir por caminhos que desconstroem deslocamentos passados. Percebo então que a experiência de habitar pressupõe afastamento, formando um panorama com a bagagem recolhida9 e sobretudo na certeza 9

A bagagem recolhida durante o período de 2012 a 2014 converteu-se em um acúmulo de culturas das desiguais sutilezas dos 14 países percorridos em forma palpável, como mapas, postais, folhas de árvores em diferentes estações, pedras, areias, terras, águas. Assim, a necessidade de guardar porções materiais desses itinerários, amadureceram a compreensão de que o deslocamento é o ponto de relação das minhas inquietações, e as memórias espaciais são 30


de que a distância verdadeiramente abre buracos. Aberturas para uma percepção sobre o novo e fissuras profundas acerca das experiências já vividas, pois essas fendas ampliaram e prosseguem dilatando a ativação experiencial da minha trajetória. Chega a ser absurdo, ativar experiências presentes somente na ausência delas. Mas é assim que o foi. Precisei viajar tão longe para perceber que essa ação me transformou em molusco pela aptidão da coleta, e modificou a percepção dos lugares, pela lentidão rastejante. O viajar aqui não aparece apenas como metáfora para agregar sentido à experiência, mas como conduta que alarga sensibilidade, conhecimento, identidade e condição de mundo. E estas só podem acontecer enquanto travessia ao desconhecido que produz um novo olhar, uma nova maneira de pensar o ambiente, de compreender a cidade como única na sua paisagem e na construção do seu espaço pelos habitantes. É por isso que acredito que experiência é a cartografia de um novo lugar, de uma vida como inventário, tal como assegura o escritor italiano Ítalo Calvino (2003, p. 125-126) no livro Cidades Invisíveis, podendo ser organizada, recolhida e reordenada infinitamente. Tais experiências são condição corpulenta e responsável por gerar preceitos em trânsito na pesquisa, e os fragmentos de memória tornam-se impulso criativo para inventar um novo artefato, uma nova ferramenta que explore os modos de estar no mundo. Só que me parece que esse dispositivo que me proponho construir é, na verdade, existente há tanto tempo, pois é como se durante a minha vida inteira crescesse uma corcova, que incorporava sentidos e apenas aguardava uma razão para se tornar tangível e desgrudar de mim. Assim, confio que essa investigação atua em dois andamentos concomitantes, o biográfico, por atear uma (re)invenção pessoal e o artístico, por deslocar inquietudes afora. Apoiada na concepção do pensador alemão Walter Benjamin (2012, p. 266), no qual o brinquedo tem a capacidade de inventar o adulto, que procuro entender esses impulsos como modo interpretativo de uma sensibilidade que satisfaz minhas próprias necessidades pueris. Benjamin aproxima a criança ao artesão e às formas primitivas de produção, possibilitando imaginar não somente como o objeto-brinquedo foi feito, mas como pode ser produzido. O interesse está mais no processo de o que há de substancial na exploração do mundo e de mim mesma.

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produção do que no produto. É exatamente isso que a criança deseja saber, é isso que a faz estabelecer uma relação viva com as coisas. Essa relação viva da infância mantém a capacidade de perceber brinquedos e formas de brincadeiras nos mais diferentes objetos. Benjamin (2002, p. 85) assegura então que “não há dúvida que brincar significa sempre liberação. Rodeadas por um mundo de gigantes, as crianças criam para si, brincando, o pequeno mundo próprio”. É possível então supor que como um colecionador, a criança encara o ato duplo da destruição da falsa ordem das coisas e a construção de um novo espaço, tal como afirma o teórico e crítico literário brasileiro Seligmann-Silva (2010, p. 56). Primeiro se interessa e se apropria de um objeto descartado pelo discurso dominante, e segundo se relaciona de forma singular com os objetos escolhidos, dandolhes uma nova configuração e sentido. O adulto alivia seu coração do medo e goza duplamente sua felicidade quando narra sua experiência. A criança a recria, começa sempre tudo de novo, desde o início. Talvez seja esta a raiz mais profunda do duplo sentido da palavra alemã Spielen (brincar e representar): repetir o mesmo seria seu elemento comum. A essência da representação, como da brincadeira, não é “fazer como se”, mas “fazer sempre de novo”, é a transformação em hábito de uma experiência devastadora. (BENJAMIN, 1928, p. 271) Esse movimento de (re)invenção sucessiva faz-me acreditar que a infância é a camada fértil da vida e o processo criador se inicia nela. A capacidade exploratória aqui emana, entra nos interstícios, cria tentáculos, inaugura um novo espaço. O que faço é, de certa maneira, desemaranhar meu pequeno próprio mundo, é confiar que existo (e aprendo a existir) como metamorfose continuada. Afinal, como declara Calvino: Quem somos nós, quem é cada um de nós senão uma combinatória de experiências, de informações, de leituras, de imaginações? Cada vida é uma enciclopédia, uma biblioteca, um inventário de objetos, uma amostragem de estilos, onde tudo pode ser continuamente remexido e reordenado de todas as maneiras possíveis (CALVINO, 1990, p. 138). Se agora me descubro caracol, tenho como funda certeza estar desenvolvendo essa proposta de investigação porque todo molusco tem que verdadeiramente “fazer sua concha para sustentar sua existência” (VÁLERY, 2011, p. 114). E mesmo que essa (re)construção pareça carregar perspectivas limitadas do eu, o que proponho com ela é justamente o

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contrário, ela aspira ir além dos outros eus semelhantes, das transfigurações vividas, ela busca sentir o que ainda não inventou sentido, ouvir o que ainda não descobriu ruído, dizer o que ainda não encontrou palavra. Talvez você já tenha percebido que o presente estudo traz uma possível ligação ficcional que extrapola para além da construção da concha, das metamorfoses da animália, e a verdade é que esse fazer permeia sutilmente entre memória e vida, ele é aliado à noção de rememoração, traduzido a partir daquilo que Benjamin (1940, apud: GAGNEBIN, 2006, p. 40) chama de eingedenken e implica repetir aquilo que se lembra, “apoiar-se de uma lembrança, tal como ela cintila num instante de perigo”, porque, afinal, “nós articulamos o passado, não o descrevemos, como se pode transcrever um objeto físico”. É, então, que a noção de rememorar aparece de forma imprescindível quando se propõe memória como construção, pois o dever do presente, é justamente rememorar o passado, ressignificá-lo. É deste modo que trago minhas rememorações em mapas-memórias dobrados ao longo da escrita. São mapas porque são relações gráficas que fingem dominar um lugar lembrado, demarcando um território, a partir de uma cartografia designadora de deslocamentos que iniciam um conhecimento próprio. Por outro lado, são memórias porque elas são tudo aquilo que se pode sonhar a respeito desse lugar. Logo, para criá-los, constituí uma (re)escrita e um (re)desenho de mundo, e assim, adotei a acepção do artista uruguaio Joaquin Torres-Garcia (1874-1949), em que o ato de localizar-se vai muito além da operação de fixação de coordenadas e endereços, mas propõe traçar uma certa lógica que distingue cada uma das mutações experimentadas. Essa concepção de Garcia surge a partir da sua construção de mapa em forma de manifesto América invertida (1943). Localizar-se é entender as relações que se travam na prática espacial em vez de aceitar acriticamente as convenções (...) Por isso agora colocamos o mapa ao contrário, e então temos a exata ideia da nossa posição, e não da mesma maneira que o resto do mundo quer. A ponta da América, a partir de agora, prolongando-se marca insistentemente o Sul, o nosso norte. Igualmente nossa bússola: se inclina irremissivelmente para o Sul, em direção ao nosso polo. Os navios, partindo daqui, baixam, não sobem, como antes, para viajar ao norte. Porque o norte agora está abaixo. E o leste, se estamos de frente para o nosso Sul, está à nossa esquerda. Esta retificação era necessária; por isso agora sabemos onde estamos. (TORRES-GARCIA 1984, p. 193)

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Figura 1: América invertida (1943) Joaquin Torres-Garcia.

Foi procurando saber onde estava que constituí os mapas-memórias. Eles são uma espécie de minifesto ativados pela inspiração e expiração do linguajar Manoelês (2013)10, que são refletidos em experiências moventes e permanentes em mim. Tornaram-se necessários para reconhecer o sentido que acompanha cada lembrança, cada rememoração, ressignificação, em que a forma mais simples de um mapa está ligada à necessidade de fixar o percurso de uma viagem. Embora estáticos, propõem uma ideia de narrativa, concebida em função de um itinerário, de uma forma de direcionar a percepção da investigação. Portanto, caso sejam confusos, não se acanhe em observá-los de ponta cabeça, afastá-los e colá-los em uma parede, amassá-los, rabiscá-los ou até mesmo picotá-los sobre uma mesa para utilizar lente de aumento. Eles existem justamente para isso, para serem abertos, desmembrados, acoplados, suscetíveis a receber alterações, integrando-se a montagens de qualquer natureza. Mas, essas são apenas sugestões possíveis, pois tenho certeza de que você encontrará a sua, porque ainda bem que não existem manuais para encontrar um método de entender um mapa poético. Assim apresento o primeiro mapa-memória Eu sou um molusco, que envolve estimulantes fragmentos de vida e objetos cheios potência formadora da carapaça (re)inventada.

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O linguajar Manoelês refere-se ao poeta brasileiro Manoel de Barros (1916-2014).

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espaรงo reservado para rabiscos de pensamento




ou recortes


o mundo como labirinto curvo Benjamin (1987, p. 70) certa vez discorreu: “não saber orientar-se numa cidade não quer dizer muito, mas extraviar-se nela, como se extravia numa floresta, é algo que se deve aprender completamente”. O perder-se, torna-se assim, uma relação que se tem com o espaço, mas sobretudo, o que o espaço pode ter sobre nós. Não existe somente o domínio controlado pelo sujeito, mas a possibilidade de que o espaço nos comande, fazendo-nos modificar ambientes, confrontar alteridades, recriar novos pontos de referência para assim, sofrermos transformações produzidas pelos lugares. É então, que confio ser indispensável percorrer o mundo como um labirinto11. É preciso perder-se para encontrar-se. Se existo enquanto caracol, é justamente para produzir o espaço da concha (re)inventada que oferece a oportunidade de perder-se. Na verdade, todo molusco só vive por que é portador dessa envergadura em forma de espiral logarítmica, desse raio que nasce do interior e toma a amplitude, sobressaindo o território de seu organismo para envolver toda superfície. É essa expansão que forma uma espécie de labirinto, por meio do acúmulo dos anéis que viajam como um corredor ao redor do globo. No entanto, a importância da curvatura aqui é entendida muito além do olhar acentuado ao molusco que emana a concha, ela compreende especialmente a percepção de percurso de quem se propõe a adentrar na carapaça. E, para adentrá-la, é preciso inclinar-se, por que sua abertura é estreita, mas seu interior acolhe a ideia de um mundo infinitamente amplo, cheio de palavras, gestos, espaços, silêncios. Caminhar nela pressupõe que a cada passo o mundo mude em algum aspecto, e algo também mude em nós. Porém, para que isso aconteça não é preciso saber o caminho, mas apenas encontrar seu próprio senso de geografia, que ultrapasse o cálculo métrico de um mapa planificado, heterogêneo e mensurável. Eis por que a abordagem artística é tão extraordinária, ela é capaz de compreender os modos de perceber o mundo, as avenidas que perpassam, os trajetos que atravessam, na maneira que enfatiza a grandeza da 11

A palavra labirinto vem do latim labrum, labirinto, confusão. Em termos genéticos, qualquer construção intrincada, com corredores e passagens em meandros. Na mitologia grega, era o nome do conjunto de muros traçados deliberadamente confuso, construído por Dédalos, em Creta, para aprisionar o Minotauro. Confinado nesses corredores e sem poder achar saída, o Minotauro era alimentado com a carne humana. O herói Teseu, com ajuda da princesa Ariadne (que lhe deu um fio para guia-lo), penetrou no labirinto, matou a fera e encontrou a saída. 35


experiência sensível. Por isso, o objeto de estudo Compartimento de estar e partir é uma concha rememorada, construída e (re)inventada continuamente, e é por meio dela, que trago os desassossegos que abraçam a pesquisa: eles aspiram explorar os movimentos de sua criação e construção na condição de prática de espaço, regida pela lógica da mobilidade. Para além da possibilidade de (re)invenção do lugar, a concha colocada no espaço, aspira sobretudo questionar o cotidiano acerca do olhar flutuante contemporâneo, sobre como realmente experimentamos o tempo presente. Pois sinceramente acredito que estamos fadados à uma condição de imersão, concentrada em informações difusas e descartáveis do mundo, e assim, esquecemos de nos comunicar com ele próprio. O método cartográfico da professora brasileira Virgínia Kastrup (2009), encaixa-se aqui não para ser aplicado, mas experimentado e assumido como atitude. Ele visa acompanhar o processo e não representar um objeto. É assim que esse método cria seus próprios movimentos, desvios, pede passagem, incorpora sentidos, assumindo então uma experimentação do pensamento ancorado no real. O sentido da cartografia poética é de acompanhamento de percursos, processos de produção, conexões de rede ou rizomas, isto é, perceber as coisas por meio da experiência. Portanto, cartografar trata-se de uma concepção que inventa um universo e seus lugares, interpretando a sua maneira o espaço para traçar singulares percursos. É dessa forma que esta metodologia requer uma cognição muito mais capaz de inventar o mundo do que reconhecê-lo. É um fazer-saber, estar e não olhar de fora, é criar-se. Nessa concepção cartográfica, os encontros tornam-se indispensáveis e vão além do entendimento habitual que se tem acerca deles. O encontro que se fala aqui é da ordem do inusitado e nunca se faz sem violência (violento porque nos desacomoda e nos faz sair do mesmo lugar). Deleuze (1998, p. 8) fala de encontros como uma espécie de solidão extremamente povoada, é solitário porque sempre um encontro existe entre nós e alguma coisa. E esses certos modos de encontro, se dão com coisas, com obras, e não com pessoas. Logo, cartografar é propriamente viver junto a essas coisas, tal como o filósofo aponta: “Ter um saco onde coloco tudo o que encontro, com condição que me coloquem também em um saco” É um acúmulo do que se acha, se encontra, se rouba, ao invés de regular, reconhecer ou julgar. Esse acúmulo é exatamente a condição de minha existência, caso você não tenha notado. Esses encontros, essa forma de carregar aquilo que está

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pelo caminho através da absorção do corpo gelatinoso e da coleta guardada na carapaça. Tudo isso afirma a teoria de que todo caracol é um cartógrafo por natureza. Não se sabe de antemão o que vai atravessar, quais serão os encontros que irá ter e no que esses mesmos poderão acarretar, mas é através deles que irá embeber, incorporar e sobreviver. Essa prática específica de pensar o trabalho como percurso, em processo cartográfico, em que interessam o espaço interno e externo da concha, seria um tipo de exploração, um atravessar territórios já existentes para adentrar em outros ainda desconhecidos. Essa ação de disponibilidade urbana talvez possa ser equiparado aos termos dos artistas brasileiros Lygia Clark (19201988): Vazios Plenos, cheios de descobertas, possibilidades e ambientes vagabundos que se fazem e desfazem com os Mitos Vadios de Hélio Oiticica (1937-1980). Uma forma só tem sentido por sua estreita ligação com seu espaço interior (vazio pleno), a percepção do que chamo vazio pleno me veio no momento em que abrindo uma cesta compreendi bruscamente a relação de totalidade que unia o interior à forma externa. (CLARK, 1960, p. 2) Clark acredita que existe uma espécie de irradiação de energia que conecta e supõe o encontro entre o homem e o objeto no espaço circundante “vivo e real”, é ela quem preenche o aparente vazio. Ela faz com que o sujeito estabeleça uma reelaboração dos processos vitais. Já Oiticica reinventa esse meio sob a lógica da caminhada, do ambulatoriar, de arranjar coisas para fazer durante a própria ação. Seus mitos vadios são mitos por fazer, por mitificar, desmentir. Acontecem durante o estado de ociosidade urbana, durante a viagem que realizamos ao praticar o cotidiano. MITOS VADIOS SÃO MITOS VAZIOS: evocam de outro modo o VAZIO PLENO tão clamado em outras épocas e circunstâncias por LYGIA CLARK: eles se fazem e desfazem como o andar nas ruas do delirium ambulatorium. (OITICICA, 1978, p. 1) Acho que de certo modo, incorporo essas formas de poetizar o urbano, de entender seus espaços, suas práticas. Desse jeito, a concha (re)inventada ultrapassa a razão visceral da existência de um caracol, ela não passa de um subterfúgio que excede o que toco e o que me ataca, as ações, pulsões e divagações. O que faço aqui é o que faz a mim mesma. Por isso, convido você a transbundar comigo pelas páginas dessa escrita, e também pelo seu cotidiano.

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navegando o disco furado Para tomar partida, gostaria de aumentar a dimensão daquilo que é por vezes insignificante, evidenciando assim o indivíduo mínimo, para só então expandir à visão macro a qual está mergulhado. É preciso falar primeiro do habitante e depois de sua morada. É assim que me aprochego aqui como um demorado ser invertebrado e viscoso, feito do que a poeta luso-carioca Matilde Campilho (1982-) chama de matéria escorregadia, isto é, de manteiga, azeite, geleia e espanto. Nessa natureza, tenho a habilidade de absorver, sugar o ambiente circundante para realizar a condição da minha existência: a incessante recolha. Porém, prefiro acreditar que existe algo além do estado de sobrevivência que me faz agir assim, algo que possa ser entendido como uma postura de construção de vida, uma escolha que se dá através da maneira que umedeço a atmosfera para nela ser passagem, de como apresento a dimensão líquida, suada, lacrimejada e babada, porque cá, toda essa chuva nasce de mim. Trago, em primeiro plano, a particularidade do ser caracol, a faceta do indivíduo enquanto corpo de viagem, velocidade, experiência de busca, encontro e coleta. Acho que só posso falar sobre esse aspecto pegajoso, porque desde que recordo, tornei-me assim a partir do momento em que me concentrei no movimento das placas tectônicas, de como elas cada vez mais aproximam o mundo do mundo. Esse aproximar talvez possa ser elucidado por meio do seguinte delírio: é como se os hemisférios estivessem ancorados em pontos perdidos no oceano, e a cada movimento tectônico de supetão ativado, sua extensão se diminui pelo choque das diferenças. É homogeneização acontecendo. Parece que esperam por um viajante que possa embeber a aquosidade, encontrar as amarras, soltar as superfícies para que por fim, movam-se livremente de acordo com sua natureza. É assim que lanço-me ao mundo, acreditando que ele é facilmente atravessado, como se fosse uma espécie de mesa circular azul e plana, um disco furado, tal como a concepção babilônica na constituição de um dos mais antigos mapas-múndi. Atiro-me em uma teia, a qual Hélio Oiticica (1973) entende como a noção de mundo-abrigo 12 , percebendo que a 12

Texto escrito em 1973 em uma experiência fora do Brasil. Uma das referências marcantes para a criação do Mundo-Abrigo foi a música dos Rollings Stones Gimme Shelter. MundoAbrigo leva esta pergunta a sério “a storm is threat'ning my very life today?”, acreditando não estar ameaçando uma vida, mas a vida em geral, a vida coletiva. É diante dessas situações que se mantém, por hora, a distância, pede-se abrigo. 38


ocupação deste só acontece com quem vive em esfera cósmica, estabelecendo-se como um ser multitransformável. Da casca-proteção primeira do corpo (...) coletiva-total em q o mundo é guarita: abrigo-proteção: coletivo: q quer dizer: não-soma de shields individuais mas abrigo-guarita global. Do comportamento em nível experimental: mais do que um refúgio, é a procura de chance de experimentar existencialmente. (OITICICA, 1973, p. 3) O mundo-abrigo deve ser inventado e para isso, deve-se assumir o estado experimental da experiência, como Oiticica fundamenta. É por isso que venho apresentar tal condição dentro do Pequeno Experimento de Mundo #1, pois o experimento é aqui, a interação construtiva, crítica e reflexiva que tenho em relação à pesquisa, colocando-me na posição de criadora e observadora, que ao mesmo tempo, está à disposição constante e atenta de enxergar, registrar cuidadosamente a trajetória, estudar os processos de elaboração, e, nas frequentes mudanças e alterações de rota, permanecer em (re)invenção. Oiticica articula que a palavra “experimental” é apropriada, não para ser entendida como descritiva de um ato a ser julgado posteriormente em termos de sucesso e fracasso, mas como um ato cujo resultado é desconhecido. E é exatamente esse desconhecido que faz com que a investigação caminhe por vias incomuns, suspire em silêncios, brade através de memórias, reinvente mundos e, por fim, explore a arte por meio de “um exercício experimental da liberdade”, como declara o brasileiro crítico de arte Mário Pedrosa13 (2009, p. 10). Se comecei a explorar o mundo como condição de escolha, agora se tornou vital. Preciso explorá-lo como um modelo não sublimado, onde seja possível viver junto a um experimentar aberto, solto de amarras, disposto a criar novas formas de relação com o espaço e propagar o vínculo entre sujeito e objeto, pois só assim tudo então se expandirá aos limites do orbe. Sem dúvida, esse é o instinto de exploração, parte inseparável de quem somos. Expandir nossas fronteiras, o desejo insaciável de explorar o desconhecido, define a nossa curiosidade, define a nossa espécie. (GLEISER, 2003, p. 16)

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Foi um dos críticos mais atuantes da produção artística brasileira moderna e um dos grandes responsáveis por sua atualização. Preocupou-se com os aspectos educativos da arte e da crítica, assim, fica evidente sua crença na capacidade da arte transformar o mundo cabendo à atividade crítica ampliar a compreensão desta promovendo novas formas de pensar, sentir, julgar e agir. 39


Junto a esse instinto de que fala o professor brasileiro de física e astronomia Marcelo Gleiser, que considero importante discorrer sobre esse querer, sobre essa necessidade que nasce bem antes da ação, bem antes do gesto, de toda iniciativa e toda a vontade libertadora da viagem. Meu corpo trabalha sob a ação do sol que evidencia elementos, fazendo com que eu me mexa, dilate, estenda, distenda, modifique meus volumes e perca águas tépidas. Afinal, a viagem começa antes dela própria, ela nasce essencialmente em nós, se baseia na capacidade que temos que imaginar e acima de tudo, sonhar. É assim que aparece a noção de viagem, tão fundamental e guia da pesquisa, por isso, refiro-me primeiramente à sua origem enquanto palavra: viagem vem do latim viaticum e quer dizer literalmente “pôr-se a caminho, estar na estrada”, logo, aquele que viaja deve construir seu próprio caminho e proteger a via que percorre. Sua etimologia indica que a preocupação do viajante não está ligado à expectativa da chegada, mas ao simples fato de estar em movimento, em fluxo de transformação. É conveniente e fabuloso então, trazer o relato de viagem do escritor alemão de Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), em uma carta que escreveu aos amigos quando foi a Roma em 1786: “Nada há, de fato, que se compare à nossa vida que a contemplação de uma terra estranha descortina ao homem afeito à reflexão. Embora eu siga sendo sempre a mesma pessoa, creio ter mudado até os ossos” (GOETHE apud BEZERRA, 2003, p. 14). Atualmente, essa descrição pode parecer um tanto excessiva, afinal, jamais houve tanto deslocamento quanto hoje em dia, e não parece que os turistas se sintam tão afetados pelas viagens que praticam. Talvez seja porque, simplesmente, afastam-se de suas rotinas por um curto tempo planejado, conhecem novos lugares e desfrutam ao extremo, e então, retornam felizes e revigorados para casa, reduzindo viagem à um produto, que é empilhado como uma espécie de catálogo. Poucos propõem-se a mudar sua maneira de enxergar a vida ou o mundo, e desconfio que raramente têm a sensação de ter mudado os ossos. Lamentavelmente, as viagens hoje em dia não são vistas dessa forma, elas foram apropriadas pela indústria do turismo, e é o turismo em massa que tenta fazer da viagem um passeio que visa ao ponto de chegada, com mínima duração possível de descolamento. As condições são controladas, entre horários, transporte, hospedagem, refeições, e cada detalhe é preestabelecido com antecedência para que surpresas possam ser evitadas.

