JIA ZHANGKE, A CIDADE EM QUADRO
JIA ZHANGKE, A CIDADE EM QUADRO
Jia Zhangke, the city in frame
5 a 17 ago 2014 CAIXA Cultural Rio de janeiro 12 a 24 ago 2014 CAIXA BELAS ARTES
apresenta
JIA ZHANGKE, A CIDADE EM QUADRO Jia Zhangke, the city in frame
organização MARIANA KAUFMAN e JO SERFATY
A CAIXA é uma das principais patrocinadoras da cultura brasileira. Destina, anualmente, mais de R$ 60 milhões do orçamento para patrocinar projetos culturais em seus espaços, com o foco em artes visuais, peças de teatro, espetáculos de dança e shows, além de artesanato brasileiro e festivais de teatro e dança em todo o território nacional. Os projetos patrocinados são selecionados a partir do Programa de Seleção Pública, uma opção da CAIXA para tornar mais democrática e acessível a participação de produtores e artistas de todas as unidades da Federação, e mais transparente para a sociedade o investimento dos recursos da Empresa em patrocínio. A mostra JIA ZHANGKE, a cidade em quadro, apresentará nas unidades da CAIXA Cultural do Rio de Janeiro e CAIXA BELAS ARTES, em São Paulo, ao longo de três semanas, uma retrospectiva completa e inédita no Brasil de um dos maiores cineastas contemporâneos, considerado o maior ícone da chamada “Sexta geração” do cinema chinês. O público terá a oportunidade de mergulhar em sua obra através dos filmes, duas mesas de debate gratuitas (uma em cada cidade) e um livro bilíngue de 300 páginas com textos de pesquisadores e teóricos do mundo todo sobra sua cinematografia. Além disso, o público será presenteado com a presença do próprio cineasta no Brasil para dar duas masterclasses, gratuitas, falando de seu processo de trabalho. Dessa maneira, a CAIXA contribui para promover e difundir a cultura nacional e retribui à sociedade brasileira a confiança e o apoio recebidos ao longo de seus 153 anos de atuação no país, e de efetiva parceria no desenvolvimento das nossas cidades. Para a CAIXA, a vida pede mais que um banco. Pede investimento e participação efetiva no presente, compromisso com o futuro do país, e criatividade para conquistar os melhores resultados para o povo brasileiro.
CAIXA ECONÔMICA FEDERAL
CAIXA is one of the major sponsors of Brazilian culture, assigning annually over R$ 60 million of its budget in cultural sponsorship in its spaces, now mainly focusing in visual art exhibitions, theater plays, dance performances, musical concerts, theater and dance festivals across the country, and also Brazilian handicraft. The sponsored projects are selected by a Public Selection Program, the process chosen by CAIXA to make easier, more accessible and democratic participation of producers and artists from all units of the Brazilian federation, and also more transparent to the society the investment of company resources in sponsorship. The exhibition JIA ZHANGKE, the city in frame will present at the centers of CAIXA Cultural in Rio de Janeiro and CAIXA BELAS ARTES in São Paulo, over three weeks, a complete and unprecedented retrospective in Brazil of one of the greatest contemporary filmmakers. The audience will have the opportunity to follow the work of this filmmaker considered the greatest icon of the so called “Sixth generation” of the Chinese cinema. The audience will have free access to two debate tables, one in each city, and a 300 pages book in Portuguese and English with articles and essays written by theorists and critics on the director filmmaking. In addition, the public will be graced with the presence of the filmmaker in Brazil to give two master classes open to the public talking about his work process. In this way, CAIXA contributes to promote and spread the national culture and return to the Brazilian society the trust and support received throughout 153 years of operation in the country, with an effective partnership in the development of our cities. For CAIXA, life asks more than a bank. Life asks for investment and effective participation in the present, commitment with the future of the country, and creativity to achieve the best results for the Brazilian people.
CAIXA ECONÔMICA FEDERAL
SUMÁRIO / CONTENT
APRESENTAÇÃO / INTRODUCTION 12
JO SERFATY | Ruínas e escombros do Mundo
JO SERFATY | Ruins and rubble of the world
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MARIANA KAUFMAN | A China é aqui, agora
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MARIANA KAUFMAN | China is here, and now
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FILMOGRAFIA COMPLETA / Complete filmography
ENSAIOS / ESSAYS escritos Jia Zhangke
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A ERA DOS FILMES AMADORES ESTÁ PARA VOLTAR The era of amateur films is about to return
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CHRIS BERRY | Contextualizando Jia Zhangke
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CHRIS BERRY | Jia Zhangke in context
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escritos Jia Zhangke SOBRE A “SEXTA GERAÇÃO” Speaking of “The sixth generation”
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CECÍLIA MELLO | Realismo e intermidialidade no cinema de Jia Zhangke
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CECÍLIA MELLO | Realism and Intermediality in the cinema of Jia Zhangke
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ISAAC PIPANO | Feito leite derramado sobre a pedra
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ISAAC PIPANO | Like milk spilt on a stone
78
ERIK BORDELEAU | Em busca da vida: destruição como intercessão
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ERIK BORDELEAU | Jia Zhangke’s Still Life: destruction as intercession
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escritos Jia Zhangke EU NÃO POETIZO MINHA EXPERIÊNCIA I do not poetize my experience
FILMES / FILMS
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ONE DAY IN BEIJING
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VOLTA PRA CASA / XIAO SHAN GOING HOME
110
DU DU
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UM ARTISTA BATEDOR DE CARTEIRAS / PICKPOCKET
HERNANI HEFFNER | A estratégia Wu
HERNANI HEFFNER | The Wu strategy
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PLATAFORMA / PLATAFORM
RUY GARDNIER | Plataforma
RUY GARDNIER | Plataform
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TRECHO DE ENTREVISTA CONCEDIDA A FELIPE BRAGANÇA
Excerpt from the interview with Felipe Bragança 126
DOG’S CONDITION
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IN PUBLIC
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PRAZERES DESCONHECIDOS / UNKNOW PLEASURES
ERLY VIEIRA JR | Das histórias menores de uma geração solitária
ERLY VIEIRA JR | Minor stories of a lonely generation
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O MUNDO / THE WORLD
JULIANO GOMES | Uma arqueologia do tempo sobre O mundo
JULIANO GOMES | A time arqueology, The world
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EM BUSCA DA VIDA / STILL LIFE
CHENG-YING WANG | O legado do olhar
CHENG-YING WANG | The legacy of the view conversa entre Jia Zhangke e Hou Hsiao-Hsien
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FILME AQUILO EM QUE VOCÊ ACREDITA Film what you believe in
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DONG
JULIO BEZERRA | Um filme manifesto
JULIO BEZERRA | A manifesto film
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INÚTIL / USELESS
AMARANTA CÉSAR | Resistência: modos de usar
AMARANTA CÉSAR | Resistence: ways to wear
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OUR TEN YEARS
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24 CITY
LÚCIA MONTEIRO | A poesia do desaparecimento
LÚCIA MONTEIRO | The poetry of disappearance
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CRY ME A RIVER
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BLACK BREAKFAST conversa entre Jia Zhangke e Tsai Ming Liang
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ISTO É FICÇÃO E TAMBÉM UM DOCUMENTÁRIO This is fiction and a documentary too
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REMEMBRANCE
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MEMÓRIAS DE XANGAI / I WISH I KNEW
CAROLIN OVERHOFF FERREIRA | Memórias de Xangai
CAROLIN OVERHOFF FERREIRA | I wish I knew
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YULU
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ALONE TOGETHER
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UM TOQUE DE PECADO / A TOUCH OF SIN
VICTOR GUIMARÃES | Figuras rebeldes sobre paisagem em mutação
VICTOR GUIMARÃES | Rebel figures on a mutating landscape
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VENEZIA 70 FUTURE RELOADED
ENTREVISTA / INTERVIEW
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ENTREVISTA JIA ZHANGKE | por Jo Serfaty e Mariana Kaufman
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INTERVIEW JIA ZHANGKE
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escritos Jia Zhangke EU PRECISO DE ÁLCOOL PARA QUE MEUS PENSAMENTOS VOEM I need alcohol in order for my thoughts to fly INFORMAÇÕES / INFORMATIONS
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BIOGRAFIAS / BIOGRAPHIES
RUÍNAS E ESCOMBROS DO MUNDO JO SERFATY
APRESENTAÇÃO | JO SERFATY
“O tempo passado e o tempo futuro, o que poderia ter sido e o que foi, convergem para um só fim, que é sempre presente.” - T. S. ELIOT
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A cidade em quadro, esquadrinhada, fissurada nos vestígios do tempo; escombros do amanhã. É no fluxo dessa paisagem em transformação com memórias soterradas em montanhas de concreto, que revela-se um dos maiores cineastas contemporâneos, Jia Zhangke. Jia coloca em perspectiva a história atual da China quando escava; busca e atualiza na superfície sujeitos que vivem na corda bamba entre resquícios do antigo e a ferocidade do novo. Atento para não deixar desaparecer (mesmo que grande parte já esteja) a casa onde nasceu, sua hometown, sem nostalgia, mas dotada de certa melancolia e constatação. São os subsídios da realidade do seu país que inspiram o cineasta, que parte muitas vezes dos próprios documentários para a ficcionalização. Influenciado pelo neorrealismo italiano de Rosselini, apropria-se de uma linguagem construída por longos planos sequência, na qual lança mão de atores e não atores para criar uma composição de acontecimentos reais ao invés da pura fabulação imaginária e dramatizada. Assistir seus filmes é deixar-se levar pela inércia na história destes habitam o espaço urbano: trabalhadores de fábricas, artistas, prostitutas, batedores de carteiras. Sujeitos que não se beneficiam do crescimento econômico, que nunca viajaram de avião e ainda escutam as músicas populares chinesas ao mesmo tempo que se encantam com pop americano. Jia traz à tona e reacende memórias pessoais destroçadas. Indo além, o cineasta não só torna esses indivíduos visíveis, mas também produz com sua obra novas formas possíveis de vida, sem vitimizá-los. Criando, então, um mapa composto de brechas, singularidades dentro do imenso território (muitas vezes hostil) da nação mais populosa do mundo. Um dos mais importantes elementos que percorrem sua obra e, não à toa, alvo de interesse também para urbanistas e arquitetos, é a relação que a cidade estabelece com os corpos que por ela circulam. Evidenciado pela priorização da escolha das locações como ponto de partida para as narrativas, os parques, rodoviárias, karaokês, bares e até mesmo muralhas, dão ritmo e movimento a seus personagens. Locais esses que produzem desvios, choques e confluências em espaços públicos marcados pelo trânsito de pessoas com impressões do tempo em ebulição. Jia cria imagens a partir desses espaços contrastantes da China em crescimento e, dessa forma, nos permite pensar um mundo dotado de geografia urbana composta por ruínas, escombros, muralhas, grandes prédios modernos, onde seus personagens coexistem nesse mesmo quadro, ora indo para um lado, ora para outro. A obra do cineasta é potencializada ainda mais quando combina a impactante realidade chinesa com elementos fantásticos, rompendo o registro cotidiano documental para acender o embate que tanto marca seus filmes; o dilema entre a vida concreta e os súbitos absurdos do mundo. O cinema de Jia explora a complexidade do real em suas múltiplas contradições e faz o espectador embarcar em uma experiência poderosa e desestabilizadora, incitando reflexões como a de um prédio-foguete decolar poder ser tão crível quanto uma cidade que expulsa 1,2 milhão de pessoas para a construção da maior hidrelétrica do planeta. Jia Zhangke nos desperta de certa apatia. Talvez porque o autor, mesmo depois de premiado internacionalmente, nunca tenha deixado de afirmar sua linguagem experimental ao
APRESENTAÇÃO | JO SERFATY
chamar atenção para o cinema como um ato amador, de reinvenção e risco, inclinando-se para questões referentes aos processos de transformação das grandes metrópoles nas duas últimas décadas. Assistindo aos filmes de Jia é impossível não traçar paralelo com as cidades brasileiras. Peking, Fenyngang e Xangai poderiam ser também Rio de Janeiro, São Paulo ou Recife. Cidades, quadros, ruínas partilhadas, todas submetidas ao processo de perda de identidade e transformação descontrolada. A mostra Jia Zhangke, a cidade em quadro destaca a urgência em refletir o crescimento da metrópole contemporânea. Proporcionar esse encontro é uma oportunidade para discutir imagens que surgem e perdem-se nesse contexto em transição. Uma chance de compartilhar experiências entre espaços díspares, que encontram persistência em seus personagens pelas ruas, no passado ou no presente, na China ou no Brasil.
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RUINS AND RUBBLE OF THE WORLD JO SERFATY
INTRODUCTION | JO SERFATY
“What might have been and what has been, point to one end, which is always present.” – T. S. ELIOT
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A city presented in a picture frame, scrutinized, split in the traces of time; rubble of tomorrow. The flow of a changing landscape with memories buried in concrete mountains reveals one of the biggest contemporary filmmakers nowadays: Jia Zhangke. Jia puts the current history of China into perspective while he digs it; at its surface, he seeks and modernizes people who live on a tightrope between the vestiges of the ancient and the ferocity of the new. Attentive enough not to let the house where he was born disappear (even though most of it is already gone), his hometown has no nostalgia, but it is endowed with a certain melancholy and substantiation. These are the subsidies of the reality of his country that inspire the filmmaker, who most of the times turns his own documentaries into fiction. Influenced by the Rossellini’s Italian Neorealism, he seizes upon a language constructed by long shot-sequences, in which he makes use of actors and non-actors to create a composition of real events instead of a pure imaginary and dramatized fabled story. To watch his films is to be drawn in by the inertia in the story of those who inhabit the urban space: factory workers, artists, prostitutes and pickpockets. People who don’t benefit from the economic growth, who have never traveled by airplane and still listen to popular Chinese songs, while the American pop charms them. Jia highlights and rekindles personal memories pulled to pieces. Going further, the filmmaker not only makes those people visible, but also produces new possible forms of life with his work, without victimizing them. He creates, then, a map composed by gaps, singularities inside the immense territory (hostile, most of the times) of the most populous nation of the world. One of the most important elements that go through his work and which, not by chance, is also a target of interest to urbanists and architects, is the relation that the city establishes with the bodies circulating around it. Plainly visible thanks to the prioritization of the choice of locations as a starting point to the narratives, those parks, coach stations, karaokes, bars or even great walls set the rhythm and the movement to the characters. These places create deflections, shocks and confluences in public spaces marked by the transit of people with their impressions of an effervescent time. Jia creates images from these contrasting times in an in-growth China and, that way, he allows us to think of a world endowed with an urban geography composed by ruins, rubble, walls, big modern buildings, where his characters coexist in this same picture frame, going from one point to another. The filmmaker’s work is even more empowered when it combines the shocking Chinese reality with fantastic elements, breaking the everyday documental register to bring up the impact that marks his films: the dilemma between the concrete life and the absurd and unexpected occurrences of the world. Jia’s cinema explores the complexity of the real in its multiple contradictions and takes the spectator into a powerful and destabilizing experience, inciting reflections such as a rocket-building taking off being as believable as a city that thrusts out 1,2 million people to build the biggest hydroelectric power station of the planet. Jia Zhangke awakens us from our apathy. Maybe because the author, even after being internationally rewarded, has never failed to affirm his experimental language when
INTRODUCTION | JO SERFATY
he calls our attention to the cinema as an amateur’s act of reinvention and risk, leaning towards issues concerning the processes of transformation of large cities in the last two decades. When we watch Jia’s movies, it is impossible not to draw a comparison with some Brazilian cities. Peking, Fenyngang and Shanghai could also be Rio de Janeiro, São Paulo or Recife. Cities, picture frames, shared ruins, all of them submitted to the process of a loss of identity and uncontrolled transformation. The exhibition Jia Zhangke, the city in frame features the urge of thinking about the growth of this contemporary metropolis. To provide this meeting is an opportunity to discuss the images that appear and get lost in a transition context. It is an opportunity to share experiences in disparate spaces that find persistence in their characters along the streets, in the past or in the present time, in China or in Brazil.
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APRESENTAÇÃO | MARIANA KAUFMAN
A CHINA É AQUI, AGORA MARIANA KAUFMAN
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Jia Zhangke nasceu em 1970 na cidade de Fenyang, na província de Shanxi, em uma China ainda comandada por Mao Tsetung, em plena Revolução Cultural. Vindo de uma pequena cidade, primeiro estudou Artes Visuais pois, segundo ele, não conseguiria passar para o curso de Cinema. Mais tarde ingressou, finalmente, na prestigiada Academia de Cinema de Pequim e em 1994 fez seu primeiro curta-metragem chamado One Day in Bejing. A essa altura, a China já não era a mesma dos anos 70, passava por uma enorme transformação: saindo de um regime de economia planificada para um sistema mais aberto, que progressivamente foi incorporando mecanismos de uma economia liberal. Desde seu primeiro curta, cuja cópia se perdeu, Jia estava já falando de suas próprias incertezas e do mundo à sua volta, filmando a multidão e tumulto nas ruas da “grande Pequim” com o olhar “intrigado” de recém chegado da cidade pequena. Em seu segundo filme, o média-metragem Volta para casa (Xiao Shan huijia, 1995), Jia Zhangke narra a história de um cozinheiro, habitante de Pequim, que queria passar o réveillon em sua cidade natal. Após convidar vários amigos para acompanhá-lo nesta “volta pra casa”, termina desistindo da viagem pois nenhum deles desejava retornar aos pequenos vilarejos do interior da China. Na perspectiva do cineasta “o filme não é sobre voltar para casa mas sim sobre o desejo de querer voltar”. Quando fez seu emblemático primeiro longa-metragem Um artista batedor de carteiras (Xiao Wu), Jia tinha um roteiro pronto, porém ao chegar a Fenyang - sua cidade natal - para filmá-lo em 1997, apenas um ano depois de tê-la visitado pela última vez, encontrou uma cidade tão diferente que decidiu abandonar o roteiro e filmar esse poderoso processo de transformação acontecendo em sua cidade, em seu país. A partir disso, surgiram os longos planos-sequência que acompanham o protagonista Wu em suas andanças sem rumo pela cidade em reconstrução. Esse movimento continuo parece se relacionar com o fato de que o próprio Jia, ele mesmo, ser contemporâneo de toda essa transformação e talvez por isso não possa filmar nada que não seja o movimento. Wu é apenas um dos primeiros personagens, dentre tantos outros que Jia Zhangke viria criar nos filmes, que está à margem desse capitalismo excludente no qual mergulha a China, mas não à margem porque não compartilha bens de consumo mas à margem porque não se encaixa e não quer se encaixar nesse “modo de viver”. O grande desejo de Jia Zhangke, desde os primeiros filmes, era filmar as mudanças no momento em que elas aconteciam. Queria filmar as transformações pelas quais a China estava passando, da Revolução Cultural aos dias de hoje, a partir das vivências de seus habitantes e da rica dinâmica de destruição e reconstrução de suas cidades. A grande força do seu cinema foi ter conseguido - através da modulação dos elementos em quadro (personagens / diálogo / mise-en-cene / locação / câmera / luz etc.) – criar uma fissura temporal e espacial em cada imagem fazendo com que passado, presente e futuro se encontrem, gerando uma noção de presente que se atualiza a 24 quadros por segundo. O que está por trás do quadro nos filmes de Jia Zhangke? Está tudo na superfície, não por trás. Está tudo ali e, talvez, essa seja uma das grandes forças de seu cinema. A imagem em seus filmes é multifocal, cria infinitos pontos de atenção legando importância similar a todos elementos dessa imagem, e com isso reconfigura as relações “convencionais” entre
APRESENTAÇÃO | MARIANA KAUFMAN
figura e fundo, trazendo tudo para “a superfície”. Jia dedica a mesma atenção aos personagens e ao espaço, provocando uma tensão permanente entre esses dois vetores. Talvez porque seja claro para ele que a condição humana desses personagens, às margens das transformações da nova China global, é indissociável do espaço que os cerca: cada prédio em construção e demolição, cada rua, cada cidade, cada província chinesa, e a própria China, são partes daqueles personagens que, por sua vez, são parte dela. Somado a isso, Jia, parece buscar em todos os filmes uma espécie de “multitemporalidade”, friccionando, na mesma imagem, passado, futuro e presente e configurando, na superfície de cada quadro, tempo e espaço próprios, que parecem ser sempre o encontro entre vários tempos e espaços simultâneos. Como exemplo, podemos citar um plano-sequência no filme O mundo (Shijie, 2004) que se passa quase inteiramente dentro de uma espécie de “parque temático” (que existe de verdade em Pequim) cujo slogan é “conheça o mundo sem sair de Pequim” e onde se podem ver réplicas de mais de 100 monumentos de países do mundo todo, na maioria das vezes, em escala de 1:3. Em um determinado plano-sequência no início do filme, a personagem Tao está em um trem monotrilho falando ao telefone celular. Ela diz que está indo para Índia enquanto vemos passar, ao fundo, as pirâmides do Egito, a Torre Eiffel e alguns homens de uniforme carregando caixas. Na mesma imagem não há protagonista, a torre, a atriz, os trabalhadores ou o trem, todos conjugam significados que, concomitantemente, se somam e se chocam. Cada um dos elementos traz um dado temporal: o presente contemporâneo, o passado moderno, os mais antigos egípcios, talvez o monotrilho, que se desloca pelo parque (assim como a câmera também em movimento) engendra a idéia de futuro. Mas ao mesmo tempo em que esses personagens são parte do espaço (que é parte deles) eles rompem com seu entorno a todo momento. Enquanto as cidades estão em desconstrução e construção ininterrupta, esses personagens parecem almas suspensas, rondando um eterno não lugar, à margem dessa nova China que se forma, e o fato de jamais se encaixarem provoca uma instabilidade permanente em seus filmes. Esse embate dos personagens com o espaço talvez se radicalize no mais recente longa-metragem de Jia Zhangke Um toque de pecado (Tian zgu ding, 2013), onde a violência explícita dos personagens irrompe definitivamente nos corpos e na tela. Em contraste com, por exemplo, seu o primeiro longa Um Artista batedor de carteiras, onde a forma de violência parece ser distinta, e a revolta não fazia parte do vocabulário de possibilidades dos habitantes daquela China pós-revolução. Nesse último longa-metragem, Jia cria personagens que não só vagam desencaixados por suas cidades, mas agora interferem brutalmente no curso da sua história e do mundo que os cerca, matando, ferindo, e até acabando com suas vidas. O próprio cineasta, ao falar sobre o filme, relata que nos últimos anos os assassinatos e agressões físicas na China vêm se tornando cada dia mais rotineiros, sendo objetos permanentes de relatos nas redes sociais. Estes fatos talvez sejam parte da nova China, um país cuja principal marca já não seria o brutal processo de transformação, mas sim a brutalidade de uma sociedade desigual. Ou, ainda, podemos estar diante de circunstâncias que Zhangke, com sua habilidade de filmar o processo em movimento, possa estar captando e criando imagens sobre algo que ainda não consigamos compreender. Ao longo de 20 anos, em que Jia dirigiu em média um filme a cada dois anos, é impressionante o grau de transformação nos mais variados aspectos do cotidiano chinês que seus filmes revelam. Cidades, vestimentas, meios de transportes, eletrodomésticos, aparelhos
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APRESENTAÇÃO | MARIANA KAUFMAN 18
eletrônicos, vão se modificando de forma semelhante àquelas projeções aceleradas, muito usadas na época do cinema mudo. É impressionante perceber que um cineasta de 43 anos possa ter filmado, enquanto acontecia, uma mudança tão radical em um país continental e milenar como a China. É mais do que impressionante, parece irreal. A China tem algumas das cidades mais antigas do mundo, cidades milenares com mais de 2500 anos, e que estão sendo rapidamente destruídas, demolidas, submersas. Por exemplo, é o que se passa com a construção da hidroelétrica de Três Gargantas – a maior do mundo – como vemos nas imagens dos filmes Em busca da vida (Sanxia haoren, 2006) e Dong (2006). E é esse país, nas superfícies de suas cidades, que vivenciou uma metamorfose urbana, cultural, social, econômica, tecnológica e afetiva, no mais curto período de tempo da história mundial. Em 20 anos, a China migrou de um país isolado, fechado, comunista, agrário, para um país, mesmo ainda autoritário, de economia de mercado com a maior taxa de crescimento anual dentre as economias mundiais. Essas transformações, segundo Jia, fogem de qualquer compreensão do real ou de qualquer possibilidade de criação imagética que se poderia conceber. E a isso ele parece estar respondendo com filmes como o já mencionado O Mundo, onde as idéias de real e irreal se confundem fazendo com que a personagem dance ao lado do Taj Mahal e em seguida suba a Torre Eiffel para avistar toda Pequim. Ou então em Em busca da vida, onde o fantástico parece ser a única possibilidade de lidar com a imagem de uma cidade milenar que está, de um lado inundada, e, do outro, demolida (na região das Três Gargantas). Nesse filme, Jia Zhangke cria uma narrativa de ficção onde os personagens transitam por entre as superfícies cobertas de escombros e água até que subitamente um prédio de concreto levanta vôo como um foguete espacial, e ninguém vê, ou melhor ainda, ninguém se choca com algo que parece tão banal diante do impossível que são as imagens dessas cidades prestes a desaparecer. Essa cena, do quinto longa-metragem de ficção do cineasta, pode ser vista como uma síntese de seu cinema na medida em que, ao mesmo tempo, mostra seu engajamento em filmar a transformação em seu país enquanto ela acontece e também revela que, para fazer isso, a realidade e ficção se confundem. Nas próprias palavras de Jia: “Como uma arte da ficção, um filme tenta apresentar a realidade e, ao contrário do que se poderia pensar, apresentar a realidade é um ato de imaginação”. Nessa cena, ou em tantas outras dos filmes de Jia Zhangke, como é o caso da cena de Prazeres desconhecidos (Ren xiao yao, 2002) em que a população festeja nas ruas o anúncio de que Pequim seria a sede das Olimpíadas de 2008, podemos perceber a relação que se estabelece de seu cinema com o Brasil de hoje. O crescimento econômico brasileiro, decorrente de uma conjuntura global específica, somadas às políticas internas de fortalecimento do mercado nacional, e a conjugação com o mercado e o capital estrangeiro, juntamente com os megaeventos como a Copa do Mundo, e as Olimpíadas de 2016 no Rio de Janeiro tornaram o país um grande foco de atenção do mundo. Como resultado, temos a especulação imobiliária, a alta dos preços, a reconstrução de áreas da cidade e o incentivo ao turismo sem precedentes no país. É importante ter em conta que o processo chinês, desde o fim da Revolução Cultural, e o processo brasileiro são absolutamente distintos. Assim como são distintas suas sociedades, suas culturas, suas trajetórias políticas e econômicas. No entanto, é impossível não perceber que o Brasil, outro país continental, e, historicamente mais “pobre” do que os chamados “países desenvolvidos”, apresenta semelhanças com a China em relação às transformações
APRESENTAÇÃO | MARIANA KAUFMAN
que alteram diretamente a vida de seus habitantes e suas configurações urbanas. Não só as cidades, tradições, culturas e povos, desaparecendo submersos no fundo do mar, mas também as cidades em pleno processo de transfiguração, prédios demolidos, áreas inteiras desabitadas para darem lugar a novos prédios, choque de ordem atropelando as “pequenas culturas” e tantos outros processos. Por isso, essa mostra não teria o mesmo significado há três anos, e nem terá daqui a três anos. Essa mostra acontece agora, depois de junho de 2013, menos de um mês após o fim da Copa e a exatos dois anos do início das Olimpíadas. Ela possibilita que, através do contato com a obra, a possibilidade de reflexão a partir desses textos e a presença viva e concreta de Jia Zhangke no Brasil, possamos criar, quem sabe, uma fissura, mesmo que ínfima, em nossa própria história, recriando a nós mesmos, em nossas brutais transformações de agora. Para a mostra tentamos trazer todos os filmes nos formatos que pareceram mais fiéis ao original, exibindo todos os longas, quase todos os curtas e também um documentário do cineasta Damien Ounorri sobre o processo de criação do cineasta. Em paralelo, teremos duas mesas de debate com alguns dos pesquisadores que participaram deste catálogo. Ao longo do livro (bilíngue) criado para a Mostra Jia Zhangke, a cidade em quadro, tentamos proporcionar uma viagem sobre e a partir dessa obra. São mais de 15 textos inéditos escritos por autores (brasileiros e estrangeiros) que, de forma geral, já vêm se debruçando sobre sua obra ao longo dos anos. Alguns artigos já escritos, selecionamos e traduzimos por considerá-los importantes para se pensar a obra do cineasta. Além disso, uma entrevista inédita que fizemos por e-mail e escritos do próprio Jia publicados na China e na França (que nunca haviam sido traduzidos nem para o inglês nem para o português). Esses escritos incluem conversas com dois outros dos maiores cineastas chineses do mundo atual (taiwaneses) e que são, segundo Jia, duas de suas grandes referências, Hou Hsiao Hsien e Tsai Ming Liang. Dessa forma, acreditamos que cada espectador/leitor tem a chance de entrar nesse universo “Jia Zhangkeniano”, por caminhos distintos, podendo realizar um mergulho nessa obra complexa através de múltiplos pontos de vista. A ideia aqui, portanto, é de que possamos ter um instante de contato entre nós (todos os autores desse livro), o próprio cineasta e os leitores do livro. É quase como uma quarta dimensão, o gesto dos corpos no filme, o gesto fílmico do cineasta sobre a obra, o gesto de cada um dos autores dos textos que compõe este catálogo e o gesto de curadoria que tenta, de alguma forma, trazer à tona o tempo presente desses gestos todos em um encontro, em cada sessão da mostra, em cada página do livro e no encontro real e vivo com o próprio Jia Zhangke. Que venha Jia Zhangke e que possamos aprender muito com isso.
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INTRODUCTION | MARIANA KAUFMAN
CHINA IS HERE, AND NOW MARIANA KAUFMAN
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Jia Zhangke was born in 1970, in the city of Fenyang, Shanxi province, China. At that moment, Mao Tsetung ruled the country, and Cultural Revolution was taking its place. Coming from a small town Zhangke first studied visual arts because, according to himself, he did not trust enough his own capacity to get into a movie school.A few years later, he finally joined the prestigious “Beijing Film Academy”. In1994,he shot his first short film called One day in Beijing. At this point, China was no longer the same it used to be in the 70s, and was going through a huge transformation: the country was leaving a system of planned economy to a more open system, which progressively incorporated mechanisms of a liberal economy. Since his first short movie, of which the only existent copy was lost, Jia was discussing his own uncertainties the moment of the world around him. He filmed the crowd and the turmoil in the streets of the “big Beijing” with the “puzzled” look of a newcomer from a small village. In Xiao Shan Going Home (Xiao Shan Huijia, 1995), his second movie, Jia Zhangke tells the story of a cook that lived in Beijing and who wanted to spend New Year’s Eve in his hometown. After inviting several friends to join him on his journey back home, he gives up because none of them wanted to return to their villages in the chinese countryside. According to the filmmaker, “the film is not about going back home, but about the desire to do so.” When directing the emblematic Pickpocket, Jia had a finished script, but after travelling to Fenyang - his hometown – to shoot it in 1997, only one year after his last visit, he decided to abandon the script and to register the powerful process of transformation that was happening in the city and in the country as a whole instead. From then on, he conceived the long sequence-plans that accompanied Wu, the protagonist, in his wanderings through an environment that is under reconstruction. This continuous movement seems related to the fact that Jia himself is contemporary to all this change - and, perhaps, this is the reason why he cannot shoot anything other than movement. Wu is just one among many characters by Jia Zhangke that happens to be marginalized by the capitalist system to which China is transitioning to. Wu is not an outsider because he does not own consumer goods, but because he does not fit (and does not want to fit) into this “way of life”. The great ambition of Jia Zhangke, since his earlier movies, was to register changes at the moment they happened. He wanted to film the transformations that China was going through since the Cultural Revolution until our days, departing from the inner experiences of its inhabitants and the rich dynamics of destruction and rebuilding of the cities. The great strength of his is achieving, through the modulation of the elements on screen (characters / dialogue /mise-en-cene / lease / camera / light etc.) – to create a spatial and temporal fissure in each image, making past, present and future meet, creating a notion of present that is updated at 24 frames per second. What is behind the frame in the films of Jia Zhangke? It is all on the surface, not behind. It is all there, and maybe that is one of the great strengths of his movies. The image in his films is multifocal, creating infinite points of attention and giving similar importance to all elements of this image. It reconfigures the “conventional” relationships between figure and background, bringing everything to the “surface”. Jia devotes equal attention to characters and space, causing permanent tension between these two vectors. Maybe because it’s clear to him that the human condition of these characters, outsiders of the transformations of the
INTRODUCTION | MARIANA KAUFMAN
new, global China, is inseparable from the space around them: each building under construction or under demolition, every street, every city, every Chinese province, and China itself, are parts of those characters who, in turn, are part of it. Added to this, Jia, seems to seek in every film a kind of “multitemporality”, bringing past, present and future together in the same picture, and setting, on the surface of each frame, a time and space of his own that always seem to be the meeting between multiple time lapses and simultaneous spaces. As an example we could mention a sequence shot in The World (Shijie, 2004) which takes places almost entirely inside some kind of “theme park” (which actually exists in Beijing) whose slogan is “get to know the world without leaving Beijing”, where you can see replicas of over 100 monuments from all around the world, most of them in 1:3 scale. In a particular sequence shot in the beginning of the movie, character Tao is in a monorail train talking on her cell phone. While she says that she is going to India, we can see in the background the pyramids of Egypt, the Eiffel Tower and some uniformed men carrying boxes. In this image, there is no protagonist: the tower, the actress, the workers or the train, they all combine meanings that simultaneously add together and clash against one another. All the elements carry different temporal data: contemporary present, modern past, ancient Egypt. And maybe the monorail, travelling through the park (as the moving camera) engenders the idea of the future. However, while these characters are part of the space (which is also part of them) they disconnect from their environment all the time. As cities are in continuous construction and deconstruction, these characters seem suspended souls, prowling in an eternal non-place on the edges of this new China that is building up – and the fact that they never fit creates a permanent instability in his movies. This tension between characters and space might be more radical in A Touch of Sin (Tianzguding, 2013), where the explicit violence of the characters erupts on the bodies and on the screen, in contrast to, for example, Pickpocket, his first long feature, in which violence seems to manifest itself in a different way, and when “revolt” was not yet part of the vocabulary of possibilities of the inhabitants of post-revolution China. In this last feature film, Jia creates characters that roam not only separated from their hometowns, but that are now brutally interfering in the course of their history and the world around them, killing, injuring, and even putting an end to their own lives. The filmmaker himself, when talking about the movie, reports that in the recent years the murders and beatings in China are becoming routine, and are frequently reported on social networks. These facts may be part of the new China, a country whose main characteristic is no longer a brutal transformation process, but the brutality of an unequal society. Alternatively, circumstances might be such that Zhangke, with his ability to shoot the ongoing process, is creating on and registering something and that we are not able to understand yet. For 20 years, Jia directed a movie in every two years. The amazing degree of transformation, in all aspects of the Chinese daily life, is visible in his films. Cities, clothing, transportation, home appliances and electronic gadgets change as fast as those accelerated projections, much used in silent film era. It is amazing to realize that a 43-year-old filmmaker may have filmed such a radical change in a continental, millennial country like China. It is more than impressive: it feels unreal. China has some of the oldest cities in the world, millennial cities of over 2500 years that are being rapidly destroyed, demolished and submerged. This happens, for example,
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on the occasion of the construction of the Three Gorges Dam - the world’s largest hydroelectric plant - as we see in the images of Still Life (2006) and Dong (2006). This country experienced, on the surface of its cities, the quickest urban, cultural, social, economic, technological and emotional metamorphosis ever seen in history. In 20 years, China has shifted from an isolated, closed, communist and agrarian country into a market economy, with the highest annual growth rate among the world’s economies, although its political system remains authoritarian. These changes, according to Jia, escape from any understanding of reality or creation of imagery one could possibly conceive. He seems to be responding to this with films like The World, in which the ideas of real and unreal mix together, which is specially clear in a scene during which the protagonist dances at the side of the Taj Mahal before climbing up the Eiffel Tower from where she can see all over Beijing. Or in Still Life (Sanxia Haoren) where the fantastic seems to be the only way to deal with the image of an ancient city, which is half flooded and half demolished (in the Three Gorges region). In this film, Jia Zhangke creates a fictional narrative, where the characters move through the surfaces covered with debris and water, until suddenly a concrete building rises like a rocket ship. No one sees, or even better, no one is even shocked with something that seems so banal in contrast to the impossible reality constituted by the images of the cities that are about to disappear. This scene, from the filmmaker’s fifth feature film, could be seen as a synthesis of his cinema, as it demonstrates commitment of the filmmaker regarding the documentation of the ongoing transformation of his country and, at the same time, reveals that for doing so, reality and fiction need to be mixed together. In the words of Jia: “As an art of fiction, a movie tries to present reality and, contrary to what one might think, the presenting of reality is an act of imagination”. In this scene, or in many others of Jia Zhangke’s cinematography, such as one in Unknown Pleasures (Renxiaoyao, 2002) in which the masses are celebrating the announcement that Beijing would host the 2008 Olympics, we can see the relation established between his cinema and Brazil nowadays. The Brazilian economic growth, due to a specific global environment, coupled with internal market policies, and the combination with foreign market and capital, along with the mega-event like the World Cup and the 2016 Olympics in Rio made the country a major focus of worldwide attention. As a result, we have a growth in property speculation, a major rise on the cost of living, the rebuilding of areas of the city and the encouragement of tourism as never seen in the country before. It is important to note that the Chinese case, since the endings of the Cultural Revolution, and the Brazilian process are completely distinct from each other. So are their societies, cultures, political and economic trajectories. However, it is impossible not to notice that Brazil, another continental country, and historically “poorer” than the so-called “developed countries”, shows similarities with China, especially when it comes to the changes that directly affect the lives of its inhabitants and their urban settings. Their similarities are not only the cities, traditions, cultures and peoples, that are about to submerge under the sea, but also the cities going under a process of transfiguration, with the demolishing of buildings, the displacement of populations to make way for new buildings, the rise of police repression, especially towards small cultural manifestations, and many other processes. This exhibition would not have the same meaning three years ago and will not have the same meaning three years from now. This exhibition happens now, after June 2013, less
INTRODUCTION | MARIANA KAUFMAN
than a month after the end of the World Cup, and exactly two years before the beginning of the Olympics. It makes place for a meditation through these texts and the living, concrete presence of Jia Zhangke in Brazil. Maybe we can create a fissure, even a very small one, in our own history, recreating ourselves, in our brutal current transformations. For the exhibition, we tried to present the films in their most faithful formats - all the long features, almost all short features and also a documentary by Damien Ounorri on the creative process of the filmmaker. In parallel, we’ll have two discussion tables in the presence of some of the researchers who participated in this catalogue. Throughout the bilingual -book created especially for the ocasion, we try to provide an exploration on the filmmaker’s work. There are more than 15 texts, never published before, written by Brazilian and foreign authors that have been focused on his work over the years. We selected and translated some of the articles we considered more important regarding the ensemble of the works of the filmmaker. In addition, we have published an interview we made by via email and some of Jia’s own writings, already published in China and in France, but never before translated into English or into Portuguese. These writings include his conversations with two other major Chinese (Taiwanese) filmmakers who are, according to Jia, two of his great references: Hou Hsiao Hsien and Tsai Ming Liang. We hope that each viewer/reader has a chance to enter this “Zhangkenian” universe by different paths - and that they can dive into this complex work from multiple points of view. The present idea is that we can share a moment between all of us, which includes all the authors of this book, the filmmaker himself and also the readers. It’s almost as a fourth dimension, the gesture of the bodies in the film, the filmic gesture of the director, and the gesture of each of the authors of the texts that make up this catalog. Finally, there’s the curatorial gesture that somehow tries to bring together of all these gestures in a meeting, in each session of the exhibition, on every page of the book and with Jia Zhangke in person. Hopefully we’ll be able to learn a lot from Jia Zhanke’s presence.
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FILMOGRAFIA COMPLETA / COMPLETE FILMOGRAPHY
ONE DAY IN BEIJING 1994 / 15 min / VHS-C VOLTA PARA CASA Xiaoshan huijia / Xiao Shan Going Home 1995 / 58 min / VHS-C DU DU 1996 / 50 min / VHS-C UM ARTISTA BATEDOR DE CARTEIRAS Xiao Wu / Pick Pocket 1997 / 108 min / 16 mm PLATAFORMA Zhantai / Platform 2000 / 151 min / 35 mm DOG’S CONDITION Gou de zhuangkuang 2001 / 6 min / DV IN PUBLIC Gong gong chang suo 2001 / 30 min / DV PRAZERES DESCONHECIDOS Ren xiao yao / Unknown Pleasure 2002 / 112 min / HDCM O MUNDO Shijie / The World 2004 / 133 min / HDCM EM BUSCA DA VIDA Sanxia haoren / Still Life 2006 / 108 min / HDCM DONG 2006 / 70 min / HDCM
INÚTIL Wuyong / Useless 2007 / 80 min / HDCM OUR TEN YEARS Women de shi nian 2007 / 9 min / HDCM 24 CITY Er shi si cheng ji 2008 / 112 min / HDCM CRY ME A RIVER 2008 / 20 min / HDCM BLACK BREAKFAST 2008 / 5 min / HDCM REMEMBRANCE 2009 / 12 min / HDCM MEMÓRIAS DE XANGAI Hai shang chuan qi / I Wish I Knew 2010 / 138 min / Digital RED ONE YULU 2011 / 88 min / Digital RED ONE ALONE TOGETHER (3.11 A SENSE OF HOME FILMS) 2012 / 3min / Digital RED ONE UM TOQUE DE PECADO Tian zgu ding / A Touch of Sin 2013 / 128 min / Digital ALEXA VENEZIA 70 FUTURE RELOADED 2013 / 3 min / Digital ALEXA
ENSAIOS / ESSAYS
JIA ZHANGKE | A ERA DOS FILMES AMADORES ESTÁ PARA VOLTAR
ESCRITOS | JIA ZHANGKE
Southern Weekend, 1999
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Em Busan, em um restaurante afastado do centro da cidade, conversei sobre cinema com Tony Rayns, crítico da revista inglesa Sight and Sound. Apesar de meu cansaço, foi uma entrevista muito agradável. Longe do tumulto do festival, nós nos concentramos no passado, no presente e no futuro do cinema. Quando ouvimos o barulho da maré subindo, nossa conversa já chegava ao fim. Não sei o porquê, mas as discussões sobre cinema frequentemente me afundam em melancolia. Para me salvar desse humor, Tony me perguntou: “Para você, qual é a força motora que fará o cinema evoluir?” Eu lhe respondi sem pensar: “A era dos filmes amadores está para voltar. É minha impressão mais vivaz. Toda vez que me perguntam das perspectivas do cinema, eu insisto nesse ponto. Decerto, eu coloco assim em questão aqueles que chamamos de “profissionais do cinema”. Esses profissionais, que enxergam os princípios da profissão como regras absolutas e fazem brilhar ardentemente seus potenciais de mercado, perderam há muito tempo a capacidade de pensar. Em seus filmes, desejam acima de tudo depositar suas pretensas habilidades profissionais. As imagens devem, por exemplo, ser tão sofisticadas quanto pinturas a óleo, e a direção de arte digna de Antonioni. Eles se empenham incansavelmente na identificação das personalidades do meio, e têm o cuidado de recusar categoricamente toda iniciativa profana de não blasfemar os clássicos oficiais. A consciência e a sinceridade exigidas pelo cinema são embotadas dessa forma.” O que resta então? Os conceitos estereotipados, a prevalência do a priori, os preconceitos inflexíveis. Esses profissionais não são em nada sensíveis à novidade, são mesmo incapazes de julgá-la, mesmo se dizem, frequentemente, uns aos outros, que é necessário não se repetir, que é necessário inovar. Em verdade, há muito tempo alguns diretores demonstraram vigilância a esse respeito. Há dez anos, Kieslowski dizia que era um amador do Leste Europeu. Não creio que ele tenha formulado essa declaração em um surto de modéstia. De seu discurso prudente emana uma força que lhe confere a autonomia e a autoconfiança. Ao longo de toda sua vida, Kurosawa, que acaba de falecer, insistiu: “Dirigi inúmeros filmes, mas ainda não sei o que é o cinema; ainda estou à procura de sua beleza própria.” Um membro do júri dessa edição do Festival de Busan, o diretor japonês Kôhei Oguri explicou, não sem uma certa inquietude, que o nível técnico do cinema asiático se desenvolveu muito ao longo dos últimos dez anos, que alcançava praticamente o nível mundial, mas que o espírito artístico se encontrava em muito degradado. Antes disso, à ocasião da seleção de filmes do Festival de Hong Kong, um membro do júri, Wong Ain-Ling, havia declarado que “por trás das fábulas dos filmes de grande orçamento se esconde uma perda de confiança na cultura.” Em tal contexto, o Festival de Pusan aumentou o interesse pelos filmes asiáticos independentes. Entre os doze filmes na competição, a maior parte foi de novas produções de novatos que nada deviam em originalidade. Graças a esse critério de seleção, o festival atraiu a atenção do mundo inteiro. Em três anos, o Festival de Busan obscureceu o Festival de Tóquio. O motivo é evidente.
