Minhas sete vidas no JK

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dentro do projetado e do vivido

Minhas sete vidas no JK

Mariana Garcia



Minhas sete vidas no JK dentro do projetado e do vivido


Projeto gráfico e diagramação: Délio Faleiro


Minhas sete vidas no JK dentro do projetado e do vivido

Mariana Garcia



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elo Horizonte. 1952. Nascia a ideia Conjunto Governador Juscelino Kubistchek. Antes mesmo de ser concreto, já era

monumento, ainda que imaginário. O projeto arquitetônico desenhado por Oscar Niemeyer abrigava outros tantos projetos, alguns simbólicos e outros nem tanto. Pensado para ser o maior edifício da América Latina, era também o remédio para tentar banir de vez o espírito provinciano vigente na recém construída cidade. O CGJK nasceu como uma tentativa de inscrever a capital mineira no hall das cidades modernas. Não era a primeira vez que Juscelino e Niemeyer trabalhavam juntos para imprimir novos ares à Belo Horizonte. No início da década de 1940, com JK na prefeitura, foram os responsáveis pela construção do complexo arquitetônico da Pampulha. Em 1946, Niemeyer foi chamado para compor a equipe responsável pela elaboração de uma sede para a recentemente criada Organização das Nações Unidas. Lá retomou o contato com seu


“mestre”, Le Corbusier, franco-suíço responsável por situar a Arquitetura no movimento modernista. De volta ao Brasil, foi novamente requisitado por Juscelino, agora governador de Minas, para marcar de vez o cenário da capital. O estado doou o terreno e Juscelino chamou Joaquim Rolla, um proeminente empresário mineiro do ramo do turismo e dos jogos, para ser o empreendedor da obra. Inspirado pela mais recente criação de Le Corbusier, a Unité d’Habitation de Marselha, na França, Niemeyer cria duas 8

grandes torres, os blocos A e B, que, ao mesmo tempo, seriam de uso público e privado, habitacional e comercial. O conjunto acolheria um confortável hotel nos seis primeiros andares do Bloco B e os mais diversos tipos de apartamentos, sanando assim a crescente demanda por moradia de qualidade para a classe média. Receberia também repartições públicas, restaurantes, museus e uma estação rodoviária. Tudo isso localizado às margens de uma das áreas mais nobres da cidade, a Praça Raul Soares, onde se cruzam as avenidas Amazonas, Augusto de Lima, Olegário Maciel e Bias Fortes. Tudo isso seria. Receberia. Acolheria. É fato que os 23 andares do Bloco A e os 36 do Bloco B estão lá, imponentes e decadentes, para quem quiser (e não quiser) ver, mas boa parte da estrutura idealizada pelo arquiteto nunca passou de croquis. A obra, que havia começado em 1953, foi concluída aos trancos e barrancos apenas em 1970, quando os primeiros apartamentos foram entregues com mais de 15 anos de atraso. O CGJK ficou um tanto manco, inclusive no nome. É mais conhecido apenas como JK, assim como o homem que o idea-


lizou. JK falado muitas vezes sem pensar no que está por trás dessas duas letras. Os prédios ganharam vida própria. Pelo menos naqueles dois blocos, os criadores perderam para a criatura. Tirando o Terminal Turístico do JK, uma rodoviária frustrada, a cidade pouco se apropriou daquele espaço. Quase 60 anos depois, o uso é basicamente residencial. E Belo Horizonte ainda é conhecida pelo provincianismo. Ao viver o JK, os moradores reinventaram a história do ícone. É como se as biografias contidas em cada uma daquelas células formassem um emaranhado ideal para contar do portas para adentrar em sete mundos, os de Euler, Geraldo, Pedro+Morgana, Vera, Mirelle, Mário e o da própria autora.

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JK, o Conjunto, não o presidente. As páginas a seguir são como



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Euler 15

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ma pequena pintura da gueixa Cio-Cio San, a Madame Butterfly da ópera de Puccini, enfeita um canto da sala do nú-

mero 2216 do Bloco A. Para Euler, o dono do apartamento, essa é uma das mais belas e tristes histórias de amor já contadas. Puccini divide com Mozart, Machado de Assis, Sidarta Gautama e Carlos Gardel o seleto grupo mental onde ele colocou os nomes dos maiores gênios da humanidade. Ainda assim, não foi Euler quem pendurou o quadro lá e sim sua irmã, Aracy, uma entusiasta da cultura oriental. Não muito distante da gueixa, acima da porta de entrada, está uma pintura da casa em São Tiago, cidade do interior de Minas onde Antônia, a mãe, cresceu. Também não foi ele quem quis assim. Da mesma forma não escolheu o sofá, as almofadas e as cores das cortinas. Primeiro morreu a mãe, depois a irmã, mas cada canto do apartamento é uma sombra que as duas principais mulheres de sua vida deixaram para trás.


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Euler nasceu em Curitiba, o único não belorizontino de três filhos, “um incidente”. No final da década de 1920, a família tirou férias compulsórias por tempo indeterminado com destino ao Paraná. Não era uma boa época para alguém se autoproclamar comunista, ainda mais dentro da polícia. E era isso que Alencar, seu pai, insistia em fazer. O melhor naquele momento era seguir o conselho de um amigo: passar uns tempos fora antes que alguém deixasse seus filhos órfãos e sua esposa 19

viúva. Só em 1946, quando Euler já tinha 9 anos, a família voltou para Minas Gerais. Passaram por diversos bairros até que ele e a mãe (o pai já havia falecido e o irmão mais velho casado) se mudaram para o JK. “Vim para cá no dia 16 de julho de 1974. Pro JK, porque pra esse apartamento eu vim em 1978. Morava no 2212”. A irmã chegou depois. Tinha ficado no Paraná, onde estudou Odontologia e se casou. Acabou deixando o marido para ajudar o irmão caçula a cuidar da mãe, a quem os médicos tinham dado apenas mais um mês de vida. Era 1984. Antônia viveu mais oito anos e, mesmo depois de sua morte, Aracy não voltou a morar em Curitiba. Ficou com o irmão no JK até 2006. O quarto da irmã está intacto. Euler não se desfez de nada, troca os lençóis periodicamente e as roupas ainda estão dependuradas nos cabides. O mesmo vale para a mãe, com quem dividia o quarto. Aos pés da cama dela ainda estão alguns de seus pertences, como os chinelos, um velho pente de cabelo e uma caixa de sabonetes.