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Ao invés da novidade, alteridade, estranhamento, incerteza, o que se busca nas andanças são emoções previsíveis em lugares calculados, que englobam uma falsa liberdade de escolher souvenirs como lembrança. Portanto, questiono: Será que ainda é possível viajar? Será que estamos condenados ao turismo? Perdemos de fato o impacto desestabilizador de conhecer um novo lugar, uma nova cultura? Será que o sentido essencial da viagem não pode ser uma escolha, uma atitude tomara perante os lugares? É assim que o antropólogo francês Marc Augé (2010) apresenta a condição de globalização por meio do escândalo do turismo, em que classes superiores e médias viajam cada vez mais além de suas fronteiras, devorando paisagens virtualmente apresentadas e movendo-se espacialmente para consumir cultura de um determinado local, tal como consumiria uma coca-cola no deserto. Augé alarma essa situação preocupante, e assim, enfatiza que é preciso ser um etnólogo por excelência, ter a experiência radicalmente diferente de um turista, provocando desenraizamento que não se limita à paisagem, mas submete sua própria identidade à prova dos outros. Ser um etnólogo, neste caso, segue a mesma lógica de ser viajante, de ser mundivagante, pois o desenraizar parte de uma descentralização de mundo e de si, para assumir o difícil lugar do estrangeiro. É na viagem que se descobre apenas aquilo que se é portador. É essencialmente um viajar fora de si mesmo, olhar para dentro, ao invés de para fora, criar inventários de experiências com registros e resquícios, alargar a reflexão e se inscrever na continuidade do seu próprio percurso. O cerne da experiência de viagem, está em viajar sempre, mesmo quando não exista possibilidade de deslocamento espacial. É necessário evidenciar que toda viagem acontece em primeiro plano dentro de nós. Um exemplo disso é o nobre francês do século XIX Xavier de Maistre quando escreveu um livro intitulado Viagens ao redor do meu quarto, pois ficou 40 dias enclausurado por conta de uma desavença, e sendo nobre, não foi preso, mas recluso. O que poderia ser tedioso, converteu-se em aventura. O quarto transformou-se em outro país, em outro planeta, vendo coisas que antes não percebia. Mas, como isso seria possível? De que maneira se pode viajar imóvel no século XIX? Como vencer o tédio sem nenhum apetrecho? Nem mesmo eletrônico? Provavelmente, se nos colocássemos nessa situação hoje em dia, ficaríamos aflitos, porque somos incrivelmente dependentes do estímulo de um

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utensílio no momento de ócio. Porém, com Maistre (1946, p. 18) foi diferente, pois seu “espírito estava aberto a toda espécie de ideias, de experiências e de emoções”. Assim, torna-se valoroso despertar esse desprendimento, essa abertura que determina a forma que olhamos nosso entorno, para entender viagem como não aquela que encontra novas paisagens, mas aquela que olha de novo, com um novo olhar. Precisa-se urgentemente estar sensível aos acessos sutis dos lugares, percorrer o espaço externo e divagar no nosso interior. É preciso ser mundivagante para ir contra a dimensão reduzida de experiência, seja pelo turismo, globalização ou dispersão. Para explicar esse estado de viagem que denomino como mundivagante, faço relação com a sublime circunstância flutuante de quem se propõe a perseguir uma borboleta, pois ali é tão fundamental ser cauteloso e não percorrer seu caminho apenas com os olhos, mas seguir seu movimento, suas cores, seus sons, seus suspiros. Ser mundivagante é ir além dessa disposição transcendente, é também proliferar o que é percebido. E essa proliferação talvez possa ser equiparada à existência do mercúrio no mundo. Como por exemplo, você consegue se lembrar dos termômetros que mediam a temperatura corporal, quando crianças? Você ainda recorda da queda deles? Pois é, acho que a experiência de viagem quando incorporada e lançada para fora de si, torna-se semelhante à forma física do mercúrio. Porque quando o recipiente do termômetro quebra e o elemento químico se espalha, expande seu volume a menor variação de temperatura, se divide entre as fissuras do soalho, entre as moradas e países. É mercúrio se proliferando. É experiência de viagem se propagando. Esse caráter expansivo enquadra os viajantes de maior força. Aqueles que colocam as experiências incorporadas de novo para fora, por meio de ações e obras. É aqui que encontro a justificativa da concha (re)inventada, pois sua concepção surge através de viagens internas e externas corporificadas em um fazer, em um agir, em um entender que vê a viagem como capacidade de atravessar o que nos atravessa pelo caminho. Logo, se confirmo existir como mundivagante, acredito, então, que é preciso afirmar a discrepante diferença desse modo de vida, com a de um turista. Um não cessa de buscar e, às vezes encontra, já o outro, nada busca e portanto, nada obtém. É assim que a noção de viagem alcança a percepção

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de ser uma experimentação14 de nós mesmos. Desse modo, trago as lindas palavras do filósofo francês Michel Onfray (2009) como se fossem minhas: Nós mesmos, eis a grande questão da viagem. Nós mesmos e nada mais. Ou pouco mais. Certamente há muitos pretextos, ocasiões e justificativas, mas em realidade só pegamos a estrada movidos pelo desejo de partir em nossa própria busca com o propósito, muito hipotético, de nos reencontrarmos ou, quem sabe, de nos encontrarmos. A volta ao planeta nem sempre é suficiente para obter esse encontro. Tampouco, uma existência inteira, as vezes. Quantos desvios, e por quantos lugares, antes de nos sabermos em presença do que levanta um pouco o véu do ser! (ONFRAY, 2009, p. 75)

viajar é estar Para imergir no pensamento de viagem enquanto dicotomia, utilizo o raciocínio e os consequentes embates que são resgatados a partir dos significados primeiros de sair em busca ao desconhecido, recordando junto a Onfray (2009) e Francesco Careri (2002) a história de Caim (agricultor, sedentário) e Abel (pastor, nômade)15. Esses dois estabelecem dois pontos pelos quais oscilamos e não rigidamente optamos: nomadismo versus sedentarismo, amor ao movimento versus paixão pelo imobilismo, pelo enraizamento. Ao mesmo tempo em que são contrários, asseguram-se. O cosmopolismo dos viajantes nômades contra o nacionalismo dos camponeses sedentários. Enquanto os pastores levam os rebanhos em vastas extensões, os camponeses se instalam, constroem, edificam aldeias, cidades, inventam a sociedade, a política, o estado e a lei. Portanto, são duas maneiras de habitar o mundo e conceber o espaço, e ainda que o traçado nômade siga pistas, ele não tem a mesma função do percurso sedentário, que consiste em distribuir aos homens um espaço fechado, concedendo a cada um a sua parte. O traçado nômade faz exatamente ao contrário, como 14

Essa experimentação talvez possa ser relacionada ao exercício costumeiro dos filósofos antigos: O que posso saber sobre mim? O que posso aprender e descobrir a meu respeito se mudo de lugares habituais e modifico minhas referências? 15 De acordo com Careri (2002) as raízes etimológicas dos nomes dos dois irmãos, Caim é identificável como Homo faber, o homem que trabalha e que constrói um novo universo material e artificial, ao passo que Abel realiza um trabalho menos fatigoso e poderia ser considerado um Homo ludens, homem que brinca e que constrói um efêmero sistema de relações entre a natureza e a vida. Os dois nomes são opostos complementares, Abel deriva do hebraico hebel e significa “hálito” ou “vapor”, tudo que é transeunte, já a raiz de Caim pertence ao verbo kanah que quer dizer “adquirir”, “possuir”, “obter”. 43


afirma Deleuze e Guattari (1980, p. 34) ele “distribui os homens (ou os animais) num espaço aberto, indefinido, não comunicante”. E esse espaço aberto é justamente o que abraça o devaneio do mundivagante, porque toda viagem pede uma predisposição lúdica e supõe recusar o emprego do tempo laborioso da civilização, em proveito do lazer inventivo. Os andarilhos, os vagabundos, os errantes, os que pastam, correm, viajam, vagueiam, flanam, palmilham, já e sempre em oposição aos enraizados, aos imóveis, aos petrificados, aos erigidos em estátua. A água dos riachos, corrente e inapreensível, viva, contra a mineiridade das pedras mortas. O rio e a árvore. (ONFRAY, 2009, p. 11) Porém, muitas vezes é o sistema quem obriga que sejamos árvores, e não rios, para que dependamos do sedentarismo, pois ele acarreta uma ordem de espaço e tempo, onde é preciso estar sempre num determinado lugar em tempo preciso. Porque afinal, se ganha a vida assim, se compartilha, se integra a esse princípio assim. Pelo menos é o que dizem na sociedade que inventamos. Ser rio, é ir contra essa dependência, é ser viajante e não turista, é experimentar a vida sem amarras, recusar muitas vezes o tempo social, em favor de um tempo singular, feito de durações subjetivas e de instantes incomuns. Contudo, é precisamente aqui que se encontra um difícil paradoxo. Ao mesmo tempo em que o ser árvore permanece enraizado, segue a ordem da “sobrevivência”, é sedentário, ele vive no fluxo da globalização e tem sua experiência às vezes diluída, por conta da abundante interação comunicacional tecnológica e assim pode estar presente, mas ausente. Por outro lado, o ser rio, sem lugar fixo, nômade, viajante, mundivagante, não pertencente à ordem “civilizacional”, movimenta-se para estar de fato nos lugares, faz de sua estadia uma experiência presente. Ser árvore é oportuno, cria-se raiz pivotante, cuja função é dar resistência ao caule principal, donde nascem ramificações. Tem-se como referência o nível do solo, estendendo-se até o ápice de sua existência, a copa. Entretanto, acredito que é preciso ser árvore, mas não como modo e espírito de vida imutável. Seu suporte, laços são em completude necessários para sobreviver, mas não o bastam para viver. Uma vida carece conjuntamente do ser rio, da troca, no momento em que nos permitimos a misturar com os outros, aprender e sentir. Porque em cada encontro com uma nova corrente, perdemos um pouco de nós e ganhamos um pouco de vida. Para fazer curso junto ao relevo e a partir da chuva, desaguamos em

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outros rios, lagoas ou mar. Afloramos em superfície como lençol freático, que origina outra nascente, outro encontro, outro percurso. Agora, você consegue perceber que o ser árvore é tão dependente do rio, como o rio é da árvore? A árvore só cresce por conta das águas correntes. As águas, por sua vez, só espalham-se por conta do corpo que a absorve. Meu propósito não é entender o ser árvore como imutável, até porque imobilidade não quer dizer não-fluidez. Se trago esses contrários pertencentes, é justamente por acreditar na possibilidade de movimentação, de mundivagancia, mesmo para aqueles que em primeiro momento não parecem carecer. Penso que não escolhemos viver de acordo com um modo de vida, optando por ser árvore ou rio. Acho que simultaneamente somos os dois seres. Somos fluxo, somos raiz. Somos resistência, somos voo. Eternidade e contingência. Porque a partir do instante em que deixamos de ser um pouco de um, acrescentamos um tanto do outro. Nessas ocasiões, eventualmente, nosso abandono será parte de nossa permanência. Porém a civilização que mantemos não estima as qualidades do ser rio, porque a ausência de casa, de terra, de chão é visto em nosso século ainda como um sofrimento causado pelo reflexo da punição divina. Os ciganos, boêmios, andarilhos, sem-tetos, viajantes, errantes, vagabundos, mochileiros, ambulantes, transbudantes, estão classificados em uma espécie de “gente de viagem”, sabendo que, um dia ou outro, quiseram enquadrá-los ao sedentarismo, quando muitas vezes lhe negaram o direito de existir. É exatamente este estágio sólido que o sociólogo polonês Zygmunt Bauman (2003, p. 20) chama atenção, pois o fato de que os hábitos nômades são mal vistos nesse contexto, é causado pela ideia de que ser cidadão significa dispor de um lugar fixo, ter um endereço, assentar-se no espaço, mas o que é mais contraditório dentro dessa visão, é que aqueles que determinam hoje o sedentarismo como único estimável modo de vida, é uma elite global contemporânea formada por “senhores ausentes”. O que define ser sujeito incluído na sociedade? Participante da cidade? Será que a humanidade está se matando pela dita “civilização”? Certamente, aqueles que vivem nas margens são cada vez mais empurrados para fora, para um espaço desqualificado, e esse lugar que lhe é imposto determina sua ocupação da cidade como forma silenciosa, invisível. São desempregados, moradores de rua, sem-teto, e muitas vezes catadores, que movimentam seus carrinhos para sobreviver pela coleta que compete à mobilidade.

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Essa classe contesta o bem-estar, no que diz respeito a casas dotadas de conforto, segurança e boa localização. Assim também o artista polonês Krzysztof Wodiczko (1943-) denuncia, na década de 80, o funcionamento perverso da lógica espacial das metrópoles através da sua obra Homeless Vehicle Project (1988-89). O artista (WODISZKO apud MILTON, 2003, p. 332) denomina essa genealogia migrante como “nômades urbanos despejados da economia atual” e ao mesmo tempo em que sua obra serve como meio de sustento e sobrevivência (transporte e armazenamento para coletas), ela é projetada como abrigo pessoal (para dormir, circular, higienizar-se, guardar pertences), ou seja, ela é lar e ocupação movente. É assim, uma espécie de equipamento para ocupar e habitar os espaços marginais, indeferidos da paisagem urbana. Esse dirigível projetado ainda tira partido da visibilidade do design como meio de expressão, semeando inquietação, incômodo para os observadores e desestabilizando, de certo modo, a cadeia industrial, pois o consumidor da mercadoria é um não consumidor.

Figura 2: Homeless Vehicle Project (1988-89) Krzysztof Wodiczko.

Os nômades urbanos fundam territórios moventes e são equiparados aos vendedores ambulantes nesse sentido, pois são cartógrafos ativos por seguirem uma rota de percepções e ações que singularizam sua experiência urbana. Essas migrações constituem uma crítica à paisagem urbana que é dada como vedada, guiada por marcas, linhas, cifras e números que nutrem o estar sedentário, declarando que o verdadeiro sentido da cidade está na

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produção desse espaço efêmero, que escapa ao esforço da massificação dominante e testemunha a diversidade enquanto tempos e velocidades, práticas e relações interpessoais. É por meio desses parâmetros que se fundamenta a publicação Atlas Ambulante: geografia portátil (2011), pois evidencia a cidade dinâmica que se desenha com os movimentos dos habitantes, dos nômades urbanos responsáveis pela construção dessa geografia transeunte, concebendo toda vez um espaço outro. O livro contempla uma reunião de experiência em Belo Horizonte (MG) a partir do ponto de vista de seis ambulantes: um vendedor de pirulitos, um vendedor de algodão doce, um vendedor de biju, um amolador de facas e dois empalhadores e restauradores de cadeiras. Nele, funde-se a estratégia do retrato como cartografia, pois é precisamente ela que caracteriza conhecimentos espaciais únicos de cada ambulante, e a cidade, vista assim, é apropriada todos os dias. Os percursos ambulatórios são entendidos aqui como viagem, pois eles descobrem sentidos e ativam espaços antes não percebidos. Essas viagens, por sua vez, são feitas por uma multiplicidade de moluscos que aparecem cruzando o cotidiano urbano. Chamo de moluscos, porque acredito existir uma certa genealogia migrante que constituem uma espécie singular pertencente ao filo Mollusca, sendo, então, nômades urbanos, tal como eu, que carrego comigo uma casca-maleta com ferramentas de apanhar utensílios poéticos do espaço atravessado. Somos todos caracóis e dividimonos em diversas funções: entre catadores que arrastam seu veículo de recolher papelão, chaveiros que distendem todos os dias seu vagão ou carroceiros que conduzem seus carretos para fazer frete. Ao meu ver, parece que na verdade todos aqueles que percorrem a cidade com um instrumento, seja qual for, cano de algodão doce, vareta de cata-ventos, caixa de picolé, carrinho de churros, pipoca, ou um simples pedaço de papelão para dormir a noite, são dessa natureza. No entanto, para além dos nômades urbanos criadores de uma cartografia praticada, existe uma outra espécie nômade hoje em dia, que é composta pela massa e pelos senhores ausentes que decretam o sedentarismo. Augé (2000) define essa espécie pela designação de nômade contemporâneo, sendo aqueles que habitam o nosso tempo midiático e tampouco se assemelham aos nômades estudados etnograficamente. Os nômades contemporâneos não buscam sentido de território, no lugar, no tempo ou no retorno. Não se apegam a terra, não dependem dela. O

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nomadismo aqui está enquadrado no contexto da mobilidade atual, aquele que exprime os movimentos de uma população, tal como: imigração, turismo, mobilidade profissional, comunicação instantânea, circulação de produtos. É sob essa condição que corresponde o paradoxo de um mundo onde podemos teoricamente tudo fazer sem deslocarmo-nos e, no entanto, deslocamo-nos da experiência presente. Contudo, será que o conceito de viagem ainda faz sentido em uma realidade globalizada, online e impregnada de presenças inexistentes? Será que os nômades contemporâneos perderam todo sentido transformador do deslocamento? Essa mobilidade que envolve os nômades contemporâneos é acentuada e conduzida pela corrida contra o tempo. Só que hoje, por exemplo, como ressalta o poeta uruguaio Eduardo Galeano (1940-2015) em uma entrevista16, vivemos o dobro de tempo que os nossos bisavós, inventamos máquinas para economizar tempo, para estocar tempo. A questão é que criamos uma vida artificial e é aí que o tempo se vai. Focamos todos os dias em uma produção capitalista, em uma quantidade desmedida de superficialidades, e assim, nos encaixamos na máquina pela sobrevivência. Porém, até quando vamos aguentar esse curso? Até quando permaneceremos como árvores-máquinas? Quando nos daremos conta da necessidade lúdica que foi olvidada do nosso cotidiano? O que vivemos hoje, é portanto, uma inversão dos valores antigos17, em que o trabalho é valorizado em primeiro plano e o ócio é um conceito que tem sentido negativo. É justamente por isso que ficamos inconscientes da potência do caráter lúdico, pois fomos educados para entendê-lo como desperdício de tempo. À vista disso trago o revolucionário conceito do sociólogo e filósofo italiano Domenico De Masi (2000, p. 328) em que o trabalho18 é baseado no ócio criativo. O início desse pensamento se dá porque nos tornamos imbecis

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A entrevista foi feita no canal 3 na televisão de Cataluña S.A em 23 de maio de 2011, e pode ser vista através deste link: https://www.youtube.com/watch?v=ICsnSAyJABY 17 Refiro valores antigos, à concepção grega e romana de civilização. Para eles, o ócio era valoroso, era tempo de concentrar-se nas potencialidades próprias mentais, e a ocupação profissional era física e portanto, secundária. 18 O desafio ético do trabalho é o desafio da conciliação da felicidade com a eficácia. O Professor brasileiro Clóvis de Barros Filho fala em uma entrevista do trabalhador perseguidor de cenouras, e dentro dessa lógica, a partir do momento em que a cenoura é alcançada o trabalhador não come a cenoura, paradoxalmente ela desaparece na mão do trabalhador e uma nova cenoura é colocada para continuar perseguindo. Logo, se existe um tipo de pensamento acerca do trabalho, ele deve ser pensando por meio de possibilidades no transcurso, para que durante as metas o trabalhador possa ser feliz, prazedoro nele mesmo. 48


especializados e acreditamos na sociedade industrial como nosso hábitat natural. Assim surge a insatisfação do autor com o modelo elaborado pelo Ocidente e sobretudo pelos Estados Unidos da América, concentrado na idolatria do trabalho, do mercado e da competitividade. Ele declara a importância do tempo livre, da criatividade em tempo de globalização. “O homem que trabalha perde tempo precioso”, pois é preciso libertar-se da ideia habitual do trabalho como obrigação e dever, e transformar sua “função” com tempo livre, mesclando estudo e jogo. Em suma, em todas as ações deve existir a criação, divertimento e formação, pois é exatamente isso que é o ócio criativo. É chegado tempo de mergulhar na civilização baseada no ócio. Essas discordâncias entre o trabalho e o ócio já eram vistas nas próprias raízes etimológicas nos nomes dos irmãos Caim e Abel. Caim é o homo faber, sedentário, ser árvore, é aquele que trabalha (nômade contemporâneo?) e que se sujeita a construir materialmente um novo universo artificial, ao passo que Abel é considerado o homo ludens19, ser rio, nômade urbano, aquele que brinca e que constrói um efêmero sistema de relações entre a natureza e a vida. Enquanto Abel se dedicava a ir, Caim se dedicava a estar. Enquanto Caim trabalhava e utilizava plenamente o tempo útil-produtivo, Abel tinha uma quantidade acentuada de tempo livre voltada à especulação intelectual, à aventura e ao tempo não utilitarista por excelência. É então, da mesma maneira que desponta a proposição Pequeno experimento de mundo #1: Compartimento de estar e partir, visto existir somente nesses sentidos antagônicos, entre a vontade de ficar e a necessidade de deixar. Ao mesmo tempo em que transito sobre rodas presas a uma bicicleta, também me instalo nos lugares, quando estaciono e abro a concha (re)inventada para transformar seu próprio mundo. É por isso similar às divergências e completude dessa concepção que vem desde Caim e Abel, do nomadismo, do sedentarismo, do ócio, do trabalho e as

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Johan Huizinga (2000, p. 3) acredita que: “Em época mais otimista que a atual, nossa espécie recebeu a designação de Homo sapiens. Com o passar do tempo, acabamos por compreender que afinal de contas não somos tão racionais quanto a ingenuidade e o culto da razão do século XVIII nos fizeram supor, e passou a ser moda designar nossa espécie como Homo faber. Embora faber não seja uma definição do ser humano tão inadequada como sapiens, ela é, contudo, ainda menos apropriada do que esta(...) Mas existe uma terceira função, que se verifica tanto na vida humana, como do animal, e é tão importante como o raciocínio e o fabrico de objetos: o jogo. Creio que, depois de Homo faber e talvez ao mesmo nível de Homo sapiens, a expressão Homo ludens merece um lugar em nossa nomenclatura.” 49


inconstâncias sobre tudo que isso abarca. Aqui, não precisamente se opta por um modo de vida, pois como caracol que carrega uma carapaça desgrudada e viva, posso ser viajante, mas também habitante. Acredito que ambas as posições precisam ser portadoras da estadia, da presença, porque viajar é estar presente, não ausente, caso contrário, que tipo de experiência dispersa se terá? É em viagem e em permanência que repouso minhas ansiedades. Por isso, proponho experimentar o espaço da cidade, encará-lo como território lúdico a ser utilizado, praticado, experimentado. E como recomenda o arquiteto italiano Careri (2013), andar nele é um ato cognitivo e criativo, capaz de transformar simbólica e fisicamente o espaço natural e antrópico, logo, a carapaça (re)inventada adquire a posição de intervenção urbana que fica atenta à cidade, condensa experiências e constrói aventuras.

carapaça adentro Para prosseguir averiguando a dimensão do ser caracol, passo à morada, à carapaça, que tem seu valor carregado até o fim, quando percebo que o projeto de (re)invenção justamente se dá pela necessidade de emaná-la de mim. É essencial então, falar sobre a sua imensurável importância, mas para que isso aconteça, é indispensável desprender a imaginação e aproximar-se do que o filósofo francês Gaston Bachelard (1993, p. 268) propõe, pois “quem aceita os pequenos espantos, prepara-se para imaginar os grandes” e, na ordem imaginária, torna-se completamente normal que um rinoceronte tão imenso possa sair de uma concha de caracol. Sabendo que esse estudo não trata de fenômenos reais do comportamento animal, articular sobre a carcaça de um caracol pode ressaltar condições absurdas que emanam dela, tais como: por eventualidade, é possível que saiam seres inexistentes, imaginados, e quando talvez não saiam por inteiro, o que sai contradiz o que fica. É precisamente essa ambivalência, entre permanecer e abandonar, que trama cuidadosamente a investigação, e o devaneio animalesco desregrado é capaz de gerar riscos de evolução animal condensada. Portanto, o ser que sai da concha sugere reflexão de um ser misto, um ser meio vertebrado, meio amolecido, meio pedra, meio nuvem, meio nômade, meio sedentário, meio rio, meio árvore, meio presente, meio ausente. É incansavelmente transeunte dessas metades. Porém, o que se coloca em questão são os verbos