JIA ZHANGKE | THE ERA OF AMATEUR FILMS IS ABOUT TO RETURN
In Busan, in a restaurant far from the center of the city, I talked about cinema with Tony Rayns, a critic from the british magazine Sight and Sound. Despite my fatigue, it was a very pleasant interview. Remote from the bustle of the festival, we concentrated on the past, the present and the future of cinema. When we heard the sound of the rising tide, our conversation was already coming to an end. I don’t know why, but discussions on cinema frequently leave me melancholic. To save me from this mood, Tony asked me: for you, what is the driving force that will make cinema evolve? I answered him without thinking: the era of amateur films is about to return. It is my most vivacious impression. Every time they ask me my perspectives on cinema I insist on this point. Certainly, I am placing in question those that we call “cinema professionals”. These professionals, who see the principles of the profession as absolute rules and make their market potentials shine brightly, have lost their capacity to think a long time ago. In their films, they wish more than anything else to place their supposed professional abilities. The images must, for example, be as sophisticated as oil paintings, and the art direction worthy of Antonioni. They struggle tirelessly in identifying the personalities of the field, are careful to categorically refuse any profane initiative, and not to blaspheme the official classics. The awareness and sincerity demanded by cinema are in this way dulled. What is left, then? The stereotyped concepts, the prevalence of the a priori, the inflexible prejudices. These professionals are in nothing sensible to what is new, are in fact incapable of judging it, even if they say, frequently, to each other, that it is necessary not to repeat yourself, that it is necessary to make it new. In truth, a long time ago some directors displayed vigilance about this. Ten years ago, Kieslowski said that he was an Eastern European amateur. I do not believe he formulated this sentence in a bout of modesty. From his prudent discourse there emanates a force that gives it autonomy and self-confidence. Throughout his life, Kurosawa, who just passed away, insisted: “I have directed countless films, but I still do not know what is cinema; I am still looking for its own beauty.” A member of the jury of this edition of the festival of Busan, the japanese director Kôhei Oguri explained, not without a certain inquietude, that the technical level of asian cinema has developed a lot throughout the last ten years, that it had practically reached the world’s level, but the artistic spirit found itself very degraded. Before that, at the occasion of the selection of films for the Festival of Hong Kong, a member of the jury, Wong Ain-Ling, had declared that “behind the fables of the big budget films there hides a loss of confidence in culture”. In such a context, the Festival of Pusan has raised the interest in independent asian films. From the twelve movies in the competition, most were new productions from rookies that owed nothing in originality. Thanks to this criterion of selection, the festival attracted the attention of the whole world. In three years, the Festival of Busan has overshadowed the festival of Tokyo. The reason is evident. This year, “Asian cinema during the economic crisis” was an important discussion
WRITINGS | JIA ZHANGKE
Southern Weekend, 1999
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ESCRITOS | JIA ZHANGKE 30
Nesse ano, “O cinema asiático durante a crise econômica” foi um ponto de discussão importante do Festival de Busan. Além das razões econômicas, da invasão de Hollywood e a globalização das tendências puseram à prova o cinema de todas as nações asiáticas. Durante a coletiva de imprensa concedida a respeito de Um artista batedor de carteiras (Xiao Wu, 1997), relatei que, após minha chegada à Coréia do Sul, eu havia ligado a televisão e, por satélite, encontrado a mesma televisão que em Pequim. Foi uma decepção. Em alguns anos, todos os jovens asiáticos cantarão a mesma canção, apreciarão o mesmo estilo de indumentária. As moças usarão a mesma maquiagem, a mesma bolsa. Em que mundo vivemos?! Em tal atmosfera cultural, apenas os filmes independentes, que enfatizam a cultura local, são capazes de oferecer vias divergentes. Cada vez mais creio que, na diferença que o ser humano pode alcançar, não há mais do que a comunicação, o equilíbrio entre posições distintas. Uma tendência mundial da moda deixaria o mundo asséptico e monótono. Em seguida, argumentei que sempre durante os períodos difíceis, quando a indústria do cinema encontrava-se em depressão e que a confiança na cultura se enfraquecia, o cinema independente se prestava à restabelecer a cultura, graças a seu espírito crítico, introspectivo, e a sua potência de inovação que exclui todo modelo imutável. Consequentemente anunciei: “A era dos filmes amadores está para voltar.” Os amadores são pessoas cujas aspirações cinematográficas não podemos reprimir. Porque visam a uma forma de cinema cujo escopo é mais profundo e distante, eles naturalmente ultrapassaram as formas de avaliação inerentes ao meio. Os filmes desses são frequentemente inesperados, mas suas representações de sentimentos recaem sempre da forma mais precisa. Ao recusarem-se a seguir as normas da profissão, constituem uma noção e valores de pluralismo. Ao posicionarem-se além da rotina e do excesso, criam um horizonte mais vasto. Eles mantêm firmemente a consciência e a conduta dos intelectuais, o que lhes dá confiança e profundidade. Entre eles figuram Godard, diretor de Acossado e Buñuel, diretor de A Idade do Ouro. Também Rohmer e Fassbinder, que foi rejeitado pelo Institut Du Cinema. Polanski disse certa vez que, segundo ele, todos os filmes da Nouvelle Vague eram obras de amadores. Esse especialista arrogante não compreendeu que esses trabalhos de amadores geniais trouxeram ao cinema infinitas possibilidades novas. Esses acontecimentos se sucederam já faz vinte anos. E hoje em dia? É difícil imaginar que o Quentin Tarantino chinês não surgirá da multidão, passando seu tempo nas lojas de CDs piratas. Da mesma forma, você teria dificuldade de argumentar que o Shinsuke Ogawa contemporâneo não faria parte dos jovens que se utilizam do vídeo digital. O cinema não pode mais ser um privilégio reservado a poucos. Ele pertence, por princípio, a todo mundo. Em Xangai, estive em contato com uma multidão de amadores do cinema. Esses amigos, que vivem do reparo de aviões ou da criação de publicidades, anunciam, quiçá, o futuro do cinema chinês. Sempre senti aversão ao sentimento de superioridade dos membros da profissão. No entanto, os amadores estão ávidos por igualdade e justiça; eles se ocupam de nossa condição e da compaixão pelas pessoas comuns.
WRITINGS | JIA ZHANGKE
point on the Festival of Busan. Besides the economic reasons, the invasion of Hollywood and the globalization of tendencies have put the cinema of all asian nations to a test. During the press conference given about Pickpocket (Xiao Wu), I told of how after arriving in South Korea, I had turned the television on and, through the satellite, found the same television that I found in Beijing. It was a disappointment. In a few years, all of asian youth will sing the same song, enjoy the same style of clothing. The girls will use the same make up, the same handbag. In what world do we live in?! In such a cultural atmosphere, only independent films, that emphasize local culture, are capable of offering alternative ways. I believe more and more in the difference that the human being can achieve, there is nothing more than communication, equilibrium between distinct positions. A global fashion tendency would leave the world aseptic and monotonous. Then, I argued that always during difficult periods, when the industry of cinema finds itself in depression and the confidence in culture is weakened, independent cinema provides a re-establishment of culture, thanks to its critical, introspective spirit, and its potency for innovation that excludes every immutable model. Consequently I announced: “the era of amateur films is about to return.â€? Amateurs are people whose cinematographic aspirations cannot be repressed. Because they aim at a form of cinema which has a more profound and distant scope they naturally exceed the forms of evaluation inherent to the medium. Their films are frequently unexpected, but their representations of feeling always fall in the most precise way. By refusing to follow the norms of the profession, they constitute a notion and pluralistic values. By positioning themselves beyond the routine and the excess, they create a vaster horizon. They firmly keep the awareness and the conduct of intellectuals, which gives them trust and profundity. Among them figure Godard, the director of Breathless and BuĂąuel, the director of The Golden Age. Also Rohmer and Fassbinder, who were rejected by the Institut Du Cinema. Polanski said at some point that, according to him, all Nouvelle Vague movies were the work of amateurs. This arrogant specialist did not understand that these works of brilliant amateurs brought to the world infinite new possibilities. These events have happened twenty years ago already. And today? It is hard to imagine that the chinese Quentin Tarantino will not come from the crowds, passing his time in the bootlegged CD stores. In the same way, you will have difficulty arguing that the contemporary Shinsuke Ogawa would not be a part of the kids that use digital video. Cinema can no longer be a privilege reserved to a few. It belongs, as a principle, to everyone. In Shanghai, I have been in contact with a multitude of cinema amateurs. These friends, who make a living repairing airplanes or in advertising, may announce the future of chinese cinema. I have always felt aversion to the feeling of superiority coming from members of the profession. And yet, the amateurs are avid for equality and justice; they occupy themselves with our condition and with compassion for ordinary people.
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CONTEXTUALIZANDO JIA ZHANGKE CHRIS BERRY
ENSAIOS | CHRIS BERRY
Jia Zhangke é um diretor excepcional. Quando o chamo de “excepcional”, não quero dizer com isso que ele é apenas um excelente diretor, embora ele o seja sem dúvida nenhuma! Eu também quero dizer que ele é uma figura atípica, que se destaca com excepcionalidade como indivíduo e em seu próprio meio de atuação. Neste breve ensaio, destaco quatro aspectos que resumem a mencionada excepcionalidade de Jia. Em primeiro lugar, é preciso considerar a sua história de vida. Ele é geralmente considerado simplório, aquele cara típico de uma cidadezinha do interior. Realmente, é verdade que ele tem origem em uma cidade pequena, mas ele é um sujeito muito mais culto e cosmopolita, que um sujeito tipicamente oriundo de pequenas cidades, longe dos grandes centros urbanos. E por quê? Porque em segundo lugar ele é atípico e brilhante entre os seus pares. Ele não foi membro da turma de diretores de 1989, na Academia de Cinema de Pequim, que é a qualificação normalmente exigida para fazer parte da chamada “Sexta geração” dos diretores chineses. Sendo assim, como é possível que Jia seja ainda considerado como um associado desse seleto grupo? Em terceiro lugar, os seus filmes são realmente notáveis. Jia é celebrado como o diretor que iniciou o estilo do chamado “realismo flagrante” do cinema independente Chinês contemporâneo. No entanto, esse que é considerado um membro desse importante movimento realista do cinema, é também o diretor de longas cujo caráter, mais acentuadamente, se distancia desse realismo. Finalmente, além de tudo isso, Jia é também considerado o rei do cinema independente. Porém, considerando a definição na China do que caracteriza ser independente, Jia também deixou de ser independente há muito tempo.
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Um cara culto vindo do interior As pessoas têm se atentado às origens de vida e o histórico de Jia, desde os seus primeiros filmes. Esses trabalhos estavam inicialmente focados ou associados a Shanxi, sua província de origem, no norte da China central, e geralmente também relacionados a sua cidade natal de Fenyang, com menos de meio milhão de pessoas. O curta-metragem, Volta para casa (Xiao Shan huijia, 1995), foi filmado em Pequim, mas o protagonista Xiao Shan é um trabalhador que havia migrado, e tentava conseguir dinheiro para comprar a passagem de volta para casa, e visitar a família no Ano Novo chinês, em Fenyang. Esse filme obteve a primeira premiação no Prêmio Independente de Cinema e Vídeo de Hong Kong, e com ele Jia conseguiu recursos suficientes para lançar a chamada “trilogia da cidade natal.” Seu filme de estreia, Um artista batedor de carteiras (Xiao Wu, 1997) e, depois, o segundo filme, Plataforma (Zhantai,2000) foram filmados em Fenyang. O filme seguinte, Prazeres desconhecidos (Ren xiao yao, 2002), foi feito na cidade de Datong, um pouco maior que Shanxi. Mesmo quando a província de Shanxi finalmente deixou de ser cenário para os seus filmes, como em O mundo (Shijie, 2004), que se passa em um parque temático supostamente localizado na periferia de Pequim, seus personagens principais ainda eram migrantes de Shanxi. Embora muitos de seus filmes mais recentes o tenham levado para ainda mais longe dali, e já tendo sido inclusive divulgado que o próximo filme, sua primeira produção internacional, será filmado na Austrália, as referências a sua terra natal permanecem em muitos filmes. Sendo assim, sua própria filmografia parece chamar a atenção continuamente para sua
ENSAIOS | CHRIS BERRY
origem. E em um país onde a maioria dos cineastas tem uma bagagem cultural bem mais cosmopolita e refinada, o fato de Jia ser oriundo de uma cidade como Fenyang já é por si só, um fato excepcional. Todos os três filmes da “trilogia cidade natal” são considerados como, aquilo que é conhecido hoje em dia, filmes que se referem a uma geração apática. Xiao Wu, o protagonista epônimo de Um artista batedor de carteiras, é um batedor de carteiras que simplesmente não consegue se regenerar, e encontrar um novo lugar na promissora economia que começa a florescer no mercado local. Plataforma segue os esforços de um grupo de música e dança anteriormente patrocinado pelo Estado, enquanto eles tentam criar novos números e formas de entretenimento para o público, de maneira que as pessoas queiram realmente pagar para assistir aos shows. E os dois personagens principais de Prazeres desconhecidos são jovens desempregados e sem perspectivas. Outros filmes mais recentes, como Volta para casa, O mundo e Em busca da vida, acompanham trabalhadores migrantes, pertencentes a uma nova classe que surgiu com a economia de mercado, desde a década de 1990, e estão entre os cidadãos mais desfavorecidos da China. Jia Zhangke sentiu claramente uma forte afinidade com esta “população irresoluta, indeterminada”, e chegou mesmo a afirmar que ele se vê como um cineasta migrante, no mesmo sentido. Todos esses aspectos em conjunto, ou seja, os filmes de Jia e suas declarações, fazem com que muitos entendam que o cineasta seja provavelmente proveniente de uma família muito humilde. A ideia de que um sujeito considerado simplório, vindo do interior, venha a se tornar um dos cineastas chineses mais refinados e reconhecidos, ganhando prêmios em festivais internacionais como Veneza e Cannes, é um prato cheio para a imprensa. Mas isto não é tudo. Porque, em termos de formação, Jia não é apenas uma exceção à linhagem de cineastas comumente associada a uma elite. Ele também é uma exceção ao próprio conceito usualmente estabelecido quanto a natureza de um cara típico de uma cidadezinha do interior. É verdade que Jia nasceu em Fenyang em 1970, e foi criado lá. Mas a bagagem cultural de sua família é ampla e substancial. Então, como é que eles acabaram em um lugar tão atrasado e remoto como Fengyang? A experiência de seu avô como um cirurgião na Europa teria tornado toda a família suspeita, tendo em vista a perspectiva xenófoba que tomava a China após a Revolução de 1949, e eles foram enviados para Fenyang como um castigo. Sob este aspecto, as suas origens se assemelham a história de Zhang Yimou. Enquanto os outros membros da chamada “Quinta geração” de cineastas chineses, notadamente Chen Kaige e Tian Zhuangzhuang, vieram de famílias que faziam parte da elite comunista e, muitas vezes já faziam parte da indústria do cinema, a família de Zhang tinha sido punida porque um de seus tios era associado aos nacionalistas de Chiang Kai-shek, inimigo mortal de Mao. Apesar de ter crescido em condições humildes, junto a famílias de origem mais simples, tanto Zhang quanto Jia tiveram acesso a muita educação cultural em casa. Quando Jia não passou no vestibular, porque suas notas de matemática não era altas o suficiente, essa bagagem cultural o ajudou a conseguir uma vaga na escola de artes, na capital da província de Taiyuan. Foi durante o período em que esteve em Taiyuan, no final da década de 80, que Jia Zhangke se deparou acidentalmente com uma exibição do inovador filme da chamada “Quinta geração”, Yellow Earth, dirigido por Chen Kaige, e com direção de fotografia de Zhang Yimou. Essa foi uma experiência que mudou a vida de Jia, e, finalmente o conduziu a Academia de Cinema de Pequim. Entretanto, também nesse momento, ele se tornou uma figura incomum. Para entender o motivo disso, vou precisar explicar um pouco sobre a ideia
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de “gerações” no cinema chinês e porque Jia é, ao mesmo tempo, um líder da sua geração e uma exceção entre seus pares.
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O antilíder e, ao mesmo tempo, participante da “Sexta geração” do cinema chinês As pessoas começaram a falar de gerações de cineastas chineses na década de 80. A República Popular só tinha uma escola de cinema, a Academia de Cinema de Pequim, e ela tinha sido fechada por uma década durante a Revolução Cultural. Dessa forma, quando os cineastas mais jovens começaram a dirigir seus primeiros filmes na década de 80, havia uma diferença marcante entre eles e os seus antecessores. Naquela época, a Academia de Cinema de Pequim não aceitava estudantes todos os anos. Eles primeiro aceitavam um determinado grupo de alunos, os educava e formava, e depois aceitavam outro grupo de estudantes. Assim, o grupo que surgiu na década de 1980 tinha na realidade se graduado em meados de 1960, pouco antes do início da Revolução Cultural. Eles eram conhecidos como a “Quarta geração”. Obviamente, considerando o período de 15 anos que se seguiu até a próxima turma, esse grupo seria ainda mais diferenciado. Fortemente identificados com um cinema arte, os diretores da “Quinta geração”, como Chen Kaige e Zhang Yimou produziram uma nova onda de cinema chinês, e se tornaram os primeiros cineastas provenientes da República Popular da China a conquistar sucesso em todo o mundo. Embora o fato de ter experimentado o cinema da “Quinta geração” é o que tenha conduzido Jia a carreira cinematográfica, o tipo de filme que ele e a geração seguinte de cineastas passariam a produzir é muito diferente daquele empreendido pela “Quinta geração”. Filmes como Yellow Earth, Tian Zhuangzhuang’s Horse Thief, e Zhang Yimou’s Red Sorghum se referiam frequentemente ao passado, em regiões fronteiriças ou em aldeias remotas. Eram muitas vezes filmes épicos e grandiosos em estilo, interpretados como fábulas, alegorias do imaginário nacional. Em contrapartida, o cinema da “Sexta geração” é considerado eminentemente urbano, contemporâneo e realista. Cada filme é sobre o que parece ser realmente, ao invés de se identificar com uma alegoria, e uma entidade abstrata referenciada a noção de Estado-nação. Todos os primeiros filmes de Jia Zhangke se encaixam nesse padrão exatamente. Um artista batedor de carteiras é muito especificamente sobre Fenyang. Além do fato de ter sido todo filmado nas ruas da cidade, o filme é em sua maior parte falado no dialeto local, ou na pior das hipóteses, em dialeto tão próximo ao original, que apenas os nativos de Fenyang podem perceber a diferença. No filme, são apenas os policiais e burocratas que falam mandarim. Em um país onde o governo exige que todos os filmes nacionalmente disponíveis estejam em mandarim, como a “língua nacional”, esse uso de dialeto, na linguagem que seria efetivamente ouvida na cidade encenada, era uma forma muito clara de insistir na regionalidade e na especificidade do filme. O porquê de Jia e os outros diretores da “Sexta geração”, como Wang Xiaoshuai e Zhang Yuan, seguirem esse padrão particular de cinema urbano é um tema para debate. O desejo de se diferenciar da geração anterior e produzir uma marca própria foi, certamente, uma das razões. Jia e alguns outros mencionaram que não se identificavam, e a própria juventude chinesa, com filmes da “Quinta geração”, ou a cultura dominante. Eles desejavam mudar esse cenário. Outra razão teria sido a necessidade de trabalhar com orçamentos muito pequenos. Após o massacre de Tiananmen em 1989, a censura se tornou muito rigorosa e a nova geração de cineastas teve que decidir se submeter a isso ou começar a fazer filmes de
O antirrealista identificado como realista Com a ausência de um treinamento formal em Cinema e a as alegações quanto as suas origens como um cara simplório do interior, combinadas com o baixo orçamento e o uso de locações comuns em seus filmes, o trabalho de Jia tem sido aclamado como realista. De fato, um novo termo foi inventado na China para o tipo de cinema chamado de ultra-realismo, ou realismo flagrante (xianchang), devido ao tipo de cinema com esse estilo “flagrante” como o de Jia, e de outros cineastas na década de 80. Em contraste com a aparência altamente rebuscada, brilhante e otimista do realismo socialista (shehuizhuyi xianshizhuyi), esse novo estilo foi chamado jishizhuyi. O termo foi aplicado não só para o cinema que tinha um olhar documental, como os filmes de Jia, mas também para o trabalho de uma nova geração de documentaristas na China, que trabalhavam de forma independente. Wu Wenguang é geralmente visto como o líder deste “movimento”, como às vezes é denominado. Mas Jia também fez documentários ao longo de sua carreira, que também se adequavam a esse modelo. À primeira vista, o estilo realista de Jia parece ser parte daquele mito do gênio que não teve nenhuma tutoria, que tem sido criado ao redor do cineasta. Ele não teve um treinamento formalmente exigido como cineasta, e além disso é um cara do interior. Ele apenas coloca sua câmera na rua, faz registros com longas tomadas, e de alguma forma, milagrosamente, o resultado é uma obra de gênio, que revela a China real. Eu não vou me ater aqui ao tipo de debate, do ponto de vista filosófico, sobre como e até que ponto o realismo revela a verdade. Mas, embora este mito do gênio simplório possa justificar em parte o carisma de Jia, como já vimos, isso não corresponde a realidade. Ele teve acesso a formação cultural, e não é, absolutamente, ingênuo sobre a arte cinematográfica. E, por isso também, é possível concluir sem nenhuma surpresa que seu estilo não é uma espécie de primitivismo inculto.
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forma independente. Na China da década de 1990, “independente” era definido como “não ser enviado para a censura.” Se um filme não tivesse passado pela censura, ele não poderia ser exibido nas salas de cinema. Com as possibilidades de lucro radicalmente reduzidas, era necessário diminuir drasticamente o custo das produções. Fazer filmes usando locações em sua própria cidade, sem figurinos caros e extravagantes ou produções em grande estilo ajudam a economizar dinheiro. Sejam quais forem as razões para justificar o estilo da “Sexta geração”, os filmes de Jia são regularmente citados como exemplos-chave, e ele é considerado como o membro mais ilustre do grupo. No entanto, baseando-se na definição estrita que identifica essa geração de cineastas, ele não pode ser considerado um membro do grupo. E, além disso, seus filmes divergem do estilo que caracteriza e identifica aquele grupo. Em primeiro lugar, Jia não foi membro da turma de produção que se graduou na Academia de Cinema de Pequim, em 1989. Ao invés disto, ele e Wang Hongwei, que viria a representar o papel principal nos filmes Volta para casa e Um artista batedor de carteiras, e passou a ser uma das principais figuras no cinema independente chinês, fizeram parte apenas da turma de teoria do cinema. O contato com Bazin, um grande nome entre os professores da Academia de Cinema de Pequim, pode ter influenciado o estilo de longas sequências, planos, e o realismo característico no cinema de Jia. Certamente, o fato de ser um estudante de teoria, em vez de produção, influenciou negativamente quanto a possibilidade de financiamento para seus projetos, tornando-as mínimas. Assim, essa é uma outra razão para a escolha de Jia ser independente, no momento em que ele decide começar sua carreira como cineasta.
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Telespectadores comuns tiveram conhecimento de que Jia não era um realista estrito com O Mundo. Nesse filme, o personagem principal interpretado por seu futuro parceiro Zhao Tao, tem vários sonhos e fantasias de fuga da sua vida tediosa no parque temático. Essas fantasias são apresentadas como curtas animações, do tipo que se poderia ver atualmente nos telefones celulares. Em Em busca da vida, a ruptura com o realismo é ainda mais acentuada, quando, graças ao CGI, um monumento parece se incendiar e decolar como um foguete rumo ao espaço. Mais tarde, no mesmo filme, o personagem de Zhao assiste a discos voadores sobrevoarem a região da usina das Três Gargantas. Na verdade, se eles tivessem assistido ao filme Volta para casa, vencedor do Festival de Veneza, não ficariam tão surpresos por essas interjeições no aparente estilo realista. Nesse filme, cada vez que um novo personagem surge na tela, a narrativa é interrompida pelo que parece ser uma descrição biográfica de um site de namoro, informando o nome do personagem, seu trabalho etc. Para alguns críticos, estes elementos não realistas qualificam o realismo de Jia como uma espécie de realismo fantástico. Independentemente de como classificar o seu trabalho, esses elementos diferenciam Jia da maioria dos realistas chamados puristas, desse tradicional movimento de um realismo flagrante, realizado por muitos dos seus admiradores. E esses mesmos elementos também nos lembram que não há nada casual sobre os filmes de Jia, absolutamente. Na verdade, um exame apurado nos faz perceber que nada pode estar tão distante da realidade quanto a asserção de que Jia simplesmente deixa sua câmera, displicentemente, em uma rua da cidade, ou vagueia por aí com uma câmera na mão filmando a esmo. Um olhar mais atento mostra o extremo cuidado com que suas cenas e sequências são trabalhadas. Nunca é por acaso que uma determinada parede expondo um slogan político aparece ao fundo em uma cena. A forma como um longa tomada é finalizada, com um close-up em um determinado detalhe, demonstra muito planejamento. Talvez o mais evidente é o uso de som fora da tela. Ouvir através de um alto-falante, no início de Um artista batedor de carteiras, um anúncio quanto a uma campanha contra pequenos crimes na cidade, enquanto Xiao Wu retorna a cidade de carona na bicicleta do seu amigo, é tão plausível, que você pode imaginar que tudo foi magistralmente captado por Jia de forma acidental, por uma feliz coincidência. Mas é muito mais provável que Jia tenha cuidadosamente planejado em roteiro, gravando antecipadamente o som de alto-falantes, e anúncios com música popular reproduzida de um leitor de fitas cassete, incluindo vozes na rua com o dialeto local para, finalmente, sobrepor a imagem. Os recursos técnicos podem não ser evidentes, mas isso não significa que não estejam sendo utilizados. Significa, na verdade, que foram tão bem utilizados que obtiveram o esperado êxito.
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O não independente considerado ícone do cinema independente Finalmente, há a questão da independência de Jia. Ele é conhecido na China e em todo o mundo como o maior cineasta independente de todos os tempos. Como mencionado anteriormente, o cinema independente começou na China apenas na década de 1990, quando alguns cineastas não apenas decidiram fazer filmes fora do sistema estatal nos moldes exigidos, como também não submeter seus trabalhos ao crivo da censura. Jia foi, certamente, um deles. Mas o sucesso é sempre uma faca de dois gumes na China. Com ele, vem a atenção do governo. Enquanto você está fazendo filmes com uma audiência reduzida, ínfima, o gover-
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no só se preocupa com algum elemento que tenham percebido como ativamente subversivo. Mas uma vez que você começar a ganhar prêmios nos principais festivais de cinema do mundo, a pressão começa a aumentar para que você passe a obedecer as regras da Agência Governamental de Cinema, e enviar seus filmes para aceitação prévia por parte da censura. Como colegas cineastas da “Sexta geração’ Zhang Yuan e Wang Xiaoshuai, Jia se curvou a essas exigências com o filme O Mundo, em 2004. À primeira vista, fica parecendo que com isso, ele não poderia mais ser considerado como um cineasta independente. Realmente, à época houve muitas discussões sobre isso. Mas Jia Zhangke está sempre um passo a frente de todos. O significado de independente vem mudando na China. No novo século, toda a indústria cinematográfica tem estado mais envolvida com os interesses de empresas privadas, dominada por grandes corporações, e orientada para interesses do mercado. Nesse cenário, os filmes independentes chineses estão adquirindo algumas das características do cinema independente americano. Produções que não se alinham ao modelo empresarial e se distanciam de um estilo comercial de entretenimento, estilo blockbuster, qualificam cineastas como independentes. Esse também é o caso da China. Embora Jia venha apresentando seus trabalhos previamente aos censores desde O Mundo, ele continua a operar de forma independente, buscando seu próprio modelo, de relativo baixo orçamento, para suas produções. Os seus filmes e outros que atendem a esse mesmo modelo, também passam por censura na China e são agora conhecidos como “independentes com selo Dragão”, depois de receberem o selo e os respectivos créditos representativos de aceitação por parte da censura. Mais recentemente, essa tendência no mercado atingiu um outro patamar, quando o filme independente de Diao Yinan, Black Coal, Thin Ice ganhou o Urso de Ouro em Berlim, e foi lançado com sucesso na China. Muitos esperam que com isso, finalmente, um novo mercado para os filmes não comerciais, mais autorais, esteja se abrindo na China. De qualquer maneira, o cinema não independente, e ao mesmo tempo independente, de Jia desbravou uma trilha excepcional para Diao e outros cineastas mais jovens como ele.
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JIA ZHANGKE IN CONTEXT CHRIS BERRY
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Jia Zhangke is an exceptional director. By calling him “exceptional,” I do not only mean that he is an excellent director, although of course he is! I also mean that he is someone unusual in relation to his context. In this short essay, I highlight four aspects of Jia’s exceptionalness. First, there is his personal background. He is usually thought of as a provincial, small-town guy. It is true that he comes from a small city, but he is much more cultured and metropolitan than the typical small-town guy. Why? Second, he is exceptional among his peers. He was not a member of the Directing Class of 1989 at the Beijing Film Academy, which is the usual qualification for inclusion in the so-called “Sixth Generation” of Chinese directors. So, how come Jia is considered a leading member of this cohort? Third, his films are exceptional. Jia is celebrated as the director who initiated the “on-the-spot realist” contemporary Chinese independent cinema. Yet this member of the gritty realist school is also the Chinese feature film director whose work diverges furthest from realism. Finally, Jia is considered the king of the independent filmmaker. Yet, according to the Chinese definition of the, he stopped being an independent a long time ago.
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A Sophisticated Small-Town Boy Turning to his background first, people have paid attention to where Jia came from ever since his earliest films. They were all set in or associated with his home province of Shanxi in central north China and usually also with his hometown of Fenyang, a city of less than half a million people. His short film, Xiao Shan Going Home (Xiao Shan huijia), was set in Beijing. But the protagonist, Xiao Shan, is a migrant worker trying to find a way to get the money and buy a ticket home to visit his family for Chinese New Year – in Fenyang. This film won first prize at the Independent Film and Video Awards in Hong Kong, giving him enough money to launch his so-called “hometown trilogy.” First came his debut feature film, Pick pocket (Xiao Wu). Xiao Wu and his second film, Platform, (Zhantai) were both set in Fenyang, and his next film, Unknown Pleasures (Ren xiao yao) was set in the somewhat larger Shanxi city of Datong. Even when his films finally left Shanxi Province with The World(Shijie), set in a theme park supposedly located on the outskirts of Beijing, his main characters were still migrants from Shanxi. Even though many of his more recent films have taken him even further from Shanxi, and it is reported that his next film will be his first international production, shot in Australia, references back to his home continue in many of his films. Therefore, his films themselves seem to draw attention to his background. And in a country where most filmmakers have a more metropolitan background, coming from somewhere like Fenyang is itself exceptional. All three of the films in the “hometown trilogy” are also what is now known as “slacker” films. Xiao Wu, the eponymous protagonist of Xiao Wu, is a pickpocket who just cannot seem to reform himself and find a new role in the burgeoning local market economy. Platform follows the efforts of a formerly state-funded song and dance troupe, as they try to come up with new entertainments that people will actually pay to watch. And the two main characters in Unknown Pleasures are unemployed youths with no prospects. Other early films, like Xiao Shan Going Home, The World, and Still Life (Sanxia haoren) , follow migrant workers, who are a new class that has sprung up with the market economy since the
The Non-Sixth Generation Leader of the Sixth Generation People started talking about generations of Chinese filmmakers in the 1980s. The People’s Republic only had one film school, the Beijing Film Academy, and it had been closed for a decade during the Cultural Revolution. So, when younger filmmakers started directing their first films in the 1980s, there was a marked difference between them and their predecessors. At that time, the Beijing Film Academy did not take in film production students every year. They took in one group, trained them, graduated them, and then took in another. So, the group that emerged the period immediately after the end of the Cultural Revolution in the late 1970s and early 1980s had in fact graduated in the mid-1960s, just before the Cultural Revolution began. They have become known as the “Fourth Generation.” Unsurprisingly, given the a gap of almost two decades between the Fourth Generation’s graduation and the Fifth Generation’s in 1982, the Fifth Generation were even more different. Steeped in art cinema at school and the destruction of dreams during the Cultural Revolution, Fifth Generation directors like Chen Kaige and Zhang Yimou produced a Chinese new wave cinema, and became the first filmmakers from the People’s Republic of China to win success
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1990s and are among China’s most disenfranchised citizens. Jia Zhangke clearly felt a strong affinity with this “floating population,” and has even stated that he sees himself as a film migrant worker. Taken together, Jia’s films and his own statements make a lot of people assume he must come from a very humble background. The idea that a provincial, small-town boy can become one of the most sophisticated of Chinese film directors and go on to win prizes at festivals like Venice and Cannes makes a good story for the press. But it is a bit too simple. Because, in terms of his background, Jia is not only an exception to the usual elite upbringing of filmmakers. He is also an exception to the usual idea of what a small-town boy should be like. It is true that Jia was born in Fenyang in 1970, and brought up there. But his family background is very cultured. So, how did they end up in a backwater like Fengyang? His grandfather’s experience as a surgeon in Europe had made the whole family suspect from the xenophobic perspective that enveloped China after the 1949 Revolution, and they were sent there as a punishment. In this regard, his background echoes that of Zhang Yimou. While the other members of the so-called Fifth Generation of Chinese filmmakers like Chen Kaige and Tian Zhuangzhuang mostly came from families that were part of the Communist elite and often already in the film industry, Zhang’s family had been punished because one of his uncles was with Mao’s mortal enemy, Chiang Kai-shek’s Nationalists. Despite growing up in humble circumstances among more ordinary families, both Zhang and Jia got plenty of cultural education at home. When Jia failed his university entrance examinations because his maths scores were not high enough, this cultural background helped him get into an art school in the provincial capital of Taiyuan. It was while in Taiyuan in the late 1980s that Jia Zhangke accidentally stumbled across a screening of the breakthrough “Fifth Generation” film, Yellow Earth, directed by Chen Kaige and with cinematography by Zhang Yimou. This was a life-changing moment for Jia, and eventually it led him to the Beijing Film Academy. However, here, too, he became an unusual figure. To understand this, I need to explain a bit about the idea of “generations” in Chinese filmmaking and why Jia is both the leader of his generation and an exception amongst them.
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around the world. The term “Sixth Generation” refers to the next class of film production students, which graduated from the Beijing Film Academy in the fateful year of 1989. Why did this idea of generations become so popular when talking about Chinese filmmakers, and who are the first, second and third generations? Here, we have to remember that it was with the Fifth Generation that the generation concept first entered general usage. One reason is because of their films really stood apart from those of their predecessors. Another possible reason is that this was the first time Chinese cinema won international attention. At the time, I was working for China Film Export and Import Corporation, the government agency with a monopoly on the film trade. We often found ourselves dealing with festival programmers and distributors who could not remember let alone pronounce Chinese names. In this situation, the term “Fifth Generation” quickly caught on. If we introduced a new film to them, they would ask, “Is it by a Fifth Generation director?” In the corporation, we seized the term to promote films, too. Nobody used the term “branding” back then, but in retrospect I guess we were branding this group of directors. Now that filmmakers are trained at many institutions and the clear markers between generational cohorts is not so evident, young filmmakers are no longer being grouped as the seventh or eighth generations. Precisely because the generational way of thinking about Chinese filmmakers arose in the 1980s and was then applied retrospectively, it is used much more rarely when talking about earlier directors. Some people claim that the first, second, and third generations refers to the first, second, and third cohorts to graduate from the Beijing Film Academy. But in its early years it did not operate with such clearly defined cohorts as it did later. So, the more widely accepted definition is that the first generation consists of China’s silent filmmakers; the second generation the first sound filmmakers; and the third generation are the first filmmakers to begin their careers after the 1949 Revolution. Even though watching a Fifth Generation film is what drew Jia into filmmaking, the type of film that he and the next generation of filmmakers produced is very different from the Fifth Generation type. Fifth Generation films like Yellow Earth, Tian Zhuangzhuang’s Horse Thief, and Zhang Yimou’s Red Sorghum were often set in the past, on the borderlands or in remote villages. They were often epic and grand in style, and understood to be fable-like national allegories. In contrast, the Sixth Generation cinema is considered to be urban, contemporary, and realist. Each film is about what it appears to be about, rather than an allegory for some larger and more abstract entity like the nation-state. All of Jia Zhangke’s early films fit this pattern exactly. Xiao Wu is very specifically about Fenyang. Not only is it all shot on the streets of the city, but it is mostly in the local dialect, or at least one that is close enough that only Fenyang natives will notice the difference. In the film, it is only officials and policemen who speak Mandarin. In a country where the government requires all films and nationally available to be in the Mandarin “national language,” this use of language as it would really be heard in the city was a very clear way of insisting on the localness and specificity of the film. Why Jia and the other Sixth Generation directors like Wang Xiaoshuai and Zhang Yuan followed this particular pattern of urban filmmaking is subject to debate. The desire to mark themselves out from the previous generation and produce their own brand was certainly part of the story. Jia and others have spoken of not feeling that they saw their own lives and those of other young Chinese in either Fifth Generation films or mainstream culture, and wanting to rectify this. Another reason would be the need to work with very small budgets.
The Non-Realist Realist. With his lack of formal training in filmmaking and his allegedly provincial background, combined with the low-budget use of ordinary locations and in his films, Jia’s work has been hailed as realist. Indeed, a new term was invented in China for the kind of on-the-spot (xianchang), contingent look of films like Jia’s that emerged in the 1980s. In contrast to the highly crafted, glossy, and optimistic look of socialist realism (shehuizhuyi xianshizhuyi), this new style was called jishizhuyi. The term was applied not only to feature films that had a documentary look, such as Jia’s, but also to the work of a new generation of documentary filmmakers in China, who were also working independently. Wu Wenguang is usually seen as the leader of this “movement,” as it is sometimes called. But Jia himself has made documentaries throughout his career, and they also seem to fit into this mould. At first sight, Jia’s realist style seems to be part of the myth of untutored genius that has grown up around him. Not only is he a small-town boy, but he has no formal training in filmmaking. He just puts his camera down in the street and records long takes, and somehow, miraculously, the result is a work of genius that reveals the real China. Here, I will not get into the whole impossible philosophical debate about whether and in what sense realism reveals the truth. But although this myth may be part of Jia’s charisma, as we have already seen he was not picked up off the streets, nor is naïve about filmmaking. And so, it should also come as no surprise to realize that his style is not some sort of untutored primitivism, either. Casual viewers first became aware that Jia was not a strict realist with The World. Here, the lead character played by his future partner Zhao Tao, has various dreams and fantasies of escape from her boring life in the theme park. These are rendered as short animations of the type one might have viewed on a mobile phone at the time. In Still Life, the break with realism is even more marked, when, thanks to CGI, a monument appears to fire up and take off like a rocket into space. Later in the same film, Zhao Tao’s character watches a UFO spin across the Three Gorges.
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After the 1989 Tiananmen Massacre, censorship became very strict and the new generation of filmmakers had to decide either to submit to this or start making films independently. In China, in the 1990s, “independent” was defined as “not sent in for censorship.” If a film has not passed censorship, it cannot be exhibited in movie theatres. With radically reduced income possibilities, it was necessary to work cheaply. Making films using locations in your own town and with no fancy costumes or grand style helps to save money. Whatever the reasons for the Sixth Generation style, Jia’s films are regularly cited as key examples, and he is regarded as the most distinguished member of the group. Yet, by strict definition, he is not a member of the group at all. And, furthermore, his films diverge from the style. First, Jia was a not a member of production class that graduated from the Beijing Film Academy in 1989. Instead he and Wang Hongwei, who took the lead role in both Xiao Shan Going Home and Xiao Wu, and has gone on to be a leading figure in Chinese independent cinema, were both in the film theory class. Their exposure to Bazin, a big favourite among the teachers at the Beijing Film Academy, may have something to do with Jia’s long shot, long take style and his realism. Certainly, as a theory student rather than a production student, his chances of getting funded to make films were minimal. So, this is another reason for going independent when he did decide to start making films.
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In fact, if they had seen Jia’s IFVA-award winner, Xiao Shan Going Home, they might not have been so surprised by these interjections into the seeming realism. There, each time a new character arrives, the narrative is interrupted by what looks like a computer biography from a dating site, giving the character’s name, their work, their star sign, and so forth. For some critics, these non-realist elements qualify Jia’s realism as a kind of magic realism. Regardless of how to classify his work, they set it apart from most of the nitty gritty, on-thespot realist films in the Jia manner made by his admirers. And they also remind us that there is nothing casual about Jia’s films at all. In fact, close examination makes one realise that nothing could be further from the truth than the idea that Jia just plonks his camera down on a city street or wanders around with a handheld camera and shoots at random. A closer look shows how carefully his shots are composed. It is never by accident that a certain wall with a political slogan appears in the background of a shot. The way a long handheld take ends with a close-up on a certain detail shows lots of planning. Perhaps most evident is the use of off-screen sound. When you hear a voice over a loudspeaker at the beginning of Xiao Wu announcing a campaign against petty crime as Xiao Wu rides back into town on the back of his friend’s bicycle, it is so plausible, you might believe that Jia caught it all on film by some sort of happy accident. But it is much more likely that Jia has carefully layered scripted and pre-recorded loudspeaker announcements with popular music blaring from a cassette player and dialect street voices. The fact that artifice is not evident does not mean it is not there; it only means it is successful. The Non-Independent Independent. Finally, there is the question of Jia’s independence. He is known in China and around the world as the country’s leading independent filmmaker to this day. As mentioned earlier, independent cinema began in China only in the 1990s, when some filmmakers not only decided to make films outside the state-owned system, but also not to submit their works to the censors. Jia was certainly one of them. But success is always a double-edged sword in China. With it comes government attention. So long as you are making films very few people watch, the government would only be concerned by anything they viewed as actively subversive. But once you start winning prizes in major film festivals, pressure comes to play by the Film Bureau rules and send your films in for censorship. Like fellow Sixth Generation filmmakers Zhang Yuan and Wang Xiaoshuai, Jia bent to these demands with The World in 2004 (check). At first sight, it seems he cannot be considered independent anymore. Indeed, at the time there were many discussions about that. But Jia Zhangke is always ahead of the game. The meaning of independent has been changing in China. In the new century, the whole film industry has both involved more private companies and become market driven and dominated by large corporations. In this environment, Chinese independence is acquiring some of the characteristics of American independence. Production outside the corporate model and a refusal of the blockbuster style qualify filmmakers as independent there, and increasingly, this is the case in China, too. Although Jia has been submitted his works to the censors since The World, he has continued to operate independently, pursuing his own relatively low-budget model. His and other films made in this mode that also go through censorship in China are now known as
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“dragon seal independents,” after the dragon seal credit that signifies a film has passed censorship. Most recently, this trend reached a new level of attainment with Diao Yinan’s dragon seal independent film Black Coal, Thin Ice won the Golden Bear in Berlin, and was released successfully in China. Many hope that at last a new market for non-blockbusters is being opened up in China. Either way, Jia’s non-independent independent cinema has blazed an exceptional trail for Diao and other younger filmmakers like him.
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JIA ZHANGKE | SOBRE A “SEXTA GERAÇÃO”: NÃO ACREDITO QUE SEJA POSSÍVEL PREVER O NOSSO FIM.
ESCRITOS | JIA ZHANGKE
Não estou certo sobre como se definiria a “Sexta geração”. Em relação à idade, sou sete anos mais novo do que Zhang Yuan, o diretor de Mama, e meio ano mais velho do que Lu Chuan, que acredita-se pertencer à “Sétima geração”. Dirigi Um artista batedor de carteiras (Xiao Wu, 1997) quanto tinha 28 anos. De 1998 em diante, as pessoas me consideram como representante da “Sexta geração”. Sempre acreditei que não há diferença entre, desesperadamente, afirmar-se como pertencente a uma geração e, desesperadamente, negar esse fato. A razão pela qual um cineasta não quer categorizar a si mesmo é porque ele quer enfatizar sua singularidade ou porque quer evitar ter relação com as impressões negativas que sua geração possa deixar. Por exemplo, sempre que se fala da “Sexta geração”, uma das primeiras coisas que vêm à cabeça é que seus filmes têm sabidamente maus retornos de bilheteria. Para mim, isso não é um problema. Se as pessoas quiserem pensar em mim dessa forma, assim seja. A primeira vez que ouvi o termo “Sexta geração” foi, provavelmente, em 1992, quando me inscrevi para a Academia de Cinema de Pequim. No dia em que terminei uma das provas, fui a uma galeria de arte. Lá, comprei um exemplar do China Art Newspaper. Uma das reportagens era sobre os diretores da “Sexta geração”. Naquela época, Zhang Yuan havia acabado de dirigir Mama, Wang Xiaoshuai estava no processo das filmagens de The days, Wu Wenguang havia terminado seu documentário Bumming in Beijing: The Last Dreamer, e Lou Ye estava finalizando seu Weekend lover. Dizia-se que esses filmes deram início ao movimento do cinema independente na China. Os conflitos políticos ainda não estavam em um passado distante para a população chinesa no começo dos anos 90. Sob as consequências do trauma, e tragados por uma ampla depressão social, os chamados diretores da “Sexta geração” usaram o cinema para desafiar as autoridades. Eu ficava especialmente entusiasmado pelo rótulo de “independentes” que eles carregavam.
