Inventário de Impossíveis

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MARIANA KAUFMAN

Inventário de impossíveis

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INVENTÁRIO DE IMPOSSÍVEIS


Inventário de impossíveis

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say something in portuguese? hummm, ok, i’ll tell you a story.

Perturbaram o espaço das notas, por exemplo, Ana Cristina Cesar, Anne Carson,

quando eu era pequena

John Cage, Amir Brito Cadôr,

eu tinha uma casa numa ilha

que enchia a sala e os mosquitos morrem queimados as mariposas também

jogo com o escrito que os disparou. Que o trânsito dos olhos

voam até a luz e tostam bem ali

entre um lado e o outro da

David Foster Wallace, um

na nossa frente ter na vida um papel

do leitor, a quem desejo,

e passei lá minha infância

amante das notas anárqui-

de mariposa parecia ser um ingrato destino

nessa ilha não tinha luz elétrica

de exformação: o conjunto

e de noite a gente ficava à luz do lampião

Fabio Morais entre outros.

cas, parece ligá-las à ideia de informações vitais que, num fluxo de linguagem, são omitidas mas evocadas, pro-

página seja uma prerrogativa desde já, uma boa leitura.

mas não o meu, não o nosso. eu ali estava na minha ilha

Foi em algum momento de 1927 que Virginia Woolf escre-

todos os dias íamos nós as crianças

veu “A morte da mariposa”.

conexões associativas. Pois

subir nas pedras pular da ponte

das mariposas. No dia 28 de

meu pai passava horas e horas

é mais ou menos por aí que

escalávamos a pedra do rachado

maio de 1929 lançou em seu

limpando cada tubinho de metal

caminhar – por isso escolho

uma pedra no formato de baleia mas

um livro que nunca veio a

eles funcionavam com botijões de gás e toda vez que chegávamos lá

depois amarrava cada camisinha

vocando uma explosão de

as notas deste trabalho vão chamá-las de notas exformativas. Não são referenciadas

com aquela minúscula cordinha

diretamente ao texto por

uma por uma nos bocais dos lampiões

tampouco se restringem a

espalhados pela casa. à noite ficávamos às luzes dos lampiões muito amarelas e quentes do fogo

meio dos números de praxe, uma função explicativa ou elucidativa. As notas aqui se pretendem vetores de multiplicação dos textos, sendo

que preferiram intitular pedra

Ela se interessava pelo papel

diário algumas linhas sobre escrever, As mariposas (dizem que esse livro não escrito

do rachado já que além de baleia era

acabou virando As ondas):

também trincada por uma grande

sas. Como vou começá-lo?

“Sobre esse livro, As maripo-

fenda que separava o que seria a cabeça

E o que deve ser? Não sinto

da baleia e o corpo-cauda que ela teria

a grande pressão da dificulda-

grande impulso; febre; apenas de. (...) Eu não estou tentan-

elas mesmas textos, ora

todo dia subíamos no alto do corpo

os lampiões fazem barulhos, como cobras

mais avulsos, ora encadea-

da baleia da pedra do rachado

entanto, talvez fosse possível

shhhhhhhhhhh, o tempo todo aquele som

paralela, mas sempre em

pular de lá era a maior e mais incrível

Elas poderiam ser ilhas de luz

dos numa quase narrativa

aventura da nossa ilha todas as crianças subiam todas as crianças pulavam

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do contar uma história. No fazê-lo. Um espírito pensando. – ilhas na corrente que estou tentando fazer fluir; a própria vida acontecendo. A corrente

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menos eu. durante anos e anos todos os dias

das mariposas vindo com força nessa direção. No centro uma lâmpada e um jarro de

eles pulavam e mais uma vez e outra e outra eram dezenas de pulos

Assim, o movimento da imaginação das ilhas retoma o movimento de sua produção,

e eles voltavam e eu continuava

mas ele não tem o mesmo

entre as cenas ainda podia

lá entre a pedra e o pulo

mento, mas não o mesmo

ao contrário dos meus irmãos

ser maior. Talvez pudessemos

tinha um mundo de desejos

móbil. Já não é a ilha que se

eu não voltava nadando

(Virginia Woolf em A writer’s

e tinha o calor da pedra e a luz

homem que, estando sobre a

eu subi no alto da pedra mas

flor. A flor pode estar sempre

diferente das outras crianças

pelo mar eu voltava pela terra

mudando. Mas a unidade

chamar de autobiografia. diary, p. 139 )

do sol no meu rosto

objeto. É o mesmo movi-

separou do continente, é o ilha, encontra-se separado do mundo. Já não é a ilha que se

pela areia ainda seca eu subia

eles eram bas jan ader e eu

cria do fundo da terra através

no alto da pedra e passava horas

era ives klein eu era bas jan ader e eles

recria o mundo a partir da

lá em cima sentada, olhando pra baixo

eram moby dick de tanto em tanto

ilha e sobre as águas. (Gilles

e vendo todo mundo pular todo dia

tempo eu descolava a bunda já seca

outros textos, p. 7)

eu achava que sim hoje era o dia todo dia eu subia certa de que pularia

Minha ilha (e só de a imaginar já me considero seu habitante) ficará no justo

das águas, é o homem que

Deleuze, A Ilha deserta e

e queimada de pedra e eu ia até lá

ponto de latitude e longitude

até a pontinha de onde o salto

mas lá em cima quando eu olhava

que, pondo-me a coberto de

não voltava eu ia quase lá mas parava

feros; por séculos foi caçada

pra baixo o mar calmo da nossa ilha

me afaste demasiado dos

com os pés grudados um segundo antes

monstro do mar. Seu exem-

parecia me dizer fica aí. e eu ficava seca, lá em cima e olhava sentada na pedra quentinha torrava

ventos, sereias e pestes, nem homens nem me obrigue a praticá-los diuturnamente. (...) De há muito sonho esta ilha, se é que não a sonhei

do momento em que já seria tarde demais para voltar e onde o mergulho seria

A baleia é o maior dos mamísem piedade, vista como plar mais célebre é Moby Dick, a baleia ubíqua, cuja brancura era de espantar, o mais branco de todos os

sempre.(...) Por onde fordes,

inevitável eu me equilibrava no exato momento

como a mariposa que procurava o fogo

ela irá convosco. (Carlos

no ponto certo com os pés de sapo

é o alvo perfeito, o inimigo

quente do lampião mesmo sabendo do fim

Passeios na Ilha, p. 15)

os dedos abertos adesivos na pedra

móvel: que perseguimos?

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Drummond de Andrade,

brancos, diziam. Moby Dick ideal. Moby Dick é uma ilha

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e dali eu sentia a vertigem de um mundo um abismo inteiro entre mim e o mergulho

que nos persegue? Moby Dick se move sob a superfície dos mares, enquanto quem

entre o mais remoto dos big bangs

fica sobre a pedra pode ser,

até o futuro onde o pulo já era o passado

guarda ela pra você em volta dela só tem terra

bicicleta, neste caso para dentro de um rio, e outros. Em 1975, Ader embarcou no

e mais em volta ainda tem

que chamou de “uma longa

No entanto, disseram Deleuze

o mar

viagem seria a parte central

olhava pra baixo e via o mar

e Guattari: “É Ahab que tem

e ele vai ficar aqui pra sempre

de um trabalho tríptico,

parado sem onda mar de baía

só as tem porque entrou

enquanto você estiver aqui agora.

tentativa ousada de cruzar o

e ele não me convidava a pular parecia dizer aproveita aproveita porque depois do mergulho a pedra quente o corpo torrado o pé de sapo

no máximo, Capitão Ahab.

as percepções do mar, mas

a baleia vai embora

Atlântico com o menor velei-

que o faz tornar-se baleia,

ro que já teria realizado essa

e forma um composto de

durante anos eu subi até lá

tarefa. Ele alegou que levaria

ninguém mais: Oceano.” (O

fomos juntos todos pular mas eu não

ou 90, se optasse por não

que é a filosofia?, p. 200)

eles iam voltavam molhados e de novo

usar a vela. Seis meses após

e eu quentinha como a mariposa

seu aniversário de 34 anos,

sensações que não precisa de

Bas Jan Ader nasceu Bastiaan Johan Christiaan Ader

cujas possibilidades de prazer

nos Países Baixos em 19 de

pareciam tão enormes e variadas

depois do salto

abril de 1942. Foi um artista

dali de cima que era a declaração

só é futuro

consistiu majoritariamente

e futuro não existe

Em busca do milagre, uma

numa relação com Moby Dick

aproveita porque depois do pulo a ilha afunda

viagem de navegação”. A

conceitual cujo trabalho em filmes e fotografias das próprias performances. Entre

60 dias para fazer a viagem,

sua partida, na véspera do seu barco foi encontrado, sozinho, meio submerso, na costa da Irlanda. Bas Jan Ader nunca mais foi visto.

de fracasso nato a impossibilidade de fruir ao máximo aquela escassa

Ives Klein também nasceu em abril, assim como Bas Jan

oportunidade eu via os saltos só eu

Ader, assim como eu, minha

os seus “saltos”, ou melhor,

eles não podiam imaginar só eu podia

melhor elaborado adiante).

entre a subida e o pulo

suas ações de deixar o corpo

dali imaginar como seria

fica nessa ilha

de uma escada, de uma

o que existe é aí antes do corpo cair

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seus trabalhos mais importantes e conhecidos estão

cair, de cima de um telhado,

filha e o meu avô (isso será Além de ter inventado o seu próprio azul, International Klein Blue, o que já faria com

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só eu podia inventar a minha hora eu estava entre o salto e o mergulho

que ele merecesse ser citado em qualquer trabalho artístico ou teórico do mundo,

de melancolia planeta contra terra e quando seria

Ao pensar sobre o vazio, os filósofos franceses são levados à China.

entre a baleia e o rachado

Klein criou a célebre obra fo-

só eu conversava com o sol só

le vide (Salto no Vazio, 1960),

uma tristeza profunda endurecia tudo

O poeta sino-francês François

eu sabia como era o exato momento

em que é visto no meio de

por dentro e em mim um medo da vida

cita o pintor chinês Huan

em que o pé de cada um deles

calçada. O trabalho foi feito

desgrudava da pedra caminhava no ar

tográfica intitulada Saut dans

um salto entre o muro e a a partir da ideia filosófica de Vazio que vinha desenvol-

a primeira queda do céu

uma raiva do futuro arrastavam a gente de moletom velho

Cheng, em Vide et Plein, Pin-Hung: “as pinceladas podem se distribuir de forma tão densa que ar nenhum passaria; e, no entanto, dão a

e pisava na água. só eu sabia inventar

vendo na época, em resposta

como seria grudada naquela sensação do ar

que, segundo o artista, eram

o horizonte não existia aí

poderiam galopar cavalos”.

uma agressão à civilização.

era tudo branco

and Full, p. 75, tradução indi-

eu passei anos e anos flutuando

às viagens do homem à lua,

com o frio na barriga de quem saltou mas nunca aterrissou.

a ilha estava finalmente sozinha Em O que é a Filosofia?, Deleuze e Guattari falam sobre a importância do vazio para a possibilidade da existência

num dia branco de inverno na ilha quando era frio mas nem tanto o cheiro do sal e das algas ficava mais forte o céu se escondia atrás

de uma obra de arte, que os autores compreendem como blocos de sensação: “os blocos precisam de bolsões de ar e de vazio, pois mesmo o vazio é uma sensação, tudo se

do enorme branco da neblina

mantém sobre a terra e no ar,

e nem o lampião aceso durante o dia

no vazio conservando-se a si

conseguia esquentar aquela sensação

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e molhado da umidade até a areia

conserva o vazio, se conserva mesmo” (p. 195, 196).

e a pressão atmosférica era tão forte que eu mesmo com tão poucos anos de existência

impressão de que, entre elas, (François Cheng em Empty reta minha) As palavras de Huang fazem Cheng voltar à França, a Henri Matisse, que por sua

sentia uma saudade infinita do passado

vez vai à China:

do passado infinito. num dia desses

“Eu já havia notado que

eles levantaram a calça velha de moletom andando entre a areia e o mar calmo de baía

nas obras dos orientais o desenho dos espaços vazios ao redor das folhas contava tanto quanto o desenho das próprias folhas.” (Henri Ma-

eu andei na direção contrária

tisse apud François Cheng,

só porque tinha tanto medo

ção indireta minha)

Empty and Full, p. 152, tradu-

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que só podia mesmo andar sozinha no meio da neblina cinza.

Melancolia é um planeta em rota de iminente colisão com a Terra. Entre os Yanomami, quando o mundo acaba, é o

nesse julho de inverno úmido

céu que cai. Para eles o céu já caiu várias vezes.

eu subi na pedra, a baleia dormia lá em cima ninguém pra eu olhar ninguém pra me ver não tinha o quentinho na bunda

Desejo portanto falar-lhes do tempo muito remoto em que ancestrais animais se me-

daquele mergulho nunca mais

dá uma resposta que vale

a água verde turva de mar de baía

tanto quanto para a escrita: “Saturar cada átomo”,

só que preto não via nada

morte e superfluidade (Gilles

e o tempo que nunca mais demorou

eu subi correndo pra não perceber que subia

estavam muito longe de nós.

entre o antes e o depois e olhando no olho do mar eu simplesmente saltei não deixei o corpo cair não eu pulei. voei mais alto que as gaivotas que às vezes também a gente via por lá e furei aquele oceano inteirinho decidida a afundar o corpo todo

não existia. (...) foi depois de todos terem virado animais, depois de o céu ter caído, que

Deleuze e Félix Guattari em O que é a filosofia?, pg. 203)

a passar como agora nesse dia em que eu subi na minha pedra saltei da minha ilha e nadei pela primeira vez

Conversa com a pedra

Omama nos criou tais como

...

somos hoje.

Bato à porta da pedra.

* Foi Omama que criou a

- Sou eu, me deixa entrar.

terra e a floresta, o vento que

Não posso esperar dois mil séculos

agita suas folhas e os rios cuja

para estar sob teu teto.

água bebemos. Foi ele que nos

...

deu a vida e nos fez muitos.

Bato à porta da pedra.

Nossos maiores nos deram a

- Sou eu, me deixa entrar.

e largar ele lá dentro pra morar lá

ouvir seu nome desde sempre.

naquele fundo o tempo parado

céu, p. 74 e 81)

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“Eliminar tudo o que é resto,

as bolinhas o mar quente de dia

em que Omama* nos criou,

não acabava nunca. A noite

para a pintura ou a música

fundo de lodo que brilha igual plâncton

nem no pé e nem o sol na cara tostada

No primeiro tempo, o dia

existir por si? Virginia Woolf

as bolinhas de ar se misturavam com

de inverno marola agitada de sudoeste

andei rápido até o momento exato

do mundo durável ou fazê-lo

o futuro nunca mais aquele passado

tamorfosearam e do tempo quando os brancos ainda

Como tornar um momento

(Davi Kopenawa, A queda do

- Não tenho porta - diz a pedra. Wislawa Szymborska

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Inventário de impossíveis

Mariana Kaufman

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Mariana Fernandes de Menezes Kaufman

Inventário de impossíveis Dissertação de Mestrado

Dissertação apresentada ao programa de Pós-graduação em Letras da PUC-Rio como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Literatura, Cultura e Contemporaneidade.

Orientadora: Profa. Helena Franco Martins

Rio de Janeiro Setembro de 2018

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Para o papai, que me contou que o universo é finito e está em expansão. E para a Lina, que me mostrou o que é o infinito.

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Agradecimentos

À Helena Martins, minha orientadora querida, pela imensa paciência e dedicação, parceria e disponibilidade – sempre com muito humor, mesmo nas horas de cansaço extremo, durante todo esse processo. Ao departamento de Letras da PUC-Rio, ao director Alexandre Montaury pela gentileza de sempre e ao Rodrigo, que se manteve disponível para ajudar a resolver qualquer problema com boa vontade e doçura. À coordenação do Programa de Literatura, Cultura e Contemporaneidade: Rosana Kohl Bines, sempre atenciosa, delicada e sensível, e ao Fred Coelho, que, também como professor, foi a primeira pessoa que me acolheu lá dentro, me recebeu em suas aulas, e abriu a primeira porta para minha entrada no Mestrado. Ao Miguel Jost, um dos apoiadores do início desse caminho. À Ana Kiffer, furacão de mulher que tanto admiro e que tenho como referência total. Ao Julinho Diniz, pelas aulas, por me abrir explosões de mundo com tanto carinho. À nossa querida e eterna mestra Marilia Rothier, de quem não consegui resistir a assistir todas as aulas enquanto estive cursando o mestrado, que me abriu tantos mundos com tanta doçura e que

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me inspirou enormemente nessa dissertação e na

incentivo e trocas tão importantes desde muito

vida, como inspira a tantos aqui dentro. Todo ca-

antes de virarmos colegas.

rinho e gratidão do mundo. A todos que estão aqui nas entrelinhas dessses À Kim Knowles e seu olhar sobre o cinema expe-

textos e participaram e me ajudaram dos proje-

rimental, película e o Antropoceno. E aos pro-

tos que atravessam essas páginas, Beatriz Lemos,

fessores Cezar Migliorin e Hernani Heffner, que

Alice Sant’anna, Cedric Aveline, Léo Bittencourt,

me trouxeram aulas importantes ao longo desse

Camila Freitas, Poliana Paiva, Narda Alvarado,

tempo.

Bernardo de Souza, Karen Harley, Joel Pizinni, Sandra Werneck, Maya Da-Rin e tantos outros.

À Cecilia Mello, que participou da banca de qualificação com olhar atento e que despertou pen-

Ao Giban, companheiro no caminho do cinema

samentos importantes nesse processo. A Michel-

até a literatura, de tantos papos e na batalha des-

le Sommer pela disponibilidade gentil. E à Livia

sas vidas múltiplas, e que sempre estará aqui.

Flores por aceitar o desafio da banca e ler o trabalho com tanto afeto e generosidade.

À Hilda Machado e ao Gabriel Zaguri.

À Lisette Lagnado com quem aprendi ao longo dos

Ao Vitor Paiva, meu amigo e mentor de todas as

últimos anos, pelos olhares atentos e preciosos.

horas, desde o início, até o fim e adiante - e de quem ainda peguei emprestado um poema para

Ao Paulo Henriques Britto que disponibilizou tão

essa dissertação.

gentilmente seu tempo e seu olhar precioso para ler e comentar os poemas dessa dissertação.

À Mariana Patrício, minha eterna musa inspiradora, que entrou nesse mestrado há mais de dez

À Luisa Marques, Domingos Guimaraens, Claris-

anos e me fez pensar em um dia aportar por aqui.

se Zarvos, Mariano Marovatto e Dani Castanheira

Como se não bastasse, me orientou e me ajudou

que me falaram desse programa, me incentiva-

muito quando eu estava criando um projeto para

ram mandando seus projetos e com conversas.

entrar no Programa.

À minha turma do mestrado, e aos colegas das

Ao Juju, que antes de sumir teve anos de doçura

aulas em geral pelas trocas tão intensas, Charles

e paciência pra me ensinar um montão de coisas

Jacquard, Luiz Guilherme Fonseca, Lucas Nassif,

bonitas da vida das imagens.

Bernardo Girauta, Victor Squella, Marina Mendes, Sofia Karan, Beatriz Castanheira, Raissa de

À Jo Serfaty minha parceira em tantas aventuras

Goes, Luiza Baldan. Especialmente à Marina Ivo

pelo mundo da criação e do pensamento, com

pela força todo o tempo, e ao Leo Villa-Forte pelo

quem fui em busca da Ilha do Farol e que deu o

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pontapé necessário para que a China, o Jia Zhan-

Aos meus irmãos, Pedro e João, por serem meus

gke e seu mundo presente invadissem nossas vi-

maiores cúmplices nessa vida, com admiração, e

das e não deixasse que nada mais virasse poeira

ao Pedro também especialmente por ajudar a tor-

impunemente.

nar a impressão desse livro possível.

Aos meus amigos-família que no meio dos fura-

Ao Felipe Braga, que fez todo o design desse livro,

cões estão sempre aqui do meu lado com uma

e aceitou o turbilhão estranho que é compartilhar

cervejinha numa mão e um abraço na outra:

comigo uma casa e uma vida, que sempre foi tão

Luna, Sabrina, Julia, Marina, Thiare, Nanda,

sensível, doce, tolerante e companheiro - e que

Debora, Clarinha, Ives, Augusto, Manu Campos,

conseguiu permanecer sereno desde o momento

Pedroca, Carol e Pedro, Angelica, Patrick, Lisa,

que decidi começar essa empreitada e até o fim. E

Silvia, Gabi e Bebel.

que, no meio disso, junto comigo, fez a coisa mais bonita que nós dois faremos na vida, a nossa Lina.

À minha tia Dora, em quem me inspiro desde

Pra sempre essa gratidão e todo amor do mundo.

sempre e que me incentivou e apoiou nesse mundo acadêmico.

Agradeço, por fim, a minha mãe, Moara Fernandes, que sempre teve coragem de lutar pelo que

À Ilaninha pela irmandade de sempre e por me

queria e me inspirou tanto como mulher, e sem-

proporcionar meus sobrinhos, Lucas e Rebeca,

pre esteve tão disponível para ajudar das formas

que desde que passaram a existir, fazem tudo

mais mirabolantes, desde virar a noite cortando

sempre ficar mais legal.

papel para ajudar em um trabalho da faculdade até a ajudar a fazer a bibliografia dessa disserta-

À minha tia Eva e minha prima Nira pelo amor de

ção, e tanto mais. E que agora é a avó mais mara-

sempre agora transferido à Lina, e à tia Eva espe-

vilhosa do mundo, que me emociona a cada dia

cialmente pela ajuda nessa reta final.

pelo amor tão alegre que troca com a minha filha - de quem ela cuida com dedicação para que eu

À minha madrasta, Monica Martins, que sempre

possa estar aqui no fim dessa jornada e para as

foi uma entusiasta desse processo, me apoiando e

outras que virão.

me dando dicas do mundo acadêmico. E ao Sol, porque é amarelo, quente e sabe a hora Ao Eduardo Rozenthal, um dos responsáveis para

de ir e a hora de voltar.

que eu pudesse chegar até aqui. À vovó a quem devo sempre agradecer por parte de tudo que sou e faço nesse mundo.

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índice

contos A história da mulher que queria fazer fotossíntese

primeiros poemas 4

[say something in portuguese?]

38

Bas Jan Ader e eu

64

Teu nome de estrangeira

70

Museu Nacional

86

O padre que voou com os balões

120

Hilda

128

Fogo no mar

138

Tacita limps

148

Balão

espalhadas ao longo

Notas exformativas

48

volume 1: caos

100

volume 2: terra

140

volume 3: cosmos Os 3 fatos desastrosos de quem cisma em se espichar à procura do sol

do texto todo

53

fato 1

103

fato 2

143

fato 3

76

Pornografia microcontos

104

O mistério da biblioteca

105

O parasita favorito

106

O maior eclipse do século

ensaios breves

107

Sometimes making something leads to nothing

30

Para que tudo não vire poeira, ainda

108

Das poucas belas coisas que se encontra no jornal

54

Quando um homem se lança ao tornado

109

Balão é sinônimo de dirigível

82

Mini conceitinho 1: a imagem-espaço

110

A passagem do cometa

94

A bolha de sabão gigante ou a lente de infinitas faces

111

O balão e a Fera

112

Paradoxo universal

113

Secret life

proposições para um filme imaginado 44

Natureza Morta

46

4 dias e 4 noites

desenhos

60

Bolivia

Anti-crisis action

98

Mehr licht!