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estar e partir, e as saídas inventadas da concha, tornam-se apenas um pretexto para criar ênfase a esse estado antagônico. É desse modo que Válery (2011, p. 109) reflete sobre esse processo fundamental de emanação, acreditando que emanar é o único termo próximo à realidade de um molusco, visto significar propriamente deixar perder. Pode um molusco emanar sua concha, ou a concha emanar um molusco, tal como uma gruta emana suas estalactites20. O ser viscoso é movimento, enquanto a carapaça é reservatório paralisado. Sem o ser viajante, a casca que o retém não encontraria percurso ambulatório. Diz-me, desde o germe, esse molusco, seu formador, sofreu uma estranha restrição em seu desenvolvimento; uma metade completa de seu organismo se atrofiou. Na maioria, a parte direita (e nos resto, a esquerda) foi sacrificada, enquanto a massa visceral esquerda (e no resto a direita) curvou-se em meio círculo e depois torceu-se, e o sistema nervoso, cuja primeira intenção era se transformar em duas redes paralelas, cruza-se curiosidade e inverte seus gânglios centrais. (VÁLERY, 2011, p. 110) Mas, antes que haja qualquer confusão referente a essa metade atrofiada que possuo e me proponho a (re)construir, acredito que seja pertinente distinguir o termo emanar. Em primeiro sentido e comum fazer caracoles, refere-se à origem da concha, aquilo que advém de algo, deixa fluir, nasce, está por vir ou vindo, já a segunda interpretação deriva da primeira, tornando-se semelhante a uma máquina aceleradora de partículas, e denotando o momento em que a criação se desprende do organismo, solta, descola, difunde, dissemina, deixa sair além da formação, segmentando em um momento propício o sujeito mole do objeto firme. É nessa condição que ocorre uma reformulação da posição de ambos em relação ao mundo, a divisão dois corpos, de duas estruturas experimentais. É pela quebra das conjunturas estabelecidas entre sujeito criador viscoso e objeto criado enrijecido, que o participador é colocado como “lugar” no trabalho. É assim que Oiticica propõe a noção de transobjeto, na intenção de incorporá-lo, de ser estrutura aberta e transformá-lo na adequação da experiência, fazendo nascer o conceito de crelazer, determinando o sentido da participação, visando criar um estímulo não incisivo e sim marcado pelo 20

Estalactites são formações rochosas sedimentares que se originam no teto de uma gruta, crescendo do teto para baixo, em direção ao chão. Isso acontece pela deposição de carbonato de cálcio arrastado pela água que goteja do teto. 51


lazer e prazer, pelo desinteresse e espontaneidade capazes de liberar o poder do criador. É um lazer-prazer-fazer que assimila a atividade criativa ao devir das vivências, absorvendo a ideia do suprassensorial e de projeto, integrando-as numa relação de vida-arte: Eu inventei um negócio chamado Crelazer, eu queria transformar o dia todo, inclusive o lazer, e a preguiça, numa coisa assim de estado permanente inventivo, por isso eu comecei a transformar o lugar que eu moro, o ideal era esse, morar na própria obra. (OITICICA, 2000, p. 194) Quando o lazer toma o espaço e a condição de simplesmente estar transborda além do ambiente, intensifica o viver, tal como Oiticica (1969, p. 4) consolita em seu escrito As possibilidades do Crelazer cria uma “construção de totalidades que se erguem como bolhas de possibilidades” no ar, e o crelazer promete “erguer um mundo onde eu, você, nós, cada qual é célula-marter”. Acredito que talvez aqui seja possível equiparar a aposta de Oiticica na atividade de criação lúdica ao que De masi defende como ócio criativo. Oiticica propõe o inverso do “trabalho” (de arte): lazer. É uma proposta de ‘desatuação’, de transferência do comportamento frente à arte para o tempo do intransitivo, estratégia para tentar insulá-la do espetáculo e do consumo: mudar do ‘trabalho de arte’ para o ‘lazer inventivo na arte’. (BRAGA, 2007, p.113) Longe do cotidiano massificado pelo trabalho, a busca pelo lazer prazeroso é vinculada a construção de algo, a terceira definição do crelazer: fazer, e é assim que Oiticica pensa seus projetos, como uma invenção do cotidiano, do experimental e palavras como espectador, relacional, participador e a inversão do sujeito e objeto surgem constantemente ao longo de suas reflexões. É dessa maneira que trago a Sala de sinuca (1966), visto ressaltar a modificação do espaço comum afastado do tempo laborioso, fazendo uma certa apropriação ambiental que é reestruturada pelas pessoas e contexto. Esse trabalho surge da observação que relaciona as sensações com o clima do Café noturno (1888) de Van Gogh(1853-1890), em que este dizia expressar com o vermelho e o verde as “terríveis paixões humanas”. Logo, o ambiente de Oiticica é feito com cor: mesa de biliar verde, parede vermelha e preta, junto a camisas coloridas dos jogadores. Assim, fazia vir a tona a plasticidade do ambiente e do jogo, mas sobretudo revelava o sentido do ato do jogo, e a habitação de cada jogador lhe interessava como forma de totalidade da obra em sua ação, “não de apreciar o jogo na sua beleza, mas

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apenas realizá-lo” Oiticica (1969, p. 33, apud FAVARETTO, 2000, p. 133, 134). Logo, realizar o jogo é chave de uma proposta livre, de intensidades móveis, de forças de desejo: prazer. “Isso sim é importante, a obra é prazer, e como tal só pode ser livre”.

Figura 3: Sala de sinuca (1966) Hélio Oiticica.

A Sala de sinuca está entre o que se entende por apropriação ambiental e construção, tal como afirmado por Oiticica (1967 p. 28) “não achei o jogo, mas o construí e para ele criei um ambiente, como se fora algo totalmente novo”, enfatizando a concepção de Oiticica acerca do mundo como lugar de arte, afinal, o museu é o mundo, é a experiência diária e transborda os limites expositivos do cubo branco. A proposta de criar um mundo estético, um mundo-arte, traz como ênfase o cotidiano para descobrir os elementos desse cotidiano, transformando em suas próprias regras, proposições abertas, não condicionadas e o único meio possível para isso é propor o propor. É assim que a abordagem do lúdico se manifesta, pois ela é uma espécie de lacuna fundada em um “estado de comportamento” humano que voltasse às sensações mais profundas, às origens, vertendo prazer e divertimento do tempo livre, do momento em que alma fica cheia. A ideia museu é o mundo de Oiticica mostra diferentes iniciativas que reformulam a concepção tradicional de museu enquanto espaço de exibição, e, nos últimos tempos têm surgido estratégias de dispositivos destinados a fazer arte portátil, exposições nômades como uma plataforma para participação direta do público, ao invés de expandir metros das paredes dos museus. É o caso do trabalho dos artistas brasileiros Ramon Rodrigues (1982-) e Samuel Casal (1974-) que propõem com a Gráfica clandestina

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(2014) um atelier móvel, que busca desenvolver um espaço educativo demonstrando ao público como funciona a técnica da xilogravura em todas suas etapas: área de gravação da matriz, área onde a matriz é impressa, a parte da secagem da gravura e no final, a galeria, onde as gravuras aparecem penduras e emolduras.

Figura 4: Gráfica clandestina (2015) Ramon Rodrigues e Samuel Casal.

É pensando que as formas de percepção cotidiana necessitam de inventos artísticos transportáveis, que possam chegar até as pessoas para proporcionar um contato sensível, é que a concha, como objeto separado do molusco é entendida. Ela retém a noção de construção de mundo a partir de fragmentos achados, de detalhes perdidos das ruas, do trânsito, das coisas inacabadas, dos terrenos baldios. Ela visa integrar então, dois tipos de espaços: o espaço dela mesma e o espaço real, amplificando assim à artevida, envolvendo o comportamento, reflexão e sensibilidade. Nessa situação, a partir do momento em que se inclui o espaço externo à concha, ele ganha vida no percurso, na viagem, na experiência em que cada participante assume o perfil de viajante no interior da proposta. Dessa maneira a ação poético-artístico-educativa pretende dar um espaço outro para o cotidiano, oferecendo instrumentos para observar seu contexto, olhar de novo, perceber coisas que antes não eram vistas, para então (re)descobrir o lugar, a cidade. É colocada no mundo, que a carapaça indica pausa urbana, experiência, pois não se pode adentrá-la sem parar o fluxo. Ela requer lentidão, solicita tempo, assinala a inconstância entre o estar e o partir, e provoca a situação de ausência que nos encontramos para as coisas que vivemos, pois estamos habituados a tudo, e por isso, cegos. É assim, que procura-se compreender a importância de verdadeiramente estar presente, de ficar aberto ao experimentar e viajar por meio das apreensões do mundo. Logo, as trocas faladas, silenciadas, desenhadas, escritas e recolhidas são aqui necessárias, porque asseguram, revigorizam e instauram

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outras formas possíveis de estar e experimentar o mundo. E a concha (re)inventada que disponibiliza mesa, assento, correio, janelas, biblioteca com artefatos de leitura, trata-se de um dispositivo de ver o mundo e um convite à reinventá-lo. Para emaná-la enquanto origem, elaborei alguns esquemas de estruturação e engate para uma possível engrenagem, com rodas dentadas que se acionam mutuamente, porque a partir do momento em que a concha emanar no sentido de desgrudar, ela precisará de uma base para carregá-la e deslocá-la. Os esqueletos gráficos também demonstram sua forma transformada ao longo do processo de pensamento, modificando-se entre carreto aberto movida pela tração humana a pé, caixa fechada entendida como cabine, estrutura curva acoplada em um dirigível triciclo, até chegar à bicicleta que engata um reboque e puxa a carapaça com abertura traseira. Para adentrar na sua projeção, verifique o mapa envolto deste texto.

proposta de metalugar Para dar seguimento ao devaneio da concha que se transforma em objeto descolado, em estrutura globular desprendida no mundo, gostaria de propor uma metamorfose conjunta para indicar esse devir. Agora, imagine um planeta onde todos os humanos fossem na verdade moluscos. Todos viveriam em processo de emanação nos duplos sentidos e por vezes, trocariam de conchas, adentrariam as carapaças alheias para descobrir novos mundos. Toda gente tentaria sair da sua concha, mas nem sempre conseguiria, pois é muito comum que alguém fique aprisionado quando está no procedimento da emanação original. Mas, quando despregasse de fato e o molusco tivesse a oportunidade de experimentar a existência viajante para decidir sua postura de mundo, ele é bloqueado devido à pressa da vida contemporânea e não consegue ganhar uma forma definida. O que me preocupa é que muitos desses moluscos acreditam nessa fugacidade, nessa insuficiência de tempo vital, em que basta simplesmente estar para habitar qualquer concha. Certamente, o ser que entra nela hoje, prepara sua saída amanhã e habita-a em um estar ausente. Para ser sincera, confio ser essa a condição mais inquietante que tenho, pois o estar não condiz apenas em “estar presente fisicamente”, é preciso uma outra forma de estar na concha e no mundo.

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Incorporada no mundo repleto de presenças-ausentes, trago como alicerce sociológico Bauman (2004) e seu pensamento crítico sobre a pósmodernidade-líquida. Ele estabelece a lógica da liquidez, pois percebe o forte caráter do fluxo, em que tudo escorre facilmente, sem peso. É um ininterrupto movimento frenético que faz sentido quando se observa alguns pontos identificadores atuais, tais como a individualidade, o tempo e o espaço, que carregam em si acúmulos de eventos simultâneos de uma vida regida pela lógica instantânea. É impossível fugir das consequências da globalização, com suas vertiginosas ondas de informação e de novas ideias. Tudo ocorre com intensa velocidade, o que também se reflete nas relações entre as pessoas. (BAUMAN, 2004, p. 34) Essa perspectiva fluída refere-se à mobilidade, ao pensamento preso na armadilha de uma aceleração que entorpece e paralisa. É assim que Augé (2010) desenvolve um raciocínio por meio dos impactos do “sistema de globalização”, em que a aceleração do tempo e retraimento do espaço planetário, acabam por nos tornar fixados em uma espécie de presente perpétuo, uniformizado e espetacularizado midiática e imageticamente, promovendo a cegueira dos olhares. É precisamente essa esfera intangível, leviana, que faz com que seja inevitável transitar pelo que autor denomina de não-lugares, espaços de passagem, aeroportos, supermercados, shoppings, autoestradas. Quando se compromete com o transitório, os não-lugares impõem uma espécie de solidão, pois são povoados por sujeitos em trânsito, incapazes de se relacionarem com aqueles com quem compartilham fisicamente o espaço de fluxo. Dessa maneira, acredito ser possível decompor um lugar a um nãolugar, na medida em que uma presença se torna ausente. O indivíduo pode estar presente fisicamente, mas é absorvido por outro mundo tecnologicamente mediado e em seguida, deixa de presenciar o lugar onde está para visitar um espaço outro. Trago como exemplo dessa transformação das presenças e dos lugares, um relato de viagem. Quando frequentei museus e parei em frente a obras esplêndidas da história da arte, criando um espaço de percepção, ao mesmo tempo, defrontava-me com a sofisticada e decadente experiência mediada. Era-se fotografado todas as obras, em rápida sequência e incessante fluxo, de modo a criar um possível catálogo digital. É desgostoso perceber que a mídia faz nossa experiência por vezes

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evaporar, faz esquecer o instante experiencial, que é só vivido posteriormente, quando se “revê”, se “revive”. Nessa situação, será que existem lugares hoje em dia? Será que talvez tudo tenha se transformado em não-lugares? O que hoje não é passagem? Que lugar não se torna um não-lugar devido à tecnologia móvel, correspondendo as presenças ausentes? Será que a proximidade nos escapa? É por conta disso que começo a aceitar a condição de que talvez exista um descentramento do mundo, das cidades, das moradas, das conchas, onde assistimos a metrópole criar ideais de lugares melhores e emergentes a qualquer situação, e enquanto isso, nosso lar é tomado pela televisão, pelo computador. Tornamo-nos indivíduos equipados por instrumentos de comunicação, fones de ouvido, telefone celular, que nos mantêm em relação permanente com o exterior, ausentes do agora, e por assim dizer, fora de nós mesmos. Será que com a constituição da concha (re)inventada posso construir um metalugar respondendo aos não-lugares? Esse metalugar solicitaria a ideia de lugar, permitindo encontrá-lo, mas não reencontrá-lo de igual forma. Seria ponte entre o conhecido e a exterioridade estranha, um espaço entre dois, conexão entre um ponto qualquer e outro ponto qualquer, não teria começo, nem fim, mas entremeio. Não trataria de uma simples relação entre duas coisas ou mais, mas um lugar onde elas se tocam, uma zona de indiscernibilidade. A criação desse metalugar acompanharia então, o movimento do pensamento, da subjetividade, seria deste modo, um espaço de contato, de semelhança e dessemelhança, de temporalidades diferentes, até porque existe um importante impasse: de como fala cada corpo, de como age cada cotidiano, o meu e o seu. E se porventura, a concha pudesse acrescentar qualquer intervalo desdobrado pela lentidão no espaço urbano, ela abraçaria a paisagem envolvente de modo a fazer tudo o que necessitava, inventar um metalugar que não é estável, escoa e verte novas outras coisas. Se de fato conseguisse inventar esse metalugar, poderia então aliar ao conceito de heterotopia que o filósofo francês Michel Foucault (1976) propôs, partindo de duas significantes: hetero: outro; topia: espaço; logo, espaço outro. A noção de heterotopia pode ser entendida como uma forma de classificação espacial que valoriza a presença de múltiplas representações conflitantes em uma mesma área, expondo significados duais, que não se

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tem aqui nem lá, sendo simultaneamente físicos e mentais, tal como uma chamada telefônica. Eu acredito que a inquietude de hoje concerne fundamentalmente ao espaço (...) e talvez nossas vidas ainda estejam comandadas por certo número de oposições que não podemos tocar, as quais as instituições e a prática ainda não ousaram atingir: oposições que nós admitimos como dadas, por exemplo, entre o espaço privado e o público, entre o espaço da família e o social, entre o cultural e o útil, entre o espaço de lazer e o espaço de trabalho (FOUCAULT, 2001, p. 1573) É como se o mundo se sentisse ao mesmo tempo próximo e distante, lado a lado do disperso. Na busca do uno, do universal, a razão ocidental afastou a diferença do outro, da multiplicidade, e assim, os espaços que percorremos concentram não-lugares, dissolvem a consideração de uma sociedade plural, não globalizada culturalmente. O metalugar inventado requereria uma particular curiosidade aos espaços que estão em relação com todos os lugares, e assim se suspenderiam, neutralizariam e inverteriam o conjunto de relações em que se acham instituídos ou refletidos. Talvez, esse espaço inventado seria próximo àquilo que Foucault (2001, p. 1574) aponta: “Lugares que foram desenhados pela própria instituição da sociedade, e que são tipos de contra-localizações”. Mas de que forma o espaço se inverte, suspende e transforma um nãolugar à um metalugar? Um lugar em transformação? De que maneira o metalugar apareceria na cidade? Será que sua invenção é realmente possível? Mesmo que sua ideia parta de um espaço outro, de uma espacialidade efetivamente vivida e socialmente criada, sei que porventura, todo delírio de criá-lo possa ser utópico em meio a globalização acelerada, em meio a vidas individualizadas. Porém, para já, prefiro seguir o conselho do cineasta argentino Fernando Birri (1925-) citado em uma entrevista por Eduardo Galeano (2011) e assim, entender a utopia como o horizonte. “Pois a cada dez passos que caminho, dez passos ele se afasta, quanto mais o busco, menos o encontrarei, porque ele se afasta na medida em que me aproximo”. Então, para que serve a utopia? “É justamente para isso, para caminhar”, para trabalhar por uma causa, para expressar uma necessidade, não para impressionar. A (re)construção da concha é muito mais válida na tentativa de não se esforçar para ser percebida enquanto presença, mas quando ausente, seja sentida.

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globular, globo-lar Mesmo que a globalização se mostre uma cidade-país maravilhosa, disponibilizando todas as culturas, trejeitos, várias formas de morar, de estar, de trocar, no entanto, é ela quem nos torna indivíduos sem lar. Um cidadão do mundo inteiro deixa de ter seu suporte enquanto matriz. Deixa de ter costumes, crenças tradicionais para assumir um estilo de vida próprio e escolhido em uma vasta gama de possibilidades. Você se torna o molusco que quiser, transitando somente entre o que tiver agrado e muitas vezes sentido-se não permanente em nada, mas habitante de um globo-lar. Você pode deixar de viajar muitos quilômetros para conhecer novas culturas, porque tudo que precisa nesse globo-lar é andar algumas esquinas e encontrar culturas produzidas em grande escala. Hoje se encontra todo o mundo em uma só metrópole. Mas, será válido querer habitar esse globolar? Ser cidadão global? Será que os seres mais puros não são os desabrigados (que não têm casa) e os prisioneiros (que não querem o lugar que lhes foi destinado)? Essa circulação ininterrupta em que vivenciamos, os relatos e as práticas dos sujeitos em movimento, habitantes do globo-lar, dão evidência a copresença, a atenção parcial-contínua que oferece um cenário complexo para o entendimento das relações entre esses sujeitos e o espaço. Assim, quando de fato praticamos o espaço habitado? Quando tomamos consciência daquilo que nos rodeia? Quando abrimos nosso olhar para além de um dispositivo tecnológico? E será que por meio da prática artística é possível potencializar a experiência poética em contexto costumeiro? Como ver, ser, estar e sentir, se os momentos infinitos-temporários do mundo não nos deixam criar espaços de lentidão? Será ainda que esse globo-lar faz alguma relação com o mundo-abrigo de Oiticica? Não sei explicar o por quê, mas estou convencida disso. De alguma maneira vejo o globo-lar responsável por nos fazer perder características raras, e em contrapartida, o mundo-abrigo apresenta uma proposição de que o dia a dia é experimentação, dirigindo-nos o que de fato é arte e vida. Acho que somente assim, cada ser enxergará seu próprio micromundo, criando a grandeza do universo através do ínfimo. Porém, o globo-lar volta nosso olhar ao presente que não tem mais tempo, mesmo que a cidade e os sistemas de comunicação e transporte

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pressupõem ganhá-lo. Andar depressa é esquecer rápido, reter informações momentaneamente úteis, pois o ritmo das coisas provam a sobreposição dos andamentos. Será que isso seria uma espécie de amnésia da aceleração? É assim que o professor brasileiro Nelson Brissac Peixoto (1996) evidencia o olhar opaco contemporâneo, em que permanecemos guiados pela ditadura da visão imediata. O problema é que tudo se tornou visível demais, o olhar perdeu abrangência panorâmica, deixou de apalpar as coisas, tudo passou a ser instantaneamente mapeado e a imagem midiática é a única descrição verossímil. Mesmo aquilo que é visível, escapa a visão e para Deleuze (1996, p. 162) a grande questão está na “crença capaz de nos devolver o mundo e o corpo a partir do que significa sua ausência”. É preciso fazermos um esforço para dar conta do aspecto sensível das coisas, de tudo aquilo que não é dizível, e a arte testemunha o indeterminado, o inexprimível. Como por exemplo: sabe quando observamos a dimensão de um céu estrelado? Quando tomamos os pontos brilhantes como luminescências em movimento orbital e o entendemos como uma vasta cúpula que envolve tudo? Pois é, isso não vai além do compreensível. Certa vez li que Immanuel Kant via o céu não como essa mecânica astral comumente conhecida, ele preferia aludir algo que escapava dessa concepção, aquilo que não tinha lugar lógico. Ele via o céu como uma abóboda iluminada. Será que existe algo mais encantador do que encontrar um olhar sensível como este? Do que voltar nosso olhar também para esse campo vazado e permeável que transitam todas as coisas? Acho que se nos permitirmos a enxergar o mundo assim, tudo de repente passará a acontecer nessas franjas, nesses espaços intersticiais, nessas pregas que fogem da cidade feita de fluxo. À vista disso, trago a instalação do artista brasileiro Rubens Mano (1960-) Detector de ausências (1994), que evoca esse invisível. Ele consiste em dois grandes refletores de 12.000 watts de potência, instalados ao lado do viaduto do Chá, em São Paulo. Cada refletor é colocado sobre torres de 13 metros de altura, de modo a cortarem a passarela na elevação da calçada, lançando faixas de luz com cerca de 1,5 metros de diâmetro, atingindo perpendicularmente o movimento dos pedestres. Ao atravessá-los à noite, o passante tem sua silhueta instantaneamente recortada e por um pequeno momento, as figuras fugidias brilham em intensa iluminação, antes de desapareceram novamente na escuridão.

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Figura 5: Detector de ausências (1994) Rubens Mano.