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A Sexta geração: desafio à autoridade no passado Lembro-me ainda claramente de um trecho do jornal que comprei aquele dia. Ele dizia que, para fazer o filme The days, Wang Xiaoshuai pegou um trem de carga com destino a Baoding, na província de Hebei, para conseguir comprar filme em preto e branco mais barato. Sempre imaginei que, naquela época, o jovem não devia se parecer em nada com o velho inchado de agora; ele devia ser robusto e exuberante. Entre os muitos trens uivantes que atravessavam a planície de Hebei, algum carregou certa vez um jovem com o sonho de fazer filmes. Não é também um sonho sobre liberdade? Na época, a maioria dos chineses não tinha consciência de suas possibilidades e não pensava muito sobre o uso do cinema como autoexpressão. Havia 16 estúdios estatais e apenas eles tinham o apoio financeiro suficiente para realizar filmes. Todas as outras produções cinematográficas eram consideradas “ilegais”. Assim como as pessoas que deixaram as empresas estatais para investir em negócios privados, muitos dos cineastas independentes que viraram as costas para as práticas institucionalizadas tornaram-se profundamente conscientes de seu direto à expressão. Suas obras deixavam clara a ideologia do movimento do cinema independente ao introduzir novos ângulos
JIA ZHANGKE | SPEAKING OF “THE SIXTH GENERATION”: I DON’T BELIEVE THAT YOU CAN PREDICT OUR ENDING
The Sixth Generation: Challenge the Authority in the Past I still remember vividly one passage from the newspaper that I bought. It was said that for his film The Days, Wang Xiaoshuai climbed up onto a freight train bound for Baoding in Hebei province to buy cheap black-and-white film stock. I have always imagined it in my head that in those days, the young man must have looked nothing like the puffed old man now; he must have been robust and exuberant. Amongst the numerous howling trains that traversed the bustling Hebei plain was one that once carried a young man with the dream to make films. Wouldn’t you say that this is also a dream about freedom? At the time, majority of Chinese were not aware of their agency and did not think much about using film for self-expression. There were 16 state-run studios. Only they had sufficient financial support and grants to make films. All the other film productions were considered “illegal”. Like the group of people who left state enterprises to do private businesses, many of the independent filmmakers who turned their backs to institutionalized practices became acutely aware of their right for self-expression. Their works testified the credos of the independent film movement by introducing new angles of speech-making that necessarily expanded the freedom for expression and the freedom that people had in society in general.
WRITINGS | JIA ZHANGKE
I am not sure how one would define “the Sixth Generation.” In terms of age, I am seven years younger than Zhang Yuan, who directed Mama, and I am half a year older than Lu Chuan, who is believed to belong to “the Seventh Generation.” I made Xiao Wu when I was 28. From 1998 onwards people have thought of me as from “the Sixth Generation.” All along I have believed that there is no difference between desperately asserting oneself as belonging to a generation and desperately denying that fact. The reason that a film director does not want to categorize him or herself is either because that he or she wants to emphasize his or her uniqueness or that he or she wants to avoid having anything to do with the negative impressions of his or her generation. For example, whenever we speak of “the Sixth Generation,” one of the first things that come to our mind is that they have notoriously bad box office returns. For me, this is fine. If people want to think of me as such, then so be it. The first time that I heard the term “the Sixth Generation” was probably in 1992. That was when I applied for Beijing Film Academy. On the day that I finished one of my exams, I went to an art gallery. There, I bought a copy of China Art Newspaper. One of the articles in it was on “the Sixth Generation” directors. At the time, Zhang Yuan just made Mama, Wang Xiaoshuai was in the process of making The Days, Wu Wenguang had finished making his documentary Bumming in Beijing: The Last Dreamers, and Lou Ye was almost done with Weekend Lover. It was said that these films started China’s independent film movement. Political tumult was not yet in the distant past for Chinese people in the early 1990s. In the aftermath of trauma and engulfed by societal-wide depression, the so-called “Sixth Generation” directors used film to challenge the authorities. I was especially thrilled by the “independent” label that they carried.
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de discurso, que necessariamente expandiam a liberdade de expressão e a liberdade das pessoas na sociedade em geral. Portanto, sempre considerei o movimento do cinema independente como minha primeira lição de democracia. Eu era um jovem de 21 anos de Shanxi, naquele tempo. Havia lido alguns romances, tinha uma base não tão sólida sobre história da arte, era um seguidor da “Sexta geração” e os considerava meus professores. Eu sabia que eles eram uma força de oposição às autoridades e estavam fazendo todo o possível para brigar pela liberdade de expressão. Anos mais tarde, quando ouvi as pessoas referirem-se a eles como uma comunidade impenetrável, Don Quixotes, inconvenientes ou monstros depravados, eu apenas ri. Este é um poema do poeta sírio Adonis: O mar não tem tempo de conversar com a areia, Está sempre ocupado produzindo ondas. Adonis é um poeta de mente aberta e vale a pena relacionar sua obra à “Sexta geração”. No entanto, ainda quero perguntar. Nós nos esquecemos de tudo? A partir da década de 1990, começamos a ouvir as vozes de indivíduos de fora da retórica oficial, e eles foram incentivados pelo espírito independente. Hoje, as pessoas comuns podem afirmar sua autoestima. Não devíamos, então, agradecer à “Sexta geração” de cineastas por terem dirigido sua atenção ao degrau mais baixo da sociedade, por representarem os marginalizados e defenderem a restauração dos direitos humanos básicos a eles? Claro, o cinema não é a única força que faz a sociedade avançar, mas, em retrospectiva, o cinema foi um campo de batalha onde a cultura e as doutrinas ultrapassadas duelaram uma contra a outra. Muitos foram proibidos de fazer filmes no país; alguns tiveram seus passaportes confiscados. Ainda assim, muitos cineastas continuaram a filmar, apesar daqueles que ficaram ao lado das autoridades para rir e zombar deles. Quando vemos jovens de cabelos coloridos andando pela cidade, com liberdade para escolher sua orientação sexual, alguma vez pensamos no proibido East palace, west palace, de Zhang Yuan? Sim, o filme tornou-se possível graças ao livro de Wang Xiaobo e à pesquisa acadêmica de Li Yinhe. Seu esforço conjunto em organizar eventos e fazer discursos trouxe a liberdade de que as pessoas podem desfrutar hoje. Mas e o diretor Zhang Yuan? Durante a era das reformas, muita gente foi marginalizada pois não tinha poder nem dinheiro. Quais de nossos filmes contaram as histórias dessas pessoas? Quais, dentre eles, incentivaram a sociedade a reconhecer que elas existiam - ajudando os mais fracos a ganharem reconhecimento? Os filmes dos diretores da “Sexta geração”. Para mim, esses filmes são as joias da cultura chinesa dos anos 90. Parece-nos que filmes desse tipo não são rentáveis, mas por que não podemos ajudar o público a aceitá-los? A situação atual não é resultado da nossa economia de mercado. Ela foi causada pela omissão desses filmes ao público durante a última década, pelo menos. Não fosse o controle sobre a ideologia na década passada, nossos filmes teriam acumulado público. E, sem que percebêssemos, uma grande e solidária comunidade de espectadores teria se formado. Além disso, fugimos do fato de que, quando finalmente fomos capazes de comercializar nossos filmes, os únicos interessados eram os entusiastas de Hollywood. Muitos diretores de sentem impotentes, mas os insistentes e os inconvenientes são os verdadeiros heróis que mantém a tradição da arte cinematográfica chinesa. Em 1997, a economia da China estava acelerando. Naquele ano, Lou Ye se preparava para filmar Suzhou river, Wang Xiaoshuai dirigiu Frozen, Zhan Yuan fazia os preparativos
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Therefore, I have always regarded the independent film movement as my first lesson on democracy. I was a 21-year old young man from Shanxi at the time. I had read a few novels, I had a not-so-solid foundation in art, I was a follower of “the Sixth Generation,” and I regarded them as my teachers. I knew that they formed the oppositional force against the authorities, and they were doing everything they could to fight for the freedom for self-expression. Many years later, when I heard others referring to them as an unfathomable community, quixotic Don Quixotes, and ill-timed and deviant monsters, I laughed. Here’s a poem by the Syrian poet Adonis: The sea does not have time to chat with the sand, It is always busy with producing waves. Adonis is an open-minded poet and is worth applying to “the Sixth Generation.” However, I still want to ask, have we forgotten everything? From the 1990s we began to hear individuals’ voices outside the official rhetoric, and they were injected with the independent spirit. Today, ordinary people can assert their self-esteem. Shouldn’t we then thank “the Sixth Generation” directors for having directed their attention to the lower rung of society, representing marginalized people, and advocating the restoration of basic human rights to them? Of course, film is not the only force that advances society, but in retrospective, film was the battleground where culture and outdated doctrines played out against each other. Many were banned from making films domestically; some had their passport confiscated too. Yet, many continued to make films, despite having those who stood alongside the authorities laugh at and mock them. When we see young people today with dyed hair moving freely in the cityscape and having the freedom to choose their sexual orientation, do we ever think of Zhang Yuan’s banned feature East Palace, West Palace? Yes, the film was made possible thanks to the book by Wang Xiaobo and the academic research by Li Yinhe. Their combined efforts spent in organizing events and making speeches brought about the freedom that people can enjoy today. But what about Director Zhang Yuan? During the reform era, many people were marginalized because they lacked power and money. Which of our films told the stories of these people? Which, amongst them, induced society to acknowledge their existence – helping the weak gain recognition? The Sixth Generation directors’ films did. To me, their films are the gems of Chinese culture of the 1990s. It seems to us that films like this are not profitable, but why can’t we help the public accept them? The current situation is not the result of our market economy. It is caused by the shunning of these films from the public for the past decade or so. If not for the control over ideology for the past decade, our films would have amassed their audiences, and behind our backs a large supportive community would have formed. Additionally, it would not have happened that when we were finally able to market our films, Hollywood enthusiasts were all that there were. Many directors feel powerless, but the persevering and ill-timed ones amongst them are the true heroes who continue the tradition of China’s film art. In 1997, China’s economy was accelerating. In that year, Lou Ye was preparing to shoot Suzhou River, Wang Xiaoshuai made Frozen, Zhang Yuan was preparing for Seventeen Years, and Zhang Ming had just finished making Rainclouds over Wushan. In the same year, I started shooting Xiao Wu. I am glad that I am being labeled “the Sixth Generation”. Being a cinematic movement, “the Sixth Generation” has started to branch out today. Dif-
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para Seventeen years, e Zhang Ming havia acabado de terminar Rainclouds over Wushan. No mesmo ano, comecei a filmar Um artista batedor de carteiras. Fico feliz por ser rotulado como “Sexta geração”. Sendo um movimento cinematográfico, a “Sexta geração” começou a se ramificar nos dias de hoje. Os diretores assumiram diferentes caminhos em suas carreiras. Durante uma pequena fase em nossas carreiras, no entanto, cada um de nós mostrou os problemas que descobrimos em nosso cotidiano, e expusemos nossas fraquezas usando o cinema como meio. Contudo, é reconfortante para mim que muitos de nós escolham filmar a realidade usando uma abordagem realista. Os filmes que produzimos complementam e ecoam um ao outro, dando forma à revolução ocorrida na arte cinematográfica chinesa e deixando para trás uma marca que, de outra forma, teria ficado perdida na sociedade de consumo. Essa marca é também uma cicatriz, deixando para trás uma dor, na História, e em nós.
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O desafio ao mercado no presente Nunca me esquecerei do dia, em 2003, na Academia de Cinema de Pequim, quando foi anunciado que a maioria dos diretores da “Sexta geração”, proibida de fazer filmes, poderia voltar a filmar. Um representante do governo acrescentou que, embora o governo estivesse suspendendo a proibição, nós devíamos estar avisados que nosso trabalho em breve estaria no submundo da economia de mercado. Durante os seis anos seguintes, eu experimentei a tirania do mercado. No entanto, isso não me tornou um inimigo dele, já que a economia de mercado é parte do sonho de liberdade. Não queríamos reclamar de nada. Sabemos que há acordos traiçoeiros feitos nos bastidores com as pessoas poderosas, mas nós abraçamos o mercado e nos preparamos para nos dedicar a essa causa até nosso último suspiro e centavo. O mais irônico é que toda vez que nós vendemos um filme, a mídia é extremamente sensível à nossa história nas bilheterias, e gostam de condenar nossos filmes à morte antes mesmo que eles cheguem às telas. Filmes de arte precisam de um tempo relativamente longo de aquecimento no mercado. Durante um ou dois meses após seu lançamento, eles ainda podem estar na fase de fermentação. Quando a mídia já faz um prognóstico de que esses filmes podem ter uma bilheteria desastrosa, os diretores são atacados. Como não há nem mesmo um período de três dias para o aquecimento, os potenciais espectadores vão embora. Ninguém quer ver cadáveres, enquanto todos querem ver milagres. Nós sobrevivemos ao campo de batalha da economia de mercado. Estou disposto a pertencer à eterna “Sexta geração”. Embora esse movimento já tenha chegado ao fim, ainda há um longo caminho para nossas carreiras. Depois da Nouvelle Vague francesa, Truffaut tornou-se um ótimo diretor comercial, com incríveis números de bilheteria; Godard tornou-se um autor; mas a maioria dos outros diretores ficou em algum lugar entre os dois. Fracassos ou sucessos pessoais não podem falar por uma geração inteira. Por outro lado, os pontos negativos de uma geração não podem ser usados contra um cineasta em específico. Fazê-lo seria ultrapassado. Não importa o que aconteça, seremos leais ao cinema. Se você está disposto a aceitar a cultura como parte integrante do cinema, vou lhe dizer: durante os últimos doze anos, todos os melhores filmes a tentar compreender a cultura foram feitos pelos cineastas da “Sexta geração”. Seria difícil imaginar como, sem suas obras seminais, nós iríamos estender nossa cultura para o futuro ou oferecer ao mundo algo nosso. Por causa deles, a cultura cinematográfica da China ainda está viva e respira.
Challenge the Market in the Present I cannot forget the day in 2003 in Beijing Film Academy where it was announced that the majority of “Sixth Generation” directors who had been banned from making films previously could make films again. A government official added that, although the government lifted the ban, we should realize that our works would soon go underground in the market economy. During the six years after the incident, I experienced the tyranny of the market. However, that does not mean that I became antagonistic towards the market, because a market economy is part of the dream of freedom. We do not want to complain about anything. We know that there are insidious deals made behind the scenes with people with power, but we embrace the market, and we are prepared to devote ourselves to this cause till our last breath and penny. What is most ironic is that every time we sell a film, the media are extremely sensitive to our box office history, and they like to sentence our films to death before the films even hit the screen. Art films need a relatively long period of time for the market to warm up to them. For a month or two after their releases they can still be in the fermentation stage. When the media prognosticate that these films would have disastrous box office returns, directors will be hit hard and victimized. Since there is not even a three-day period to get warmed up, potential viewers will walk. Nobody wants to watch dead corpses whereas everybody wants to see miracles. We have survived in the battlefield of the market economy. I am willing to belong to the imperishable “Sixth Generation.” Although this movement has drawn to an end already, there is still a long way for each of our careers. After the French New Wave, Truffaut became a great commercial director, with an outstanding box office record; Godard became an auteur; but most New Wave directors fell somewhere in between. Personal failures and successes cannot speak for a generation. Conversely, the negations of one’s generation cannot be used to speak against him or her. Doing so would be outdated. No matter what happens, we will always be loyal to cinema. If you are willing to accept culture as an integral part of film, I will say to you, for the past dozen years or so, all the best films that have tried to embrace culture are made by the Sixth Generation filmmakers. It would be hard to imagine that without their seminal works how we would extend our culture into the future or what we could offer to the world as ours. Because of them, China’s film culture is still alive and breathing. I still have my passion for film, for viewers, and for the market too. Here is a poem from the Latvian poet Vizma Bel√Ö¬°evica: If you don the vivacious starry sky, I will light you up with my love. Each time you hurt me,
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ferent directors have taken on different career paths. For one short phase of our film career though, each one of us presented the problems that we discovered in our daily lives, and we exposed our weaknesses in using the film medium. However, it is reassuring to me that most of us chose to film reality using a realist approach. The films that were produced complemented and resonated with one another, sketching out the revolution that took place in China’s film art, leaving behind a trace that would have otherwise lost in a consumer society. This trace is also a scar, leaving a pain behind, in history and in us.
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Ainda tenho a minha paixão pelo cinema, pelos espectadores, e pelo mercado também. Este é um poema da poeta letã Vizma Belsevica: Se você vestir o céu estrelado, Vou acender-te com meu amor. Cada vez que você me machucar, Você só vai extinguir uma estrela. E assim, por que eu precisaria de suspirar?
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O desafio a si mesmo no futuro Como qualquer geração de diretores, vamos envelhecer e perder nossa criatividade; aos poucos mas seguramente. A força que nos arrastará para baixo e nos obrigará a abandonar nossa essência vai continuar a crescer. O cansaço que acompanha a idade, tanto física quando mentalmente, nos invadirá. Até o egoísmo tem um domínio cada vez maior sobre nós. No entanto, quando vejo as ruas cheias, sinto-me inspirado novamente. Elas me lembram por que quis fazer filmes em primeiro lugar. Aprender a nos unir à tórrida força da vida e da realidade é o que nos manterá. Muitas pessoas que estão familiarizadas com a arte revolucionária ainda são influenciadas por ela. Esse tipo de arte usa o formato mais popular para disseminar a voz dos que estão no poder. Nesse processo, não há espaço para o eu. E algumas pessoas encontraram esse “eu” ao assistir aos filmes dos diretores da “Sexta geração”. Alguns, de forma errada, desconsideram esse encontro com a essência, como se fosse alguma forma de narcisismo. Quando eles não conseguem ver a mensagem que o filme transmite, concluem que a obra não tem uma tese. Embora esse tipo de interpretação seja ingênuo, ele ainda representa os sentimentos das pessoas em relação aos nossos filmes.Quando o objetivo é espalhar a verdade, nunca se deve adotar um tom esmagador. Não se preocupe com a nossa intransigência. Cinema deve ser entretenimento. Muitos de nós têm trabalhado muito para proteger o direito de oferecer entretenimento. No entanto, o pluralismo não é exclusivo do entretenimento. Quando nossos valores culturais perderem sua última casa no cinema, as massas que buscam apenas o prazer vão dominar. Nós vamos continuar produzindo todo tipo de bons filmes, assim como continuaremos produzindo todo tipo de filmes ruins. Contudo, acredito que enquanto formos fiéis a nós mesmos, conseguiremos manter nossas almas vivas. Enquanto nos mantermos em sintonia com o que acontece à nossa volta, nossa energia criativa continuará fluindo. Peço desculpas por falar em “nós” durante todo esse tempo, porque não acredito que apenas uma pessoa possa incorporar o espírito do cinema. E gostaria de terminar esse ensaio à moda antiga, citando um poema do poeta chinês Bei Dao: Eu não acredito que o céu é azul, Eu não acredito que o trovão tenha eco, Eu não acredito que os sonhos são falsos, Eu não acredito que a morte desafia o castigo. E eu adicionaria mais uma linha: eu não acredito que você possa prever nosso futuro.
Challenge the Self In the Future Like any generation of film directions, we will get old, and we will lose our creativity gradually but surely. The force that will drag us down and instigate us to abandon our true selves will continue to grow. The tire that accompanies old age both physically and mentally will invade us. Even selfishness has an increasing grasp on us. However, for me, when I see those crowded streets, I feel inspired all over again. They remind me why I wanted to make movies in the first place. Learning how to marry ourselves to the torrid force of life and reality is what will keep us going. Many people who are familiar with revolutionary art are still being influenced by it. This kind of art uses the most popular form to disseminate the voice of those people who are in power. Throughout this process there is no need and no space for the self. Some people have suddenly encountered the self when they watch “the Sixth Generation” directors’ films. They wrongfully disregard this encounter with the self and think of it as a form of narcissism. When they fail to see the message that the film is to convey, they conclude that the film does not have a thesis. Although such kind of interpretation is naïve, it still authenticates people’s personal feelings towards our films. When the goal is to propagate truth, we should never adopt an overpowering tone. Do not worry about our intransigence. Film should be entertainment. Most of us have been working hard to protect its right to offer entertainment. However, pluralism is not exclusive to entertainment. When our cultural values lose their last abode in film, pleasure-seeking masses will dominate. We will continue to produce all kinds of good films, so will we continue to produce all kinds of bad films. However, I believe that as long as we are true to ourselves, we will be able to keep our souls alive. As long as we stay attuned to what’s happening around us, our creative energy will keep flowing. I am sorry for having been speaking of “us” and “we” all this while because I do not believe that any one person can embody the whole spirit of film. I would like to end this essay in the old-fashioned way by quoting a poem by Chinese poet Bei Dao. I do not believe that the sky is blue, I do not believe that thunder has echo, I do not believe that dreams are false, I do not believe that death defies retribution. And I would like to add one more line: I do not believe that you can predict our future. Be Sociable, Share!
WRITINGS | JIA ZHANGKE
You will only extinguish one star. If so then, why would I need to sigh?
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ENSAIOS | CECÍLIA MELLO
REALISMO E INTERMIDIALIDADE NO CINEMA DE JIA ZHANGKE CECÍLIA MELLO
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Nas últimas duas décadas, o cinema de Jia Zhangke, considerado o maior expoente da chamada “Sexta geração” ou “geração urbana” do cinema chinês, vem surgindo como uma das obras artísticas mais relevantes no cenário mundial. A centralidade e a importância de sua obra parecem corroborar a concepção policêntrica do cinema proposta por Lúcia Nagib em seu ensaio Towards a Positive Definition of World Cinema (2006), que rejeita, através de uma abordagem democrática e inclusiva, a divisão binária entre centro (Hollywood) e periferia (o resto do mundo). Esse policentrismo, segundo Nagib, é caracterizado por picos de criação em países e épocas diversas, que não raro aparecem em momentos de crise e transição, nos quais uma nova conjuntura histórico-social ao mesmo tempo cria as condições e requer a articulação de uma nova língua, ou novas línguas, mais aptas a responder a uma nova realidade (Mello, 2008). Nos tempos atuais, esse policentrismo, além de permear toda a história do cinema, parece ser igualmente o reflexo de um ambiente político e econômico no qual novas potências emergem em diferentes pontos do planeta, não mais sob a tutela de um poder maior, criando assim uma configuração global multipolar. Nesse cenário, a obra de Jia Zhangke configura-se como um pico de criação especial dentro do atlas policêntrico do cinema do mundo, emergindo da China continental e respondendo a uma nova conjuntura históricosocial através de uma estética original. Por um lado, é possível localizar a obra de Jia Zhangke dentro de uma tendência maior de “retorno ao real” no cinema contemporâneo, aliada a uma reabilitação do realismo nos estudos acadêmicos. A principal razão para esse ressurgimento seria a instabilidade de conceitos como a “ontologia da imagem fotográfica” (Bazin, 1958/2002) e sua tradução nos termos semióticos de Charles Sanders Peirce “indexicalidade” (Wollen, 1969/1998), propulsionada pelo advento da tecnologia digital, capaz de gerar imagens sem qualquer referente no mundo exterior. A partir de meados dos anos 90, movimentos como o Dogma 95 na Dinamarca ou o cinema iraniano (com destaque para Abbas Kiarostami), entre outros, parecem emergir como uma forma de resistência ao virtual. Observa-se o enfraquecimento da ironia e da intertextualidade, e o reestabelecimento do elo entre as imagens em movimento e a realidade objetiva, o que leva a novos questionamentos sobre a noção de realismo audiovisual. Interessante notar que essa aderência ao realismo ocorre em um momento em que todos os indicativos apontariam para a sucumbência às tentações do digital. Ao contrário, a tecnologia digital tem atuado com mais frequência como uma facilitadora do registro em locações reais com personagens reais, além de expandir a aplicação de técnicas tradicionalmente associadas ao realismo, como o plano-sequência tão estimado por Bazin (Nagib e Mello, 2009). O cinema de Jia Zhangke é exemplar no uso da tecnologia digital, a partir de Prazeres desconhecidos (Ren Xiao Yao, 2002), como veículo para o realismo de cunho estético, ligado tanto às filmagens em locações reais quanto ao uso do plano-sequência. Ao mesmo tempo, essa tecnologia parece fortalecer um diálogo com as paisagens reais da China contemporânea, cuja abertura econômica iniciada com a Era das Reformas de Deng Xiaoping (gaige kaifang, 1978-1992) produziu efeitos de grande intensidade nos espaços urbanos. Diante da velocidade das mudanças, o cinema de Jia parece movido pelo desejo de registrar o desa-
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parecimento do velho e o surgimento do novo, e assim preservar uma paisagem efêmera e um real instável. Jia parece muito consciente da dimensão espacial da memória, geralmente ofuscada pela dimensão temporal, e de como um espaço em desaparecimento acarreta inevitavelmente uma perda de memória. Daí, ele deriva uma urgência em filmar esses espaços e essas memórias, urgência esta que vem atrelada, de modo aparentemente contraditório, a um estilo lento, que se empenha em observar cuidadosamente aquilo que está prestes a se transformar. Seu cinema se distingue assim do cinema da “Quinta geração” de Zhang Yimou e Chen Kaige, responsável pela primeira onda de renovação da cinematografia chinesa e por sua abertura para o resto do mundo, mas que privilegiava o tempo universal e a descoberta da paisagem ahistórica do interior do país nos anos 1980, substituídos por Jia e seus companheiros pós Tian An Men (1989) da “Sexta geração” por uma paisagem histórica urbana e pela contemporaneidade. Se a questão do real insere a obra de Jia em um mapa policêntrico do cinema contemporâneo mundial, a ambição de seu projeto cinematográfico fica evidente também em seu impulso tanto itinerante quanto nacional, capaz de traçar outros mapas através do território chinês. De seu primeiro longa-metragem Um artista batedor de carteiras (Xiao Wu), realizado em 1997 em sua cidade natal Fenyang na província de Shanxi, até os mais recentes Memórias de Xangai (Hai Shang Chuan Qi, 2010) e Um toque de pecado (Tian Zhu Ding, 2013), filmados em diversas partes do país e em Hong Kong e Taiwan, sua obra revela uma inclinação pelo deslocamento, pelo trânsito, pela viagem. Em 2004, Jia se referiu a essa natureza errante ao traçar um paralelo significativo entre o cinema e a tradição poética chinesa: “No passado, os poetas chineses tinham o hábito de compor poemas na estrada. Do mesmo modo, eu também amo viajar, ir a pequenas cidades ou vilarejos desconhecidos” (Jia, 2004, p. 22). A importância do deslocamento geográfico, da viagem e da ideia de mobilidade – ou sua ausência/presença na forma de desejo não realizado – parece também definir seu estilo cinematográfico, e talvez esteja aí uma das chaves para a qualidade inovadora de sua obra. Antony Fiant (2009, p. 14) fala de um duplo questionamento, dedicado tanto à China quanto ao próprio cinema. Inspirando-se em Hou Hsiao-hsien, cujo Os garotos de Fengkuei (Feng Gui Lai De Ren, 1983) recebeu citações visuais em Em busca da vida (San Xia Hao Ren, 2006) e O mundo (Shi Jie, 2004, versão chinesa), bem como em Robert Bresson, Vittorio De Sica, Michelangelo Antonioni, Yasujiro Ozu, Chen Kaige, entre outros, Jia parece, no entanto, ser o diretor do momento. Seus filmes articulam a tensão entre movimento e stasis, tempo e espaço, passado e futuro, e acabam por funcionar como um diagnóstico dos nossos tempos. Essa dialética que anima a obra de Jia Zhangke, no entanto, não se configura como uma contradição. Ao contrário, deriva da relação íntima que o diretor procura estabelecer entre seu cinema e o real, já que estar na China hoje parece comprovar a convivência entre contrários, tão típica das transformações avassaladoras que assolam o país. As paisagens urbanas, por exemplo, parecem o exagero da definição dinâmica de espaço proposta pela geografia contemporânea e fundada na noção de uma “acumulação desigual de tempos”, nos termos de Milton Santos (2004, p. 9). Em cidades como Beijing e Shanghai, prédios antigos ou históricos ainda persistem ao lado dos imensos arranha-céus, e com eles um modo de vida que parece existir em descompasso com o século XXI. Essa sobreposição de temporalidades que define a China pode ser entendida ainda como uma característica cultural do país ligada às suas línguas falada e escrita. Conforme explicam Ricardo Primo Portugal e Tan Xiao em sua introdução à Antologia da poesia clássica chinesa (2013), o uso frequente de
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ditados populares, referências literárias e estereótipos na linguagem do chinês aponta para um passado que persiste no presente, ou que é atualizado no presente, e confere igualmente um caráter coletivo ao discurso individual. Essa continuidade subsiste, assim, a despeito das rupturas radicais enfrentadas pela China no século XX – que com a proclamação da República (1911), a Revolução Comunista (1949) e a Revolução Cultural (1966-1976) – promoveu tentativas recorrentes de apagar o passado e reiniciar os ponteiros da História. Mas aqui surge uma questão mais complexa. Pois se o realismo cinematográfico de Jia Zhangke possui uma natureza dialética e itinerante, traçando mapas dentro da China e inserindo-se em outros mapas do cinema mundial, sua resposta estética e, em última análise, política, às transformações do país nas últimas décadas deriva igualmente do problema da intermidialidade, através do qual esse cinema é capaz de acolher outras camadas temporais e outros significados. Isso quer dizer que sua obra se define, por um lado, pela crença de cunho baziniano na vocação da arte cinematográfica pelo realismo, o que transforma sua câmera em uma fonte de poder. Por outro lado, esse enlace com o real, repleto de contrários, frequentemente vem apoiado em recursos estéticos derivados de outras tradições artísticas chinesas, como por exemplo a pintura, a arquitetura, a literatura, a música e a ópera, confirmando assim não apenas a natureza híbrida da arte cinematográfica como também a coexistência de várias temporalidades no cinema de Jia, capaz de conter tanto a China da globalização quanto a China milenar. Assim, se o realismo na obra do diretor vem sendo estudado primordialmente através de uma perspectiva contemporânea, que privilegia sua relação com os efeitos da globalização na China, acredito que um olhar para o passado e para outras manifestações artísticas ilumine importantes aspectos de sua cinematografia ao apontar para a heterogeneidade de sua inovação estética. Creio igualmente que o foco na conexão entre o cinema e outras formas de arte permite trazer uma dimensão histórica para uma obra tão firmemente localizada na China contemporânea, a China das grandes obras públicas e das transformações intensas. Enseja também um tipo de investigação que une a perspectiva cartográfica a uma abordagem geológica ou arqueológica (Andrew, 2013), sugerindo que por trás das conexões transnacionais e cinéfilas que informam os filmes de Jia Zhangke há um olhar aguçado e uma recuperação consciente de traços estéticos da história da arte chinesa, o que irá conferir força política ao seu cinema.
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A intermidialidade como ferramenta de descoberta do real Um exemplo desse apoio em recursos estéticos próprios a uma outra forma de arte pode ser observado em Em busca da vida, vencedor do Leão de Ouro, no Festival de Cinema de Veneza, em 2006. Filmado em locação na região das Três Gargantas, em Chongqing, no sudoeste da China, o filme transcorre em Fengjie, cidade de mais de 2000 anos que está em processo de desaparecimento, prestes a ser submersa pela construção da represa das Três Gargantas. É para lá que um homem e uma mulher, da província de Shanxi, viajam em busca de seus cônjuges, de quem estão separados há alguns anos. Ao chegarem, encontram uma cidade parcialmente demolida, e assim suas buscas ocorrem em um espaço repleto de prédios desabados, muros esburacados e pilhas de entulho. Por trás do projeto da construção da usina hidrelétrica da Três Gargantas, hoje a maior do mundo, estava não apenas Fengjie mas também uma das paisagens mais icônicas da China, formada pelas três gargantas do rio Yangtze, cuja importância e centralidade para a
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memória cultural e coletiva chinesa se deve principalmente à sua presença recorrente em poemas e pinturas clássicas das dinastias Tang, Song e Yuan. Hoje, essa paisagem, além de tantos outros sítios históricos que ficavam às margens do rio, foi parcialmente apagada pela construção da represa. Diante desse cenário tão exemplar da China contemporânea, o país das grandes transformações, as escolhas estilísticas do diretor revelam uma afinidade com qualidades estéticas derivadas das tradições da pintura chinesa de paisagem, montada em rolos verticais ou horizontais. Essa hipótese, que traz uma dimensão histórica à perspectiva contemporânea tão central ao cinema de Jia Zhangke, se relaciona em primeiro lugar com a noção de perspectiva multifocal característica da pintura chinesa tradicional, que não se apoia de nenhum modo significativo na noção de perspectiva renascentista. Privilegia, sim, o movimento através da pintura, como se a paisagem fosse observada ao mesmo tempo de vários pontos de vista diferentes. Assim como a pintura tradicional chinesa convida o olhar do pintor e do espectador a adotar diferentes pontos de vista, a organização espacial de Em busca da vida também privilegia a organização espacial em múltipla perspectiva, fruto de uma decupagem que com frequência alterna o ponto de vista do voyeur – inspecionando um espaço a partir de um ponto de vista vantajoso, com a perspectiva do voyageur, que atravessa espaços e se movimenta pela cidade. Ao mesmo tempo, a noção de múltipla perspectiva também se impõe no filme através do uso prolífico do travelling ou plano-rolo nos termos de Noël Burch (1990), frequentemente associado ao plano-sequência baziniano que se tornou uma das marcas do cinema de Jia. O uso dos planos-rolo funciona como um terceiro elemento, ao lado dos planos gerais de paisagem e dos planos à altura de uma pessoa, para a descoberta da paisagem natural e urbana da região das Três Gargantas. Combinados, os três recursos estéticos propiciam uma investigação sobre a relação entre a figura humana e seu ambiente, trazendo à tona a superimposição de temporalidades que caracteriza a cidade de Feng Jie, e em última análise a China contemporânea. Essa combinação de planos e movimentos de câmera também evidencia a presença aparentemente eterna de uma paisagem natural em contraposição à velocidade da mudança promovida pelo homem, em uma espécie de lamento cinematográfico pela perda da lentidão e da história. Isso porque, como aponta Fabienne Costa, Em busca da vida demonstra de que modo a construção da represa das Três Gargantas teria impactado ou violentado não apenas a vida dos habitantes da região como também a noção ancestral chinesa de paisagem ou shanshui: montanha e água (Costa, 2007, p. 46). O desaparecimento de cidades e sítios históricos, portanto, parece também sugerir o desaparecimento de uma memória cultural e coletiva conectada a essa paisagem, e isso confere ao uso dos planos-rolo e das perspectivas múltiplas uma postura política. Pois o que Jia parece sugerir é que a velocidade das mudanças em Fengjie – e na China como um todo – é tamanha que a história e a memória estão sendo inexoravelmente apagadas, destruídas, e que diante desse cenário suas escolhas estéticas teriam que necessariamente criar essa ponte entre a contemporaneidade e a ressonância histórica. Recentemente, seu novo filme Um toque de pecado demonstrou mais uma vez a afinidade entre cinema e pintura de paisagem chinesa, não apenas ao repetir o gesto do plano -rolo que aparece de modo proeminente em Em busca da vida mas também ao incorporar o impulso panorâmico, que por séculos animou os pintores chineses, em sua estrutura narrativa. Ao localizar seu filme em quatro regiões distintas da China, movendo-se de Shanxi
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ao norte a Chongqing no sudoeste, e de Hubei no centro a Dongguan na província sulina de Guangdong, Jia procura “pintar” um retrato do país, unindo o impulso estético da pintura tradicional a uma observação aguçada do fenômeno contemporâneo da migração interna e da violência. E assim como em Em busca da vida, é precisamente a combinação de forma e conteúdo, através de recursos estéticos da pintura de paisagem, que permite ao diretor refletir não apenas sobre a era de transformações da China de hoje mas também sobre seu passado artístico e cultural. Creio ainda que, com Um toque de pecado, Jia tenha levado a interação entre realismo e intermidialidade a outro patamar, ao incorporar elementos não apenas da pintura como também da literatura clássica chinesa, da arquitetura, da ópera, da astrologia, além de inspirar-se em histórias reais divulgadas através do Weibo (micro blog chinês), no cinema de tradição wuxia e em sua própria obra para compor um comentário sofisticado sobre a violência na sociedade chinesa contemporânea. E, com esse cinema que se sente à vontade para pegar emprestado recursos estéticos e narrativos de outras formas de arte, a intenção final parece ser justamente sua inserção em uma tradição, não apenas cinematográfica como também da história da arte, da história cultural e da história da China, mais uma vez unindo topicalidade e ressonância histórica, a vanguarda e a tradição, o presente e o passado.
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O impulso político da intermidialidade Como esses dois exemplos demonstram, a mistura na obra de Jia Zhangke entre “intermidialidade” – que aponta para o entrecruzamento do cinema com as outras artes – e “realismo” – tradicionalmente associado à sua especificidade – cria suas próprias regras e afina-se a um regime estético das artes, nos termos de Jacques Rancière (2001). Diante das muitas instabilidades – do real da China hoje, do realismo cinematográfico que teria perdido sua ontologia e da própria autonomia artística do cinema, o estilo cinematográfico de Jia parece se libertar “da exigência de fazer corresponder uma maneira de falar com uma condição representada”, nos termos de Rancière (Duarte-Plon, 2007). Abrindo espaço para a emergência do regime estético das artes, o cinema de Jia é político não por denunciar uma realidade ou carregar uma mensagem, mas sim por construir uma realidade através de outra “partilha do sensível”, o que Rancière chama de “dissenso”. Essa proposição toma contornos ainda mais fortes levando-se em conta o panorama histórico-cultural da China, já que a questão da intermidialidade, presente na obra de Jia, só poderia ter surgido após a abertura econômica do país. De 1949 até o início dos anos 1980, a produção cinematográfica chinesa funcionava quase exclusivamente como portavoz das mensagens políticas do regime comunista, ou seja, tratava-se de um cinema de propaganda, empenhado na criação de um consenso. O ápice desse regime de concordância imposta seriam as óperas-modelo, refilmadas durante a Revolução Cultural (1966-1976) sob regras de representação restritíssimas impostas por Jiang Qing e a Camarilha dos Quatro, que regiam todos os aspectos da mise-en-scène, fazendo-os funcionar em prol da mensagem governamental. Se a “Quinta geração” dá o primeiro passo em direção a um cinema de ruptura, a “Sexta geração” dos anos 1990, vindos do trauma do massacre da Praça da Paz Celestial em 1989, e capitaneada por Jia Zhangke, empreende uma redescoberta do real através da criação de um dissenso, que interfere na hierarquia de discursos e de gêneros e constrói um outro sentido da realidade (Rancière, 2009). No caso específico de Jia, isso se traduz em um olhar para o
presente e em uma reconexão com o passado, sufocado até então por um regime empenhado em ignorar a história da China antes de 1949, principalmente durante os traumáticos anos da Revolução Cultural. Assim, o redescobrimento de tradições artísticas e filosóficas chinesas relacionadas à pintura, literatura e ópera, além da música pop de Taiwan e Hong Kong, tão central a Plataforma (Zhan Tai, 2000), tornam-se armas poderosas para a criação da heterogeneidade na obra do diretor. Ainda de acordo com Rancière, o regime estético das artes caracteriza-se pela a união entre a poesia (kath’olon), que segundo Aristóteles seria feita de ficções, reordenando eventos a partir de uma lógica de causa e efeito e sem compromisso com a “verdade”, e a história (kath’ekaston), “condenada a apresentar os acontecimentos segundo a desordem empírica deles” (2009, p. 54). Assim, o diretor conhecido como “o poeta da globalização” é também um “historiador” da transformação da China contemporânea (Berry, 2008). A combinação desses dois vetores, motivados por um olhar ao mesmo tempo contemporâneo e retrospectivo, e fruto de um impulso ao mesmo tempo realista e intermidiático, faz emergir a atualidade, a pertinência e a força política de seu cinema. *** Referências Bibliográficas Andrew, Dudley (2013), “Além e abaixo do mapa do cinema mundial”, in Stephanie Dennison (org.), World Cinema:
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REALISM AND INTERMEDIALITY IN THE CINEMA OF JIA ZHANGKE
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In the past two decades, Jia Zhangke, seen as the main representative of the “sixth generation” or “urban generation” of Chinese cinema, has emerged as one of the world’s most innovative and important directors. The centrality and importance of his work seem to corroborate the polycentric definition of world cinema proposed by Lúcia Nagib in her essay Towards a Positive Definition of World Cinema (2006), which rejects, through a democratic and inclusive approach, the binary division between centre (Hollywood) and periphery (the rest of the world). According to Nagib, this polycentrism is characterized by peaks of creation in different countries around the world, which normally appear during periods of crisis and transition, when a new historical and social conjuncture both create the conditions and require the articulation of a new language, or new languages, better suited to address a new reality (Mello, 2008). In our day, this polycentrism, as well as running through the history of cinema, also seems to be related to the current political and economic scenario in which new powers emerge in different points of the planet, no longer under the tutelage of a single power, thus leading to a polycentric global configuration. By taking these observations into account, it would be fair to say that Jia Zhangke’s work represents a peak of creation within this polycentric atlas of world cinema, emerging from China and responding to a new social-historical conjuncture through an original aesthetics. On one hand, it is possible to locate Jia Zhangke’s oeuvre within the tendency of a “return of the real” in contemporary cinema, connected to the “rehabilitation” of the concept of realism in film and media theory. The main reason for this resurgence would be the instability of such concepts as “the ontology of the photographic image” (Bazin, 1958/2002) and its translation into Charles Sanders Peirce’s semiotic term “indexicality” (Wollen, 1969/1998), brought about by the introduction of digital technology, able to generate images without any referent in the real world. From the mid-1990s onwards, movements such as Dogma 95 in Denmark and the Iranian cinema of Abbas Kiarostami, for instance, seem to appear as a form of resistance to the virtual, signaling the end of irony and intertextuality and a reconnection between the moving image and objective reality, leading to new definitions of realism. It is interesting to note that this adherence to realism comes in a moment when it could seem hard to not succumb to the lures of the digital. On the contrary, digital technology has frequently acted as a facilitator of the shooting in real locations and with real characters, as well as a means to expand the use of techniques normally associated with realism, such as the bazinian long take (Nagib and Mello, 2009). The cinema of Jia Zhangke is a good example of the use of digital technology, from Unknown Pleasures (Ren Xiao Yao, 2002) onwards, as a means to achieve a type of aesthetic realism connected to the use of real locations as well as the long take. At the same time, this technology seems to allow him to explore the real landscapes of contemporary China, ever-changing since Deng Xiaoping’s Era of Reforms (gaige kaifang, 1978-1992), which had an enormous impact in the country’s cityscapes. Jia’s work derives to a great extent from a desire to film disappearance, to register and to preserve – through cinema’s unique recording ability – an ephemeral cityscape and an unstable real. Conscious of how memory is a
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spatial as much as a temporal phenomenon, and of how a disappearing space brings with it the loss of memory, Jia is moved by an urgency to film these spaces and its memories, as well as by a seemingly contradictory slowness in observation that has become one of the trademarks of his style. His cinema is thus different from that of the “Fifth Generation” of Zhang Yimou and Chen Kaige, responsible for the first wave of renewal in Chinese cinema and for its opening towards the rest of the world, but which privileged universal time and the discovery of ahistorical landscapes in the 1980s, substituted by Jia and his post-Tiananmen (1989) fellow filmmakers with a historical and urban landscape and contemporary issues. If the issue of realism places Jia’s work in a polycentric map of contemporary world cinema, the ambition of his cinematographic project is also evident in his itinerant and national impulse, capable of creating new maps within the map of China. A brief look at his filmography, from his first feature film Xiao Wu, made in 1997 in his hometown of Fenyang in Shanxi Province, Mainland China, to his last films to date I Wish I Knew (Hai Shang Chuan Qi, 2010), and A Touch of Sin (Tian Zhu Ding, 2013), filmed in different parts of the country, reveals a penchant for dislocation, mobility, transience. Writing in the Cahiers du Cinéma in 2004, Jia referred to his errant nature by drawing a revealing if loose parallel: “In the past, Chinese poets had the habit of composing poems on the road. In a similar vein, I very much love travelling, going to small towns or unknown villages” (Jia, 2004, p. 22). As well as reflecting on the level of geography and the fable, the director’s migrant nature has also come to define the mobile drive of his cinematic style, and this is perhaps the key to Jia’s innovative filmmaking. Antony Fiant suggests that his work is structured upon a double questioning, dedicated to both China and cinema itself (2009, p. 14). Drawing from his master Hou Hsiao-hsien, whose The Boys from Fengkuei (Feng Gui Laide Ren, 1983) was referenced in Still Life (San Xia Hao Ren, 2006) and The World (Chinese version), as well as from Robert Bresson, Vittorio De Sica, Yasujiro Ozu, Chen Kaige and many others, Jia seems nevertheless to be the director of today. His films articulate the tension between mobility and immobility, time and space, old and new, past and future, and seem to work as a diagnosis of our times. This dialectics that lies at the core of Jia’s oeuvre, however, cannot be understood as a contradiction. On the contrary, it derives precisely from the intimate relationship that his cinema nurtures with the real, since being in China today seems to be the ultimate proof of the co-existence of contraries. Its urban spaces, for instance, are an exaggeration of a dynamic definition of space as proposed by cotemporary geography (Massey, 2005), founded on the notion of an ‘unequal accumulation of times’, in the words of Milton Santos (2004, p. 9). In cities such as Beijing and Shanghai, old and/or historical buildings still persist next to the immense skyscrapers that erupted in the past decade or so, and with them a way of life that seems to exist out of step with the twenty-first century. This superimposition of temporalities that defines contemporary China can also be understood as a cultural trace, related to both its written and spoken language. The frequent use of popular sayings, literary references and stereotypes in the Chinese languages points towards a past that persists in the present, or that is made present in the present. It also confers a collective weight to a discourse in the first person singular (Portugal and Xiao, 2013). This co-existence of past and present, slowness and fastness, subsists despite the radical ruptures seen in China in the twentieth century, a country that, from the Proclamation of the Republic in 1911 to the Communist Revolution of 1949, and from the Cultural Revolution (1966-1976) to the Era of Reforms (1978), has repeatedly tried to wipe away the past and reset the counter of History.