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Uma parede inteira da sala do apartamento foi dedicada a retratos de membros família, com uma única exceção: o Papa João Paulo II. Assim como o antigo sumo pontífice, boa parte daqueles rostos existe hoje apenas dentro das molduras. Um dos únicos parentes vivos é o irmão, cujo retrato em preto e branco vestido de fuzileiro naval está logo acima da foto de um Euler ainda bebê. “Aquele menino ali peladinho sou eu. Aquele jovem ali sou eu. E hoje há o caco, sobrou o caco. A minha família sou eu. Morreu todo mundo. Em suma: a minha vida acabou”. 26

O apartamento tem 150 m2, três quartos, uma sala grande, dependência de empregada e uma área razoável. Tudo isso só para ele desde 2006. “Todo mundo fica dando palpite para que eu mude, mas não mudo por dois motivos. Primeiro, eu gosto daqui e, segundo, não é qualquer um que compra esse apartamento. Sabe quanto é que ele está custando no mercado atual? 300 mil reais. E o condomínio meu é muito caro”. Ele paga aproximadamente R$ 700,00 por mês, sendo que cerca de R$ 200,00 desse valor vai direto para a reforma da fachada do prédio – a janela do quarto de Euler foi a primeira a ser trocada. Pagando esse valor, acha que pelo menos deveria ter uma piscina. Há mais de 20 anos ele não sai sozinho à noite, apenas quando algum sobrinho o busca para visitar a casa do irmão no Bairro Prado. Além de achar Belo Horizonte uma cidade perigosa, pensa que já andou o bastante durante os 37 como empregado dos Correios. “Nos ermos anos 80 eu conhecia todas as ruas de Belo Horizonte”. Não se casou e se refere a um retrato da irmã vestida de noiva ao lado do então futuro marido como “o dia do acidente social”. “Eu sou feio, eu sou pobre, eu sou


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baixinho, mas não sou burro. Casamento no meu tipo de vida seria uma prisão. Liberdade é tudo para mim. Vou aonde quero, a hora que quero, chego a hora que eu quero, não tenho que dar satisfação a mulher. Eu já passei por tudo. Não sou prepotente não, mas eu não preciso de ninguém”. Um tanto quanto contraditório para alguém que espalhou pela casa inúmeras fotos da mãe, que só divide a popularidade com Santo Expedito e Buda. Euler mantém na casa os incontáveis símbolos ca28

tólicos por basicamente três motivos: força do hábito, excesso de misticismo e respeito à Antônia e Aracy, que eram cristãs fervorosas. Por isso usa um terço ao redor do pescoço e segue com sua crença em Maria Bueno, uma santa popular de Curitiba. Nas prateleiras vê-se uma extensa coleção de livros, LPs e VHS misturada a pedaços de papel impressos com todo o tipo de oração católica, cartas de tarô e de baralho comum. É viciado em jogos de toda a natureza. No meio de tanto símbolos, ele se diz budista, filosofia que passou a seguir por influência de pessoas próximas. Sempre recita o mantra sagrado namu myo ho renge kyo em busca de harmonia. Fez de seu apartamento um santuário para os mais diversos tipos de adoração ou admiração. Há pelo menos uma imagem de Buda em cada cômodo e na porta de seu quarto está um pôster já velho onde se lê uma das máximas budistas: “Por mais que na batalha se vença um ou mais inimigos, a vitória sobre si mesmo é a maior de todas as vitórias”. Mas sua frase preferida é mais terrena e vem de Dom Casmurro, o livro mais importante de sua coleção: “Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas.”


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Geraldo 35

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travessar em dezembro a porta que separa o apartamento 906 do Bloco B do longo corredor mal iluminado do JK é

mergulhar numa dimensão paralela completamente natalina. É como se houvesse uma Convenção de Papais Noéis. A impressão é de que ali eles contam os dias à espera daquele em que a grande árvore sairá da caixa e será montada num canto importante da sala. Todos, menos Geraldo. É que passando por aquela profusão de renas e guirlandas há outra porta, a que leva para o universo das estrelas e cristais.


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Geraldo até poderia fazer as vezes de Papai Noel em algum shopping da cidade. Tem cara de bom velhinho, uma longa barba grisalha e voz calma. Mas é terapeuta holístico e músico, funções que ocupa não necessariamente nessa ordem. Mora no 906 há 12 anos. Vive junto com sua segunda esposa Janete, com quem está casado há 21 anos, e a filha deles, Karen. “Eu morava no Casablanca, do outro lado da rua. Pagava aluguel. Então surgiu um 40

apartamento aqui que estava à venda, e eu comprei. Daí foi útil porque estava por perto. Era menos barulhento do que morar no miolo do centro”. Na verdade, ele é um reincidente no JK. Antes de ir para o Casablanca, havia alugado uma quitinete no 34° andar do mesmo Bloco B para morar sozinho logo depois que se divorciou. Conheceu Janete num coral em que era maestro regente, casou e mudou para um apartamento no 18°, onde ficou por cerca de dois anos. Só então foi parar no Casablanca, para depois voltar para um apartamento idêntico ao atual, um “dois quartos”, também no nono andar, mas na outra extremidade do corredor. Já estava praticamente decidido a comprar uma casa no Bairro Salgado Filho, quando o apartamento de frente apareceu à venda por um bom preço. Parece que o antigo dono queria vender às pressas porque estava decepcionado com Belo Horizonte.


Morar no número 1353 da Rua Guajajaras é sinônimo de trabalho para Geraldo. Durante muitos anos, foi maestro regente do Sesc, na Rua Tupinambás, a apenas alguns quarteirões de distâncias. É tão perto que de alguns pontos da cidade, quando se olha para o JK, a impressão é de o prédio do Sesc está logo ao lado. Geraldo aposentou-se, não precisa mais descer a Avenida Olegário Maciel para chegar ao trabalho. É terapeuta holístico em casa. “Eu tinha as duas coisas paralelas. antes mesmo de me aposentar eu já estava me envolvendo gradativamente com esse trabalho, mas, quando me aposentei, assumi integralmente, uma coisa assim mais ampliada. Eu já atendia aqui em casa mesmo quando eu era músico”. Janete também trabalha em casa. Faz da mesa da sala e do microondas uma fábrica de velas aromatizadas e biscuits. O quarto maior ganhou uma divisória, de um lado fica o do casal e do outro, Karen. Já o quarto menor foi transformado em “consultório”, como Geraldo gosta de chamar. “Reduto” talvez fosse um nome melhor. Lá tudo é silêncio. Tudo combina com as camisas Made in India que sempre usa. Enquanto da porta para fora a casa cheira a cera e a essências artificiais e tem um severo ar infantil, no consultório o perfume é de erva cidrei-