Os fachos de luz traduzem a velocidade crescente da cidade, desqualificando o espaço, acarretando desterritorialização, olhar opaco e presenças-ausentes que transitam as conchas. Ao mesmo tempo em que a luz permite identificar o indivíduo da metrópole, também constata seu anonimato. Afinal, são figuras que não têm mais lugar, são equiparáveis a impalpabilidade dos elementos celestes, e tal como o viaduto iluminado corta o céu, sobre ele, a multidão caminhante se assemelha às nuvens. É assim que o Detector de ausências capta o exato momento em que se pode perceber a efêmera presença. Só que ela é passagem fugitiva, tal como habitamos o mundo ultimamente. Vivemos para estar e em seguida partir. Quando presentes, estamos ausentes e, portanto, desfrutamos pobres experiências correntes. Será que em contrapartida ao trabalho de Mano, seria possível inventar um despertador de presenças? De experiências? Será que ainda algo pode nos desadormecer? E se caso esse despertador viesse a funcionar, chamaria nossa atenção quando nos dispersamos do hoje, mas esqueceria de apitar quando a ausência presencial não significasse falta, mas um viajar dentro de si, um voar distante. Noto então que existe uma diferença crucial na ideia que permeia presenças e ausências. Hoje ainda se encontra presença-presente e ausênciaausente, mas acho raro, porque existem meios de atravessar esses estados selados e atribulados ao frenesi diário, pois não achamos espaços para

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constituir uma circunstância tão condensada, porque estamos distraídos, vivendo situações paralelas. Nesse caso, entendo ser pertinente distinguir a ausência-presente da presença-ausente, mesmo que já saiba que isso provavelmente irá gerar confusão e ambiguidade, no que diz respeito à utilização e possível diferenciação de termos tão similares. Logo, penso que uma ausência-presente alude à noção de insuficiência vivida, é quando o indivíduo vive o momento, mas em simultâneo, sofre o fenômeno de estar viajando dentro de si, agregando o momento real ao imaginado e vice-versa. Mesmo ausente a situações concretas, esse ser divagante está no presente de forma a incorporar a sua existência. Mas por vezes, uma ausência-presente pode se manifestar como uma harmoniosa ligação com alguém que não está presente fisicamente, mas por algum motivo de potência vivida, continua presente no embalo cósmico. Esse último, pode ser definido como lembrança ou saudade. Por outro lado, uma presença-ausente é quando se sai do ambiente vivido por um intermédio que não acrescenta a mesma lógica da primeira distinção, somando a experiência real e inventada à vida, pois aqui se visa sair da presença por um desinteresse e/ou busca incessante de informações e notificações levianas, de que nada alteram a experiência efetiva. Isto é, quando se sai da presença em busca de algo que virá integrar e absorver na vida, é ausência-presente, quando se parte da presença por propensão de alimentar o vício de investigar notícias expositivas e desimportantes para si, é presença-ausente. No entanto, tenha muito cuidado: a falta de atenção é uma circunstância propícia às duas distinções e não remete a uma característica particular, pois a distração é a passagem entre o longe e perto, entre o movimento e o estacionamento. E, por vezes, é muito comum que uma presença-ausente se torne ausência-presente, porque quando se sai do ambiente com um polegar resvaladiço sem intenções, de repente, ao acaso, encontra-se alguma coisa avassaladora, algo que irá transformar sua presença no envolvimento do espaço irreal e legítimo. Essa mutação terminológica permeia no que é percebido e o que não é sabido. Ela compreende uma concepção da mobilidade contemporânea entre sair e entrar nas conchas, entre ocupá-las e não habitá-las. Mas, às vezes, o que resta na paisagem urbana são somente fragmentos de presenças, de rastros, marcas que firmam sua existência e todo caminho que elas deixam tornam-se percurso, zona incerta de uma configuração nunca acabada. Esses vestígios geram um relance particular sobre o que se tornou

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visível e se transformou em contornos da cidade, e é propriamente dessa maneira que aparece o trabalho da artista norte americana Jennifer Allora (1974-) e do cubano Guillermo Calzadilla (1971-), intitulado Landmarks (2002). Ele consiste em gravar mensagens de protesto em solas de plástico, que são acopladas aos sapatos dos participantes de uma manifestação contra o exército militar em Vieques21, Porto Rico. Ao pisar, os manifestantes deixavam fortes mensagens no chão, e o ato do movimento deixava a marca de presença. E é justamente isso que interessa, o registro das pegadas no chão, a ação que determinou um tempo e espaço, desenvolvendo um acúmulo de presenças.

Figura 6: Landmarks (2002) Jennifer Allora e Guilhermo Calzadilla.

Nesse processo, coloca-se em questão o significado do lugar como consequência dessas ausências (palavras inscritas no chão) e presenças (atitude própria de caminhar em direção às áreas restritas). Diferente do Detector de ausências que por meio das presenças captava partidas, Landsmaks propõe que a partir das ausências marcadas na areia, surjam presenças, e mesmo que essas pegadas sejam apagadas, elas sugerem o inatingível, as percepções que os manifestantes têm sobre o lugar. Diante dessas elucidações entre ausências e presenças podemos refletir sobre como experimentamos o cotidiano, de que maneira diferenciamos o espaço do trabalho e do lazer, a arte e a cidade. Será que vivemos presentesausentes ou o contrário? Nessa situação, como redescobrir a cidade? Como lançar um olhar não superficial ao dia a dia? Será que ainda é possível 21

O local foi base militar dos Estados Unidos da América entre 1941 e 2003, sendo frequentemente utilizado para testes de armas. Essas operações resultavam em uma série de degradações ambientais, expropriações de terra e conflitos. 63


(re)inventá-lo? Diante disso, trago o filósofo francês Michel De Certeau (2002, p. 178), pois é precisamente isso que ele preconiza. Sua pesquisa nasce por meio da interrogação sobre as práticas do espaço cotidiano por sujeitos passivos, cegos, entregues à disciplina, aos meios operacionais prontos, assim, procura extrair “modos de ação” e sobretudo a relação entre o sujeito e o espaço, em que práticas comuns como falar, ler, circular, comprar, cozinhar são maneiras de fazer com que conduzem a ideia de uma trajetória própria. Para inventar o cotidiano, precisamos criar nossa própria prática de espaço enquanto construção visual, poética e mítica, é preciso apropriar-se dele, habitá-lo. O autor coloca em cena uma oposição entre os observadores e os caminhantes, metaforizando o saber dito erudito e o saber comum. Caminhar seria a única maneira de realização espacial do lugar. Logo, se existe uma ordem espacial organizadora que gera proibições, é o caminhante que as atualiza, as faz ser a aparecer, porque é por via de suas improvisações que mudam, subtraem e adicionam elementos percebidos no espaço, criando assim, um percurso descontínuo, único, orgânico. É na caminhada que se afirma, se lança suspeita, arrisca, transgride trajetórias. As retóricas ambulatórias compõe um percurso como estrutura singular, fazendo existir uma relação ao lugar de onde se sai e o que se produz. Afinal, como lindamente afirma De Certeau (2002, p. 183) “caminhar é ter falta de lugar (...) é um processo indefinido de estar ausente e à procura de um próprio”. Como consequência, os lugares vividos com presenças-ausentes deixam de ser praticados. Mas, ao contrário desse não estar e não praticar, a experimentação do espaço é entendida como atravessar o lugar, ser outro e passar ao outro. É metamorfosear-se de acordo com o percurso, criar deslocamento próprio, pois só assim, todo relato de prática espacial se tornará viagem, instância móvel de demarcação, repleta de aventuras narradas e vividas. De tal forma, o artista cubano Ariel Orozco (1979-) e seu trabalho Yo paso por la ciudad y la ciudad pasa por mi (2005) confirma a transformação dada pela prática do espaço, pela direção que se toma. Esta obra dá forma concreta à fusão do sujeito com a cidade, com o percurso. Ela acontece na Cidade do México ao longo de três dias, quando o artista pediu às pessoas que encontrava na rua para trocar de roupa com ele, até que acaba a ação com roupas completamente distintas das que havia começado a caminhar,

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iniciando a ação vestindo terno e concluindo vestido com farrapos de mendigo. É claro que essa mudança de vestimenta marca uma complexa diferença de classes sociais e econômicas, e ao trocar suas roupas com desconhecidos, conectando-os com uma forma incomum de troca material, aspirando uma fusão democrática com o corpo social da cidade que é quase anônimo, invisível, porque os grandes não desejam entendê-lo como unidade.

Figura 7: Yo paso por la ciudad y la ciudad pasa por mi (2005) Ariel Orozco.

Semelhante à prática urbana de Orozco que se transforma no percurso, é que a concha (re)inventada é compreendida. Ela transforma-se desde o momento de emanação enquanto construção, até ao que desgruda. Uma vez separada, ela modifica-se na trajetória em que se move e por meio de cada novo viajante que a adentra. Essas viagens são incalculáveis, porque é impossível prever o que se pode encontrar no caminho. Viagens feitas por terra, por água, por ar, fantasia. Tanto a concha inabitada quanto o ser gelatinoso desabrigado solicitam essa ideia de viagem. Os dois acreditam que viagem acontece pela experimentação, pelo percurso que transita sonhos, envolve realidade, flui pelos muros úmidos, vaza pelas frestas do deserto e tocam o mundo. Porque na verdade, todos os seres viajantes procedem de três elementos que os concentram e catalisam suas forças: as montanhas e o chão dos andarilhos, o mar e as ondas dos navegadores, e o éter e o azul dos aviadores. Aos poucos percebi que todo molusco vive para construir sua concha, mas não a constrói para viver nela, pois, a partir do momento em que destila sua cobertura, confronta-se diante da formação como sujeito viajante, lento

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e contínuo, podendo ser presença, fazer habitação em outras conchas, em tantos outros universos. É exatamente aí que se acentua a importância desse trânsito de caramujos que trocam de conchas, que praticam os espaços internos e externos do globo-lar. Para uma concha habitada, quantas existem vazias? Quantos espaços desocupados? Não vistos, não praticados? Acredito que cada vazio existente sugere um devaneio de refúgio, um pedido de ação, de experiência, porque toda morada não quer ser tapera, ela quer ser espessura, solidez corpórea para as coisas. Assim, o espaço da carapaça (re)inventada só ganha valor quando é vivida, quando dissolve de alguma forma a inércia e a opacidade do mundo. E tal como Calvino (1990, p. 16) articula, é preciso evitar que o peso da matéria nos esmague e então, tirá-lo das coisas, das cidades, das linguagens. “As vezes, o mundo inteiro me parece transformado em pedra, mais ou menos avançada segundo as pessoas e os lugares”. Portanto, de que jeito podemos fazer da ligeireza um modo de ver mundo, mesmo solicitando a lentidão? Como ir devagar e divagar? Perder tempo, sem entendê-lo como tempo perdido? Para construírmos uma lucidez do olhar contemporâneo, é indispensável que em primeiro momento nos deparemos com essa assustadora realidade, para incentivar o início de um processo educativo do olhar focado no presente, prepará-lo e torná-lo livre, pois é chegado o tempo de uma nova utopia na educação, como afirma Augé (2010, p. 108) que “deve ensinar a todos a sair do eterno presente fixado pelas imagens”. É preciso aprender a sair de si, a sair do seu entorno, a compreender que é a exigência do universo que relativiza as culturas e não o inverso. É preciso sair do cerco culturalista e promover o individuo transcultural, aquele que, adquirindo o interesse por todas as culturas do mundo, não se aliena em relação a nenhuma delas. É chegado o tempo da mobilidade planetária e de uma nova utopia da educação, mas só estamos no começo dessa nova história, que será longa e, como sempre, dolorosa. (AUGÉ, 2010, p. 109) Essa educação do olhar e dos sentidos é completamente fundamental para experimentarmos os espaços criticamente, para vê-los e imaginá-los, ocupá-los de forma livre e poética e nos conectarmos com o presente e experienciar o aqui e o agora. É assim proposto novas maneiras que pensar as cidades, de agir nos espaços, atravessando aparências, vinculando o que somos e sentimos, porque só assim nos transformamos. É urgente criar lugares para os sonhos.

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Os insetos agitam-me em processo de reinvenção. Movimentam e acionam o fazer preciso, por isso, formigo para construir um habitar provisório, um querer incessante.

eu sou um inseto O que importa não é o início ou o fim, mas a travessia. Guimarães Rosa

Encontrei o cruzamento essencial, pois o que há de inexplicável se dá entre. A maior (re)descoberta que obtive nos últimos tempos, digo isso como pessoa, como molusco ou como inseto, foi o meio. Nessa situação, você consegue imaginar o processo de transformação a que me submeto? Consegue deter a exata fração de segundo em que a metamorfose acontece? Quando estou com cauda de caracol, abdômen humano e antenas de formiga? Esse fragmento paralisado é o meio, o quase, apenas um pouco de um, mas não completamente outro. É um estágio entre o que ainda não é, mas pode vir a se transformar. É encarar o processo de travessia com a improvável proposta de (re)construção da concha, transformando o imaginável em corpóreo. Assumo o corpo de uma formiga colocando-me na função daquela que constrói, que tem estratégias de planejamento, paciência e resistência inventora. Acho que assumo essa segunda mutação porque acredito que ter vida é criá-la e recriá-la sem parar, e ninguém pode ter uma vida se não a criou para si mesmo. Em vez de ficar passiva e muitas vezes satisfeita diante de um mundo que não me agrada, resolvi criar outro, onde posso ser livre. Para inventá-lo mudo tudo, e de repente sou um inseto que impele uma carapaça. Talvez soe um tanto estranho, mas aqui a formiga deixa de edificar um formigueiro para construir uma concha, só que diferente do molusco que faz isso como única maneira de existir, a formiga o faz por

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adorar projetar mobiliários que reinventam suas memórias, seu cotidiano. O projeto da concha lembra minha casa feita de terra e de depósitos sedimentares empilhados manualmente em processo demorado. É a partir daí que começo a recolher ininterruptamente porções de vida triturada, substância terrosa de todas as coisas para estruturar silenciosamente a existência do caracol. Na procura desses elementos, percebo que a terra que pisoteio é matéria receptível, ela absorve presenças, e assim sensibiliza-me com as transformações contemporâneas enquanto sintomas característicos de uma sociedade em mutação, por não dizer em decomposição. Isso me apavora, pois cada dia que passa desloco mais e mais entulhos, na esperança tremenda de encontrar meus interesses e carregá-los até o formigueiro. Estocar inquietudes hoje em dia, já se tornou quase utopia. Elas são convertidas em coisas, utensílios, objetos, que facilmente saciam o vazio do ser, e quando seu prazo de utilização se esgota, freneticamente se preenche tal inquietação com um item substituto. É assim que deixamos de criar nosso mundo para sermos docilmente formatados por atmosferas prontas. Na condição de minha pequenez, é que muitas vezes me pergunto: O que há de errado? Até quando estaremos entorpecidos pelo consumo, pelo descartável? Será que somos feitos de algo material e funcionamos de forma mecânica para não percebermos tudo isso? Certa vez, vi um documentário no qual o escritor norte americano Thom Hartmann (1951-) apresentou uma metáfora que explica tudo: suponhamos que eu seja uma engenheira mecânica, posso pegar um carro que está em perfeito funcionamento, desligá-lo, desmontá-lo, espalhar as peças pelo chão e montá-lo de novo, dar partida e voltar a dirigir. Agora, se eu utilizasse um ser vivo, um cachorro no caso, repartisse em pedaços, mesmo que eu fosse uma boa cirurgiãveterinária e soubesse exatamente como costurar todos os pedacinhos, colocando-os de volta no lugar, ele não latiria. Ou seja, há algo fundamentalmente diferente entre máquinas e vida e o que me aterroriza é que estamos conduzindo nossa sociedade como se fossemos partes de uma máquina chamada Terra. Acho que ainda não assimilamos que existe uma diferença entre carne e aço, entre ossos e parafusos. Desse jeito desenvolvemos um planeta baseado na noção de que somos separados, porque cada um é uma peça específica da máquina e quando aparece outra peça com a mesma função, ela é adversária fatal. Construímos cidades aprimoradas no isolamento, casas de caixa de

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fósforo, estabelecimentos com repartição individual, salas cerradas. Produzimos educação moldada nessa noção e então honramos a independência e competição. Nesse reino a ordem é informacional, os fluxos são acelerados, as verticalidades produzem isolamento, segregação. É isso que isola você e eu, é isso que faz com que fiquemos apáticos em relação ao sistema político e ativos ao consumo. Só que essa realidade contradiz minha espécie, eu sou uma formiga agora e necessito de grupo, preciso de união para existir. Sou do reino da liberdade, onde existe ordem próxima comunicacional, lentidão, horizontalidade, presença e fazer solidário. Essa circunstância pode ainda ser chamada daquilo que Foucault (1999) identifica como “sociedade disciplinar”. Nela, cria-se indivíduos aptos a serem manipulados como um corpo dócil junto a prática de dois valores: o espacial e o temporal. No que diz respeito ao valor espacial, percebe-se que ele acontece nomeadamente nos espaços de confinamento como escolas, fábricas, igrejas e prisões, nos quais se produzem as noções de fronteira entre o dentro e o fora, entre o sucesso e o fracasso, e o sucesso é estar dentro. Uma vez disciplinado, o indivíduo não cessa passar de um meio fechado (escola) para outro meio fechado (fábrica, prisão), e é justamente isso que o valor temporal produz: um automatismo dos corpos, uma imposição do ritmo cadenciado, tal como uma linha de montagem de fábrica, em que cada sujeito reproduz sua função incansavelmente. Quer dizer, o espaço confinado e o tempo cadenciado são responsáveis por fabricar indivíduos disciplinados de acordo com a necessidade do sistema. O corpo torna-se apenas uma superfície de inscrição de normas e valores dessa sociedade que programa gestos, retira todos os vestígios de vontade própria, desqualificando a expressão. É assustador se pararmos para refletir sobre o impacto que tem a designação “espaço de confinamento” e ainda mais quando este é atribuído às escolas. Aquelas que estão no primeiro plano de formação de qualquer indivíduo, e que são submetidos por sua vez, a viverem de acordo com uma grade curricular. Será que existe coisa mais terrível do que aprisionar conhecimento em grades? Em separar disciplinas responsáveis por restringir o sujeito? Será que realmente existe ensino dentro dessa concepção encarcerada? É em uma entrevista no programa Provocações da Tv Cultura que o educador e escritor brasileiro Rubem Alves (1933-2014) assegura não existir ensino e sim aprendizado. Ele diz que o corpo deseja aprender porque precisa viver, conhecer e assim sugere uma escola não confinada,

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mas voltada ao cotidiano. Sua idealização parte da noção de que a escola desenvolva um currículo utilizando a casa como laboratório, construindo tudo o que se precisa para viver em primeira estância. Isso talvez seja semelhante ao fazer que tenho aqui, a reconstrução da concha sustenta a existência do molusco e resguarda a do inseto, é próximo aos dois como se fosse o orbe que os circundassem. É como se o sujeito fosse colocado no centro de uma cebola e para abranger sua exterioridade, primeiro necessita conhecer todos os seus anéis, tudo que lhe está próximo. É dessa maneira que a Escola da Ponte22, na cidade do Porto, Portugal, é aquilo que Rubem Alves (2001, p. 120) propunha: “É a escola com que sempre sonhei sem imaginar que pudesse existir... Mas existia em Portugal. Quando a vi, fiquei alegre e repeti, para ela, o que Fernando Pessoa havia dito para uma mulher amada: Quando te vi, amei-te já muito antes”. Essa escola não tem paredes, nem salas de aulas divididas, não tem programa oficial, nem grade curricular. Ela não tem aula, nem professores, nem notas, não existem campainhas separando tempo de pensamento. Pode parecer estranho conceber essa noção de escola bruscamente diferente do modelo tradicional, em que os alunos e professores rompem o sistema padrão de seriação de ciclos adotados, mas aqui, a aprendizagem acontece de forma diferente, ela se dá em pequenos grupos em torno de um interesse comum, no qual o professor auxilia a busca de informação, consolidação e aprofundamento. Foi assim que, em dado momento, a Universidade de Coimbra ficou encarregada de avaliar a Escola da Ponte. Mas, como avaliar uma escola que rompe o padrão disciplinar? Como entender essa quebra completa de parâmetros selados? Por decurso de várias entrevistas, a Universidade teve que esquecer tudo o que considerava acerca de escola, de ensino, e assim percebeu que os alunos sem programas são mais desenvolvidos. Na Escola da Ponte, cada um segue do jeito que pode, não se tem a linha de produção de fábrica como ideal. Eles são movidos mediante ao que o educador brasileiro Paulo Freire (1996, p. 28) acredita na Pedagogia da Autonomia: “Educar é como viver, exige a consciência do inacabado, porque a história em que me faço com os outros (...) é um tempo de possibilidades e não de 22

Surge na cidade do Porto, em Portugal em 1976 junto ao pedagogo José Pacheco com a intenção de respeitar as diferenças individuais dos alunos. A escola adota a lógica de projeto e equipe em torno de um único exemplo acabado de seus princípios: “uma escola democrática, para todos, em que dá o protagonismo ao aluno”, seguindo o pensamento do educador brasileiro Paulo Freire. 72


determinismo”. Sendo assim, a Escola da Ponte é um projeto para a vida, uma ponte para o mundo, e mesmo que seja incomum, por meio dela é possível enxergar que existem iniciativas contradizendo a sociedade disciplinada de que fala Foucault. É necessário então relacionar esse condicionamento mecânico que observamos na sociedade humana às formigas. Ao contrário do que comumente se pensa, as formigas não o obtêm. A formiga-rainha nada tem a ver com autoridade em uma colônia, ela apenas entende que o formigueiro é organismo e que cada formiga é uma célula essencial. Elas seguem em fila, respeitando uma milimétrica distância, um coordenado passo, porque simplesmente estão a todo instante brincando de siga o mestre. O que a primeira formiga da fila faz, as demais imitam. É uma brincadeira feita em forma de trabalho, de passeio, e se caso alguém cansar, simplesmente sai da fila e circula em outra direção à procura de uma linha de fuga. É importante esclarecer que toda formiga pode dissolver-se dessa sistemática brincante, pode desterritorializar-se. Assim, é que se levanta um valioso conceito, o de território, porque todo território só tem valor quando existe o movimento de partida, de saída. Não há território sem desterritorialização. A partir do momento em que a formiga sai desse território linear, sofre desterritorialidade, desmancha-se e desloca-se para outro lugar quebrando princípios, e uma vez nesse andamento, possuirá reterritorialização, marcada pela recomposição de valores próprios, incorporados e reconstruídos ao longo do percurso de desmoronamento primeiro. É desse modo que peço licença poética, na tentativa de refletir o conceito de território de Deleuze e Guattari (1996), por meio da organização das formigas. Os autores pensam a subjetividade por meio da desterritorialização, porque ela promove vida, trabalha com desconstrução, criação e recriação de deslocamentos. Por isso, tem-se a oportunidade de potencializar a construção de novos modos de vida e existência, promovendo linhas de evasão à qualquer regra. Logo, pensar em uma subjetividade desterritorializada e movente é destacar que esta é atravessada por cruzamentos que não a deixam ser capturada pela forma, mas se fazem presentes por meio de fissuras, afetos e dobras que fazem o mundo. Esses movimentos fomentam vidas que não são constituídas pela fixação, pois suas relações emanam do fora, dialogam com fronteiras, com percepções que extravasam. É como se a palavra nômade andasse pelo ar de maneira vaga e necessitasse apenas se tornar precisa. E ela, de fato, se

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tornou. As formigas praticam esse nomadismo, inventam uma geografia singular e densificam todas as coisas inapreensíveis. Como formiga, sou da terra, realizo desterritorialização. Meus deslocamentos penetram o solo, escalam as paredes e os tetos de todas as casas, e através de convergências descontinuadas gero condição para meu mundo comece. Esse mundo apresenta-se aqui como dobra que desacelera os movimentos infinitos, multiplica o espaço de dentro e de fora da concha (re)inventada, produzindo modos de expressão e subjetividade. Portanto, o que faço como formiga me cria continuamente como pessoa e caracol. Então, por favor, esqueça estereótipos. Eu não trabalho ininterruptamente, nem tampouco fechei a porta na cara da cigarra, negando comida e abrigo no inverno. Tal como a cigarra, eu também tenho tempo de ócio, momentos em que toco guitarra e cantaroleio a vida. A questão é que se precisa inverter a rota conhecida e confiar que a regra mais importante de uma educação formigante é não ganhar tempo, mas gastá-lo. É por isso que friso minha preferência por caminhos de terra batida, mesmo já sabendo que quem gosta de avenidas não vai apreciar isso. Se você for um daqueles que prefere asfalto, talvez escolha fechar esse livro e deixar de lado tais concepções que vão contra os preceitos que vivemos. Caso você opte por continuar, saiba que aqui procura-se desconstruir uma história, para então reconstruí-la repetitivamente, na medida em que achar necessário. É um fazer que entra nos poros da terra e percorre o planeta entre as correntes dos rios, dos mares, oceanos e sonhos. Conduzo então, para o segundo mapa-memória Eu sou um inseto, que propõe essa (re)construção.

superfície entrópica: chão Certa vez, um sonhador23 me disse que o projeto de pesquisa Pequeno Experimento de Mundo #1: Compartimento de Estar e Partir era feito muito mais para mim do que para qualquer outra pessoa. Acho que a partir do momento em que inicio a recolher figuras da imaginação e desenhos do papel para construí-lo fisicamente, começo a confiar em tal alegação. É estranho como essa observação me paralisou e fez com que escutasse o quão 23

Chamo de sonhadores os seres que parecem pertencer a outros mundos, não só aparentam, mas de fato têm seu próprio universo e a incrível aptidão de permanecer em mim. Tem viajante que fica nas pessoas, tem pessoas que ficam nos viajantes. 74


espaรงo reservado para suspiros de pensamento




ou efervescĂŞncias


fabuloso é o perceber de quem olha de fora, de um dentro profundamente diferente do meu. Tudo é questão de percepção, é ela quem faz o(s) mundo(s). Ela pede, requer e genuinamente segue o leitmotiv24 que o artista espanhol Antoni Muntadas (1942-) utiliza em seus trabalhos artísticos: “Atenção: Percepção requer envolvimento”.