47

número 1

116

Narcoturismo

67

número 2

118

The lady that wouldn’t stop drinking passion fruit juice

81

número 3

126

Fotossíntese

85

número 4

134

A ilha do farol

97

número 5

117

número 6

144

número 7

156

referências bibliográficas

listas 68 147

30

Inventário de fantásticos Ações anti-crise

31


32

33


Para que tudo não vire poeira, ainda

Ela procura o marido. A cidade ao seu redor

Uma cidade no interior da China, prédios e cons-

O cinema precisa, não filmar o

truções com 3 mil anos de história. É 2005. Um

mundo, mas acreditar no mundo,

cineasta chega ao lugar para acompanhar e filmar

nossa única conexão.

um amigo artista que está fazendo um trabalho por lá – e não consegue acreditar no que vê. Uma cidade sendo afogada. A cada dia novas ruas desaparecem na imensa lagoa que toma conta do lugar. As construções milenares amanhecem em-

Gilles Deleuze, Imagem-Tempo.

Em 2006 vi no cinema o filme Still Life, do cineasta chinês Jia Zhangke. Já era fã de seus outros

segue é um recorte do processo

desaba. Ou melhor, a cidade é desabada, desmo-

de pesquisa que venho desenvol-

ronada a marretadas; prédio a prédio, pedra a pe-

vendo desde 2006, mesmo que

dra. O que sobra submerge. O prazo para desocupação vai se esgotando.

antes não tivesse consciência disso. O livro é um amálgama de pequenas explosões artísticas e

Muitos partem sem levar seus pertences, que vão

teóricas em torno daquilo que o

afundar junto com a memória daquele espaço.

prédio que voa diz do nosso tem-

Os milênios afogados e as águas montantes presenciam a transformação de uma China que em 20 anos passou por uma das mudanças mais

po presente, entre as distopias de fim e as possibilidades da arte de multiplicar possíveis, a partir do impossível.

longa-metragens, Pickpocket, Pla-

rápidas e radicais de que podemos recordar. De

baixo d´água. Ali naquele lugar agora, ao invés

taforma, Prazeres Desconhecidos

um país isolado, fechado, comunista, agrário,

da cidade, o que existirá é a maior hidroelétrica

e O mundo. Saí da sessão muito

para um país entregue à economia de mercado,

A citação de Deleuze que coloco

do mundo. Em poucos meses, acima do nível da

impressionada por aquele filme

com a maior taxa de crescimento anual dentre as

como epígrafe destas notas eu

água só restará o céu. E a tenacidade silenciosa de uma história submersa. O cineasta espantado volta para casa, escreve

que tinha levado o Leão de Ouro em Veneza naquele ano, mas sem maiores reflexões. Alguns

economias mundiais. A imagem que se vê é do fim do mundo. E o

roubei de Erik Bordeleau, um pesquisador francês que escreveu um belo texto sobre Still

anos depois, em 2012, a Jo Serfa-

mundo que vai acabando, dá lugar a um novo

um rascunho de roteiro, chama sua mulher e seu

ty, minha sócia e parceira criati-

mundo que já nasce com os dias contados. É com

Zhangke’s Still Life: destruction

primo para irem fazer um filme de ficção naque-

va, propôs fazermos uma mostra

essa imagem que se depara o cineasta chinês

as intercession”), um texto que

le misto de cidade e hidroelétrica. Inventam um

com os filmes do Jia Zhangke.

quando por ali chega: o fim é iminente, já come-

nos inspirou bastante e que ele

fio de história, uma mulher que procura o marido que foi trabalhar lá e nunca mais voltou; um homem que procura a filha deixada com a mãe 16

Foi a partir daí que mergulhamos fundo em sua obra que, nesse momento, já era composta de 10

çou, já acabou, vai recomeçar. Nessa paisagem o cineasta cola uma mulher.

longa-metragens (depois daquela

Cola uma mulher que procura o marido que foi

anos antes. Fora isso, apenas isto: os dois corpos

mostra, realizada em 2014, o

trabalhar e não voltou. A mulher passa gran-

dos atores se deslocam por aquela paisagem que

cineasta já lançou mais 2 longas). Revi várias vezes Still Life: aquele

de parte do filme a procurar. A mulher percorre

já não pode mais ser identificada ou reconhecida. Um território nenhum, casas e prédios em escombros, uma lagoa que sobe de nível a cada

prédio não me saía da cabeça. A certeza de que ali havia algo

aquela paisagem alagada. Percorre os escombros e também a nova cidade que avança ali ao lado, a

Life na revista Scapegoat (“Jia

gentilmente cedeu para que traduzíssemos e publicássemos no livro que organizamos, Jia Zhangke, a cidade em quadro, na ocasião da mostra em 2014.

A construção da hidrelétrica de Três Gargantas é um grande

único e potente, a imagem de

ponte moderna que acende num estalar de dedos

uma época, e ao mesmo tempo,

quando a noite cai, os edifícios ultramondernos

casas nas costas. O filme todo se passa assim, sob

uma imagem que construía no-

das empresas que fazem fortunas com a destrui-

forma resume os principais episó-

esse rascunho de narrativa, com os movimentos

vas épocas. O prédio que voa é

ção. Fazem fortunas com a produção de mais

dios históricos da China do século

do concreto que desaba, dos corpos que passeiam

um acontecimento que atravessa

energia para a construção de um mundo novo –

20. A ideia foi apresentada em

dia, e inúmeras famílias se retirando, levando as

e da água que inunda. Tudo isso aparece como que sem controle nenhum diante da câmera. De repente, sem se anunciar, um prédio levanta voo.

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mundos do presente, atravessa sensibilidades, cortando a carne do nosso tempo e apontando

voraz, natimorto, voraz. É isso o que o cineasta vê quando chega por ali.

pra os infinitos tempos dentro

Vê a destruição daquilo que ainda nem existiu. É

do nosso agora. O livro que se

o desastre diante do seu corpo.

símbolo da modernidade chinesa; poderia-se dizer que de alguma

1919 por Sun Yat-sen, fundador da República da China, e novamente em 1949, no momento da chegada do Partido Comunista ao poder.(...) [No entanto, com as

35


A mulher anda anda anda à procura do marido, e não acha. Diante do ventilador ela se refresca. O vento bate no pescoço, no rosto, no corpo suado e can-

turbulências políticas na China, o

O prédio lançou fogo como um foguete, fratu-

projeto só foi aprovado em 1992].

rando um minúsculo pedaço da trama invisível

Ao usar arquivos de televisão mostrando Mao Zedong e Deng Xiaoping, Still Life enfatiza a

do cosmos – e do filme. E nos diz: são muitos mundos dentro dos mundos, é preciso olhar de

mais definitivo desastre de todos. Filósofos, antropólogos e cientistas sociais como Viveiros de Castro, Déborah Danowski, Bruno Latour, Marc Augè e outros, reco-

dimensão histórica do projeto

novo. O prédio sabe que é personagem de um fil-

dormir? Da janela se vê o prédio em pé e destruí-

das Três Gargantas; em outra

me. E sabe também que é, ao mesmo tempo, o ro-

um marco para se começar a

do, um prédio com buracos, vazado, um prédio de

seqüência, alguém conversando

teirista de sua história. Ele é imagem, exatamente

pensar essa experiência distópica

mentira. Um prédio que mais parece uma peça de

com um homem responsável pela

como o cérebro – a maior de todas elas – e sabe

na qual nossos imaginários estão

sado. É noite. Ou é madrugada e ela não consegue

jogo infantil, uma peça de Lego. O prédio esteve ali desde o início. Quem viu? Ela pendura no va-

construção de uma ponte que liga as margens do Yangtze exclama: “O Yangtze está domado. Você

bem que nosso olhar está muito longe de ser câmera – é tela.

nhecem o fim do século XX como

mergulhados: “desde 1989 e da queda do muro de Berlim, uma nova história está sendo escrita,

realizou o sonho de Mao”. (Erik

E o foguete rasga a tela; desaparece.

está o prédio adormecido junto com a cidade que

Bordeleau, Jia Zhangke, a cidade

Interrompe a apatia instaurada até ali, com seu

e de compreender, pois é rápida

descansa, prestes a desaparecer.

em quadro, p. 84)

lança chamas, faz tremer o tecido, a imagem so-

demais e concerne direta e ime-

bre ele projetada e a cidade moribunda.

diatamente todo o planeta.” (Marc

ral sua blusa molhada, agora lavada, e lá ao fundo

O prédio dorme e ela nem nota. A blusa fica ali, ocupa metade do quadro. Metade da imagem é a blusa lavada pendurada. Na outra metade, ao fundo, no escuro, o prédio que dorme. Também ela vai dormir. E ficam os dois, a blusa e o prédio, adormecidos. No meio da madrugada, o prédio esburacado, o prédio que não é prédio mas brinquedo de criança, Lego, Transformer, o prédio acorda. Um pouco

“O ‘fim do mundo’ é um daqueles famosos problemas sobre os

Quando atravessa o pontinho preto do horizonte da tela; da terra; o foguete implode paredes

a qual temos dificuldade de ler

Augè, Para onde foi o futuro?, p. 11) Nesse momento são realizadas as primeiras conferências

quais Kant dizia que a razão não

que nunca existiram, mas que nós – a mulher que

pode resolver, mas que ela tam-

procura o marido, o homem que procura a filha,

dando os primeiros sinais de algo

pouco pode deixar de se colocar.

os operários que marretam abaixo a cidade e até

que estaria hoje cada vez mais

E ela o faz necessariamente sob

os empresários que comandam a inundação, e

explícito: que a exploração capi-

a forma de fabulação mítica, ou, como se gosta de dizer hoje em dia, de ‘narrativas’ que nos orien-

eu, e você – insistimos em levantar. Mas ninguém vê o prédio voar. A cidade, nos

sobre o estado global do planeta,

talista do homem e da natureza tem também seus dias contados. E nesse mesmo movimento está

tem e nos motivem.” (Déborah

seus últimos instantes de vida, agora dorme se

Mas, diferente do vulcão, que ao acordar espalha

Danowski e Eduardo Viveiros de

esvaindo em neblina, fumaça e água. Quando

da sociedade chinesa. E é diante

sua lava pela cidade destruindo tudo quanto é pai-

Castro, Há mundo por vir? Ensaio

acordar não notará sua ausência. Onde antes ha-

disso que se coloca o cineasta.

sagem, o prédio prefere desaparecer. Diferente do

sobre os medos e os fins, p. 17).

via um prédio, agora o vazio toma conta. Entre o

como um vulcão que acorda depois de milênios.

vulcão que declara guerra à cidade e aos homens, o prédio declara sua existência: segundos antes de sumir. O prédio prefere voar.

A partir dos anos 1990, quando começa a se formar um consenso científico acerca da degradação planetária em função do aqueci-

vazio do prédio e o vazio do nada que está prestes a tomar tudo por ali, não há nada, só há vazio. O mesmo cineasta que por ali chegou e se es-

mento global, vai ficando mais

pantou com o que viu foi quem colou o prédio

Diferente de seus pares, não vai cair: ao invés de

clara nos imaginários coletivos a

Lego no meio daquela imagem. Foi ele quem co-

ir ao chão, vai ao ar.

ideia de “fim de mundo” – e hoje

lou a mulher a procurar, foi ele quem colou aque-

O prédio agora é um foguete e sabe o que quer.

E voa como se nunca tivesse voado. E desaparece da paisagem como se ali nunca estivesse estado. O prédio se transforma em um foguete e voa silencioso pelos ares azuis e cinzas da cidade.

36

é plenamente difundida nesses imaginários a noção de que estamos diante da possibilidade

a origem da transformação brutal

O desastre des-escreve. (Maurice Blanchot, La escritura del desastre, p. 14)

le prédio e mandou que voasse. E foi para nós que ele mostrou. Fomos nós, que diante daquela ima-

do fim da humanidade como algo

gem, pudemos ver o que ninguém mergulhado

concreto e alcançável, o maior e

nos escombros pode ver.

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Outrem (Atrui) é a expressão de

produz, o que mais se transforma. A roda gira. A

mas ela se mantém estrangeira,

me. Partiu ao meio a própria paisagem da cidade

um mundo possível, aprendemos

máquina é rápida como um foguete. E a imagem

não podemos tomar posse dela.

diante de nossos olhos, mostrando que ali não ha-

com Deleuze. Diante desse Ou-

permanece. Partida, rasgada. O filme acaba. Tudo

É como o prédio que voa, o

O foguete rasgou a imagem. Partiu ao meio o fil-

via mais nada além de algo assassinado. O foguete

trem, que inclui a arte, trata-se, antes de mais nada, de conter os

permanece igual e diferente. Nós talvez já não se-

intervalo sobre qual fala também Deleuze em Imagem-tempo, o

impulsos pacificadores: “não se

jamos os mesmos. A cidade moribunda vai acabar

explicar demais com outrem, não

em breve no tempo fora da tela. No nosso agora ela

to. Tal como a frase de Joana

Quando risca a imagem diante de nós, o céu da

explicar outrem demais, manter

já é uma grande lagoa. Já pertence ao passado.

d’Arc, a cena de Jia Zhangke é

cidade ou a tela, mais do que apontar para onde

seus valores implícitos, multipli-

voou lambendo em fogo a imagem 2-D e abrindo as multidimensões do espaço fora da tela.

vai, ele põe em movimento o que fica. O que se produz, o que se provoca. O foguete faz uma revolução – se a mais microscópica, molecular, ou

car nosso mundo, povoando-o com todos esses expressos que não existem fora de suas expressões” (Deleuze, Diferença e

Deixamos a tela depois do fim. Mas o foguete? Ele continua a voar. E disso nós não esquecemos. Para que tudo não vire poeira. Ainda.

intervalo que gera o pensamen-

Outrem, é aquilo que “garante a possibilidade do invisível” – é porque “outrem percebe esse desconhecido é que podemos tomá-lo como real (…) a ausência

se a maior das maiores, não há de fato diferença

repetição, p. 245). Manter implíci-

de outrem acarreta a desaparição

aí. A imagem permanece a mesma depois de sua

tos os valores do outro, aguentar

da categoria do possível; caindo

passagem, como quando passa um cometa. É

não resolver, são divisas que

esta, desmorona o mundo, que

Viveiros de Castro vai buscar

se vê reduzido à pura superfície

seguir em sua transcriação da

do imediato, e o sujeito se dissol-

vida e do pensamento ameríndio:

ve” (Eduardo Viveiros de Castro,

“manter os valores do Outro

“O Nativo Relativo”, p. 3)

tudo o mesmo, e é tudo outro. Mas veja, o foguete não explode, ele implode, cria o fora do dentro, ao mesmo tempo que é dentro do fora. O foguete desaparece dali, fazen-

como implícitos não significa

do trincar como um cristal aquilo que até agora

celebrar algum mistério numino-

entendíamos como imagem, como mundo; e nos

so que eles encerrem. Significa

Um filme constrói e não simples-

sim (...) mantê-los como possibi-

mente é construído pelo homem.

infinitos craquelados dessa nova forma geométrica que produziu, o foguete franqueou em cada átomo uma sociedade inteira.

lidades – nem descartá-los como fantasias alheias, nem fantasiar sobre como poderiam conduzir à

A arte não espera o homem para

verdadeira realidade. (Viveiros de

começar. (Deleuze e Guattari, Mil

neblina branca cobriu tudo. A água turva, quase

Castro, “The Nazi and the Ama-

Platôs, IV, p. 112)

tudo. No dia que amanheceu a mulher finalmen-

zonians, but then again Zeno”,

E a cidade prestes a morrer ainda resiste. A

te encontrou quem procurava. O marido aparece

p.10, tradução minha)

como quem não tivesse desaparecido por dois anos. Não resta emoção, a apatia governa aquela

A certa altura do longo interro-

cidade de mentira, bem mais real do que o que

gatório que precedeu a sua con-

poderíamos desejar.

denação, Joana d’Arc disse aos

O mundo continua a acabar. A cidade continua a afundar. A hidroelétrica, todos nós já sabemos, foi inaugurada com sucesso. É de fato a maior do mundo e supre energia para o maior paíscontinente, aquele que mais consome, que mais

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juízes, então obcecados por saber como eram as vozes que ela ouvia: “a luz vem no nome da voz”. Anne Carson nota que esta é uma frase que se interrompe. Seus componentes são simples

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bas jan ader e eu

Nigeriano sem asas cai de

52 metros

Cinquenta e dois metros!

bas jan ader subiu no telhado largou o corpo no ar e rolou

Um prédio de 14 andares! E está provado que o homem

como bas quando cai no meio da estrada de terra cai reto em pé, mas um cai devagar cai macio

não tinha asas no momento.

cai leve e não dói em mim,

até se estabacar lá em baixo

Um pacato técnico de uma

o outro cai pesado e não levanta

ele nunca disse que seria fácil

Lagos, Nigéria, caiu da supra-

mas em mim não doeu.

empresa de construção de

mas como funciona em português nasceu bastiaan johan christiaan

encontraram o rapaz vivo, de saúde, intacto... A “miraculada” criatura pôde sair do hospital umas horitas após o trambolhão. Mais: cai lá

ader 40 anos antes de mim, no dia que cai

dentro de um buraco onde

e o de minha filha, que por sua vez é também o de meu avô que

colada no Cadernos de Casa de Lava de Pedro Costa, s.p.)

Bas Jan Ader fez de quedas: monumentos.

nunca mais. Um monumento não come-

corpinho esborrachadinho,

de cima, dos tais 52 metros,

entre meu aniversário

lar da queda. (Matéria de jornal

citada altura e, em vez de um umas papinhas de nigeriano,

bas jan ader não é o nome dele

como se fosse melhor nem fa-

é amparado cá em baixo, estavam umas tábuas do estaleiro, os colegas correm para o local à espera que ele só tivesse já duas dimensões

o pai de bas jan ader também morreu

mora, não celebra algo que se passou, mas transmite para o futuro as sensações

assassinado pelos nazistas

persistentes que encarnam o

por ter abrigado judeus quando ele tinha

sempre renovado dos ho-

acontecimento: o sofrimento

só dois anos de idade meu avô também

mens, seu protesto recriado,

era judeu e minha filha tem só um ano

Tudo seria em vão porque

bas e eu temos nada em comum

sua luta sempre retomada. o sofrimento é eterno, e as revoluções não sobrevivem à sua vitória? Mas o sucesso de uma revolução só reside nela

– largura e comprimento – e

mas queremos pular sendo que ele cai leve

ele, que durante o passeio

e eu fico presa até aprender a voar

vibrações, nos enlaces nas

“walkie talkie”, estava tão

o que claro nunca acontece.

mens no momento em que se

mesmo de enfarte e não sei se ele caiu

atarantado que continuava a

então continuo.

imagino ele caindo até o chão

sim, a fazer-se despercebido,

morreu em moçambique ajudando na revolução comunista mas morreu

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pelo vácuo nunca largou o

dar ordens sobre a obra. As-

mesma, precisamente nas aberturas que deu aos hofazia, e que compõe em si um monumento sempre em devir, como esses túmulos aos

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bas jan ader pegou uma bicicleta e andou na beira do rio distraiu-se com o pássaro que piou e caiu pra esquerda, entrou com tudo de bicicleta pra dentro do rio

quais cada viajante acrescenta uma pedra. A vitória de uma revolução é imanente, e consiste nos novos liames que instaura entre os homens...”

mas uma vontade tremenda de cair de bicicleta e tudo mais lá dentro do rio será que ele nadou? isso a câmera não mostra.

pra todo o resto é outra a gravidade mas não é porque alguém é

...de um escritor a um outro, os grandes afectos criadores podem se encadear ou derivar, em compostos de sensações que se transfor-

(Deleuze e Guattari em O que

especial é só porque eu só sei mesmo sobre a minha

é a filosofia?, p. 209)

gravidade intermitente gravidade rarefeita gravidade

se fendem: são estes seres de

buraco de minhoca

relação do artista ou mesmo

foi fácil pra ele e tinha uma câmera bem na frente talvez não tenha sido o passarinho

que só tem pra algumas pessoas mesmo

Mas antes de tudo coisa, bebe uma garrafa de um bom vinho e pensa em mim. Aqui o trabalho nunca para, agora somos mais de cem. No outro ontem.

e puff, voltamos à pedra, voltamos ao pulo que eu não dou enquanto bas não para.