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But this is where things become a little more complex. For if Jia Zhangke’s cinematographic realism has a dialectical and itinerant nature, tracing maps within China and allowing his cinema to be inserted into other world cinema maps, his aesthetic and, eventually, political response to the country’s transformations in the last decade seems to equally derive from the problem of intermediality, through which his cinema is able to integrate other temporal and meaningful layers. This means that, on one hand, a bazinian belief in cinema’s natural inclination towards realism transforms Jia’s camera into a source of power. On the other hand, his cinema’s articulation of reality shares aesthetic resources with other Chinese artistic traditions, such as painting, architecture and opera, thus confirming not only the hybrid nature of the cinematographic art but also the co-existence of various temporalities in Jia’s cinema, capable of containing both the China of globalization and the China of millennial traditions. Therefore, while the realist aspects of the director’s work have been studied mainly through a contemporary perspective that privileges its relationship with the effects of globalization in China, I believe that a look towards the past and towards other artistic manifestations can shed light into important aspects of the Jia’s cinema by bringing to the fore the heterogeneity of its aesthetic innovation. What is more, I believe that a focus on cinema’s connections with other forms of art brings a historical dimension to a body of work so firmly located in contemporary China, the country of intense social, geographical and historical transformations. It also encourages a type of investigation that brings together a cartographic perspective and a geological or archeological approach (Andrew, 2013), which suggests that beyond the transnational and cinephilic connections in Jia’s films there is an acute look and a conscious recuperation of aesthetic resources found in Chinese art history, and this, for me, is what gives his cinema its political strength.
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Intermediality and the Discovery of the Real One of the best examples of how Jia’s cinema relies on aesthetic resources pertaining to another form of art can be observed in Still Life, winner of the Golden Lion for Best Film in the Venice International Film Festival of 2006. Filmed on location in the Three Gorges region, located in Chongqing, southeast China, the film takes place in Fengjie, a 2000-year old city on the brink of being submerged by the Three Gorges Dam. The film follows Han Sanming (played by the director’s cousin Han Sanming) and Shen Hong (played by Zhao Tao, the director’s muse and wife), who come from Shanxi to Fengjie in search of their estranged partners. As they arrive, the old city is being torn down to allow the new waterway to be fully navigable, as well as for the recycling of bricks and other construction material. Their quest thus unfolds against the backdrop of derelict buildings, collapsing walls, piles of rubble and rocks. Behind the grandeur of the project of the Three Gorges power plant, today the biggest in the world, lay one of China’s most iconic landscapes, formed by the three Yangtze gorges, and whose importance and centrality to the country’s cultural and collective memory is largely due to their recurrent presence in classical poems and paintings from the Tang, Song and Yuan Dynasties. Today, this landscape’s historical sites which existed along the riverbanks have been submerged by the rising water level. Faced with such a space, so exemplary of contemporary China, Jia Zhangke’s stylistic choices reveal an affinity with aesthetic resources derived from Chinese landscape painting,
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mounted on vertical or horizontal scrolls. This hypothesis, which brings a historical dimension to the contemporary perspective so central to the director’s cinema, refers in the first place to the multifocal perspective typical of traditional Chinese painting, which is in no significant way related to the notion of renaissance perspective. On the contrary, multifocal perspective privileges the idea of a movement across the painting, as if the landscape was being observed from different points of view. Just as Chinese landscape panting invites the eye of the spectator to adopt different points of view and to traverse the painted landscape, Still Life also privileges a multiple-perspective spatial organization by employing a type of découpage that often shifts from a voyeur position, inspecting space from a vantage point of observation, to a street-level view of the city, with the camera placed at the height of a person’s shoulder. At the same time, the notion of multiple perspectives is also present in the film through its prolific use of the “tracking shot” or “scroll-shot” , in Noël Burch’s terms (1990), frequently associated with the bazinian long take which has become one of the distinctive features of Jia’s cinema. The scroll-shots function as a third element, alongside establishing shots from vantage points and street-level views, for the discovery of the landscape and cityscape of the Three Gorges, and to investigate the relationship between the human figure and its surroundings, bringing to the fore the superimposition of temporalities that defines Fengjie and, ultimately, the whole country. This combination of shots and camera movements also highlights the seemingly unchanging presence of a natural landscape against the speed of change promoted by human force, heightening these opposing forces in a sort of lament for the loss of slowness and history. For, as Fabienne Costa has accurately pointed out, Still Life shows not only how the building of the Three Gorges Dam has impacted the lives of those living in the region – and the natural landscape surrounding them – but also how it has violently disrupted the ancestral Chinese notion of landscape or shanshui (mountain and water) (Costa, 2007, p. 46). The disappearance of cities and historical sites would therefore also seem to suggest the disappearance of a cultural and collective memory connected to this landscape, and this renders Jia’s use of the tracking shots and multiple perspectives a decidedly political stance. For what he seems to be suggesting is that the speed of change in Fengjie – and in China as a whole – is such that History and Heritage/Memory are inexorably being left behind, forgotten, destroyed. Thus his aesthetic choices, when faced with the disappearing cityscape of Fengjie and the immortal landscape of the Three Gorges, would have to hark back to a traditional form of art in order to create a bridge between contemporary reality and the historical resonance. Recently, Jia’s new film A Touch of Sin has revealed once again an affinity with Chinese landscape painting, not only by reiterating the use of the scroll-shot but also by incorporating the panoramic impulse behind Chinese landscape painting into its narrative structure. Thus, by setting his film in four very distinct parts of China, moving from Shanxi in the north to Chongqing in the southwest, and from Hubei in central China to Dongguan in the southern province of Guangdong, Jia attempts to ‘paint’ a picture of the whole country, uniting the aesthetic impulse of a traditional form of art with his acute observation of the country’s contemporary phenomenon of internal migration and violence. And as is the case in Still Life, it is precisely the combination of form and content, through aesthetic resources deriving from landscape painting, which allow the director to reflect not only on the current era of transformations in his country but also on its artistic and cultural past. Moreover, I
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believe that in A Touch of Sin Jia has taken the interaction between his realist impulse and intermediality to yet another level, and he did so by incorporating elements not only from landscape painting but also from Chinese literature, architecture, opera, astrology, as well as being inspired by real stories circulated via Weibo (the Chinese microblogging service), by the wuxia tradition of Chinese cinema and by his own work in order to compose a sophisticated commentary on the issue of violence in contemporary Chinese society. And, by making films that happily borrow aesthetic and narrative resources from other forms of art, the director’s final intention seems to be the insertion of his work into a tradition, not only cinematographic but also of art history, cultural history and the history of China, once again bringing together topicality and historical resonance, innovation and tradition, the present and the past.
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The political impulse of intermediality As these two examples demonstrate, the combination of “intermediality” – which points to cinema’s interbreeding with other arts – and “realism” – traditionally associated with its specificity – creates its own rules within Jia Zhangke’s cinema and strikes a harmonious chord with what Jacques Rancière has defined as “the aesthetic regime of art” (2001). Faced with many instabilities – of Chinese contemporary reality, of cinematographic realism and the loss of indexicality, and of the very artistic autonomy of cinema, Jia’s cinematographic style seems to be free from the “imperative of having to match a way of speaking to the condition represented”, in Rancière’s terms (Duarte-Plon, 2007). Making room for the emergence of an aesthetic regime, Jia’s cinema is political not because it denounces a reality or carries a message, but because it sets out to build a new reality through a new “distribution of the sensible”, what Rancière terms a “dissensus”. This proposition gains an even stronger sense if we take into account China’s historical and cultural panorama, since the question of intermediality, so present in Jia’s work, could only have emerged after the country’s economic reforms from the late 1970s onwards. From 1949 to the beginning of the 1980s, Chinese cinematographic production served almost exclusively as a vehicle for the communist regime’s political messages, that is, it was a propaganda cinema engaged in the creation of a consensus. The pinnacle of this regime of imposed agreements came with the model-operas, filmed during the Cultural Revolution (1966-1976) under strict rules of representation imposed by Jiang Qing and the Gang of Four, directed at every aspect of the mise-en-scène in order to make them work in favour of the political message. If the “fifth generation” takes the first step towards a cinema of rupture, the “sixth generation” of the 1990s, emerging from the trauma of the Tiananmen Square conflicts of 1989, set out to rediscover reality through the creation of a dissensus, which interferes in the hierarchy of discourses and genres and builds a new sense of reality (Rancière, 2009). In the specific case of Jia’s cinema, this means both a concern with contemporary reality and a reconnection with the past, suffocated until then by a regime committed to ignoring the history of China before 1949, mainly during the traumatic years of the Cultural Revolution. Therefore, the rediscovery of Chinese artistic and philosophical traditions related to painting, architecture, literature and opera, as well as the pop music of Taiwan and Hong Kong so central to Platform (Zhan Tai, 2000), become powerful weapons for the creation of heterogeneity in the director’s work.
Still according to Rancière, the aesthetic regime is characterized by the union between Poetry (kath’olon), which for Aristotle would be composed of fictions, re-ordering events from a logic of cause and effect and with no commitment to ‘truth’, and History (kath’ekaston), which has the duty of presenting events according to their empirical disorder (2009, p. 54). This is how the director known as the “poet of globalization” equally becomes a “historian” of China’s era of transformations (Berry, 2008), and the combination of these two forces, motivated by an at once contemporary and retrospective gaze, brings forth the actuality and the political force of Jia’s cinema. *** Bibliographical References Andrew, Dudley (2013), “Além e abaixo do mapa do cinema mundial”, in Stephanie Dennison (org.), World Cinema:
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FEITO LEITE DERRAMADO SOBRE A PEDRA1 o cinema de Jia Zhangke ISSAC PIPANO Conheça o mundo sem jamais deixar Pequim
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slogan do parque temático do filme O Mundo [2004]
Há uma China que nos chega por toda parte. Nas chamadas dos jornais das oito, nas notícias dos periódicos diários, pelos documentários da Discovery, através do número de registro impresso nos eletrônicos que invadem as galerias dos shoppings, camelôs e o mercado Livre. Em larga medida, podemos aproximar os filmes de Jia Zhangke muito mais a essa China do que a certa tradição cinematográfica chinesa que durante décadas dominou os cinemas ocidentais. Não no que concerne à forma ou ao modo como o país está sendo colocado em jogo pelos arranjos financeiros ou pela linguagem, mas sobretudo por estarem frequentemente ligados à ordem dos acontecimentos, como cronicidade, fundidos na vida cotidiana. Reveladores de uma face renunciada pelo tradicional cinema chinês, os filmes de Jia Zhangke contêm o país como lugar de produção desprendido de certos moldes de gêneros e convenções estilísticas e temáticas filiadas às concepções dinásticas. Se a tradição está presente, é no modo como se dá no choque com a intensa modernização, no seio de um país onde as consequências da negociação entre a progressiva ocidentalização dos costumes e a parasitagem do capital estrangeiro vem gerando um estado de coisas de constante variação: lugar de passagem dos corpos, dos tempos e dos espaços. Tempos e espaços em tensão e a imagem como aquilo que possibilita o encontro de subjetividades, poderes, visibilidades, forças, afetos. Imagens que convocam a urgência de um olhar em contato com um mundo premente, nas contingências do real, que não pede licença para dar passagem. Assim, o cinema de Jia Zhangke está efetivamente desconectado de certa capacidade de presenciar a experiência como objeto dado, passível, abrindo lacunas para que o próprio real entre em disputa no interior de regimes de representação, como um gesto de criação. “Se todo pensamento emite um lance de dados”, antes de se deter em um ponto último que o sagre, como escreveu o poeta Mallarmé2, toda imagem do real inventa um mundo ao se territorializar em uma representação. Na esteira de um pensamento contemporâneo, motivado pela prerrogativa do documentário que jamais se reduz a uma representação ou asserção, no sentido de deter ou explicitar certo conhecimento sobre o mundo, situamos as imagens documentais ou ficcionais de Jia Zhangke como o nome de uma liberdade. Os filmes, de uma maneira geral, nos permitem a formulação de questões comuns partilhadas pelas narrativas por uma espécie de emparelhamento. Dito de outro modo, parece que a obra de Jia permanece em um estágio de continuidade, onde os problemas são sucessivamente desdobrados e as imagens acumuladas. Há, notavelmente, diferenças inerentes ao modo como cada narrativa acontece. Diferenças que se expressam na plasticidade da imagem, nas texturas, nos volumes, nas durações, nas composições, nos personagens, nos espaços e nos tempos. Por outro lado, as imagens possuem um senso inequívoco de 1
Este ensaio sintetiza as questões centrais da minha dissertação de mestrado defendida no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFF, com o título Feito leite derramado sobre a pedra: a cidade, a memória e a montagem no documentário de Jia Zhangke. Apesar do corpus da pesquisa se constituir da face documental da obra do cineasta chinês, há constantes menções e descrições de cenas, planos e sequências derivadas de suas ficções. Nos filmes de Jia Zhangke os limites entre a ficção e o documentário se interpolam, criando regiões de indiscernibilidade. São essas regiões que mais nos interessam. 2
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MALLARMÉ, Stéphane. “Um lance de dados jamais abolirá o acaso”. Trad. de Haroldo de Campos. In: CAMPOS, A.; PIGNATARI, D.; CAMPOS, H. Mallarmé. São Paulo: Perspectiva, 2006, p. 153-173.
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DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Editora 34, 1992 (p. 60-61).
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prolongamento, como se os filmes pudessem ser vistos por um olhar complementar, nos permitindo agrupá-los através das questões evocadas em suas próprias histórias, com seus personagens singulares. A despeito das especificidades, tentamos pensar os filmes a partir dessa comunhão, respeitando e tornando claras as possíveis particularidades, evidente, ao mesmo tempo tentando preservar aquilo que os fazem partilhar certos mundos. Mundos tomados por um capitalismo em estado laboratorial, hiper selvagem, que engendra outras formas de experiência e impregna-se na imagem. Jia Zhangke não pretende entendê-lo e diagnosticá-lo. Há uma inquietação sobre o modo como essas forças e poderes vêm transmutando as paisagens, as formas de trabalho, a memória coletiva, sim. Não por acaso, os sujeitos possuem uma situação de privilégio em suas imagens. Por outro lado, os filmes se alojam nesse lugar onde o capitalismo já atravessou as camadas epidérmicas da sociedade, implicando a vida em suas mínimas atividades. Eles não produzem rupturas com o processo e a comunidade, apenas. Estão totalmente tomados, no cerne do acontecimento. Aqui, outra vez, parece ser esse lugar onde está a potência das imagens, na tensão entre a mise-en-scène da vida vivida e a da vida filmada, reforçando como o cinema de Jia Zhangke realiza sua “dança em torno do concreto”, citando o filósofo Vilém Flusser. Dança que envolve o concreto e se faz com ele. À suntuosidade do projeto arquitetônico da barragem de Três Gargantas (Dong, 2006) contrapõe-se a cidade em vias de submergir e, mais do que isso, seus habitantes que, diante do desaparecimento da própria morada, são obrigados a inventar formas outras de vida. A fábrica demolida (24 City, 2008), para além do desmonte material de uma força de produção inadequada ao novo mercado financeiro, apresenta a um só tempo um senso de coletividade e uma solidão irremediável. A coexistência de diversas atividades de trabalho (Inútil, 2007) – o operário, a artista e o artesão – unem pontas de experiências impossíveis e as faz dialogar, atenta a como os sujeitos dão conta da vida e ensejam modos de afetividade frente ao embrutecimento do mundo. As mudanças abruptas da cidade (Memórias de Xangai, 2010) e seus arranha-céus e o lugar das memórias entre o passado inacessível e o presente que se esguia. Nesses filmes de Jia Zhangke, percebemos a cronicidade de uma escritura praticada com o real e seus escapes, fragmentos e lacunas: a plasticidade, a precariedade, a brutalidade, a materialidade, a historicidade e a inventividade do real. Não há um projeto utópico de emancipação. É na própria aridez do mundo que se constituem os momentos de reunião, liberdade e resistência. Uma tradição milenar em deformação com a velocidade de um capitalismo conexionista, dinâmico; a rigidez da matéria que se esfacela com a força da água; a austeridade da História, seus marcos, guerras, independências, revoluções, conflitos, diante da fugacidade mundana. A pedra e o leite. A dureza, a aridez, o rigor; a leveza, a fluidez, o vapor. O leite. A pedra. “O E não é um nem o outro, é sempre entre os dois, é a fronteira, sempre há uma fronteira, uma linha de fuga, ou de fluxo, mas que não se vê, porque ela é o menos perceptível. E no entanto é sobre essa linha de fuga que as coisas se passam, os devires se fazem, as revoluções se esboçam”3. Elementos heterogêneos que uma vez tocados não se misturam, embora reajam à presença mútua forjando formas únicas de contato. Elementos heterogêneos que pouco nos interessam separados. Muito nos convidam na relação. A pedra sujeita à erosão; o leite exposto à volatilização. Formas do real. Imagens do real. Hoje, parece cada vez mais possível conhecer o mundo sem deixar Pequim.
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China, capital do século XXI: entre a lembrança e o esquecimento “Pronto, é aqui”, diz o exótico piloto da moto que leva Han Sanming à rua onde vivia em Fengjie. O homem analisa a paisagem à sua volta com o semblante desorientado. “Aqui?”, pergunta hesitante diante da convicção do motorista. “Vê ali? Aquela grama na água? É tudo o que resta da sua rua”, aponta o piloto com seu estranho topete loiro oxigenado. Han desce da moto e observa a desmesurada represa, ainda buscando compreender. “Mas está debaixo d’água!”, brada aflito, após alguns segundos no mais profundo silêncio. “Toda a antiga Fengjie foi inundada. Você não assistiu às notícias?”, se justifica o motoqueiro. Dezesseis anos se passaram desde que sua ex-mulher partiu da casa onde viviam e levou consigo a filha. Naquela época, a cidade era uma cidade. Com sua rotina de automóveis, motos e bicicletas. Com lojas e comerciantes, festas e mitos populares: com seus dois mil anos de história às margens do Rio Amarelo. A próxima fase na inundação é marcada com tinha vermelha na parede no alto de um edifício: 156,5 metros. Em breve, onde homens aparecem sentados conversando, haverá apenas água. Água e ervas flutuantes: “ali onde ficava minha casa”. A sequência é retirada de Em Busca da Vida (Sanxia haoren, 2006), filme realizado simultaneamente às filmagens de Dong, na metade inicial desse documentário localizada em Fengjie. A situação apresenta uma das maiores expressões da obra de Jia Zhangke - a volta ao antigo lar. Tanto Han, quanto a personagem vivida por Zhao Tao, musa do diretor, voltam à cidade em busca de algo. Ele procura a antiga família; ela, o marido de quem não recebe notícias há dois anos. A tentativa do regresso se coloca como uma trágica impossibilidade na cidade que se desfez. Se pudéssemos arriscar (e arriscar, ao menos, nós podemos) um instante na escritura das imagens de Jia Zhangke, investiríamos no modo como elas não costuram as fendas do esquecimento e as lacunas entre vivências e lembranças. Em contraste, elas parecem avançar no sentido de libertá-las, acomodando de modo evasivo as memórias das cidades e dos sujeitos, recuperando-as sempre enquanto criação - retorno na diferença. Tais memórias parecem não visar à recuperação total, à permanência de um mundo que escapa continuamente à imagem e irá sempre escapar. Pois algum mundo se perde, isto é certo - a cidade submergida em Dong e Em Busca da Vida. No entanto, outras forças arrebentam e resistem, como as águas da represa que rebentam e consigo inauguram um novo espaço de sobrevivência. Sem a pretensão de encontrar a origem, o lugar primeiro em um ponto passado exato, fazendo com que todo o presente retroceda e encontre desse modo suas resoluções. Perde-se o acúmulo que leva à reconstrução total, perde-se a solidez da história, perdem-se certos lugares de legitimação. Em troca, mantendo-nos no universo conceitual de Walter Benjamin, escovase a história a contrapelo, recuperando os passados que se atualizam no presente daqueles que não figuram na História, esta com h maiúsculo. O tempo da fala, dos testemunhos, dos gestos dispersos na cena dos mesmos sujeitos que investem suas potências físicas e afetivas na construção material desse mundo que não se isola da cena, mas a partilha. “A cidade não se tornou apenas inabitável, ela já não reserva lugar nem para o olhar nem para a memória”4. Tentando demarcar um nó entre o espaço e o tempo, a afirmação é precisa. Por outro lado, se a cidade já não reserva lugar para os sujeitos, tampouco para a memória; talvez, e só talvez, o cinema ainda possa nos dar essas experiências. No cinema de Jia Zhangke, precisamente, a memória possui um lugar. Esquivo, certamente, acentrado. São raríssimos os momentos, apenas em Memórias de Xangai (cuja tradução, indubitavelmente controversa, atribui um sentido fixo à memória que a afasta do filme), em que a montagem apela às imagens de arquivo, cometendo um ato explícito e assertivo de se virar ao 4
HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000 (p. 22).
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passado. Até mesmo nesses momentos, contudo, há uma forte impressão de que o passado nunca se dá como recuperação. Passado que só existe se representado, fabulado e, assim, novamente vivido. Agora, outro. Pois a memória nos filmes de Jia nunca está no passado, ela pulsa no presente com energia, com os mesmos olhos arregalados do anjo que assiste à catástrofe que irrompe à sua frente. É dessa dimensão “anacrônica” de que fala Beatriz Sarlo “no momento em que a história pensa em construir uma paisagem do passado diferente da que percorre, com espanto, o anjo de Klee, ele está indicando não só que o presente opera sobre a construção do passado, mas que também é seu dever fazê-lo”5. O contemporâneo, portanto, não é apenas como o que identifica a obscuridade do presente e, assim, lança-lhe uma luz; é, por outro lado, aquilo que interpola o tempo a ponto de transformá-lo e colocá-lo em relação. “Você se lembra de Fenyang?”, pergunta Jia Zhangke a uma ex-funcionária sobre sua infância no filme 24 City. “Vividamente”, ela responde. A um só tempo, a experiência do passado e a memória do presente estão tensionadas nesta fala. Somente à sombra da luz invisível que emana do escuro do presente, o passado pode reagir às trevas do agora. E a rememoração, sem esta dimensão, transforma a história na própria imagem do vigia que dia e noite caminha pela fábrica “420” prestes a ser demolida totalmente, assegurando que não violem um túmulo onde corpos já não há – um passado onde não há o que ser lembrado. “De Norte a Sul, sempre serão encontradas linhas que vão desviar os conjuntos, um E, E, E que marca a cada vez um novo limiar, uma nova direção da linha quebrada, um novo desfilar da fronteira[...] as imagens e os sons”, escreve Deleuze. “E os gestos do relojoeiro quando está na linha de montagem e quando está na sua mesa de montagem: uma fronteira imperceptível os separa, que não é nem um nem o outro, mas também que os arrasta um e outro em uma evolução não paralela, fuga ou em um fluxo em que já não se sabe quem corre atrás de quem, nem para qual destino. Toda uma micropolítica das fronteiras contra a macropolítica dos grandes conjuntos”6. O filósofo escreve nesse momento sobre Godard, embora pudéssemos, por analogia, ponderar sobre a obra de Jia, uma vez que sua montagem não nos revela uma terceira imagem enquanto ideia finita, fazendo dialogar aquilo que por princípio é mantido apartado. Colocar em oposição, neste caso, significa criar algo de produtivo desta tensão, desde que o resultado não se esgote em si mesmo. Assim, nos fazem lembrar: a cidade é sempre mais um. O passado e o presente. O privado e o público. A lembrança e o esquecimento. Escrevê-la é operar a partir de redes que se conectam e se anulam fragilmente, na produção entre as falas, os corpos, os gestos e as imagens. Imagem sobre a imagem, a cidade se dobra em outras representações, revelando sua potência de variação. Na cena de abertura de Memórias de Xangai, um imponente leão de bronze é filmado a partir de suas costas. Aos seus olhos, demolições, destroços de construções e tráfego de carros da metrópole, como em outra qualquer, em câmera lenta. A imagem é vigorosa: à sombra de tudo o que é mais imutável, a cidade se inscreve nos seus vestígios e fluxos, no que se esquiva à tomada, no que se deixa flagrar e, no mesmo instante, desparece por entre a fileira de automóveis. Da memória da cidade, talvez, conservem-se as estátuas de bronze. Ao cinema de Jia Zhangke, no entanto, interessa mesmo aquilo que escapa aos olhos e esvai. Lembranças esquecidas. Como no poema de T.S. Eliot: “o que poderia ter sido e o que foi convergem para um só fim, que é sempre presente. Ecoam passos na memória ao longo das galerias que não percorremos em direção à porta que jamais abrimos”. 5
SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. Trad. Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2007 (p. 49). 6
DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Editora 34, 1992 (p. 61).
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Os rasgos e o tecido: montagem e política As imagens nos filmes de Jia Zhangke poderiam restituir aos sujeitos o direito às cidades que lhes são tomadas pelos poderes que transforma brutalmente a paisagem topográfica e sensível, erigindo e devastando lugares, varrendo histórias e memórias? As imagens podem alterar minimamente o ser sensível que está ligado às condições de tais sujeitos? Pois, se por um lado o cinema pode desejar o mundo que quiser; por outro, ele precisa instituir conexões com mundos que não domina. A China não dominada, tomada e retroalimentada pelo capitalismo, de onde deriva também o cinema e suas condições materiais e imateriais. Como operar uma crítica no interior desse paradoxo? Pergunta difícil de ser deduzida, tampouco em uma só resposta. Arrisquemos, então, por algumas vias.
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“O documentário não opera interrompendo o fluxo, sua velocidade é infinita e anacrônica. (...) por que fazer documentário? Certamente não há uma resposta única, mas se o documentário insiste, urgentemente, é porque o real está sendo inventado, com imaginação e ficção, porque podemos muito mais do que existe, porque certas palavras ainda circulam sem fazer diferença no mundo, porque os recortes do que é visível e do que é dizível dependem da nossa força de imaginação e de invenção do real. Porque diante da dor do outro não há retake7.”
“Porque diante da dor do outro não há retake”. A frase é precisa. Se o documentário insiste, urgentemente, é porque há o outro a ser inventado. E a nossa existência passa igual ou desigualmente por tal relação de alteridade. Passa pela dor do outro. Porque ainda perpetuam-se os espaços de opressão, violência, cinismo. E também a ternura, o prazer, a delicadeza. O que nos faz lembrar o cineasta Pedro Costa, quando diz que a vida completa e difícil das pessoas ou a violência de acontecimentos históricos e sociais não são o que lhe dá vontade de fazer um filme. “É sempre qualquer coisa que está do lado dessas pessoas difíceis e complicadas e que, ao mesmo tempo, também nos pode dar notícias sobre nós. Percebemos como andamos perdidos”. De algum modo, se o documentário insiste, urgentemente, é porque continuamos perdidos. Não que seja sua vocação mais messiânica predizer o caminho de um mundo mais seguro, justo, honesto. Mas porque ele pode, de algum modo, inventar os lugares para que certos discursos se reinscrevam, cidades se reconstruam, memórias sejam resgatadas, sujeitos se reinventem. Por muitas vezes os filmes de Jia Zhangke poderiam ser observados sob as categorias da figura estandardizada de uma arte crítica estabelecida em nossas expressões contemporâneas, por tratarem de mundos, no limite, opostos: “a do encontro de elementos heterogêneos, incompatíveis, que instaura o conflito entre dois regimes sensíveis”8. Contudo, esta é uma forma de tensão que se revela não produtiva, que tende a dar conta do evento impossibilitando qualquer outro dizer ao seu respeito, traçando formas de ação política exauridas em certa função social. É fácil perceber como a compreensão pode nos induzir a uma visão redutora das imagens nos filmes do cineasta: a industrialização e o mundo do consumo frente às formas orgânicas da natureza e o labor artesanal (Inútil e Um artista batedor de carteiras); a precarização do trabalho e da vida diante da ostentação dos projetos urbanísticos (24 City e O Mundo); a preservação de espaços cada vez menos habitáveis em contraste com a ocupação humana massiva e desordenada nas cidades (Memórias de Xangai); a pungente ocidentalização e o sufocamento da antiga tradição onde se sedimenta toda a milenar sociedade chinesa (Prazeres Desconhecidos e Plataforma). 7
MIGLIORIN, Cezar. “Documentário recente brasileiro e a política das imagens”. In: MIGLIORIN, C. (org.) Ensaios no real: o documentário brasileiro hoje. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2010 (p. 20). 8
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RANCIÈRE, Jacques. Política da arte. Trad. Mônica Costa Netto. Transcrição da apresentação de Jacques Rancière no seminário “São Paulo S.A: práticas estéticas, sociais e políticas em debate” (São Paulo, SESC Belenzinho, 17 a 19 de abril de 2005).
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DIDI-HUBERMAN, Georges. Cuando las imágenes toman posición: el ojo de la historia, I. Madrid: Antonio Machado Libros, 2008.
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Neste sentido, a montagem adquire força, religando pontas de experiências a priori impossíveis, através de operações de conexão e disjunção e, sobretudo, por em relação – sujeitos, afetos, visibilidades, palavras – abrindo passagens para os devires. Devir-imagem, devir-cidade, devir-memória. A afirmação poderia nos colocar em uma posição de conflito, afinal, o cinema mais dialético parte justamente do encontro de forças dissonantes pela montagem, encontrando em seu intervalo a produção da síntese. Estar em devir, por outro lado, pensa o acontecimento, como propõe Didi-Huberman, como construção; e o dado, como um possível. O que permite que se coloquem em rede tantas imagens, na aparência, contraditórias: fábricas, vilas, paisagens, bairros, espetáculos, tecelagens, rios, escombros, embarcações. Poderíamos produzir uma lista de imagens ininterrupta. Porém, não se trata disso. De um acúmulo de imagens à exaustação, mas à força daquilo que as tece, da escritura que as faz partilhar certos mundos. Não se trata também de uma visão totalizante – da condição humana, do mundo, da China - justamente por invalidarem essa conformação por um corte “dialetizante”: pensar a tese com a antítese9. Aproximação e afastamento. Desejo com reserva. Dobras e estrias da imagem. Se, para conhecer, é preciso tomar posição, a ação de Jia Zhangke enquanto operador de imagens é precisamente fazê-las passar de um estágio a outro e, sobretudo, comunicar-se. A diferença entre as duas ações é evidente: num campo dialético, pautado por princípios de causalidade, os efeitos produzidos apontam ao próprio centro – à obra, ao problema social, ao discurso apologético -, onde o embate entre os heterogêneos dá a ver sempre uma unidade. No sentido oposto, os filmes de Jia passam de blocos de imagens a outros sutilmente, colocando-os em relações tangenciais, fazendo do evento uma construção, mudando de lugar para que seja possível ver, sem configurar uma unidade como o discurso monolítico da verdade. “Uma arte crítica deve ser, à sua maneira, uma arte da indiferença, uma arte que construa o ponto de equivalência de um saber e de uma ignorância, de uma atividade e de uma passividade10”, escreve Jacques Rancière. Nesta medida do sem medida, como o filósofo francês chama a montagem, Jia encontra em uma mina de carvão trabalhadores que retiram fuligem de si após o expediente. Dos corpos nus escorre a água do trabalho, imunda, que se mistura à imundície do sanitário. Não se trata de interrogar o mundo e submetê-lo às possíveis relações de causa e efeito, “como se a tentativa para ultrapassar a tensão inerente à política da arte conduzisse ao seu contrário, isto é, à redução da política ao serviço social e à indistinção ética11”. A reificação do homem, a artificialidade da vida, como uma arte de denúncia que se desimplica, como estivesse fora, a observar o mundo que racha. Estamos todos no mesmo mundo sentindo os tremores e abalos sob nossos pés, assistindo as fendas abrirem aos nossos olhos. Não convém conduzir a política da arte a formas consensuais, visando excluir aquilo que é a própria disputa política – o dissenso. Dissenso que não é o conflito de interesses e valores da comunidade, mas “a possibilidade de opor um mundo a outro”. O cinema não encontra abrigo aos moradores de uma cidade demolida. Não cura traumas do passado. Não oferece repouso, conforto, não abranda as desigualdades. Parte da sua força pode estar nessas próprias rachaduras do real, por dentro, entre a precariedade da vida e suas possibilidades estéticas. Tensão que habita os corpos, os tempos e os espaços. Os mineradores de Fenyang e as modelos de Paris; os trabalhadores da “420” e as antigas testemunhas de Xangai; as costureiras na tecelagem de Cantão e o pintor impressionista; a
RANCIÈRE, Jacques. Política da arte. Trad. Mônica Costa Netto. Transcrição da apresentação de Jacques Rancière no seminário “São Paulo S.A: práticas estéticas, sociais e políticas em debate” (São Paulo, SESC Belenzinho, 17 a 19 de abril de 2005). 11
Ibidem.
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estilista idealista e a solitária atriz-personagem inventada. Acima de tudo, corpos, indistintos, e o cinema como operador das tarefas de sujar, lavar, religar, confrontar, justapor, dissipar e montar. Por isso, há no cinema de Jia Zhangke certa recusa a esclarecimentos quanto às forças objetivas que movem tais formas de vida ou que levam à sua supressão. São essas ausências de explicações razoáveis, de investimentos morais, de vocações conciliadoras, que também nos colocam no cerne do que há de ser plenamente político, de uma política propriamente da arte: a tensão entre uma vida e suas potências, entre o que ela é e o que ela pode. O dissenso agindo na divisão sensível entre mundos comuns. A cena que parece estar forjada nos filmes de Jia Zhangke é aquela cuja linha que separa o dentro e o fora desapareceu, ou foi cortada pelas formas de estar dos sujeitos, que fazem da cidade suas potências de apropriação da vida e do comum, na tensão entre a vida vivida e a vida filmada. No último plano de Inútil, um senhor pedala repetidamente uma máquina de costura manual, com a qual realiza um conserto. Onde poderia haver uma metáfora, talvez exista a noção que o cinema de Jia Zhangke compartilha sobre as imagens, o mundo e os homens: como a própria ocupação do alfaiate que pensa, continuamente, os rasgos com o tecido.
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LIKE MILK SPILT ON A STONE¹ Jia Zhangke filmmaking
‘Get to know the world without ever leaving Beijing’ Slogan of the theme park in the film The World (2004)
There is a China that reaches us everywhere. In the evening television news, in the news of the daily journals, Discovery Channel documentaries, by the registration numbers and brand identification printed on the electronics that invade the malls, in the street vendors merchandise, and even at the popular Brazilian sales sites Mercado Livre. To a large extent, we can approximate the films of Jia Zhangke much more to this typed China than to some Chinese film tradition which for decades dominated the Western cinemas. It is not concerning to its format or how the country is economically placed by the financial arrangements or the language, but mainly because those exposed features are often linked to the order of events, such as chronicity, fused in everyday life. Jia Zhangke films reveal a face renounced by the traditional Chinese cinema, and presents the country as a place of production which is loose from certain genres patterns, stylistic and thematic conventions affiliated to some dynastic conceptions. If tradition is present, it´s in the way it gives the shock to the intense modernization, within a country where the consequences of negotiation between the progressive westernization of the customs and the parasitism of foreign capital has generated a state of constant change in the reality status : a passageway of bodies, times and spaces. We see times and spaces in tension and the image as means in enabling the gathering of subjectivities, power, visibility, forces affections. Images that summon the urgency for a certain look in contact with the pressing world, in the contingencies of the real, that does not excuse itself to pass and goes on. Thus, the cinema of Jia Zhangke is effectively disconnected from a certain capacity to witness the experience as given, opening gaps for the real itself to dispute within representation systems, as a gesture of creation. “If every thought is a dice game”, before focusing on one last point that blesses it, as the poet Mallarmé² writes it, the whole image of the real pretends a world when it is tied to a territory into a representation. In the wake of the contemporary thinking, motivated by the prerogative of the documentary filming that never reduces itself into a representation or assertion, we allocate the documentary or fictional images in Jia Zhangke filmmaking as the name of freedom. In addition, it never reduces itself in a way of restraining or clarifying certain knowledge about the world. The films, in general, allow us to formulate ordinary questions shared through the narratives by a kind of pairing. In other words, it seems that the work of Jia remains in a stage of continuity, where the issues are successively unfolded and the images are accumulated. There are, notably, inherent differences in the way each narrative happens. These differences are expressed in the plasticity of the image, in its textures, volumes, the durations, the compositions, in the characters, the spaces and times. Moreover, the images have a clear sense of extension, as if the films could be seen through a complementary look, 1
This paper summarizes the core issues of my master´s degree thesis defended at the Graduate Program in Communication at UFF - Federal University -, entitled As milk spilled on the stone: the city, the memory and the editing processes in Jia Zhangke documentary filmmaking. Although the research corpus is mainly built based on the documentary works of the mentioned Chinese filmmaker, there are constant references and descriptions of scenes, plans and sequences derived from his fiction movies as well. In Jia Zhangke films the boundaries between fiction and documentary are always alternating, creating regions of indiscernibility. These are the regions that interest us the most.
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MALLARMÉ, Stéphane. “Un Coup de Dés Jamais N´Abolira Le Hasard”. Translated by Haroldo de Campos. In: CAMPOS, A.; PIGNATARI, D.; CAMPOS, H. Mallarmé. São Paulo: Perspectiva, 2006, p. 153-173.
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allowing us to group them by the issues raised in their own histories, with their unique characters. Regardless of the specifics, we try to think about the films with this clear sense of communion, respecting and making clear the possible features, trying to preserve at the same time what makes them share certain worlds. Worlds taken by a capitalism in a laboratory testing stage, hyper wild, ferocious, which engenders other forms of experience and impregnates the image. Jia Zhangke does not mean to understand it and diagnose it. There is a discomfort on how these forces and powers have been transmuting the landscape, the way of work, the collective memory. Not surprisingly, the individuals have a privileged status in their shown images. Moreover, the films are housed in this place where capitalism has already crossed the epidermal layers of the society, implying life in its minimal activities. They do not produce ruptures only with the process and the community. They are fully taken, at the heart of the event. Here, again, it seems to be that place where the images power, in the tension between the mise-en-scène of the lived life and the filmed life, strengths the way Jia Zhangke filming performs its “dance around the concrete,” quoting the philosopher Vilém Flusser. Dance that involves the concrete as it is performed by it, in it. The sumptuousness of the architectural design of the Three Gorges (Dong, 2006) contrasts with the city that is about to submerge, and more than that, its inhabitants, before the disappearance of their own domicile, are obliged to invent other ways of living. The demolished factory (24 City, Er shi si cheng ji, 2008), beyond the disassembled material of an inadequate labor force for the industrial production in view of the new market demands, presents, at once, a sense of community and an irremediable loneliness. The coexistence of various work activities (Useless, Wuyong, 2007) - the worker, the artist and the artisan/craftsman – gather the extremes of impossible experiences and makes them dialogue with each other, considering the ways these subjects realize life and enabling forms of affectivity against the world brutalization. The abrupt changes of the city (I wish I knew, Hai shang chuan qi 2010) and its skyscrapers, the place of memories between the inaccessible past and the present that rises. In these films of Jia Zhangke, we realize the chronicity of a narrative practiced within the real and its escapes, fragments and gaps: plasticity, precariousness, brutality, materiality, historicity and the inventiveness of the real. There is not a utopian project of emancipation. It is in the very arid world that the moments of assembling, freedom and resistance are composed. An ancient tradition of deformation with the speed of a connectionist, dynamic capitalism; the stiffness of the material that crumbles with the force of the water; the austerity of History, its landmarks, wars, independence, revolutions, conflicts, before the worldly transience. The stone and the milk. The hardness, the dryness, the rigor; the lightness, the fluidity, the steam. The milk. The stone. “The AND is not one, nor the other, is always between the two, it is the border, there is always a escaping line, or some flow, but that is not seen, because it is less noticeable. Yet, it is on this run away line that things pass, what is meant to be is made, revolutions are shaped.”³ Heterogeneous elements that once touched do not mix anymore, although they are responsive to their mutual presence forging unique forms of contact. Heterogeneous elements that do not matter to us if found separated. They are interesting to us if together, united in a relationship. The stone is subject to erosion; the milk is exposed to a volatilization. Forms 3
DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Editora 34, 1992 (p. 60-61).
China, capital of the XXI century: between remembering and forgetting “Okay, it´s here,” says the exotic motorcycle rider who takes Han Sanming to the street where he lived in Fengjie. The man looks at the landscape around him with a bewildered looks. “Here?” He asks doubting the conviction of the driver. “See there? That grass in the water? It is all that is left from your street, “says the driver with his bizarre blonde tuft of hair oxygenated. Han leaves the bike and observes the disproportionate dam, still trying to understand the situation. “But it’s all underwater!” he screams in pain after a few seconds in the deepest silence. “All the old Fengjie was flooded. Haven´t you seen the news?”, replies the driver. Sixteen years have passed since his ex-wife left the house where they lived and took their daughter with her. At that time, the city was a city. With its routine of automobiles, motorcycles and bicycles. With shops and traders, festivals and popular myths: preserving its two thousand years of history on the banks of the Yellow River. The next flooding phase is marked with red painting in a wall at the top of a building: 156.5 meters. Soon enough, where men used to sit chatting, there will only be water. Water and floating herbs: “there, where my house used to be.” Those wording are taken from Still Life (Sanxia Haoren, 2006), film directed simultaneously to Dong, in the initial half of this documentary located in Fengjie. The situation presents one of the greatest filming features of Jia Zhangke´s works - back to the old home. Going home (Xiao Shan Huijia). Both Han, as the character played by Zhao Tao, the director´s muse, returns to the city in search of something. He seeks the former family; and the woman is looking for her husband from whom she does not receive news for about two years. The attempt of returning becomes as a tragic impossibility in view of the town disappearance. If we could risk (and we can risk at least) a moment in the writing of Jia Zhangke images, we would invest in the way they do not sew the cracks of forgetfulness and the gaps between experiences and memories. In contrast, they seem to advance to free them, accommodating evasively the memories of the cities and the individuals, retrieving them always as creation – returning in the difference. Such memories do not seem to aim the full recovery, the permanence of a world that continually eludes the image and that will always escape from it. Because some world had been lost, that’s for sure - the city submerged in Dong and Still Life. However, other forces burst and resist, as the waters of the dam that burst but can initiate at the same time a new survival space. Without attempting to find the source, the first place in an exact past origin, in a way that all the present draws back and finds thereby its resolutions. The accumulation is lost, that leads to a total reconstruction, it loses the history strength, certain places of recognition and legitimation. In exchange, considering the conceptual universe of Walter Benjamin, we brush history against the grain, recovering the past that are updated in the present from those who do not integrate the history, with the h letter in lower case. The time speech, testimonies, gestures scattered at the scene of the same individuals who invest their physical and emotional powers in the material construction of this world, who is not isolated and apart from the scene, but shares it.
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of reality. Images of the real. Today, it seems increasingly possible to know the world without ever leaving Beijing.