Figura 8: Atenção: percepção requer envolvimento, Antoni Muntanas.

O filósofo francês Michel Serres (2013, p. 85) afirma “a percepção muda o percebido (...) quanto mais percebemos, mais o mundo existe”. Mas, o que é percepção? Como ela age para ativar o percebido? Para o pensador, é possível designá-la como uma fusão do sentir e do sentido, ela recebe, emite, trata e armazena a informação. Através dela, é possível e preciso ir contra a entropia do mundo, porque ver o mundo nos torna encantados, e, se nossa percepção realmente percebesse, nós faríamos com que o mundo também se tornasse encantado. É justamente a potência de perceber os seres que encheos de ser. É como se cada coisa, cada ser, carregasse consigo códigos e universos esperando serem ativados, aguardando que deixemos de viver como partes separadas, como cabeças-planetas sobre pés de barro. Talvez, esteja aí o reflexo mais intenso de uma cidade feita de ausências, onde tudo, de repente, torna-se apenas horizonte. Serres (2013, p. 87) articula que é preciso que o “objeto se torne sujeito”, deixando de ser passivo, inerte, para transformar-se através da percepção, em um objeto-sujeito cheio de pensamento. É dessa maneira que a concha (re)inventada aparece, como um espaço a ser criado que assume uma postura singular na cidade. Ela comprova o que já referido anteriormente por Oiticica, a noção de transobjeto e crelazer, tornando-se uma estrutura 24

Leitmotiv (do alemão motivo condutor ou motivo de ligação) é termo composto, expressão idiomática utilizada para significar genericamente qualquer causa lógica conexiva. 75


com princípios próprios, que não cabem mais ao sujeito criador e sim o orbe. A carapaça descolada do caracol é um objeto-sujeito que oferece espaço interno e externo de percepção, e, para mergulhar nela, é apenas preciso querer habitá-la, para então, observar todas as coisas situadas ao seu entorno. Porém, sem mais demora, antes de devanear sobre sua disseminação, primeiro preciso aprontar o terreno de sua criaçãoconstrução, evidenciando momentos em que estabeleci habitação no pensamento, enquanto sua matéria ainda não havia tomado forma. Diante e adentro do relato do sonhador, considero que a partir do instante em que começo sua construção, tudo se altera. Ela começa a conquistar vida própria, ela não é mais minha. É neste exato momento que desperto consciência, pois, na medida em que a projeto, quanto mais inteira sua estrutura se faz, menos minha ela é. É complexo aclarar isso, pois como pode algo emanar do próprio ser e nesse entremeio, deixar de ser seu? Pois foi exatamente assim que ocorreu, tive que transformar meu pensamento em corpulência para conhecer a concha, reconhecer-me, recriar-me. Não sei explicar muito, mas às vezes acho que sou uma prateleira vazia que espera inquietudes de lugares e pessoas para guardar, para me encher. E o que me enche de ser, é exatamente o que exala matéria para construir a carapaça. Uma casca feita de encantamentos. Desse jeito, é substancial as palavras de Manoel de Barros (2006, p. 28) no poema intitulado “Sobre importâncias” pois a “importância de uma coisa não se mede com fita métrica, nem com balanças, nem barômetros, a importância de uma coisa há de ter medida pelo encantamento que a coisa produza em nós.” E foi assim pela percepção que decidi arquitetar esta proposição, pois o Compartimento de estar e partir é hoje o cais que sustenta minha pele. É verdadeiramente indispensável que haja essa tal necessidade no ato da criação artística, ou do contrário, não há nada. É assim que Deleuze (1987, p. 3) argumenta: “o criador não é um ser que trabalha por prazer. O criador só faz aquilo que tem absoluta necessidade.” Assim como é difícil desvendar o processo de emanação de um caracol, toda insuficiência criadora é capaz de gerar dificuldades explicativas sobre o porquê dos artistas conceberem obras, sua interpretação, seus confusos impulsos motivadores e conceitos que não existem prontos em um mundo não acabado. É preciso fabricá-los. É preciso imergir no desejo e no fundamento da criação artística para tomar um rumo no que diz respeito ao anseio de construir, formigar.

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Pois então, imediatamente pergunto: Por que estou formigando? Da onde surgiu o querer construir? Por que devo realmente construir?! A vontade de criação se deu mediante a fissuras potentes dentro do meu ser (mais informações: mapa-memória Eu sou um Molusco), era como se existisse uma placa tectônica abaixo de mim, e aonde quer que eu fosse, ela se movimentava e interagia aumentando a atividade geológica na distância entre o que eu era e o que poderia ser. Em um intervalo de dois anos pude desmanchar, pude fazer minha história se movimentar. E de fato, tudo se torna determinante conforme as experiências de mundo de quem propõe aventurar-se como artista. Existe algo que contamina. É como se eu estivesse literalmente infeccionada, e, durante o processo de penetração e desenvolvimento deste microrganismo invasor, fico inflamada, em estado implosivo, ardentes de pensamentos tóxicos. Para já, penso que estou intoxicada desde que nasci. Penso que chegou o momento de extrair todas as implosões. Dentre as formas que encontro para explodir, aglutino desenhos, fotografias, colagens, montagens, pinturas, ficções e ações que variam inexoravelmente entre diversos territórios. Torna-se significativo então, trazer Nicolas Bourriaud (2003, p. 77) na ocasião em que sustenta a ideia do artista contemporâneo como aquele que habita toda forma de arte. Ele se torna um intruso em todos os campos, selecionando signos, explorando espaços de produção, manipulando e construindo trajetórias entre eles. “Não é mais criar, mas surfar sobre as estruturas existentes”. É assim que Bourriaud desacredita no termo “interdisciplinaridade” frequentemente utilizado na arte contemporânea, pois ele não crê que ainda exista, nesse nível de criação, algo que possamos chamar de disciplinas, para ele existem apenas campos de signos de produção que os artistas exploram. É em vista disso, que acredito que a corrente proposta de criação-construção é uma condensação de tudo aquilo que já propus experimentar navegando sobre essas estruturas existentes. Propriamente, antes de condensar tal proposição, fiz o caminho contrário. Recordei para me entender. Revivo agora, para me conhecer. Foi justamente o que um sonhador25 preveniu: eu estava em estado de ebulição. Estava armazenando efervescências a ponto de explodir. Era como se estivesse vivido 10 anos à minha frente, em um curto espaço de tempo e no retorno, tudo a minha volta permanecia como se estivesse passado apenas 25

Sonhador Miguelângelo Corteze.

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um dia. Eu necessitava digerir, carecia ebulir minhas experiências para elaborar algo. Algo que verdadeiramente fizesse sentido para mim. É então que procuro um território e aos poucos, parto de um recolhimento que em todos os momentos estou em processo, em obra. Portanto, como consequência, confio que em simultâneo encontrei e ainda estou em contínua busca sobre o cerne do desejo de formigar. E, talvez, tal como a rosa celebra sua existência se despedaçando, pétala por pétala, e a nuvem celebra chorando, eu, admito celebrar significado na proposta de criação-construção de um dispositivo móvel condensado de experiências, um compartimento dotado de potências simbólicas, um abrigo poético capaz de inventar um outro espaço para arte, em que é ferramenta de transformação. Essas camadas concentradas de experimentação, de dobras vividas, formam um todo multifacetado26, em que as linhas percorrem diferentes direções, aproximando-se e se afastando uma das outras, gerando um processo em constante desequilíbrio. É esse processo que engloba a criaçãoconstrução do dispositivo móvel em questão, sendo possível desemaranhar suas linhas criativas, mas, para que isso aconteça, é essencial que se instalar sobre elas, pois elas não se contentam em somente compor o dispositivo, mas atravessam-no, deslocam-no, em todas as orientações possíveis. Logo, se proponho desemaranhar e clarificar tal criação artística, prontamente interrogo: O que é um dispositivo? O que ele é capaz de produzir em nós? De imediato, utilizo o conceito que Deleuze (1990, p. 159) propõe, em que os “dispositivos são máquinas de fazer ver e de fazer falar”. Essas visibilidades para Deleuze são como relâmpagos, reverberações e cintilações, que naturalmente não se referem à luz habitual, que ilumina coisas pré-existentes, mas alude à luz que tem capacidade de cultivar figuras variáveis e inseparáveis do dispositivo, criando ambientes de enunciação,

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No ensaio “¿Que és un dispositivo?” Deleuze considera dispositivo como um conceito operatório multilinear, alicerçado em três grandes eixos que, na verdade, referem-se as três dimensões que Foucault distingue sucessivamente: saber, poder e (produção de modos de) subjetivação. Essas linhas não são curvas e regimes que demarcam limites rígidos de um de um sistema ou de um objeto; pelo contrário, elas os desestabilizam (tanto como sistema, quanto objeto), os fazem tornarem-se suscetíveis a movimentos de contínua acomodação quanto às tentativas de efetivar “processos singulares de unificação, de totalização, de verificação, de objetivação e subjetivação” (DELEUZE, 1900, p. 158) 78


apta de derivar e transformar tal visualidade. Essas linhas de forças traçam tangentes, envolvem trajetos, operam idas e vindas entre o ver e o dizer. Elas criam o poder de relação do saber, não como causa e consequência, mas por meio de uma relação de mútua dependência, de articulação recíproca, de entrecruzamento entre o visível e enunciável que concede a condição de existência do dispositivo. É assim que Foucault (1979) amplia o conceito de dispositivo, aclarando a noção multilinear em uma entrevista que presta à Internacional Psychoanalytical Association (IPA) como: Conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais filantrópicas. Em suma, o dito e não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre esses elementos (FOUCAULT, 2000 p. 244). Portanto, assim como uma rede é composta pelos nós que conectam suas linhas, igualmente a arte contemporânea propõe uma união com aquilo que de fato experimentamos, uma arte próxima ao cotidiano, aos nãolugares, que vai ao encontro do público, com presença, determinada a provocar novas formas de fazer, de pensar e estar, como também novos jeitos de receber, entender, participar e enunciar. É essa condição heterogênea da arte, a qual as fronteiras de linguagens aparentam a cada dia mais se diluir, que pede por artistas também mestiços, variegados, artistas que se propõem a assumir papéis múltiplos. Por isso, torna-se valioso o termo que o artista, professor e crítico brasileiro Ricardo Basbaum (2013) criou, o conceito do artista-etc: Quando um artista é artista em tempo integral, nós o chamaremos de “artista-artista”; quando o artista questiona a natureza e a função de seu papel como artista, escreveremos “artista-etc”. (de modo que poderemos imaginar diversas categorias: artista-curador, artista-escritor, artistaativista, artista-produtor, artista-professor, artista-químico etc). (BASBAUM, 2013, p.167) Reconhecer-me então, como uma artista-etc ampara o termo cujo sentido se sobre-compõe em várias camadas, fazendo chão àquilo que quero desvendar no processo de emanação. Talvez criar esse alicerce seja o único meio de partida para descobrir o objeto-sujeito que toma seu lugar próprio, que cria seu mundo e consequentemente (re)inventa o cotidiano.

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pisoteando o mundo como quem tropeça Para relatar o processo de (re)invenção do dispositivo móvel, acredito ser crucial enfatizar que este nem sempre teve forma e pensamento de concha. A carapaça surge como uma união de distintas proposições urbanas, quando me sentia estrangeira, sem território. Ela perpassa solicitações de pausa urbana, procura de lugar, e o descobrimento de uma identidade construída por percursos. Certamente, tudo toma início quando habito o outro lado do oceano, e aos poucos começo a perceber a cidade feita de sensações fugidias, que escapam aos olhos, às palavras. Eu precisava sair do lugar, reposicionar-me e deslocar minhas certezas. Só que infelizmente isso não é tão simples assim, porque temos cada vez menos curiosidade e disponibilidade, estamos cheios de uma velocidade exacerbada que não tem e nem busca sentido. É assim que esquecemos de indagar a nós mesmos o que estamos fazendo aos nossos territórios e o quão nativos e estrangeiros somos destes. Entretanto, com tal particularidade, o geógrafo brasileiro e pensador de espaços Milton Santos (2001) sustenta essa preocupante condição: O mundo de hoje parece existir sob o signo da velocidade. O triunfo da técnica, a onipresença da competitividade, o deslumbramento da instantaneidade na transmissão e a receptividade das palavras, sons e imagens e a própria esperança de atingir outros mundos contribuem, juntos, para que a ideia de velocidade esteja presente em todos os espíritos e a sua utilização constitua uma espécie de tentação permanente: Ser atual ou eficaz, dentro dos parâmetros reinantes, conduz considerar a velocidade como uma necessidade e a pressa como uma virtude. (SANTOS, 2001, p.1) Como indivíduos contemporâneos somos em primeiro lugar passageiros. Estamos em permanente movimento, cada vez mais longe e mais rápido. É a velocidade que determina o olhar que temos pela cidade e sobretudo, como todas as coisas se apresentam a nós. Peixoto (1995) reclama que neste mundo onde tudo é produzido para ser visto, onde tudo se mostra ao olhar, o ver se torna necessariamente um problema. Como podemos olhar quando tudo ficou indistinguível? Como reparar quando tudo parece ser idêntico? Nossas cidades cada dia mais seguem um protótipo do globo-lar, casas modelos, parques arquétipos, monumentos reproduzidos, multinacionais regendo estabelecimentos padrões. O mais lastimável dessa globalização que globaliza mais empresas que propriamente

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os homens, é que quando viajamos parece não termos saído do mesmo lugar donde estávamos. De que maneira criamos nosso mundo se tudo é tão incansavelmente similar? É talvez por este “achatamento da paisagem” que Peixoto (1995, p. 2) apresenta que o olhar do estrangeiro é tão raro. “Aquele que não é do lugar, que acabou de chegar, é capaz de ver aquilo que os que lá estão não podem mais perceber”, o olhar do estrangeiro implica descobrir um sentido que toma o indivíduo, pelas relações e paisagens. “Uma das encarnações mais recentes do estranho, do recém-chegado, é aquele que retorna”, depois de fugir do mundo, ele volta a resgatar o que antes era banal, para extrair daí uma identidade do lugar. Foi me sentindo completamente estrangeira em terras lusitanas que resolvi buscar descontinuidade, uma desaceleração referente à mobilidade infatigável das cidades. É propondo a ideia de descolonização, aquela que provoca olhar o mundo com os próprios olhos, pensá-lo de um ponto de vista particular e entender que o centro dele está em todo lugar, que exponho a ação-fotográfica realizada propositalmente na margem do rio Tejo, em Lisboa, Portugal, no ano de 2013. O referente trabalho artístico é intitulado como Pausa, -feito vírgula- e surge a partir de indagações sobre a incessante fluidez, de como acreditamos em informações obtidas cegamente, e de que maneira a linguagem (podendo ser aqui interpretada como mídia, história, ciência, crença) é capaz de nos guiar, sem criarmos um momento de pausa para de fato nos descolonizarmos. Como consequência, reeditei o sinal de pontuação vírgula, com a finalidade de redirecionar sua posição, criando uma verdadeira pausa na paisagem urbana, vinculada a sua função dentro da escrita e leitura, marcando pausas, esclarecendo significado da frase (contexto), afastando ambiguidades, enfatizando ou separando expressões. Sua presença (ou ausência) pode alterar completamente o significado. É evidente que ultimamente a vírgula e seu respiro são em completude necessárias. Em 2014, junto ao curso Estudos Artísticos da Universidade de Coimbra, desenvolvi uma ação-experimento intitulada Área de pessoas perdida. Seu fundamento é baseado na condição de imigrante e intercambista que não havia encontrado ainda o sentimento de pertencimento ao lugar em que morava. Eu estava perdida e carecia encontrar um espaço. Então fiz um cartaz, coloquei-me à disposição de

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construir uma pausa urbana, ir além do valor de troca com os habitantes que transitavam pelo centro histórico da cidade de Coimbra. Ali acreditava estar ampliando minhas possibilidades e respondendo às necessidades intrínsecas do meu ser. Confiei verdadeiramente em estar fora do lugar com pontualidade e exatidão.

Figura 9: Pausa, -feito vírgula- (2013) Mariana Corteze. Lisboa (PT).

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Figura 10: Área de pessoas perdidas (2014) Mariana Corteze. Coimbra (PT).

Junto a essa ação-experimento, confio ser conveniente pensar a cidade e indivíduo por meio de uma prática artística, e então, trago a referência do artista belga Francis Alys (1959-) que ampara sua pesquisa poética na busca de responder “esta entidade urbana desumana”, tentando compreender como a sociedade funciona e como as pessoas inventam maneiras de existência que justifiquem sua presença nas cidades. Isso o levou a questionar o papel do contexto urbano e o quanto ele pertencia ou poderia compartilhar dessa dinâmica. Essas questões ganharam forma na ação artística Turista (1994), na qual intervê na capital mexicana ao lado de outros profissionais, disponibilizando seus serviços como turista, criando assim uma descontinuidade cotidiana, afirmando e testando sua condição de estrangeiro. Viver dois anos na posição de estrangeira me proporcionou o entendimento de uma estadia sem lugar, em que só arranjava significado no efeito da via infinita, e é da via que hoje retiro meu ser. Ser sem princípio e sem fim, sem morada, ser que colhe e leva em viagem. A condição espacial adentrou meu ser, e, a partir dali, tornava-me forasteira de mim mesma. Foi dessa maneira que surgiu a ação-fotográfica Mergulhando em mil sujeitos

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(2014-), mapeando modos de estar, gerando uma relação irredutível com os espaços, os percursos, e por meio disso, buscando uma certa identidade pessoal que se apoia nos constantes movimentos de perda e encontro. Essa proposta é absorvida pelo contexto, espaço impuro e ordinário do cotidiano, acontecendo em espaço real, onde o objeto de arte é uma experiência singular no aqui-agora. Ela parte de um percurso habitual, que descobre, ao acaso, uma maneira de encontrar-se em um novo sujeito. A proposição trata de retratos mensais em 3x4, nomeadamente no dia 29 de todo mês, em que cada fotografia é tirada à maneira que um fotógrafo desconhecido deseja, como: posição, enquadramento, trejeito, expressão, aspecto, espaço, cor, sombra, luz. À vista disso, busco de fato mergulhar nas intenções daquele que fotografa, pois quando chega dia 29, procuro alguém que se disponibilize a retratar em mim sua própria profundeza. As experiências caminhantes questionam a identidade do viajante, agregam valor ao estrangeiro. A estadia em um lugar tem sentido no ato, no processo ou no retorno? Os valores de direção que tomo instaram um espaço e um sujeito? Como viajante, eu realmente tenho percepção ou apenas guardo? A prática do espaço altera minha identidade? Os lugares repercutem em mim? Posso entender experiência como uma geografia de ações? É assim que modestamente acredito que pelo simples ato de ser fotografada ao gosto daquele que manipula a câmera, posso não fugir mais, mas encontrar-me de alguma maneira.

Figura 11: Turista (1994) Francis Alvys.

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Figura 12: Mergulhando em mil sujeitos (2014-2015) Mariana Corteze. Porto; Coimbra (PT), Atenas (GRE), Dubin (IRL), Paris (FRA), Porto Alegre; de Maio; Pelotas (BR/RS), São Bento do Sul; Rio Negrinho; Balneário Camburiú (BR/SC).

Em decorrência de uma viagem, na qual estava em processo a ação Mergulhando em mil sujeitos, encontrei no meio da rua, de repente, uma invenção que verdadeiramente provocaria todas essas incertezas. Foi na França, em julho de 2014, sem saber explicar como e porquê, uma bicicleta amarela dobrando a esquina prendeu meu olhar.

Figura 13: Bicicleta amarela (2014) Mariana Corteze. Paris (FRA).

Era uma engenhoca que desfilava pela rua e sua presença subitamente me fez sentir semelhante. Talvez seja pela desvergonha e audácia do sujeito que a orientava ou pelo desafio de sua construção improvável. Não sei. O fato é que ela me fez lançar questões sobre a necessidade de impulsionar um projeto que revelasse uma verdade profunda sobre minha existência, sobre

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aquilo que me move e atravessa. É, eu não poderia mais me esconder daquilo que me movia, penso que tinha chegado o momento espontâneo em que me daria conta do que devia fazer. Foi então que esse encontro fez reviver de alguma forma minhas memórias, me fez sentir o quanto eu carecia sustentar meu pequeno próprio mundo onde os espaços percorridos fossem potência, e assim, poderia singelamente assumir a certeza da tentativa na construção do meu espaço móvel. Essa situação desdobrou viagens sobre minha história, fez-me entender que não poderia fazer outra coisa, senão a concha. Precisava novamente desconstruir um espaço, para (re)fazer outro (mapa-memória Eu sou um inseto) e na feitura da concha, já sabia que também me reconstruiria. É esse processo de sensações acompanhadas de tropeços que referi anteriormente. A concepção da concha só nasceu quando sofri um embate, uma colisão violenta que respingou impulsos desconstrutivos. Ao mesmo tempo em que aceito sua (re)construção, percebo brotando uma dimensão que me fascina e incapacita, porque acredito na possibilidade de sua construção, mas sei que por ventura, sua proposta pode não ter êxito. Porém, essas inconstâncias são apenas o início de uma base desassossegada de mais uma carapaça que surge no mundo.

diário de (re)invenção “O mundo só é possível porque a gente inventa”, é isso que uma sonhadora27 me disse quando estava prestes a deixar tudo de lado, não só os desenhos, idealizações e esquemas, mas o próprio promotor desse trabalho. O fato é que o que menos está fazendo esse projeto de conclusão de curso é concluir, porque na verdade ele está questionando tudo o que já fui, o que sou e o que caminha comigo depois dessa reflexão. Ele está introduzindo um furacão em mim. Para já, não sei dizer porque permaneci, não encontro significado explicativo que possa acalentar qualquer dúvida. Porque antes de tudo, eu já sabia que esta proposição era desafiante, geraria medo, ansiedade, vontade de que tudo se pulverize a pó. Entretanto, só sei que agora começo a relatar o processo da minha (re)invenção e, nesse processo, 27

Sonhadora Helene Sacco.