O meu aniversário foi a altura de um longo pensamento para

mam, vibram, se enlaçam ou sensação que dão conta da de uma eventual afinidade de artistas entre si. O artista acrescenta sempre novas variedades ao mundo. (Deleuze e Guattari em O que é a filosofia?, p. 207)

ti. A carta te levaram, chegou

bas jan ader, como gosto do seu nome

bas jan ader, como gosto de falar seu nome

bem? Não tive resposta tua.

as vezes sinto que teríamos sido bons amigos,

O risco de uma certa ideali-

o meu é mais simples mas tem muito a também

todos os minutos. Todos os

mas me dizem que não. por quê?

sempre iminente.

eu nunca fui à califórnia, foi lá que ele caiu uma vez caiu pela segunda vez e mesmo que tenha doído a gravidade ali para ele é mesmo diferente é a mesma de quando no alto da pedra a gente fica paradinho no momento entre o salto e o mar entre a pedra e o mergulho como sapo que gruda, é dessas gravidades

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Fico à espera todos os dias, dias aprendo umas palavras novas, bonitas para ti. Não era bom aprendermos uma língua nova, só para nós dois? Mesmo à nossa medida como um pijama de seda fina? Não queres? (Da carta de um dos personagens do filme Casa de Lava, de Pedro Costa, que se encontra em seu caderno de mesmo nome, s.p.)

zação do lugar do artista é

só porque gostamos dos saltos? e de chorar? i’m too sad to tell you não fosse aquele vento foi

Se o escritor é um feiticeiro é porque escrever é um devir, escrever é atravessado por

no dia da falta de gravidade

estranhos devires que não

teria eu te avisado pra não ir

rato, devires insetos, devires

fosse eu nascida então. não. iria junto sempre amei a vela

são devires escritor, devires lobo etc. Será preciso dizer porquê? Muitos suicídios de escritores se explicam por

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porque ela nasceu pra capturar todo o vento do mundo de uma só vez corro atrás do vento

essas participações anti-natureza, essas núpcias anti-natureza. (Deleuze e Guattari, Mil platôs IV, p. 21 - 22)

faz um tempão e também do sol Quando voltam de suas

juntos que vão me fazer fugir

renovam na tribo a convicção

é o vento que inventa a gravidade, bas.

bas, eu pulo. e explodo é onde a gravidade mais se força, mais resiste, e aí te encontro

einstein falou que são o vento e o sol

do tempo e inventar outro

e eu parada na pedra, não jogo meu corpo,

estranhas viagens, os xamãs

...a arte é uma abertura para regiões que não são governadas pelo espaço e tempo (Marcel Duchamp em Duchamp de Calvin Thompkins, p. 22)

aí entre a vela e o ano passado te encontro aí.

de que “a vida é diferença, relação com a alteridade, abertura para o exterior em vista de interiorização perpétua, sempre inacabada,

você pula ninguém olha a gente voa

desse exterior” – que “o fora

ninguém vê e, ainda assim,

diferimos de nós mesmos a

alguma coisa aconteceu é como

nos mantém, somos o fora, cada instante.” (Viveiros de Castro, Encontros p. 259)

aquele foguete, que um dia era prédio rachou a tela, somos imagem, bas, somos tela o foguete rachou a tela e inventou outra gravidade pra quem viu, apesar de que ninguém viu você furou a tela e zerou a gravidade pra você mesmo e é por isso que o tempo não passou e você permanece, entre o salto e o chão

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Entre um futuro em ruínas e um

Essas culturas, essências de

passado que não passa de um

vida sublimadas, crescem com a

disfarce para outra personifica-

mesma soberba casualidade das

ção, a cultura contemporânea

flores do campo. Elas pertencem

está presa num presente alegóri-

(...) à natureza viva de Goe-

Outros títulos possíveis:

co, incapaz de voltar nostalgica-

the, e não à natureza morta de

não é mais. Uma floresta dá lugar a um parque,

- Vocês que ainda tem tempo

mente para o passado ou

Newton. (Oswald Spengler, apud

e dentro desse parque, o tempo se confunde. A

- A memória é uma ilha de ficção

avançar com esperança para

Stanley Cavell, Essa América

- Sobre nosso desejo de parar o

o futuro. (...) e a impregnação

Nova, ainda inexplorável, p. 56)

tempo

de um passado simulado e

Natureza Morta Proposições para um filme imaginado 1

Passa-se num parque: tudo o que parece que é, já

mata tropical replantada pelo homem abriga uma arquitetura que forja tempos milenares. Uma gruta não é uma gruta, mas apenas a repre-

E a caverna de Platão?

inexistente acaba por criar uma espécie de hiper-realidade, onde o signo acaba por adquirir uma

sentação de uma gruta, construída em cimento O ato do monumento não é a

autonomia própria, fora do seu

memória, mas a fabulação. Não

contexto original, representando

se escreve com lembranças

o “todo” pela “parte”. Nesse

de infância, mas por blocos de

processo, o tempo e o espaço

cimento mimetizando troncos de árvores – si-

infância, que são devires-criança

se transformam em ícones de si

mulacros temporais que formam uma espécie de

do presente. (…) ‘Memória eu te

mesmos e, consequentemente,

parque temático arqueológico.

odeio’.” (Deleuze e Guattari, O

são transformados em cenários.

que é a filosofia?, p. 198)

(Celeste Olalquiaga, Megaló-

pelo homem. Uma torre medieval construída no século XX, um aquário de pedra feito de concreto e vigas de metal, um coreto bucólico feito de

Rabiscadas, descascadas, decalcadas nas paredes desses espaços, estão inscrições deixadas pelos visitantes de todos os tempos, inscrições criadas pela própria natureza? Esses símbolos, desenhos, palavras, números, frases, dedicató-

polis, sensibilidades culturais Bergson não cessará de dizer: o Tempo é o Aberto, é o que muda e não para de mudar de natureza a cada instante. É o todo, que

rias, poemas, datas, configuram a memória das

não é um conjunto, mas a pas-

pessoas que passaram por lá, configuram a me-

sagem perpétua de um conjunto

mória daquele espaço. São o registro do tempo

a um outro, a transformação

que passa, mas também material sobre material, tinta sobre pedra, liquid paper sobre concreto, unhas sobre limo, canivete sobre a tinta. É a memória como imaginário, imaginação; e também a memória como matéria. A sobreposição

de um conjunto num outro. É muito difícil pensar essa relação tempo-todo-aberto. Mas é precisamente o cinema que nos torna isso mais fácil. (Deleuze, Conversações, p. 76)

de tempos naqueles espaços se torna matéria para uma arqueologia fabular, e uma legenda sobre as imagens vai descolando o significado do código da escrita. No futuro, onde já não mais estaremos, alguém investiga os resquícios de nossas invenções. Uma teia de aranha permanece na tela.

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contemporâneas de, p. 45)

Centrada na representação de objetos inanimados, a natureza-morta afirma-se no Renascimento holandês, mas sua característica não narrativa, imóvel e impessoal, logo a torna reconhecida como gênero essencialmente moderno. [Os objetos representados eram] símbolos de mortalidade e já anunciavam sua relação estreita com a ideia do tempo. Na natureza-morta não importa o significado objetivo da coisa representada, que

O cenário do parque aqui tem re-

está emudecida por sua própria

lação com o parque de O mundo

vulgaridade. (...) Resta, portanto,

de Jia Zhangke. O filme se passa

o protagonismo da pura lingua-

quase inteiramente dentro de

gem – dos meios, das relações,

uma espécie de “parque temá-

da estrutura – que ali se cria.

tico” (que existe de verdade em

(Ligia Canogia em texto curato-

Pequim) cujo slogan é “conheça

rial para exposição Releituras

o mundo sem sair de Pequim” e

para natureza morta)

onde se podem ver réplicas de mais de 100 monumentos de países do mundo todo, na maioria das vezes, em escala de 1:3.

No filme De volta para o futuro, o personagem vai e volta no tempo em seu Deloren e cada vez que modifica o passado ele ressignifica todo o presente e o futuro também.

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4 dias e 4 noites Proposições para um filme imaginado 2

Um artista, digamos que seu nome seja Artur, sai

Russell Ferguson: Eu queria

de casa e decide que andará pelas ruas de sua ci-

perguntar-lhe sobre a importân-

dade durante 4 dias e 4 noites e depois escreverá

cia de caminhar em seu trabalho,

em um caderno todos os relatos de sua experiência. Nessa perambulação ininterrupta, o artista

começando por andar aqui pelo seu bairro, mas também de forma mais geral sobre o andar

alcança uma percepção fantástica da realidade à

como um gerador de projetos,

sua volta. Bem na metade do tempo total da ex-

ideias e histórias.

periência (e do filme), o artista entra no Museu de Arte Moderna da cidade. Lá dentro, se depara com uma instalação, realizada por um artista amigo seu, composta por caixas e terra. Artur re-

Francis Alÿs: Caminhar, em particular à deriva, ou passear, já é – dentro da cultura de velocidade de nossos tempos – uma espécie

solve então dançar com a obra durante uma hora.

de resistência. (...) Mas também

Apesar da chateação do colega, afirma que, sem

acontece de ser um método mui-

dúvida nenhuma, graças a ele a instalação ga-

to imediato para revelar histórias.

nhou vida. Segue pela cidade até cumprir com o corpo sua meta.

É um ato fácil e barato de realizar ou convidar outras pessoas para realizar. A caminhada é simultaneamente o material a partir do qual se produz arte e o modus operandi da transação artística. E a cidade oferece sempre o cenário perfeito para os acidentes acontecerem. Não há teoria sobre caminhar, apenas consciência. Mas pode haver certa sabedoria envolvida no ato de caminhar. É mais uma atitude, uma que me serve muito bem. É um estado em que você pode estar alerta para tudo o que acontece em sua visão e audição periféricas, e ao mesmo tempo, totalmente perdido em seu processo de pensamento. (Francis Alÿs, p. 31, 32. Tradução minha.)

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A história da mulher que queria fazer fotossíntese

no meio fio logo ao lado da faixa, os carros que

violentamente. (...) Fiquei olhando

volume 1: caos

aguardam, aos roncos, a luzinha verde voltar a

para Bartleby por uns instantes,

brilhar, e também os motoristas dentro desses

enquanto ele continuava com sua

carros, que transformam o tempo morto em tem-

própria cópia, e voltei a sentar-me em meu lugar. Isso é muito estra-

Um mulher anda na rua, para em um sinal e es-

Contemporâneo é aquele que

po nulo, mandando mensagens, nudes, olhando

pera sua vez de atravessar entre muitas outras

recebe em pleno rosto o facho

as últimas notícias e assistindo ao jogo de futebol

pessoas acumuladas na hora do almoço do centro

de trevas que provém do seu

do dia – todos eles se frustram violenta e inad-

atrasado com meu trabalho. Optei

vertidamente com a Mulher que não atravessa e

por esquecer a questão naquele

ainda tem a ousadia de não mover um pequenino

instante, reservando-a para meu

da cidade. O tempo demora a passar para aqueles que têm os minutos contados para retornar a suas

tempo. (Giorgio Agamben, O que é o contemporâneo? E outros ensaios, p. 64)

baias sem que sejam descontados no fim do mês.

músculo sequer. Ela permanece. A Mulher prefe-

Dentre as dezenas de pessoas que olham o celu-

re olhar o sol, e apenas o sol, enquanto os demais

nho, pensei. Qual seria a melhor coisa a se fazer? Mas eu estava

tempo livre. (Herman Melville, Bartleby, o escriturário, p. 31)

lar, o relógio, o sinal, os carros, a Mulher encontra

A ilha das abelhas atarefadas

pedestres se acavalam na faixa, competindo para

o seu lugar ao sol. Posiciona-se estrategicamente

no Mar Tirreno, assim chamada

chegar primeiro do outro lado, e dali correr para

[A Mulher aqui, com seu gesto,

num ponto do lado esquerdo e ao fundo do bolo

porque as ruas da sua cidade

mais uma fila, do restaurante a quilo, ou do eleva-

faz] “fugir a linguagem, aumen-

dor, ou então a fila do banheiro da firma para es-

tar uma zona de indeterminação

de caminhantes em compasso de espera. E bem precisamente nesses 15 cm quadrados em que o

estão apinhadas de gente a correr para cá e para lá, sempre atarefadas. Todos trabalham, nin-

covar os dentes ou para dar a clássica cagada pós

ou de indiscernibilidade tal que as palavras já não se distinguem

raiozinho de sol de outono venceu a batalha con-

guém tem um minuto a perder.

almoço. Na hora em que colocarem de volta suas

tra os arranha-céus, a Mulher achou de encaixar

Não se encontram mandriões

mãos sobre o teclado do computador, ou seus fo-

o rosto, um encaixe tão perfeito como se o peque-

nem vagabundos em parte ne-

nes de ouvido para o atendimento ao cliente, ou

traço de expressão que escapa

nhuma da ilha. Os pedintes são

vestirem novamente seus uniformes, ou abrirem

da forma, semelhantes às linhas

a boca feia de um paciente que não passou no

abstratas de uma escrita desco-

no raio estivesse ali desde sempre à espera de sua cara redonda e branca. Ela olha para o raio de sol

dissuadidos por ofertas de trabalho e é muito difícil obter uma re-

umas das outras e os personagens tampouco. É como um

nhecida...” (Deleuze, Crítica e

feição gratuita. Contudo, o peixe

banheiro para escovar os dentes, ou apalparem

impressão de escutar ao longe alguém dizer des-

no mar em redor da ilha é muito

a barriga de um animal, ou ligarem as máqui-

conjuntou-se o tempo e é meu maldito fardo ter

amável e dar. aos visitantes todas

nas de raio x e tantas ações já catalogadas, nessa

de pôr a direito o tempo errado. E por mais intri-

as informações necessárias. (Car-

hora por uma fração de segundos eles esquecerão

Sobre a imagem do protagonista

onde estão e o tudo que veio até ali e que virá de-

dormindo na cama, ouve-se a voz

pois, e lembrarão da Mulher sem entender direito

em off:

num desejo abissal de capturar o tempo. Tem a

gante que o aquilo lhe soe, não causa comoção o suficiente para desvencilhá-la da ideia de olhar o sol. Subitamente, o sinal abre para os pedestres, e

lo Collodi apud A. Maguel e G. Guadalupe, Dicionário de lugares imaginários, p. 8)

como aquele raio pôde chegar até ali. E a Mulher continua de pé, imóvel, sabendo que é observa-

antes mesmo que a fila de carros parados na fai-

Clínica, p. 100-101)

Em Paraíso conheci um caminhoneiro Antonio Carlos, que me chamou pra levar uma carga com

xa esteja completa, o bolo de gente está desfeito

Se houvesse o menor sinal de

da – mas está ocupada demais, viajando na velo-

e espalhado pelo meio da rua. Menos ela. Sem

inquietação, raiva, impaciência ou

cidade da luz dentro do buraco de minhoca da-

Corta para um depósito de

mover um músculo, ela quebra as expectativas de

impertinência em suas maneiras;

quele raio solar, para mover algum músculo em

cargas e caixotes e no centro

todos os espectadores envolvidos – o ambulante que vende bombons do outro lado da rua, o poste que carrega os fios que mantêm a todo vapor os grandes prédios comerciais, o mendigo sentado

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em outras palavras, se houvesse qualquer coisa ordinariamente humana a respeito dele, não

atenção aos espectadores perplexos diante daquela cena. E assim vai transcorrer a tarde, a Mu-

havia dúvidas de que eu deveria

lher, tantos outros carros, com tantos motoristas,

tê-lo expulsado do escritório

centenas de novos pedestres, agora em menor

ele ate Ipatinga.

da tela, do lado direito, vemos em pé um senhor barrigudo recostado sobre uma escada de metal. O protagonista aparece no fundo do quadro, do lado

53


perguntar por quê, e vão tiritar seus corpos, que,

quantidade, até que chegue novamente a hora

esquerdo, vem vindo em direção

do rush, e agora todos correm se convencendo de

à parte da frente da tela, senta-se

no auge da hipnagogia, despertarão inquietos

chaminé de uma fábrica. E o

que estão correndo porque agora poderão chegar

num caixote no chão ao lado do

sem conseguir encaixar aquela imagem nos com-

filme continua.

em casa, colocar os pés para o alto, beijar seus filhos, cônjuges, jantar comida caseira sem gas-

caminheiro barrigudo e puxa conversa: – A pior coisa do mundo que

partimentos acessíveis e decodificados de seus cérebros. Talvez atravessem a noite com insônia,

tar um tostão na rua, beber um whisky, ouvir um

tem pra carregar é cimento,

uns tomarão certamente pílulas da marca braços

vinil, na melhor das hipóteses. Mas correm mes-

aqueles sacos de 50 quilos, pare-

de morfeu, muitos voltarão para TV, outros tan-

mo porque só assim podem tolerar o caminho.

ce que tem mais é uma tonelada.

tos para a pequena tela preta de seus smartfones,

Correndo para chegar no futuro. Sempre. Desde sempre. Esquecendo que no futuro só o caixão. Enquanto ela acredita piamente que no fundo da

– Já carregou telha? Tem nada pior que telha. – Cimento é pior que telha, telha é até de boa.

vorada, vai descer o elevador de seu prédio, dar uns passos até a calçada, e com um leve movi-

E então ela fica. E quando eles estiverem deitan-

– Lenha, é horrível.

mento de pescoço vai achar o perfeito encaixe em

do a cabeça no travesseiro de fronha listrada de

– Lenha é mais fácil pra mulher.

que a esfera completa de seu rosto possa brilhar

da novela das nove, sem terem dado a trepadinha da semana, ela, a Mulher, ainda estará lá, e no

– Porco vivo, não tem nada pior. – Sal, queima a pele toda. – Bom de carregar é ração pra

sob o sol da manhã de outono. E quando assim o fizer, os novos espectadores que caminham por essas calçadas de Copacabana cismarão em não

lugar do raio de sol que ultrapassa arranha-céus,

peixe, cê, cê vê aquele sacão

entender aquela ação. E aí, nessa hora, alguma

seu rosto agora está estourado pela luz amarelada

gigante aí cê vai pegar, é levinho.

coisa de muito grave já terá acontecido no Japão.

do poste que antes apenas carregava os fios. Ago-

Ração de peixe é bom de carregar.

ra quase já não há espectadores, nem os camelôs, nem os pedestres, nem os carros e nem seus motoristas, talvez o mendigo ainda esteja aí, e junto

– É, é fácil de carregar mesmo, mas cê fica com o corpo todo fedendo. – Batata é bom de carregar, café.

com ela, resista à inevitabilidade das horas ou da

– Café e semente.

ações que insistem em se fazer cumprir. Ela sim-

– Milho, colchão de espuma.

plesmente está. E quando essa imagem se produz

– Arroz, areia.

– para os milhares de espectadores do dia e os pouquíssimos da noite que fingem não ver, mas não podem resistir à força da Mulher que parou sob o raio de luz – então nada mais será o mesmo, nem poderia. E aqueles que deitaram agora suas cabeças no travesseiro de pena de ganso, vão fazer de tudo pra evitar, mas como a Terra, que não pode escapar de ser um dia engolida pelo Sol, vão irrevogavelmente lembrar dela, a Mulher, e no instante exato entre o sono e a vigília, eles vão se

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Affonso Uchôa e João Dumas)

algum, alguém, que no primeiro raio de sol da al-

– É nada.

– Tijolo e abóbora.

(Cena do filme Arábia, de

os novos amigos inseparáveis, mas há de haver

luz que estoura os olhos, a morte não pode estar.

suas casas às dez horas da noite em ponto, depois

Corta para a imagem de uma

– Se eu tivesse condições eu ia,

Liberdade

eu mesmo, descarregar aquele

Aqui nesta praia onde

caminhão inteiro e economizava

Não há nenhum vestígio de impureza,

dinheiro.

Aqui onde há somente

– Se eu tivesse dinheiro, comprava logo uma empilhadeira.

Ondas tombando ininterruptamente, Puro espaço e lúcida unidade,

A voz em off retorna:

Aqui o tempo apaixonadamente

Antonio Carlos morreu de

Encontra a própria liberdade.

diabetes e eu fiquei na cidade. Consegui uma cama limpa pra

Sophia de Mello Breyner Andresen

dormir e um trabalho descente pra fazer.

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Os 3 fatos desastrosos de quem cisma em se espichar à procura do sol

Fato 1. Outro dia ainda neste inverno, estava na varanda da minha casa, sentada na cadeira de balanço velha onde, aliás, minha mãe deu-me de mamar há 36 anos. Olhava fixamente para uma das folhas da árvore que balança todo dia para a esquerda, exatamente na frente da janela, e me espantava com o tom daquele verde: ora verde cobre, ora verde ouro, ora verde prata. Não conseguia entender de onde vinha tanto metal. As meias tinham ficado no quarto e eu sentia um frio que fazia a perna se encolher inteira pro pé caber dentro da calça de moletom. Como num improvável lance de dados, num rompante incomum, o vento mudou seu curso e a árvore foi se balançar toda para a direita do quadro. Acontecimento que eu, há três anos morando naquela casa, grande parte deles sentada naquela varanda, nunca havia presenciado. Ao girar o torço na busca pela folhinha que agora balançava à direita da tela, descobri uma frestinha de sol entrando pelo chão da varanda. Desesperada na esperança daquele pinguinho possível de calor no pé frio, estiquei a perna com a dedicação disciplinada de uma dançarina de balé. Mas esqueci que não era. A força foi maior do que o músculo, e sem força para evitar o salto involuntário, esborrachei-me inteira no chão gelado e vermelho do azulejo da varanda. Dois meses de bota ortopédica foram necessários para solucionar o caso.

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Quando um homem se lança ao tornado

bolha, não existe estática, mas que, aqui, instaura uma ordem a partir do caos. É o colapso de uma certa ordem, abandono do que se conhece, é a

“Consideraremos os efeitos das pressões demo-

“...toda fabulação é fabricação

desordem em sua pura forma. Explodir, Implo-

gráficas como ‘criativos’ ou ‘destrutivos’ depen-

de gigantes” (Deleuze e Guattari. O que é

dir. Resistência ao que em volta se fantasiou de

dendo de nosso ponto de vista.” Estas são palavras de Manuel de Landa, citadas por Francis Alÿs

Filosofia?, p. 203)

ordem, uma vez que cada átomo do que compõe essa ou qualquer paisagem, se olhado através do A câmera é um instrumento

em seu livro Numa dada situação, espécie de ca-

microscópio de Godard, é formado da tensão das

derno de processo do seu trabalho Tornado (2000

forças da terra, do caos e do cosmos, como aquilo

– 2010). Para Manuel De Landa, os tornados são

que pode gerar o tornado de Alÿs, procurando um

uma forma de ordem que surge espontaneamen-

momento de coincidência entre a experiência de

te do caos, dando origem a evidente desordem

viver e a consciência da existência. “Nossa mis-

(risos) (Godard em entrevista

de outros sistemas. De Landa compara esse fe-

são é destruir, não construir; outros, melhores,

sobre Adieu au langage)

nômeno natural à turbulência causada pelas mi-

mais inteligentes e mais puros do que nós, irão

grações demográficas, frutos de guerras; mostra

construir”, Alÿs cita Bakhtin. Ético, poético, po-

como o acúmulo demográfico em determinadas

lítico, estético. Não se pode traçar uma reta num

áreas gera novas guerras. Em Still Life, o cineas-

espaço curvo.

ta chinês Jia Zhangke se depara com cidades que

Alÿs e sua câmera se lançam em direção ao

estão sendo inundadas para dar origem à maior

tornado. No olho do furacão, o olho do tornado

hidroelétrica do mundo – uma outra espécie de

é como um buraco negro, é de onde não se pode

guerra – que provoca igualmente uma migração

retornar e, ao mesmo tempo, é quando o tempo

em massa para os centros urbanos. Essas pesso-

faz uma volta, saímos do outro lado da “ponte da

as estão se acumulando nas cidades, causando

minhoca”, no buraco branco, e assim podemos

uma pressão que pode vir a explodir como um

inventar nosso próprio tempo. Alÿs inventa o

tornado. A guerra, que é causa e consequência

seu tempo. A câmera captura imagem e som em

desses fenômenos, como disse De Landa, pode ser lida a partir do que Deleuze e Guattari falam sobre as revoluções: não se trata do que de fato passou a existir no mundo depois da revolução, o que surge daí, o que muda ou permanece igual

como para os cientistas o microscópio ou o telescópio. Vem analisar os dados – dizemos dados, mas dados por quem?

movimento no tempo que discorre sem cortes, Estes universos não são nem virtuais, nem atuais, são possíveis, o possível como categoria estética (“possível, por favor,

sem pausas. Um plano sequência que, segundo ele mesmo, não consegue dar conta de qualquer sequência possível dos eventos. Alÿs é Dom

Capítulo VIII — Do bom sucesso

se não eu sufoco”), a existência

Quixote se lançando contra moinhos de vento e

no fato histórico – trata-se da experiência vivida

do possível, enquanto que os

sua câmera é exatamente a lança que desafia a

na espantosa e jamais imagi-

pelo corpo de quem revoluciona e os mundos que

acontecimentos são a realidade

“incapturabilidade” característica do vento em

nada aventura dos moinhos

se abriram aí a partir disso. O Tornado de Fran-

do virtual, formas de um pensa-

rotação. A câmera, como a lança, busca o golpe

cis Alÿs é isso. Uma fenda na própria ideia de que poderia existir uma linearidade de acontecimentos, uma turbulência giratória, que, assim como a

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mento-Natureza que sobrevoam todos os universos possíveis. (Deleuze e Guattari em O que é Filosofia?, p. 210)

fatal onde o tornado rompe sua ordem perfeita no

que teve o valoroso D. Quixote

de vento, com outros sucessos dignos de feliz recordação. Quando nisto iam, descobri-

caos e se desestabiliza. Ao contrário daquilo que

ram trinta ou quarenta moinhos

destruiria, como um foguete que ninguém viu

de vento, que há naquele campo.