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Era muito voltado pra esses estudos holísticos e


ra, brando, suave, as paredes de um azul sonífero e a luz é amarelada. É lá que faz as cerca de 180 consultas mensais e também onde lê e escuta Bach, Mozart e Vivaldi. Mesmo que aquelas quatro paredes sejam o que há de mais dele no apartamento, ainda é possível encontrar resquícios do que há de sobra na sala: uma pequena árvore de Natal e um Papai Noel (novamente ele) dividem a mesa com cartas de tarô, pirâmides e outros objetos do tipo. Karen implantou aqueles corpos estranhos por lá, mas nada que comprometa a aura mística vigente. Até con42

tribui para reforçar o sincretismo: símbolos e livros ligados às tradições egípcia, indiana, cristã e xamã, ao tarô e até mesmo à física quântica e aos extraterrestres. Segundo Geraldo, a junção de tudo isso explicaria muita coisa, senão tudo. “Eu costumo dizer que cheguei a esse nível de conhecimento não porque acredito em tudo. Fui por não acreditar. Sou curioso e as coisas começaram a acontecer comigo quando eu era rapazinho...”. Nessa época, há mais de 35 anos, Geraldo tocava em orquestras de baile. Certa vez, estava se apresentando num concurso de misses e sempre que olhava para as candidatas, via uma pessoa no ombro delas, como se as estivesse protegendo. Não tinha a menor ideia do que estava acontecendo e resolveu procurar ajuda. Recorreu primeiro à alopatia, mas não funcionou como esperava. Depois acabou optando por soluções menos ortodoxas. “Alguém me aconselhou a procurar um padre lá no bairro Pe. Eustáquio e, ao invés de me ajudar, ele atrapalhou ainda mais”. O religioso pediu por provas. Achou que o rapaz estava comendo demais e dormindo de bar-


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riga cheia. Geraldo começou a ver o estômago do padre como num Raio X, o esôfago estava cheio de bolhas que subiam a paravam na garganta. Um diagnóstico preciso. Disse o que via e o religioso 44

logo concluiu: – Isso é uma manifestação demoníaca, disse para Geraldo. De formação católica, marca biográfica indispensável para alguém que nasceu em Pitangui, interior de Minas, Geraldo rezou como nunca, mas continuava vendo acompanhantes pendurados nos ombros alheios. Muitos anos depois, descobriu através de seus estudos que se tratava de protetores espirituais. Sem ninguém para ajudá-lo, começou a ler tudo que encontrava sobre as ciências ocultas, de vidas passadas a seres de outros planetas. O episódio que funciona como um marco na vida do então músico foi um transe em que entrou quando estava andando pela rua. Desmaiou e acordou misteriosamente em um centro espírita. Acreditou no acaso e enveredou por esse caminho como forma de apaziguar seus inúmeros questionamentos. Estudou fitoterapia, homeopatia e hipnose. À medida que ia pesquisando, novos sinais


começaram a aparecer de forma abundante. Segurava um lápis durante uma sessão quando, mecanicamente, começou a escrever uma mensagem em letras garrafais e numa caligrafia típica daquela de criança sendo alfabetizada: “eu sou Selma, sua junto de vocês novamente, vou nascer dia 30 de agosto”. A mensagem psicografada trazia detalhes inclusive sobre o parto do bebê. Coincidência ou não, o casal estava esperando o nascimento da primeira filha. Era Selma. Os extraterrestres apareceram de uma forma não menos singular. Ele estava acompanhando a Guerra do Golfo pela TV em sua casa no Floramar, bairro para onde se mudou logo após o primeiro casamento. Era de madrugada quando apareceu uma figura enorme atrás do aparelho. Ela vestia um macacão colado ao corpo, “coisa espacial mesmo”. Primeiro pensou que estava dormindo. Depois, que era um espírito. E então ela falou: “Eu sou Vona e agora vou falar muito com você”. Desde então, a alienígena faz visitas esporádicas onde quer que Geraldo esteja.

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irmã que morreu ainda criança. Estou indo ficar


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Vona esteve várias vezes naquele quarto azul do nunca está sozinho. Orgulha-se do ambiente que criou e vive intensamente aquela atmosfera. Os espíritos, juntamente com os cristais, agem como um desintegrador de cargas negativas, função importante na vida de alguém que se preocupa em tirar o que há de ruim das pessoas. Ele não sai muito de sua casa. Além dos amigos de outras dimensões, recebe basicamente os seus pacientes. Vez ou outra algo o faz sair da rotina, como o grupo de Alquimia que teve um dia. Diz conhecer todos os vizinhos do 9° para baixo, mas raramente dá um passo fora da soleira. Os porteiros costumam comentar que ele nunca passa por lá. Tem gente que é notada pela ausência. Conta que era mais sociável quando se ocupava em tempo integral da música. Ossos do ofício. A vida por ali já é cheia demais. “Parece estranho, mas é um mundo que me satisfaz. A gente descobre mundos dentro de um mundo. Dimensões diferentes. Astrais. Esse ambiente aqui é muito mais do que você está vendo. Vejo dimensões paralelas. A física quântica explica bastante isso”.

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apartamento 906. Não só ela. Geraldo gosta de lembrar que


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Pedro + Morgana 57

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edro cozinha e Morgana lava. Ele é de Minas Gerais, ela do Rio Grande do Sul. Cada um é a metade do casal do 1608

do Bloco A. Depois de um tempo dividindo casa com colegas, Pedro cansou de se ver “forçado a mudar de vida pela mudança da vida de outras pessoas” e em 2003 resolveu alugar um apartamento para morar sozinho. O JK apareceu como uma opção viável para o bolso e interessante no quesito conjunto da obra. É que ele, assim como Niemeyer, é arquiteto. Passou quatro anos só, como havia desejado, até que em agosto de 2007 o fator “à distância” do namoro foi anulado e Morgana se mudou para o apartamento de dois quartos: “essa aqui é a casa que eu mais sinto que foi minha, desde sempre. Fora talvez a casa da minha mãe, que ainda assim é a casa da minha mãe”.


Morgana nasceu em Lajeado, cidade que fica aproximadamente a 90 km de Porto Alegre. Saiu da casa da família no interior e foi morar na capital do estado quando passou no ves58

tibular de Comunicação Social. Estava visitando Belo Horizonte com uma amiga também do Sul quando Pedro, na época ainda um amigo, propôs na mesa do bar que terminassem de beber a cerveja no apartamento dele. Os belorizontinos do grupo avisaram então que elas estavam entrando em um prédio projetado por Niemeyer. Morgana achou a experiência no mínimo incrível. Só depois soube da espécie de má fama ainda vigente no imaginário local acerca do JK. “Eu que não sou de BH não tenho essa imagem do Conjunto JK que as pessoas contam. Um lugar trash, que tinha marginal, que as pessoas vinham aqui pra se suicidar. O Pedro brinca que nos anos 60 e 70, menina de boa família não podia entrar em carro de homem solteiro e passar na frente do CJK”. Pedro larga o cigarro no cinzeiro e interrompe para corrigir o ditado. “A recomendação das mães era: “não entre em carro de moço, nem no JK”. Ele acredita que, num dado momento, foi importante ser radical para que assim houvesse ordem. Hoje, esse radicalismo contribuiria para a burocratização do prédio. “É meio militar. Tem um pouco desse climão de repartição pública”.