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tudo se deu por meio de recolhas. A recolha de cada objeto, cada detalhe do dispositivo é também algo perdido em mim. Foi encontrando fragmentos de vida que senti o formigamento tomar conta do meu ser, mesmo tendo plena consciência de que muito daqui é baseado em utopias. Acho que sinto coceira por utopias, e para acalmá-las preciso injetar algumas doses de vez em quando. É por isso que a (re)invenção da concha poderia ser apenas uma proposta, mas não é. Ao apresentar a ideia de construção do Compartimento de estar e partir a outros, enquanto ele nem mesmo existia fora da imaginação, sei que muitos desacreditavam, a maioria para falar a verdade. Talvez esteja aí o princípio da dificuldade de “explicar o que quero fazer”, porque isso é deveras indizível. E mesmo que eu faça relações, analogias, conecte valorosos conceitos e ilustrações possíveis para tentar aclarar esse fazer, sei que elas se aproximam à essência da concha, mas não dizem em plenitude o que ela é de fato. Foi enfrentando o desafio de sua construção que entendi o que realmente importava, e o que importava era o processo, aquilo que acontecia entre a ideia e a materialidade. Essa importância, talvez se relacione ao coeficiente artístico de que fala o artista francês Marcel Duchamp (1887-1968), constituindo-se como um mecanismo subjetivo na produção de arte. No ato criador, o artista passa da intenção à realidade através de uma cadeia de sensações totalmente subjetivas. Sua luta pela realização é uma serie de esforços, sofrimentos, satisfações, recusas, decisões que também não podem e não devem ser totalmente conscientes. (DUCHAMP, 1975, p. 73) O coeficiente artístico abarca o que é inexpresso embora intencionado, e o que ao mesmo tempo, é expresso não-intencionalmente. É justamente isso que alicerça o ato de criação na arte. No entanto, a concha (re)inventada começou a reverberar esses processos de realização a partir do dia 25 de janeiro de 2015, em São Bento do Sul, Santa Catarina, quando começava a escolher sua matéria-prima que se confundia entre madeira28, parafuso, movimento29, memória e sonho.

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Compensado naval de virola de 12mm e outro de 3mm flexível para fazer a abertura curva. Movimento diz respeito à duas rodinhas de aro 16 de uma antiga bicicleta do meu padrinho, que formam o reboque e sustenta a concha. O encaixe do reboque é feito na bicicleta Brisa pelo aro traseiro, com um pivô de direção. 87 29


Figura14: processo de (re)invenção (2015) Mariana Corteze. São Bento do Sul (SC), Três de Maio (RS). 88


É tão extraordinário perceber que aos poucos a carapaça estava existindo fora do meu pensamento. Seus desenhos começavam a orientar os caminhos, as projeções, a forma. Durante sua estruturação surgiram numerosos questionamentos vindos daqueles que me acompanharam, como: “Ainda não entendi para que serve isso, pode me dizer?”, “Por que você está construindo?”, “Um curso de artes não se detêm a estudar obras renomadas?”, “Você precisa inventar algo para escrever a monografia? Não é melhor fazer um estudo de caso?”, “Qual a utilidade disso que você constrói? Ou melhor, a arte tem utilidade?”, “Como isso se chama?”, “Esse invento faz o quê?”, “Você não pode apenas fazer uns desenhos, umas pinturas para concluir a universidade?”, “Por que você não pensa em um projeto mais simples, menos trabalhoso?”, “Vai fazer tudo isso somente para a graduação? Sério?”, “Quer um conselho? É sempre melhor ir pelo caminho mais fácil, viu?”. Foi um verdadeiro redemoinho de estranhamentos causados pela corporeidade da concha. E é aqui, portanto, que retomo Valéry (2011, p. 108) para pensar um pouco mais sobre o fazer do artista, ou como ele indaga: “por que foi feito esse objeto?” e “para que serve, digo, aquilo que os artistas produzem?” Na sociedade em que vivemos, a valorização do ter domina qualquer experiência. Então, quando surge um objeto que não demonstra utilidade às práticas do fluxo de ausências, ele não se encaixa na regra, pois nesse mundo usa-se exclusivamente objetos com finalidade e deixa-se de inventar novas funções, de refletir sobre o conteúdo dos utensílios que mantemos relação. É assim que a arte vem sendo questionada há muito tempo sobre seu saber e sua utilidade. Só que quem questiona é muitas vezes quem não se permite ter um tempo de experiência, de sensibilidade para com as coisas que encontra. E mesmo que meu objetivo aqui não seja discorrer sobre a função da arte, acho importante afirmar a convicção que tenho sobre suas múltiplas finalidades no que diz respeito àquilo que temos de mais valoroso, nossa ação subjetiva. É por isso que é tão delicado tocar nesse assunto, pois aceitar o subjetivo varia conforme tempo, espaço e experiência singular. À vista disso, a finalidade da arte contemporânea não se restringe a produzir algo útil ou belo, porque ela é simplesmente muito mais do que isso. A relação com a arte deve desaguar na crença de mundos possíveis. É ela quem atribui compreensão do mundo real por meio de transformações simbólicas. O artista cria um mundo outro, mais intenso, mais expressivo, paralelo à realidade, para aí protestar suas inquietudes, dando a ver com

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olhos subjetivos o que realmente lhe toca. É assim que concordo com Valéry (2011, p. 108) quando afirma que aquilo que os artistas fazem pertence a uma espécie singular de existência, pois “nada o exige, nada de vital o prescreve”, e a ideia de colocarmos tudo enquadrado na concepção do útil faz não enxergarmos além dessa noção, que não abarca sentido algum fora do homem e de sua pequena esfera intelectual. O ínfimo exemplo da casca que começa a tomar forma, é capaz de ilustrar a dificuldade que temos de sair da máquina que não comete desvios incalculáveis. Portanto, a arte aqui é compreendida como resistência, fundando lugares sensíveis para residir. Ao afirmar essa relevância da arte para desencaminhar, deseducar a disciplina regrada e maquinal, é que aproximo o entendimento da pesquisadora brasileira Kátia Canton (2009). Para que serve a arte? Para começar, podemos dizer que ela provoca, instiga e estimula nossos sentidos, descondicionando-os, isto é, retirando-os de uma ordem preestabelecida e sugerindo ampliadas possibilidades de viver e de se organizar no mundo. (CANTON, 2009, p. 12) Canton articula sobre a necessidade de desaprender os princípios das obviedades que são atribuídas aos objetos e às coisas. E talvez, quando formos capazes disso, estaremos esmiuçando o funcionamento dos processos da vida, desafiando-nos e criando novas possibilidades. Pois a arte pede um olhar curioso, livre de “pré-conceitos”, e repleto de atenção. Então, será que não chega de tanta finalidade? De adquirirmos objetos prontos? De vivermos dias úteis, repletos de produtividade a todo instante? E, por meio disso, será que não estamos carecendo de espaços inúteis? De dias inúteis de fato? Lugares de errância? De pausa? Metalugares que possibilitassem o início de um processo de emancipação da máquina? A independência subjetiva surge das mínimas coisas. Foi pensando desse modo, que diante de todas as perguntas citadas, resolvi deixar o nome e a função da concha em aberto, para que essas perguntas fossem, em parte, respondidas pela própria curiosidade daquele que observava e experimentava. Com o passar dos dias apareceram denominações e atribuições curiosas, como: geringonça, engenhoca de recolher demora, cabine de fecundar mente, caixa móvel, gabinete de curiosidades, mecanismo de apreender mundos, dispositivo movedor de memórias, dirigível de ideias, camarote de devaneios, aparelho óvni, artefato portátil, ferramenta inconstante. Penso que eu estava mais interessada em ouvir o

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que as pessoas tinham para falar, do que explicar meu objetivo, ou seja, a ideia era provocar uma reação, não induzi-la. E mesmo que eu tenha atribuído um suposto nome à carapaça (como Compartimento de estar e partir), ela é na verdade, um pouco de todas essas interpretações, pois a concha é o que você e eu inventamos dela. Ou talvez, por assim dizer, o que ela também inventa em nós. Para dar luz sobre o que deve ser entendido por (re)invenção da concha, trago Kastrup (2007, p. 27) quando se refere à etimologia da palavra latina invenire: sendo aquela que indica encontrar relíquias, restos arqueológicos. Esses fragmentos encontrados apontam para um caminho que não é facilmente enxergado, pois (re)invenção implica duração, recomposição incessante. “É uma prática de tateio, de experimentação, e nessa experimentação que se dá o choque, mais ou menos inesperado, com a matéria”. Assim, acredito que esse fazer carrega consigo (re)descobertas, problematização de estruturas ativas e proliferantes, que trazem consigo um buraco negro capaz de demonstrar a infinitude do ser, mas não sobre o que é, mas aquilo que irá devir, dissipar. Trata-se sempre de por seguir caminhos de vaivém, inventar problemas e produzir soluções, sem abandonar a experimentação. (...) É o exercício de coragem prudente. É desconfiar das próprias certezas, de todas as formas prontas e supostamente eternas, e portanto inquestionáveis, mas é também buscar saídas, linhas de fuga, novas formas de ação. (...) A incerteza será sua força, não sua fragilidade. (KASTRUP, 2007, p. 238) Contudo, é assim que (re)invenção da carapaça acontece, em um processo imponderável. E ainda bem que não existe uma teoria da invenção, porque se existisse, saberíamos o resultado e a característica da imprevisibilidade que toda invenção contém, estaria perdida. Nesse percurso se produzem formas de sensibilidade, de pensamento, de desejo, de ação e a (re)invenção torna-se a construção de modos de relacionamentos comigo mesma e com o mundo. É assim que toda construção é então paradoxalmente aprender a desconstruir (verificar mapa-memória Eu sou um inseto). Dessa maneira, trago o artista norte americano Simon Starling (1967-) com o trabalho Shedboatshed (Arquitetura móvel nº2)30 (2005), no qual se desenvolveu assim: o artista encontrou um velho galpão de madeira nas 30

Esse projeto lhe rendeu o Prêmio Turner de 2005, o mais prestigiado prêmio de artes visuais da Grã-Bretanha. 91


margens do rio Reno, o desconstruiu, fez um barco com partes da madeira, em seguida usou a embarcação para se transportar rio abaixo para Basileia (Suíça) junto com as peças restantes. Lá, desmontou o barco e reconstruiu o galpão na sua forma original dentro de um museu. Logo, era possível andar em seu espaço sombrio, perceber a luz verter pelas fendas inábeis e gradualmente atribuir sua aparência estilhaçada à essa dupla metamorfose.

Figura 15: Shedboatshed (2005) Simon Starling.

Starling é um artista de viagens, e pensa seu trabalho como “manifestação física de um processo de pensamento”, em que claramente se preocupa com o espaço, ambiente e o desejo de questionar o descartável. O artista apresenta a Arquitetura móvel n°2 em forma cíclica, de modo a retornar à sua forma original mesmo depois das mutações, ou seja, seu trabalho é um acontecer construtivo e a obra se faz enquanto acontece. Essa lógica poética se caracteriza com um princípio insólito do que entendemos por criação: transformação e refabricação. Isso confronta as pressões da contemporaneidade, a produção em massa, o capitalismo global e a obsolescência programada. É assim, portanto, que faz uma declaração contra essas determinadas condições sociais, a partir do momento em que se concentra em uma estrutura já existente e, por meio dela, transforma seu percurso, sua história, seu espaço, evidenciando a existência de uma maneira de destruir a realidade, de transformar também nossa condição de perceber o mundo. Logo, sua obra é um objeto desconstruído e incoerentemente pronto. À vista disso, em que medida a desconstrução é necessária para a criação? Será possível entender o valor simbólico da reconstrução do Compartimento de estar e partir? Sabendo que ele segue outra ordem, diferente da lógica do mercado? Essa noção se dá entre uma forma e outra, entre a recomposição de algo, transferindo espaços, matéria. É um jogo de referências, deslocamento geográfico e pessoal, correspondências culturais, repercussão de afetos e acumulação de vida. Portanto, o que faço na concha

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é na verdade uma remontagem própria, capaz de carregar interesses moventes e responsáveis pelo fazer sensível, concentrando-se entre janela, teto, correio, porta-retratos e um dirigível (consultar mapa-memória Eu sou um molusco). Durante o andamento da (re)invenção, a concha era moldada, lixada e consequentemente deixava fugir resquícios a sua volta. Foi assim que aconteceu algo verdadeiramente fascinante, quando reparei sem querer no meu pequeno irmão juntando do chão os vestígios da matéria escapadiça da carapaça. Ele apanhava o pó e o elevava lentamente, enquanto entre seus dedos escapavam partes de tudo. Então, girava, girava e girava, e seu movimento rotativo criava uma espiral espacial formada pelo pó que outrora tinha sido meu, da concha e agora era dele. Presenciando aquilo, tive a certeza de ter escolhido viver dentro desse redemoinho, que começou dentro de mim e agora está fora, agindo por aí. É um pó repleto de impulsos criadores, é matéria que envolve o entorno. Que razão teria esse projeto se fosse somente voltado as minhas rememorações? Não basta apenas construir a carapaça, ela precisa tocar de alguma forma alguém e ser então, ativadora de experiência. Acho que aqui está o primeiro momento em que apreendo o contato sensível que ela começa a emanar.

Figura 16: Pó repleto de impulsos criadores (2015) Mariana Corteze. São Bento do Sul (SC).

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Para além do procedimento que envolve sua construção, confio ser preciso atentar o olhar para o deslocamento espacial tão fortemente presente no trabalho de Starling, quanto no Pequeno Experimento de Mundo #1. A dimensão do percurso é enfatizada, a partir do instante em que durante as viagens de locomoção do Compartimento de Estar e Partir, muito da reinvenção se fazia. Portanto, o trajeto é parte essencial do projeto. Foram longas viagens, muitos quilômetros percorridos, numerosos pensamentos vagantes. Afinal, ela foi inicialmente construída na cidade de São Bento do Sul, Santa Catarina, depois transportada e novamente reinventada em Três de Maio, Rio Grande do Sul (770 km) e, por fim, em Pelotas (550 km). No trajeto ela se fazia nova, agregava um novo sentido à saída, ao caminho e à chegada. Era como se fosse uma mochila de um viajante, ora está cheia de experiência, iguarias e subsistência, outrora está esvaziada por conta da rota e da experiência de viagem.

Figura 17: Deslocamento espacial (2015) Mariana Corteze.

Para acresentar essa concepção, ou ainda a ideia de genealogia migrante, dos seres caramujos urbanos ou do deslocamento preciso de que falo até aqui, trago como referência o trabalho do artista cubano Abel Barroso (1971-) intitulado Casa-mochila (2012).

Figura 18: Casa-mochila (2012) Abel Barroso.

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Essa obra é vista como uma casa feita em apenas uma mochila que se carrega nas costas, criando assim, uma espécie de próprio microcosmos daquele que se desloca com ela. Ela pode ser percebida a partir da presença real ou ilusória do mundo, que cria as noções de fronteira. Quem propõemse a viajar ou mundivagar, desafia consequentemente as linhas divisórias da política, da ideologia, religião, cultura, bem como os limites que se inventam. Contudo, nomeadamente na travessia de um limite geográfico inventado, entre o estado de Santa Catarina e Rio Grande do Sul (cidades de Palmitos e Iraí), ocorreu algo que me fez divagar. Foi justamente na fronteira, na linha identificada como divisão geográfica que se fez margem dificultosa. De repente, desaguou uma torrente intensa e infindável de chuva, com mais de 40 quilômetros de extensão, não deixando enxergar nem um metro à frente. Era como se a concha não quisesse sair do seu lugar de origem e tivesse vida própria, revelando suas inquietudes, agindo sutilmente enquanto empenava, expandia e aos poucos descolava de mim. Aquilo me pareceu o dificultoso receio da partida, e uma vez em viagem, precisa-se assumir essa postura. E por mais voltas que eu dê sobre o assunto, preciso pura e simplesmente assumir a viagem, transcorrer suas transformações, sem mais explicação. A viagem fará sentido desde a construção da concha em forma física até o momento em que ela se reconstruirá em sentidos, pelo mundo. Pois ao longo de qualquer trajeto, seu conteúdo se modifica pela habitação que nela imerge. Desse modo, trago como referência a Casa-movente (2009) da artista brasileira Helene Sacco (1975-) que questiona o entendimento de construção do lugar contemporâneo junto às implicações do habitar por meio da arte. Aqui é apresentado o paradoxo já discutido sobre o nomadismo e o sedentarismo, procurando comprovar que mesmo habitando o movimento, quando a Casa-movente para em algum lugar, é possível fundar um território, criar raízes ainda que provisórias. Entretanto, o referente trabalho é sobretudo uma reconstrução da casa de infância da artista, e assim se torna uma casa feita de outras casas. Ela é inventada com objetos do cotidiano doméstico, como cadeiras, armários, máquina de costura e estante, sustentados pela estrutura de uma cama beliche, que organiza todos cômodos de uma casa: sala, quarto, banheiro, cozinha, horta e jardim. Tenho a impressão de que a Casa-movente, de certo modo, toma o papel do viajante, visto que se locomove de um lugar à outro, requerendo

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habitação e mostrando-se como um lugar aberto para o mundo em movimento, indicando que é possível fazer estadia, mesmo no percurso.

Figura 19: Casa-movente (2009) Helene Sacco.

A ideia de residir em viagem levanta intermináveis questionamentos, porque aparentemente parece não ser possível fazê-los ao mesmo tempo. Mas, seja sincero comigo, você acredita que é possível estabelecer morada onde passa? De alguma maneira, será que ainda podemos assentar moradia em cada novo lugar experimentado? Será que somos seres cheios de lar? Ou sem nenhum lar? É relacionando essa concepção de simultaneamente habitar (estar) e transitar (partir), que aludo o trabalho do inventor norte americano Paul Welkins (1957-) Burningman bicycle camper (2008), que se trata de uma casa portátil construída para o Festival Burning man31. Welkins desenvolveu uma casa nômade capaz de suportar ventos de 60 mph e temperatura de 100 graus, e isso porventura pode remeter o medo do futuro, quando estaremos correndo tanto para seguir o fluxo que deixamos de ter um lar, e então, é preciso obter um espaço que suporte todas as formas de decomposição mundial.

Figura 20: Burningman bicycle camper (2008) Paul Welkins.

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É o maior festival de arte e livre expressão radical do mundo, que reúne no deserto mais de 23 mil anarquistas, poetas, alternativos e sonhadores. Acontece anualmente no deserto de Nevada desde de 1986. Burning Man quer ser uma alternativa para a cultura de massas e a sociedade consumista. 96


O artista viveu uma semana dentro dessa pequena unidade móvel que comporta uma cama dobrável, mesa, lotes de armazenagem, cozinha, sistema de ventilação, banheiro e uma janela bolha que adiciona espaço extra para ver as estrelas. Ele transitou na aldeia do Festival com sua casa engatada, dirigindo sua bicicleta-acampamento ao mesmo tempo em que a habitava. O artista é pulsão movente da própria casa. Dessa mesma maneira, a casca do caracol que construo é feita para o corpo e pelo corpo. E mesmo que ela venha a descolar do meu organismo, sua estrutura já faz parte da minha anatomia. Então, como entender o sentido mais profundo da emanação? Como ele ressoa o grande ritmo cósmico entre (re)invenção, construção e perda? De que maneira posso transitar e habitar uma concha? É confuso descrever o processo de emanação, nos dois sentidos, mas nos últimos tempos, percebo que de fato a carapaça saiu de mim, ela não é mais minha e sim do mundo. Ela ganha sentido outro, ganha vida própria. Sinto-me um caramujo sem casca. Sei que talvez seja difícil de compreender esse diário de devaneios que constitui sua (re)invenção, mas proponho que pense nele como um conteúdo capaz de ser fatiado, para assim, avistar camadas, blocos de construção repletos de infindáveis caminhos. Acredito que todo processo de criação é único, e tal como diz Calvino (1990, p. 25) “discutir arte sob o ponto de vista de seu movimento criador é acreditar que a obra consiste em uma cadeia infinita de agregações de ideias, isto é, uma série infinita de aproximações para atingi-la.” Portanto, de que maneira eu apresentaria uma criação que é infinita? O Compartimento de estar e partir é cheio de um longo processo de ajustes, dúvidas, aproximações e metamorfoses em um mundo dobrado. É uma casca feita de um percurso que jamais é resultado, porque em nenhum momento estará acabado, com uma forma final e definitiva. Então, é importante que saiba que você está diante de uma realidade em mutação constante. O que ela foi no parágrafo anterior, pode deixar de ser no próximo. Admitida a impossibilidade de determinar nitidez, o percurso criador mostra-se como um itinerário recursivo de tentativas, experimentos. É em criação como movimento que reinam conflitos e apaziguamentos, derramam labilidades, diversos cruzamentos capazes de gerar estratégias sobre o que há de ser explorado no Compartimento de estar e partir. Talvez esse processo se transforme naquilo que sou feita: areia e água, deserto e oceano.

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ยง




Os pássaros fazem girar os sentidos em todas as direções possíveis, eles permitem que a experimentação se desloque do plano do projeto, para a do acontecimento de uma arte que busca construir espaços afetivos. Por conta disso, acabei descobrindo um complexo fenômeno: o mundo tem mundos dentro dos mundos.

eu sou um pássaro Viajante é quem empina o infinito dentro da gente, só que antes de empinar o infinito nos outros, o viajante tem que fazer isso dentro dele mesmo. Depois, aí sim ele pode botar as pessoas no ar. Márcio Vassallo

Aos poucos percebi de que dentro da concha (re)inventada despontavam ninhos. Eles apareciam como uma goteira que brota no teto de qualquer casa, tão sutis, tão inexplicáveis e frágeis. Com o passar das semanas e a elevação das temperaturas, os ninhos suspeitosamente desapareciam e a única coisa que deixavam era a vontade de voar. Seu desvanecimento fez escapar passarinhos que, por sua vez, provavelmente inspiraram o poema de Gonçalves Dias (1823-1864)32. Eram sabiás que sabiam muito do mundo, que subiam qualquer subida assobiando. Foi então que eu fiquei dividida na escolha de ser um caracol sem carapaça que viaja por aí navegando, ser uma formiga andarilha que se desterritorialize, ou um sabiá aviador que ultrapassa as fatias do mundo e aceita sua condição de voo irrefreável. Penso que não poderia mudar essa condição de viagem que ultrapassa água, terra ou ar, porque, na verdade, ela estava em mim. A única coisa que sei sobre essa terceira mutação, foi que, a partir do momento em que notei esse fenômeno que acontecia na carapaça, me contagiei. Lancei-me de repente para fora da concha como um sabiá, e 32

Gonçalves Dias escreveu a Canção do Exílio na mesma posição em que me encontrei no período do intercâmbio, na Universidade de Coimbra, em Portugal. Ele se sentia saudoso do seu território, e talvez, tenha se sentindo sem território em Portugal também. 101


esquecida de mim, compreendi que eu era esse vento, um pouco dessa força na qual se flutua. Trago dobrado, o mapa-memória Eu sou um pássaro.

suspender em experiência Desde o momento em que a concha (re)inventada toma seu lugar no mundo percorrendo espaços, habitando, compartilhando, experimentando e tentando fundar um metalugar na cidade, ela propõe pensar educação em arte como viagem. Se no capítulo Caracolar dediquei-me a refletir seus semblantes contraditórios e confrontantes, agora eles entram em cena como potência máxima e transformadora, porque viagem aqui é entendida como aquela que modifica, que agrega experiências sensíveis. Somente quando assumimos a posição de viajantes disponíveis à experiência, atingimos o sentido essencial da aprendizagem. Sendo assim, apoio-me no espanhol estudioso em filosofia da educação Jorge Larrosa Bondía (2002), que acredita numa educação que é lugar de recomeço do mundo, um refúgio da infância, pois acolhe e inicia a relação com o universo. Por meio desse olhar, a educação tem a ver com uma espécie de responsabilidade dupla, visto que quem resolve transitar sobre ela, necessita decidir se ama o mundo o bastante para assumir a responsabilidade por ele e para aqueles que encontra. É diante disso que Larossa sugere entender os processos educacionais por meio da experiência, e não mais pela técnica, teoria e prática, pois a educação deve se relacionar com a cultura presente, ou do contrário se transformará em método de adestramento. Afinal, é somente por meio da cultura, das linguagens e da arte que o mundo fica aberto para nós, e assim, produzimos sentidos pela experiência, criamos realidades e potentes mecanismos subjetivos. Para adentrar na noção de educação em arte como experiência de viagem, trago a etimologia da palavra experiência, denotando aquilo que nos passa, nos acontece, nos toca. Ela tem sua origem no latim: experiri: experimentar; provar, sendo um encontro ou a relação com algo que nos atravessa. Só que hoje parece que ao mesmo tempo em que tudo nos toca,

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espaรงo reservado para movimento de pensamento




ou transfiguração


nada nos acontece. É precisamente isso que Benjamin aponta em seu ensaio Experiência e Pobreza, em que já observava essa escassa forma de sentir que nos envolvia. Já é sabido que tudo isso ocorre por conta do ágil tempo globalizado que busca cada vez mais informações instantâneas, opiniões superficiais e trabalho mecanizado. Mesmo que tudo isso, de alguma forma, já tenha sido abordado na presente escrita, aqui é o exato momento em que tudo se conecta. Esses fatores são responsáveis por tornar a experiência cada vez mais rara, pois somos impedidos por nós mesmos de nos relacionarmos significativamente com os acontecimentos. Somos cada vez mais cheios de uma presença-ausente, e é isso que reflete a falta de experiência. Portanto, é evidente que a educação está vinculada a esse processo volátil, pois estamos nos formando sujeitos fabricados e manipulados por informações e opiniões alheias, incapazes de experienciar. Por não pararmos, não digerimos experiência. É incapaz de experiência aquele que nada lhe passa, nada lhe acontece, nada lhe toca, lhe chega, afeta e nada o ameaça. Por isso, é preciso alterar esse panorama apático, e essa mudança só pode acontecer junto à educação. O sujeito a ser libertado é o sujeito da experiência, e não o da informação, da opinião, do trabalho, do poder, do querer ou do julgar. Uma vez sujeito da experiência, torna-se uma espécie de território de passagem, um lugar de chegada ou um espaço do acontecer, sendo distinguido pela sua recepção, disponibilidade e abertura. A experiência é a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, para olhar, para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar os outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço. (LARROSA, 2002, p. 5) Se ficarmos disponíveis à experiência, podemos ser modificados. A educação em arte entendida como experiência de viagem, nesse sentido, é aquela que forma o sujeito e acima de tudo o transforma. Pois a experiência abarca tudo aquilo que nos toca, acontece, atravessa, e, ao passar, nos forma e nos transforma.