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“The city does not just become unfit to live in, it is no longer reserving a place to the look nor to the memory.”4 Trying to mark a knot between space and time, the statement is accurate. On the other hand, if the city no longer has a place for its individuals, it will not have a place for memory either; maybe, and just maybe, the filmmaking can still give us those experiences. In Jia Zhangke filming, precisely the memory has a place. Elusive, centered. In very rare moments, only in I wish I knew (whose translation undoubtedly controversial, attributes a fixed meaning to the memory that distance it from the film) the editing appeals to archive footage, making an explicit and assertive act of turning to the past. Even in those moments, however, there is a strong impression that the past is never given as a recovery. Past that only exists if represented, fabled and thus again, experienced. Now another one. Because the memory in Jia’s films is never in the past, it pulsates with energy in the present, with the same wide-eyed angel who watches the disaster that erupts ahead. Is this “anachronistic” dimension that Beatriz Sarlo5 speaks “at the time the history thinks about building a landscape different from the one it travels in, with astonishment, the Klee´s angel, it is indicating not only that the present works on the construction of the past, but also that it is its duty to do so.”6 The contemporary, therefore, is not just like the one that identifies the dark present and thus gives it a light; is, moreover, the one that interpolates the time in a way of changing it and putting it in a relation with some sort of reality. “Do you remember Fenyang?”, asks Jia Zhangke to a former employee, about her childhood in the film 24 City. “Vividly,” she replies. At once, past experience and the memory of the present are stressed in this speech. Only at the invisible light shadow that emanates from the dark present, the past can react to the darkness of the actual times. And the recollection without this dimension, turns the history in the image of the watchman who walks days and nights by the factory “420”, that is about to be totally demolished, ensuring they do not violate a grave where there are no longer any bodies - a past where there is nothing to be remembered. “From North to South, there will be lines that will deviate the shown settings, a E, E, E marking each time a new threshold, a new direction of the broken line, a new exhibit of the borders [...] the images and sounds”, writes Deleuze,”And the gestures of the watchmaker when he is on the assembly line and in his assembling table: an imperceptible border separates the two, which is neither one nor the other, but also that drags one another in a non-parallel evolution, escape or into a flow that you can no longer identify who chases whom, neither to which destination. A whole micro against the macro-political borders of the large sets.” 6 The philosopher writes about Godard, although we could, by analogy, ponder the work of Jia, since his editing does not reveal a third image as a finite idea, accomplishing a dialogue from something that is by principle kept apart. Putting in opposition, in this case, means creating something productive in this very tension, as long as the result is not consumed in itself. Thus, it shall remember us: the city is always one more. Two. Three. The past and the present. The private and the public. The memory and forgetfulness. Writing is the task of operating from networks that connect and vanish weakly, in the production between the lines, the bodies, the gestures and images. Image over image, the city folds in other representations, revealing its variation power. 4 5
HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000 (p. 22).
SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. Trad. Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2007 (p. 49).
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DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Editora 34, 1992 (p. 61).
In the opening scene of I wish I knew, an imposing bronze lion is shot from his back. In his eyes, demolition, rubble of buildings and car traffic of the huge metropolis, as in any other city, in slow motion. The image is powerful: in the shadow of all that is most unchangeable, the city falls in its tracks and streams, in what eludes from the shot, in what allows to be taken in the act, in the momento, and at the same time, disappears through the row of cars. From the memory of the city maybe the bronze statues are still preserved. But to Jia Zhangke filming, however, what really matters is exactly what escapes from the sight and vanishes. Forgotten memories. As in the poem by TS Eliot: “what could have been and what was converge to one end, which is always present. Footsteps echo in the memory along the galleries not traveled toward the door that we will never open. “ The rips and the cloth: Editing and politics The images in the films of Jia Zhangke would restore the individuals´ right to the cities that are taken from them by the powers that brutally transforms the topography and the sensitive landscapes, erecting and devastating places, sweeping histories and memories ? Could the Images minimally change the sensitive being that is linked to such individuals / subjects conditions? Since, on the one hand the film may desire any world it wants, but on the other, it needs to establish connections with worlds that it can´t dominate. This China not under control and dominated, completely taken and continuously fed by the capitalism, from which the film also derives with its material and immaterial conditions. How to operate a critic review within this paradox? Sounds like a difficult question to be deduced, either in a single answer. Let´s risk then, by some means.
“Because in front of the other´s pain there is no retake”. The phrase is accurate. If the documentary keeps insisting urgently, it´s because there is another one to be invented. And our existence passes by, equally or unequally by such otherness relationship. Going through the pain of others. Because the gaps of oppression still perpetuate, the violence, the cynicism. And also the tenderness, the pleasure, the delicacy. This reminds us Pedro Costa, the filmmaker, when he says that the complete and hard life of other individuals, or the violence of the historical and social events are not the aspects that urges him to make a movie. “It’s always something that is on the side of those difficult and complicated people and at the same time, aspects that can also give us some news about us. We are able to realize how we have been lost”. Somehow, if the documentary insists, in urgently manner, it is because we are still lost. It does not mean the documentary has this messianic vocation of predicting the way of a safer, fair and honest world. But because it can somehow invent places in which certain speeches can be re written, cities can be rebuilt, memories can be redeemed, individuals can reinvent themselves. In many occasions, Jia Zhangke films could be observed under the categories of a stand-
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The documentary does not work interrupting the flow, its speed is infinite and anachronistic. (...) Why do the documentary filming? Certainly there is no single answer, but if the documentary insists urgently is because the real is being invented with imagination and fiction, because we can much more than what exists, because certain words still circulate without making any difference in the world, because the clippings of what is visible and what is viable to be spoken depends on our power of imagination and invention of the real. Because in front of the other´s pain there is no retake. 7
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MIGLIORIN, Cezar. “Documentário recente brasileiro e a política das imagens”. In: MIGLIORIN, C. (org.) Ensaios no real: o documentário brasileiro hoje. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2010 (p. 20).
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ardized figure of a critical art established in our contemporary expressions, as they dealt with opposite worlds, ultimately in its limits: “the meeting of heterogeneous elements, incompatible with each other, which establishes the conflict between two sensitive regimes”8 However, this is a form of tension that reveals an unproductiveness, which tends to take care of the event precluding any other message about itself, tracing forms of political action exhausted to some social function. It is easy to see how the comprehension can lead us to a reductive overview of the images of the filmmaker movies: the industrialization and the consumption world facing the organic forms of nature and the handcraft work (Useless and Xiao Wu - Pickpocket); the precariousness of labor and life in front of the pomposity on urban projects (24 City, Er shi si cheng ji and The World, Shijie); the preservation of increasingly less habitable spaces in contrast to the massive and uncontrolled human occupation in major cities (Memories of Shanghai); the poignant Westernization and the suppressing of the ancient tradition in which the Chinese millennial society is based on (Unknown Pleasures Ren xiao yao, Platform Zhantai). In this sense, the editing processes acquires strength, reconnecting the tips of impossible experiences, through the connection and disjunction tasks and above all, through relations – individuals, affections, visibility, words - opening passages to the courses of what is to become. The Becoming-image, becoming-city, becoming memory. The statement could put us in a conflict position, after all, the most dialectical film starts precisely from the encounter of dissonant forces through the editing process, finding in its interval the synthesis of the production. Being in such ‘becoming course’, on the other hand, is a thoughtful process about the event, as proposed by Didi-Huberman, as a building continuous process; and the data, as a feasible possibility. This enables the development of so many images in the scenes network set, which seems conflicting to each other: factories, villages, landscapes, neighborhoods, spectacles, weaving, rivers, rubble, boats. We could reproduce a list of uninterrupted images. But that’s not the case. It´s not about the accumulation of images to the exhaustion, by the strength of what weaves them together, the writings that makes them share certain worlds with each other. It is not about a totalizing view either – of the human condition, of the world, of China – exactly because they invalidate this conformation by a “dialectical” cut: think about the thesis with the antithesis9. Approach and retraction. Desire with cautiousness, restraint. Folds and stretches of the image. If for purposes of understanding, it is necessary to take a position, the action of Jia Zhangke as images´ operator is precisely to make them move from one stage to another and, above all, he is communicating. The difference between the two actions is very clear: a dialectical field, guided by principles of causality, the produced effects points out to the center itself - the works, the social problem, the apologetic speech - where the clash between heterogeneous aspects enables an the development of an unit, always. In the opposite direction, the films of Jia go from one block of images to other quite subtly, placing them in tangential relationships, making the event a building up process, changing places, so that you can see, without configuring as one single unit, the monolithic discourse of truth. “A critical art should be, in its way, an art of indifference, an art that builds the equivalence point of knowledge and ignorance, of an activity and passivity,”10 writes Jacques 8
RANCIÈRE, Jacques. Política da arte. Trad. Mônica Costa Netto. Transcrição da apresentação de Jacques Rancière no seminário “São Paulo S.A: práticas estéticas, sociais e políticas em debate” (São Paulo, SESC Belenzinho, 17 a 19 de abril de 2005). 9
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DIDI-HUBERMAN, Georges. Cuando las imágenes toman posición: el ojo de la historia, I. Madrid: Antonio Machado Libros, 2008.
RANCIÈRE, Jacques. Política da arte. Trad. Mônica Costa Netto. Transcrição da apresentação de Jacques Rancière no seminário “São Paulo S.A: práticas estéticas, sociais e políticas em debate” (São Paulo, SESC Belenzinho, 17 a 19 de abril de 2005).
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Rancière. In this extent of what has no extensions, as the French philosopher calls the editing process, Jia found in a coal mine workers that remove soot from their bodies after working hours. From the naked bodies flows the water from the labor, the filthy, blending with the restrooms filth. This is not an issue of questioning the world and submit it to the possible relationship of causes and effects, “as if trying to overcome the tension inherent in the art of politics lead to its opposite, ie, the reduction of politics to social service and blurring ethics.”11. The artificiality of life as an art of denunciation that does not implicate itself in the process, as if it is watching from the outside the world as it goes cracking. We’re all in the same world feeling the tremors and quakes beneath our feet, watching the cracks opening in front of us. It is not appropriate to lead the arts politics to consensual forms, aiming to exclude what is the very political dispute – the dissent. Dissent which is not the conflict of interests and the community values, but “the possibility of opposing one world to another.” The filmmaking is not the shelter for the residents of a demolished city. It does not heal past traumas. It does not offer rest, comfort, it does not mitigate inequalities. Part of its strength may be in these very cracks of the real, inside it, between the precariousness of life and its aesthetic possibilities. Tension that inhabits the bodies, times and spaces. The Fenyang miners and the Paris models; the workers of the “420” and the ancient witnesses of Shanghai; The weaving seamstresses in Canton and the impressionist painter; the idealistic fashion designer and the lonely actress-character invented. Above all, bodies, indistinct, and the filmmaking as the tasks operator of soiling, maculating, washing, rewiring, confronting, superposing, dissipating and editing. Because of that, Jia Zhangke filming refuses to expound clarifications on the objective forces that drive such forms of life or that lead them to suppression. These absences of reasonable explanations, moral investments, conciliatory vocations, that also put us at the heart of what is to be fully politician, of a proper political of the art itself: the tension between life and its powers, among what it is, indeed, and what it can do. The dissent acting in the sensible division between common worlds. The scene that appears to be forged in the films of Jia Zhangke is that one whose line that separates the inside and the outside had disappeared, or had been cut off by the individuals state of being, that makes the city as their means to appropriate powers, and also the ordinary, the common, the tension between the lived life and the filmed life. In the last sequence of Useless, a man repeatedly pedals a manual sewing machine in which he is repairing some clothing. Where we could find a metaphor, perhaps there is the notion that the cinema of Jia Zhangke actually shares the images, the world and men: as the tailor´s labor, that thinks continually about the rips on the cloth.
11
Ibidem.
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EM BUSCA DA VIDA: DESTRUIÇÃO COMO INTERCESSÃO ERIK BORDELEAU
ENSAIOS | ERIK BORDELEAU
*Publicado originalmente em 2012 na revista Scapegoat.
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Este ensaio tem a intenção de ser uma espécie de meditação sobre imobilidade, ou, mais precisamente, o poder de parada que caracteriza Em busca da vida (Sanxia haoren, 2006), o poder iminente na fronteira do real e do imaginário, do tempo e da história, de documentário e ficção, e, finalmente, a política e a “vida”. Muitos comentaristas do cinema contemporâneo chinês insistem no realismo dos filmes de Jia Zhangke, e sua estética quase documental como forma de inferir sua relevância política. Mas se Em busca da vida é realmente um filme de grande interesse político, não só em virtude do seu esforço de ser testemunha de uma China em completa mutação. Mas como devemos considerar o teor ético e político de intervenções fílmicas de Jia Zhangke em relação ao seu aclamado realismo? O cinema de Jia Zhangke se destaca não apenas por uma preocupação excepcional por se misturar com os mundos que ele enquadra; obviamente que não pretende “partir caveiras”, como Eisenstein teria feito. Nesse sentido, o desafio desse ensaio consiste em chegar o mais próximo possível do ponto onde o gesto fílmico de Jia e os gestos realmente filmados torna-se indiscernível. Porque Jia Zhangke é um intercessor, mediador; talvez o maior intercessor vivo do mundo da arte chinesa (junto com Ai Weiwei). O conceito de intercessão foi primeiro definido pelo cineasta Pierre Perrault, de Québec, e depois ampliado por Gilles Deleuze em seus estudos sobre a imagem-tempo. Resumidamente, podemos dizer que intercessão envolve um ato de fabulação, que se relaciona com o que Deleuze chama de “potência do falso” porque para além de uma mera transmissão de informações (como potencialmente sugerida pela tradução de “mediação”), intercessão coloca o problema de como se pode acreditar no mundo. Abaixo tento destacar as transformações qualitativas que o gesto fílmico de Jia, de intercessão, assume, encoraja e apóia em um mundo radicalmente inacreditável: a China contemporânea. Talvez melhor do que qualquer outro trabalho no campo do cinema chinês contemporâneo, Em busca da vida oferece uma oportunidade única para meditar sobre essa função de intercessão, em um contexto de extrema mudança sócio-econômica e de destruição em massa de ecossistemas e habitats humanos. Em Em busca da vida, o gesto de intercessão, em última análise, consiste em um mergulho no olho de 拆 (chai, demolição), uma passagem ao longo da mesma linha do processo de demolição; tudo o que o carácter chai representa tanto no sua previsão e figuração. Por outro lado, vou escrever sobre chai (e de outros elementos que encontraremos durante a análise) que ele interpola duração dentro do filme, fazendo uma interrupção imaginária, na qual o poder de parada de Em busca da vida reside. Intercessão e interpolação são dois conceitos primários com os quais quero abordar o gesto fílmico de Jia. O primeiro refere-se a ideia de tornar-se e é uma passagem obrigatória para aqueles que Gilles Deleuze chama de “as pessoas a vir”; o segundo só é inteligível através de uma firme concepção de imaginação como uma faculdade humana apropriadamente, que pode ser identificada com uma operação de edição (os dois conceitos são complementares em sua orientação e inclinarão em direção ao inter ou intermediaridade das coisas - ambos se aproximam do mundo pelo meio). Ambos também se relacionam com um movimento de
singular a singular, de acordo com o que Giorgio Agamben chamou de uma analógica, ou paradigmática lógica que traça constelações exemplares que podem ser lidas como itinerários virtuais ou passagens para a comunidade que vem. Mas para uma constelação ser formada, o presente precisa ser imobilizado. É essa constelação de pensamento que eu desejo explorar com mais detalhes abaixo. Colocando-se tão perto quanto possível do processo de demolição causado pela construção da barragem das Três Gargantas, Em busca da vida apresenta-se como uma prática do não lugar, assim como fez O mundo (Shijie, 2004), filme anterior de Jia Zhangke. Diferente de O mundo, Em busca da vida ainda não é tanto sobre o mal estar existencial, unilateralizante,, como é uma maneira de enquadrar “progresso em tempo real”, o que quer dizer uma forma de suportar este teste de destruição no tempo presente. Nesse envolvimento fílmico de mis en jeu, há um eco da descrição de Walter Benjamin do caráter destrutivo: “O que existe, ele reduz a escombros - não por causa dos escombros, mas pelo modo de conduzir através dele (...)” (3). Claro, Jia não é responsável pela destruição de Fengjie, uma cidade prestes a ser submersa, com mais de 2 mil anos de história. Em vez disso, ao tomar para si a tarefa de colocar em filme um momento tão crítico da história chinesa, com foco na beleza dos gestos e corpos que realizam a demolição, e testemunhando o limiar do silêncio que insiste nos pontos mais importantes do evento-personagem chai, Jia evita os fúteis clichês que alimentam o desejo nacional da China de poder. Neste, ele paga um tributo às vítimas anônimas desse projeto faraônico fornecendo uma reflexão verdadeira de sua situação e sobretudo, no exílio previsto, a possibilidade de um encontro. OVNI e realismo Furtiva e inesperada, a aparição do espectro ...
Pela metade de Em busca da vida, um evento estranho, pode-se mesmo dizer que um evento “puro”, ocorre: um OVNI atravessa inesperadamente o céu, deixando os personagens – e o público - imóveis e mudos, em um estado de visão pura (clarividência). Por alguns segundos, o mundo está suspenso: um momento espectral, um “momento que não pertence mais ao tempo”, como Derrida colocaria, ao passo que tudo aparece em uma imobilidade irreal, a meio caminho entre a realidade e a ficção, secretamente desajustada. (4) A incongruência desta aparência espectral é bastante surpreendente, especialmente dado que filmes de Jia são geralmente descritos como “realistas” por causa de seu conteúdo social e também por causa da estética minimalista, quase documental que os caracterizam. A introdução desse elemento puramente imaginário no decorrer do filme levanta questões sobre o sentido de realismo nos filmes de Jia. A passagem do UFO interpola a narrativa, corta-a em dois e marca a transição entre as duas histórias em torno das quais gira Em busca da vida: a de San Ming, um mineiro que volta para sua esposa após 16 anos de separação, e de Zhao Tao, que, depois de deixada por seu marido sem qualquer notícia por dois anos, vai vê-lo no canteiro de obras da barragem onde ela anuncia a sua intenção de se divorciar dele. A partir dessa perspectiva, o OVNI estaria traçando os limites narrativos de cada uma dessas histórias do exterior, por assim dizer, observando a dimensão ficcional. Essa referência a um ponto “transcendental” de onde a historia é contada problematiza a relação entre realidade e ficção. De uma maneira que permanece obscura, a passagem do OVNI se
ENSAIOS | ERIK BORDELEAU
Derrida, Espectros de Marx
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identifica com o gesto fílmico de Jia. Ele parece sinalizar um ponto hipotético de contato (mesmo que disjuntivo) entre a ficção (o filme) e a realidade verdadeira do cineasta, algo como a marca cósmica de sua intervenção cinematográfica no mundo. Em outras palavras, poderíamos dizer que, onde o OVNI interpola, a potência do falso está em ação, que também corresponderia a um movimento de intercessão interpolar é ao mesmo tempo interromper e imaginar, inserir e falsificar, introduzir e disfarçar. 写生 / 写意: escrever a vida ou a vida de imagens
É característico que em chinês não dizemos que uma forma, uma figura ou um signo tem um “sentido”, mas uma “intenção” 意 (yi): forma, figura e signo são, por natureza, uma representação.
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Jean-François Billeter, a arte chinesa da escrita
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Jia Zhangke foi convidado primeiro ao canteiro de obras da barragem das Três Gargantas por seu amigo Liu Xiaodong, um pintor chinês famoso que estava intimamente envolvido no surgimento da “Sexta geração” de cineastas na China, então trabalhando em uma série de pinturas sobre a vida dos trabalhadores e camponeses obrigados a deixar sua terra natal. (5) Uma das obras que ele produziu na época, Três Gargantas foi vendida por mais de 22 milhões de yuans, em novembro de 2006 (cerca de US$ 2.6 milhões na época), que foi um recorde para uma obra de arte contemporânea chinesa naquele momento. É nesse contexto que Jia Zhangke simultaneamente roda dois filmes: Em busca da vida, de ficção, e um documentário sobre Liu Xiaodong, intitulado Dong. Ambos os filmes foram apresentados no Festival de Veneza, em 2006, com Em busca da vida ganhando o Leão de Ouro da competição. A proximidade entre os dois trabalhos nos dá a oportunidade de pensar sobre a complexa relação entre realismo, documentário e ficção na obra de Jia. Quando justapostos, esses dois filmes podem causar algum desconforto ao espectador que experimenta a divisão borrada entre realidade e ficção, pois se coloca na passagem entre as duas obras. Mas antes de enfocar esta questão, devemos primeiro fazer uma pergunta que dificilmente pode ser evitada dado o título do filme, ou seja, a questão da relação entre o realismo cinematográfico e “still life” como um estilo pictórico. Originalmente, Em busca da vida era para ser chamado 静物 (Wu Jing), o equivalente mandarim de “still life”. Antes o título chinês tornou-se 三峡 好人 (San Xia Hao Ren), As pessoas corajosas de Três Gargantas. Em mandarim, o termo completo para traduzir “still life” é 静物 写生 (xie jing wu sheng), onde xie sheng, que significa literalmente “escrever a vida”, sugerindo um estilo de pintura realista que toma o mundo exterior como um modelo. Em Inglês, xie sheng pode ser traduzido como “pintura a partir da vida” (painting from life), que é também o título de um livro sobre o trabalho de Liu Xiaodong. (6). “Pintar a partir da vida” refere-se a um tipo de pintura feita ao ar livre, fora do estúdio. O termo xie sheng se opõe a uma prática de pintura clássica chinesa chamada 写意 (xie yi), que significa literalmente “para escrever a partir de intenção ou ideia” (etimologicamente, yi é “o som do coração”, sugerindo a idéia de ressonância); o termo xie sheng enfoca a relação subjetiva entre o artista e o objeto que ele ou ela representa, sugerindo que estes objetos não podem nunca ser completamente objetivado (7). Não é menos nessa perspectiva que Jia Zhangke e Liu Xiaodong compartilham um desejo de retratar a situação da China contemporânea mais próxima às suas transformações, pintando e filmando no local de origem, “a partir da vida”. Nesse contexto, é interessante examinar mais atentamente a abordagem artística de
Liu Xiaodong, como é apresentado em Dong. Seu desejo de capturar a realidade na carne o levou a desenvolver uma técnica de pintura muito particular:
“Meu objetivo é me confinar em um espaço estreito para pintar, de modo a erradicar a mão da minha racionalidade. (...) Depois de anos de pintura, controle não é um problema. Mas para alcançar o tipo de controle que me permite dar uma expressão vital, eu tenho que definir limites rígidos sobre forma e físico. Ou seja: eu fico de quatro para pintar, como se para mergulhar nele, ficando não mais que a um metro da tela. Você não pode ver muito longe de tal ponto de vista. E então, você retrata o assunto com seriedade, como se fizesse uma transcrição, embora condições físicas evitem uma transcrição muito perfeita... Nesta situação, eu deixo meu corpo ir com o fluxo, de modo que minha energia física é derramada nela”. (Do filme Dong)
Em sua série de pinturas feitas nas Três Gargantas, Liu Xiaodong dedicou-se a capturar a beleza natural de corpos nus do trabalhador, esculpidos por seu trabalho. Para isso, ele os põe juntos em um espaço reduzido, em volta de um colchão. Ele estende sua tela a poucos passos deles, diretamente no chão, e “isola-se” no local. Os corpos posam imóveis, enquanto Liu está energicamente ocupado “derramando-se” sobre a tela, transmissor-transcritor do poder concentrado dos corpos, montados e composto, suspensos como natureza morta. Na descrição de seu gesto pictórico, Liu Xiaodong presta atenção especial na organização da sua própria atividade física (mais tarde em Dong, também vemos ele fazendo uma espécie de gong fu). É “tudo dele” que está em jogo no energético processo de transcrição, de um modo que parece ficar a meio caminho entre xie sheng e xie yi, dando uma profundidade única a seu “realismo” pictórico. Também parece que seu senso de forma e a maneira como ele dá forma devem ser entendidos em relação à tradição caligráfica chinesa, que sempre atribuiu uma importância primordial à integração corporal do gesto pintura-escrita. Na tradição caligráfica chinesa, é todo o corpo que captura e internaliza a figura, para então manifestá-la espontaneamente:
Essa descrição das “figuras de intenção” e sua relação com o corpo do calígrafo fica mais próxima ao processo vital pelo qual uma imagem é feita fisicamente dinâmica. A contração vital de Liu Xiaodong produz um espaço pictórico saturado de vitalidade, concentrado nas figuras que correm profundo, alcançando os filmes de Jia de uma forma que pode ter a ver com o que Benjamin chamou Dialektik im Stillstand, uma dialética imóvel, onde as imagens estão no limiar do movimento e da imobilidade, em uma pausa carregada de tensão. (9) Em última análise, a única maneira de entender o gesto fílmico de Jia em toda sua complexidade envolve ir mais longe naquilo que pode ser definido como a questão da impregnação imaginária, a meio caminho entre a caligrafia chinesa tradicional e da pintura e dialética da imagem de Benjamin. Mas, de novo, o poder ético-político do gesto cinematográfico de Jia deve ser concebido sobre um plano que poderíamos chamar, de acordo com Warburg e Agamben, a vida de imagens. Bill Viola sintetiza o que está em jogo aqui quando ele sublinha
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“Quando o calígrafo captura uma figura dinâmica e o internaliza, ela se torna uma “figura grávida “. O ideograma chinês que ele utiliza, 意象 (yi xiang), significa literalmente “figura de intenção”, que quer dizer que a figura carrega intenção, ou está “grávida de intenção.” Este termo refere-se às imagens dinâmicas que nós trazemos dentro de nós, que espontaneamente tende a expressão quando reativado: um gesto, um momento expressivo que nós integramos. É neste sentido que as figuras recolhidas pelo corpo mesmo estão “grávidas” ou “carregadas de expressão”. (8)
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como “imagens vivem em nós...somos bancos de dados de imagens vivos...e uma vez que imagens entram dentro de nós, elas nunca param de crescer e transformar-se.” (10)
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Dong, verdadeiro Em busca da vida? A força vital de corpos nus dos trabalhadores celebrada por Liu Xiaodong constitui um motivo central de Dong, mas também de Em busca. Em sua excelente entrevista com Jia Zhangke intitulada Jia Zhangke: pintor para a câmera política Stéphane Mas sublinha que “o que Xiaodong Liu diz dos corpos desses trabalhadores, esta beleza, esta força, é mostrado em Em busca da vida”, acrescentando que “o trabalho de tempo sobre os corpos está presente em toda parte, especialmente Em busca da vida” (11). De fato, Dong e Em busca da vida estão intimamente ligados e sua justaposição dá origem a um complexo entrelaçamento entre realidade e ficção. Por exemplo, na ficção Em busca da vida, Mark, um jovem extravagante que faz amizade com San Ming, morre depois que é esmagado sob uma parede de tijolos. (12) No documentário Dong, testemunhamos o retorno do cadáver de um trabalhador para a sua família; lá novamente, San Ming está presente. De uma forma extremamente inquietante, essa cena estende a morte ficcional do personagem de Em busca da vida. San Ming (que é o seu nome real) aparece como um personagem testemunhando a morte fictícia de um amigo, assim como uma testemunha, demasiado verdadeira, da morte de um colega. Outro elemento menos dramático borra sutilmente a linha que separa o documentário e a ficção: ver San Ming, um dos personagens principais de Em busca da vida, posar como um trabalhador anônimo “simples” para uma das pinturas de Liu Xiaodong. O figural e imobilidade “irreal” de quem inicialmente era conhecido como um personagem e sua imagem e a dos colegas de trabalho retratados, de forma retroativa interpola na imaginação de Em busca da vida, criando uma espécie de duplicação de perspectiva, desse modo revelando outro aspecto essencial da complexidade do gesto fílmico de Jia. Pictoricamente falando, algo mais do que real, um complexo de imagens vivas na tela - uma contração imaginal - traz realidade e ficção para uma zona de indiscernibilidade. É difícil conceituar precisamente o tenor de desconforto do espectador criado por essa indefinição de realidade e ficção, como se o efeito da ficção de plenitude fosse se decompor sob o toque áspero do documentário. (13) Poderia ser esse um pouco de tempo puro, então? A vida das imagens parece envolver um “tempo crônico”, um chronos apreendido em ruptura essencial no tempo cronológico, que parece abrir caminho para o surgimento do que Deleuze chamaria de “picos de presente desatualizado.” (14) A partir dessa linha de emergência imaginal, nossa meditação ganha um novo solo: trata-se de extrair tanto o significado cinematográfico e ético-político de interpolação, como a produção de picos de presente desatualizados em Em busca da vida. O poder da parada em ação em Em busca da vida que se manifesta como o limite do real e do imaginário, do documentário e da ficção, agora deve ser procurado no limiar do tempo e da história. Paradoxo temporal de Em busca da vida Este filme é uma obra profundamente paradoxal. Por um lado, tudo nele está em movimento: a construção da barragem das Três Gargantas dá origem a um enorme fluxo migratório, enquanto milhares de moradores veem sua antiga cidade progressivamente coberta pelas ondas crescentes. Como em seus trabalhos anteriores, Jia mostra os efeitos do desenvolvimento econômico acelerado da China sobre a classe mais baixa, focando aqui no desenraizamento forçado
das “pessoas corajosas das Três Gargantas”, como o título do filme em mandarim declara. No plano cinematográfico, tudo parece ser apenas movimento: mas um movimento lento, fluido, sinuoso e meditativo, fundindo-se com o fluxo regular do poderoso Yangtze, como sugerido pela magnífica cena de abertura do filme. O filme também toma para si mesmo alguns elementos da pintura clássica chinesa: rio, montanha e névoa (note que em mandarim, paisagem é escrito 山水 (shanshui), “montanha-água”). Além disso, na tradição chinesa, este nevoeiro onipresente no vale das Três Gargantas, suavizando o contorno da montanha e embelezando a paisagem, também é considerado como promotor da fertilidade das trocas e da fluidez das comunicações. No I Ching (Livro das Mutações), por exemplo, a Figura 58, 兑 (dui), “trocar”, é obtida pela dupla repetição do trigrama “fog” (novamente, se somarmos o radical “fala” a dui, temos 说 Shuo, o que significa “falar”). Jia Zhangke, que estudou artes plásticas e pintura clássica antes de se dedicar ao filme, descreve seu uso das muitas tomadas panorâmicas em Em busca da vida como um “gesto que assemelha-se aos rolos de pintura clássica, que eles iriam desenrolar daquele modo no espaço.” (15) Jia acrescenta: “Se eu escolhi o cinema, é porque permite que você mostre o tempo que passa.” (16) Entre a temporalidades humana e natural justapostas, Em busca da vida mostra uma vida que, apesar de tudo, segue seu curso irreversivelmente. Nesse sentido, o filme é realmente uma “natureza morta”, que consiste segundo Deleuze, em uma forma pura e direta de tempo. (17) E ainda, em uma maneira menos óbvia mas ainda assim palpável, a obra também está carregada de um poder de parada – em inglês e alemão, respectivamente, poderíamos dizer “standstill” e “stillstand”, duas expressões que sugerem que algo resiste a si mesmo e segura em uma espécie de verticalizante, mas imanente interrupção. Em Em busca da vida, algo consiste e resiste a si mesmo. (18) O verbo resistir vem do latim resistere, onde encontramos sistere, “estar parando.” No plano macropolítico, como outras obras de Jia Zhangke e, mais amplamente, o melhor do cinema da “Sexta geração”, Em busca da vida resiste interpolando-se no fluxo da mass media chinesa, criando um curto-circuito nas representações higienizadas e moralizadas tomando parte no empreendimento de marketing nacional, palco mundial que inundam e tamanho do espaço público chinês. O quanto precisa essa descrição possa ser, este nível de análise falha ao deferir sua força à critica das representações. Devemos também conduzir/recrutar o apoio de uma exploração paciente da micropolítica de Jia – sua sutil forma de entrar na intimidade imaginal das formas de vida - para revelar os planos de consistência que ele encontra lá. É no nível molecular e imaginal que, em última análise, devemos procurar no poder de parada de Em busca da vida, e da singularidade do gesto fílmico de Jia. Crença e tempo A crítica do capitalismo contemporâneo como hegemonia de subsistência e negação da existência deve Bernard Stiegler, Mécréance et discrédit I. la décadence des démocraties industrielles O cinema precisa filmar não o mundo, mas acreditar no mundo, nossa única conexão. Gilles Deleuze, Imagem-Tempo.
A construção da hidrelétrica de Três Gargantas é um grande símbolo da modernidade chinesa; poderia-se dizer que, de alguma forma, resume os principais episódios históricos da China do século XX. A ideia foi apresentada em 1919 por Sun Yat-sen, fundador da República
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fazer as perguntas de coerência e, como tal, da crença que a constitui, o que quer dizer, que consiste nela.
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da China, e novamente em 1949, no momento da chegada do Partido Comunista ao poder. O projeto visa a controlar a corrente mortal do Yangtze, melhorar as condições de navegação, e, é claro, produzir eletricidade. Ao longo dos anos, vários estudos de viabilidade foram realizados, mas devido à turbulência política que atingia a China, foi apenas em 1979, assim que a Revolução Cultural terminou, que o local exato da barragem foi confirmado. Em 1989, com Jiang Zemin e Li Peng superando todos os obstáculos (com o filho do último como principal acionista do projeto), o Projeto das Três Gargantas foi adotado. O projeto foi votado na Assembleia Nacional da China, em 3 de abril de 1992, e a construção começou um ano depois, em 1993. (19) Ao usar arquivos de televisão mostrando Mao Zedong e Deng Xiaoping, Em busca da vida enfatiza a dimensão histórica do projeto das Três Gargantas; em outra sequência, alguém conversando com um homem responsável pela construção de uma ponte que liga as margens do Yangtze exclama: “O Yangtze está domado. Você realizou o sonho de Mao”. Em busca da vida nos lembra que o projeto da represa de Três Gargantas é um assunto de longo prazo. Mas além dos aspectos históricos, o filme essencialmente questiona o próprio evento da barragem, seu caráter inacreditável. Claro que a barragem está lá, presente, presente demais. Mas, paradoxalmente, o fato de que ele inegavelmente está lá, não é suficiente para ter certeza de que somos contemporâneos do mesmo. Isso porque copresença ao evento nunca é simplesmente cronológica: nesse caso, não poderíamos dizer que algo (inacreditável) nos acontece. Para Deleuze, esse problema se abre para a questão central da “crença no mundo.” Crença, para Deleuze, não é acreditar em algo (que quer dizer acreditar como tomar por verdade algo que é representado) mas, em vez disso, uma crença pela qual o mundo segura, pela qual um tornar-se é efetuado, uma crença que garante a impermeabilidade de uma linha de tornar-se - o pressuposto de uma determinada forma de relação com o tempo. A partir dessa concepção imanente de crença, Deleuze cria um curto-circuito sobre a direta oposição entre realidade e ficção e afirma uma função de fabulação onde é apresentada como poder e não como modelo. Definido como tal, a função de fabulação é imediatamente política:
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“É o personagem real que deixa sua condição particular, ao mesmo tempo em que o autor sua condição abstrata (...) é uma palavra em ato, um ato de fala através do qual o personagem continuamente atravessa a fronteira que separaria seu negócios privados da política, e que produz ele mesmo discursos coletivos.” (20)
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Na medida em que ele se constitui como poder de fabulação, Deleuze pode dizer do cinema que ele “torna-se um discurso livre, indireto, operando na realidade”. (21) Crença engajada na fabulação opera na realidade – ela funciona, percebe, efetua. Se há uma política em Deleuze, temos de procurar por ela, no auge da crença e da fabulação em um complexo ir e vir entre efetuação e contra-efetuação. O gesto de intercessão desdobrando-se em Em busca da vida não é nada menos do que uma tentativa de estar à altura do evento que é a construção da barragem das Três Gargantas. É nesse contexto que devemos compreender a introdução de elementos fantásticos na narrativa do filme: um OVNI cruzando o céu, um edifício de arquitetura surreal de repente decolando como um foguete, personagens de uma época passada usando telefones celulares e jogando vídeo games; elementos imaginários que problematizam a relação com o real e revelam uma necessidade para que ela seja tornada ficção, na maneira de contar histórias. Para justificar o lado surrealista de Em busca da vida, Jia irá simplesmente mencionar que na China “coisas inacreditáveis acontecem o tempo todo. Nós, às vezes, temos dificuldade
em acreditar no que vemos”. (22) Filmando “a partir da vida”, Jia ultrapassa realismo estrito para chegar aos pontos de fusão fabulatórios do real, filmando não só o mundo, mas nossa crença nesse mundo. Ao fazer isso, ele oferece uma espécie de fulcro fictício e coletivo para as biografias pessoais das vítimas da construção da barragem, que também estão em risco de não resistir à demolição, de serem incapaz de integrar sua diferença para esse evento maior do que a vida, e de serem arrastadas pelas ondas de um tempo fatalmente distendido. Passagem: o olho do 拆 (chai) Porque a forma atual deste mundo está morrendo.
Em busca da vida nos leva para as ruínas de uma cidade que está desaparecendo, usando o trabalho de demolição dos trabalhadores como um fio condutor comum. “A primeira vez que eu vi a destruição dos edifícios, diz Jia Zhangke, eu realmente senti que significava o fim de algo, mas também o início de uma nova era”. (23) Várias sequências no filme mostram diferentes aspectos da tensão histórica entre passado, presente e futuro. Em um ponto, por exemplo, podemos ver um grupo de arqueólogos que trabalham para salvar os restos do passado. Relação com o passado é também muito importante no encontro entre San Ming e Marcos, o jovem imitador do famoso Chow Yun Fat, que morre no final do filme. San Ming diz a Mark que ele quer reencontrar a mulher que ele havia comprado há 16 anos. O objeto de sua busca envolve alguma lealdade com o passado. “Nós não esquecemos o que somos”, diz ele, em contraste com os modos do jovem Mark, que quer ser tão moderno quanto possa ser, e pretende viver em um “mundo de aventureiros”. Em um ponto, os dois trocam seus números de celular. O toque do celular de San Ming toca Vida longa às pessoas corajosas. Quando ouve, Mark exclama: “Porra! Pessoas corajosas? Nenhuma dessas em Fengjie estes dias!”. Note que essa mesma expressão, encontrada no título em mandarim do filme 好人 (hao ren), acentua sua dimensão histórica. A seqüência continuou com a música do toque de Mark, que parece ter sido composta especificamente para descrever a situação atual, no vale das Três Gargantas “Ondas fluem, ondas quebram / o rio corre por mil milhas / ele ondula através de nosso mundo de desgraças / e leva todos nossos sofrimentos”. Para a música, a câmera então se volta para uma tela de televisão que vai mostrar uma sequência de imagens começando com uma mulher em lágrimas, e continuando com um barco navegando no rio. Essa bela e suave transição fílmica terminará com a passagem do OVNI. A situação é dura, muito dura, para os trabalhadores migrantes designados para a demolição de Fengjie. “Todos estes trabalhadores são mais ou menos desempregados”, diz Jia, “todos são mais ou menos sem-teto, com este movimento perpétuo de um lugar para outro, esse sentimento de exílio permanente”. (24) Esses trabalhadores ocupam uma posição crucial no desenvolvimento econômico chinês, e não é por coincidência que eles são o tema escolhido por Jia. Eles são o grande povo sacrificado do desenvolvimento econômico chinês, ao mesmo tempo indispensável e exagerado. Uma cena especialmente marcante de Em busca da vida resume a condição deles: enquanto os trabalhadores sem camisa martelam os restos de um edifício que desabou, uma equipe sem roupas de proteção está atravessando as ruínas e vai pulverizar pesticidas em preparação para o que, em breve, será o leito do rio. Uma música estranha enfatiza a incongruência do momento, enquanto em uma parede ainda de pé um cartaz diz: “Deem a vocês mesmos corpos e almas”. O tempo se esgota: de
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Paulo, Carta aos Coríntios
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alguma forma, o futuro está prestes a acontecer, mas obviamente, esse futuro não será dos trabalhadores, que já terão dado tudo. Ao mostrar esta solidariedade com o destino dos trabalhadores, o poder imaginal de Em busca da vida está concentrado no tempo presente político, na vanguarda do processo de demolição. Em meio às ruínas de Fengjie, Jia toca forças que são irredutíveis à fábula oca do progresso econômico e do poder nacional que satura a mediascape chinesa, e priva a classe trabalhadora de uma representação adequada de sua condição. A aposta final do gesto de intercessão de Jia é traduzir em imagens o poder de destruição mobilizado no vale das Três Gargantas, de modo que extrai um tornar-se um configura como uma passagem. Como ele faz isso? Qualquer pessoa que tenha viajado para a China nos últimos anos sabe que uma característica essencial da situação pode ser observada em uma figura onipresente constituindo um limiar real entre o velho e o novo, o passado e o futuro: 拆, chai, que significa “demolição”, um personagem que pode ser encontrado em qualquer edifício a ser destruído. Poderíamos dizer que o ato de intercessão de Jia é integrar o dinamismo latente da figura chai, e para efetivar sua legibilidade, no coração do caos provocado pela destruição acelerada de Fengjie. Essa legibilidade é provisória e pontual, como é a passagem figura desaparecendo deste mundo. Como outros artistas chineses contemporâneos, Jia nos convida para passar inteiramente pelo olho de chai - só a esse preço pode haver contemporaneidade na China. Discutindo poesia clássica chinesa, Qin Haiying menciona como “alguns versos aparecem como justaposição de imagens...onde cada palavra torna-se, como diz Barthes sobre Mallarmé, uma “estação”, que pode irradiar em todas as direções”. (25) Este poder paratáxico do caráter chinês ilumina o status particular do chai de Em busca da vida. Chai apresenta-se como um exemplo paradigmático de interpolação imaginal, no qual reside o poder de parada do filme. Pois, apesar do aparentemente contínuo caráter do gesto de intercessão, a transição não é suave: implica uma interrupção imaginária, a introdução de “um intervalo resistente no próprio momento”, uma interpolação. (26) No pico da figura chai, Em busca da vida des-morre (di-stills) algum tempo puro. Se a figura de chai realmente configura a possibilidade de passagem, é na medida em que é estabelecida como um contratempo imaginário, transfigurando a realidade da destruição e fazendo isso em um tempo crônico, não cronológico - um pico de presente desatualizado. Há uma passagem apenas porque, de uma forma ou de outra, há uma parada “pela” imagem, uma parada “na” imagem. O presente em Em busca da vida é um presente editado em imagens; e no lugar das passagens que ela configura pode estar, em última análise, o que Foucault ao descrever o limiar do exterior e da ficção, chamou de “intermediário neutro” ou “interstício de imagens”. (27)
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Conclusão: China no tempo após a mutação O momento é o Caudine Yoke sob o qual o destino deve curvar-se ao corpo. Para transformar o futuro ameaçador em um realizado “agora”, o único milagre telepático desejável é uma obra de presença corporal da mente. Walter Benjamin, One-way street (28)
Em uma entrevista realizada por Agnès Gaudu, Jia questiona diretamente sua relação com a contemporaneidade chinesa e a incrível mutação que seu país experimentou desde o começo das reformas econômicas, com uma crítica da atualidade da barragem:
O que é particularmente notável nesta passagem é que Jia sistematicamente escapa da história de transição econômica e promessa de infinito progresso. Ele destaca a crescente disparidade entre o progresso tecnológico-econômico e a abertura política em seu país, uma discrepância que não é, certamente específica da China, e que Bernard Stiegler define como um “processo de destemporalização”, significando que “a sociedade está desajustando do sistema técnico, e este desajuste já é uma perda de tempo”(30). Nas palavras de Jia, aquelas usadas no título da entrevista, isso se traduziria na seguinte declaração: “Nós ainda não terminamos de digerir a história recente”. Mas para provocar uma “digestão da história”, temos de encontrar necessariamente seus termos, e seria inútil procurar por ele em um plano estritamente cronológico. “Se a ideia do progresso humano não permanece, Sigfried Kracauer diz “é principalmente porque ela é inseparável da ideia de tempo cronológico como matriz de um processo que carrega significado”. (31) O OVNI de Em busca da vida simboliza, de sua própria maneira, os limites da imaginação progressiva. É bem conhecido que OVNIs surgem apenas no céu vazio de progresso, quando as constelações do passado perderam toda legibilidade. Eles incorporam a flecha do tempo homogêneo, carregando para o futuro: eles são a personificação espectral da utopia do progresso. Mas paradoxalmente, sua aparição dobra a linha do tempo cronológico. Por um instante, o curso do tempo é suspenso. Poderíamos dizer que o UFO aparece apenas no ponto onde a imaginação progressiva, assintomaticamente, se aproxima de seu próprio limite. Ao dizer que nós estamos encarando agora uma China “depois da mutação”, Jia resiste à “tendência progressiva informada” para pensar o presente através da exigência por conclusão político-cultural. Em busca da vida põe-se exatamente nesse hiato entre o homogêneo tempo vazio do progresso e a necessidade vital de parar o presente, ou melhor, para dar lugar a um conceito do presente “que não é uma transição, mas em vez disso um no qual o time se origina e chega a um impasse”. (32) Em seu estudo da temporalidade messiânica, Agamben afirma: “Enquanto nossa representação do tempo cronológico, como o tempo no qual estamos nos separa de nós mesmos e nos transforma em espectadores impotentes de nós mesmos – espectadores que olham o tempo que voa sem deixar qualquer tempo, continuamente sentindo falta deles mesmos (...)”. (33)
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Jia Zhangke: Como um chinês, eu sinto que não entendo muito bem o que aconteceu na China por todos esses anos. A evolução foi tão rápida... Os personagens masculinos e femininos também não entendem. Estamos na presença de um OVNI. A política de reforma e abertura nos ensinou que a vida iria melhorar. Mas, até hoje, a vida melhor é um OVNI, ela não se materializou ... Eu acho que essa reforma de Deng Xiaoping está acabada e o que vemos hoje não é a China em mutação, mas a China de após a mutação. É como a barragem. Está terminada e podemos até visitá-la. Chegamos a atingir um certo nível de vida material, mas uma questão continua por resolver: como administrar tudo isso? Agnès Gaudu: Não haverá mais mudanças? JK: Nós já estamos no final do que tal reforma poderia trazer. AG: Sobre a questão da China onde está indo, você também não pode responder? JK: Eu faço filmes que, simplesmente, mostram o que acontece. Economia em boa ou má saúde, período aberto ou conservador, tudo está misturado. É difícil sintetizar. Antes, eu pensava que o problema da China era que o desenvolvimento econômico era muito rápido. Hoje, eu acho que rapidez não é um problema. O problema é a abertura política e cultural, que é muito lenta, e a diferença entre dois ritmos; um desenvolvimento econômico acelerado e uma mudança política lenta. (29)
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Para estarmos à altura do evento que está acontecendo conosco, temos de conseguir combater a perda de tempo; temos que literalmente nos dar tempo. Dar-se tempo é, para San Ming ou Zhao Tao, provocar encontros que vão ajudar a resolver os problemas do passado, de modo que cada um possa conjugar a sua vida com o presente. Na minha leitura, O mundo, de Jia Zhangke, discuti o que Debord chama de “organização sistemática de um colapso na faculdade de encontro” (34). Em Em busca da vida, há contrastantemente uma celebração do tempo qualificado do encontro. Significativamente, o filme é dividido em quatro partes: tabaco, álcool, chá e doces. Na época da economia planificada, esses luxos foram distribuídos pela população de uma forma igualitária. Na economia de Em busca da vida, “eles são, Jia diz, o sinal da persistência das relações sociais na China”. (35) A interpolação desses intertítulos, durante o filme, enfatiza efetivamente o poder de estabelecer relações desses objetos simbólicos, que estão assinando, através do seu intercâmbio, o tempo aberto e indeterminado do encontro. NOTAS (1) Etimologicamente, interpolação significa “interrupção”. Em uma exegese complexa da relação entre potencialidade e multidão no pensamento político de Dante, Agamben afirma que “na tradição averroísta, [interpolação] coincide com a imaginação”. Para mais detalhes, consultar “ópera L’dell’uomo” em La potenza del pensiero, Neri Pozza, Vicenza, 2005, p.375. Também é interessante notar que Adorno, falando de Benjamin, diz que “para ele, a imaginação filosófica é a capacidade para interpolar nos mínimos detalhes”. Citado em Gérard Raulet, Le caractère destructeur, Aubier, 1997, p. 89. Além disso, em cos’è il contemporaneo? (Nottetempo, Roma, 2008), Agamben sugere que o contemporâneo divide e interpola o tempo. É nessa tradição que posicionamos o nosso uso do conceito de interpolação. (2) Para mais detalhes sobre o “gesto paradigmático”, veja o capítulo “O que é um paradigma?”. Em Giorgio Agamben, Signatura rerum, Bollati Boringhieri, Torino, 2008. (3)http://www.theoria.ca/theoria/archives/2007/01/benjamin-the-destructive-character.html (4) Jacques Derrida, Spectres de Marx (Paris: Galilée, 1993), 17. (5) Por exemplo, Xiaodong foi um ator em The Days (1993), de Wang Xiaoshuai, e diretor de arte em Beijing Bastards (1993), de Zhang Yuan. (6) Weiwei, Ai, Liu Xiaodong, Liu Xiaodong: Painting from Life, Timezone 8, Hong Kong, 2008. (7) Em ambos os casos, surpreendentemente, os chineses preferem dizer do pintor letrado que ele está “escrevendo.” Por quê? De acordo com Zheng Wuchang, autor de uma história abrangente da pintura chinesa (Zhongguo Huaxue Quanshi, Shuhua Chubanshe, Shanghai, 1985), “os estudiosos desprezar o termo pintar, que tem algo de manual com ele, e faz você pensar em reprodução formal das coisas”. Qin Haiying resume os comentários de Zheng em Segalen et la Chine. Écriture intertextuelle et transculturelle, ENSAIOS | ERIK BORDELEAU
L’Harmattan, Paris, 2003, p.138. Em Le nu impossible, François Jullien também oferece alguns elementos
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de resposta: “Se nós gostamos de dizer do pintor letrado que ele escreve, é para significar que o que ele está representando - bambu, pedra ou carácter - nunca está separado de uma vontade dizer [vouloir dire] e que a forma que ele traça, mesmo quando emprestado do mundo, é investido com a sua subjetividade”. François Jullien, Le nu impossible, Seuil, Paris, 2005, 91. (8) Jean-François Billeter, L’art chinois de l’écriture, Skira & Seuil, Paris, 2001, 185. (9) Para uma análise esclarecedora dessa concepção dialética da imagem voltamos até “dinamogramas”, de Aby Warburg e “fórmulas de pathos”. Ver Giorgio Agamben, Ninfe (Torino: Bollati Boringhieri, 2007). (10) Citado por Giorgio Agamben em Ninfe, 10.