A primeira vez que Pedro pisou no prédio foi ainda quando cursava Arquitetura. O JK faz parte de um circuito informal e obrigatório para os alunos da área. Ele e os colegas da faculdade precisavam fazer uma pesquisa in loco, só não sabiam até encontrarem uma velhinha. A terceira idade é quase uma instituição do condomínio. Pedro não se lembra bem ao certo o que aconteceu para que a senhora se aproximasse deles, tem a impressão de que alguém emprestou algo para ela ou coisa do tipo. Mas a ajuda foi providencial e rendeu um convite para conhecerem a casa dela. No condomínio não existe um sistema de comunicação interno entre moradores e portaria. Caso alguém esteja indo visitar um morador de um dos prédios, é necessário antes mostrar o RG para o porteiro, que por sua vez irá anotar o nome do visitante, o número do documento e do apartamento onde deseja ir. Se a visita chega depois das 22h, é preciso que o morador, em carne, osso e pijama vá até o térreo liberar a entrada. Essas medidas deveriam funcionar como constrangimentos para curiosos e afins. Até que são eficazes, mas não impedem, por exemplo, que Morgana receba no meio da tarde a visita de uma moça oferecendo serviço de manicure.

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como transpor a barreira da portaria, ou melhor, não sabiam


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Os dois são argutos observadores da vida social do Bloco B. “É curioso aqui. Se quiser entrar e sair despercebido e não fazer amizade com ninguém, você pode. Se quiser conversar com todo vizinho que cruzar por aí, com os caras que ficam sentados lá na portaria batendo papo o dia inteiro, pode também. Como são muitos apartamentos com todo o tipo de gente do mundo, seria a mes62

ma coisa que você sair por aí fazendo amizade na rua”. O número de pessoas que circula no prédio pode até ser incontável, mas é impossível deixar de reparar nos “personagens”: “tem uma velhinha que fica andando de elevador o dia todo. Tem o Jamaica, que é um doidão que fica meio que cantando. Eu acho que a gente cruza com eles em determinados andares porque são os próximos da gente. E rola não exatamente uma interação, uma amizade, mas, assim, é uma relação de observação”. De certa forma, eles mesmos são “personagens” dessa Babilônia. Pedro e Morgana são típicos exemplares do grupo dos jovens e modernos. O 1608 é cheio de objetos decorativos que estão longe de parecer com aqueles que enfeitam a sala de uma tia velha. Gostam da Mafalda e do Tarantino, assinam a revista piauí e trocaram o PC pelo iMac. Morgana é produtora de cinema. Usa um dos quartos do apartamento como escritório e


resolve boa parte do serviço pela internet. O mesmo cômodo é também usado como sala de televisão e quarto de hóspedes. Há cerca de dois anos, se tornaram sócios numa loja/galeria de arte, que funciona como uma ocupação paralela. “Essa atividade não dá lucro propriamente, então a gente procura tirar ganhos indiretos, como retirar uma gravura ou uma obra, e assim vamos constituindo um acervinho não da loja, mas nosso, e vamos traO apartamento deles é praticamente original de fábrica. Antes de Pedro alugar, o dono havia apenas trocado as louças do banheiro por umas cinzas “assim meio fuleiras”, que logo foram substituídas por novas que tinham sobrado de uma reforma que o arquiteto estava fazendo na casa de um cliente. Ele tirou o bidê para dar espaço a uma máquina de lavar, hábito corriqueiro no JK, já que a maioria dos apartamentos foi projetada no espírito “apart-hotel”. Esperava-se que houvesse uma lavandeira coletiva para os moradores. Outras pequenas alterações foram feitas, como uma bancada nova na cozinha e umas pastilhas substituindo alguns azulejos que despencaram, “mas nada radical não”. Perto de vários apartamentos tanto do Bloco A, quanto do B, o 1608 é praticamente virgem.

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zendo pra cá”.


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Ambos tiveram a oportunidade de visitar vários apartamentos no JK. Morgana precisou hospedar um grande número de pessoas a um baixo custo durante um curto período quando estava fazendo um filme. Encontrou no conjunto alguns apartamentos mobiliados que são alugados por temporada. Morgana e Pedro já acompanharam alguns amigos que queriam alugar ou comprar um imóvel no JK. Algo como guias locais. “Não é que a gente vá visitar as pessoas, mas é que a gente aproveita as oportunidades pra poder conhecer...”. Depois de sete anos no Bloco B, surgiram demandas para Pedro reformar alguns apar70

tamentos e acabou virando uma referência no assunto. Já viu de tudo por lá, “tanto pro bem, quanto pro mal. Tem uns que você entra e é tudo forrado com uns papéis de parede horrorosos, parece que você está dentro de um caixão. Eles arrancam esse piso, que eu acho incrível, e colocam aquela cerâmica horrorosa”. Ainda que pontualmente, há uma descaracterização do projeto arquitetônico original. Há poucos anos, gente como Pedro e Morgana dificilmente moraria no JK. Hoje eles estão longe de ser minoria. “A gente percebe que de uns anos pra cá as pessoas tem tido mais mobilidade. Mais gente mudando de um lugar para outro sem muito grilo. Estudantes, pessoas ligadas à cultura, que em geral tem a cabeça mais aberta. E aí elas chegam numa cidade e ficam sabendo que tem um prédio incrível do Niemeyer onde é possível morar com um custo relativamente baixo. Ela não tem esse preconceito que existe em Belo Horizonte, em maior ou menos escala”. Ao dizer isso, Pedro não deixar de estar falando um pouco sobre ele mesmo e Morgana. É bem melhor do que “um MRV no Bairro Castelo”.


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televisão é o que há de mais importante na casa da Vera. Não é difícil que o aparelho fique 24 horas seguidas ligado

no 903 do Bloco B. “Televisão foi feita pra ficar ligada mesmo né?”. Vera assiste de tudo, mas gosta mesmo é de novela, jornal e programa de entrevista. Se for no SBT, melhor ainda. “A Globo é muito repetitiva. Muito formal. São imbatíveis na técnica, mas não saem daquele quadrado. Acho que a Comunicação tem que ousar. Sábado e domingo eu acho a programação do SBT maravilhosa. Principalmente domingo. Eliana, Sílvio Santos... Acho ele muito engraçado e muito moderno”. Pela paz no lar, há uma televisão idêntica à da sala no quarto, para que o companheiro dela não perca os jogos de futebol. Alguns podem achar uma TV per capta um bom número quando se trata de um apartamento com cerca de 40 m2 onde moram apenas duas pessoas, mas não é para Vera. Ela ainda vai comprar um aparelho menor para acompanhá-la na cozinha enquanto prepara o almoço.