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Essa transformação pode encontrar alusão ao trabalho artístico Piedra que cede (1992) do mexicano Gabriel Orozco (1962-). Nessa ação, o artista mostra em gestos e ações muito simples que se pode modificar qualquer experiência, resultando em objetos que se alteram ao longo do tempo, tal como a carapaça (re)inventada. Para fazer a Piedra que cede, Orozco molda uma massa de plasticina (igual ao seu próprio peso corporal), empurra sua estrutura pelas ruas de Nova Iorque, e, no processo, a sujeira e os detritos das ruas vão sendo incorporados na superfície do material maleável.

Figura 21: Piedra que cede (1992) Gabriel Orozco.

É assim que aproximo essa referência artística que se converte em percurso, à concha, pois tanto na obra de Orozco quanto na proposta de ação-experimento do Compartimento de estar e partir, percebe-se a forte relação do corpo presente do artista em trajeto, em modificação constante. São trabalhos que assumem seu caráter orgânico, ou melhor, a ideia de crescimento orgânico, visto começar do centro para fora, sem saber onde e como vai terminar. No caminho recebem suaves e discretas alterações de formato, traçando rotas imaginárias, reais e instáveis. A carapaça, nesse viés, faz um percurso transformador e compartilhado por meio da experiência daquele que a adentra, tornando seu acontecimento comum, mas a experiência singular, porque só encontra sentido no modo como cada ser configura sua personalidade, seu caráter e sensibilidade. Essa concepção ímpar da experiência abarca naquilo que o filósofo francês Jacques Rancière (2002) exprime no livro O Mestre e o Ignorante, no qual desenvolve o entendimento de igualdade das inteligências. É desse modo que transito aqui por meio desse pensamento horizontal, de onde

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provém uma sociedade responsabilidade de todos.

emancipada,

onde

o

mundo

é

então

No decurso da ação artístico-educativa do Compartimento de estar e partir, procuro dar nascimento a esse princípio da emancipação na aprendizagem. Contudo, para além da emancipação daqueles que tem desejo por aprender, de experimentar, também busco emancipar os observadores, aproximando àquilo que Oiticica chamou de participadores da arte. Assim, a independência subjetiva aparece como função determinante da emancipação do olhar e do experimentar. Esse pensamento pedagógico rompe com o paradigma clássico de ensinar, mostra que é possível encontrar formas alternativas de aprendizagem. Se educação aqui é entendida como experiência em viagem, logo, ela pode acontecer em qualquer lugar, por meio de qualquer encontro. É, então, sob esse patamar, que sustento a presente investigação, contestando um mundo feito de presenças-ausentes e arriscando-me por meio da ação-experimento, na difícil tarefa de tornar esses corpos passageiros em viajantes que naveguem, voem e sonhem pelo espaço habitado. Porque, na verdade, acredito que arte é só aquilo que causa uma consequência, e, por conta dela, o aprendizado do mundo se dá ao mesmo tempo em que o aprendizado de nós mesmos. Com tal característica é que se formula a proposição artístico-educativa do Pequeno Experimento de Mundo #1: Compartimento de estar e partir. Aqui se pensa educação em arte em termos mais amplos, tal como a Escola da Ponte. É uma licenciatura ilimitada, aberta a formação de qualquer sujeito, feita em espaços outros, em experiências outras. Assim, cria-se a possibilidade de transformar a ausência mediada em presença, descobrindo então uma infinidade de pequenos movimentos, gestos e diálogos que muitas vezes se encontram adormecidos pelas ações mecanizadas do cotidiano. Afinal, qualquer mínima relação pode ser uma fonte produtora de subjetividades desmedidas. Nessa possibilidade desenvolve-se uma experiência de troca, e é nela que acontece a educação em arte. Sua imersão deixa resquícios valiosos como marca. Marcas que ficam em ambos os corpos. Efeitos outros, dos outros, permanência, presença, rastros corporais que englobam, ao mesmo tempo, a natureza do corpo afetado e do corpo afetante.

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O que torna o corpo afetado é o contato. O estar na experiência é o encontro, é o que toca, o que converte os seres, os meios e os lugares. Essas trocas provocam não um estado de estabilidade, mas uma relação em constante movimento. Posso dizer que, sob essa perspectiva, o que deixo como vestígio desses encontros proporcionados pela concha (re)inventada são resquícios sensíveis daquilo que me afetou no mundo e os apresento aqui em forma de relato, acreditando no que Espinosa (Apud DELEUZE, 2002, p. 56) indica, pois, a potência de sentir é também a capacidade de pensar e existir. “Por afeto compreendo as afecções do corpo, pelas quais sua potência de agir é aumentada e diminuída”. Esses afetos talvez possam ser apreendidos como o que acontece durante um entrelace de dois corpos, seja um abraço, um aperto de mão, um olhar, um sorriso, um diálogo, um silêncio, um respiro. Quando algo é compartilhado, os dois corpos descobrem juntos um novo reconhecimento, um instante singular de aprendizado recíproco. E é por essa via que a educação em arte tem que se mostrar ativa, partilhando este sensível nos espaços em que transita, pois, como organismos vivos, nos transformamonos, nos sobrepomo-nos a cada nova relação. Porém, essa forma de pensar educação em arte constitui-se como uma alternativa ao que já é existente, não como solução. Repensar seu espaço, sua prática, seria a aspiração de um outro lugar, um novo espírito de tempo, de realidade, um ambiente que pode nos incitar a ver na viagem como experiência um valor social. Diante de um mundo aparentemente uniformizado, sente-se nascer esse desejo de metamorfosear espaços. Outros lugares para os dias, para a educação: esse seria o metalugar. E o metalugar é a ação do verbo estar na educação. É estar junto, compartilhar, trocar, se emancipar. É promover educação no cotidiano, no que é dado a ver, no que é dado a viver, sentir. É o ato da intensidade das relações, das experiências vividas que se remodelam a cada passo, a cada percurso, a cada encontro efêmero, aprendizagem mútua, troca de afetos, resquícios. Até porque, educação não é estar sozinha, não é permanecer como estrangeira, sem conhecer a noção de habitar o lugar em que se ocupa. Todavia, antes de propriamente compreender a importância dessa proposta de metamorfose, posso dizer que, quando inicio a açãoexperimento na cidade Pelotas, percorro-a, coloco a concha presa em uma bicicleta em meio ao trânsito. É nas ruas que começo a comprovar a potência que os lugares têm. Eles alteram-nos.

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Figura 22: Percorendo transito urbano (2015) Mariana Corteze. Pelotas (RS).

Talvez essa sensação que se instaurou sobre mim, aproxime-se daquilo que a artista brasileira Lygia Pape (1927-2004) relata: A partir das minhas andanças de carro pela cidade – porque eu ando muito de carro – fui percebendo um novo tipo de relação com o espaço urbano, assim como se fosse uma espécie de aranha tecendo o espaço, pois é um tal de vai daqui, cruza ali, dobra adiante, sobe e desce viadutos, entra e sai de túneis, eu e todas as pessoas da cidade, que é como se passássemos a ter uma visão aérea da cidade e ela fosse uma imensa teia, um enorme emaranhado. E eu chamei de espaços imantados porque aquilo tudo era uma coisa viva, como se eu fosse caminhando ali dentro a puxar um fio que se traçasse e se renovelasse ao infinito. (PAPE, 2011, p. 285) Esses espaços só são vivos porque são ativados pela presença. Eles podem ser incitados por estratégias, tal como a dos caramujos camelôs. De acordo com a artista, estes também são uma espécie de espaço imantado, no sentido de chegar numa esquina qualquer, abrir a maleta e começar a falar, criando de repente uma imantação, fazendo as pessoas se aproximarem, ligando-se àquele discurso irregular, e quando por ventura fecha a caixa, o espaço se desfaz.

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Foi então, que percebi que eu criava um espaço imantado, semelhante aos caramujos camelôs. Penso que, no momento em que parava e abria as portas da concha, fundava esse campo de atração e repulsão. Fazia-me junto ao Compartimento, o próprio meio de experimentação. Eu sentava ao lado de sua abertura e procurava criar um ambiente afetivo para com aqueles que transitavam. Buscava entrecruzar trajetos. Tocar presença. A existência do Compartimento depende de situações improváveis, desde o instante em que se coloca no espaço. Sem avisar nada, nem ninguém, espera encontrar viajantes que de alguma forma, localizarão seu próprio deslocamento, que farão de sua estadia experiência viva. É próximo a ele, que me coloco em disponibilidade urbana, propondo criar uma interação feita de pausa, constituindo junto ao viajante um espaço lúdico da cidade feita de espetáculo. Ao estacionar meu “dirigível”, descubro a carência do espaço de convívio da cidade, percebendo que os espaços públicos tornam-se um nãolugar por conta da forte individualidade e presença-ausente atuante. É propondo uma oposição à dispersão e a segmentação da cidade que trago o Compartimento como uma alternativa de ocupação urbana, e nesse sentido, ele relaciona-se com o recente trabalho artístico do Coletivo brasileiro Bijari, chamado Praça-ambulante (2015).

Figura 23: Praça-ambulante (2015) Coletivo Bijari.

Essa invenção é uma arquitetura efêmera, que ressignifica objetos do cotidiano: guarda-sol, floreira, bicicleta, bancos de praça, para despertar a atenção das pessoas, chamando-as para o espaço público e provocando assim o imaginário urbano tão pensado para hegemonia do carro e para os indivíduos que não dividem mais. É fronteira entre arte, arquitetura e espaço urbano.

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Acredito que proposições assim procuram dia a dia criar mudança de percepção, olhando para o mundo de forma diferente. Elas mostram o quanto é importante a experiência, o momento de pausa ao fluxo cotidiano, o tempo lúdico, de ócio, de encontros. É propriamente isso que venho plantando ao longo do Pequeno Experimento de Mundo #1, e assim, expando a noção de viagem a todos esses parâmetros que permeiam o estágio aberto e liberto do experimentar. Quando ele de fato acontece, os passantes se tornam viajantes, e de repente, cria-se um tempo extraordinário de troca. É ali que se cria o instante mais importante de toda a pesquisa, quando a experiência vem à tona e gera interpretações valorosas que continuam a (re)construir a carapaça nunca acabada.

abrigo-alado Tudo começou quando percebi a incrível correspondência entre conchas, formigueiros e ninhos. Eles são refúgio das três espécies de viajantes: da água, da terra e do ar. Logo, se eles se contêm, podem eventualmente receber visitantes de outras naturezas, como por exemplo, uma carapaça deve sem dúvida abrigar passarinhos, um formigueiro deve hospedar moluscos e o ninho acolher insetos. Essa troca de residência é fundamental para experimentar o mundo. É o estar estrangeiro que pede licença para habitar. Foi pensando isso que a primeira ação-experimento da concha (re)inventada aconteceu. Ela se deu junto ao grupo de pesquisa LugaresLivro: Dimensões Poéticas e Materiais no evento Arte-Entre-Livros, que ocorreu no dia 23 de abril de 2015 no espaço do Casarão 8 da cidade de Pelotas. Deste modo, a ação artístico-educativa contava com a presença do Compartimento de estar e partir que propunha desencadear uma viagem no espaço e nas estantes da Livraria da Ufpel, visto ser necessário ativar o espaço da biblioteca. À vista disso, criei um mapa poético com a planta baixa do Casarão 8 que contava com as possíveis trajetórias espaciais e cartográficas de cada estante. A ação chamava-se Descubra seu livro-ninho e pensava os livros como lugares, rotas de viagem. Logo, para adentrar em sua proposta, passo a citar um fragmento do material gráfico distribuído.

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Assim, pensa-se que é preciso habitar espaços inabitáveis, como sonhos, imagens e prateleiras. Ir além das situações vividas para descobrir as inventadas. E um livro consegue fazer isso, ele descobre a natureza e a cidade inteira, faz com que atravessemos espaços, ruas, rios, olhares e risos. Mergulhar na escrita é habitar um livro, habitar de passagem ou de permanência. Mas tome cuidado: habitar não é habituar-se. Talvez, quando você encontrar seu livro-ninho, perceba que esse abrigo alado se integra ao vento, aspira leveza aérea e leva o habitante a viagens distantes. (CORTEZE, 2015, p. 1)

Figura 24: Mapa de viagem espançandante(2015) Mariana Corteze. Pelotas (RS).

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Figura 25: Cartaz ação (2015) Mariana Corteze. Pelotas (RS).

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Foi proposto instigar cada viajante a passareiar pela livraria, a extraviar as estantes e encontrar seu ninho, que era constituído pela colagem de etiquetas douradas retiradas do próprio mapa de viagem espaçandante. Todos aqueles que estabeleciam um ninho, eram compreendidos segundo o trecho do poema Cantigas por um passarinho à toa, do poeta brasileiro Manoel de Barros (2013, p. 464) “sou um construtor menor, os raminhos com que arrumo as escoras do meu ninho são mais firmes do que as paredes dos grandes prédios do mundo”.

Figura 26: Ação descubra seu livro-ninho (2015) Mariana Corteze. Pelotas (RS).

Nessa primeira ação, o Compartimento apropriou-se do espaço interno do café da Livraria da Ufpel, propagando uma interação focada nas conversas e trocas com aqueles que se permitiram transformar em pássaro. Foi então que uma sonhadora me contou que observou a relação das pessoas com a carapaça. Disse que elas percorriam o corredor do Casarão 8, e quando enxergavam o Compartimento mostravam uma sensação de surpresa-curiosidade. Era preciso tempo para andar em direção a ele, então, primeiro diminuíam a velocidade do passo, depois passavam a andar em volta, com a maior distância possível, para somente aos poucos se aproximar e fazer relação com a concha. Isso tudo me lembrou a ação dos próprios pássaros, que pousam no pátio assustados, olham em volta, ficam longe de tudo e depois vão se aproximando lentamente. É assim que percebi que o tempo de estar disponível é essencial, porque tudo que causa estranhamento requer condição de confronto. Assinalo uma conversa com uma estudante do terceiro ano do ensino médio, quando ela me disse que depois de encontrar seu livro-ninho, tinha

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plena certeza de que era um pássaro feito de areia. Isso tocou fundo em mim, porque penso que compartilho com ela essa sensação. Somos pó, levados pelo vento, flutuantes de frestas iluminadas. Somos um pouco daquilo que recolhi no deserto. Fragmentadas, esfaceladas em milhares de migalhas que se espalham entre os cantos do universo.

Figura 27: Passarinhos na livraria (2015) Mariana Corteze. Pelotas (RS).

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Essa ação desencadeou algo completamente inesperado. De repente, começaram a aparecer pessoas de vários lugares, pedindo para que eu enviasse o mapa de viagem espaçandante por correspondência, para que mesmo de longe, elas pudessem de algum modo, encontrar seu livro-ninho. Não sei se elas pensavam que eu havia criado um “manual de como encontrar sua morada alada” em qualquer estante. O fato é que mesmo o mapa sendo um reflexo poético do espaço específico do Casarão 8 de Pelotas, ele pode desenvolver pensamento acerca desse tipo de habitação, fazendo um convite de visitação à livraria para além das fronteiras. A proliferação do mapa percorreu lugares como Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Maracaju, Mato Grosso do Sul, Rondonópolis, Mato Grosso, Rio de Janeiro, Capital, São Paulo, Capital, Balneário Comboriú, Santa Catarina, Coimbra, Portugal, Lisboa, Portugal e Montevideo, Uruguai. Até o momento, já obtive alguns retornos fascinantes, mas o mundo feito em papel e caneta, dobrado e colocado dentro de um envelope, é uma coleta que equipara-se à grandeza das ampolas que trago junto a esse volume. São partes daquilo que absorvo, daquilo que sou.

transbundando em geografia de ações Para transbundar de fato com a carapaça, já sabia que precisaria de tudo aquilo que reverberasse dela, constituindo então, um trabalho artístico que sempre é transformado, progressivamente. Instalo a concha no espaço urbano e ali procuro criar uma espécie de campo de atração ou repulsão, um núcleo capaz de exercer forças invisíveis que se tornam perceptíveis através de seus efeitos nas pessoas por meio da experiência. Foi assim que começou a acontecer, eu respirava nos espaços e eles expiravam em mim. Lançavam uma espécie de libertação do que estava contido, deixavam escapar o que ainda pulsava em meio aos hábitos. A ação-experimento do Pequeno Experimento de Mundo #1: Compartimento de estar e partir aconteceu casualmente no veranico de maio (18 a 22) de 2015, e, em condições propícias geográfica e meteorologicamente, pude transbundar na cidade de Pelotas criando uma geografia própria, tal como os nômades contemporâneos. Nesse percurso encontrei-me nas palavras dos viajantes que adentravam a carapaça, assim, me vi atravessada por vidas imantadas. Me percebi nos

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outros. Acho que me tornei um pouquinho dos outros. Eles aproximavam suas memórias ínfimas, realidades desprezadas e, assim, faziam viver um instante único dentro do trânsito urbano. Foi assim que de repente, fizeram mudar a visão sobre meu trabalho, que antes era focado na experiência de viagem sobre a concha, mas agora é ressaltado a partir das trocas, do ambiente constituído e dedicado à poesia de cada mundo singularmente experienciado. Desse modo, exponho os resultados do ato artístico não sendo executado ou determinado pela minha presença, mas pelo contato transformador do mundo interior de cada indivíduo que entra na concha. Esses encontros levantaram percepções sutis que edificaram um espaço outro, um metalugar em contraponto ao fluxo cotidiano. Cada sujeito passa a estabelecer significados próprios através do contato com o objeto artístico, com as coisas que a carapaça carrega consigo, trazendo a tona pequenezas da vida, que atravessam o relato da experiência. São elas quem apresento aqui. As marcas do tempo, do contato da estadia. Interrogações e afirmações sobre o habitual, sobre onde está nosso espaço, nossa vida.

Figura 28: Delicadezas vão além da visualidade (2015) Mariana Corteze. Pelotas (RS)

No primeiro dia, coloquei-me adiante do que todo o experimento poderia acarretar, afinal, meus medos estavam à tona. A ação poderia não desenvolver interesse de ninguém na cidade, poderia se tornar invisível a

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cada não-lugar frequentado. A concha poderia, assim, não fazer sentido e não encontrar viajantes. Seria vista tal como a condição de viagem em meio ao turismo, apenas expositiva. Seria um espaço vazio e um projeto fechado só às minhas experiências. Mas ainda bem que não o foi. Suas portas abertas provocaram reinvenções, deslocamentos e relações encantadoramente correspondentes.

Figura 29: Delicadezas vão além da visualidade (2015) Mariana Corteze. Pelotas (RS)

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Estacionei a carapaça em diferentes não-lugares da cidade de Pelotas, sendo eles a praça Coronel Pedro Osório, o calçadão e Mercado Público. Nessas localidades, deparei-me com comuns questionamentos curiosos sobre o que os passantes acreditavam que eu fazia: vendia rapadurinhas, tirava fotografias, alugava o espaço, que eu era uma loja ambulante e vendia os objetos que carregava, escrevia cartas para quem já perdeu a caligrafia por conta da tecnologia, oferecia petiscos, decorava bicicletas, observava as nuvens, ensinava a desenhar, vendia passagem de viagens. De certo modo, acredito que minha intenção se assemelhava a essa última interpretação. Eu estava instalada no espaço para vender passagens, mas essas passagens não faziam referência ao turismo e sim a rememoração, a transformação singular.

Figura 30: Estacionamento da concha (re)inventada (2015) Mariana Corteze. Pelotas (RS).

Durante as trocas, apresentava aos viajantes ativadores de espacialidades temporárias contidas na carapaça. Isso que chamo de ativadores são publicações de livros de artista que se separam entre: Glossário-inventado (2014) com tradução de Mateus Corteze e ilustração dos autores; livro de pedra Montanha sideral (2015) que desenvolve uma catalogação de pedras de lugares já atravessados, acreditando que as mesmas são a união de poeira cósmica que cai ao chão; Atlas das nuvens: geografia de algodão (2014), um livro de poesia e fotografia sobre os deslocamentos do Viajante Índigo; Escada sanfonada álbum (2015), constituindo-se como um livro de registros

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fotográficos de viagens; Coleção Postal: é isso que faz um mundo (2014); e, por fim, os mapas-memórias que envolvem a presente pesquisa.

Figura 31: Estacionamento da concha (re)inventada no calçadão e no Mercado Público(2015) Mariana Corteze. Pelotas (RS).

Junto a estes, o Compartimento de estar e partir oferece alguns instrumentos de observação espacial, tal como periscópio, lupa, caleidoscópio, janela e correio. No entanto, todos esses mecanismos podem

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ser utilizados ou não, podem ativar algo no viajante ou não, porém, eles caracterizam-se por simplesmente estar à disposição, tal como minha presença junto a proposição.

Figura 32: Experimentação ativadores de espacialidades temporárias (2015) Mariana Corteze. Pelotas (RS).

A presença do Compartimento de estar e partir no espaço da cidade causava estranhamento, tal como no relato do Arte-Entre-Livros. Só que

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aqui, em espaço público e aberto, os passantes contornavam sua extensão com interesse em descobrir sua função, saber o porquê de sua presença. Aproximavam-se do espaço imantado que requeria tempo do olhar e do experimentar.

Figura 33: Tempo outro do experimentar (2015) Mariana Corteze. Pelotas (RS).