(11) Stéphane Mas, Jia Zhangke: peintre derramar caméra politique, http://www.peauneuve.net/article. php3?id_article=171 (como de 24 de Outubro de 2008). (12) As circunstâncias de sua morte permanecem misteriosas, mas algumas sequências do filme nos levam a crer que Mark, que não era um trabalhador, foi vítima de um acerto de contas entre gangues rivais ligadas a empresas de demolição. (13) Em Film Fables, Rancière observa que documentário tem a possibilidade de apresentar a “verdade sem sentido da vida”, emblemático da arte estética, que ele opõe à ação plausível, característica da arte de representação e sua exigência mimética. “O privilégio do chamado documentário é que ele não é obrigado a criar a sensação do real, e isso lhe permite tratar o real como um problema e experimentar mais livremente com os jogos de variáveis de ação e de vida, significação e insignificância”. Ver Jacques Rancière, Film Fablese (Oxford: Berg Publishers, YEAR), 17-18. (14) Gilles Deleuze, Cinéma 2 : The Time-Image (London: Athlone Press, London, 1989), 130. (16) Stéphane Mas, Jia Zhangke : peintre pour caméra politique, http://www.peauneuve.net/article. php3?id_article=171 (em 24 de outubro, 2008). (17) Gilles Deleuze, , Cinéma 2 : The Time-Image, p.273. Deleuze discute naturezas mortas em relação a Ozu, influenciado muito por Hou Hsiao-Hsien, que é uma das principais fontes de inspiração cinematográfica de Jia Zhangke. (18) A expressão “resistir a si mesmo” é uma pedra angular do pensamento de Santiago Lopez Petit. Veja Horror Vacui: La travesia de la noche del siglo, Veintiuno Siglo editions, Madrid, 1996. A forma reflexiva do verbo “resistir” permite internalizar a ação opositora. Além disso, permite que seja reconduzida para o corpo. (19) Para mais detalhes, consulte Philippe Savoie, “Impact durable du barrage des Trois Gorges sur le développement durable de la Chine”, Revue VertigO, UQAM, Vol. 4 N.3, december 2003. (20) Gilles Deleuze, Cinéma II :The Time-Image, p222-223. (21) Gilles Deleuze, Cinéma II : The Time-Image, p.155. (22) Stéphane Mas, Jia Zhangke : peintre pour caméra politique, http://www.peauneuve.net/article. php3?id_article=171 (as of october 24, 2008). (23) Stéphane Mas, Jia Zhangke : peintre pour caméra politique, http://www.peauneuve.net/article. php3?id_article=171 (as of october 24, 2008). (24) Stéphane Mas, Jia Zhangke : peintre pour caméra politique, http://www.peauneuve.net/article. php3?id_article=171 (as of october 24, 2008). (25) Qin Haiying, Segalen et la Chine. Écriture intertextuelle et transculturelle, p.23 (26) Gilles Deleuze, Cinéma II : The Time-Image (XXX) 155. (27) Ver Michel Foucault, Maurice Blanchot : The Thought from Outside, (New York: Zone Books, 1987). (28) Walter Benjamin, Selected Writings Vol. 1, (Cambridge: Belknap Press of Harvard University Press, 1996), 483. (29) Agnès Gaudu, “On n’a pas encore digéré l’histoire récente”, in Courrier international, Hebdo N.862, may 10th 2007; my emphasis. 2004, p. 71. (31) Citado em Laurent Olivier, Le sombre abîme du temps, Seuil, 2008, p, 147. (32) Walter Benjamin, On the Concept of History, http://www.efn.org/~dredmond/Theses_on_History.html. (33) Giorgio Agamben, The Time that remains, Stanford University Press, Stanford, 2005, p.68. (34) Ver The World without Future: Stage as Entrapment in Jia Zhangke’s Film, China Review, Vol.10, N.2; Guy Debord, The Society of Spectacle, Zone Books, New York, aphorism 217. (35) Agnès Gaudu, On n’a pas encore digéré l’histoire récente, Courrier international, Hebdo N.862, May 10th 2007.
ENSAIOS | ERIK BORDELEAU
(30) Bernard Stiegler, Mécréance et discrédit. I. La décadence des démocraties industrielles, Galilée, Paris,
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JIA ZHANGKE’S STILL LIFE: DESTRUCTION AS INTERCESSION ERIK BORDELEAU
ESSAYS | ERIK BORDELEAU
*Originally published in 2012 in Scapegoat journal.1
This essay is intended as a kind of meditation on stillness, or, more precisely, the stopping power that characterizes Still Life (2006), power looming on the border of the real This essay is intended as a kind of meditation on stillness, or, more precisely, the stopping power that characterizes Still Life (2006), power looming on the border of the real and the imaginary, of time and history, of documentary and fiction, and ultimately, politics and “life”. Many commentators of contemporary Chinese cinema have insisted on the realism of Jia Zhangke’s films and their quasi-documentary aesthetic as a means to deduce their political relevance. But if Still Life really is a film of great political interest, it is not only by virtue of its striving to bear witness to a China in full mutation. But how should we envisage the ethical and political tenor of Jia Zhangke’s filmic interventions in relation to their acclaimed realism? Jia Zhangke’s cinema stands out not least for an exceptional concern for blending with the worlds it frames; it is obviously not seeking to “split skulls,” as Eisenstein would have it. In that sense, the challenge of this essay consists in getting as close as possible to the point where Jia’s filmic gesture and the gestures actually filmed become indiscernible. For Jia Zhangke is an intercesseur (mediator), perhaps the greatest living intercesseur of the Chinese art world (along with Ai Weiwei. The concept of intercession has first been shaped by Quebec filmmaker Pierre Perrault and then amplified by Gilles Deleuze in his studies on the time-image.2Briefly, we can say that intercession involves an act of fabulation, which relates to what Deleuze call the “power of the false”; for beyond a mere transmission of information (as potentially suggested by the English translation, “mediation”), intercession poses the problem of how one can believe in the world. Below I attempt to highlight the qualitative transformations that Jia’s filmic gesture of intercession assumes, fosters, and supports in a radically unbelievable world-contemporary China. Perhaps better than any other work in the realm of contemporary Chinese cinema, Still Life offers a unique opportunity to meditate on this function of intercession in a context of extreme socio-economic mutation and of massive destruction of ecosystems and human habitats. In Still Life, the gesture of intercession ultimately consists of a dive into the eye of 拆 (chai, demolition), a passage along the very line of the demolition process, which the chai character represents both in its foretelling and figuration. Conversely, I will say of chai (and of other elements we’ll encounter during the analysis) that it interpolates duration within the film, making an imaginal interruption in which the stopping power of Still Life resides. Intercession and interpolation are the two primary concepts with which I want to envisage Jia’s filmic gesture. The former relates to ideas of becoming, and is an obligatory passage for those whom Gilles Deleuze calls the “people to come”; the latter is only intelligible through a strong conception of imagination as a properly human faculty, which can be identified with an editing operation.(1) The two concepts are complimentary in their orientation and inclination toward the inter or in-betweeness of things – they both approach the world “by the middle.” They also both relate to a movement from singular to singular, according to 1
To be published in Spring 2012 in Scapegoat: Landscape, Architecture and Political Economy http://scapegoatjournal.org/ (A French version of this article can be found at www.inflexions.org) 2
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See Pierre Perreault, « Le discours de la parole » (1966) in De la parole aux actes, L’hexagone, Montréal, 1985; Gilles Deleuze, « The Powers of the False » and « Cinema Body and Brian Thought », in Cinema II : The Time-Image, University of Minnesota Press, Minneapolis, 1989,
what Giorgio Agamben has called an analogic, or paradigmatic logic that traces exemplary constellations, which can be read as virtual itineraries or passages for the coming community.(2) But for a constellation to be formed, the present needs to be immobilized. It is this constellation of thought that I wish to explore in greater detail below. Standing as close as it gets to the demolition process caused by the construction of the Three Gorges dam, Still Life presents itself as a practice of the non-place, as did The World (2004), Jia Zhangke’s previous film. Unlike The World, Still Life is not so much about unilateralizing existential malaise as it is a way to frame “progress” in real time, which is to say a way of withstanding this test of destruction in the present tense. In this filmic involvement or mise en jeu, there is an echo of Walter Benjamin’s description of the destructive character: “What exists he reduces to rubble – not for the sake of rubble, but for that of the way of leading through it.”(3) Of course, Jia is not responsible for the destruction of Fengjie, a soon to be submerged city of more than 2000 years of history. Instead, by taking up the task of putting on film such a critical moment of Chinese history, focusing on the beauty of the gestures and bodies performing the demolition, and witnessing the threshold of stillness that insists at the foremost point of the chai character-event, Jia avoids the futile clichés feeding China’s national will to power. In this, he also pays tribute to the anonymous victims of this pharaonic project by providing them with a truthful reflection of their situation and, above all, in the foretold exile, the possibility of an encounter. UFO and realism Stealthy and untimely, the apparition of the spectre…
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Derrida, Spectres de Marx
Around the middle of Still Life, a strange event, one might even say a “pure” event, occurs: a UFO unexpectedly crosses the sky, leaving the characters – and the audience – immobile and speechless, in a state of pure seeing [voyance]. For a few seconds, the world is suspended: a spectral moment, a “moment that no longer belongs to time” as Derrida would put it, while everything appears in an unreal immobility, halfway between reality and fiction, secretly misadjusted. (4) The incongruity of this spectral apparition is quite surprising, especially given that Jia’s films are usually described as “realistic”, because of their social content and also because of the minimalist, quasi-documentary aesthetics that characterize them. The introduction of this purely imaginary element in the course of the film raises questions regarding the meaning of realism in Jia’s films. The passing of the UFO interpolates the narrative, cuts it in two and marks the transition between the two stories around which Still Life revolves: San Ming’s, a miner who comes back to his wife after 16 years of separation, and Zhao Tao’s, who, after being left by her husband without any news for two years, goes to see him at the dam’s construction site where she announces her intention to divorce him. From this perspective, the UFO would be drawing the narrative boundaries of each of these stories from the outside, so to speak, noting their fictitious dimension. This reference to a “transcendental” point from where the story is told problematizes the relationship between reality and fiction. In a manner that remains obscure, the UFO’s passage identifies itself to Jia’s filmic gesture. It seems to signal a hypothetical point of contact (even if a disjunctive one) between fiction (the film) and the filmmaker’s actual reality, something like the cosmic imprint of
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his filmic intervention in the world. In other words, we could say that where the UFO interpolates, a power of the false is at work, which would also correspond to a movement of intercession – to interpolate is at the same time to interrupt and to imagine, to insert and to falsify, to introduce and to disguise. 写生 / 写意 : “to write life” or the life of images It is characteristic that in Chinese we don’t say that a form, a figure or a sign have a “signification”, but an “intention”, 意 (yi): form, figure and sign are, by essence, an acting out.
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Jean-François Billeter, L’art chinois de l’écriture
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Jia Zhangke was first invited to the Three Gorges dam’s construction site by his friend Liu Xiaodong, a famous Chinese painter who was closely involved in the rise of the 6th generation of filmmakers in China, then working on a series of paintings about the lives of workers and peasants forced to leave their homeland. (5) One of the works he produced at the time, “Three Gorges,” was sold for over 22 million Yuan in November 2006 (about US$ 2.6 million dollars then), which was a record for a work of contemporary Chinese art at that time. It is in this context that Jia Zhangke simultaneously shoots two films: Still Life, a fiction, and a documentary film about Liu Xiaodong, entitled Dong. Both films were presented at the 2006 Venice Film Festival, with Still Life winning the Lion d’or of the competition. The proximity between these two works gives us an opportunity to think about the complex relationship between realism, documentary and fiction in Jia’s work. When juxtaposed, these two films may even cause some discomfort to the viewer who experiences the blurred divide between reality and fiction as it takes place in the passage between the two works. But before addressing this issue, we must first ask a question that can hardly be avoided given the title of the film, namely the question of the relationship between cinematographic realism and “still life” as a pictorial style. Originally, Still Life was to be called 静物 (jing wu), the mandarin equivalent of “still life”, before the Chinese title became 三峡好人 (San Xia Hao Ren), “The brave people of Three Gorges”. In Mandarin, the full expression for translating “still life” is 静物写生 (jing wu xie sheng), where xie sheng, which literally means “writing life”, suggesting a style of realistic painting that takes the outside world as a model. In English, xie sheng can be translated to “painting from life”, which is also the title of a book on the work of Liu Xiaodong.(6) To “paint from life” refers to a type of painting done in the open air, outside the studio. The term xie sheng opposes a classical Chinese painting practice called 写意 (xie yi), meaning literally “to write from intent or idea” (etymologically, yi is “the sound of the heart”, suggesting the idea of resonance); the term xie sheng focuses on the subjective relationship between the artist and the object he or she depicts, suggesting that these objects can never can be completely objectified.(7) It is not least in this regard that Jia Zhangke and Liu Xiaodong share a desire to portray contemporary China’s situation closest to its transformations, painting and filming in situ, “from life.” In this context, it is interesting to examine more attentively the artistic approach of Liu Xiaodong as it is presented in Dong. His desire to seize reality in the flesh led him to develop a very particular painting technique: My objective is to confine myself in a narrow space to paint, so to eradicate part of my rationality. [...] After years of painting, control is not a problem. But to attain the kind of control that enables me to give a vital expression, I have to set strict limits on form and phy-
sique. That is: I lie on all fours to paint, as if to dive into it, staying no more than one meter from the canvas. You can’t see that far from such a standpoint. And then, you portray your subject with earnesty, as if making a transcription, though physical conditions prevent too flawless a transcription. In this situation, I let my body go with the flow, so my physical energy is poured into it. (It’s coming from the film Dong)
In his series of paintings made at the Three Gorges, Liu Xiaodong devoted himself to capture the natural beauty of the worker’s naked bodies, sculpted by their labour. To do so, he brings them together in a reduced space, around a mattress. He spreads his canvas a few steps from them, directly on the ground, and “isolates” himself on the spot. The bodies pose, motionless, while Liu is vigorously busy “pouring himself” onto the canvas, transmitter-transcriber of the concentrated power of the bodies, assembled and composed, suspended in still life. In the description of his pictorial gesture, Liu Xiaodong pays special attention to the organization of his own physical activity (later in Dong, we also see him doing a kind of gong fu). It is “all of him” that is in play in the energetic transcription process, in a way which seems to stand midway between xie sheng and xie yi, giving an unique depth to his pictorial “realism.” It also seems that his sense of form and the way he gives shape should be understood in relation to the Chinese calligraphic tradition, which has always attached a prime importance to the bodily integration of the writing-painting gesture. In Chinese calligraphic tradition, it is the whole body that captures and internalizes the figure, to then manifest it spontaneously: “When the calligrapher captures a dynamic figure and internalizes it, it becomes a “pregnant figure”. The Chinese character he utilizes, 意象 (yi xiang), literally means “figure of intention”, which is to say that the figure carries intention, or is “pregnant with intention”. This expression refers to the dynamic images that we hold within us, which spontaneously tend to expression when reactivated: a gesture, an expressive moment that we have integrated. It is in this sense that the figures collected by the body itself are “pregnant” or
Dong, Still Life’s real? The vital force of the workers’ naked bodies celebrated by Liu Xiaodong constitutes a central motif of Dong, but also of Still Life. In his excellent interview with Jia Zhangke entitled “Jia Zhangke: Painter for political camera”, Stéphane Mas underlines that “what
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“charged with expression”. (8)
This description of the “figures of intention” and their relationship to the calligrapher’s body stays closest to the vital process by which an image is made physically dynamic. Liu Xiaodong’s vital contraction produces a pictorial space saturated with vitality, concentrated in figures that run deep, reaching Jia’s films in a fashion that may be having part in what Benjamin called a Dialektik im Stillstand, a stillstand dialectic, where images stand on the threshold of movement and immobility, in a tension-charged pause. (9) Ultimately, the only way to grasp Jia’s filmic gesture in all its complexity involves going further into what could be defined as the question of imaginal impregnation, halfway between traditional Chinese calligraphy and painting and Benjamin’s dialectic of the image. Or, again: Jia’s filmic gesture’s ethico-political power must be conceived on a plane that we could call, following Warburg and Agamben, the life of images. Bill Viola synthesizes what is at stake here when he underlines how “images live in us… we are living databases of images… and once images get into us, they never stop to grow and transform themselves.” (10)
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Xiaodong Liu says of the bodies of these workers, this beauty, this strength, is featured in Still Life”, adding that “time’s work upon the bodies is everywhere present, especially in Still Life.” (11) Indeed, Dong and Still Life are intimately linked and their juxtaposition gives rise to a complex entanglement between reality and fiction. For example, in the fiction Still Life, Mark, a young fanciful man that San Ming befriended, dies after he is crushed under a brick wall. (12) In the documentary Dong, we witness the return of a worker’s corpse to his family; there again, San Ming is present. In an extremely disturbing way, this scene extends the Still Life character’s fictional death. San Ming (which is his real name) appears as a character witnessing the fictitious death of a friend, as well as an all-too-real witness to the death of a colleague. Another less dramatic element subtly blurs the line separating documentary and fiction: seeing San Ming, one of Still Life’s main protagonists, pose as a “simple” anonymous worker for one of Liu Xiaodong’s paintings. The figural and “unreal” immobility of who was initially known as a character and his image and that of the co-workers portrayed, retroactively interpolate in Still Life’s imagery, creating a kind of duplication of perspective, thus revealing another essential aspect of the complexity of Jia’s film gesture. Pictorially speaking, something more-than-real, a complex of living pictures on the screen – an imaginal contraction – brings reality and fiction in to a zone of indiscernibility. It is difficult to conceptualize precisely the tenor of the viewer’s malaise created by this blurring of reality and fiction, as if fiction’s effect of plenitude would decompose under the rough contact of documentary. (13) Could this be a bit of pure time, then? The life of the images seems to involve a “chronic time”, a chronos seized in essential rupture with chronological time, which seems to make way for the emergence of what Deleuze might call “de-actualized peaks of present.” (14) From this line of imaginal emergence, our meditation gains a new ground: it is about educing both the cinematographic and ethico-political significance of interpolation as the production of de-actualised peaks of present in Still Life. The stopping power at work in Still Life that manifests itself at the border of the real and the imaginary, of documentary and fiction, must now be sought out at the threshold of time and history.
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Still Life’s temporal paradox Still Life is a deeply paradoxical work. On the one hand, everything in it is in motion: the construction of the Three Gorges’ dam gives rise to a huge migratory flux, as thousands of residents see their former city progressively impounded beneath the rising waves. Like in his previous works, Jia shows the effects of China’s accelerated economic development on the lower class, focusing here on the forced deracination of the “brave people of the Three Gorges, as the Mandarin title of the film goes. On the cinematographic plane, everything seems to only be movement: but a slow, fluid movement, meandering and meditative, merging with the regular flow of the mighty Yangtze, as suggested by the magnificent film’s opening shot. The film also takes for its own a number of classical Chinese painting elements, river, mountain and mist (notice that in Mandarin, landscape is written 山水 (shanshui), “mountain-water”). Also, in Chinese tradition, this omnipresent fog in the Three Gorges valley, softening the mountain’s outline and beautifying the landscape, is also considered to further the fertility of exchanges and the fluidity of communications. In I Ching (Book of Changes)for example, figure 58, 兑 (dui), “to exchange”, is obtained by the double repetition of the trigram “fog” (again, if we add
the radical “speech” to dui, we get 说 (shuo), which means “to speak”). Jia Zhangke, who studied fine arts and classical painting before devoting himself to film, describes his use of the many panoramic views in Still Life as a “gesture that takes after the rolls of classical painting, that they would unroll like this in space.” (15) Jia adds, “if I chose cinema, it’s because it enables you to show passing time.” (16) Between the juxtaposed human and natural temporalities, Still Life shows a life that, despite everything, follows its course irreversibly. In that sense, Still Life actually is a “still life”, which consists, according to Deleuze, in a pure and direct form of time. (17) And yet, in a less obvious but nonetheless palpable way, Still Life is also charged with a stopping power – in English and German, respectively, we could say “standstill” and “stillstand”, two expressions that suggest something resists itself and holds, in a kind of verticalizing, but immanent interruption. In Still Life, something con-sists and re-sists itself. (18) The verb to resist comes from the latin resistere, where we find sistere, “to be stopping.” On a macro-political plane, like other works by Jia Zhangke and, more broadly, the best of the 6th generation’s cinema, Still Life resists by interpolating itself in the flux of the Chinese mass-media, short-circuiting the molarizing and sanitized representations taking part in the world stage national marketing venture that flood and format Chinese public space. However accurate this description may be, this level of analysis falls short by deferring its force to a criticism of representations. We must also marshall the support of a patient exploration of Jia’s micropolitics – his subtle way of entering the imaginal intimacy of the forms-of-life – to reveal the planes of consistency he finds there. It is on the molecular and imaginal level that we must ultimately look for Still Life’s stopping power, and the singularity of Jia’s filmic gesture. Belief and time The criticism of contemporary capitalism as hegemony of subsistence and negation of existence must ask the question of consistency and, as such, of the belief that constitutes it, which is to say, that consists in it. Bernard Stiegler, Mécréance et discrédit I. la décadence des démocraties industrielles The cinema must film not the world, but believe in the world, our only link.
The construction of the Three Gorges hydroelectric dam is a major symbol of Chinese modernity; one could even say that it somehow summarizes the principal historical episodes of China’s 20th century. The idea was put forth as soon as 1919, by Sun Yat-Sen, founder of the Republic of China, and again in 1949 at the time of the Communist Party’s accession to power. The project aims to control the Yangtze’s deadly spate, to improve navigation conditions and, of course, to produce electricity. Over the years, several feasibility studies have been conducted, but because of the political turbulence that affected China it was not until 1979, just as the Cultural Revolution ended, that the exact site of the dam was confirmed. In 1989, with Jiang Zemin and Li Peng overcoming all obstacles (with the latter’s son a major shareholder in the project), the Three Gorges Project was adopted. The project was voted on at the Chinese National Assembly on April 3rd 1992, and the construction began a year later, in 1993. (19) By using television archives showing Mao Zedong and Deng Xiaoping,
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Gilles Deleuze, Time-Image
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Still Life emphasizes the historical dimension of the Three Gorges project; in another sequence, somebody talking to a man responsible for the construction of a bridge connecting the banks of Yangtze exclaims: “The Yangtze is tamed. You have achieved Mao’s dream.” Still Life reminds us that the Three Gorges dam project is a long-term affair. But beyond the historical aspects, the film essentially questions the very event of the dam, its unbelievable character. Of course the dam is there, present, too present. But paradoxically, the fact that it is undeniably there is not sufficient to be certain we are contemporaries of it. This because co-presence to the event is never simply chronological: if so, we could not say that something (un-believable) happens to us. For Deleuze, this problem opens to the central question of the “belief in the world”. Belief, for Deleuze, is not to believe in something (which is to say believe as taking for truth something that is represented), but rather a belief by which the world holds, and by which a becoming is effectuated, a belief that insures the imperviousness of a becoming-line – the assumption of a determined form of relationship to time. From this immanent conception of belief, Deleuze short-circuits the direct opposition between reality and fiction and affirms a function of fabulation where fiction is presented as power and not as model. Defined as such, the function of fabulation is immediately political:
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“It is the real character who leaves his private condition, at the same time as the author his abstract condition (…) it is a word in act, a speech-act through which the character continually crosses the boundary which would separate his private business from politics, and which itself produces collective utterances. (20)
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In so far as it constitutes itself as fabulation power, Deleuze can say of cinema that it “becomes a free, indirect discourse, operating in reality.” (21) Belief engaged in fabulation operates in reality –it works, realizes, effectuates. If there is a policy in Deleuze, we must look for it at the peak of belief and fabulation, in a complex back and forth between effectuation and counter-effectuation. The gesture of intercession unfolding in Still Life is nothing less than an attempt to rise to the event that is the construction of the Three Gorges’ dam. It is in this context that we should understand the introduction of fantastic elements in Still Life’s narrative: a UFO crossing the sky, a building of surreal architecture suddenly taking off like a rocket, characters from an era that has past using cell phones and playing video games; imaginary elements that problematize the relationship to the real and reveal a necessity for it to be made fiction, in the mode of fabulation. To justify the surrealist side of Still Life, Jia will simply mention that in China, “unbelievable things happen all the time… We sometimes have a hard time believing what we see.”(22) Filming “from life”, Jia oversteps strict realism to reach at the fabulatory fusion point of the real, filming not only the world, but our belief in this world. In doing so, he offers a sort of fictional and collective fulcrum for the personal biographies of the victims of the dam’s edification who are also at risk of not withstanding the demolition, of being unable to integrate their difference to this larger than life event, and of being swept away by the waves of a fatally distended time. Passage: the eye of 拆 (chai) For the present shape of this world is passing away. Paul, Letter to Corinthians
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Still Life takes us into the ruins of a city that’s disappearing, using the workers’ demolition labour as a common thread. “The first time I saw the destruction of those buildings, says Jia Zhangke, I really felt that it meant the end of something, but also the beginning of a new era.” (23) Several sequences in the film show different aspects of the historical tension between past, present and future. At one point, for example, we can see a group of archaeologists working to salvage vestiges of the past. Relation to the past is also very important in the encounter between San Ming and Mark, the young impersonator of famous Chow Yun Fat, who dies later in the film. San Ming tells Mark he wants to reconnect with the woman he had bought 16 years ago. The object of his quest involves a certain loyalty towards the past – “we do not forget what we are” he says- contrasting with the ways of young Mark, who wants to be as modern he can be, and claims to live in a “world of adventurers”. At one point, the two exchange their cellphone number. San Ming’s ringtone plays “Long live the brave people.” When he hears it, Mark exclaims: “Fuck! Brave people? None of those in Fengjie these days!” Note that this same expression, found in the Mandarin title of the film, 好人 (hao ren), accentuates its historical dimension. The sequence continues with the music of Mark’s ringtone, which seems to have been composed expressly to describe the current situation in the valley of the Three Gorges: “Waves flow, waves pound/ the river runs for a thousand mile / it surges through our world of woes/ and carries all of our sorrows.” To the music, the camera then turns to a television screen that will show a sequence of images beginning with a woman in tears, and continuing with a ship sailing on the river. This gentle, beautiful filmic transition will conclude with the UFO passing. The situation is harsh, very harsh, for migrant workers appointed to the demolition of Fengjie. “All of these workers are more or less unemployed”, says Jia, “all are more or less homeless, with this perpetual movement from a place to another, this feeling of permanent exile.” (24) These workers occupy a crucial position in Chinese economic development, and it is no coincidence that they have been Jia’s topic of choice. They are the great sacrificed people of Chinese economic development, at once indispensable and supernumerary. One particularly striking scene of Still Life sums up their condition: while bare-chested workers hammer the remains of a collapsed building, a team in protective suits is going through the ruins and proceed to spray pesticides in preparation for what will soon become the riverbed. A strange music emphasizes the incongruity of the moment while, on a wall still standing, a poster reads: “Give yourselves bodies and souls.” Time runs out: in some way, the future is about to happen, but obviously, this future will not be the workers’, who will have already given everything. In showing this solidarity with the fate of the workers, the imaginal power of Still Life is concentrated in a political present tense, on the cutting edge of the demolition process. Amidst the ruins of Fengjie, Jia taps forces that are irreducible to the hollow fable of economic progress and national power that saturates the Chinese mediascape and deprives the labouring class of an adequate representation of its condition. The ultimate stake of Jia’s intercession gesture is to translate into images the power of destruction mobilized in the Three Gorges valley, in a way that educes a becoming and configures it as a passage. But how does he do it? Anyone who has travelled to China in recent years knows that an essential feature of its current situation may be observed in a ubiquitous figure constituting a real threshold between the old and new, the past and future: 拆, chai, which means “demolition”, a character
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that can be found on any building to be destroyed. We could say that Jia’s act of intercession is to integrate the latent dynamism of the chai figure, and to actualize its readability, in the heart of the chaos brought on by the accelerated destruction of Fengjie. This readability is provisional and punctual, as is the passage of this disappearing world’s figure. Like other contemporary Chinese artists, Jia invites us to wholly go through the eye of chai – only at this price can there be contemporaneity in China. Discussing classical Chinese poetry, Qin Haiying mentions how “some verses appear as juxtaposition of images… where each word becomes, as Barthes says about Mallarmé, a “station” that can radiate in all directions.” (25) This parataxic power of the Chinese character illuminates the particular status of the chai of Still Life. Chai presents itself as a paradigmatic example of imaginal interpolation, in which resides the stopping power of Still Life. For despite the apparently continuous character of the gesture of intercession, the passage is not smooth: it implies an imaginal interruption, the introduction of “an enduring interval in the moment itself” – an interpolation. (26) At the peak of the chai figure, Still Life di-stills some pure time. If the figure of chai really does configure a possibility of passage, it is insofar as it is established as an imaginal contretemps, transfiguring the actuality of the destruction and making it into chronic, non-chronological time – a peak of de-actualized present. There is a passage only because, in one way or another, there is a stop “by” the image, a stop “at” the image. The present in Still Life is a present edited in images; and the site of the passages it configures may ultimately be what Foucault, when describing the threshold of the outside and fiction, called the “neutral intermediary” or “interstice of images.” (27) Conclusion : China in the time after the mutation The moment is the Caudine Yoke beneath which fate must bow to the body. To turn the threatening future into a fulfilled “now”, the only desirable telepathic miracle, is a work of bodily presence of mind.
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Walter Benjamin, One-way street (28)
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In an interview conducted by Agnes Gaudu, Jia directly questions his relationship to Chinese contemporaneity and the incredible mutation that his country has experienced since the start of the economic reforms, along with an undertone of the dam’s currentness: Jia Zhangke: As a Chinese, I feel I do not understand very well what happened in China during all those years. The evolution went so fast... The male and female characters don’t understand either. We are in the presence of a- UFO. The policy of reform and openness taught us that life would improve. But, up to today, the better life is an UFO, it has not materialized... I think that Deng Xiaoping’s reform is over and that what we see today is not China in mutation, but the China of after the mutation. It’s like the dam. It is finished and we can even visit it. We have reached a certain level of material life, but a question remains to be resolved: how to manage all of this? Angès Gadu: There will be no more change? JK: We are already at the end of what such reform could bring. AG: On the question of where China is going, you cannot answer either? JK: I make films that simply show what happens. Economy in good or bad health, open or conservative period, everything is mixed up. It is difficult to synthesize. Before, I thought
that China’s problem was that the economic development was too quick. Today, I think that quickness is not a problem. Its problem is political and cultural openness, which are too slow, and the difference between these two rhythms, an accelerated economic development and a slow political change. (29)
What is particularly remarkable in this passage is that Jia systematically breaks from the story of economic transition and its promise of infinite progress. He highlights the growing gap between economic-technological progress and the political openness in his country, a discrepancy that is certainly not specific to China, and that Bernard Stiegler defines as a “process of detemporalization,” meaning that “society is disadjusting from the technical system, and this disadjustment is itself already a loss of time.” (30) In Jia’s words, those used to title the interview, this would translate in the following statement: “we have not yet finished digesting recent history.” But to trigger a “digestion of history,” we must necessarily find its term, and it would be vain to look for it on a strictly chronological plane. “If the idea of human progress doesn’t hold, says Sigfried Kracauer, “it’s primarily because it is inseparable from the idea of chronological time as matrix of a process that carries meaning.” (31) Still Life’s UFO symbolizes, in its own way, the limits of the progressive imagination. It is well known that UFOs appear only in the empty sky of progress, when the past’s constellations have lost all readability. They embody the arrow of homogeneous time, charging to the future: they are the spectral incarnation of the utopia of progress. But paradoxically, their apparition bends the line of chronological time. For an instant, the course of time is suspended. We could say that the UFO appears only at the point where the progressive imagination asymptotically approaches its own limit. By saying that we are now facing an “after the mutation” China, Jia resists the “informed progressive tendency” to think the present through the requirement for politico-cultural completion. Still Life posits itself exactly at this gap between the homogeneous, empty time of progress and the vital need to stop the present, or rather, to give way to a concept of present “which is not a transition, [but rather one] in which time originates and has come to a standstill.” (32) In his study of messianic temporality, Agamben states, Whereas our representation of chronological time, as the time in which we are, separates us from ourselves and transforms us into impotent spectators of ourselves – spectators who
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look at the time that flies without any time left, continually missing themselves … . (33)
To rise to the event that is happening to us, we must manage to counter the loss of time; we must literally give ourselves time. To give oneself time is, for San Ming or Zhao Tao, to bring about encounters that will help solve the problems of the past, so that each can conjugate his life to the present. In my reading of Jia Zhangke’s The World, I discussed what Debord calls the “systematic organization of a breakdown in the faculty of encounter.” (34) In Still Life, there is contrastingly a celebration of the qualified time of the encounter. Significantly, the film is divided into four parts: tobacco, alcohol, tea and sweets. At the time of planned economy, these luxuries were distributed within the population in an egalitarian way. In Still Life’s economy, “they are, Jia says, the sign of the persistence of social relations in China.” (35) The interpolation of these intertitles during the film emphasizes effectively the power to establish relations of these symbolic objects, which are signing, through their exchange, the open and undetermined time of the encounter.
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NOTES (1) Etymologically, interpolation means “interruption”. In a complex exegesis of the relationship between potentiality and multitude in the political thought of Dante, Agamben notes that “in averroist tradition, [interpolation] coincides with imagination”. For more details, see “L’opera dell’uomo” in La potenza del pensiero, Neri Pozza, Vicenza, 2005, p.375. It is also interesting to note that Adorno, speaking of Benjamin, says that “for him, philosophical imagination is the ability “to interpolate in the smallest detail””. Quoted in Gérard Raulet, Le caractère destructeur, Aubier, 1997, p. 89. Furthermore, in Cos’è il contemporaneo? (Nottetempo, Roma, 2008), Agamben suggests that the contemporary divides and interpolates time. It is in this tradition that we position our use of the concept of interpolation. (2) For more details on the “paradigmatic gesture”, see the chapter “What is a paradigm?” in Giorgio Agamben, Signatura rerum, Boringhieri Bollati, Torino, 2008. (3) http://www.theoria.ca/theoria/archives/2007/01/benjamin-the-destructive-character.html (4) Jacques Derrida, Spectres de Marx (Paris: Galilée, 1993), 17. (5) For example, Xiaodong was an actor in Wang Xiaoshuai’s The Days (1993) and the art director for Zhang Yuan’s Beijing Bastards (1993). (6) Weiwei, Ai, Liu Xiaodong, Liu Xiaodong : Painting from Life, Timezone 8, Hong Kong, 2008. (7) In both cases, surprisingly, the Chinese prefer to say of the literate painter that he’s “writing”. Why? According to Zheng Wuchang, author of a comprehensive history of Chinese painting (Zhongguo Huaxue Quanshi, Shuhua Chubanshe, Shanghai, 1985), “the scholars despise the term “paint”, which has something of the craft to it, and makes you think of the formal reproduction of things”. Qin Haiying summarizes the comments of Zheng in Segalen et la Chine. Écriture intertextuelle et transculturelle, L’Harmattan, Paris, 2003, p.138. In Le nu impossible, François Jullien also offers some elements of answer: “If we like to say of the literate painter that he writes, it is to signify that what he is representing - bamboo, rock or character – is never apart from a will to say [vouloir dire] and that the shape he traces, even when borrowed from the world, is invested with his subjectivity.” François Jullien, Le nu impossible, Seuil, Paris, 2005, 91. (8) Jean-François Billeter, L’art chinois de l’écriture, Skira & Seuil, Paris, 2001, 185. (9) For an enlightening analysis of this dialectical conception of the image tracing back to Aby Warburg’s “dynamogrammes” and “pathos formulas”, see Giorgio Agamben, Ninfa (Torino: Boringhieri Bollati, 2007). (10) Quoted by Giorgio Agamben in Ninfe, 10. (11) Stéphane Mas, “Jia Zhangke : peintre pour caméra politique”, http://www.peauneuve.net/article. php3?id_article=171 (as of October 24, 2008). (12) The circumstances surrounding his death remain mysterious, but some sequences in the film lead us to believe that Mark, who was not a worker, was the victim of a settling of scores between rival gangs ESSAYS | ERIK BORDELEAU
linked to demolition companies.
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(13) In Film Fables, Rancière notes that documentary has the possibility of presenting the “meaningless truth of life” emblematic of aesthetic art, that he opposes to the plausible action, characteristic of representational art and its mimetic requirement. “The privilege of the so-called documentary film is that it is not obliged to create the feeling of the real, and this allows it to treat the real as a problem and to experiment more freely with the variable games of action and life, significance and insignificance”; see, Jacques Rancière, Film Fables (Oxford: Berg Publishers, YEAR), 17-18. (14) Gilles Deleuze, Cinéma 2 : The Time-Image (London: Athlone Press, London, 1989), 130. (15) Stéphane Mas, “Jia Zhangke : peintre pour caméra politique”, http://www.peauneuve.net/article.
php3?id_article=171 (as of october 24, 2008). (16) Stéphane Mas, “Jia Zhangke : peintre pour caméra politique”, http://www.peauneuve.net/article. php3?id_article=171 (as of october 24, 2008). (17) Gilles Deleuze, Cinéma 2 : The Time-Image, p.273. Deleuze discusses still lifes in relation to Ozu, which has greatly influenced Hou Hsiao-Hsien, who is one of Jia Zhangke’s principal sources of cinematographic inspiration. (18) The expression “to resist oneself” is a cornerstone of Santiago Lopez Petit’s thought. See Horror Vacui: La travesia de la noche del siglo, Veintiuno Siglo editions, Madrid, 1996. The reflexive form of the verb “to resist” allows internalizing the opposing action. It also allows for it to be reconducted to the body. (19) For more details, see Philippe Savoie, “Impact durable du barrage des Trois Gorges sur le développement durable de la Chine”, Revue VertigO, UQAM, Vol. 4 N.3, december 2003. (20) Gilles Deleuze, Cinéma II :The Time-Image, p222-223. (21) Gilles Deleuze, Cinéma II : The Time-Image, p.155. (22) Stéphane Mas, “Jia Zhangke : peintre pour caméra politique”, http://www.peauneuve.net/article. php3?id_article=171 (as of october 24, 2008). (23) Stéphane Mas, “Jia Zhangke : peintre pour caméra politique”, http://www.peauneuve.net/article. php3?id_article=171 (as of october 24, 2008). (24) Stéphane Mas, “Jia Zhangke : peintre pour caméra politique”, http://www.peauneuve.net/article. php3?id_article=171 (as of october 24, 2008). (25) Qin Haiying, Segalen et la Chine. Écriture intertextuelle et transculturelle, p.23 (26) Gilles Deleuze, Cinéma II : The Time-Image (XXX) 155. (27) See Michel Foucault, Maurice Blanchot : The Thought from Outside, (New York: Zone Books, 1987). (28) Walter Benjamin, Selected Writings Vol. 1, (Cambridge: Belknap Press of Harvard University Press, 1996), 483. (29) Agnès Gaudu, “On n’a pas encore digéré l’histoire récente”, in Courrier international, Hebdo N.862, may 10th 2007; my emphasis. (30) Bernard Stiegler, Mécréance et discrédit. I. La décadence des démocraties industrielles, Galilée, Paris, 2004, p. 71. (31) Quoted in Laurent Olivier, “Le sombre abîme du temps”, Seuil, 2008, p, 147. (32) Walter Benjamin, “On the Concept of History”, http://www.efn.org/~dredmond/Theses_on_History.html. (33) Giorgio Agamben, The Time that remains, Stanford University Press, Stanford, 2005, p.68. (34) See “The World without Future: Stage as Entrapment in Jia Zhangke’s Film”, China Review, Vol.10, N.2; Guy Debord, The Society of Spectacle, Zone Books, New York, aphorism 217. (35) Agnès Gaudu, « “On n’a pas encore digéré l’histoire récente”, Courrier international, Hebdo N.862, ESSAYS | ERIK BORDELEAU
May 10th 2007.