Para o apartamento ficar perfeito, o plano é trocar o sofá por um maior, onde os netos poderão sentar perto da avó. Isso porque, no quesito imaterial, o mais importante para ela são os três netos. Cada um veio de um casamento de Alexandre, filho único de Vera. Eram quatro, mas um foi assassinado aos 17 anos por causa da “violência urbana”. “Eu tenho muito carinho pelos meus netos porque fui criada sem pai, nem mãe. A família 78

para mim é algo imprescindível. A pessoa que não preza a família fica muito solta, perdida no espaço”. Morar no JK significa ter a casa sempre cheia. O apartamento funciona como ponto de apoio para os familiares, que costumam almoçar, lanchar e descansar por lá. A neta mais nova, de seis anos, passa inclusive os fins de semana na casa da avó. Antes de mudar para o JK, Vera viveu por 30 anos no Bairro Gameleira, em um apartamento grande, com três quartos, sala, cozinha, e claro, uma televisão em cada cômodo. “Lá na Gameleira eu tinha muitos amigos. Estranhei um pouco quando vim pra cá. Não tinha amigos aqui. Mas com o tempo a gente se adapta com tudo. Agora eu acho bom esse tempo que fiquei mais isolada, deu para refletir mais. Mas hoje tenho muitos amigos aqui. Sou muito bem quista. A gente faz por onde também”. Separou-se do primeiro marido há cerca de 10 anos e resolveu comprar um lugar menor para viver, que fosse mais fácil de cuidar e sem escadas. Olhou vários modelos no JK. Tinha preferência por um duplex, mas achou o condomínio muito caro e acabou optando pelo atual. Paga 200 reais por mês e acha bem razoável.


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Ela conhecia o Conjunto JK desde menina. O avô trabalhou como eletricista durante a construção e uma tia sempre ia ao prédio levar a marmita com o almoço. Na época, morava com alguns parentes no Bairro Pedro II. Não se lembra bem, mas acredita ter acompanhado a tia algumas vezes. Alguns bons anos depois, voltou ao prédio por causa do atual companheiro, que morava em uma quitinete no sexto andar do mesmo Bloco B. Eles se conheceram há 30 anos na faculdade de Direito e até 2000 eram apenas bons amigos. Ela se casou. Ele também, e se mudou do JK. Continuaram mantendo contato até que se viram ambos divorciados. Ele tinha ido passar apenas uns dias com ela, mas “nunca mais foi embora”. Depois do quarto divórcio, foi Alexandre quem se mudou para uma quitinete no 10° andar do Conjunto. “Eu amo o JK. Sou apaixonada. Só o barulho me incomoda. Tem que ficar com a janela


fechada, senão eu não escuto a televisão. E tem Tem que ficar jogando aromatizante. O resto eu acho maravilhoso”. E isso inclui o piso de peroba-do-campo, que estava completamente queimado quando Vera chegou ao 903. Parece que o antigo dono, um senhor já bem idoso, dormiu com o cigarro aceso e assim fez com que começasse um incêndio. Foi preciso raspar o chão, arrancar o papel de parede velho e pintar a casa inteira. A nova dona aproveitou a reforma para quebrar a parede que separava a sala da cozinha, porque ninguém aguentava ficar lá dentro de tão abafado que era. “Só é proibido fazer fritura aqui em casa. De vez em quando dá a louca e eles inventam de querer fritar bacon. Aí eu digo: ‘se alguém ligar o fogo e fritar o bacon, eu pego a minha bolsa e não volto nunca mais’. Suja tudo. Engordura e faz mal pra saúde. Quem quiser comer batata frita vai no restaurante”.

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também o cheiro que vem dos canos. Esgoto puro.


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Mais do que reformar, foi preciso “expurgar muita coisa” quando trocou a Gameleira pela região central. Além da televisão, trouxe apenas uma cômoda que fazia parte do jogo de quarto que o ex-marido havia lhe dado no casamento. Geladeira, fogão, sofá eram novos e em escala reduzida. “Alguma coisa eu nha pra reconstruir a minha vida”. Vera gosta muito de enfeitar a casa, e agora, depois de 10 anos colecionando novos objetos, falta lugar até mesmo para um porta-retrato. Transformou-se numa obsessiva pela otimização do ambiente. Tanto que não poupou sequer o minúsculo espaço entre a janela do apartamento e a persiana de metal que cobre toda a fachada do Bloco B: é lá que fica o jardim e o varal para secar as roupas. No entanto, a apropriação máxima do espaço se deu na porta entre a sala e o quarto, onde Vera instalou um grande espelho, só que com maçaneta. É que ela é extremamente vaidosa. Não vai sequer ao supermercado sem estar devidamente maquiada. “Agora tenho que caprichar mais porque a idade pede. Os pés de galinha começam a aparecer. Tem que ser assim. Se a gente começa a entregar o corpo...”. É também como ato de resistência que faz aulas de dança de salão desde quando se mudou pro JK. É especialista em samba e bolero e mais recentemente está se aventurando na salsa.

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trouxe, de estima, mas pouca coisa. Eu vim só com uma sacoli-


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Vera trabalhou dos 13 aos 53 anos e está aposentada desde 1995. O primeiro emprego foi como fotógrafa de crianças em estúdio, atividade que durou aproximadamente sete anos. Depois virou telefonista na Câmara Municipal de Belo Horizonte, foi subindo de cargo e se aposentou como chefe da Divisão de Recursos Humanos. “Acho que a vida sem trabalho não significa nada. Senti muita falta no início. Mas não continuei trabalhando porque eu queria mesmo é curtir família, curtir 90

casa... Fazer comida pros netos, essas coisas assim, básicas”. Hoje, Vera, o companheiro e o filho tocam um pequeno negócio juntos. Compraram duas vans e fazem transporte universitário. Ela é a responsável pelas finanças e pelos acordos, como o que fez com a administração do condomínio para que guardassem durante a noite um dos veículos numa área livre no subsolo do prédio. Uma garagem improvisada. Vera até pensou em fazer um estúdio de fotografia na quitinete do filho, que passa mais tempo fora do que em casa. O novo negócio seria destinado a pessoas idosas, que “costumam ter vergonha de fazer umas poses mais ousadas”. “Tenho boas ideias, mas não executo. Meu marido briga muito comigo por causa disso. Talvez mais tarde, quando eu melhorar um pouco da minha depressão. Vamos ver na hora que os meus netos não precisarem mais de mim. Aí vou cuidar das minhas coisas.”