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voar, a câmera de Alÿs possibilita que o tornado

Assim que D. Quixote os viu,

ele em que eram gigantes, que

seja de novo e de novo percebido, em cada deta-

disse para o escudeiro:

nem ouvia as vozes de Sancho

lhe, pelas imagens que o artista corta e recorta, edita, criando uma narrativa de ritmos de respiro e movimento, tentando reestabelecer a ordem

— A aventura vai encaminhan-

nem reconhecia, com o estar já

do os nossos negócios melhor

muito perto, o que era; antes ia

do que o soubemos desejar;

dizendo a brado:

porque, vês ali, amigo Sancho

— Não fujais, covardes e vis

que vem do caos e que pra ele retorna. Ele diz que

Pança, onde se descobrem trinta

criaturas; é um só cavaleiro o

cada avanço guarda dívida com o que precede, e

ou mais desaforados gigantes,

que vos investe.

eu ousaria dizer que, na gira de seu tornado, cada

com quem penso fazer batalha,

avanço reconfigura de novo e de novo tudo aquilo que foi, que está sendo e que pode vir a ser. E Alÿs se lança indubitável ao tornado, pondo em

Levantou-se neste comenos

e tirar-lhes a todos as vidas, e

um pouco de vento, e começa-

com cujos despojos começa-

ram as velas a mover-se; vendo

remos a enriquecer; que esta é

isto D. Quixote, disse:

boa guerra, e bom serviço faz a

— Ainda que movais mais

risco a própria vida, para que dali se abram bre-

Deus quem tira tão má raça da

braços do que os do gigante

chas, para que possamos através de suas imagens

face da terra.

Briareu, heis-de mo pagar.

enxergar outros mundos até então invisíveis. Diferente do tornado comum que é a ordem perfeita criada a partir do caos e que deixa como rastro a desordem por onde passa, “o Tornado de Alÿs” produz também alguma outra coisa, produz perceptos e afectos que permanecem para além dele mesmo. “A arte conserva: Independe do modelo (o trabalho que originou, suporte), Independente do espectador, Independe do criador.” E quem olha de fora o homem, a câmera e o tornado, quase não acredita no que vê, ou naquilo que não vê, pois é o salto na direção do inverificável.

— Quais gigantes? — disse Sancho Pança. — Aqueles que ali vês — res-

E dizendo isto, encomendando-se de todo o coração à sua senhora Dulcinéia, pedindo-

pondeu o amo — de braços tão

lhe que, em tamanho transe o

compridos, que alguns os têm

socorresse, bem coberto da sua

de quase duas léguas.

rodela, com a lança em riste,

— Olhe bem Vossa Mercê —

arremeteu a todo o galope do

disse o escudeiro — que aquilo

Rocinante, e se aviou contra o

não são gigantes, são moinhos

primeiro moinho que estava

de vento; e os que parecem

diante, e dando-lhe uma lançada

braços não são senão as velas,

na vela, o vento a volveu com

que tocadas do vento fazem

tanta fúria, que fez a lança em

trabalhar as mós.

pedaços, levando desastrada-

— Bem se vê — respondeu D.

mente cavalo e cavaleiro, que foi

Quixote — que não andas cor-

rodando miseravelmente pelo

rente nisto das aventuras; são

campo fora.

gigantes, são; e, se tens medo,

Acudiu Sancho Pança a so-

tira-te daí, e põe-te em oração

corrê-lo, a todo o correr do seu

enquanto eu vou entrar com eles

asno; e quando chegou ao amo,

em fera e desigual batalha.

reconheceu que não se podia

Dizendo isto, meteu espo-

menear, tal fora o trambolhão

ras ao cavalo Rocinante, sem

que dera com o cavalo.” (Miguel

atender aos gritos do escudei-

de Cervantes, Dom Quixote de

ro, que lhe repetia serem sem

La Mancha.)

dúvida alguma moinhos de vento, e não gigantes, os que ia acometer. Mas tão cego ia

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Bolívia

2 de novembro 2018

Proposições para um filme imaginado 3

Uma curadora brasileira recebe um convite para

Pequeno caderninho de campo

criar uma exposição na Bienal de Arte da Bolívia.

e de gabinete

Como resposta, ela convida 6 artistas latinoamericanos a para partirem em uma viagem pelo

02 de outubro 2018 - El Alto: os campesinos que

mundo” durante o período ro-

TEMPO: Bolívia talvez seja um

mano. Seu nome dramático vem

universo onde há uma dimensão

dos inúmeros naufrágios que

em que os tempos se unem.

aconteceram ao longo da história

Tensão entre tradição y con-

nesta área feita de rochas, nebli-

texto popular contemporâneo /

na e tempestades. (...) O vento,

Reconstrução e reinterpretação

as pedras, o mar, o fogo, são per-

dos rituais andinos / Desenvolvi-

sonagens deste filme, e através

mento de técnicas ancestrais de

deles nos aproximamos do mis-

país, desde de La Paz e El Alto até o Deserto do

trabalham em La Paz moram

observação e conhecimento do

tério da paisagem, entendendo-o

Sal e a Ilha do Sol. Uma das artistas deve fazer um

cada vez mais alto: quanto mais

cosmos / Aparatos tecnológicos

como um conjunto unificado com

pobre, mais falta de ar.

para estudos astronômicos –

o homem, sua história e lendas.

filme. Todos os outros devem viver a experiência, e só. Durante a viagem, mundos que vigem entre a Bolívia contemporânea e as sociedades milenares que habitam esse território se fazem presen-

- Têm uma relação muito forte com a terra, a PACHAMAMA é o

pensamento acadêmico grego,

Deus deles.

Low Tec, Gambiarra, Bricolage /

Georges Bataille traz o bárbaro,

SONHO como forma de acessar o

como o demente, a “feiura”,

íntimo, pessoal

“aquilo que não tem sentido e

- Eles olham de frente para o passado, que conhecem, e olham

desconhecidas, as nuvens têm vozes, as fumaças

de costas para o futuro que desconhecem. 19 de outubro 2018

neta deserto desconhecido, a terra mãe dos imi-

“Ter sempre o olhar de estrangei-

grantes paulistas, o lado negro da força, o lado sa-

ro e nunca de turista”.

sociedade com maior porcentagem de indígenas em sua população, a terra dos 4 idiomas e tantos outros dialetos, o mundo dos cabritos pendurados, das sociedades das mulheres. O planeta do Sol, do Sal. Bolívia, onde o tempo que passa permanece parado e onde o tempo que pausa, corre como vento, como ar.

intitulada “Aprendiz de feiticei-

mán: COMO FILMAR O DESER-

ro”, Bataille coloca o pensador

TO?

contemporâneo como aprendiz, relacionando com o arcaico, o bárbaro, os galeuses. Sobre a Re-

Galileia, Galícia, Gália

vice versa.

rência no Colégio de Sociologia,

Nostalgia da Luz, Patrício Guz-

- Documentar inventando e

vista Documents Bataille escreve “a revista está dando conta da

- Pesquisar origem do nome

‘forma informe’ do documento.”

“Bolívia”. - Estrangeiro! Exóticos. Clichê. Questão. 25 outubro 2018 A ideia de montagem presente neste livro/dissertação, apre-

1. A noite na Galileia é como se

Ele diz que interessa mais a ruína

no escuro o tamanho do deserto

do que o edifício, e nela ele cria

andasse. A barata é um tamanho

o que chama de “procedimentos

escuro andando. (Clarice Lispec-

classificatórios para desclassi-

tor, A paixão segundo GH, p.77)

ficação”. Na revista, realizava

2. O Filme A Costa da Morte do

uma justaposição de elementos

sentando questões semelhantes

cineasta e artista espanhol Lois

com o propósito de romper os

como nos fragmentos de um

Patiño tem a seguinte sinopse:

“corpos” tradicionais e provocar

caderno, diário de bordo. No fil-

“Nun entrar do home na

desfamiliarização. As imagens

me, na própria viagem, já é essa

paisaxe e da paisaxe no home

eram ampliadas e selecionadas

montagem de heterogêneos,

creouse a vida eterna de Galiza”

de forma peculiar em que se

assim como a escolha do que é

– Castelao

perdia a noção do objeto a que

filmado e do que não é também.

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nem utilidade”. Em sua confe15 de novembro 2018

nunca saberá o que Bolívia é. Bolívia, esse pla-

grado da Terra, o país mais oriental do ocidente, a

3. Para combater o ideal do

Aparelho mapeamento celeste /

tes. Cada um dos viajantes incorpora entidades carregam enigmas. Mas ninguém ali sabe nem

tempo, tempo, tempo, tempo /

Costa da Morte é uma região

faziam referência e se tornavam

no noroeste da Galícia que foi

estranhas, por vezes abstratas ou

considerada como “o fim do

não definíveis.

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16 de novembro É interessante relacionar essa

3 de dezembro 2018 Levar:

de Andrade está alertando para os perigos da “domesticação do

questão do documento de Batail-

- Mochila pequena

selvagem”. A antropofagia de

le com o cinema documentário;

- Biquíni

Oswald não deixa de ser uma

o documentário foi tido como

- Termal

resistência ao humanismo.

“aquilo que traz a verdade”, e,

- Calca Jeans

ainda hoje, é visto dessa forma

- Casacão

gulho etnográfico em literatura

pelo senso comum e a maioria

- Camiseta

através da autobiografia

dos espectadores. No entanto,

- Luva

desde o filme que é marco do

- 2 meias no pé

“nascimento do documentário”,

- tênis caminhada

Não procurar fixar, coisificar

Nanook do Norte (1922), do dire-

- Protetor Labial

a estranheza do estrangeiro.

tor Robert Flyherty, a ficção e a

- Protetor solar

Apenas tocá-la, roçá-la, sem lhe

invenção já operavam com força

- Hidratante

dar estrutura definitiva. Simples-

total. Ao chegar na comunidade

- Lenço Umedecido

mente esboçar o seu movimento

de esquimós que havia visitado

- Escova / Shampoo / Sabão

perpétuo através de alguns rostos

no ano anterior com equipamen-

- Saco de dormir

disparatados desfilando hoje sob

to e equipe para agora filmar

- Galão de água

nossos olhos, através de algumas

seu primeiro documentário, Flyherty se deparou com uma não tão grata surpresa: todos os hábitos da comunidade já haviam se modificado, eles já não mais pescavam, caçavam ou moravam nos iglus como antes e tudo que o cineasta havia planejado para seu

Personagens:

Leiris: a transformação do mer-

9 de dezembro 2018

de suas imagens antigas, mutan-

- Denise: inventora de aparelhos para medir a cosmovião - Narda: observadora de nu-

tes, dispersas na história. (Julia Kristeva, Estrangeiros para nós mesmos, p. 10)

vens e sonhos - Elisita: fantasma da fumaça - Jairo: jornalista dos lustra-botas

filme parecia ter derretido com o

- Will: músico itinerante

gelo. Diante disso, Flyherty pediu

- Bia: guia da excursão

que os habitantes daquela comu-

*tradição é uma espécie de

nidade retomassem seu modo de

ficção que percorre uma cultura,

vida anterior e, por alguns dias,

que forma uma cultura.

registrou as atividades que queria a partir de um trabalho de ence-

O anti-viajante de Mario de

nagens. Desde o “surgimento do

Andrade

cinema documentário” a questão da semelhança pode ser posta em xeque, e o que há de verdade ali, sempre foi o encontro entre aquele que olha e o que é olhado.

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8 de dezembro 2018

nação e representação dos perso-

Calvino: “uma cidade ajuda a decifrar outra cidade” Pedro Vaz de Caminha: “aquilo que vejo é o que me parece” Quando escreve o poema “Sel-

“Captar o fantasma naquilo que

vagem” e usa trechos da carta

olhamos” (Didi- Huberman).

de Pero Vaz de Caminha, Oswald

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Teu nome de estrangeira

A minha Musa antes de ser a minha Musa avisou-me cantaste sem saber

È necessario inventare una lingua per inventare un mondo? Jak być obcokrajowcem w

que cantar custa uma língua agora vou-te cortar a língua

para falar com a pedra

Sobre a pedra e o buraco

Que pedra, ela me perguntou?

Michael Heizer é um artista

Aquela onde não conseguistes penetrar

para aprenderes a cantar

de mundos vazios

a minha Musa é cruel

e imaginados

mas eu não conheço outra

contemporâneo, um dos pioneiros da Land Art. Land Art é uma corrente artística surgida no final da década de 1960, que se utilizava do

lembra-te? Desculpa,

meio ambiente, de espaços e

Eu só posso escrever

Não sei falar teu nome de estrangeira.

zar suas obras. Um dos seus

em português e sou estrangeira

Cava um buraco comigo

primeiros e emblemáticos

isso diz mais do que muita palavra.

(Duplo negativo): cavou duas

naszym własnym języku?

Adília Lopes

nessa língua poesia mas a verdade

O amor da pedra

é que todos já sabem

Eu conheci essa pedra há

recursos naturais para reali-

trabalhos é Double Negative trincheiras de 450 metros de

exatos 6 anos e foi amor à

comprimento no meio do

primeira vista. Pensei nela

deserto em Nevada. As enor-

estrangeiro em nossa própria língua

todos esses anos e esperei

mes proporções do trabalho

ansiosamente pelo dia de

também tencionam a relação

Não que verdade pode ser dita

reencontrá-la. Finalmente

do observador com a terra e

esse dia chegou: nos abra-

com a própria arte. Negative

çamos por um bom tempo e

Megalith #5 é um outro traba-

ficamos ali, olhando uma para

lho de Heizer que, dessa vez,

a outra. Foi bom, muito bom.

ao invés de cavar o buraco,

No fim do dia, mais uma vez,

deslocou uma enorme pedra

Lembro que tinha pensado

nos despedimos, sem saber

para o espaço expositivo do

quando nos encontraremos

museu. “Megálito” significa

entre a sala e o corredor

novamente. Enquanto isso

grande bloco de pedra bruta

sobre o que eu falaria

não acontece, tenho no corpo

ou pouco desbastada em mo-

a memória da pedra que tem

numentos do período Neolíti-

quando estrangeira virasse

em si a memória do corpo.

co. É uma pedra de 5 metros

que escrever um poema é tornar-se

Não estamos justamente falando dos mundos que se inventam não era isso?

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de altura, 2 de largura, 1 de profundidade e cujo peso ninguém nunca mediu. Michael Heizer pode ser considerado um especialista em pedras e buracos. “Estou construindo esse trabalho para depois. Estou interessado em fazer uma obra de arte que representará toda a civilização até este ponto”, ele diz em seu site.

...mas porque sua solidão lhe dá uma capacidade ampla, um grande povoamento. (Deleuze, Conversações, p. 53 )

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Inventário de fantásticos

1. Dois ovos dançam dentro de uma pequena panela enquanto a

7. Um bebê de 47 cm e 2,700 quilos sai de dentro da barriga de

água borbulha como um vulcão prestes.

uma mulher.

2. Em meio a uma ocupação popular do edifício modernista que

8. Uma quantidade de água infinita a olhos nus desemboca na areia

foi construído para ser a sede do Ministério da Cultura na cida-

das praias de uma cidade a uma temperatura ideal para o contato

de do Rio de Janeiro capital do Brasil, ali onde hoje funciona a

com a pele humana. Em volta avistam-se montanhas verdes.

Fundação Nacional de Artes do país, aquela que foi ameaçada de

9. Uma mulher senta em uma cadeira de uma biblioteca diante

extinção pelo atual presidente da república, centenas de pessoas

de um computador e permanece ali com os óculos na cara por 10

tocam e cantam as Bachianas de Villa-Lobos.

horas sem escrever uma linha.

3. Uma mulher entra em um museu em NY, se depara com uma

10. Um homem sentado no meio da rua toca um jazz no trompete

pedra de 477.5 x 198 x 66 cm e resolve abraçá-la.

enquanto as moedas atiradas às pressas fazem vez de percussão.

4. Um carro desce uma serra em meio à branquidão total, a nebli-

11. Uma mulher senta na arquibancada de madeira na plateia de

na dominou a estrada e não é possível enxergar um palmo à fren-

uma peça com atores nus, que dura 8 horas sem intervalo, e não se

te. No meio do caminho, pedrinhas redondas de gelo começam

levanta nem para ir ao banheiro fazer xixi.

a cair do céu. As crianças grudam a cara na janela maravilhadas.

12. Uma voz circula pelas ruas de uma cidade gritando: olha a pa-

5. Uma garrafa térmica laranja emite um som de um pássaro quan-

monha! 30 ovos por 10 reais, ovos graúdos, ovos fresquinhos. Tá

do alguém não fecha a tampa corretamente.

acabando, quem vai levar!?

6. Uma mulher sentada na biblioteca por 8 horas começa a ter a

13. Um museu pega fogo.

nítida certeza de que as mesas estão balançando num ritmo lento.

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Museu Nacional

Existe mais de uma maneira de queimar um livro. E o mundo está cheio de

é a lambida mortal fatal final é a lambida que arde que torra amarela

pessoas carregando fósforos acesos. (Filme Farenheit 451, François Truffaut)

e vermelha também é lambida que fere que desmonte descaso desfaçatez diz muito é lambida arsênico vermute incêndio é lambida na cara na pele navalha

foi-se luzia, foram-se a etnologia antropologia paleontologia foi-se a ciência foi-se a cultura foram-se baratas crustáceos moluscos múmias dinossauros e esquimós

é uma catástrofe insuportável

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e a senhora no sofá que dá um grito são as tvs amarelas do sete de setembro

no Latour vai responder com a proposição de que teremos agora finalmente que aceitar o reencontro entre natureza e cultura, incorporando, com culturas que estiveram à margem do centro do pensamento ocidental, como as culturas orientais e ameríndias. Esse reencontro de que fala

são 200 anos para trás e para frente muitos mais não há água que dê jeito não há escada magirus que de pé foram-se também os yanomami

para rompermos com uma sensibilidade cristalizada que rarefaz nossos modos de experimentar as relações de tempo, a morte, e, de um que tendemos a chamar de natural e o que aceitamos como os seus “outros” – o cultural, o contra-natural, o sobrenatural. Latour diz: “A Grande Divisão entre nós, os ocidentais e Eles, todos os outros, dos

pataxó potiguara e os ticuna

da Tansmânia, sempre nos

tan, dos Inuit aos aborígenes perseguiu. Não importa o que façam, os ocidentais carre-

foram-se as provas

a experiência da alteridade

dos massacres dos saques das voltas da violência da escravidão das desapropriações

fim de mundo, uma abertura

gam a história nos cascos de suas caravelas e canhoneiras, nos cilindros de seus telescópios e nos êmbolos de suas seringas de injeção. (...) pensam sempre que diferem

para essas “margens” do ocidente, desde que livre

doras, seria talvez uma via

mares da China até o Yuca-

de alguma forma promissora, radical: diante das imagi-

e idealizações simplifica-

guarani caiangangue macuxi

Latour parece ser a tentativa de entender como possível, e

dos costumeiros exotismos

modo geral, o jogo entre o

À ideia de fim do mundo Bru-

nações contemporâneas de

é uma catástrofe insuportável

é o avião atravessando o prédio

dos suicidas convictos

isso, outras sociedades e

foi-se a casa de dom joão

não há imagem possível

foi-se o manto dos reis do havaí

radicalmente, absolutamente,

o domo do túmulo de maomé

de um lado, o ocidental, e de

a ponto de podermos colocar,

75


foi-se a preguiça gigante das crianças o esqueleto da baleia jubarte lambeu a vaquinha pra remontar o fóssil do dinoprata

outro, todas as outras culturas, uma vez que estas têm em comum o fato de serem apenas algumas culturas em meio a tantas outras.

as vigas que sustentavam os pequenos desabamentos foram-se as infiltrações os buracos as mossas

é chama, é brasa é pó e é ruína

é o fogo amarelo vermelho e azul também

O Ocidente, e somente ele,

é o fogo

não seria uma cultura, não

é fogo

apenas uma cultura.” (Bruno

foram-se os cupins que cerravam portas

é o fogo que não dá trégua

Latour, Jamais Fomos Modernos, p. 96) Investir contra essa

experienciar outros mundos possíveis, essas narrativas e fabulações são também hoje facilmente cooptáveis, sendo reproduzidas a todo tempo dentro de um certo sistema. Com isso se tornam mercadoria, se tornam moda, se tornam entretenimento

não é

fácil, e passam a ser, quando muito, “metáforas das ideias

imagem na direção de uma

de fim”. Nesse cenário, per-

experiência mais simétrica

demos todos a chance de de

nos encontros com culturas e

fato vivenciar a experiência

coletivos extra-ocidentais é,

do que nos parece impossí-

segundo Viveiros de Castro,

vel, ampliando o infinito es-

“alargar o mundo dos pos-

pectro de mundos possíveis

síveis humanos, mostrando

ainda a serem inventados.

que a tradição cultural euro-

não há imagem possível que imagine melhor um país

péia não detém, nem de fato nem de direito, o monopólio do pensamento”. (Viveiros de

cujo nome carrega o fardo

Castro, Encontros, p. 79)

dos incêndios de alexandria

lidade de estar diante de tal

Se por um lado a possibibrutalidade, como o fim da

e um belo dia

humanidade, é a possibilidade de criar fissuras na nossa

veio o fogo ardeu queimou lambeu

histórica compreensão de

é o fogo que não perdoa

novas possibilidades de

76

mundo ocidental, criando

77


78

79


Pornografia

rindo meio chocada comendo um biscoito ama-

acreditem que podem aumentar

relo desses que tem cheiro de peido e que eu vi

seus limites, vamos colocá-los à

que custava um real e cinquenta centavos no am-

prova! Veremos se são tão po-

Um casal de mendigos trepa bem na minha fren-

Ele disse: “Pense na diferença en-

bulante do nosso lado. Me lembrei do Deleuze fa-

te do outro lado da rua, enquanto eu escuto Tua

tre acreditar no que se quer acre-

boca do Itamar Assumpção sentada no ponto de

ditar e acreditar no que pode ser

lando que eles têm o mundo próprio, os animais,

derosos quanto pensam! Vamos mergulhá-los na escuridão e na tempestade! Vamos quebrar o

e que tem muito ser humano que não tem. Aque-

céu, e eles serão esmagados

les ali, os mendigos, esses têm um mundo pró-

por sua queda!” É isso que nos

eu disse. (Mas estava mentindo)

prio só deles, que sorte. Enquanto isso, definiti-

dizem os xapiri quando suas

tar. Olhando pro casal, recrimino o meu próprio

“E não tenho nada a provar.”