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ESCRITOS | JIA ZHANGKE
JIA ZHANGKE | EU NÃO POETIZO MINHA EXPERIÊNCIA
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Um dia, enquanto eu esperava por alguém no café do primeiro andar da livraria Sanlian, alguns artistas “uniformizados” irromperam. Estavam na casa dos quarenta anos, e portavam todos barbas e cabelos longos. Entraram ruidosamente, com uma imensa arrogância, como se estivessem sozinhos no mundo. O mais velho que os liderava se instalou e desandou a falar sobre cinema. Ele se expressava como um pastor que prega, como se cada um de seus comentários fosse uma verdade absoluta. Quando evocava uma personalidade, ele dispensava seu sobrenome, nomeando Chen Kaige de “Kaige” e chamando Zhang Yimou de “O Velho Mole”. Isso impunha um respeito absoluto a toda sua audiência. “Os outros novatos não vêm ao caso”, disse ele, “eles nunca sofreram qualquer dor, nunca viram nada. O que eles podem fazer bom no cinema?” Então ele começou a contar: “Kaige foi enviado para o campo, O Velho Mole vendeu seu sangue”, como se não houvesse experiências além das deste tipo, como se não houvesse outros sofrimentos além desses. Nossa cultura devota um culto ao sofrimento, que parece ser o capital do direito de expressão. Por força do hábito, algumas pessoas tentam, então, ocupar a terra da infelicidade, julgando que não há infelicidade além da que experimentaram. O que os outros tenham experimentado, o que quer que a geração seguinte tenha vivido, o que é então? Algumas pancadas, no máximo. Diante de seu “sofrimento” e sua “experiência”, só nos resta o silêncio. O “sofrimento” criou uma forma de hegemonia, da qual deriva um juízo de valor. Isso me lembra de um ditado: “A doçura se degusta da memória do amargo”. Pensava-se à época que a dor era parte do passado, que o presente era agradável. Quem, no entanto, se dá conta de que quando devemos por suposto “saborear a doçura”, vivemos na realidade um desastre? Nada sugere que a geração mais jovem seja mais feliz do que a anterior. Como todos sabem, a felicidade não aumenta com os bens materiais. Eu não creio que os jovens que foram trancados pelos pais, em casa diante da TV, sejam mais felizes do que os jovens instruídos foram, suando sob o sol e colhendo o trigo. A cada um, os seus problemas. A cada geração, suas preocupações. Ninguém é mais elevado do que o outro. A dor também deve ser tratada com igualdade O poeta Xi Chuan escreveu: “O corvo lida com os problemas do corvo, eu lido com os meus.” Se assistirmos a Beijing Bastards com esse espírito, moderno, independente, vamos sentir a raiva e a emoção de Zhang Yuan, e entenderemos o distanciamento do real, em The Days, de Wang Xiaoshuai, assim como iluminação frontal monótona de Rain and Clouds over Wushan, ou as tonalidades escuras de Postman, que traduzem a dor pulsante de Zhang Ming e He Jianjun. Esses últimos já não tentam ser os porta-vozes de uma geração. Em verdade, ninguém tem o direito de representar a maioria; cada um só tem o direito de representar a si mesmo. Esse é o primeiro passo que permite libertar-se da camisa de força cultural; é um conhecimento, mas também um modo de vida. Eles consideram que o “sofrimento” só afeta o indivíduo. Se você não compreender isso, não será capaz de entrar no mundo emocional deles. Eu muitas vezes percebi que, quando as pessoas assistem a um filme, elas querem ver um determinado filme, nascido de suas próprias imaginações. Quando as experiências divergem, elas ficam com medo e imediatamente reprovam-o. Não temos o direito de explicar a vida dos outros. Lembra-me de um título de que gosto muito, Os Anões Também Começaram
One day, while I was waiting for someone in the café of the first floor of the Sanlian library, a few artists “in uniform” burst in. They were in their forties, and they all had beards and long hair. They got in noisily, with immense arrogance, as if they were alone in the world. The oldest one that led them installed himself and got to talking about to cinema. He expressed himself like a preaching pastor, as if each of his comments where an absolute truth. When he evoked a personality, he would not use their last names, calling Chen Kaige “Kaige” and calling Zhang Yimou “Old Soft”. This commanded total respect from all of his audience. “The other rookies do not concern us”, he said, “they never suffered any pain, have never seen anything. What can they do that is good in cinema?” So he started to tell: “Kaige was sent to the field”, “Old Soft sold his blood”, as if there were no experiences beyond these, as if there were no suffering beyond this. Our culture devotes a cult to suffering, which seems to be the capital for the right to expression. Out of habit, some people try then to occupy the land of misery, judging that there is no misery beyond the one they have experienced. What the others have experienced, whatever the following generation has lived, what is it then? A few blows, at the most. Before your “suffering” and your “experience”, all that is left for us is silence. “Suffering” has created a sort of hegemony, out of which derives a valued judgment. This reminds me of a saying: “Sweetness is tasted from the memory of bitterness”. It was thought at the time that pain was a part of the past, that the present was pleasant. Who, however, realizes that when we ought to “enjoy sweetness”, we are actually living a disaster? Nothing suggests that the younger generation is happier than the preceding one. As everyone knows, happiness does not increase with material goods. I do not believe that the youth that was locked by their parents in their houses before the TV is happier than the educated youth was, perspiring under the sun and reaping wheat. To each their own problems. To each generation, their concerns. No one is more elevated than the other. Pain should also be treated with equality. The poet Xi Chuan wrote: “The crow deals with crow problems, I deal with mine.” If we watch Beijing Bastards with this modern, independent spirit, we will feel Zhang Yuan’s rage and emotion, and we will understand the distancing from the real, in Wang Xiaoshuai’s The Days, just like the monotonous frontal ilumination from Rain and Clouds over Wushan, or the dark tonalities of Postman, which translate the pulsating pain of Zhang Ming and He Jianjun. These last ones no longer try to be the voice of a generation. In truth, no one has the right to represent the majority; each one has only the right to represent his or herself. This is the first step that allows you to get rid of the cultural straitjacket; it is a knowledge, but it can also be a lifestyle. They believe that suffering affects only the individual. If you do not understand this, you will not be capable of entering their emotional world. I have realized many times that, when people watch a movie, they want to watch a specific movie, born out of their own imagination. When these experiences diverge, they get scared and initially reprove of it. We have no right to explain other people’s lives. It reminds me of a title which I like very much, Even Dwarfs Started Small, by Werner Herzog. There are few extraordinary
WRITINGS | JIA ZHANGKE
JIA ZHANGKE | I DO NOT POETIZE MY EXPERIENCE
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ESCRITOS | JIA ZHANGKE
Pequenos, de Werner Herzog. Há poucas vidas extraordinárias, mas cada vida é rica de todas as experiências. Não, ninguém veio ao mundo como Sun Wukong, saltando de uma fenda. Eu começo a duvidar do conhecimento da experiência e dos sofrimentos dessas pessoas. Em nossa cultura, algumas pessoas têm prazer em “idealizar” as suas experiências, em se forjar vidas fabulosas. A vida comum parece ser incapaz de satisfazer esses espíritos celestes, como se para conhecer a vida fosse essencial passar pelas piores dificuldades, suportar o pior sofrimento, viver todas as turbulências. Tal poetização de si é na realidade uma autosantificação. Gostaria de enfatizar a ideia de que esse vício afetou o cinema chinês. Quando produzem um filme, algumas pessoas procuram o maravilhoso, unem o grave e o leve, separações e reencontros, o trágico e o cômico, como se essas coisas fossem as únicas que merecessem expressão no cinema. Quando precisam defrontar-se com as realidades complexas da sociedade, elas perdem todos os seus meios, e seus espíritos confusos criam essas fábulas pueris. Com o cinema, busco me ocupar das pessoas comuns. Devo então, antes de tudo, honrar a vida cotidiana, provar na lentidão do passar do tempo o cansaço das vidas banais. Lembremonos de que “a vida é um longo rio tranquilo”. Num ensaio, o poeta Bei Dao escreveu: “As pessoas sempre creem que as tempestades que atravessaram afetaram apenas a si mesmas e depois, na tentativa de ensinar as gerações seguintes a temer seu sopro, acabam eles mesmos se passando pela tempestade.” Ele conclui: “Qual será a forma de viver da geração seguinte? Ela mesma deve responder à pergunta.” Eu não sei qual será nossa forma de viver, nem que tipo de filmes iremos dirigir, porque “nós” é, em verdade, um pronome vazio. Quem somos “nós”?
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WRITINGS | JIA ZHANGKE
lives, but each life is rich with all of experience. No, no one came to the world like Sun Wukong, leaping out of a crack. I begin to doubt the knowledge, the experience and the suffering of these people. In our culture, some people take pleasure in “idealizing” their experience, in forging fabulous lives. Ordinary life seems incapable of satisfying these celestial spirits, as if to know life it was essential to go through the worst difficulties, bearing the worst suffering, experiencing all kinds of turbulence. This poetizing of yourself is actually a self-sanctification. I would like to emphasize the idea that this vice has affected chinese cinema. When a movie is produced, a few people look for what is wonderful, they unite the grave and the light, separations and reunions, the tragic and the comic, as if these were the only things deserving of expression in cinema. When it is necessary to face society’s complex realities, they lose all of their means, and their confused spirits create these puerile fables. With cinema, I seek to occupy myself with ordinary people. I should, then, before anything else, honor daily life, prove in the slowness of the passing of time the fatigue of banal lives. Remind ourselves that “life is a long quiet river”. In an essay, the poet Bei Dao wrote: “People always believe that the storms they go through affect only themselves and, then, in an attempt to teach the following generations to fear its blow, they end up becoming the storm themselves.” He concludes: “How is the next generation going to live? They are the ones that should answer that question.” I do not know which way of living is going to be our own, nor what kind of films are we going to direct, because “we” is, in fact, an empty word. Who are “we”?
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FILMES / FILMS 1994 - 2013
1994 / 15 min / VHS-C
ONE DAY IN BEIJING direção Jia Zhangke direção de fotografia Jia Zhangke, Zhu Jiong produção Wang Hongwei
Maio de 1994. Pequim. A câmera está apontada para a multidão no Tiananmen Square. Com música de ioga, o vai e vêm da vida parece ser bastante pesado. 1994, May, Beijing.Camera is staring at the crowds in Tiananmen Square. With yoga music, the coming and going of life seemed very heavy.
1995 / 58 min / VHS-C
VOLTA PRA CASA
XIAOSHAN HUIJIA / XIAO SHAN GOING HOME direção e roteiro Jia Zhangke elenco Wang Hongwei, Dong Shuzhe, Yao Sheng, Zhou Xiaomin, Zhu Liqin direção de fotografia Hu Xin
Xiao Shan, um cozinheiro pobre que vive em Pequim, tenta encontrar o caminho de volta para casa e celebrar o ano novo com a família. Xiao Shan, a poor cook who lives in Beijing, tries to find his way back home to celebrate the New Year with his family.
1996 / 50 min / VHS-C
DU DU direção e roteiro Jia Zhangke direção de fotografia Meng Liang elenco Lin Xiaoling, Zheng Gu produção Wang Hongwei
É verão em Pequim. Uma universitária sente-se irritada inexplicavelmente durante uma sessão de fotos.Em um encontro às escuras arranjado para ela por pessoas mais velhas, a estudante percebe que todas as suas boas maneiras ao longo dos anos adquiridas de repente são suprimidas por uma paixão interior. Ela se refugia na multidão mas ainda assim se sente solitária. A única coisa que ela enfrenta é a voz da sua corrente de bicicleta. Ela lava o rosto todos os dias, e sua juventude vai sendo perdida como a água que escorre por entre seus dedos. Mid-Summer in Beijing. A female college student suddenly felt inexplicable irritability during a photograph shooting. In a blind date arranged by elders, she felt all the manner she formed in her years of life is actually suppressed her in a inner passion. She fled into the crowd but isolated. The only thing she is facing was the voice of her bicycle chain friction winder. Wash her face day after day, her youth losing like the water of her fingers.
1997 / 108 min / 16 mm
UM ARTISTA BATEDOR DE CARTEIRAS XIAO WU / PICKPOCKET direção e roteiro Jia Zhangke elenco Wang Hongwei, Hao Hongjian direção de fotografia Yu Likwai edição Xiao Ling Yu desenho de som Zhang Yang produção Jia Zhangke, Li Kitming
Xiao Wu é um batedor de carteira que se torna ultrapassado com o rápido crescimento da China do fim dos anos 90. O filme mostra o dia a dia do personagem em crise diante desta nova cidade. Xiao Wu is a pickpocket who becomes outdated with the rapid growth of China in the late 90s. The film shows the character´s daily life and his crisis in facing the new city realities.
Quase no fim de Um artista batedor de carteiras (Xiao Wu, 1997) há um plano síntese da pequena cidade prestes a ser transformada pela onda de capitalismo que engolfava a China, no fim do século XX. É noite, um facho luminoso ao fundo desenha a rua em contraluz e letreiros luminosos vermelhos pulsam promessas luxuriosas de cor e de “vida”. É um plano fixo, um dos poucos de uma narrativa conduzida quase sempre com a câmara na mão, com uma canção sobreposta na trilha sonora. Um dos versos é revelador: diante de tantas transformações e posicionamentos, a quem podemos chamar de herói? O primeiro longa metragem de Chang Qe Jia, em geral visto como um dos filmes que impulsionaram a chamada Sexta Geração do cinema chinês continental, desenvolve um pequeno enredo, a errância de um jovem batedor de carteiras em uma província do interior do país, em meio a uma geografia humana, social, cultural e histórica bem mais ampla e prestes a mudar (a cidade vai ser reformada fisicamente em seis meses). Por meio de Wu Liang, tomamos contato com seu pequeno bando, antigos amigos, conhecidos, família e um possível interesse amoroso. Wu é descolado socialmente e ao mesmo tempo ingênuo no amor, faz questão de honrar antigos compromissos, mas abandona em definitivo o lugar de origem, passa a maior parte do tempo sem fazer nada de significativo e, no entanto, é taxativo em suas rejeições. Dito assim poderíamos pensar que Wu é a metáfora de uma China entre a tradição prestes a se perder e o futuro nada risonho que a espera ao abraçar o novo modelo sócio-econômico abrir à chamada globalização. Mas, primordialmente, o filme não é sobre isso. Contextos históricos vem e vão e não há como escapar deles, ainda que se possa julgá -los em suas implicações e conseqüências. A questão para Jia, porém, não é de ordem moral. Ao vivenciar um tal contexto, guardadas as devidas latitudes e proporções, semelhante à da Itália pós-segunda guerra mundial, basta lembrar O grito de Antonioni – ou o Brasil pós-milagre – reparar na panorâmica quando, Wu sai da casa dos pais, revelando melancolicamente as “espinhas de peixe” (antenas de televisão) que Lorde Cigano também denunciava em Bye Bye Brasil de Carlos Diegues -, a busca por uma resposta fílmica não vem associada ao desencanto, à náusea, ao terrorismo ou à lassidão e ao conformismo. Wu não carrega uma revolta contida, não porque não possa vir a expressá-la, mas porque não a conhece em uma dimensão contemporânea, até porque a própria idéia de revolta ou revolução se desqualificou na história chinesa. Soa tão antiga e desbotada quanto as casa do vilarejo ou da cidadezinha prestes a desaparecerem. Não há saudades ou lamentações por isso. O sentimento é outro, ou melhor, a condição tem a ver com ser, justamente, contemporâneo de toda essa paisagem em constante movimento. Não por acaso, o fluxo de veículos e sua representação na trilha sonora atravessam a maior parte da narrativa, criando um dinamismo que contrasta vivamente com a aparente inércia da personagem principal, ainda que ela interaja bem com esse mundo. Wu é jovem. É em torno disso que o filme evolui. É isto que o filme busca conhecer. O que é ser jovem diante do mundo e de suas opções? Como conquistar identidade, para além das acomodações, perversões, conformismos e ser fiel a seus próprios sentimentos em meio à vida? Como não tergiversar ou sucumbir aos vazios discursos de poder, às seduções do dinheiro, à miragem de um futuro redentor? Como sujeito social, os perigos de uma “imagem”
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A ESTRATÉGIA WU HERNANI HEFFNER
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o rondam o tempo todo e disso dará conta a extraordinária seqüência da delegacia, não só pelo que se vê na televisão, mas também pelas atitudes e comentários do velho policial, que parece compreendê-lo mais do que qualquer outra personagem, o que ainda prepara a excepcional seqüência final, onde o estatuto audiovisual do cinema ganha uma dimensão ainda mais complexa, aproximando-se com rara maestria da ambição ontológica do meio. Se Um artista batedor de carteiras parece debitário do neo-realismo italiano como estratégia de produção (locações, atores não-profissionais etc.), ou do cinema moderno como construção estética (plano de longa duração, câmara na mão, descontinuidade de montagem etc.), não está interessado em verdade no espetáculo da vida ou na captura de algum ethos particular, ou ainda em sua crítica cultural e política imediata. Wu é jovem e é rebelde, mas sua resistência à cooptação interessa menos do que o seu isolamento e solidão. A invasão de monitores (de televisão, karaokês, fliperamas etc.) a sua volta dá mais conta do sufocamento e asfixia a que é submetido, do que a iminente e casual prisão por conta de seu ofício. Não há dramaticidade convencional, antes uma cuidadosa dissecação do tempo, de modo a expor o abandono de um ser, e de toda uma geração, e não só na China (basta pensar em curtas como Texas Hotel, e no recente Aquele cara, realizados no distante Brasil). Wu é o herói de um tempo em descompasso, que chegou atrasado para cumprir qualquer utopia, e que se mostra distópico frente ao capitalismo triunfante e excludente em meio à contemporaneidade. Jia se propõe uma difícil tarefa: flagrar seu próprio tempo a partir de suas incertezas pessoais, não as transformando em soluções dramáticas fáceis. Wu, seu alter-ego, se abre à experimentação da vida de uma forma radical, através de sua ingenuidade e de sua coragem frente ao desconhecido, munido apenas com sua imaginação e sua solidariedade para com o grupo ou relacionamento em que se insere. Uma câmara insegura e muito próxima dos corpos, em uma antecipação extraordinária do que viria a ser o “estilo” Go-Pro (o filme foi rodado em 16mm), apresenta-se como extensão dessa condição existencial, mesclando vida e arte de uma maneira raramente vista em um primeiro trabalho. Um artista batedor de carteiras é uma petição de princípios e ao mesmo tempo um filme experimental no pleno sentido da palavra, fazendo jus à condição única de suspensão e ao mesmo tempo de compromisso, típico daquele estranho momento da vida a que chamamos juventude. Independência, arrojo, carinho, vazio e incompletude permeiam o filme de Jia de uma forma rara, e talvez prefigurem mesmo o que ele viria a se tornar não só no cinema chinês, mas na história do cinema mundial.
THE WU STRATEGY
Almost at the end of Pickpocket (Xiao Wu) there is a synthetic shooting plan of the small town that is about to be transformed by the wave of the risen capitalism that had engulfed China in the late twentieth century. It is night time, a light beams in the background drawing the street with a backlighting atmosphere, and red lightning signs pulse lusty promises of color and “life.” It is a fixed plan, one of the few on the narrative outline, almost always conducted with a hand held camera, and with an overlay song besides the soundtrack. One of the song verses is quite revealing: in the face of so many changes and placements, who can we call a hero? In Jia Zhanke first full-length film, generally considered as one of the films that boosted the so called sixth generation of the Chinese mainland cinema, it is a developed small plot, about the wanderings of a young pickpocket in an inland province of the country, in the middle of a much wider human, social, cultural and historical geography environment that is about to change, as the city will be entirely reformed within six months. By observing Wu Liang, we get in touch with his small gang, old friends, family and a possible love interest. Wu does not fit in a social recognized place and at the same time he is naive in matters of love. He also makes sure to honor any former promises or commitments, but ultimately abandons his place of origin, ends up most of the time doing nothing valuable, but is unconditional and categorical in his rejections. Under this view, we would might think that Wu is actually a metaphor between the China that is about to lose its tradition and a future that does not seem quite brighter in view of embracing the new social-economic model that shall open the country to the so called globalization. But even so, the movie is not primarily about that. Historical contexts may arise and vanish and there is no way of escaping from them, although you can always judge their implications and consequences. But for Jia the critical issue is not a moral one. In experiencing such a context, considering the appropriate proportions and latitudes, similar to the Italy’s post-World War II conditions, we shall remember Antonioni’s The Cry, or Brazil post “economic miracle” (it is interesting to notice the panoramic shot when Wu leaves his parents home, revealing wistfully all those TV antennas, as the character Lord Cigano had also denounced in Carlos Diegues film Bye Bye Brazil) the search for a film answer do not come along with disenchantment, to sickness and nausea, to terrorism or to resignation or lethargy. Wu does not hold a contained revolt, not because he is not able to express it, but because he does not know it in a contemporary dimension, as the very idea of revolt or revolution has been disqualified in the Chinese history. It sounds as old and faded as the village homes or the small town that is about to disappear. There are no regrets or laments because of that. It is a different feeling though, or better saying it, the feeling is precisely to be modern, innovative, contemporaneous, in this same landscape, which is constantly in motion. Not coincidentally, the flow of vehicles and its representation in the film original soundtrack crosses over most part of the narrative, creating a dynamism that sharply contrasts with the apparent inactiveness or inertia of the main character, yet he relates well with that given world dynamics. Wu is young. The film develops itself around this idea. This is what the film is trying to
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discover, seeks to understand. What is to be young facing the world and its options? How to realize your own identity, beyond the usual restraining settlements and establishment, the easier accommodation to the given society rules, the perversions, the conformism, and still be true to your own feelings in the midst of life? How to avoid hesitating or succumbing to empty power speeches, the seduction of money, the mirage of a redemptive future? As a social individual, the dangers of fitting to a certain social expected “image” watches over you all the time and this will be pictured in the extraordinary sequence of the police station, not only by what you see on TV, but also because of the old cop´s attitudes and comments, who seems to understand it more than any other character. Subsequently, this moment will prepare the exceptional final sequence, where the statutes of the audiovisual works wins an even more complex dimension, approaching itself with rare mastery to the most ontological ambition of the filming art. If Pickpocket seems to be in debt to the Italian neo-realism considering the production strategies (locations, nonprofessional actors etc..), or to the modern cinema as an aesthetic construction (long-term plan, hand camera, editing discontinuity, etc) it is not actually interested in focusing the life show or in capturing some particular ethos, or in a current cultural and political criticism. Wu is young and rebellious, but his isolation and loneliness are more valuable than his resistance to be recruited by the system. The invasion of monitors (TV, karaoke, pin ball machines and arcade games etc) around Wu is more appealing to the feeling of suffocation and choking to which he is submitted, than his imminent arrest because of his labor as a robber. There is no conventional drama, but actually an accurate time dissection in such a way that the complete abandonment of an individual, besides a whole generation, is completed exposed not only in China (in such sense we should include Texas Hotel, and the recent film played in the remote country of Brazil called Aquele Cara). Wu is the hero of a time in disharmony, that arrived late to comply with any utopia, that seems to be dislocated in facing the triumphant capitalism but is also suppressed from the contemporaneity. Jia proposes a difficult task: to be a live viewer of his own time, considering his own personal uncertainties, and not turning them into easy dramatic solutions. Wu, his alter-ego, opens to experience life in a radical way, through his innocence and courage in facing the unknown, only armed with his own imagination and the solidarity with the group or people he has some kind of relationship. An insecure camera, very close to the pictured bodies, anticipating in extraordinary ways a method that later would become the Go-Pro style (the film was shot in 16mm), presents itself as an extension of this existential condition, merging life and art in a way rarely seen in an artist first film work. Pickpocket is a principles petition and at the same time an experimental film in its full meaning, entitled to that unique condition of suspension, pause, and at the same time of commitment, typical of our younger ages, such a weird part of our lives. Independence, boldness, warmth, emptiness and incompleteness permeate Jia´s film in such a rare manner, and maybe even presuppose what the director would become not only for the Chinese film, but also in the world cinema history.
2000 / 151 min / 35 mm
PLATAFORMA ZHANTAI / PLATFORM
direção e roteiro Jia Zhangke elenco Wang Hongwei, Zhao Tao, Liang Jingdong, Yang Tianyi, Wang Bo, Han Sanming direção de fotografia Yu Likwai música Yoshihiro Hanno desenho de som Zhang Yang edição Kong Jinglei produção executiva Masayuki Mori produção Shozo Ichiyama, Li Kit-Ming co-produção Joël Farges, Juliette Grandmont, Elise Jalladeau produção associada Chow Keung, Yu Likwai
Plataforma acompanha as transformações de um grupo de dança e teatro estatal chinês, da pequena cidade de Fenyang, na província de Shanxi, em 1980 quando se inicia a abertura política do país. Platform follows the transformation experienced by a State Chinese dance and theater group in the small town of Fenyang, in Shanxi province, in the 80´s, when the political openness started in the country.
PLATAFORMA RUY GARDNIER
Finalmente, quase três anos depois da exibição na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, estreia comercialmente no Brasil Plataforma (Zhantai, 2000). Trata-se de um filme sobre a falência da arte, a incapacidade do sonho em manter-se frente aos imperativos da vida econômica, da “realidade” pairando acima de toda possibilidade de imaginação, de vida diferenciada. Plataforma é um canto fúnebre, um lamento diante da dificuldade dos personagens conseguirem viver de suas artes. Um filme que, esse sim, teria todo o direito de chamar-se Réquiem para um sonho, pois a romaria dos espectadores em direção à saída da sala, durante a Mostra,, acrescentava, ironicamente, a extrema crueldade (do destino? do sistema social? o filme, sabiamente, insiste em não dizer) que vemos na tela: soa como a negação da assistência em querer acompanhar passo a passo todos os momentos e interstícios da vida de cada personagem, negar um profundo respeito que o filme dedica ao tempo de seus protagonistas, e um ritmo necessariamente lento para acompanhar a passagem de meses e anos, onde a única regra geral é a incerteza quanto ao futuro e a iminência do fracasso. A primeira cena exibe uma apresentação do grupo cultural da cidade de Fenyang. Segundo a linha geral do Partido Comunista Chinês, a partir da Revolução Cultural, os espetáculos têm como função reforçar a crença política dos cidadãos chineses. Logo, qualquer peça montada por esse jovem grupo deve apresentar características políticas. Aquilo que vemos na tela é a representação da vida do Camarada Mao, mas um contato inicial com os personagens já mostra o quão deslocada a arte deles está de suas vidas: são adolescentes que querem falar sobre liberdade, que querem acompanhar, mesmo com dificuldades, a música pop feita nas grandes cidades, que desejam ser esses artistas pop. Se o desejo é cassado pelo Estado, é sem melodrama, sem externação visual ou verbal. Ela acontece apenas pela constatação da situação, o que deixa qualquer filme de Zhang Yimou ou Chen Kaige, sobre a política comunista chinesa, no chinelo. Plataforma somente acompanha a vida de quatro jovens, sem precisar em instante algum remeter ou reduzir a intriga à dimensão política. Nesse sentido, aproxima-se muito da dimensão propriamente de memória coletiva, que existe no cinema de Hou Hsiao-hsien, especialmente de A Cidade do Desencanto. Mesmo que vários filmes de 2001 tenham um elo muito forte com a política, sobretudo depois que ela foi recolocada em questão a partir dos eventos de 11 de setembro (Promessas, Kandahar), não resta a menor dúvida em afirmar que Plataforma é o filme contemporâneo que mais leva a história e a política a sério. É o único que tem o apego e o tempo necessários para evoluir e nos fazer perceber a vida e as transformações da China nos anos 80. Com as mudanças na política operadas por Deng Xiaoping, uma liberalização e uma desestatização passam a ser lentamente realizadas. Com o grupo jovem de Fenyang também: inicialmente subvencionados pelo Estado em sua tarefa “cívica” (na verdade propagandística) de transmitir a palavra do Partido, com o novo modelo, eles devem se garantir por si mesmos, ser um grupo privatizado. Em compensação, eles poderão tocar rock e pop, dançar as músicas que gostam sem risco de sofrer a intervenção do Estado. O tecido político em Plataforma só aparece dentro das vidas dos personagens, seja naquilo que afeta diretamente suas existên-
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* Publicado originalmente em 2004 na revista virtual Contracampo.
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cias ou pelo que aparece nos alto-falantes e na rádio. Inicialmente, temos quatro amigos: Cui Mingliang, jovem de óculos e, logo depois, líder da trupe; Yin Ruijuan, a menina que sonha em ser dançarina, e por quem Mingliang se apaixona; Chang Jun, o melhor amigo de Mingliang, bonitão, com cabelo ocidentalizado e calças boca de sino - que já inauguram o desejo de modernidade de uma juventude chinesa cansada da ditadura cultural impingida pelo Partido; e Zhang Pong, a namorada de Chang Jun. Plataforma será o acompanhamento da triste debandada de cada um desses personagens do sonho artístico. Assim como a passagem de um país transformado de uma utopia revolucionária, que acaba se demonstrando mais uma ditadura à fria lógica do capitalismo, onde a ditadura não é propriamente política, mas se impõe de forma econômica e com a dolorosa ideologia de que não poderia ser de outra forma. Não é mais um filme que dança no cadáver do comunismo – dos quais o mais vagabundo é o Nenhum a Menos, de Zhang Yimou – e sim uma obra que mostra os diferentes graus de absurdo existentes em ambos os sistemas. A primeira metade do filme é baseada na construção dos personagens, nas relações de dois casais (o amor recusado de Ruijuan, o aborto de Zhang Pong), e na construção do ambiente da cidade de Fenyang, um triste vilarejo no meio do nada, com uma geografia que parece expressar o tom geral de seus habitantes (por conseguinte, um sentimento existencial de toda a China): montanhas de cor bege, céus cinzentos. A encenação de Jia Zhangke é distante, preferencialmente usa planos longos e fluidos, sempre muito bem construídos (a cena em que Mingliang declara seu amor, onde uma parede ocupa toda a metade esquerda da tela enquanto os dois meninos andam para dentro e fora de nosso campo de visão, um após o outro, é surpreendentemente bonita). A segunda parte de Plataforma é composta por viagens: tendo que ganhar o sustento unicamente a partir do dinheiro arrecadado com os espetáculos, o grupo passa a viajar para as cidades vizinhas, e vai, lentamente, perdendo seus membros e ganhando outros. Durante o filme, a trupe passa a ser formada quase por párias, e todas as mudanças realizadas (grupo pop, estética punk, dançarinas uniformizadas) parecem tentativas patéticas de chamar a atenção, advindas da necessidade de permanecerem vivos enquanto grupo. Essa parte tem, ao menos, dois momentos de uma força incrível: em um, a dançarina Ruijuan, tornada policial, está no hall de uma chefatura e coloca o aparelho de som no volume máximo e, de uniforme, dança uma música que gostaria de estar dançando em outro lugar, com outra vestimenta. O outro momento é a viagem à cidade de alguns parentes de Mingliang. Ao encontrar com sua família, descobre que seu infortúnio como artista repetese também na vida daquela pequena cidade: com a mudança do regime, o trabalho na mina de carvão, única atividade econômica da região, passa a ser regido pela lógica de lucro do novo sistema, mais draconiana ainda do que a comunista (o começo do contrato de emprego diz: “Vida e morte são coisas do destino”, onde a empresa lava as mãos para quaisquer acidentes ocorridos em trabalho). Um primo, com a mesma idade, terá que se adequar a esse regime, e na despedida entrega a Mingliang algum dinheiro para que sua irmã (que mora em Fenyang) jamais precise voltar para sua aldeia nativa. Mas, a grande sabedoria de Jia Zhangke (jovem artista de quem vimos, nos festivais, o seguinte e igualmente essencial Prazeres Desconhecidos (Ren xiao yao, 2002), que estreia seu filme novo em Veneza, 2004, e de quem esperamos até hoje que seja exibido no Brasil seu primeiro filme, Um artista batedor de carteiras) reside no carinho e no tempo que dedica a seus personagens para que eles existam, na maneira como filma seus desejos e o
espaço onde vivem. Plataforma herda seu nome de uma canção homônima, muito popular nos anos 80, um rock, que expressa em sua letra, o caráter sem muita esperança de toda uma geração. Com muito carinho, e no entanto demonstrando toda a crueldade da situação, essa música é tocada no filme quando o caminhão, que leva a trupe, está enguiçado no meio de uma paisagem desértica. Ao longe, ouve-se um barulho: é um trem, algo que em Fenyang nunca existiu. Eles correm o mais rápido possível para vê-lo mais de perto, mas só conseguem chegar quando ele já passou. Triste e ao mesmo tempo vigoroso, Plataforma é um sopro de juventude e força, de devoção ao mundo (mesmo que o mundo não retribua) e de confiança nos poderes instauradores de mundo do cinema.
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* Originally published in 2004 in Contracampo online film magazine.
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Finally, almost three years after its first presentation at the São Paulo Film Festival, Platform starts showing in the Brazilian movies theaters. This is a film about the failure of art, about the inability of the dream in staying ahead of the imperatives from the economic life, about the “reality” hovering above all imagination possibilities of a differentiated, unique life. Platform is a funeral dirge, a lament chant in face of its characters difficulties of surviving by their art. A film that could actually be named as “requiem for a dream” indeed. The pilgrimage of viewers leaving the room in the festival, ironically added sense of extreme cruelty that we watch in the film: (cruelty as a result of the fate? Because of the social system? The film wisely insists in not answering it): It sounds like an assistance denial in following up step by step all the moments and interstices of each characters lives, denying a deep respect that the film dedicates to its main characters´ time, and a necessarily slow rhythm to follow the passage of months and the years, where the only main rule is the uncertainty about the future and the imminent failure. The first scene gives us a presentation of the cultural group of Fenyang city. According to the general standards of the Chinese Communist since the Cultural Revolution, the shows must have the function to strengthen the political beliefs of the Chinese citizens. Therefore, any produced play by this young group should present political features. What we see on screen is the life representation of Comrade Mao, but an initial contact with the characters already shows us how their art is displaced from their actual lives: they are teenagers that want to talk about freedom, that want to follow - even with difficulties – the pop music produced in the big cities, that want to be pop artists themselves. If this desire is impeached by the state, there is no melodrama, no visual or spoken externalization, but we just realize it as we are watching the situation scene - which makes any film by Zhang Yimou and Chen Kaige about the Chinese Communist politics to shame. Platform only follows the lives of these four young people, with no need in remitting or reducing the plot intrigue to the political dimension at some point. In such sense, it is very close to the proper dimension of a collective memory that exists on Hou Hsiao-hsien film, especially A City of Sadness. Even though several films made in 2001 have a very strong link with politics, as the issue has been taken up after the September 11th events (Promises, Kandahar), there is no doubt in affirming that Platform is the contemporary film which further considers the History and politics as a serious matter, and in addition, it is the only film that has the proper attachment and the required timing to properly evolve and make us feel the life and the changes of China in the 80s. With the changes in politics operated by Deng Xiaoping, a slow process of liberalization and privatization starts taking place. The same happens with the young group of Fenyang: initially subsidized by the State in their “civic” task (indeed propaganda) to transmit the word of the Party, they must now find a place for themselves, and ensure their position as a private group based on the new economic model. On the other hand, they will now be able to play rock and pop, dance the songs they like without the risk of the State intervention. The political tissue in Platform only appears when it is shown
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inside the characters´ lives, rather if it´s in what directly affects their lives, or from what it is heard on the speakers and on the radio. Initially, we have four friends: Cui Mingliang, the young with the glasses, that soon after becomes the leading of the troupe; Ruijuan Yin, the girl that dreams in becoming a dancer and by whom Mingliang falls in love; Chang Jun, the best friend of Mingliang, handsome, with this westernized hair looks and bell-bottom jeans, exposing this desire for modernity from this Chinese youth, tired of a cultural dictatorship enforced by the Party; and Zhang Pong, Chang Jun´s girlfriend. Platform will be following the sad exodus of each character from the artistic dream, as well as the passage of a transforming country from a revolutionary utopia that ends up demonstrating another dictatorship of the cold capitalism logic. In such sense, the dictatorship is not specifically political, but it imposes itself by the economic means, carrying a painful ideology which says: “it could not be accomplished in any other way”. It’s not a film that dances over the communist grave – the most ordinary example of such kind is Not One Less by Zhang Yimou - but a work that clearly reveals the different degrees of absurdity existing in both systems. The first half of the film is based on the construction of the characters, the relationships of the two couples (the refused love of Ruijuan, Zhang Pong´s abortion), and the building of the city of Fenyang. It is a sad village in the middle of nowhere, with a geography that seems to express the general tone of its inhabitants (consequently an existential feeling of the entire China): beige colored mountains, grey skies ... Jia Zhangke staging is distant, preferably with long and fluid shots, always constructed with mastery (the scene where Mingliang declares his love, where a wall occupies the entire left half of the screen, while the two boys walk in and out of our field vision, one after another, is surprisingly beautiful). The second part of Platform is filled with trips: as the group must earn their living solely with the money raised from the performances, the group starts traveling to neighboring cities, and slowly starts to lose its members, gaining few others on the way. As the movie goes, the group is now basically composed of social outcasts, and all the changes made (now a pop group, punk aesthetics, dancers in uniforms) look like pathetic attempts to draw the audience attention, arising from the need to stay alive as a group. This part has at least two moments of incredible strength: one of them, is when the dancer Ruijuan, now a police officer, is at a sheriff hall wearing her uniform, and raises her microsystem volume to the maximum level, dancing a music she would like to be dancing elsewhere, with another dress. The other moment is the trip of some relatives of Mingliang to the city. By the time he meets his family, he discovers that his misfortune as an artist is also repeated in the life of this little town: with the change of the political regime, the work in the coal mine, the only economic activity in the region, is now ruled under the new system profit logic, even more draconian than the Communist one (the beginning of the employment contract says: “Life and death are fate choices”, as the company accepts no liability for any work accidents). Mingliang´s cousin, with his same age, will have to adapt to this regime, and when he says goodbye, delivers some money for his sister (who lives in Fenyang) so that she must never return to their native village. But the great wisdom of Jia Zhangke (the young artist that we saw – in film festivals his following film, and also essential Unknown Pleasures (Ren xiao yao), which premieres in Venice, 2004, and that we await to have the chance to see his first film, Xiao Wu – Pickpocket, here in Brazil) lies in the care, the attention and time he devotes to his characters
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so that they truly exist. In the way he shoots their wishes and the spaces they live. Platform inherits its name from an homonymous song, very popular in the 80s, a rock that expresses in its lyrics the out of hope feeling of an entire generation. With tenderness and yet showing all the cruelty of the situation, this song is played in the movie when the truck carrying the troupe is broken in the middle of a desert landscape. In the distance, you hear a noise: it is a train, something that never existed in Fenyang. They run as fast as they can to see it more closely, but it is gone by the time they arrive closer. Sad and yet vigorous, Platform is a breath of strength and youth, a devotion to the world (even if the world does not respond to it) and a confidence in the foundational powers of the filmmaking art.
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JIA ZHANGKE | PLATAFORMA * Trecho de entrevista concedida a Felipe Bragança, publicada em 2007 na revista Cinética.
Jia Zhangke: Quando eu filmei Plataforma (Zhantai, 2000), praticamente toda minha equipe tinha menos de 30 anos. Queríamos conseguir fugir das regras da criação industrial de imagens e encontrar formatos de criação que dessem mais vitalidade ao nosso cinema. Um modelo de produção define a temperatura de um filme! A jornada dos personagens foi também vivida pela nossa equipe, o que fazia com que o próprio deslocamento para os sets funcionasse como um acúmulo de memórias para a realização. Eu cheguei, de fato, a transformar situações que vivemos nas viagens em situações de filme, em plots novos. Apesar de ser um filme histórico, queríamos conseguir que Plataforma tivesse o sangue quente de um filme sobre o presente. Dessa forma, o que tentamos fazer foi representar a história como fragmentos presentes de memórias afetivas nossas – não reproduzindo a história, mas criando pequenas situações históricas, como esquetes através da memória. Essa narrativa fragmentada, nos deu liberdade para procurar esse novo modelo de filmagem e set. Hoje, tenho certeza que para se criar uma nova forma de cinema é preciso encontrar novas formas de produção. Assim, tenho procurado seguir três ideias básicas. A primeira delas é trabalhar com equipes pequenas que me permitam uma maior flexibilidade de organização e improviso; outra é selecionar atores não profissionais ou de formação não tradicional que me permitam uma maior proximidade com suas vidas, e uma mistura mais fácil com personagens reais. E por ultimo, usar tecnologia digital para tornar a produção mais leve e deixar mais possibilidades de manipulação e acertos fotográficos para a pós-produção, fazendo com que o set se torne mais livre e, especialmente, dinâmico.
JIA ZHANGKE | PLATAFORM Jia Zhangke: When I filmed Platform almost my whole team had less than 30 years old. We wanted to make a difference from the rules of the filmmaking industrial standards and find a new creative sense that could give us a new energy in the filmmaking process. The production standards define the film´s particular mood! The journey of the film characters was also experienced by our team - which made the displacement and travelling to the sets a natural source of reminiscence when we were shooting. I was actually able to revert situations that we´d experienced during the travels plot wise. Despite being a historical film, we wanted Platform to have this on-the-spot mood. Therefore, we tried to represent the history as fragments from the present of our affective memories – not simply recreating the stories, but actually handling some real drama situations, like sketches through our memories. This fragmented narrative gave us the freedom to search this new production and filming standards. Today, I’m sure: in order to create a new filmmaking it is necessary to find new production standards. Thus, I have tried to follow three basic ideas: The first one is to work with small teams that allow me a greater flexibility in organization and improvisation; the other is to choose non-professionals actors or that don´t belong to traditional acting schools which allow me a closeness with their lives and easier mixing with the real characters; and the last one is the use of digital technology, which enables not only a lighter production, bringing more possibilities to the photographic arrangements and manipulation in the post -production, but also a freer set, and specially, a more dynamic one.
ESCRITOS / WRITINGS | JIA ZHANGKE
* Excerpt from the interview with Felipe Bragança published in 2007 in Cinética online film magazine.
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2001 / 6 min / DV
DOG’S CONDITION GOU DE ZHUANGKUANG direção e roteiro Jia Zhangke
O filme se passa em um mercado onde muitos filhotes são comprados e vendidos. Eles tentam se libertar usando uma sacola de roupas. The film takes place in a market where many puppies are bought and sold. They try to break free using a bag of clothes.
2001 / 30 min / DV
IN PUBLIC GONG GONG CHANG SUO
direção e roteiro Jia Zhangke produção Cha Seoung-Jae direção de fotografia Yu Likwai, Jia Zhangke
Um levantamento de espaços públicos, incluindo uma estação de trem, uma casa de banho e um ponto de ônibus. As pessoas aparentam estar sozinhas e conectadas. A survey of public spaces, including a train station, public toilets, and a bus stop. People seem to be alone and connected.
2002 / 112 min / HDCM
PRAZERES DESCONHECIDOS REN XIAO YAO / UNKNOWN PLEASURE
direção e roteiro Jia Zhangke elenco Zhao Wei Wei, Qiong Wu, Zhao Tao, Qing Feng Zhou, Wang Hongwei direção de fotografia Yu Likwai desenho de som Zhang Yang produção executiva Masayuki Mori, Hengameh Panahi, Paul Yi produção Shozo Ichiyama, Li Kitming co-produção Yuji Sadai produção associada Chow Keung, Osaka Fumiko, Yu Likwai
Xiao Ji e Bin Bin, aos 19 anos, desempregados, passam os dias andando de moto e jogando conversa fora. Os dois vivem os conflitos de uma juventude sem perspectiva em uma nova China, cada dia mais capitalista e urbana, com a onipresença da televisão e as tragédias do noticiário. Xiao Ji and Bin Bin, both 19 years old, unemployed, spend their days riding bikes and goofing around. The two live in a conflict, feeling the lack of prospective to the youth in this new China, increasingly capitalist and urban, with the ubiquity of the television, and the constant tragedies broadcast on the tv news.