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Mirelle 97

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uem casa quer casa. Na família da Mirelle a máxima ganha roupa nova: quem casa vai parar no JK. Primeiro vieram

os pais. Eles se casaram numa quarta-feira do ano de 1975 em Teixeiras, cidade da Zona da Mata, e logo depois da festa transformaram um parente em chofer e pegaram a estrada para Belo Horizonte. Uma irmã do noivo havia acabado de se mudar com o esposo para um apartamento de dois quartos no JK e ofereceu a residência para os recém-casados passarem alguns dias. De lá eles iriam continuar a lua-de-mel em Brasília, onde o General Ernesto Geisel ocupava a cadeira de presidente da república. Voltaram para Teixeiras, tiveram três filhos, se mudaram para Belo Horizonte e durante 29 anos não pisaram no lugar onde a vida de casado deles havia começado.


Em 2004, Leonardo, o filho mais velho, juntou as escovas de dente com Sabrina e ganhou de presente dos pais um apartamento no JK igual àquele dos tios, que já não moravam mais por lá. Três anos depois foi a vez de Mirelle, a filha do 98

meio, entrar na igreja de Teixeiras vestida de noiva. Ela já sabia o que a esperava na hora do “enfim sós”: era o 1127 do Bloco A. “O engraçado é que não foi nada planejado morar aqui. A gente só queria morar no Centro, mas poderia ser em qualquer lugar da região. E acabou sendo aqui mesmo”. Ela e o marido, Marcelo, alugaram o duplex poucos meses antes do casamento. “Acho que é muito marcante eu estar começando a minha vida de casada aqui. Nunca tinha saído de casa antes, nem pra estudar. Talvez a gente se mude logo, mas sempre vai ter aquela lembrança. Já falamos com um pouco de pesar”. Mirelle pensa em ter filhos em breve e seu atual apartamento faz com que adie seus planos, já que tem apenas um quarto. Paga por mês R$ 650,00, o que incluiu aluguel e condomínio. Quando vai falar sobre assuntos burocráticos, a voz endurece e a dona-de-casa cede lugar à advogada: “pela legislação, o locatório pagaria o condomínio e a luz, já o IPTU seria acordado entre as partes. Aqui nós combinamos de pagar o IPTU. Só que a partir deste ano o prédio é isento porque deve ser tombado como patrimônio de Belo Horizonte”. Mirelle tra-


balha em uma repartição pública no Edifício Maletta das 7h às 13h e à tarde em um escritório de advocacia perto da Praça da Assembleia. Nas horas vagas, faz propaganda do JK para os amigos e colegas de trabalho: “todo mundo que me pergunta, ou mesmo quem não me pergunta, eu falo sobre o prédio. uma amiga que morava em Sabará a alugar uma quitinete no Bloco B e agora está tentando convencer outra que quer sair da casa dos pais e morar sozinha. “É, realmente eu faço muita propaganda daqui”. Valor do aluguel, tamanho e “desenho” são as três características que fazem do duplex, na opinião de Mirelle, o lugar ideal para recém-casados como ela. De fato, não é um apartamento que se vê em todo prédio. Ele é único desde a porta, que desliza para o lado ao invés de abrir para dentro. Logo depois há uma escada que leva para a sala, onde a primeira vista é a clássica janela toda de vidro que do lado de fora faz as pessoas imaginarem a vida atrás do vidro. Há outra escada do mesmo tamanho da anterior para chegar ao quarto, que tem o mesmo formato da sala. No primeiro andar está a cozinha, minúscula, como a de boa parte dos apartamentos dos dois blocos. No segundo piso, o banheiro, que ainda conserva os azulejos e a banheira do projeto inicial.

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Aqui é perto de tudo e é seguro”. Com essa ela já convenceu


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Mirelle encontrou vários “poréns” na hora de escolher os móveis para a casa. “Muita gente falava ‘põe um sofá de canto’, mas eu não tenho canto. Eu tenho janela e porta. Mas eu acho lindo. Isso e essas luminárias na parede. Acho que dá um clima de aconchego”. Ela e o marido sabiam desde o começo que o atual endereço seria provisório. No duplex não cabe sequer todos os presentes que ganharam no casamento ou o enxoval completo que a noiva havia preparado antes de casar. Deixaram boa parte na casa da mãe dela. Até as roupas vão se 104

revezando no armário segundo as estações do ano. Pouco antes de se casar, Marcelo começou a trabalhar com marcenaria como hobby. Fez uma sapateira pequena, pintou e disse que seria para a casa nova, mas nem isso pôde levar. “O jogo de quarto que eu tinha lá a minha mãe ainda está guardando para eu levar quando tiver uma casa maior. Sabe esses móveis tubulares cor de rosa? Minha mãe falou que não vai desfazer de nada pra que, quando eu tiver uma filha, eu monte o quarto cor de rosa dela”. Mesmo reclamando da falta de espaço, o apartamento é até mesmo um pouco vazio. Tudo é impecavelmente organizado, limpo, imaculado. Uma casa discreta como a dona. Talvez por isso os instrumentos musicais ao lado do sofá, principalmente a bateria eletrônica, pareçam tão dissonantes “O violão, Marcelo comprou antes da gente se mudar, já com a expectativa de trazer pra casa nova. Na época eu até pensei ‘a gente gastando tanto com as coisas do casamento e você comprando violão’. Mas era com esse intuito de ter um ambiente de música aqui”. A bateria foi a última aquisição do casal: “eu


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pensei, ‘nossa, nem temos onde colocar, mas tudo bem, a gente dá um jeito’. Fim de semana é a gente aqui, ouvindo música”. Além da família, eles recebem também os amigos do grupo de casais da igreja. São católicos praticantes e a música faz parte do propósito “missionário” do casal, embora Maria Bethânia seja a 106

mais tocada por lá ultimamente. A música também foi o motivo para outro encontro no JK. Enquanto o pai de Mirelle esperava o elevador no térreo para subir até o apartamento da filha, avistou Xiquito, um antigo conhecido de Teixeiras com quem tinha uma banda cover de Beatles. Não se viam há anos. Xiquito ainda é músico e na ocasião estava arrumando os instrumentos para tocar no salão de festas do JK. “Tem ainda uma amiga de infância da minha mãe que mora aqui sozinha e tem uma menina que foi muito amiga minha na época da faculdade e que a madrasta dela mora aqui e outra que morava aqui, mas que saiu depois que casou. Além disso, tem uma colega minha de colégio que mora aqui com o namorado, que eu encontrei por coincidência no elevador. E tem muita gente da minha cidade que mora aqui também”. A última conhecida que encontrou foi uma amiga do trabalho que havia se divorciado e mudado com o bebê para uma quitinete, que estava querendo vender o apartamento porque parecia ter voltado com o marido. “Mas não sei o fim da historia. Tenho que esperar encontrar com ela no elevador de novo...”