vamente, eu não tenho nem um ponto de ônibus

preconceito por não conseguir ficar excitada com

(Mentindo de novo) “É só que

só pra mim – e tenho que continuar escutando a

aquela trepada, só consigo pensar que o mundo

eu gosto de andar pelo mundo e

mulher blablaziando – quanto mais ter um mun-

ônibus comendo uma bomba de chocolate e me lambuzando a cara toda como nunca consigo evi-

vai acabar e eles parecem não se importar. Para eles o mundo já acabou? Ou nem começou? Ideia fixa martela minha cabeça, até que sinto a buceta

provado.” Pensei sobre aquilo. “Não quero acreditar em nada”,

parar, notando alguma coisa sob o céu.” (Já isso é verdade). (Anne Carson, Plainwater, p. 117)

o tempo do sonho. Eles não mentem. São guerreiros valentes, que nunca nos alertam à toa. A morte

do todo só meu e esse que eu tenho, que sou obri-

dos xamãs. que são seus pais,

gada a dividir com mais ou menos 7 bilhões de

os deixa enfurecidos e atiça seu

pessoas, tá prestes a acabar e eu ainda não conse-

desejo de vingança. (Davi Kope-

apertar quando Itamar fala dentro do meu tímpa-

gui decidir em quem acreditar: nos cientistas que

no que quer sugar a minha boca e eu não consigo

dizem que já era; ou nos cientistas que dizem

mais enxergar o casal, que a essa altura já mudou

imagens falam conosco durante

nawa, A queda do céu, p. 494)

Mais tarde, na floresta, talvez

que, se “reduzirmos a escala”, ainda há tempo de

morramos todos. Mas não

salvar o planeta; ou então, nos antropólogos que

Bruno Latour reconhece a neces-

invisível. Que bela reversão essa de papéis. Men-

pensem os brancos que vamos

não levam fé na “galera da Pachamama” (“os di-

sidade de se recorrer a outras so-

digos cuspindo no meu preconceito. Limpo com

morrer sozinhos. Se nós formos,

tos povos tradicionais”) mas acreditam que ainda

ciedades e culturas que estiveram

as costas da mão direita aquele chocolate espa-

eles não vão viver muito tempo

de posição três vezes e faz com que eu me sinta

lhado pela cara, mas nem desconfio que quando eu andar uns metros ali pra frente, porque essa

depois de nós. Mesmo sendo muitos, também não são feitos

há tempo; ou nos próprios povos ameríndios que, através da sua cosmopolítica, vêm tentando mos-

à margem do centro do pensamento ocidental até hoje, a quem ele chama “aqueles povos que

de pedra. Seu sopro de vida é

trar para a “civilização que julga ter inventado a

bosta de ônibus não vai passar nunca e só depois

tão curto quanto o nosso. Eles

política”, que se nos unirmos, ainda podemos

égide, por exemplo, de Pacha-

eu vou ficar sabendo que cancelaram essa merda

podem acabar conosco agora

evitar a queda do céu ou então, acreditar nos an-

mama, a deusa Terra”.Viveiros e

dessa linha, a única que me levava até a bibliote-

porém depois quando quiserem

tropólogos que defendem os povos indígenas

Danowski vão notar, entretanto,

ca, nem desconfio que eu vou dar de cara com aquele cara que eu tava fudendo outro dia e ele vai passar a mão na minha bochecha porque ain-

se instalar nos lugares onde nós vivemos, vai ser sua vez de serem devorados por todos os

mas por sua vez não acreditam que ainda possamos fazer alguma coisa e que, “cara, já era, tamo

pretendem estar reunidos sob a

que o próprio Latour não parece acreditar que esses povos estejam a altura do desafio.

tipos de seres maléficos perigo-

frito”. E tentando escrever agorinha mesmo essas

da tava toda suja de chocolate. Até agora ainda

sos. Assim que tiverem destruído

frases, só pensava o quanto que na verdade eu só

considera a possibilidade de que

não consegui decidir se isso é bom ou ruim. Mas

os espelhos dos xapiri dos nos-

queria fazer uns filmes estranhos com uma mu-

as em geral pequenas popula-

enquanto isso, continuo aqui parada, sendo igno-

sos grandes xamãs, devastando

lher que faz fotossíntese, porque é só nisso que eu

ções e a tecnologia “relativa-

rada pelo casal de mendigos que já gozou duas vezes, abismada como eles conseguem ainda sentir tesão mesmo sabendo que o mundo já acabou. Parecem animais, a mulher me fala meio

80

a terra da floresta, esses espíritos vão se vingar. Já estão nos avisando, como eu disse: “Não

consigo pensar pra acreditar que a gente vai conseguir escapar dessa. Viajar no tempo, cara, eu

temam! Não tenham medo de

tava falando isso pra minha amiga argentina ou-

morrer! Por mais que os brancos

tro dia. Mas ninguém leva a sério o que a gente

Parece-nos que Latour não

mente rudimentar” dos povos indígenas e de tantas outras minorias sociopolíticas da Terra, venham a transformar-se em um exemplo, um “recurso” e uma

81


fala nos dias de hoje, ou eles trepam na nossa

vantagem cruciais em um futuro

do nosso próprio ou vamos explodir todos juntos

ria humana e as escalas cronoló-

cara, ou dizem que estão com tesão na gente, ou

pós-catastrófico, ou, se prefe-

com o fim desse planeta. Mas não vai rolar explo-

gicas da biologia e da geofísica

tá todo mundo discutindo se vai ter eleição ou

rirem, em um mundo humano

são não, é o fim dos recursos e essa coisa toda que

diminuiu dramaticamente, senão

não, e eu continuo aqui sentada sendo ignorada por um casal de mendigos que interessariam ao

permanentemente diminuído. Nosso autor não parece estar

o Antropoceno tá causando. Se bem que nas con-

mesmo tendeu a se inverter: o ambiente muda mais depressa

preparado, ele, para encarar

venções de 2012 aqui no Rio, os capitalistas esta-

Deleuze muito mais do que eu, claro. E eu, uma

de frente a situação altamente

vam todos reunidos falando que, se a gente freas-

ximo se torna, com isso, não só

otária, que não sai da biblioteca lendo esse cara

provável de que sejamos nós,

se toda a produção de gases agora, em 2100 a

cada vez mais imprevisível, como,

que jogou esse monte de bosta na nossa cara e de-

os povos do Centro, com nossas

terra estaria 2 graus mais quente e metade do gelo

talvez, cada vez mais impossível.”

pois não teve nem coragem de encarar o século XXI, pulou da janela em 1994 e deixou esse mundo acabando aqui pra gente lidar. Quando ele pu-

sociedades de “avançada” tecnologia, povoadas de autômatos obesos, midiaticamente teleguia-

derretido, e daí, menos de 10 anos depois, já tão dizendo que essa previsão é pra agora, está acon-

que a sociedade, e o futuro pró-

(Viveiros de Castro e Danowski em Há mundo por vir?, p. 107)

dos, psicofarmacologicamente

tecendo tudo agora. Ou seja, fudeu mesmo. Mas

lou da janela, lá no ar, será que ele se arrependeu?

estabilizados, dependentes de

pergunta se os mendigos ligam. Porra, e eu não

O grande desejo de Jia Zhangke,

Quando ele saltou lá do vigésimo andar, o Deleu-

um consumo (de um desperdício)

consigo ficar excitada com isso porque fico presa

desde os primeiros filmes, era

ze, será que ele teve mais algum insight maravi-

monumental de energia, vivendo

na imagem que vai me dar pesadelo amanhã, do

filmar as mudanças no momen-

lhoso? Será que pulando da janela ele criou algum conceito novo que a gente nunca vai poder conhecer? Imagina, que onda, conceito novo do De-

como doentes heteronomicamente sustentados por aparelhos de delicada e caríssima manuten-

cheiro do pau desse cara. Merda, eu acho que me trabalho eticamente pra ser uma pessoa melhor,

to em que elas aconteciam. (...) A grande força do seu cinema foi ter conseguido – através da

ção – que sejamos nós, em suma,

sem preconceito, mas não consigo deixar de ter

leuze é encontrado vagando no ar entre a janela

que tenhamos muito em breve

ataque de riso no bar contando da hora que o cara

quadro (personagens / diálogo /

do apartamento onde ele morava em Paris e o

que baixar a bola, reduzindo a

tava chupando a mulher bem ali e a crente do

mise-en-cene / locação / câme-

chão da portaria que virou ponto turístico depois

escala de nossos confortáveis

meu lado teve crise de tosse, ele deu uma paradi-

ra / luz etc.) – criar uma fissura

que ele se estraçalhou inteiro naquele dia em 1994, mesmo ano que o Senna morreu, o Tom Jobim também, e que o Brasil ganhou a Copa por-

modos de vida. (Viveiros de Castro e Danowski, Há mundo por vir?, p. 127)

nha olhou pra ela, sorriu que nem o Jean Paul Belmondo, e continuou fazendo a mendiga gozar. Gente, que cena, nessa hora confesso que eu quis

que o Baggio perdeu aquele pênalti. Nesse dia tir um velório pela televisão, com exceção daque-

Chet Baker no colo

seans no Spotify, e depois entrou aquela voz do

le pênalti, nessa hora a gente pulou várias vezes.

num solo estelar

Cake cantando It’s comming down, a voz que mais me dá tesão na vida desde sempre. Eu sei que não Vitor Paiva

que achava medíocre ganhar a Copa nos pênaltis. Gente do céu, é cada uma que a gente escuta nessa vida, enquanto os mendigos continuam dando ré nessa ideia de progresso, subvertendo as relações entre o público e privado, mostrando pra crente do meu lado, que não para de comer esse negócio horroroso, que ou a gente tem um mun-

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[Antropoceno] designa um novo “tempo”, ou antes, um novo tempo do tempo – um novo conceito e uma nova experiência da histo-

presente e futuro se encontrem, gerando uma noção de presente segundo.

foi uma coincidência tremenda que tocou o Bras-

que o Baggio perdeu o pênalti de propósito por-

gem fazendo com que passado,

que se atualiza a 24 quadros por

Peguei no ar

antes de se estatelar

temporal e espacial em cada ima-

estar no lugar dela, sempre curti o Belmondo. E

meus pais se separaram, ver o jogo foi igual assis-

Mas tem um amigo meu ítalo-paulista que cisma

modulação dos elementos em

é tão estiloso ouvir música nessa lista aleatória

O que está por trás do quadro nos filmes de Jia Zhangke? Está tudo na superfície, não por trás. Está tudo ali e, talvez, essa seja uma das grandes forças de seu

que o algoritmo faz pra gente, ao invés de ouvir o

cinema. A imagem em seus

álbum todo completo de cada artista, eu não con-

filmes é multifocal, cria infini-

to muito pra ninguém, mas acabo fazendo isso

tos pontos de atenção legando

direto. E ainda escolho aqueles defaults babacas “calminha”, “romântica”. Aliás, quando a minha

ricidade –, no qual a diferença de

filha nasceu eu tinha feito uma lista desse tipo

magnitude entre a escala da histó-

durante meses, mó frescura e na hora eu só escuta-

importância similar a todos elementos dessa imagem, e com isso reconfigura as relações “convencionais” entre figura e fundo, trazendo tudo para “a

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va o Gil Luminoso cantando baixinho. Eu tava dei-

superfície”. Jia dedica a mesma

tada, molhada, no chuveiro lá de casa que é uma

atenção aos personagens e ao

droga, a cortina de banheiro toda mofada, a sorte é

espaço, provocando uma tensão

que tem o mapa-múndi e eu olhava pra China o tempo todo pensando que em algumas horas eu ia

permanente entre esses dois vetores. Talvez porque seja claro para ele que a condição humana

me livrar dessa dor, e em alguns anos, quem sabe,

desses personagens, às margens

eu levava ela lá pra conhecer o Jia Zhangke. Ou en-

das transformações da nova

tão, o mundo ia mesmo acabar antes disso, e pelo

China global, é indissociável do

menos eu ia estar agarradinha com ela e não deixava ela não sentir medo. Mas quando eu pensei isso, senti o maior medo da minha vida, trazer ela

espaço que os cerca: cada prédio em construção e demolição, cada rua, cada cidade, cada província chinesa, e a própria China, são

pro mundo que já tá acabando, o que eu ia dizer

partes daqueles personagens

pra ela? Que o cara que geral usa pra acreditar que

que, por sua vez, são parte dela.

é possível ampliar os possíveis desse mundo de

Somado a isso, Jia, parece bus-

impossibilidades pulou pela janela no mesmo ano que o maestro maior do Brasil morreu? Aí nessa hora eu falei pra mim mesma que eu queria voltar

car em todos os filmes uma espécie de “multitemporalidade”, friccionando, na mesma imagem, passado, futuro e presente e con-

tudo no tempo 9 meses pra trás, dia por dia andan-

figurando, na superfície de cada

do no reverso, pra ela voltar a ser microscópica. E

quadro, tempo e espaço pró-

ainda esbocei uma risada no meio do choro de dor

prios, que parecem ser sempre o

pensando gente do céu quem é que pensa em anestesia nessa hora, anestesia não resolve nada,

encontro entre vários tempos e espaços simultâneos. (...) ao mesmo tempo em que

tem que voltar, voltar tudo pra trás. E aí eu olhei

esses personagens são parte do

pra luz e lembrei da fotossíntese. Mas aí já tava

espaço (que é parte deles) eles

aqui, no agora, o mundo por enquanto não acabou

rompem com seu entorno a todo

e eu tô conseguindo fingir pra ela que até que é le-

momento. Enquanto as cidades

gal. Ela ri a beça pra mim, pra todo mundo, gosta tanto da gente que olhando assim pra ela, e pro o casal de mendigos trepando aqui do lado da pada-

estão em desconstrução e construção ininterrupta, esses personagens parecem almas suspensas, rondando um eterno não lugar, à

ria, em frente ao ponto do ônibus que nunca vai

margem dessa nova China que se

passar, mas eu ainda não sei disso, eu consigo

forma, e o fato de jamais se encai-

acreditar que os mundos são vários e que a gente

xarem provoca uma instabilidade

vai dar conta. Ou então, vamos continuar tentando. Quem sabe eu não pego ela um dia desses e vou dar uma volta na Lua?

84

permanente em seus filmes. (Texto meu em Jia Zhangke, a cidade em quadro, p. 16, 17, 18)

85


mini conceitinho 1: a imagem-espaço

mas de criar imagens de estrelas remotas pra so-

é comum em Grifith, Charlie

nharmos a dois bilhões de anos luz daqui. A ima-

Chaplin ou John Ford. A imagem-

gem-espaço prescinde do intervalo que aciona o

movimento está também presen-

A imagem-espaço é aquela que explodiu pro cos-

Na década de 80 Deleuze deu um

cérebro, ela existe por si só, independe de nós. A

mos. Ela não supõe uma força motriz, como a

dos primeiros mergulhos mais

imagem-movimento, e ela também não gera o in-

fundos da filosofia no cinema.

imagem-espaço é dos robôs da Inteligência Arti-

tervalo que aciona uma reação mental no cérebro,

Em dois tomos, criou os con-

ficial, que já estão confabulando a tomada do po-

te em diversas filmografias do mundo todo menos “clássico-narrativas” incluindo Dreyer, Rivette, Ozu, Vertov e tantos outros.

der há muitos anos, enquanto nosso cérebro de

A imagem-tempo, para De-

imagem-tempo: o primeiro trata

carne, osso, neurônios ainda procura uma saída

leuze, surge no fim da Segunda

vimento representa o real, supondo que já o co-

de filmes em que movimentos

no século XX. Na imagem-espaço os personagens

nhece, e a imagem-tempo visa o real, entendendo

sensório-motores se ativam a

não estão na tela, eles são algoritmos invisíveis

que é necessária a busca pelo real num gesto pro-

partir das imagens, sendo que

que assistem a tudo com o espanto de quem não

como a imagem-tempo. Enquanto a imagem-mo-

dutor, a imagem-espaço simplesmente já desistiu

ceitos de imagem-movimento e

elas mesmas se encadeiam e

Guerra Mundial, no neorealismo Italiano. Exemplos claros da imagem-tempo são as cenas de dois filmes de Roberto Rosselini: em

tem cérebro ou coração para espantar-se. A ima-

Strombolli a estrangeira “passa

gem-espaço não precisa produzir o acontecimen-

pela pesca do atum, a agonia do

imagens em que, para o filósofo,

to porque de onde ela vem, e pra onde ela vai, o

atum, depois a erupção do vulcão.

Ela mora no século XXI e produziu a indicernibi-

não há uma reação direta à ação

tempo não passa linear, e Cronos, dizem, já deu

lidade dos elementos que a compõem: signo, sig-

proposta, criando-se assim um

lugar a Aion há muito tempo. Mas que tempo?

nificado e significante se desconectaram de vez,

intervalo entre a ação recebida e

há muito tempo de todo e qualquer desejo de realidade. A imagem-espaço também não é o fluxo.

de forma que uma montanha não consegue mais ser compreendida como uma montanha. Na imagem-espaço, foi tudo mesmo pro espaço, literal-

existem a partir da ideia do movimento; o segundo mergulha nas

a ação devolvida ao mundo. Uma vez que o intervalo se faz, outras formas de conexão e pensamento operam, e aí se dá a suspensão

mente falando. Diferente da imagem-tempo, que

que permite que o pensamento

se faz no pós guerra, onde já não há como reagir

ocorra e que um acontecimento

a uma cidade devastada em ruínas e chamas, e o

possa surgir. É fundamental para

personagem se torna espectador do próprio filme de que é protagonista, na imagem-espaço é a própria Terra que virou lembrança torta de um futu-

Deleuze deixar claro que o que distingue a imagem-movimento e a imagem-tempo é uma questão sensível, os operadores são for-

ro que não mais existe, e de um passado maldito

mais e estéticos e não históricos

que já não se suporta lembrar – estamos todos

e sociais.

presos num pedaço de presente em que a única saída tem a forma de bilhetes milionários com direito a ida sem volta para Marte. A imagem-espaço é mesmo a imagem do espaço, porque a Terra

A imagem-movimento pode ser facilmente identificada no clássico cinema narrativo hollywoodiano, em que ação e reação são o que move a montagem e a narrativa

nunca foi tão parte de um Sistema Solar, de uma

do filme: por exemplo, se um

galáxia, de um universo finito em expansão. Por-

copo cai, veremos provavelmente

que quanto mais a inviabilidade da vida na Terra

no próximo corte, alguém pe-

se faz concreta, mais os telescópios inventam for-

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gando o copo do chão etc., como

Ela não tem reação alguma diante disso, nenhuma resposta, é intenso demais. (...) Ou a burguesa de Europa 51 diante da fábrica.” (Deleuze, Conversações, p. 70 e 81) A imagem-tempo existe na Nouvelle Vague e em tantas outras dezenas de filmes de cineastas do mundo todo e em diversas épocas e estilos, Godard, Eric Romehr a Kubrick, Bresson etc. Nela rompem-se dois aspectos primordiais da imagem-movimento o que, para Deleuze, configura uma nova forma de imagem. Na imagem-tempo já não há mais o centro ao qual tudo que aparece pode se remeter: por exemplo, Vertov sempre pode se remeter a um centro, no caso, o comunismo; o Expressionismo Alemão sempre pode se remeter a uma grande questão maior monstruosa do claro e escuro; em Griffith a dicotomia produzia a totalidade.

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Na imagem-movimento existe enfim sempre algo maior ao qual o todo é remetido, um centro ao qual tudo converge, talvez, eu diria, como uma força centrípeta. Na imagem-tempo essa centralidade fracassa, não há mais centro ao qual narrativas e personagens possam se remeter. O segundo aspecto primordial são as conexões frágeis. Na imagem-tempo não existe garantia nenhuma de que haja uma relação firme entre os sujeitos e as narrativas, ou seja, em tudo o que apare as conexões são fracas, dispersas. Por exemplo, aquilo que liga o personagem à sua cidade, ou aquilo que conecta os personagens ao contexto do filme, como em A noite por exemplo, são ligações onde algo falta, conexões frágeis. Em Eclipse de Antonioni, os personagens estão em um espaço onde se sentem desconfortáveis. Não há uma conexão forte entre os personagens e o espaço, assim como também não há entre os planos na montagem.

88

89


O padre que voou com os balões

Gaia designa uma nova maneira de experimentar o “espaço”, chamando a

Foi no Paraná que um padre voou com 1000 balões de festa

atenção para o fato de que nosso mundo, a Terra, torna-

Paranaguá é o nome do pai da minha filha 20 de abril é 3 dias antes

do, de um lado, subitamente

do meu aniversário

coloridos e com gás hélio

exíguo e frágil, e, de outro

e 8 dias depois

decidido

assumiu a aparência de uma

por conta própria a sair voando de sua arquidiocese sozinho pelo ares de sua cidade Paranaguá.

lado, suscetível e implacável, potência ameaçadora que evoca aquelas divindades indiferentes, imprevisíveis e incompreensíveis de nosso passado arcaico. Imprevisibilidade, incompreensibilidade, sensação de pânico diante da perda do controle, senão

De nome Adelir Antonio de Carli

mesmo perda da esperança:

Afirmou a Aeronáutica

desafios inéditos para a orgu-

que o padre não tinha habilitação para voar com 41 anos queria

da modernidade. (...) Além de haver gente de-

o que dele se pode saber ao certo é que como na canção ‘nada será como antes’. (Viveiros de Castro e Danowski, Há mundo por vir?, p. 107, 129, 128)

do aniversário da minha filha e do meu avô que também morreu

Em Do Big Bang ao Universo Eterno, o físico Mario Novello, que se contrapõe à tese

mas não foi num voo

do Big Bang, afirma que o

nem numa queda

círculo científico, na sociedade

de balão.

“sucesso dessa ideia, fora do em geral, se deve ao fato de que ela possui várias características que foram e ainda são

eis o que são certamente lhosa segurança intelectual

incerto, ou melhor (ou pior),

Balão tem como sinônimo

consideradas vantajosas para uma descrição da totalidade.

dirigível que foi inventado

A aceitação da existência de

nada por acaso também

instante de criação (identifi-

um momento singular — o cado com a explosão) —, por

promover um evento religioso

mais no mundo, há sobre-

por um padre luso-brasileiro

e pensou

tudo gente de menos com

em 1709 um padre cuja fama

eu voo.

mais com mundos de menos

era conhecida por Adelir

e é aí que a coisa pega.

que o tinha como ídolo

impossível construir uma ci-

o padre Bartolomeu de Gusmão

a totalidade do que existe.