Foi assim que o primeiro casal a se inteirar largou as sacolas plásticas de compras no chão, parou por um instante, como se houvessem levado um

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choque, um forte esbarro. Distante, um deles afirmou: “Parece que aqui tem tudo que eu ainda não conheço”. Não posso negar que em um primeiro momento achei inusitada essa declaração, mas aos poucos, no decorrer da conversa e na possibilidade de desaceleração e viagem através da concha, interpretei esse dizer pelo viés da pressa cotidiana. O casal não se demorava em nada mais, seguia uma rotina em loop infindo: casa, trabalho, mercado. Ali, parece que simplesmente desconheciam a descontinuidade tão precisa. Permitindo a se situar em um ambiente estrangeiro, que se mostrou um estudante de física. Ele parou na praça, em frente ao chafafiz e ali adentrou a carapaça por longo tempo, ali imergiu em um campo de sensibilidade diferente de o seu fazer habitual. Ao aproximar-se, prontamente pronunciou: “Você é o porém, a exceção aqui”. É evidente que esse dizer me fez refletir, e talvez ao proferi-lo, o estudante não saberia a dimensão que essa afirmação teria. Por meio dela, hoje acredito nesse porém, nessa alternativa que toda regra oferece. Pois ainda bem que toda norma promove um desvio, um transviamento, sendo possível encontrar em meio à cidade “civilizada” formas de desterritorializar, desencaminhar, desorientar nosso percurso fixo. Quando ele mergulhava seu interior, disse: “Tudo aqui se trata de lugar, de encontro, e quer saber de uma coisa? Nesse compartimento a gente se esquece do chão, o céu vira nosso ponto de viagem, e eu realmente não vi o tempo passar, até perdi o horário do trabalho. Minha vontade é me encontrar sempre por aqui”. Enquanto experimentava meu mundo inventado e criava o seu próprio, o estudante declarou: “É como se a gente encontrasse o céu nas mínimas coisas, o meu céu, por exemplo, hoje foi aqui” (remetendo a definição de céu33 do Glossário-inventado). Antes de ir embora, referiu-me sobre sua experiência com o Compartimento de estar e partir e assim, encantadoramente afirmou: “Viajar é se desprender daquilo que te prende” “quantas vezes é preciso se apegar ao algodão para se desprender de algo?” (aludindo o Atlas das nuvens: geografia de algodão). Após essa declaração tenho até vontade de terminar a pesquisa por aqui, em silêncio, porque estas concepções experienciais dizem muito de tudo.

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Céu: lado oposto da terra. É entendido como lugar pulverizador da cor que é mãe das estrelas luminosas. (CORTEZE, CORTEZE, 2014, p. 24) 121


Tudo que procurei tatear até aqui. Porém, decidi continuar relatando mais algumas experiências e fascinantes percepções que o Compartimento de estar e partir encontrou. Tal como a presença de um repórter que utilizou do espaço da carapaça em meio ao calçadão. Ele sentou-se, organizou seu cronograma de entrevista, e ao ter contato com alguns de seus ativadores de espacialidades temporárias, refletiu: “Sabe, na comunicação a gente incrementa a informação, de modo a torná-la clara. Sentado aqui, lendo o Glossário-inventado, percebo que ele faz muito mais sentido que o dicionário real, do qual tiro minhas palavras para enfeitar as entrevistas que faço”. Foi então que, de repente, apareceu um poeta de esconderijo. O chamo assim, porque esse senhor trabalha como engenheiro aeronáutico e faz poesia nas horas vagas. Na verdade, ele começou a escrever quando se percebeu em uma rotina cansativa, em um ciclo feito de fazeres mecânicos. Ao ver a estrutura da carapaça, imediatamente disse: “Eu faço como você, faço a minha poesia”, “Eu fico contente em ver seu trabalho em meio à cidade, pois quem não se comunica, se instrumbica – como diz o ditado”. “Acho que devemos aflorar nossa poesia, seja do jeito que for”, “em meio a tecnocracia, a arte faz a gente ver o mundo diferente”. “Há quanto tempo você faz esse trabalho?”, “tenho algo a te dizer antes de ir, (sussurrando) este trabalho é urgente!”. Sem demora, chegou Francisco cheio de uma presença inexplicável. Ao morar com tamanha intensidade no compartimento, mesmo que por um pequeno momento, Francisco também me ofereceu sua morada. “Me visita em Piratini!”, “Eu tenho uma velha casa perto o museu da cidade, acho que vai gostar”. “Acho que é pra isso que serve ter um lugar, não é? Para receber, tal como fez comigo aqui”. De modo simples, seu Francisco decifrou minhas intenções nessa proposta. Afinal, eu havia criado um metalugar para provocar uma pausa urbana, uma situação de estar em um não-lugar. Eu recebia pessoas em espaço público, era anfitriã de uma localidade que não era a minha, mas nossa. Antes de partir, Francisco orientou: “Gostaria de te dar um conselho: nunca desista”, “Eu fiz agronomia, mas não era bem o que eu queria, mas fiz”, “hoje, sofro o peso de um trabalho que não gosto tanto”, “prefiro música, prefiro ar”. “Eu sei que a arte é um caminho difícil, mas sendo sincera consigo, vale a pena”.

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Nessas andanças e estadias encontrei três mochileiras: do Texas, da Argentina e do Chile. As três encontraram-se em percurso, sendo que as duas primeiras se descobriram no Uruguai e a terceira em Pelotas. Sem querer se acharam, e assim seguiram juntas o percurso, modificando-se. Parece que de certa maneira, essas três viajantes são tudo que a carapaça propõem-se a ser desde o início de seu pensamento. Elas instalam-se nos lugares sem planos predeterminados, deixam-se afetar pelas experiências e encontros. É desse jeito que atingem seu verdadeiro ser em viagem: aprendendo com elas, porque afinal, viagem somos nós. Em meio a uma conversa intermediária entre portunhol e inglês, a chilena disse (tradução minha): “Que bom que vim a Pelotas. Em Pelotas encontramos coisas assim”, “coisas pequeninas que carregam consigo a dimensão do universo, tal como as memórias de viagem”, “isso me encanta”. A texana sucedeu: “Acho que a partir de hoje também vou começar a recolher pedras para construir um livro”, “um livro de estrelas” (aludindo o livro ativador de espacialidade temporária Montanha Sideral). De imediato, a argentina respondeu: “Quer coisa mais esplêndida do que ser uma apanhadora de estrelas? De encontrar estrelas em viagem?”, “Penso que você é uma apanhadora de várias formas de estrelas, não só a tipo pedra”, “parece que tudo nessa concha é resquício de uma luminosidade celeste”. Essa troca me fez ir devagar e divagar. Será que a noção de se (re)inventar em viagem se relaciona a jornada das estrelas cadentes? Tal como uma estrela cadente é vista pelo seu fenômeno luminoso, pelo rastro que deixa atrás de si ocasionada pelo atrito de dois ou mais corpos sólidos vindos do espaço, de modo semelhante, a carapaça (re)inventada age. Sua rota deixa resquícios cintilantes pela experiência daqueles que se permitem viajar com ela, deixam sulcos na memória. Afinal, todo percurso guarda consigo rememorações, conserva um pouco do ingrediente primordial da existência do sujeito da experiência: a poeira das estrelas. Foi então, que achei preciso dedicar este parágrafo para um espaço imaginado. Proponho um suspiro. Tranco minha respiração para d e m o r a d a m e n t e s o l i c i t a r p a u s a. E esse intervalo é a tentativa de criar essa imagem de percurso cadente, essas palavras que fortemente desaguaram na minha imaginação. Quem sabe, essa interrupção no texto de relato, possa expandir a ideia de lugar, propagando assim, em dobra, a noção de infinito.

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Para além da presença das mochileiras, despontaram na carapaça três antropólogos. A primeira antropóloga encontrei no largo do Mercado Público: “É isso que eu preciso ultimamente”, “eu penso como você, a expansão do corpo no espaço”, “acho linda toda essa ideia de desterritorializar seu próprio ser”, “expandir aqui e ali um pouco daquilo que foi e daquilo que agora é”. Sem demora, ela apropriou-se da carapaça por longo tempo e no final da tarde, ao compartilharmos pensamentos e silêncios, ela me disse: “Entrei em catarse aqui, por mim, eu ficava aqui para além dessa tarde”. A segunda antropóloga que me deparei pelo caminho mencionou a existência de outro ser caracol que conhece. “Sabe, eu também conheço um caramujo, só que este tem um galpão como casca. O nome dele é Seu Ramão e ele mora no Fragata”. “Lá, ele construiu um galpão para guardar tudo aquilo que tem alguma importância, tudo aquilo que não consegue deixar de sentir”. “Ele comprou um terreno baldio e aos poucos construiu uma estrutura gigantesca para suas coletas”, “é como se aquele espaço não tivesse fim”, “e acho que vocês se parecem um pouco, pois ele até vem no Mercado das Pulgas com seus pertences”, “e um pertence não precisa ser propriamente objetual, tridimensional, pode ser impalpável, tal como algo que absorvi aqui”. Por seguinte, o terceiro antropólogo acompanhava estudantes de comunicação social. Ao decorrer da aproximação e da conversa, uma delas indicou: “Tudo aqui tem muito a ver com a geografia de uma vida”, “de uma, ou talvez das nossas vidas”. Um fato curioso que ocorreu durante a permanência no espaço da cidade, é de que o passar da semana influencia fortemente na desaceleração dos passantes. Quando se aproxima o final de semana, as pessoas começam a ficar com menos tempo, mais apressadas e com anseio do descanso. Consequentemente, a cidade acorda tarde, tendo mais interações no turno vespertino e no começo da semana. É chegado quinta e sexta-feira e o passo acelerasse ainda mais. No entanto, durante a ação-experimento surgiu uma interessante percepção por parte de alguns viajantes que se referenciavam ao objeto correio. Tudo começou quando um senhor indigente, cheio de malas e caixas, parou na praça e disse: “Para mim, a carta ainda é a melhor maneira de se corresponder”, “antigamente existia um quiosque, ali no Mercado

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Público”, “a gente interagia mais, escrevia pensamentos, sensações, emoções”, “hoje grande parte disso se perdeu, e vemos cada vez mais pessoas carentes de um real contato”. De certo modo, esse sem-teto relatou sobre o que tento dizer na presente pesquisa. A geração do polegar perde a cada novo toque o contato, a presença. Uma delas se deu por meio do encontro com um senhor que desacelerou no largo do Mercado Público e perguntou: “Você escreve cartas?”, “porque se escrever, eu gostaria que escrevesse uma para mim”, “faz tempo que eu não recebo cartas!”. “Acho até que nem sei o que é mais encostar numa caneta, apertá-la contra o papel e percorrer uma folha”, “na verdade, acho que poucos ainda sabem o que é isso”, “vivemos apertando botões e são eles quem constroem a nossa caligrafia”, “ahhh, e como eu acho que a caligrafia é tão essencial para falar sobre o que somos”. Contudo, outra troca aconteceu junto ao pequenino G.. Ele tem quatro anos e está sendo alfabetizado em casa, com os pais. Ele sentou-se em frente à carapaça e ali adentrou seu espaço. Escreveu cartas com sua caligrafia em garatuja. No último dia de ação, resolvi retornar a um não-lugar já estacionado: o calçadão, em frente ao chafariz. Foi ali que obtive um retorno inesperado da minha presença. Dois espanhóis apareceram e ao se aproximarem, um deles afirmou (tradução minha): “Te vi há três dias atrás fechando esse espaço. Fiquei te procurando desde então, te esperando em meio a cidade, e hoje te encontrei aqui”. “Gostaríamos de ocupar esse espaço, de participarmos dessa ação”. De modo semelhante, essa resposta veio de uma loja da esquina do chafariz, uma relojoaria cuja vitrine é toda feita em vidro. Lá, os trabalhadores cheios de curiosidade e sem poder sair da função para ver o que estava acontecendo, mandaram uma das funcionárias para “investigar” a ação. “A curiosidade matou um gato”, disse ela. “Vim aqui porque todos queríamos vir, mas fui a eleita para dar uma escapulida e relatar o que fazes por aqui”. Nesse caso, ela foi o meio de experiência, tal como os dispositivos eletrônicos que discuto anteriormente. Através do seu relato, os demais iriam compreender sua experiência e apropriar-se dela. No final de nossa conversa, ela assegurou: “Quer que teu projeto vire um pássaro?”, “saiba que não existe melhor passarinho do que uma criança”. Então, como parar de sonhar diante dessa pequena carapaça voadora? Como relatar o momento em que os viajantes se deparavam com o espaço?

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Qual terá sido seu rumo depois do encontro? Sei que poderia gerar infindáveis confabulações sobre essa pequena ação-experimento, mas prefiro deter-me naquilo que confio: trazer um pouco de cada viajante constrói muito de tudo. Tudo que a carapaça (re)inventada incorpora e inevitavelmente é. Ao fechar as portas do Compartimento de estar e partir no final dessa semana de ação, um outro ser caramujo declarou ao léu: “você não está perdida”. Essa deixa me invadiu, sacudiu-me, encheu-me e me transbordou, pois quem sou eu senão alguém que busca encontrar seu pequeno território? Alguém que busca construir a possibilidade deste através da (re)construção da carapaça? Não posso negar que terminei essa semana em contradição. Talvez sejamos nós mesmos o nosso próprio território.

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reviravolta no concluir POEMA DE MUNDO Para entender nós temos dois caminhos: o da sensibilidade que é o entendimento do corpo; e o da inteligência que é o entendimentodo espírito. Eu escrevo com o corpo. Poesia não é para compreender, mas para incorporar. Manoel de Barros

Este final não propõe um saber acabado. Até porque tudo está demasiadamente condicionado ao resultado, à efetividade, ao acerto. Se eu encontrasse de fato uma descoberta no término dessa monografia, não sei o que faria, talvez a jogasse fora para continuar procurando e caminhando. Quem sabe seja por isso que desde o início identifiquei-me como caracol cartógrafo, pois quem cartografa sempre está em processo, nunca no fim. E o fim nunca é na realidade “o” fim, pois o que chamamos de final é sempre fim de algo que continua de outra maneira. Para tatear uma possível consequência, acredito primeiramente permear no paradoxo daquilo que me fez criança e aquilo que questiono nas relações humanas enquanto adulta. Endereçar-me às adjacências, distante e próxima às coisas, às pessoas, aos lugares, pensamentos e fragmentos experienciados significam então, traduzir sonhos em palavras, acreditar que somente através de práticas culturais se provoca uma sensibilidade relacional capaz de tornar encontros em compromissos transformadores de subjetividades, de marcas sociais persistentes. Esses gestos locais talvez um dia possam ser percebidos como efeito global. Nesse caso, será que o local é somente o lugar em que se está? Será que existe um lugar ao qual verdadeiramente pertencemos? E no que diz respeito a qualquer prática cultural, que tipo de ação é associada a experiência a ser construída, inventada e incorporada? A concepção que se tem aqui acerca do fenômeno da globalização está relacionada a uma região habitada por padrões, porém, a única coisa que se enxerga é que esse pensamento necessita ser redesenhado, carece de práticas locais que revivam a independência subjetiva. É justamente isso que Basbaum (2013, p. 60) aponta, afirmando que o ser global é dotado de uma “batalha simbólica, em


que a cada segundo são negociados sentido e representação”, sendo papel da arte sensibilizar e conceituar, estabelecendo condições para um campo experimental. No entanto, sabendo que o ponto de partida que tenho nessa pesquisa se dá por meio da posição que ocupo no mundo, questiono: Qual é o meu lugar? Quando me situo no âmbito da educação em arte, realmente sei que lugar é esse? Ao identificar a escola como um espaço que virá a se tornar um não-lugar, tal como as autoestradas, rodoviárias e aeroportos, preocupo-me, procuro então repensá-la, dirigindo-me a outro caminho para educação, mais centrada na relação e na transformação pessoal. Se escola for mais um não-lugar após tantos outros, de que modo será relevante? Sem ter presença, deixa de ter contato, evapora-se. Mas por outro lado, de que adianta a escola obter presença se continuar seguindo um raciocínio rígido? Sem brechas para construir sujeitos subjetivos? Para descontrolar, desencaminhar da sociedade disciplinar de que fala Foucault? O estar na educação é indispensável para construção de sujeitos emancipados. Ele solicita presença e resume modestamente as trocas em viagem, as experiências de que tenho compartilhado e ressaltado ao longo de toda escrita. Ele é quem torna real o encontro, porque simplesmente está. Ele pressupõe movimento, transições, atravessamentos, transformações até que de repente, esse verbo em infinitivo se torna gerúndio: um processo em curso, uma ação prolongada, um resquício dilatado, uma dobra estendida. Nunca paramos de estar, nunca paramos de aprender. Esse devaneio em que o estar transforma-se em estando, o criar em criando, o aprender em aprendendo, seria algo semelhante a uma lembrança que tenho. Quando era criança, tinha a mania de colocar meu dedo indicador dentre o corpo sanfonado da gaita/acordeão de meu pai. Só que o fazia enquanto ele a/o tocava, enquanto expandia e contraria sua imensa estrutura traduzida em acordes. Ele transpirava no fazer harmonioso e eu sutilmente posicionava meu dedo nas dobras, na espera de espremê-lo dentre a armação, e, assim, sentir repetitivamente o sopro que a gaita fazia no instante em que se fechava. Porém, esse fechar nunca era efetivamente concretizado, pois, para tocar gaita, precisa-se estabelecer um movimento em oito horizontal, em infinito, uma concepção de eternidade. Por conta disso, acredito que ninguém toca gaita. (Faço uma licença poética ao português e afirmo:) Eu tocando gaita. Você tocando gaita. Porque no momento em que começamos a exercer qualquer ação, ela jamais deixará de

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continuar em nós. Ela é gerúndio progressivamente, até mesmo quando não se esteja de fato realizando-a. Este estar em gerúndio ainda pode ser reafirmado pelo processo transformador de uma viagem. Embora pareça conter inicialmente três etapas: a partida, a viagem propriamente dita e o retorno, ela permanece adiante dessas fases. E é esse além que é sequência, propagação. A partida é o instante decisivo, converte o espaço já habitado em estranho, visto com novos olhos distanciados. A viagem proporciona novas percepções, distintas ações, uma falta de programa dentro de um mundo programado. O retorno provoca tudo aquilo que antes era real, desafia descobrir outros espaços, mudar de lugar, de habito. No entanto, após o retorno existe a fase do além. É quando digerimos ao nosso tempo a experiência vivida, promovendo um pensamento semelhante ao movimento da gaita. Giramos em infinito sobre as marcas deixadas, sobre ocasiões peculiares desse percurso fora da rotina. Gradativamente viajando, experimentando, aprendendo. Quem sabe, por conta do planeta Terra ser movente, entendo isso como um convite de viver em viagem. Mas essa concepção não indica viajantes necessariamente em movimento, pois há viagens no lugar, viagens em intensidade, e essas são as mais urgentes. A viagem de que falo não se refere a maneira de que se deslocam os migrantes, mas, ao contrário, declara um raciocínio de que movimento é tal como Deleuze (Apud WHITE, 2008, p. 48) declara “pôr-se a nomadizar para permanecer no mesmo lugar escapando aos códigos”. Porventura, a fase além, do exílio em Portugal, tenha iniciado a se tornar fecunda. Antes parecia que mal podia me manter em pé, já agora, começo a me equilibrar em movimento. E esse equilíbrio é essencial para descobrir alteridades no lugar em que estou, entender que a cada nova experiência nasce um novo mundo. Por esse motivo, tenho acreditado que territórios não são mais linhas limites da terra, mas são localidades vivas e móveis, são carne, ossos e nervuras. Em consequência, por me permitir a construir esse pensamento imerso no espaço do Compartimento de estar e partir, construí partilha, situações de experiência poética que instauraram um tempo e um espaço outro. Foi somente através desses encontros que pude desenvolver intercessores em trocas sensíveis, e por isso, hoje não sou mais eu mesma. Fui ajudada, aspirada e multiplicada nesse longo processo. Encontrei na concha (re)inventada e em seus ativadores de espacialidades temporárias, ferramentas artísticas que inventam e reinventam cada viajante, e acima de

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tudo, mostra-se como um lugar vivo que proporciona novas formas de compreender as relações entre arte, educação e vida. Acredito que a educação contém a capacidade de apresentar e defender outro mundo possível. Aquele pelo qual se acredita. Aquele pelo qual se luta, tal como se revelou em um diálogo compartilhado com meu pai, professor Miguelângelo Corteze. Entretanto, quando educação é aliada ao construir subjetivo, podem juntas desenvolver um poder revolucionário sobre modos de estar no mundo, diferentes da preocupante condição atual. Mas para isso, é importante que o educador abra abria espaços e resista em meio ao inferno, bem como a orientadora Helene Sacco aconselhou por meio de Calvino (2003), quando eu estava prestes a desabitar essa reflexão. O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: procurar e reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço. (CALVINO, 2003, p. 158) Para permanecer no espaço da arte e educação é preciso encontrar estratégias para sobreviver. Logo, acreditar nessa força, é entender que todo artista-educador assume superpoderes em meio ao inferno. Esse tipo de função composta e essencial é na verdade uma dobra portadora de potências, uma área de intensidade propensa a saltos imensuráveis. Combinar esses dois mundos é construir passagens produtivas, viagens repletas de percepções pulsantes que desaguam em encontros, trocas, relações cheias daquilo que nos faz. Porque afinal, educação somos nós. Por meio dela podemos oferecer resistência em meio ao capitalismo, em meio a sociedade disciplinar. E a resistência é um movimento de extensão, não de implantação. É aventura nos espaços habitados e não a segurança das muralhas. É fazer verter iniciativas que procuram revoluções dentre as configurações de controle social, dentro a ameaça subjetiva. É ter consciência para despertar e construir despertadores, fazendo surgir possibilidades que lutam para deseducar, desencaminhar e descontrolar o que é controlado e dominado. E a arte é capaz de revelar esse possível. Pois quantas coisas poderiam ser no tempo em que não a distinguimos? Não a petrificamos?

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Se argumentei sobre pontos delicados e até mesmo contraditórios, é justamente por confiar que exercer liberdade e resistência é questioná-la, pensá-la e repensá-la continuamente. Ao caminhar por tantas interrogações, sinto-me de repente, como se estivesse percorrendo extensões em busca de território, de lugares meus, só que esses espaços estão desertos. Agora, já não tenho mais certeza se estou cruzando espaços desertos ou algum deserto em mim. Enfim. Se é verdade que o nosso trabalho fala pela gente, o que se vê no final (ou começo) dessa escrita, é que não é necessário criar um mundo, mas a possibilidade dele. Criar esse possível. Abrir esse espaço. Acreditar que por meio da metamorfose das coisas, procedi em forma de um caracol que voa. Caracol que se situa como permanência continuada, que contém um tanto de oceano, outro de deserto e um pouco do vento que retira o trajeto feito. Voei imersa, adentrei continentes, atravessei territórios, emanei um metalugar, vaguei em margens culturais, conheci países, reconheci lugares, relatei cidades, penetrei trajetos, percorri mapas, sonhei poesia, delirei estadia, atribui valores estéticos, compreendi valores simbólicos, inventei minha própria geografia, deformei a educação, desci barrancos, subi montanhas, visitei pedras, recolhi folhas, guardei sementes, mergulhei em sujeitos, encontrei um arquipélago, habitei um oceano, perdi-me nas nuvens, orientei-me em ventos, fotografei altitudes, escalei muros, escrevi postais, rabisquei paisagens urbanas, desenhei mato, recebi cartas, falei em idiomas estranhos, percebi sons, naveguei no deserto, encontrei bibelôs, encantei-me por dizeres, incorporei marcas, construí relações, povoei sensações, nomadizei em permanência, persegui pessoas, resisti na solidão, libertei-me na multidão, tornei-me metamorfose, segui o instinto, deixei trilhos, desapareci em direções, residi o descontínuo. Me desloquei de mim.

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Eu escolho ir. (estando)

Figura 34: Casa 879 (1999) Mariana Corteze. TrĂŞs de Maio (RS).



Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir. Sentir tudo de todas as maneiras. Sentir tudo excessivamente, porque todas as coisas são, em verdade, excessivas. E toda a realidade é um excesso, uma violência, uma alucinação extraordinariamente nítida que vivemos todos em comum com a fúria das almas, o centro para onde tendem as estranhas forças centrífugas que são as psiques humanas no seu acordo de sentidos. Quanto mais eu sinta, quanto mais eu sinta como várias pessoas, quanto mais personalidade eu tiver, quanto mais intensamente, estridentemente as tiver, quanto mais simultaneamente sentir com todas elas, quanto mais unificadamente diverso, dispersadamente atento, estiver, sentir, viver, for, mais possuirei a existência total do universo, mais completo serei pelo espaço inteiro fora. Fernando Pessoa



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Este livro foi composto em Minion Pro e impresso a jato de tinta sobre papel sulfite 75g em 2015.



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