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Mário 113

N

a casa do Seu Mário ainda é Dezembro. Mais precisamente dia 15 de Dezembro de 2009, data marcada na folhinha

pendurada na parede. Lá fora, 2010 passa rápido. Do lado do calendário jaz um relógio de parede do Atlético Mineiro, com um galo lembrando melancolicamente as horas. Isso faz parecer que tempo para quem tem 79 anos é detalhe e calendário é objeto decorativo. Parece. Seu Mário é sozinho. Mora com ele mesmo no apartamento 1403 do Bloco B, uma quitinete meio claustrofóbica onde ele fez caber uma cama de solteiro e alguns outros poucos móveis. No banheiro minúsculo, o chuveiro e a pia dividem o espaço com uma máquina de lavar e um varal.


Seu Mário é sozinho sem estar só. Gasta poucas horas do seu dia dentro de casa e lembra a todo o momento como o tempo é mercadoria em falta. Enquanto muitos fazem da terceira idade uma casa de repouso, ele a transformou num começo. Há nove anos se mudou para o JK, depois de 70 vivendo sempre acompanhado. “Eu praticamente não tinha mudança. Arrumei uma cama. Uma cama com um colchão. Eu não tinha nada. Eu nunca esperava de morar só. Fiquei aqui três anos triste. Tinha dia que eu até chorava”. Amigos começaram a insistir para que ele comprasse um fogão, uma geladeira, ou qualquer 114

coisa que preenchesse o lugar. Hoje Seu Mário cozinha, lava, passa e assiste TV em casa. Aos domingos lava a roupa e uma vez por semana fica até tarde limpando as verduras o frango que vai levar na marmita para o trabalho nos próximos dias. Está aposentado há 23, mas preencheu seus dias como se dependesse de uma agenda cheia para viver. E talvez dependa, não financeiramente, mas emocionalmente. “Eu tenho programa a semana toda. Segunda-feira eu levanto cedo, faço minha marmita e vou pro trabalho. Largo o serviço às três da tarde. Chego aqui, arrumo e vou pra academia de Taekwondo. Às quatro horas eu já estou dentro da academia. Volto, tomo banho e vou pra igreja. Volto da igreja, tomo um lanche e deito. Eu não janto”. Terça-feira é praticamente a mesma coisa, basta substituir o Taekwondo pela dança de salão. Seu Mário faz aulas de dança três vezes por semana no prédio de dois andares na Savassi onde trabalha como vigia. De lá toma um taxi para o Bairro Floresta, onde vai “ler a palavra da Bíblia”. Essa mesma rotina se alterna entre as quartas, quintas e sextas. Trabalha aos sábados de 15 em 15 dias, mas ainda que


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seja dia de folga vai para a Savassi ensaiar uns passos ao som de samba, forró e zouk. “O zouk eu comecei a treinar há pouco tempo. É bem moderno. No inicio eu não gostava, mas o trem é bom porque mexe com o corpo da gente todo”. Sequer aos domingos ele se dá uma folga: sempre recebe algum convite para 116

visitar um amigo ou as irmãs, que moram em Betim, e também vai à igreja Maranata, que não é a sua igreja, mas “pra não deitar cedo eu vou lá”. “Pra me achar no telefone aqui de casa só se for mais de nove horas da noite. É diariamente assim. Entra ano e sai ano. Tem dia que o meu corpo está daquele jeito, doendo. Mas eu aprendi uma coisa: quando tá doendo é quando eu vou mesmo pra academia. Porque se parar acabou, aí não vai mais”. Ele reserva alguns dias também para ir aos Alcoólicos Anônimos. Quando tinha 17 anos, sua família se mudou de Belo Vale para Belo Horizonte a fim de que os filhos pudessem estudar. Seu Mário começou a sair muito e, conseqüentemente, a beber todos os dias. Acabou não estudando e durante 30 anos passou os seus dias bebendo, fumando e gastando todo o salário que recebia como funcionário da Rede Ferroviária Federal. Tornou-se alcoólatra. Em 1974 foi internado pela primeira vez numa clínica de reabilitação. “Eu estava começando a ficar doido de beber. Olhe aqui, eu cheguei a esse ponto”, apontou para uma foto velha e prosseguiu, “eu estava perto da morte”.


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Não sabe bem como, mas arrumou “uma doida para casar”, ainda que passasse boa parte do tempo bêbado. Foi a primeira que apareceu. Juntos tiveram um filho que hoje está com 34 anos, mas não conversam desde que se divorciou 120

da ex-esposa. Moravam num apartamento próprio no Bairro Serra Verde, onde viveu por 10 anos, tempo que durou o seu primeiro, único e conturbado casamento. “Eu queria comprar um apartamento daqueles amarelos lá no Serra Verde e foi lá que acabou tudo”. Depois de muitas de brigas e ameaças por parte dela de colocar fogo no apartamento, Seu Mário saiu de casa e foi morar durante três anos com a família de um pastor que vivia em frente. “Foram eles que curaram a minha doença”. Virou evangélico e passou a freqüentar os Alcoólicos Anônimos. Quando o pastor se mudou do Serra Verde para a Floresta e Seu Mário não poderia acompanhar, um conhecido da turma de Jiu-jítsu sugeriu que se mudasse para o JK. O colega apresentou Seu Zeti, dono de uma banca de jornal na Rua Rio de Janeiro e também de vários apartamentos para alugar nos blocos A e B. Era necessário


arrumar dois fiadores, mas Mário só conseguiu um e ficou assim. Fizeram um contrato que venceu há algum tempo e nunca mais foi renovado – “ele gosta de mim pra caramba”. Em junho de 2001 começou pagando R$ 120,00 mensais, mais despesas como luz e condomínio. Só nove anos Mário acha que é um preço mais do que justo para seu apartamento. Em cima da cômoda da televisão fica um porta-retrato grande com a foto de um casal bem jovem. Não se trata de nenhum familiar e sim de dois vizinhos. Há quatro anos se conheceram numa reunião do AA, descobriram que coincidentemente viviam no mesmo bloco do JK e hoje são bons amigos. Numa cômoda menor ao lado, Seu Mário colocou outro porta-retrato com uma foto dele numa competição de jiu-jítsu. Faz questão de mostrar as medalhas que ganhou em competições de artes marciais e os exames médicos provando que ele está 100%. “A pressão está 12 por 8 e não tomo nenhum remédio”. O único medicamento que toma quase diariamente é um AAS infantil, para “ralear o sangue”, porque come muita coisa pesada.

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depois é que o valor foi reajustado para R$ 154,00.


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É claro que não credita os méritos de sua saúde invejável ao AAS. “Comecei a fazer Jiu-jitsu aos 70 anos. Cheguei até a faixa azul. Depois fiz Kick Boxing, Muay Thai, Kung Fu e hoje Taekwondo. Tudo o que os outros fazem eu faço também. Deus me deu esse privilégio depois que eu parei de beber e fumar. Se precisar correr daqui até a Pampulha eu vou. Fiz um exame médico esses dias aí, faço de ano em ano e o doutor ficou em tempo de ficar bobo. Eu me considero um homem rico. Eu sou rico porque tenho muita saúde”.