E era 20 de abril.

mundo demais e gente de-

(...) O futuro é cada vez mais

90

exemplo, está intimamente relacionada ao imaginário de várias sociedades arcaicas” (p. 24). Novello afirma que é ência da natureza envolvendo

91


que em seu primeiro voo tocou fogo no balão

“Não temos crença; não explicamos nada. Não cremos: temos medo!”. Essas palavras

7 cores amarelo vermelho violeta Quando levantou voo

que nunca saiu do chão

foram ditas por um xamã

mas que numa segunda tentativa

tropólogo groenlandês Knud

não sabia por onde ia voar

levantou 95 metros e nunca mais

Rasmussen (1879-1933), que

e não tinha muita certeza

foi esquecido assim como Adelir

e, tendo convivido desde

o padre que morreu

esquimó ao explorador e an-

era descendente de esquimós criança com o grupo, falava bem a língua. Li isso em “O

o padre não sabia que iria cair

Afirmaram os repórteres onde iria pousar

quer dizer, na dificuldade absoluta, “elevada” e “tocante”. (...) Está feito, está feito, efeito, está acabado, o infinito é atual. (Jean Luc Nancy, “Fazer, a poesia”, p. 417-418)

O personagem de Matthew Mcconaughey estava praticamente sem saída quando o

num voo de balão

dois e seu múltiplo: reflexões

de festa.

uma cosmologia tupi”, de

o padre sabia que se tornaria

Tania Stolze Lima (p. 26).

um pontinho colorido no meio

no futuro da civilização em

do céu azul laranja rosa

Christopher Nolan, Interstellar.

sobre o perspectivismo em

O padre sumiu pelos ares carregava dois celulares e não sabia operar o GPS Afirmou a Policia Militar quantas cores havia nos balões do padre? Quanto tempo dura o gás

Ora, não se trata apenas de

mas quando levantou voo

verde E isso ele queria.

uma aparência. A poesia faz a

a dificuldade cede. Mas isso não quer dizer que ela seja aplanada. Isso quer dizer que a dificuldade é posta, apresentada por aquilo que ela é, e que

hélio dentro de um balão

estamos empenhados nela.

de festa?

encontramo-nos no acesso,

De repente, de modo tão fácil,

Mas não sabia o padre quando levantou voo que os 1000 balões de festa de 7 cores diferentes

espaço-temporal, indo parar Marte, bem no fim do filme de Segundo o astrofísico Andrew Hamilton a viagem pelo você adentra um buraco negro e passa diretamente por um buraco de minhoca, que proporciona a mudança do fluxo espacial, ocasionando

terminariam seus dias já

em uma espécie de aceleração

contados no meio do oceano

outra extremidade, chamada

Atlântico tocando bem de leve como bolha transparente

92

ele consegue realizar a viagem

buraco de minhoca é assim:

facilidade do difícil, do absolutamente difícil. Na facilidade,

buraco de minhoca aparece e

para trás. Depois, você sai pela de buraco branco, que nada mais é do que o buraco negro, invertido, o que permite que

93


na superfície verde daquele mar

você chegue no outro ponto

Os vulcões são na Sicília

com o tempo já diferente da-

E na América do Sul.

quele que vigia quando você

Diz-mo a minha geografia –

entrou. Dessa forma, você sai

Vulcões mais perto daqui,

do passado e cai no futuro.

Encostas de Lava que eu

Ao se mover por esse buraco

Queira inclinar-me a subir –

de coloridos para todos

branco, ainda seria possível,

Cratera que eu possa ver –

através de um flash, você reter

Há um Vesúvio cá em casa.

aqueles que voaram por ali

uma imagem com todas as

do Paraná.

Formaram um montinho

não de balão mas de avião Crianças deram tchau como se fosse uma land art no meio do deserto Spiral Jetty.

informações do seu passado, possibilitando uma viagem

Emily Dickinson, #1705, em tradução de Jorge de Sena

de volta. A teoria do buraco da minhoca foi desenvolvida pelos físicos Albert Einstein e Nathan Rosen, que acreditavam ser possível viajar no tempo através desses buracos

O padre afundou e dele

que atuam como portais

só se achou metade

regiões distantes do espaço.

Sopro expressa a relação entre

A tese, também conhecida

o que está dentro e o que está

como “Pontes de Einstein-Ro-

fora. O translúcido multiforme

sen”, tem como base a teoria

de uma bolha exibe o mundo

da relatividade, desenvolvida

que a contém e que é contido

pelo próprio Einstein, que,

por ela. A bolha, que nunca ex-

num museu de pequenas

sabemos, defende que toda

plode, é uma metáfora para a

tragédias construído na pacata

massa curva o espaço-tempo.

continuidade das coisas. (Cao

Ainda de acordo com a teoria

Guimarães e Rivane Neuens-

cidade de Paranaguá

da relatividade, esses buracos

chwander textinho sobre o

de fato existem, mas até agora

trabalho Sopro que consta no

como o nome do pai

nenhum foi descoberto.

site de Cao Guimarães)

Mas os balões foram resgatados intactos até hoje repousam coloridos

ligando o futuro e passado e

da minha filha.

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A bolha de sabão gigante ou a lente de infinitas faces

bolha astronauta, vai tratando de liberar a vida

ver só se manifesta ao abrir-se

lá onde ela é prisioneira, num combate incerto.

em dois. (Didi-Huberman, O que

E em sua errância incapturável tangencia como

vemos, o que nos olha, p. 29)

poucos outras fabulações. Suas múltiplas faces

E da imagem sem cores surge a bolha gigante

As grandes paisagens têm,

como quem vai fagocitar a paisagem ou como

todas elas, um caráter visioná-

se camuflam penetrando nas mais variadas natu-

quem nem acredita mais que ela exista. Ela sem-

rio. A visão é o que do invisível

rezas dos diversos mundos possíveis. E impossí-

se torna visível... a paisagem é

veis. E há também a imagem da bolha. Há a bolha

coisas – as coisas e os seres é que

invisível porque quanto mais a

liberando a diferença e impedindo que a árvore

são pontos de vista. (Viveiros de

ou a onça permaneçam paradas em sua presen-

Castro, A inconstância da alma

pre esteve ali, a bolha, não a paisagem. Porque a paisagem é plana e porque a bolha não tem lado,

conquistamos, mais nela nos per-

não tem aresta, não tem nome de forma geomé-

demos. Para chegar à paisagem,

trica, ela é um milhão de eus refletidos nas suas

devemos sacrificar tanto quanto

ça, já que, no mínimo, terão que entortar a cabeça

infinitas faces sem nome. A bolha se lança ela

possível toda determinação

uma vez e outra e outra para ver e rever e ver de

temporal, espacial, objetiva;

novo o que poderia ser a paisagem. E há a imagem

mas este abandono não atinge

produzida pelo artista. A imagem-monumento,

mesma num dia qualquer em preto e branco e ela, que não é invisível mas sabe bem o poder da camuflagem, flutua à deriva, transformando o olho

somente o objetivo, ele afeta a nós mesmos na mesma medida.

artista. A imagem, criada pelo artista: mas antes

seres históricos, isto é, seres

mas porque existe no mundo por si só e porque

dela, tem a bolha, esse composto amorfo de sen-

eles mesmos objetiváveis. Não

é em si uma imensidão, uma corrente de mundo

temos memória para a paisa-

num pequeno pedaço de matéria. E assim, é ela o

gem, não temos memória, nem

que persiste e reinventa tudo, de novo, e de novo,

caos que se desloca a cada instante. Uma mem-

mesmo para nós na paisagem. Sonhamos em pleno dia e com

tantos outros infinitos mundos, agora, ali, diante do espectador e mesmo depois dele. Mais uma

brana movente traçada em torno do centro frágil

os olhos abertos. Somos furtados

e incerto onde se tenta organizar um espaço em

ao mundo objetivo mas também

vez, esse que assiste nunca mais será o mesmo, e,

que forças interiores da terra possam resistir. To-

a nós mesmos. É o sentir. (Paul

sendo onça, sendo árvore, ou mesmo sendo bo-

Cézanne, apud Deleuze e Guattari,

lha, entorta o pescoço e em seguida o corpo todo

O que é filosofia?, p. 200)

e, depois da bolha, não conseguirá jamais se en-

mando sempre algo emprestado do caos, a bolha se abre do lado oposto a ele, indo ao encontro de

selvagem, p. 262)

sado ou porque conserva algo que se cristaliza,

Na paisagem, deixamos de ser

é a explosão primordial, um começo de ordem no

mente] pontos de vista sobre as

que é monumento não porque pertence ao pas-

de quem a vê desenhada na imagem criada pelo

sações que sempre esteve ali e sempre estará. Ela

[Para os índios não há propria-

caixar novamente naquele assento marcado da

forças do futuro, indo ao encontro do mundo, confundindo-se com ele, espalhando-se no cos-

A arte não reproduz o visível.

mos, como o que paira no ar. Existe a bolha que

Torna visível. (Paul Klee)

cadeira onde antes estivera.

é lançada aos céus, ou que simplesmente sempre esteve ali, e que, translúcida e multiforme, prova a cada fóton por segundo que o que há é o infi-

O que vemos só vale – só vive –

nito de mundos através das múltiplas lentes que

em nossos olhos pelo que nos

vai sendo sem nunca criar identidade. A bolha só existe no movimento, porque a pausa é a morte e a morte já não é mais bolha. E nesse fluxo constante a bolha monstruosa, a bolha gigantesca, a

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olha. Inelutável porém é a cisão que separa dentro de nós o que vemos daquilo que nos olha. Seria preciso assim partir de novo desse paradoxo em que o ato de

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Adivinha O que é impalpável mas pesa o que é sem rosto mas fere o que é invisível mas dói Orides Fontela

Texto de consulta ... O texto-coisa me espia Com o olho de outrem. ... Murilo Mendes

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Mehr Licht!

elaborados filosoficamente.(...)

Proposições para um filme imaginado 4

O cinema executa um automovimento da imagem, e até uma autotemporalização (...) Mas, o que será que, desse modo, o

Depois de escrito, o filme será produzido e, ao

Mehr Licht! (mais luz!) Foram

cinema nos revela do espaço e

assisti-lo em uma tela grande em algum festival

as ultimas palavras faladas por

do tempo que as outras artes não

importante da Europa, o crítico dirá que uma

Goethe antes de morrer.

nos revelam? (Deleuze, Conversações, p. 78 - 79)

mulher encara uma lâmpada incandescente que está em extinção pois foi proibida de ser fabricada, talvez pelo seu risco de combustão (mas ele

Deleuze fala dos travellings como

está errado, o motivo declarado é o de consumir

suprimir a terceira dimensão, a

sendo um elemento da lingua-

muito da energia do já sobrecarregado planeta). A

profundidade, e fazer imagens

gem do cinema que ao traçar um

luz que ilumina também é a luz que cega. E a mu-

planas, para coloca-las dire-

espaço pode passar a mergulhar

tamente em relação com uma

no tempo. Um exemplo interes-

quarta dimensão, do Tempo

sante disso é o plano-sequência

e do Espírito. [Dreyer diz ] “A

no filme O mundo de Jia Zhan-

nova ciência, na sequencia da

gke, já citado aqui anteriormente.

a imensidão branca. A artista intercala essas ima-

relatividade de Einstein, trouxe

No início do filme, a personagem

gens com outras de uma caverna, suja, escura, em

as provas da existência – fora do

Tao está em um trem monotrilho

que a mesma mulher olha fixamente para a mes-

mundo em três dimensões, que

falando ao telefone celular. Ela

é dos nossos sentidos – de uma

diz que está indo para Índia en-

quarta dimensão, a do tempo, e

quanto vemos passar, ao fundo,

de uma quinta, a do psiquismo.”

as pirâmides do Egito, a Torre Eif-

(Pascal Bonitzer e Jean Narboni,

fel e alguns homens de uniforme

Conversações, p. 67)

carregando caixas. Na mesma

espectador que assiste do outro lado da tela e precisa passar a mão nos olhos que ardem ao encarar

ma lâmpada incandescente, mas dessa vez, quem sabe estamos no passado mais remoto e primitivo de um tempo? Ou são, talvez, todos os tempos em um mesmo tempo? Não há linha reta, e as dimen-

nar ao som de Bowie na voz de uma soprano. A mulher por fim deitada, nua, no espaço vazio sem

A crítica de cinema esbarra num duplo obstáculo: é preciso evitar simplesmente descrever os filmes, mas também aplicar-lhes conceitos vindos de fora. A tarefa

profundidade e dimensão da cor branca, parece

da crítica é formar conceitos,

fazer amor com a luz e finalmente adormecer. Ou

que evidentemente não estão

morrer? O crítico pergunta: a mulher nua, deita-

“dados” no filme, e que, no

da, a luz, há alguma relação com o nascimento de sua filha? Não há metáforas, há apenas o que se vê, uma mulher, uma lâmpada e a luz. Boa noite.

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Control I’m stepping through the door And I’m floating in a most peculiar way And the stars look very different today Am I sitting in a tin can Far above the world Planet Earth is blue And there’s nothing I can do Though I’m past one hundred thousand miles I’m feeling very still And I think my spaceship knows which way to go … David Bowie

torre, a atriz, os trabalhadores ou

ver. Sutis interferências surgem na tela quando um eclipse brinca de mostrar e esconder a luz lu-

This is Major Tom to Ground

imagem não há protagonista, a

sões são infinitas, tantas quantos seres pode haastros cósmicos explodem no sistema solar ou

For here

... Dreyer, em seus Écrits, diz constantemente que é preciso

lher que performa diante da câmera é também o

Space Oddity

entanto, só convêm ao cinema, e a tal gênero de filmes, a tal ou qual filme. Conceitos próprios ao

o trem, todos conjugam significados que, concomitantemente, se somam e se chocam. Cada um dos elementos traz um dado temporal: o presente contemporâneo, o passado moderno, os mais antigos egípcios. Talvez o monotrilho, que se desloca pelo parque (assim como a câmera também em movimento), engendre a ideia de futuro.

cinema mas que só podem ser

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A história da mulher que queria fazer fotossíntese

sobre o tripé na varanda, seu telescópio avistava

radicalmente diferente de tudo

volume 2: terra

galáxias distantes, coloridas, e a Mulher gostava

que já havia sido proposto. Em

de pensar que estavam todas mortas, as estrelas

essência, Einstein defendia a

de milhões de anos atrás cujas luzes tocavam agora sua retina.

ideia de que aquilo que percebemos como gravidade são

E o relógio da torre antiga bateu 18h e os sinais

She felt very young; at the

soaram no Japão. Aqui do outro lado do mundo,

same time unspeakably aged.

E, agora, dentro do quarto, já não se pode enxer-

a Mulher, às 6h da manhã, esticou os braços para

She sliced like a knife through

gar. Um branco muito branco de uma brancura in-

grande massa afetam a geometria,

descritível se instaurou no cômodo em que a Mu-

fazendo o espaço e o tempo se

cima e bocejou depois de dormir a noite toda. Saiu da cama e de casa de moletom. Comprou

everything; at the same time was outside, looking on. (Virginia Woolf, Mrs. Dalloway, p. 11)

pão, café e voltou depois de duas horas com duas

lher dorme, acorda e também faz amor. Ela e a luz.

objetos se movendo na geometria do espaço-tempo. Objetos de

curvarem. Einstein finalmente chegara à sua teoria da relatividade de fato geral.” (Pedro G. Ferreira em

caixas na mão. Dentro da sala de estar, coloca o

A teoria perfeita, uma biografia da

molho de chaves sobre o aparador à direita, atra-

Matéria é por definição tudo

vessa o corredor e entra por uma porta que se fe-

aquilo que tem massa e ocupa

cha em seguida. Do lado de fora, brilha uma luz

um lugar no espaço. A luz é for-

relatividade, p. 45)

mada por partículas sem massa,

Durante os mesmos anos em

chamadas fótons. Por não possu-

que Einstein lutava para che-

írem massa os fótons alcançam

gar à “Teoria perfeita”, Marcel

velocidades que nenhuma outra

Duchamp desenvolvia sua “obra

segura com as duas mãos aquele objeto, não a luz,

partícula detectada até hoje pela

prima”, A noiva despida pelos

a luminária dourada. Apoia sobre o criado mudo,

física consegue alcançar.

seus celibatários, mesmo ou O

pela fresta ao pé da porta. Do lado de dentro, sentada na cama, a mulher termina de encaixar o bocal de uma luminária até que puff faz-se a luz. Ela

tira o chinelo, e com seu moletom que esteve na rua, entra dentro do cobertor, pega novamente a luminária, coloca sobre seu colo e olha para a luz. Posiciona a lâmpada incandescente bem diante

Ironia ou não, quando Einstein

se falou sobre o trabalho ser uma

sua Teoria Geral da Relativida-

pesquisa de Duchamp para tentar

de, apesar de as ideias serem

materializar a quarta dimensão.

belíssimas, ou “elegantes” como

de seus olhos, e como numa brincadeira de quem

preferiam chamar os físicos, as

pisca por último, fixa o olhar em tudo aquilo que

equações que a compunham

não é matéria.

foram consideradas confusas.

E fecha os olhos. Desse dia em diante, todos os dias, ela, a Mulher, de moletom, saía de casa pela porta da sala e voltava, pela mesma porta, carre-

Apesar de serem capazes de prever o que aconteceria no mundo natural, desde a trajetória de uma bala ou uma maçã caindo

gando uma caixa média de papelão. E pela fresta

de uma árvore até o movimento

da porta do quarto de dormir, a cada dia mais e

dos planetas, as equações foram

mais feixes de luz se acotovelavam pelo centíme-

rejeitadas. “Em 25 de novembro

tro que separava o chão do pé da porta, buscando ganhar a vastidão do apartamento. O tempo agora parecia relentar e as cortinas e moveis de madeira já não moravam mais naquela casa. Em pé

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grande vidro (1912 – 1923). Muito

apresentou pela primeira vez

de 1915, Einstein apresentou suas novas equações à Academia de Ciências da Prússia em um artigo de apenas três páginas. Sua nova lei da gravidade era

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Os 3 fatos desastrosos de quem cisma em se espichar à procura do sol

Fato 2. Atrasada para o trabalho, saio de casa amarrando o sapato, com a escova de cabelo em uma das mãos e na outra o potinho de iogurte sem açúcar e sem colesterol. Ando até o ponto de ônibus na rua principal enquanto penteio o cabelo e dou oi para dois conhecidos que riem de mim como quem diz figura ela. Já no ponto, guardo a escova e abro o lacre do iogurte que bebo de gole gole e quando jogo no lixo o potinho não noto que, como sempre, estou com bigode de iogurte. Algumas pessoas me olham, fico na dúvida se acordei bonita ou se tem algo de errado. Mesmo assim, ponho-me a procurar o lugar ao sol, que varia dia-a-dia de acordo com as estações do ano. No lado direito, no ponto depois do poste, entre a senhora e a babá negra de uniforme branco com a criança loirinha, encontro um pedacinho de 20 cm de diâmetro onde bate o solzinho. Me posiciono estrategicamente, a essa altura já limpei com as costas da mão direita o bigode de iogurte, e estico o rosto pro alto para que o sol queime minhas bochechas e cegue meus olhos. Nessa hora, sinto num anúncio de vergonha a pressão dos olhares em volta plantados em cabeças e pescoços e troncos e membros acostumados a outros protocolos matinais. Mas enfim, resisto e permaneço. Intercalo entre fechar e abrir os olhos, entre ver imagens do pensamento e a imagem da luz que cega e que me faz paralisar o tempo, ali naquele segundo. Sol no olho é como uma droga, das boas, penso quase em voz alta quase interpelando aqueles pedestres ao meu redor. Quase esqueci, ainda estou atrasada para o trabalho. Pois que enquanto o sol quentinho bate no rosto, enquanto abro e fecho os olhos, meu ônibus passa e eu só noto quando já é a placa traseira o que noto. Catástrofe, o próximo é só daqui a meia hora. Pego celular e pestanejo por uns segundos na dúvida se devo mandar uma mensagem pedindo desculpas pelo atraso e enfrentar mais uma cara feia o dia todo, ou se chamo o Uber e gasto o dinheiro que não tenho e que economizei o mês inteiro em marmitas.

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Microcontos

O parasita favorito Garganta inflamada. Resolveu estacionar e, pensando que seria esquecida, foi ficando. Quando foi notada, se haviam passado 90 O mistério da biblioteca

dias e ela ainda ali, discreta. Foi ao médico e encontraram algo, investigaram, aguçaram as buscas, exames dos mais modernos e só

Ao atravessar a roleta da biblioteca, a estudante escuta com rabo

ouvia, é... um corpo estranho. Um dia qualquer, logo depois do ba-

de ouvido, do lado esquerdo, a bibliotecária que faz plantão du-

nho, antes de alcançar com os braços a toalha branca estendida no

rante o recesso de julho. Aquele pão tava supimpa né? Dá uma rá-

gancho de aço inox, e logo depois de fechar a torneira, ela se olhou

pida espiada com rabo de olho e continua em frente, decidida a

diante do espelho sobre a pia, abriu a boca o mais que pôde, e deu

narrar o acontecido em sua dissertação de mestrado.

de cara com o ser estranho que, por uma enorme coincidência, também a encarava com cara de espanto. Se olharam até que toda a água do banho fosse parar, metade no ar, evaporada, e a outra metade em poça no azulejo branco. Depois disso, vestiu a roupa, foi trabalhar certa de que nunca mais procuraria um otorrino.

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O maior eclipse do século Anunciaram que seria o maior eclipse lunar do nosso século. Enfurnada na biblioteca decidida a não ver, recebeu uma mensagem de seu pai e, retardatária, resolveu descer correndo as escadas do prédio em busca da lua. Missão failed. No céu, nenhuma lua foi encontrada. Teve medo de passar o século inteiro se arrependendo de ter perdido o evento mais importante.

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Sometimes making something leads to nothing Um homem magro e alto empurra pelas ruas da cidade um grande bloco de gelo que mede 1 metro cúbico e pesa 100 quilos. Ele anda por muitas horas e ao entardecer não há mais nada a fazer. Ele se senta no bar na beira da praia e toma um chope gelado com pastel. Ou então, prefere uma michelada com burritos.

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Das poucas belas coisas que se encontra no jornal De uma longa jornada de dez anos pelo Sistema Solar, finalmente chegou o grande dia para a missão Rosetta, da Agência Espacial Europeia (ESA). Nesta terça-feira, dia 2 de outubro de 2018, o módulo de pouso Philae aterrissou com sucesso no cometa 67P/ Churyumov-Gerasimenko por volta das 13h30 (horário de Brasília). A sonda robótica Philae foi ejetada as 6h35 e levou cerca de

Balão é sinônimo de dirigível

sete horas para percorrer os 22,5 quilômetros que a separavam da superfície do astro. Com o pouso bem sucedido, o dia de hoje en-

Um dos primeiros dirigíveis foi criado por Santos Dumont. Ele in-

tra para a história da exploração espacial: pela primeira vez, um

ventou o dirigível com motor a gasolina e com isso conseguiu voar

objeto construído pela humanidade realiza a aterrissagem em um

contra o vento.

cometa. A análise da superfície do corpo celeste pode oferecer novas pistas sobre a formação do Sistema Solar e da vida na Terra. Um descoberta, no entanto, intrigou em especial os pesquisadores da ESA: captou-se no cometa uma espécie de “canto” por ora ainda inexplicável – uma música inaudível para o ouvido humano mas claramente discernível quando seu volume é aumentado dez mil vezes. Ouça o áudio em anexo.

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A passagem do cometa O balão e a Fera Era 1985, eu estava na pré escola e só falávamos disso. Desenhamos o cometa, aprendemos seu nome e cantamos música para sua

Era uma fera que andava macio por um bosque selvagem. De cor

chegada. Na hora e no dia, meus pais nos colocaram para dormir.

indefinida, pelo curto, num dia desses deu um salto e abocanhou

Acordei no dia seguinte sem nunca entender por décadas se o co-

um balão que poderia ter estourado, mas preferiu não.

meta era um sonho.

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Paradoxo universal O universo é finito e está em expansão. Se é finito, pergunta a menina curiosa, o que vem depois? Permanece o mistério. Só posso afirmar que o mundo vai acabar? Qual deles?

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Secret life Antonio Dias. Criou The secret life, Dust monument, mas morreu ontem.

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Narcoturismo proposições para um filme imaginado 5

Um homem decide passar uma semana completa

O ano é 2059 e Jud Elliott II é um

tomando drogas que alteram seu estado de cons-

mestrando de história, fracassado

ciência. I will walk in the city over the course

em Harvard. Resolve trabalhar no

of seven days, under the influence of a different drug each day. My trip will be recorded through

“Correio do Tempo” e exercer a função de guia turístico em passeios pela Idade Antiga e Idade

photographs, notes, or any other media that be-

Média. O livro é uma novela de

come relevant. O filme é sobre estar fisicamente

ficção científica escrita por Robert

presente em um lugar e mentalmente em outro

Silverberg em 1969 chamada Up

lugar, enquanto a imagem produz um terceiro espaço. Todas as doses das drogas ingeridas são preparadas para durar 14 horas seguidas. Dia 1 – álcool, Dia 2 – haxixe, Dia 3 – speed, Dia 4 – hero-

the Line. Em algum espaço-tempo do livro, lê-se: “...você pode se juntar à Polícia da Alucinação e ajudar a preservar a realidade objetiva”.

ína, Dia 5 – cocaína, Dia 6 – valium, Dia 7 – ecstasy. Depois da jornada selvagem, o homem cai em depressão.

O filho de Omama escutou atentamente as palavras do pai e concentrou seu pensamento nos xapiri. Entrou em estado de fantasma e tornou-se outro*. * A expressão “agir/entrar em estado fantasma” (poeremuu) se refere aos estados de alteração de consciência provocados pelos alucinógenos e pelo sonho (mas também pela dor ou pela doença). (...) No caso, o fantasma (pore), que cada vivente traz em si enquanto componente da pessoa, assume o comando psíquico em detrimento da consciência (pihi). (Davi Kopenawa, A Queda do céu, p. 85, 615)

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The lady that wouldn’t stop drinking passion fruit juice

da fruta foi mais amarelo do que nunca. Vendo

A velocidade de um filme de

Proposições para um filme imaginado 6

aquele ouro todo, nem titubeou; catou os mara-

cinema é de 25 imagens por

cujás, andou até a cozinha, fez um suco e bebeu.

segundo. Sabe Deus quantas

Bebeu jarras e jarras. Feliz estava ela. Saiu pra O filme pretende mostrar em live action e anima-

“Todo mundo que sonha tem um

ção de colagens um pedacinho da vida de uma mulher que não queria parar de beber suco de maracujá. Um dia no mercado, deparou-se com

acordar no dia seguinte, lá estava ela, linda, lon-

mentos dos quais estou falando,

Kagwahiv. (Viveiros de Castro, A

miu feliz, como nunca, no banco da praça.

súbita e desconcertantemente

floresta de cristal, p. 322)

parte do visível que não nos era Os brancos não sonham tão longe quanto nós. Dormem

da paixão, para quem prefere. A mulher então

mesmos. (Davi Kopenawa, A

fez um suco de maracujá, bebeu de gole gole e

queda do céu, p. 390)

a partir desse dia nunca mais quis parar. Quem

então a dormir. Perdia a hora para pegar o filho na escola, deixava a comida queimar, sonhava. Sonhava muito a mulher. Mas isso começou a ge-

em separação, o filho passou a tirar notas ruins na escola, distraído e entristecido pelos cantos. A culpa então a dominou, e a mulher decidiu parar

eu falava com cães, ouvia seus

dois tem que pensar que o so-

segredos, e os guardava comi-

nhador é ele. (Jorge Luis Borges,

go. (John Berger, Bolsões de

“O outro”, p. 71)

resistência, p. 10)

Com a crescente impossibilidade das coisas, libera-se o insonhável, ele se torna possível. A única coisa realmente moribunda

e o tédio avassalava a vida da pobre mulher. Até

nova, um céu novo, um inferno

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O resultado é inquietante: há mais solidão, mais dor, mais de-

mento desde a infância, quando

capacidade de sonhar uma terra

sol bateu perfeito sobre um maracujá, e o amarelo

(...)

são sonhos, cada um de nós

é a imaginação do homem, sua

vore, que andava frondosa no quintal. Um raio de

enguias, baleias...

uma expectativa que não experi-

e prometeu nunca mais beber. Os dias passaram

escola, a mulher voltou para casa e deu com a ár-

a aves noturnas, veados, furões,

Se esta manhã e este encontro

de beber suco de maracujá. Jogou as jarras fora

que num dia qualquer, depois de levar o filho na

destinada. Talvez se destinasse

samparo. Ao mesmo tempo há

rar um problemão com sua família, ela já não era mais a mesma. Seu marido insatisfeito pensava

a gente consiga ver entre duas imagens. Deparamos com uma

muito, mas só sonham consigo

ras e mais jarras amarelas de maracujá. Passou

Mas é como se, nos breves mo-

pouquinho de xamã”, dizem os

ga e amarela, a trepadeira de maracujá ou fruta

abrisse a geladeira veria no lugar de comida, jar-

na nossa percepção cotidiana.

cara com uma praça. Naquele dia, a mulher dor-

sementes de maracujá, levou para casa e plantou no quintal. Como num passe de mágica, ao

rua, desfilou sozinha, virou uma esquina, deu de

imagens por segundo lampejam

novo. Estamos sonhando, a maior parte de nós, do pescoço para cima, com o corpo bem amarrado à cadeira elétrica.. (Henry Miller, Hamlet, p. 74)

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Hilda

Uma mulher sentada no sofá da sala se levanta como num susto ao ver na TV um avião se

Começar pelo final da história e ir depois descrevendo como

chocar com um prédio e perceber, segundos depois, que era o noticiário do meio dia.

senti por aquele rapaz ninguém sabe

Fera

e saltou sem que eu tivesse dito de novo

...

ninguém sabe quanto amor e anos que ficou longe de mim brigou e nunca

(o tempo irá deflagrar

o seu raio

anulando o limbo

o personagem chegou até lá

vou me perdoar sem ter falado quanto

recurso comumente usado

amor sentia, meu amigo, agora Luiz

na literatura, cinema, linguagens

todos saltaram do telhado como Bas

...

mas diante da catástrofe

Jan Ader e como eu naquela pedra

uma outra forma talvez?

mas seus saltos não têm mais

a ausência

o emboscado poder irá ferir

o branco centro do eterno) O medo salta! Mas aparece o sentido. Orides Fontela

Volta: Ela pulou da janela mas antes me escreveu um email

Ela pulou da janela eu entendo

de São Paulo dizendo

isso eu disse ela disse

que estava feliz

eu vim a passeio – e não gostei –

com o japonês nunca

o resplandecer da alma é efêmero

entendi isso nunca

e é mesmo, mas eu vim também

entendi isso

a passeio e gostei, gostei muito e por isso tenho tanto medo

Entendi mesmo. Depois de um tempo

do clichê

teve também Gabriel quanto amor

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De repente, são mulheres

foi assim que me falou

A painting to see the sky III

agora

na última vez que nos falamos

See the sky between a wo-

zapear fora

Hilda e eu

da lista de franceses

o japonês a estava fazendo

ir ter com elas

feliz

at last not least

Feliz e voou pelos ares

By making holes in them

mulheres.

procurei novamente o email

i.e, pants, jackets, shirt, sto-

mas não paguei a conta do Joana d’Arc foi julgada não re-julgada 25 anos após sua morte

Joana [d’Arc] queria comunicar o estremecimento dos nervos sem traduzi-lo em um

queimando

clichê teológico. É sua fúria

disse Anne Carson quando eu

Há gênio nessa sua fúria. Nós

tinha acabado de ler os poemas de Hilda Machado Nuvem lançados 21 anos após sua morte voando da janela do prédio

contra o clichê que me atrai. todos sentimos essa fúria em algum nível, em algum momento. A resposta de gênio a

man’s thighs See the sky between your own thighs See the sky through your belongings

ckings, etc. Yoko Ono

Terra que apagou canalhas! ela diria com o riso sarcástico

e nervoso com os dentes retos de quem range durante as madrugadas

essa sensação é a catástrofe. (Anne Carson em “Variações sobre o direito de permanecer em silêncio”,Tradução Caetano Galindo, s.p.)

e dá aula com água de coco na mão de quem bebe vodka a noite toda até se acabar.

do japonês em São Paulo Como é que desliga?

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e falou muito das nuvens lembrei-me de outra num planeta chamado Bolívia Narda que desenhava nuvens

Evidentemente os elementos de uma nebulosa devem ser classificados nos planetas segundo as leis de peso, mas

crema de chantilly helado algodón

dos, em seguida, de acordo

umo de volcano

mais luz!

que os corpos simples coexistam no conjunto da nebulosa,

de detergente fumaça de discoteca

suas últimas palavras foram

essa classificação não impede

3 cachos de uva mousse para cabelo

de azucar algodon medicinal espuma

Quando Goethe morreu

a não ser que sejam reparti-

Como é que desliga?

com determinada ordem, em virtude de suas leis. (Louis-Auguste Blanqui, A eternidade pelos astros, p. 31 - 32)

Mas voltei a Anne que falou de Joana que recusou o clichê e queria falar do estremecimento dos nervos de que falou Virginia Woolf e disse a luz vem do nome da voz

impossibilidades

e as placas tectônicas

Viver suspensa nas nuvens

se entrechocam em tom

E nunca mais cair das nuvens

de catástrofe.

128

Pôr nas nuvens o meu amor

Hilda Machado

129


Fotossíntese

O crítico pergunta a Deleuze

Proposições para um filme imaginado 7

porque a noção de “olhar” está completamente ausente de seu livro sobre cinema. Deleuze então responde: “Não sei se esta

Um filme feito com película 16mm traz ao limite

Fazer cinema é como descrever

noção é indispensável. O olho já

a ideia de que o assunto do filme é sua matéria.

um movimento impetuoso numa

está nas coisas, ele faz parte da

Os fótons de luz imateriais se tornam matéria to-

folha pegando fogo (Rogério

imagem, ele é a visibilidade da

Sganzerla, Encontros, p.198)

imagem. É o que Bergson mostra:

cando de fato a película e produzindo a imagem

a imagem é luminosa ou visível

do filme. Quanto mais luz se permite atravessar a câmera escura e queimar o filme, mais lento é o movimento. Uma mulher sozinha usa moletom em seu apartamento branco, preto, tons de cinza. Sai de casa, volta pra casa sempre carregando

nela mesma, ela só precisa de ...parece-me que o expressionismo concebe a luz nas suas relações com as trevas, e essa relação é uma luta. Na escola francesa do

caixas de papelão. Em seu quarto uma estranha e

pré guerra é muito diferente: não

forte luz cresce através das frestas da porta. Com

há luta, mas alternância; não só a

o passar dos dias essa luz se torna cada vez mais

luz é ela mesma movimento, mas

branca e mais intensa, e o tempo parece ralentar. Em algum momento, a mulher sucumbe à luz, transpõe a luz, absorve a luz, se torna luz e desaparece para nunca mais voltar.

há duas luzes que se alternam, a solar e a lunar. É muito próximo do pintor Delaunay. É antiexpres-

uma ‘tela negra’ que a impeça de se mover em todos os sentidos com as outras imagens, que impeça a luz de se difundir, de se propagar em todas as direções, que reflita e refrate a luz. ‘A luz que, propagando-se sempre, jamais teria sido revelada...’ O olho não é a câmera, é a tela. (Deleuze, Conversações, p. 74)

sionismo. (Deleuze, Conversações, p. 67 - 68)

Que tipo de relação é essa da mulher com a luz? Me parece que não é uma nem outra dessas que cita o Deleuze. Não se trata nem da luta do expressionismo e nem da escola francesa, antiexpressionismo. Me parece que aqui a luz se torna personagem e objeto ao mesmo tempo, se torna matéria.

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Fogo no mar

A única coisa a se mover no vasto semicírculo da praia era um pontinho preto.

o homem espreita em silêncio olha muito longe porque sabe

ele diz pra si mesmo, que está a saída ou entrada ou o começo ou o fim

Quando ele chegou mais perto das vértebras e espi-

do barco que se move a léguas dali

que sua vista cansada agora

na areia, tornou-se visível,

alcanço meu binóculo e procuro

o impede de olhar o detalhe do

pretume, que o ponto tinha

mundo, então ergue a cabeça e olha lá no pontinho cego do horizonte

quatro pernas: tornou-se mais claro, de momento a momento, que era composto pela pessoa de dois jovens.” (Virginia Woolf, Objetos

lá do longe é avistado, o homem,

sólidos, p.131)

no alto do alto de uma pedra alta Não se percebem absoluta-

visto, o homem está nítido como numa imagem

ampliamos nossa visão ao

o horizonte sabe que é soberano e que pode cegar

mente as mesmas coisas se horizonte que se estende, imenso e imóvel, além de nós; ou na proporção que se aguça nosso olhar sobre a imagem que passa, minúscula e mo-

o homem que espera cansado não desiste nunca de encontrar num pedacinho do horizonte um detalhe minúsculo porque é lá,

132

acolheria, que tornaria visíveis

na curva depois do horizonte a ilha perdida que esperamos encontrar mas no fundo da minha lente, a única imagem que aparece é de um homem pequeno no alto do alto de uma pedra

berman, A sobrevivência dos vaga-lumes, p. 115)

O horizonte que se apaga é a distração de Didi, que não lembrou que, quando o sol se põe e a lua reina no céu, os holofotes dormem e o horizonte pode se transformar em um vagalume.

bem alta e pontuda. ele está nas pontas dos pés

nesse ponto do horizonte de onde é

em zoom de um filme filmado em alta qualidade

sonhar com um horizonte que todas as imagens. (Didi-Hu-

nha do barco de sardinhas por certa tenuidade em seu

eventualmente, começar a

vente, bem próxima de nós. (...) Ver o horizonte, o além é não ver as imagens que vêm nos tocar... Talvez somente em momentos de exaltação messiânica é que se pode,

e parece que também procura

...o barco pode ser o símbolo da partida; mais profundamente, é o sinal da clausura.

o céu escurece e uma lua cheia cega a todos, o homem, o horizonte e eu que agora janto sozinha sonhando

O gosto pelo navio é sempre a alegria do enclausuramento perfeito, do domínio do maior número possível de objetos, do ato de dispor de

com a ilha ou com o homem e agora

um espaço totalmente finito:

já não me lembro mais acordada

mais nada, amar uma casa su-

do que sonhava

amar os navios é, antes de perlativa, porque fechada sem remissão, e de modo algum as grandes e indeterminadas

133


a chance de vencer o horizonte é quando ele se apaga e pensa pra si mesmo que já não é tão reto tão grande e

partidas. O navio é uma ação do habitat, antes de ser um meio de transporte. (Roland Barthes, Mitologias, p. 83)

nem tão definitivo e o homem acredita. ele sabe que a vista cansada não lhe roubou a chance de ver o detalhe mas que muito

arquipélago. Nem sequer um

o detalhe não estava aqui, mas lá bem longe na curva do horizonte, no cantinho do mundo

do brilho onde a lua encontra o mar

um mundo em processo, em quebra-cabeça, cujas peças ao se adaptarem reconstituiriam um todo, mas antes como um muro de pedras

outro mundo, mas confiança neste mundo aqui. (Deleuze, Crítica e Clínica, p. 113)

nessa noite de lua cheia, o homem vê. e se ele contasse

...trata-se da afirmação de

diferente do que pensávamos

bem no fundo da imagem bem no ponto

Com um oceano de chamas

ninguém acreditaria mas é o fogo

nas estrelas para avivar, e

que explode no mar, pequeno,

os planetas para organizar,

amarelo, só consegue ver mesmo quem sabe procurar os detalhes do mundo

um oceano de água sobre a associação do hidrogênio com o oxigênio é o governo da matéria, e o sódio é seu companheiro inseparável em

livres, não cimentadas, onde

mas o homem encontra, o buraco

num buraquinho bem pequeno

cada elemento vale por si

que rompe a linha do horizonte

fogo e a água. No espectro

que só pode ser visto pra quem conhece a arte

relação com os demais: iso-

que se pensava inteiro

tudo; ele é o elemento princi-

lados e relações flutuantes,

mal sabendo que era feito com um buraco

pal do sal dos mares.

uma pausa uma brecha um intervalo

ficos, apesar de suas leves

de olhar os detalhes do mundo

mesmo e no entanto tem

ilhas e entre ilhas, pontos móveis e linhas sinuosas,

o homem no alto da pedra alta não dorme com o sol e parceiro da lua continua à espreita enquanto eu sonho mesmo sem saber mais com quê. ele pequeno sobe nas pontas dos pés e enquanto o horizonte se esqueceu de quem era, ele vê lá bem ao longe

134

suas duas formas opostas – o solar, ele brilha mais do que

Esses mares, hoje tão pací-

pois a Verdade tem sempre

rugosidades, conheceram

“bordas retalhadas”. (...) Mas

a todos os tipos de tempes-

para isso é preciso também que o sujeito conhecedor, o únicos proprietário, ceda lugar a uma comunidade de exploradores, precisamente os irmãos do arquipélago, que substituem o conhecimento pela crença, ou antes, pela “confiança”: não crença num

e o homem me contou muito tempo depois desse dia quando estávamos

tades, quando se agitavam em turbilhões de chamas que devoravam as lavas de

juntos ainda em busca da ilha

nosso globo. (Louis-Auguste

que lá nesse pontinho preto e pequenininho

astros, p. 29)

Blanqui, A eternidade pelos

na linha do horizonte, ali tem o fogo que queima no mar e quem tem a sorte

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de procurar e mais ainda a doçura pra conseguir enxergar vai ver o espetáculo mais fascinante e raro da terra. o fogo amarelo e quente

Pode-se negar que o desejo e a crença sejam forças? Acaso não se percebe que, com suas combinações recíprocas, as paixões e os desígnios, eles são os ventos perpétuos

dançando na superfície azul e verde

das tempestades da história,

e morna do mar.

girar os moinhos da política?

as quedas d’água que fazem [Gabriel Tarde acha que cada célula é uma sociedade,

morreu no meu colo na areia da ilha, o homem. 100 anos depois. sem nunca mais esquecer daquele fogo no mar.

uma cidade, movida pelos choques de múltiplas crenças

Love it self ... In streams of light I clearly saw The dust you seldom see, Out of which the Nameless makes A Name for one like me. ... All busy in the sunlight The flecks did float and dance, And I was tumbled up with them In formless circumstance. Leonard Cohen

e desejos...] Em seu secular esforço para interpretar mecanicamente tudo o que está fora de nós, mesmo o que mais brilha em traços de gênio acumulados, as obras vivas, nosso espírito sopra, de certo modo, apagando todas as luzes do mundo em benefício de sua solitária fagulha. (Gabriel Tarde, Monadologia e sociologia e outros ensaios, p. 71,73)

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A ilha do Farol

simplesmente, ela cansou de ser ilha e virou mar.

Não havia comida na ilha, nem

Proposições para um filme imaginado 8

Existem os que afirmam que nenhuma ilha é uma

terra. Era o contorno de uma

ilha. Até os dias de hoje ainda há os que saem à sua procura.*

ilha, sem nada dentro. Uma frustração. (Alice Sant’Anna em rascunhos para o livro Rabo de

Uma família entra num barco. Partem da cidade

Quando Amir Klink entra no

Baleia enviados para serem usa-

onde moram decididos a nunca mais voltar.

barco e pretende atravessar o

dos como cartela no nosso filme

mundo em um veleiro, ele cria

A ilha do Farol, mas não foram)

1. Da praia se vê uma ilha, conhecida como Ilha do Farol. Lá vive um faroleiro solitário cujo nome

um mundo novo e junto com ele um sem número de novas regras

A ilha é o que o mar circunda e

e funções que produzem a gestão

aquilo em torno do que se dão

ninguém nunca soube. Poucos foram os que con-

daquele universo. A possibilida-

voltas, é como um ovo. Ovo do

seguiram aportar na ilha.

de de inventar rotas à medida

mar, ela é arredondada. Tudo se

em que se navega é também a

passa como se ela tivesse posto

potência de inventar novas ilhas a

em torno de si o seu deserto, fora

cada novo segundo da viagem à

dela. O que está deserto é o ocea-

deriva. Bas Jan Ader foi e não vol-

no que a circunda inteiramente. É

tou. Talvez esteja ele ainda numa

em virtude das circunstâncias, por

do um grande castelo. No topo construíram um

ilha perdida no meio do atlântico

razões distintas do princípio do

farol que protege quem entra e quem sai da baía.

tomando Ayuaska com uma tribo

qual ela depende, que os navios

A Ilha do Farol é um lugar seguro.

de “índios” não contactados.

passam ao largo e não param.

3. A ilha já estava lá. Nela habitavam mais de oiten-

O impulso do homem, esse que

2. A ilha é artificial. Foi construída por escravos na saída da Guanabara. A vegetação foi plantada. Espécies animais foram introduzidas e foi ergui-

ta povos indígenas. Os franceses vieram primeiro e se aliaram aos Tupinambás. Os portugueses então, aliados aos Termininós, declararam guerra e ven-

Mais do que ser um deserto, ela

o conduz em direção às ilhas, retoma o duplo movimento que produz as ilhas em si mesmas.

é desertada. (Deleuze em A ilha deserta e outros textos, p. 9) Ilha do Acaso

Sonhar ilhas, com angústia ou

Nela, os terremotos são frequen-

ceram. Em seguida exterminaram seus aliados. Na

alegria, pouco importa, é sonhar

tes. Aqui, tudo parece ser deixado

ilha deserta fincaram um farol que controla quem

que se está separando, ou que

ao acaso, e todo o tipo de mons-

entra e quem sai. A ilha não é um lugar seguro.

já se está separado, longe dos

tro é produzido por uma natureza

continentes, que se está só ou

que ainda parece estar num es-

perdido; ou, então, é sonhar que

tado infantil de experimentação.

se parte de zero, que se recria,

(Abbé Balthazard, apud “Dicionário

que se recomeça. (Deleuze, A ilha

de lugares imaginários” de A. Ma-

deserta e outros textos, p. 7)

guel e G. Guadalapu, p. 10)

bora. Vermelho, vermelho, branco, branco. Uma

A ilha tem a forma de uma mão

*Os parágrafos enumerados de

certa violência que salva máquinas gigantes.

aberta. Quando os navegantes

1 a 5 foram retirados das cartelas

chegaram lá, exaustos e famin-

do filme A ilha do Farol, escritas

tos, felizes de ver terra no vidro

por Jo Serfaty e Mariana Kaufman

da luneta, se decepcionaram ao

com colaboração de Domingos

descobrir que a ilha era vazia.