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Mariana O

JK foi meu Norte. Há quase oito anos me mudei sozinha

que eu não fosse atropelada ao atravessar alguma rua, eu torcia para não ficar perdida. Esse era o meu maior medo, que não demorou muito para ser substituído por outros mais pertinentes. Moro no Barro Preto desde fevereiro de 2003. Primeiro na Rua Mato Grosso, na esquina com a Avenida Augusto de Lima. Depois na Avenida Augusto de Lima entre as ruas Mato Grosso e Rio Grande do Sul. Isso significa estar a apenas um quarteirão do JK. É por isso que o Bloco B, o maior prédio de Belo Horizonte, funcionou para mim num primeiro momento como uma bússola improvisada. Certa vez, passava com um primo pela Rua Timbiras, onde foram erguidos os 23 andares do Bloco A, quando ele me disse que todos os moradores da zona urbana da nossa cidade, Santa Maria do Suaçuí, caberiam dentro dos dois prédios. O JK tem aproximadamente cinco mil habitantes. Fantástico, pensei. Com 15 anos a gente se deixa impressionar mais facilmente. Quando a professora de Artes do primeiro ano do colégio pas-

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para Belo Horizonte. Enquanto minha avó rezava para


sou para minha turma “Janela Indiscreta”, do Hitchcock, pensei que o Conjunto seria um ótimo cenário para uma versão tupiniquim do filme. Acho que o JK é campeão de lendas urbanas na cidade. Nem o Cemitério do Bonfim e sua loira mitológica são páreos. JK, o presidente, foi profético em uma entrevista que concedeu em 1952 ao Jornal Tribuna de Minas: “O Conjunto caracterizará a silhueta da cidade e já se prediz que constituirá ele, na imprensa e na tradição oral, a ‘marca registrada de Belo Horizonte’, ou seja, o que é a Torre Eiffel para Paris ou o Rockfeller 130

Center para Nova York”. Profético, não em relação às comparações e sim quanto à tradição oral. Não é difícil escutar por aí histórias de pessoas que se jogaram do alto de um dos prédios, de morador assassinado, de gente que vendia drogas e sexo lá dentro. “Favela vertical” era (ainda é para alguns) a expressão mais comum para se referir à criação menor de Niemeyer – que inclusive evita falar sobre a obra. Quem diz isso provavelmente nunca foi a uma favela e muito menos ao JK. Por quase sete anos nutri à distância toda a sorte de sentimentos esporádicos em relação aos prédios: espanto, curiosidade, admiração, indiferença. Excluindo os arredores, só havia pisado no Terminal Turístico do JK, localizado embaixo do Bloco B, para cortar caminho ou ir ao Seu Zezinho, tradicional sapateiro que está há anos no local. Mas isso não dizia muito ou quase nada sobre o todo. Para além dessa parte acessível, de uso público, passei a me interessar pelo que estava na ordem do morar, do privado. Fui atraída pela ideia de que Oscar Niemeyer projetou dois prédios que contêm uma diversidade impressionante de habitats, que vão de 22,7 a 152,8 m2. É como se ele


tivesse pensado antes sobre as vidas e necessidades possíveis para cada uma das unidades habitacionais que desenhou. São quitinetes, duplex e apartamentos de três, um e dois quartos, este último com e sem dependência de empregada. Dois prédios concebidos como “máquinas de morar”, ou seja, há uma relação íntima entre forma e função da casa. Em 2009, o JK virou um negócio sério para mim. O que conto aqui sobre Euler, Geraldo, Pedro+Morgana, Mirelle, Mário e Vera e como eles vivem no JK é o meu Trabalho de Conclusão do Curso de Comunicação Social, ou simplesmente Projeto Experimental com uns dizem. No entanto, para mim, Por cerca de sete meses fiz repetidamente o caminho entre a minha casa e um dos dois blocos. Me convidei para adentrar na intimidade alheia e, para o meu espanto, ganhei vários “sins” e apenas um “não”. Acho que foi pura generosidade despretensiosa (ando achando muito). Todos foram fundamentais para a humanização do meu tema. E quando digo todos, não estou me referindo apenas aos seis que estão aqui. Antes e depois deles vieram outros que também abriram as portas de seus apartamentos a uma completa desconhecida e contribuíram, por sua vez, na construção do meu JK. Os dois prédios voltaram a ser um Norte, agora nada geográfico.

O meu JK tem um quê de começo e de fim.

Tem aqueles que se casam, os que se separam, uns querem ter a chance de esquecer e outros a de lembrar. É começo e fim para mim também. O meu JK é subir nove andares de elevador escutando Always do Bon Jovi tocando na rádio condomínio. É tomar café, suco de manga com goiaba e leite quente com

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esse é o meu Projeto Sentimental


Toddy. É conversar sobre Sartre e Beauvoir, García Marquez, Lula, religião, fé, frustrações e planos (os meus e os deles)... É feito por momentos que eu não fotografei. É descobrir o que significa a carta “IV Imperador” no Tarot Egípcio e o número 6 no I Ching. É tirar uma carta conselheira onde li: “a sua capacidade de resolver e transformar cresce nas horas difíceis”. Quando tudo ainda era só ideia, criei um método de aproximação: três entrevistas por morador/apartamento. A cada dia tiraria um tipo de foto. No primeiro, um plano geral da sala, simbolizando a natureza inicial da minha conversa, quando o 132

que sabia sobre eles era pouco mais do que via da porta de entrada. Numa segunda visita, conversava sobre assuntos não tão amenos e fotografava outras partes da casa, detalhes, objetos pessoais, como uma tentativa de chegar mais perto. E, por fim, fazia um retrato, que diz sobre a aproximação máxima que poderia experimentar levando em consideração as Condições Naturais de Temperatura e Pressão, ou seja, o possível. Acabei me prendendo a esse passo-a-passo, que foi útil como organizador da minha experiência e criador de uma rotina, mas muitas vezes me vi engessada por ele. Protocolar demais. Acontece. Se pudesse, passaria 13 anos e sete meses indo lá. Esse é o tempo aproximado que, fazendo uma entrevista por dia, gastaria para conversar com cada um dos moradores pelo menos uma vez. Euler, Geraldo, Mário, Mirelle, Pedro+Morgana e Vera são seis dos 1086 apartamentos existentes no JK. É uma fatia microscópica, mas representativa da já não tão orgânica máquina de morar sonhada por Juscelino, projetada por Niemeyer, construída por Joaquim Rolla e vivida por milhares de pessoas.


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