Guimaraens.

4. A ilha é o contorno de uma ilha, sem nada dentro. Sobre sua casca se equilibravam animais e plantas comestíveis. O farol com suas luzes piscantes fez muitos dos antigos habitantes irem em-

5. Contam que a ilha afundou há quatro séculos, atingida por um meteoro. Alguns afirmam que,

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Tacita Limps

Se você é espectador, o que você está realmente fazendo é esperar para que o acidente

Tacita limps. O corpo que manca é como a linguagem que gagueja? O corpo que manca anda duas vezes mais devagar como o filme que roda film is a language of time you cannot not think about time. O corpo fala duas vezes antes

aconteça. (Francis Alys, A Garrafa)

O escritor se serve de palavras, mas criando uma sintaxe que as introduz na sensação, e que faz gaguejar a língua corrente, ou tremer, ou gritar, ou mesmo cantar: é o estilo, o “tom”, a

E nessa pausa entre o corpo que manca e o pensamento o tempo acontece. E o filme está aí as várias faces de Cunningham são como os xapiris

ao mesmo tempo. Monstro, eu te dou meu espírito, minha carne e minhas lembranças. Cada gota do nosso sangue canta nossa canção. É uma canção de alegria. Aí – está

que falam em desenhos e as várias voltas

ouvindo? O filme se transfor-

das luzes do farol olham 360 lados

com os personagens assim

multiplicados pelo número que os matemáticos não conseguem

ma numa lenda e seguimos até o fim. Fade out. (sobre Mal dos Trópicos de Apichatpong Weerasethakul)

linguagem das sensações ou

imaginar e as luzes são sempre

de alcançar a imagem que ele busca

a língua estrangeira na língua,

vermelho e branco a cada tempo

Quanto mais não sei quem

como ser estrangeiro dentro da própria

(Deleuze e Guattari em O que é

time in my film is a fiction

posso ser.

filosofia?, p. 208)

time in my films is the film

espécie ser sempre humano mesmo sendo

a que solicita um povo por vir.

onça. O tempo das espécies é outro se existisse um ponto de onde se fala mas não, é uma esquina de infinitos lados um polígono fractal que nem a imaginação

time está fora do eixo andando Fade in. Dois rapazes se deslocam pela cidade em uma moto, tudo estava ali antes da câmera chegar. No minuto 46 do filme, uma cartela cobre a

cada vez mais rápido no farol não há fim não há começo Tacita limps.

sou, é aí que mais eu mesmo

Só se trata de nós aqui agora; mas o que é animal em nós, vegetal, mineral ou humano, não é mais distinto. O máximo de determinação emerge como um clarão deste bloco

matemática e o binarismo das máquinas

tela e nos conta a história do

de vizinhança. Não estamos

xamã que se transforma em

no mundo, tornamo-nos com

conseguiriam imaginar cérebro como

tigre para roubar a alma das

o mundo, nós nos tornamos,

imagem a mais complexa delas que cria imagens movediças.

pessoas. Dali em diante o filme se passa na floresta, os dois atores agora são xamã e tigre,

* edited time we now have a way of recording time in a much longer way

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contemplando-o. Tudo é visão, devir. Tornamo-nos universo. Devires animal, vegetal, molecular, devir zero. (Deleuze e Guattari, O que é filosofia?, p. 206, 200)

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A história da mulher que queria fazer fotossíntese

de perto, bem de perto. A banda acelera e os pe-

nário e nos dirigimos a um preto

volume 3: cosmos

regrinos correm atrás. A mulher corre junto e a

imaginário, atravessando todas

cada novo plano ela tem mais lâmpadas espalha-

cores do espectro. (Henry Miller

das pelo corpo. Ela coloca uma lâmpada dentro

em Hamlet, p. 40)

Uma moça dança com uma bebê de 6 meses no

...que metamorfose! A evolução

da boca e de fora se vê a bochecha brilhante da

colo, as duas sorriem e rodopiam. Na janela em

foi realizada. Ela também se

Mulher. Com pequenas lâmpadas na cara, ela

A sobrevivência dos vagalumes

frente, a Mulher com os cotovelos apoiados, dá

realizará no Sol. Suas manchas já

anda como se soltasse raios de luz pelos olhos.

sem cabeça depende da boa

Encontra um grupo de cinco pessoas que carre-

vontade das lagartas com insônia.

gam dezenas de balões transparentes com deze-

O Vagalume sem cabeça que não

uma tragada em seu cigarro, solta a fumaça observando a dança contra a luz e volta a olhar a

revelam, na combustão do hidrogênio, lacunas passageiras, que o tempo não cessará de aumentar

consegue realizar seu processo de

cena na janela em frente. É de noite e a Mulher

e de girar incessantemente. Esse

nas de luzes piscantes por dentro. Passa minutos

de moletom sai pela rua deserta da cidade que

tempo será contado por séculos,

segurando os balões na frente da cara. A Mulher

se transforma em madrugada. Sob a luz amarela

sem dúvida, mas o declínio já

anda abraçada com duas outras mulheres que

começou.

sas cientificas revelam que este

têm tubos de luzes coloridas pelo corpo, ela toca

processo está diretamente ligado

nos tubos, e encara as luzes. A madrugada come-

ao desejo, já que para ocorrer

do poste ela para. Olha para cima e, sem pressa, brinca de abrir e fechar os olhos em tempos e in-

O sol é uma estrela em declínio. Chegará o dia em que o produto

bioluminescência, vagueia deprimido por entre as árvores. Pesqui-

são necessárias reações químicas

da combinação do hidrogênio

ça a dar lugar à manhã do novo dia. Na orla do

pode fazer na retina. Bem baixinho na rua ador-

com o oxigênio cessará de se

centro da cidade, o bloco aos poucos vai derreten-

mecida é possível escutar um burburinho que

decompor outra vez para recons-

do pelos cantos em montinhos sentados, deita-

parece vir de longe. A Mulher volta a caminhar

tituir os dois elementos separa-

dos, espalhados e afugentados pelo fim da noite.

dia, o Vagalume sem cabeça es-

A mulher se senta no muro de cimento que con-

barra com a Lagarta brilhantona

tém o mar. Seus movimentos lentos são típicos de

com insônia. Ela passa as noites

tensidades diferentes, e sente o carinho que a luz

pela calçada e some na próxima esquina. Corta. Centenas de pessoas cantam e dançam enquanto

damente, e então restará o que ele deve ser: água. Esse dia verá terminar o reino das chamas e

do oxigênio com um tecido de células especiais que é ligado ao cérebro do Vagalume. Um belo

acordadas e dorme durante os

começar o dos vapores aquosos,

quem passou a noite na farra. Com as pernas ba-

golida pela multidão, olha tudo um pouco perple-

cujo destino final é o mar. Quando

lançando sobre o mar ali em baixo, ela vê as ilhas

xa e ao mesmo tempo com cara de quem se sente

esses vapores envolverem o astro

que formam a paisagem nas praias da cidade. As

parte da turma. Sobre as roupas e as maquiagens,

derrotado com suas espessas

luzes que ela veste vão aos poucos dando lugar ao

tes refletindo a luz do sol. Dessa

velho moletom cinza de sempre. Dali sentada, a

bela amizade, nasce um plano.

Mulher vê o último raio de luz vermelho verme-

Vagalume e Lagarta decidem se

andam pela larga avenida. A mulher que já foi en-

os foliões se vestem de luz. São luzes de todos os tipos, tamanhos e cores, piscam em ritmos dife-

massas, nosso mundo planetário cairá na noite eterna. Antes desse final fatal, a huma-

rentes, mudam a batida, mudam a velocidade. É

nidade terá tempo de aprender

lho branco branco que emana do farol no topo

um carnaval fora de época, é a festa da luz. A Mu-

muitas coisas. (Louis-Auguste

da ilha à sua frente. Exatamente cinco segundos

lher desaparece e reaparece por entre a massa a

Leblanc em A eternidade pelos

antes do sensor automático encerrar mais uma

todo instante. Ela agora não está mais à paisana:

astros, p. 30)

noite de trabalho. O sol é implacável.

de natal. A mulher flutua pelo bloco sempre em busca da luz mais iluminada. Ela para diante de um pierrô cuja maquiagem branca brilha sob a luz negra que ele carrega na testa. A mulher olha

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floresta pôde, jamais, apreciar a beleza de seus pelos fosforescen-

juntar, transmutar, e durante 4 dias e 4 noites acontece no mato a maior rave de todos os tempos. Finda a festa, rompe-se o casulo e surge o mais belo ser que já existiu: a Mariposa fosforescente

por sobre seu velho moletom acomodam-se fios com pequenas luzes que piscam como na árvore

dias, e com isso, nenhum ser da

Qual a cor da noite eterna?

que pisca suas asas pelos ares, dia e noite. A partir desse dia, a

Preto e branco não existem:

floresta nunca mais foi a mesma.

foram criados artificialmente.

(Adaptado da fábula “A história

Em nossa passagem pela vida,

do Vagalume sem cabeça” de

chegamos de um branco imagi-

Felipe Braga)

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Em 1778 o cientista holandês Jan

Os 3 fatos desastrosos de quem cisma em se espichar à procura do sol

Ingenhousz descobriu a existência do processo da fotossíntese realizado pelos seres autotrófos, ou seja, aqueles capazes de

Fato 3. Na praia no inverno – sim, porque no Rio de Janeiro nós va-

produzir seu próprio alimento.

mos à praia no inverno – por volta das quatro da tarde, tem início o

As plantas verdes são capazes de

curto momento do dia que se denomina a corrida pelo lugar ao sol.

absorver e acumular a energia

Pois que ao longo da orla, como se sabe, foram construídas dezenas

solar, e junto com o H2O e o CO2, realizam um processo quími-

e centenas de prédios que, apesar da existência de algo chamado ga-

co em que produzem matéria

barito, têm em sua grande maioria uma altura tal que espalha uma

orgânica. Há registros de uma

enorme sombra por toda a areia da praia durante certa parte do dia,

hipótese cientifico-poética que

especialmente no inverno. Esse fenômeno pode ser observado em

propõe que a capacidade de

inúmeras praias do litoral brasileiro, tendo sido, inclusive, motivo

produzir substâncias que lhe servem de alimento e, portanto, de matéria prima para a sua própria

de um filme em Recife, exata e não concidentemente intitulado Um lugar ao sol. As praias urbanas são um alento na vida de seus mora-

geração de energia, crescimento

dores, consideradas como um espaço democrático. No Rio, apesar de

e sobrevivência a partir da luz, é,

terem tentado mudar essa dinâmica acabando com linhas de ônibus

segundo as leis da Teoria Geral

que vêm das áreas periféricas da cidade, são o lugar em que ainda não

da Relatividade, uma forma que

se paga pra entrar e onde não há área VIP. Mas ocorre que há: lugares

as plantas têm de controlar seu próprio tempo. Diferente dos seres humanos, ao serem capazes

especiais que só quem sabe sabe conhece bem. São eles os pedaços de praia em que raios de sol mais tenazes conseguem encontrar frestas

de absorver a luz, sabem que não

por entre os prédios que driblaram o gabarito, e assim aterrissar, pre-

estão aprisionadas ao tempo: são

cisamente 8 minutos e 149.600.000 km depois de partirem do sol em

rainhas de sua vida e sua morte.

direção à Terra, nas areias da orla da cidade maravilhosa. No entanto, a grande maioria dos inocentes que por ali se banham – de mar de sal e de sol –, por volta das quatro da tarde, se põe a postos para a corrida em busca do sol perdido. Na velocidade de quem foge da onda que chega sem avisar na maré que sobe discretamente ao longo do dia, os banhistas se levantam e com cada uma das mãos conseguem pegar canga, chinelo, bolsa e mais alguns pertences que variam de acordo com o freguês, e saem em disparada para as esparsas nesgas de areia onde ainda podem se acomodar e receber na pele seminua uns últimos raios do sol de inverno, antes que ele se vá de vez até o dia seguinte. Porque depois disso, só mesmo pegando o camelo, um ônibus ou o Uber para conseguir em poucos minutos chegar até o Arpoador. É, porque lá no Arpoador o sol ainda é para todos.

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Ações Anti-crise

1. Roubar buraco do avestruz. 2. Nadar pelada no fundo do mar até esbarrar com o submarino amarelo. 3. Andar pelas ruas com uma agulha tamanho 15 e estourar todo e qualquer balão em mão de criança que encontrar pelo caminho. 4. Solicitar aos parceiros que passem língua e dedos de forma contínua e ritmada na sua buceta até o orgasmo. Repetir a ação inúmeras vezes. 5. Ao esbarrar com uma pedra no caminho, bater com a cabeça até furar. 6. Encontrar mais dois parceiros para plantar bananeiras, fazendo diferentes desenhos com seis pernas pro ar. 7. Procurar até encontrar uma lâmpada incandescente de 100 w (ela foi extinta por um decreto federal). Realizada a missão, plantar-se de pé e nua diante da lâmpada por quanto tempo conseguir. Repetir a ação cotidianamente. 8. Entrar dentro do cobertor com uma criança pequena e ali ficar por muito tempo brincando de cabaninha. 9. Tomar longos banhos quentes direcionando a ducha para dentro da sua buceta. 10. Subir até a ponta de um foguete prestes a ser lançado e aguardar a viagem espacial começar.

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Balão

Dar uma atenção invulgar (mesmo que apenas durante alguns dias) a um objeto

pelas ruas de paris o balão vermelho flutua ora sim ora

como este era, para Calvino, um exercício fundamental

explodido pela sola de um sapato virou pele jogada vermelha pele solta pele mole mas antes, esfera

que lhe permitia treinar o

craquelada lenta no meio da tela,

não nas mãos do menino que

olhar sobre as coisas do

que imagem

como lina apaixonou-se por

era um sistema simples de

um balão

mundo. No fundo, o balão apontar para o Nada. Este sistema, a que vulgarmente se chama balão, no fundo

dela amarelo dele vermelho o balão tem gravidade própria é como uma ilha móvel não

rodeava com uma camada fina de látex uma pequeníssima parte da totalidade do ar do mundo. Sem essa camada colorida, aquele ar,

sendo baleia nem sendo padre

agora como que sublinhado

voando um pouco bolha

atmosfera, passaria comple-

um balão

e salientando - se do resto da tamente despercebido. Para Calvino, escolher a cor do balão era atribuir uma cor ao

como no livro presente da luna

insignificante. Como se decidisse: hoje o insignificante

dava sempre, como um inseto desconhecido mas ruidoso, a cada momento a circular em seu redor. (Gonçalo Tavares, Sr. Calvino, p. 15 – 17)

na torre ele vem de outro mundo e chega voando como o balão o foguete procura o mago que pode salvá-lo ele pensa, ela quer morrer. mr. and mrs brown pequenos no alto um beijo e a escultura impossível de maria e o véu verde no céu branco quase imita um balão que voa mas informe

voou virou lua.

lidade do balão obrigava ainda

e ela na torre sobre a pele pelos

em 1956 o balão vermelho virou

a um conjunto de gestos pro-

língua mão até que dedo na carne

furou pele enrugada, explodiu foi

vino a pequena distância que

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enorme e forte morte que an-

era a mesma ela é a fera presa

vai de azul.

tetores que lembravam a Cal-

vida que ele agora possuía e a

em 2001 o filme era outro a cidade

o balão amarelo da lina que um dia

E a quase insuperável fragi-

existe entre a enorme e forte

agora é ferida agora é vermelha e agora

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é fogo

na tela dezenas de balões o carregam e voam

ela come e come mais e grita enquanto assa

pelos ares mas agora não é padre agora não

é o humano na beirinha

é fogo ele volta porque a gravidade é só dele do menino só dele do balão o amarelo

em volta do fogo a mariposa tonta no meu banheiro procurava luz e fugia dela, desesperadas encostou na minha perna, cansadas no chão do chuveiro e eu gritava enquanto vermelho na beirada

I. Uma criança no escuro, tomada de medo, tranquilizase cantarolando. Ela anda, ela para, ao sabor de sua canção. Perdida, ela se abriga como

cinco meses e terminando de escrever acho

mal com sua cançãozinha.

que vou comprar um balão

Esta é como o esboço de

quando lina nasceu eu não chorei

estabilizador e calmante, no

logo eu.

que a criança salte ao mesmo

humano animal era pedra era ilha

12 de setembro ela faz um ano e

pode, ou se orienta bem ou

um centro estável e calmo,

era vida muito além da carne da pele

e o vermelho. hoje é dia

pra lina

seio do caos. Pode acontecer tempo que canta, ela acelera ou diminui seu passo; mas a própria canção já é um salto: a canção salta do caos a um

[T]udo pode se transformar

começo de ordem no caos,

em poeira. É por isso que

em si

ela arrisca também deslocar-

resolvi me investir firmemen-

se a cada instante. Há sempre

te no cinema. Não para me

ali

uma sonoridade no fio de

tornar imortal, mas porque

Ariadne. Ou o canto de Orfeu.

neles podemos chorar (Jia

(Deleuze e Guattari, Mil Pla-

Zhangke. Jia Zhangke, a cida-

tôs IV, p. 122)

de em quadro. p. 262)

era coisa

vermelha e eu vi pela janela amarelo um sol e me lembrei do balão

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Créditos das imagens

A mulher que não queria parar de beber suco de maracujá, Mariana Kaufman, Brasil, 2014

Still do filme A ilha do Farol, Jo Serfaty e Mariana Kaufman, 2017

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Stills do filme Still Life, Jia Zhangke, 2006 Still do trabalho Fall 1, de Bas Jan Ader, 1970 Stills do trabalho Tornado, Francis Alÿs, 2000 - 2010 Still do filme Mal dos Trópicos, Apichatpong Weerasethakul, 2004. Still do filme Sopro, Cao Guimarães e Rivane Neuenschwander, 2000 Foto do trabalho Spiral Jetty, de Robert Smithson, 1970 Still do trabalho Desappearance at sea, Tacita Dean, 1996 Still do filme O Balão Vermelho, Albert Lamorisse, 1956. Série de desenhos Anti-crisis Actions de Mariana Kaufman, 2018

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Resumo

Abstract

Inventário de impossíveis

Inventory of impossibles

O trabalho investiga os modos pelos quais a experiência contem-

My work examines the different ways through which contempo-

porânea – impregnada de uma sensação distópica diante das fa-

rary experience – immersed in a dystopian sensation in face of the

lências dos sistemas econômicos, políticos e sociais e da difusão

imminent collapse of economic, political, and social systems and

massiva de ideias de fim de mundo nos imaginários coletivos – se

the widespread dissemination of end-of-the-world ideas in col-

torna um campo de impossíveis em que a arte permanece como

lective imaginaries – becomes a realm of impossibles wherein art

uma força de multiplicação de possíveis. Encontra seus interces-

stands as a multiplying force of possibles. My privileged theoreti-

sores teóricos privilegiados na filosofia deleuze-guattariana e nos

cal mediators are within Deleuze-Guattarian philosophy as well as

desenvolvimentos recentes da chamada antropologia simétrica,

recent developments in the so-called symmetrical anthropology,

respondendo vitalmente, além disso, a um conjunto selecionado

while also vitally reacting to a selection of artistic works, in which

de obras artísticas, no qual o filme Still Life, do cineasta chinês

the film Still Life by Chinese filmmaker Jia Zhangke – particularly

Jia Zhangke – e em especial a cena de um prédio que voa – assu-

the scene with a flying building – assumes the starting point. My

me um lugar disparador. A investigação se desdobra por meio da

investigation unfolds by way of artistic writing through an amal-

escrita artística, em um amálgama de poemas, contos, ensaios e

gam of poems, short stories, essays, and images, in an attempt to

imagens, na busca por materializar no próprio corpo do trabalho

materialize in the actual body of work the status of art as a multi-

o pensamento sobre o estatuto da arte enquanto força multiplica-

plying force of possibles. A central dimension over the course of

dora de possíveis. É fundamental para a invenção desta escrita-

this writing-thesis is the encounter with works and artists that in

tese o encontro com obras e artistas que de alguma forma estão,

some way grasp and sensitize signs and forces that remain widely

em seus trabalhos, captando e tornando sensíveis sinais e forças

insensitive to this world.

ainda largamente insensíveis deste mundo. Keywords: contemporaneity, end-of-the-world imaginaries, art Palavras-chave: contemporaneidade, imaginários de fim do mun-

and the multiplication of possibles

do, arte e multiplicação de possíveis

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Dissertação apresentada ao programa de

Mariana Fernandes de Menezes Kaufman

Pós-graduação em Letras da PUC-Rio como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre

Graduou-se em Desenho Industrial na ESDI/

em Literatura, Cultura e Contemporaneidade.

UERJ, cursou Cinema na UFF e pós-graduou-se em roteiro pela PUC-Rio. Organizou e editou os livros Jia Zhangke, a cidade em quadro, Luz em

Banca examinadora:

movimento, a fotografia no cinema brasileiro e Arnaldo Jabor, 40 anos de opinião pública. Escreveu

Profa. Helena Franco Martins

e dirigiu, com Jo Serfaty, Confete (2012) e A ilha

Orientadora

do farol (2017). Realizou também os filmes A mu-

Departamento de Letras – PUC-Rio

lher que não queria parar de beber suco de maracujá (2014), Natureza Morta (2016) e Mehr Licht!

Profa. Marília Rothier Cardoso

(2017). Participou da Bienal de Arte da Bolívia,

Departamento de Letras – PUC-Rio

Seminário do 64th International Short Film Festival Oberhausen, exposições na Casa França Brasil,

Profa. Livia Flores Lopes

Parque Lage e recebeu menção honrosa no II Prê-

PPGAC – ECO/UFRJ

mio Reynaldo Roels Jr. MAM / EAV. Foi curadora de mostras de cinema na Caixa Cultural e CCBB.

Rio de Janeiro, defesa: 2 de outubro de 2018

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2ª impressão novembro, 2018

projeto gráfico: Felipe Braga

Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, da autora e dos orientadores.

Ficha Catalográfica

Kaufman, Mariana Fernandes de Menezes Inventário de impossíveis / Mariana Fernandes de Menezes Kaufman ; orientadora: Helena Franco Martins. – 2018. 168 f. : il. color. ; 30 cm Dissertação (mestrado)–Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Letras, 2018. Inclui bibliografia 1. Letras – Teses. 2. Contemporaneidade. 3. Imaginários de fim do mundo. 4. Arte e multiplicação de possíveis. 5. Artes visuais. 6. Poesia. I. Martins, Helena Franco. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Letras. III. Título.

CDD: 800

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