A resignação dos jovens protagonistas de Prazeres Desconhecidos (Rèn xião yáo, 2002), que tentam sobreviver no anonimato de um cotidiano sem maiores perspectivas, sintetiza todo um estado das coisas na China contemporânea, ao qual o filme de Jia Zhangke lança um olhar minucioso e despido de maiores utopias. Afinal, a realidade de uma cidade de médio porte, no interior do país, parece bastante distante do que diz a letra da canção pop chinesa Ren Xiao Yao (2001), em que o filme por vezes parece gravitar – e da qual ele toma emprestado seu nome original. Ao invés de estar com a alma “liberta de quaisquer amarras” através do amor, como diz a tradução literal do título da canção, talvez a liberdade seja, para os jovens protagonistas do longa, bem mais difícil de alcançar do que se imagina. A citação de cunho hedonista que a personagem Qiao Qiao faz a um trecho do poema homônimo (escrito pelo filósofo Chuang Tzu há mais de dois mil anos), onde você é “livre para fazer o que se quiser”, soa tão irônica quanto a escolha de seu amigo Bin Bin em cantar essa mesma canção ao ser confrontado por um policial na delegacia, após sua fracassada e patética tentativa de assaltar um banco munido de uma bomba. No filme, acompanhamos o dia a dia de três jovens em torno de 20 anos e suas perambulações pela provinciana cidade de Datong, no nordeste da China. Além de Qiao Qiao, dançarina e amante de um contrabandista de bebidas, temos os amigos Xiao Ji (que nutre uma paixão pela dançarina) e Bin Bin, ambos desempregados. Os três são frutos diretos da “Política do Filho Único”, mecanismo radical de controle de natalidade adotado em 1979 pelo governo chinês para evitar o risco de superpopulação. Trata-se de uma geração que cresceu sem irmãos tendo os brinquedos e programas televisivos como únicos companheiros no silêncio dos apartamentos vazios, enquanto seus pais passavam o dia inteiro fora de casa trabalhando. Solidão e isolamento parecem transbordar desses personagens, numa juventude que mescla as dificuldades de comunicação interpessoal com uma forte influência da cultura pop norte-americana, que chegava à China dos anos 90 em uma escala sem precedentes. Se as referências aos filmes ocidentais abundam – Pulp Fiction aparece não somente mencionado em uma conversa de restaurante, mas também na peruca inspirada no penteado de Uma Thurman no filme de Tarantino ou na música que toca na boate, sampleando o conhecidíssimo riff de guitarra de “Misrilou”, de Dick Dale – elas também ampliam, aqui, a sensação de despertencimento e apatia que emana incessante do cotidiano dessa juventude. A isso, soma-se a experiência de viver no xiancheng, o município periférico que faz parte da divisão administrativa do condado. Os filmes iniciais de Jia Zhangke constituem verdadeiras radiografias dos xianchengs da província de Shanxi – os dois primeiros, Um artista batedor de carteiras (Xiao Wu, 1997) e Plataforma (Zhantai, 2000), são rodados em Fenyang, enquanto Prazeres desconhecidos tem como cenário a cidade industrial de médio porte Datong, cuja renda per capita de 2500 dólares (maior que a de Fenyang, que é de somente 1500) ainda se encontra bem distante dos 11 mil dólares anuais de um grande centro, como Shangai. Para o pesquisador Zhang Xudong, o xiancheng é a China proletária par excellence, com sua arquitetura disforme, suas imprecisas distinções entre rural e urbano, industrial e agrário, em constante alternância entre espaços em processo de demolição e outros sendo ressignificados ao sabor do capitalismo desenfreado que assola todo o país. Em
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DAS HISTÓRIAS MENORES DE UMA GERAÇÃO SOLITÁRIA ERLY VIEIRA JR
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seu artigo Poética da desaparição, publicado em 2010 na New Left Review, Xudong afirma que no xiancheng “são travadas as batalhas mais brutais de uma transformação histórica na China, de forma silenciosa e invisível”. É nesse contexto que toda essa juventude solitária busca extrair algum sentido da vida, algum tipo de esperança para além da ausência de perspectivas de um futuro sólido, que levam Xiao Ji a afirmar que a vida sequer deveria durar mais que 30 anos, dadas as poucas possibilidades que ela costuma oferecer. O pesquisador espanhol Luis Miranda, em artigo escrito para o livro China siglo XXI: Desafios y dilemas de um nuevo cine independiente (volume por ele organizado em 2008), destaca, como uma constante na “Sexta geração” do cinema chinês, a proliferação de referências a um mundo saturado de imagens de consumo. Miranda chega a se perguntar se existe algum filme dessa geração que não inclua, em alguma cena, a “contemplação sintomática” de uma tela de TV por personagens há muito alienados – como na potente e mais que atual cena em que se anuncia a escolha de Beijing como cidade-sede dos Jogos Olímpicos de 2008. Afinal, toda a pirotecnia que a cerimônia dirigida por Zhang Yimou apresentaria em alguns anos soa, no contexto do filme de Zhangke, extremamente distante do alcance dos olhos de crianças e adultos que brilham ao comemorar a tão aguardada escolha – sentimento que, curiosamente, Bin Bin e Xiao Ji parecem claramente não compartilhar. Aliás, se a mídia eletrônica é capaz de anunciar, para todos os lares da China continental, os diversos eventos históricos daquele ano de 2001, como o anúncio das Olimpíadas e a entrada da China na Organização Mundial do Comércio, cabe lembrar que as vidas do trio de protagonistas parecem passar ao largo disso tudo. À medida em que tais eventos passam a constituir um tênue pano de fundo, o que nos é apresentado em primeiro plano é um enclave de intimidade recortado em meio aos devires da própria História (aqui com um irônico H maiúsculo). Talvez caiba aqui usar o termo “histórias menores”, adaptando a ideia de “literatura menor” proposta por Deleuze e Guattari a respeito da literatura de Kafka. Falo de um tipo de narrativa historiográfica que, ao centrar-se naqueles que estão às margens dos processos históricos, apoia-se nos usos que uma minoria faz de uma “língua menor”, resistindo à lógica hegemônica e subvertendo os discursos históricos institucionalizados ao produzir neles protuberâncias e embaraços. No caso dessa mitologia contemporânea da pós-modernidade de uma economia chinesa forjada a todo vapor, somos apresentados a seu reverso: acompanhamos as inúmeras tensões e cicatrizações com diversos graus de queloides que se impõem nos projetos de vida precocemente frustrados dos habitantes do xiancheng. Em Prazeres desconhecidos, testemunhamos as existências sem maiores ambições desses jovens de quase vinte anos de idade, cujos afetos são incessantemente captados por um espaço-tempo narrativo que emula o fluir do próprio cotidiano, com suas pequenas e desimportantes esperas e hesitações, as ações repetidas corriqueiramente, os gestos mais banais – como o de levantar o casaco por sobre a cabeça para protegê-la do sol, tal Qiao Qiao em diversas cenas. E é o mosaico desses microeventos que nos torna íntimos dos personagens: partilhando aos poucos por um olhar curioso que revela os pequenos mistérios dos protagonistas e a dimensão humana da vida em Datong, culminando em pequenas apoteoses, como a cena em que a dançarina, abandonada por seu amante, abandona aos prantos a peruca que lhe dava ares de Mia Wallace, ainda que delicadamente kitsch. Essa sobrevivência de cada dia é retratada, na pulsação do aqui e agora, por uma câmera que segue os personagens e que continua a filmar depois que eles saem de cena. Uma câmera que busca capturar o lento escoar do tempo em planos-sequência gerais, verda-
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deiros tableaux encadeados como “vagões”, “blocos de granito indivisíveis”, nos quais o tempo escoa “como uma hemorragia interna” – e aqui, as expressões em aspas são retiradas do antológico artigo “C’est quoi ce plan?”, de Jean Marc Lalanne, publicado na Cahiers du Cinema (n. 569, 06/2002), um dos textos que ajudaram a dar forma à ideia de um “cinema do fluxo” contemporâneo, tão popular na década passada entre uma importante parcela da crítica cinematográfica brasileira. Retomando o texto de Luis Miranda, podemos perceber como este filme dá continuidade ao estilo de filmagem adotado pelo cineasta em seu longa anterior, Plataforma: cenas que começam e terminam em uma mesma tomada, sem cortes; uma “horizontalidade das imagens e dos relatos”, em que os corpos são filmados a uma certa distância, observando-os silenciosamente enquanto se tenta “condensar ao mesmo tempo a vitalidade do cotidiano e as determinações da história”; a construção do relato a partir de uma soma de fragmentos (planos-sequência), cujas elipses temporais intersequenciais são variáveis importantíssimas; e, na banda sonora, o uso do “ruído de fundo” de forma descontínua e invasiva. Esse último elemento acaba por funcionar como um registro paralelo que intensifica ao mesmo tempo o comentário social e a experiência sensorial que Jia Zhangke propõe partilhar com o espectador. Todas as inserções têm uma dimensão simbólica e sensória intensa, das notícias transmitidas pelos diversos televisores ligados em cena aos sons que saem dos altofalantes nas estações e nas ruas (como o anúncio da loteria), passando pelos ruídos da construção civil e até mesmo pelo cantor (interpretado pelo próprio cineasta) que repete, desafinadamente, a plenos pulmões, um conhecido trecho de ópera italiana. Em diversas entrevistas concedidas nos últimos anos, Jia Zhangke tem reforçado a relação entre seus personagens e os espaços que eles percorrem e ocupam cotidianamente. Não à toa, a paisagem é, em seus filmes, um dado tão fundamental quanto os personagens. Os planos gerais de longa duração, por vezes traduzidos em varreduras panorâmicas, são essenciais para provocar no espectador a sensação de uma atmosfera impregnada tanto pelos escombros produzidos a cada prédio demolido quanto pelo abandono de cada galpão ou fábrica desativada registrados pela câmera. A cidade de Datong, situada na mesma província que Fenyang, cidade natal de Zhangke, surge na filmografia do cineasta um ano antes do longa, quando ele filma o curta-metragem In Public (Gong gong cháng suo, 2001). A flexibilidade de produção e a liberdade de movimento proporcionados pelo vídeo digital foram fundamentais para que o formato DVCAM fosse adotado em Prazeres desconhecidos, incorporando tanto suas vantagens quanto as limitações técnicas de resolução de imagem e cor – em uma espécie de imagem “lavada” que amplia a atmosfera de melancólica solidão que parece emanar do filme o tempo todo, em claro contraste com o pálido desejo de uma outra existência, expresso nos versos que Bin Bin canta sem maiores empolgações, ao final do filme, nos quais propõe-se, enfim, “desaparecer com o vento para se desfrutar do prazer desconhecido”.
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MINOR STORIES OF A LONELY GENERATION
The resignation of the young protagonists of Unknown pleasures (Rèn xiao yáo, 2002), who attempt to survive in the anonymity of a life without many perspectives, synthesizes a whole host of factors in contemporary China, on which Jia Zhangke’s movie casts a look that is both detailed and devoid of utopia. After all, the reality of a mid-sized town in the interior of the country seems rather distant from the lyrics of the pop song “Ren Xiao Yao” (2001) around which the film seems, at times, to navigate – and from which it borrows the original title. Instead of having the soul “free from all ties” through love, in a literal translation of the song’s title, perhaps for the young protagonists freedom is much harder to achieve. The hedonist quote that the character Qiao Qiao makes from an excerpt of the poem with the same name (written by philosopher Chuang Tzu over two thousand years ago), in which you are “free to do what you want”, sounds as ironic as her friend’s Bin Bin choice to sing that very song when confronted by a policeman at the station after his failed and pathetic attempt to rob a bank bearing a bomb. In the film, we follow the day to day of three youngsters in their 20s as they wander the provincial town of Datong, in Northeast China. Additionally to Qiao Qiao, a dancer and lover to a liquor smuggler, we have the friends Xiao Ji (who nurtures a passion for the dancer) and Bin Bin, both unemployed. The three are the direct result of the “One-Child Policy”, the radical mechanism of birth control adopted by the Chinese government in 1979 to avoid the risk of overpopulation. This is a generation that grew up without siblings, having toys and TV programs as their only friends in the silence of the empty apartments, while their parents spent the whole day out working. Loneliness and isolation seem to overflow from these characters, in a youth that mixes the difficulties of interpersonal communication with a strong influence of North American pop culture, which reached China in the 90s at unprecedented rates. While references to western films abound - Pulp Fiction is not only mentioned in a restaurant conversation, but is also seen in the wig inspired by Uma Thurman’s hairstyle in Tarantino’s film and in the song played in the night club, sampling the unmistakable guitar riff of “Misrilou”, by Dick Dale – here they additionally deepen the feeling of not belonging and of apathy that does not cease to emanate from the youngsters’ everyday life. Added to that is the experience of living in the xiancheng, the fringe municipality that belongs to the county’s administrative division. Jia Zhangke’s first movies are true X-rays of the xianchengs of the Shanxi province – the first two, Pickpocket (Xiao Wu) and Platform (Zhantai) , are shot in Fenyang, while Unknown pleasures is set in the mid-sized industrial town of Datong, where the per capita income of 2500 dollars (higher than Fenyang’s, which is only 1500) is far below the 11 thousand dollars per year in a big city like Shangai. For researcher Zhang Xudong, the xiancheng is working class China par excellence, with its shapeless architecture, inaccurate distinctions between rural and urban, industrial and agrarian, constantly alternating between spaces under demolition and others being resignified under the savage capitalism that ravages the whole country. In the article “Poetry of disappearing”, published in the New Left Review in 2010, Xudong states that in the xiancheng “the crudest battles of a historic transformation in China are fought, silently and invisibly”. This is the context in which this lonely youth seeks to find some meaning in life, some sort of
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hope that goes beyond the absence of future prospects, which has led Xiao Ji to say that life itself should not last over 30 years, given the few possibilities it usually offers. Spanish researcher Luis Miranda, in an article written for the book China siglo XXI: Desafios y dilemas de um nuevo cine independiente (a volume he organized in 2008), highlights, as a constant in the Sixth Generation of Chinese cinema, the proliferation of references to a world saturated with images of consumption. Miranda goes as far as to ask himself if there was any film from this generation which did not include, in one scene or another, the “symptomatic gaze” into a TV screen by characters long alienated – like in the powerful and more than current scene in which Beijing is announced as the host of the 2008 Olympics. After all, all the pyrotechnical show directed by Zhang Yimou that would be displayed in a few years, in the context of Zhangke’s film, seems extremely distant from the eyes of children and adults that twinkle as they celebrate such awaited election – a feeling that, curiously, Bin Bin and Xiao Ji clearly seem not to share. In fact, while electronic media can announce to all homes in continental China the several historic events of that year 2001, such as the announcement of the Olympics and China’s inclusion in the World Trade Organization, one must remember that the lives of the protagonist trio seems to pass them by. As those events begin to form a tenuous backdrop, what is presented to us in the foreground is an enclave of intimacy cut in the unfolding of the History itself (here with an ironic capital H). Perhaps here it is more apt to say “lesser stories”, adapting the idea of “lesser literature” proposed by Deleuze and Guattari about Kafka’s literature. I am talking about a kind of historiographic narrative which, by focusing on those who are on the margin of the historical processes, is based on the use that a minority makes of a “lesser language”, resisting the hegemonic logic and subverting the institutionalized historical discourse by producing protuberances and hurdles in it. In the case of this contemporary mythology in the post-modernity of a Chinese economy in full steam, we are introduced to its reverse: we follow the numerous tensions and scars with various degrees of keloids that inflict on the prematurely frustrated life projects of the inhabitants of the xiancheng. In Pleasures unknown, we witness existences without major ambitions of these youngsters in their twenties, whose affections are incessantly captured by a space-time narrative that mimics the flow of day to day life itself, with its small and unimportant waits and hesitations, actions commonly repeated, the most banal gestures – like lifting a coat over the head to protect it from the sun, as repeated by Qiao Qiao in several scenes. And it is the mosaic of such micro-events that makes us intimate with the characters: slowly sharing through a curious gaze that reveals the small mysteries of the protagonists and the human dimension of life in Datong, culminating in little apotheoses, like the scene in which the dancer, abandoned by her lover, puts aside in tears the wig that gave her airs of Mia Wallace, albeit delicately kitsch. This every day survival is depicted, in the pulsation of here and now, by a camera that follows the characters and continues to film after they have left the scene. A camera that seeks to capture the slow passage of time in general plane-sequence shots, true tableaux chained like “wagons”, “indivisible granite blocks”, in which time flows like an “internal bleeding” – and here, the expressions in quotation marks are taken from the extraordinary article “C’est quoi ce plan?”, by Jean Marc Lalanne, published at Cahiers du Cinema (n. 569, 06/2002), one of the texts that helped shape the idea of a contemporary “flow cinema”, so
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popular among an important part of Brazilian film critics in the last decade. Going back to Luis Miranda’s text, we can notice how this film builds on the filming style used by the filmmaker in his previous feature film, Platform (Zhàntái, 2000): scenes that start and finish in the same take, without cuts; a “horizontality of the images and of the narratives”, in which the bodies are filmed from a distance, quietly observing them while attempting to “condense, at the same time, the vitality of every day and the determinations of the story”; the construction of the narrative from the sum of fragments (plane-sequences), in which the inter-sequential time ellipses are extremely important variables; and, in the soundtrack, the use of “background noise” in a discontinuous and invasive manner. This last element ends up functioning as a parallel register which, at the same time, intensifies the social comment and the sensorial experience that Jia Zhangke proposes to share with the spectator. All the insertions have an intense symbolic and sensorial dimension, from the news broadcast by the several televisions on in scene, to the sounds from the loud-speakers in stations and in the streets (like the lottery announcement), going to the noises of civil construction and even the singer (played by the filmmaker) who repeats, out of tune and lungs out, a famous extract of Italian opera. In several interviews over the last years, Jia Zhangke has reinforced the relationship between his characters and the spaces they walk in and occupy every day. It is not by chance that, in his films, the landscape is as fundamental as the characters. The long general planes, at times translated in panoramic sweeps, are essential to provoke in the spectator a feeling of an atmosphere impregnated both by the rubble produced by each demolished building and by the abandonment of each warehouse or discontinued plant recorded by the camera. The town of Datong, situated in the same province as Fenyang, Zhangke’s home town, appears in the filmmaker’s filmography one year before the feature film, when he shoots the short film In Public (Gong gong cháng suo, 2001). The flexibility of production and the freedom of movement provided by digital video were instrumental for the adoption of the DVCam format in Pleasures unknown, incorporating both its advantages and its technical limitations of image and color resolution – in a kind of “washed out” image that intensifies the atmosphere of melancholic loneliness that seems to constantly emanate from the film, in clear contrast with the pale longing for another existence, expressed in the verses that Bin Bin sings without any enthusiasm at the end of the film, which proposes to, finally, “disappear with the wind to enjoy unknown pleasures”.
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2004 / 133 min / HDCM
O MUNDO SHIJIE /THE WORLD
direção e roteiro Jia Zhangke elenco Zhao Tao, Chen Taisheng, Wang Xiaoshuai, Han Sanming música Lim Giong direção de fotografia Yu Likwai edição Jing Leikong desenho de som Zhang Yang produção executiva Masayuki Mori produção Chow Keung, Shozo Ichiyama, Hengameh Panahi, Ren Zhong-Iun, Takio Yoshida
“Conheça o mundo sem sair de Pequim” é o slogan do parque chinês onde estão construídos os monumentos mais famosos do mundo em escalas menores. Tão é dançarina e seu namorado Taisheng é segurança. Os dois, assim como outros jovens, vieram de cidades pequenas para tentar seus sonhos no World Park. “Get to know the world without ever leaving Beijing” is the slogan of the Chinese theme park where they built the most famous monuments of the world on smaller scales. Tao is a dancer and her boyfriend Taisheng is a body guard. Like many others, they came from small towns trying to fulfill their dreams in the “World Park”.
O trabalho de Jia Zhangke em seu quarto longa, precisamente batizado de O Mundo (Shijie, 2004), é acima de tudo o trabalho de um historiador. Através do maneio dos tempos nas imagens e das imagens nos tempos, assisti-lo nos dá a ver, em ato, uma ideia de história dinâmica, em formação. Não se trata de elencar uma série de fatos ou tecer um linha reta entre o passado e o agora. Não. É o confronto dessa concepção de história com uma outra, uma história que só existe em movimento, em duração, indivisível. Um exemplo pode ajudar aqui: vemos um moderno trem, em um monotrilho suspenso levando a personagem principal Tao (Zhao Tao), com a cidade de Pequim ao fundo. A câmera faz um movimento panorâmico para baixo e para esquerda, e enquadra uma série de homens fardados carregando galões de água, abaixo dos trilhos suspensos e, num movimento contínuo, enquadra em segundo plano uma miniatura das pirâmides do Egito. Ao contrário do que possa parecer, não se trata de elucidar uma heterogeneidade inerente ao contemporâneo (pós-modernismos e afins), mas sim de estabelecer um mecanismo que atravessa todo o filme. Uma estranha continuidade entre elementos de tempos diferentes, cuja junção, ao colocá-los em relação, nos revelará ligações que o simples mostrar, isoladamente, não revelaria. Há um trem moderno, industrial e pós-industrial, vazio, levando alguém sozinho. Abaixo dele, trabalhadores braçais carregam material pesado, de uma maneira bastante rudimentar como técnica de trabalho, e aí vemos as pirâmides como elemento de perspectiva para toda a cena. Um meio de transporte sofisticado, porém subutilizado, sem causar bem comum, trabalhadores em aparente exploração, trabalhando de maneira precária, à frente de um símbolo que designa ao mesmo tempo beleza ostentatória e morte. Em que esses homens fardados se diferenciam dos homens que construíram as pirâmides há séculos? O cenário do parque em O Mundo será o cosmos onde Jia tecerá com rara maestria uma poética da história fazendo-se como ato, como manuseio do tempo, no cinema. Uma aproximação funciona como premissa de entrada no filme. O cinema é irmão dos parques urbanos. Considerando como seu nascimento o cinematógrafo Lumière, não estamos longe das Exposições Universais de Paris, da mesma época, no fim do século XIX. O que havia lá? Novos meios de transporte: “a rua do futuro” (uma esteira rolante), a inauguração do metrô parisiense, eletricidade pela primeira vez para iluminar ambientes externos, palácios, os jogos olímpicos de 1900, uma grande miniatura do globo terrestre, enfim, uma celebração do progresso, das conquistas da civilização, cuja entrada é justamente um dos espaços mais utilizados no filme aqui em questão – a Torre Eiffel. A história se repete em seus procedimentos, funções, mas nem sempre nas suas matérias. É aí que age o cinema de Jia. Inverter as funções, reordenar as matérias, afirmando seus parentescos, mas ressaltando o caráter arbitrário, que encobre por exemplo, a ligação entre progresso e o Bem. O parque em Pequim é o parque em Paris. Mais de cem anos depois, o tempo passou. Claro que sim e claro que não. É isso que cada plano aqui afirma em sua busca: o tempo é impuro em sua aparente continuidade. A percepção é contínua, mas o tempo é o da multiplicidade, da impureza. Walter Benjamin dirá em suas Teses sobre o conceito de história: “a ideia de um progresso da humanidade na história é inseparável da ideia de sua marcha no interior de um tempo vazio e homogêneo. A crítica da ideia do progresso tem como pressuposto a crítica da ideia
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UMA ARQUEOLOGIA DO TEMPO SOBRE O MUNDO JULIANO GOMES
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dessa marcha”. Jia é um historiador da heterogeneidade: do público e do privado, do arcaico e do contemporâneo, do espetáculo e da natureza, do ator e do personagem, do amor e do trabalho, do detalhe e da paisagem, do atual e do virtual. O que mais importa nesses pares é justamente o “e”. Seu valor como conjunção. É esse o campo de trabalho de Jia nas imagens: manejar as tensões entre conjunção (simultaneidade, ligação, união) e disjunção (separação, distinção, diferença). Essa operação dupla, que junta e separa, também funciona na estrutura do filme. Apesar da rara precisão que a parceria entre Jia e o fotógrafo Yu Lik Wai atinge da realização de planos-sequência cuja leveza e precisão não têm par no cinema contemporâneo. A força de O Mundo é a maneira como esses processos se espalham também pelos intertítulos, inserções e sequências em animação no fluxo do filme. Os intertítulos ao mesmo tempo em que marcam alguns segmentos do filme (têm relação direta com o que vemos) são alocados desigualmente pela duração do longa marcando, simultaneamente, uma separação e arbitrariedade. As cartelas Paris in Beijing Suburb, Ulan Bator Night, Tokyo Story, Ever Changing World deslizam sobre a tela, em um misto de segmentação e evocação de uma multiplicidade, em relação ao demais elementos visuais na tela. Sob o primeiro escrito, vemos a miniatura da Torre Eiffel em meio à cidade, no corte seguinte ao segundo letreiro, avistamos ruínas, sob o terceiro, imagens de uma casa japonesa tradicional e mulheres de kimono e sob o quarto, um close de um passaporte. O escrito é mais um dado dessa coexistência paradoxal de sentidos, que afirma e desafirma, que marca e confunde, que abre e fecha. Da mesma maneira, se revelará o bilhete de despedida do Irmãzinha (Zhijun Chen). Ao final de um longo plano sem cortes, a câmera busca a parede como suporte para exibir a carta, que afinal é um lista de dívidas, de alguém que morreu por exaustão no trabalho. Corta para um plano geral da cidade. As sequências em animação, que não raro, são tratadas pela crítica como marca de uma nova etapa na obra de Jia, são somente uma radicalização dessa experiência que seu cinema sempre desejou: a exploração radical das ligações de continuidade e descontinuidade. O mesmo espaço, o mesmo grupo de personagens, um mesmo espaço-tempo, planos amplos que tendem a se estender e articular dentro de si mais de um corpo e mais de uma ação, convivem com situações que não se concluem, sentimentos que não se explicitam, imagens de naturezas aparentemente distintas (telas, encenações teatrais, cópias, réplicas). As animações em flash digitais, em geral, estarão associadas à comunicação dos personagens, especialmente via telefone celular. É justamente o drama da ligação, do laço, da continuidade, da junção, que está em jogo e em crise. Eles juntam e separam as pessoas, elimina-se a distância física necessária para a fala, mas aumenta-se uma outra escala, pela frieza das palavras em dígitos. Há uma mudança material, ao usar uma comunicação sem corpo humano. O mundo é o lugar da criação, convivência e fricção das imagens, onde o trabalho do filme é encontrar uma forma possível onde essas medidas, essas formas de se relacionar com o outro e com as imagens, possam se combinar. A mudança para um registro não indicial coexiste com uma continuidade narrativa com a imagem anterior. Não se trata de uma ruptura, mas sim de uma continuidade de outra ordem, de uma montagem tão visível quanto invisível. O cinema é afinal uma experiência cartográfica, em seu desejo de duplicar a experiência visível, mudando-a de tamanho e proporções. Essa é a premissa da existência do parque. Não por acaso, o mundo do teatro, da encenação e do artifício é central como tema (acompanhamos um grupo de dançarinos e um grupo de guardas, todos trabalhadores do parque)
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e como camada. A aparência cristalina dos planos se combina com uma inescapável força metalinguística que contamina o filme por diversas entradas. O início do filme, confundese com a abertura de um número apresentado no parque, palco, luzes, corte para plateia. O que vemos é uma representação. Um filme, uma peça, uma imagem, ao mesmo tempo. A exploração das entradas e saídas do espetáculo e de mecanismos variados de artifício (como na cena onde Tao conversa com seu namorado em primeiro plano, bebe água, segue em direção ao fundo do quadro, onde há um grupo de turistas, e começa a dançar sua coreografia com suas colegas). O espetáculo não tem limites fixos, e não é do domínio da falsidade. Ele existe e se espalha por tudo como forma. Qualquer história, é antes de tudo, uma história de si mesma, de sua própria composição de discursos. Mas seus elementos ecoam, vazam. A construção dos quadros em tableau, a escolha pela planificação do mundo em duas dimensões (assim como também as animações) cria um “achatamento” potente para essa convivência do mostrar como ato e do que se mostra dentro do campo. Nesse universo plano, é possível explorar as escalas, meridianos e paralelos. O conceito de “mundo” nada mais é que a ideia da perspectiva humana (não por acaso, os discursos de fim do mundo proliferam-se hoje, quando de fato, o que urge é uma mudança de perspectiva). É um conceito que designa lugares que podem variar (o planeta, o “meu” mundo, o universo, a civilização etc), mas que fala, principalmente de uma perspectiva onde o ponto de referência é o homem e também de um lugar onde se habita, um espaço. Todo esforço de Jia é, justamente, fazer variar essa relação entre homem e espaço, mantendo a tensão ativa, sem nunca abandonar um em proveito do outro. A perspectiva é alterável. Há diferença e comunhão, em variação. A produção de um e do outro é mútua e múltipla, assim como a destruição. Pois uma imagem é sempre o testemunho de uma desaparição. É também uma história do cinema que está em ato diante dos nossos olhos. O Eros doente, a precisão do quadro geométrico de Antonioni, a relação homem-mundo, primeiro plano-segundo plano constante de Rosselini (além da referência direta na cena final do casal morto, ao amor fossilizado na Pompéia em Viagem à Itália), a sutileza incisiva dos movimentos de câmera e da transfiguração histórica de Hou Hsiao Hsien, a referência direta à Ozu em um dos nomes dos intertítulos (Tokyo Story, título original da obra-prima Era uma vez em Tóquio), no uso da música nesse trecho (trilha original do mesmo filme de Yasujiro Ozu), entre muitas outras entradas possíveis. Enquadrar é sempre uma operação genealógica e arquitetural. Telas, janelas, palcos e passarelas, são a matéria desse que é um dos artistas mais decisivos deste século na constituição impura e implosiva do presente rizomático, que se liga e reencena várias alteridades de tempo, de imagem, de registro. Ao tomar para si com tenacidade, a antiga tarefa de testemunhar seu tempo, Jia consegue esculpir uma profusão de signos ao mesmo tempo límpida e múltipla dobrando o discurso da história que se dirige inexoravelmente para o progresso, e erigindo uma história dos vencidos que é discretamente saturada de “agoras”. Toda imagem é heterogênea, contínua, falha e contagiosa em O Mundo. “Aqui não tem o lugar onde meu marido mora na França”, diz a amante de Taisheng, em referência ao irrepresentado no Parque. Há sempre alguma coisa de fora. Cada operação de escala deixa restos, cria um fora. A história da civilização é acima de tudo uma longa tragédia das desigualdades e dos vazamentos. “Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie”, dirá Walter Benjamin nas Teses. É essa avalanche dialética que o esse cinema dá forma com tal precisão que se coloca no limite de traí-la. Sob tela preta, na última cena,
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após vermos os corpos do casal principal colocados no chão, ouvimos suas vozes: −Estamos mortos? −Não. Isso é só o começo. Desaparecer é uma duração entre outras. Um intervalo é também um cruzamento entre séries diferentes. Afinal, nem mesmo o fim é uma imagem da qual não se possa desdobrar. A noite é também uma cor.
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Jia Zhangke’s work in his fourth documentary feature, precisely called as The World, is all about the work of a historian. By the act of managing the times on the shooting images and the images in the times, the film gives us the view, in the act, of a dynamic history idea, which is still being built. This is not about listing a series of facts or tracing a simple straight line between the past and the present. No. It is about confronting this conception of history with another one, a history that only exists in movement, in duration, indivisible. An example here might help us to understsand: we see a modern train in a suspended monorail leading the main character Tao (Zhao Tao), and in the same scene, we see Beijing on the back. The camera moves in a panoramic shooting down and to the left, showing a number of men in uniform carrying gallons of water, below the suspended rails and right after, in a continuous motion, we see a frame in the background of the Egypt pyramids miniature. Different from what it may seems, it is not a matter of elucidating an inherent heterogeneity in the contemporary (post-modernism and other alike), but rather to establish a mechanism that runs through the entire film. A strange continuity between elements of different times, that joined and relating to each other will lead us to certain revealed relations, that simply by showing them isolated, would not be revealed. There is a modern, industrial and post-industrial train, empty, carrying someone alone. And down on the ground, where we see workers carrying heavy load, in a quite rudimentary work technique, we can understand the pyramids as an element of perspective to the whole scene. A sophisticated means of transportation, but underutilized, without causing any common good, workers in apparent exploitation, working in a precarious manner ahead of a symbol which designates ostentatious beauty and death at the same time. What is the difference between these men in uniform and those that built the pyramids for centuries? The scenery of the park in The World will be the cosmos where Jia will weave with rare mastery a poetics of the history making itself as an act, as a way of handling time in cinema. An approximation functions as an input premise to dive into the film. The cinema is a brother of the urban parks. If we consider its birth with Lumierè “Cinematographe”, we will not be far away from the Universal Exhibition of Paris, of the same era, in the late 19th century. What was there? New means of transportation: “the street of the future” (the rolling conveyor system), the opening of the subway in Paris, electricity for the first time to the light outdoors, palaces, the Olympic Games in 1900, a large thumbnail of the globe, ultimately, a celebration of the progress, of the civilization achievements, whose starting point is just one of the most commonly used locations in the film here in question - the Eiffel Tower. History repeats itself in its procedures, functions, but not always in their topics. That’s where Jia´s cinema gets in action: in reversing the roles, reordering the materials, stating their relationships, but emphasizing the arbitrary aspect, which covers, for example, the link between progress and goodness. The Beijing Park is like the park in Paris. More than a hundred years later, the time has passed. For sure it did and of course it did not. That’s what each shooting plan here asserts in its quest: the time is impure in its apparent continuity. The perception is continuous, but time is actually the representation of the multiplicity, of the impurity. Walter Benjamin will say in his Thesis on the history concepts: “the idea of
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the humanity progress in history is inseparable from the idea of its path, its march inside an empty and homogeneous time. The criticism of the progress idea has as a premise, the criticism of such path idea”. Jia is a historian of the heterogeneity: regarding the public and the private, the archaic and the contemporary, of the nature and the show spectacle, of the actor and the character, of the love and the work, the detail and the landscape, of the current and actual reality and the virtual one. What matters the most in these pairs is precisely the “and”. It values as a conjunction. This is Jia´s work field on the images: handle the tensions between conjunction (concurrency, simultaneity, link, union) and disjunction (separation, distinction, discrepancy, difference). This dual operation, that joins and separates, also works on the film structure. Despite the rare precision that the partnership between Jia and Yu and the photographer Lik Wai photographer reaches in the accomplishment of the sequence plans, whose lightness and accuracy have no equivalent in the contemporary films industry. The strength in The World is the way these processes spread out also by the inter titles, the insertions and the animation sequences during the film. The intertitles at the same time that mark some segments of the film (they have a direct relation with what we´re seeing as spectators) are unequally allocated by the entire film, scoring, simultaneously, a separation and arbitrariness. The cartouches Paris in Beijing Suburb, Ulan Bator Night, Tokyo Story, Ever Changing World glide over the screen, in a combination of segmentation and evocation of a multiplicity, with regards to the other visual elements on the screen. Under the first one, we see the miniature of the Eiffel Tower in the middle of the city, then on the following cut of the second sign, we see ruins, under the third, images of a traditional Japanese house and women in kimono, and under the fourth, a passport close-up. Those written titles are one more data of this given paradoxical coexistence of senses, which affirms and denies itself, which marks and confuses, which opens and closes. In the same way, it will be revealed the farewell note of The little sister (Zhijun Chen). At the end of a long sequence plan without cuts, the camera searches the wall as a support to display the letter, which is actually a list of debts, of someone who died because of work exhaustion. And cuts to a city general plan. The animation sequences, which are often treated by critics as a new stage in the work of Jia, are only a radicalization of that experience that he always wanted on his films: radical exploration of the connections between continuity and discontinuity. The same space, the same group of characters, the same space-time, large plans that tend to extend and coordinate within itself, over a body and more in the same action plan, they all coexist with situations that do not come to an end, that can not conclude themselves, feelings that do not explicit themselves, followed by apparently distinct natures images (screenshots, theatrical performances, copies, replicas). The digital flash animations, are in general associated with the communication of the characters, especially via mobile phone. It is precisely the link drama, the connection, the bond of the continuity, the junction, which is at stake and in crisis. They join and separate people, they eliminate the physical distance necessary for the speaking, but on the other hand they raise another type of relation scale, by the coldness of the words in digits. There is a subject change, when using a communication without the direct human body involvement.
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The world is the place of creation, coexistence and friction of the images, where the work of the film is to find a possible way where such measures, such forms can relate with each other and with the images, so that they can be combined. The change to a diverse register method coexists with a narrative continuity with the previous image. It’s not about a breakage but a continuation of a diverse order, a simultaneously visible and invisible editing. The film is ultimately a cartographic experience, in its desire to duplicate the visible experience by changing its size and proportions. That’s the premise of the existence of the park. Not surprisingly, the world of the theater, staging and the artifices is the central theme (we follow a group of dancers and a group of guards, all employees of the park) and at the same time it is presented as a sub layer. The crystalline wide appearance of the shooting plans is combined with an inescapable metalinguistic force that defiles the movie through several entries. The beginning of the film overlaps with the opening of a show number in the park, stage, lights, cut to the audience. What we see is a representation. A film, a show number, a picture, at the same time. We can see the exploration of the limits of a played show and of the varying mechanisms of deception (as in the scene where Tao talks to her boyfriend in the foreground, drinks water, follows to the back of the frame, where there is a group of tourists, and begins to dance her choreography with her friends). The show has no fixed boundaries, and is not from the falsehood domain. It exists and gets spread in everything in a specific format. Any history is above all a history of itself, of the way it builds its speeches. But its elements echo, end up leaking. The frames building in tableau, the choice for planning and settling the world in two dimensions (as well as the animations) creates a powerful “flattening” to show this coexistence between the viewing of a plain act and of what is showed on the shooting field. In this flat universe, you can explore scales, meridians and parallels. The concept of The World is nothing more than the idea of the human perspective (not coincidentally, the speeches of the end of The World abound nowadays, when in fact, what is urgently needed is a change of perspective). It is a concept that designates locations that can vary (the planet, “my” world, the universe, civilization ...), but that speaks out, especially from a perspective where the reference point is the man and also a place where you inhabit, a place and space. Every effort that Jia does is precisely to vary these relationships between man and space, retaining the active tension, never leaving one in advantage of the other one. The prospect is changeable. There is a difference and communion in variation. The production of one and the other is mutual and multiple, as well as the destruction. Because an image is always the testimony of a disappearance. It is also a story of the cinematography itself, which is in the act before our eyes. The ill Eros, the accuracy of the geometric framework of Antonioni´s, the man & world relationship, the constant foreground-background of Rosselini´s (besides the direct reference in the final scene of the dead couple, to the fossilized love in Pompeii in Travelling to Italy), the incisive subtlety of the camera movements and the historical Hou Hsiao Hsien transfiguration, a direct reference to Ozu in one of the intertitles names (Tokyo Story), the use of music in this excerpt (original soundtrack of the same film, Yasujiro Ozu), among many other possible entries. Framing is always a genealogical and architectural operation. Screens, windows, stages and walkways, are the substance of this artist, which is one of
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the most crucial artists of this century in the impure and implosive constitution of this present rhizome, which binds and reenacts various time alterities, of image, of recording. As Jia assumes with tenacity the duty, as taking the responsibility of an old task in witnessing his time, he manages to carve out a profusion of signs at the same time clear and multiple, folding the history speech that goes inexorably towards the progress, ending up to erect a story of losers that is discreetly saturated by the “right now” moments in life. Every image is heterogeneous, continuous, failure, and infectious in The World. “Here there is no such place as the one my husband lives in France,” says Taisheng lover, in reference to what has no representation in the Park. There is always something missing. Each explored scale leaves rests, creates an outside staged. The history of civilization is above all a long tragedy of the differences and leaks. “There has never been a culture monument that is not also a monument of barbarism,” says Walter Benjamin in his Theses. It is this dialectic avalanche that this such film is composed, there is such precision that arises in a limit to betray the same mentioned dialectic issue. With the black screen, in the last scene, after seeing the bodies of the main characters couple placed on the floor, we can hear their voices: - Are we dead? - No. This is only the beginning. Disappearing has a certain length of time among so many others. An interval is also an intersection between different series. After all, not even the end is an image which is not possible to unfold. The night is also a color.
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2006 / 108 min / HDCM
EM BUSCA DA VIDA SANXIA HAOREN / STILL LIFE
direção Jia Zhangke roteiro Jia Zhangke, Na Guan, Sun Jiamin elenco Zhao Tao, Lan Zhou, Han Sanming, Lizhen Ma, Wang Hongwei direção de fotografia Yu Likwai música Lim Giong som Zhang Yang produção executiva Chow Keung, Bo Dan, Ren Zhong-Iun, Wang Tianyun, Jiong Zhu produção Wang Tianyang, Xu Pengle co-produção Jia Zhangke
A velha cidade de Fengjie já está debaixo de água, mas o seu novo bairro ainda está em demolição e construção. Han Saming, um mineiro, viaja para Fengjie para procurar a ex-mulher que não vê há 16 anos. Shen Hong, uma enfermeira, viaja para Fengjie à procura do marido que sumiu de casa há dois anos. The old town of Fengjie is already under water, but there is one neighborhood still in a demolition and construction process. Han Saming, a miner, travels to Fengjie to look for his ex-wife he has not seen in 16 years. Shen Hong, a nurse, travels to Fengjie in search of her husband who disappeared from home for about two years.
O LEGADO DO OLHAR A pintura chinesa Ao longo do rio durante a festa de Qingminga no filme Em busca da vida CHENG-YING WANG
A particularidade do plano-sequência A descrição da sequência de abertura No começo, a tela encontra-se inteiramente preta. Vários sons de barcos anunciam que o filme vai começar. Em seguida, escutamos barulhos de conversas entre os passageiros e a música, que vem trazer uma nota de harmonia. Eis o primeiro plano-sequência. A imagem está embaçada e em movimento. A câmera parece estar flutuando levemente para a direita, e rostos de pessoas comuns progressivamente aparecem na tela. É como uma espécie de retrato do povo chinês. São os viajantes que vão às Três Gargantas. Eles fumam, jogam cartas e batem papo. Temos a impressão de estarmos vendo um documentário – ou melhor, de estarmos lá com eles. Em seguida, uma outra tomada se insere.
Imagem capturada da sequência de abertura: uma série de retratos dos viajantes.
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Introdução A ideia de realizar uma pesquisa para demonstrar que existe uma relação entre o cinema e a pintura veio de um filme em que o diretor utilizava um plano-sequência e um travelling para construir uma cena. O movimento de câmera era feito horizontalmente, da esquerda para a direita, em um ritmo lento. Aquilo imediatamente me lembrou das pinturas de meu país de origem: aquelas pinturas chinesas que, tradicionalmente, são feitas com rolos de papel de arroz colado em outro papel mais grosso e que podem ser realizadas de cima para baixo – aliás, a forma mais comum – ou da direita para a esquerda. Minha reflexão partiu dali. Há alguma relação entre o ponto de vista do cinema e o da arte da pintura em rolos? Além disso, na Exposição Universal de 2012, em Xangai, no pavilhão chinês, foi exibida uma enorme versão digital do famoso rolo da obra Ao longo do rio durante a festa de Qingming. Um longo panorama em movimento valorizava a beleza da pintura tradicional chinesa em uma nova técnica de apresentação. Tive a intuição de que esse era um ponto que não havia sido muito estudado no mundo oriental. Nesse contexto, meu estudo vai apresentar uma reflexão sobre o sentido do plano-sequência em Em Busca da Vida (Sanxia haoren, 2006), de Jia Zhangke a partir da estética dos rolos de pintura. O diretor cria uma nova cinematografia ligada ao olhar, o que é, sem dúvida, uma herança dos rolos de pintura. De maneira mais ampla, gostaria também de me interrogar sobre a questão estética no enquadramento de Jia Zhangke. Pode o cinema ultrapassar a pintura, oferecer uma possibilidade adicional de interpretação ou até mesmo abrir-se a outros campos do conhecimento graças à forma como o diretor vê a vida?
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O movimento de câmera segue um ritmo estável. Os sons melodiosos de um canto da ópera Sichuan dão origem a um sentimento de nostalgia. O espectador assiste a todos esses trabalhadores no barco... A câmera nos mostra homens, mulheres com os filhos e idosos. Todos se acomodam para viver, juntos, por um momento nesse barco. Como plano de fundo, vemos uma paisagem de água e de montanhas; “You shan, you xue”, como na pintura tradicional chinesa. Mas esse local vai ser totalmente inundado pelas águas da grande represa das Três Gargantas. A imagem novamente se torna embaçada. É um crossfade, uma fusão de imagens. No entanto, o movimento não para. O plano médio mostra pessoas fazendo ligações com seus celulares. Ao lado, outras consultam um quiromante na esperança de conseguir saber o que o futuro lhes reserva. Novo crossfade. Vemos um senhor e uma mulher que se abana porque está muito calor. O movimento do longo plano-sequência para em nosso herói Saming, que está procurando sua esposa. Ele olha ao longe. Fim do primeiro plano-sequência.
Imagem capturada do filme: um travelling panorâmico filma horizontalmente da esquerda para a direita.
Não há necessariamente um enredo ou cenas narrativas. Nosso olhar segue o movimento de travelling panorâmico da câmera para a direita com uma rapidez bem maior do que no começo, como em um desenrolar de imagens diante do espectador. Esse desenrolar de retratos na tela dá ao plano-sequência remete ao desenrolar progressivo do rolo na pintura chinesa, que iremos abordar na terceira parte. É um desenrolar de imagens diante do espectador, uma série de retratos na tela, que confere uma sensação idêntica àquela que podemos ter quando desenrolamos progressivamente um rolo de pintura tradicional.
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Fim da sequência de abertura: Saming no barco olha ao longe.
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Um plano-sequência especial O primeiro elemento a ser percebido é o uso particular do movimento da câmera por Jia Zhangke. Com um estilo oposto ao de Orson Welles, sua câmera passeia entre várias cenas. Às vezes próxima do objeto, às vezes longe, ela faz seu travelling, sua viagem. O movimento é ativo e dinâmico no plano-sequência. Com frequência, a movimentação da câmera está ligada ao mise-en-scène, para que a narrativa seja contínua e encadeada. A câmera vai ocupar o espaço, se aproximar ou se afastar de acordo com o ritmo da narração do plano-sequência. Essa é uma característica da maioria dos diretores que utilizam planos-sequência em seus filmes. Nos filmes de Laura d’Otto Preminger, por exemplo, esse movimento assume uma função bastante narrativa. A câmera dita o ritmo do enredo o tempo todo. Ela é ativa. No entanto, o movimento de câmera de Jia em ambos os planos-sequência permanece calmo e sereno. No primeiro caso, é bem verdade que a câmera vai e volta no espaço real.
O movimento do olhar toma forma em um espaço pictórico: o uso do rolo de pintura Para buscar a origem da particularidade desse plano-sequência, vamos nos voltar à pintura tradicional chinesa. Efetivamente, supomos que os movimentos da câmera são influenciados pela pintura em rolo. Além disso, a imobilidade das pessoas filmadas não é apenas uma coincidência. Tanto o filme como a pintura em muito refletem um certo “olhar artístico” sobre as pessoas e sobre as paisagens, que é materializado tanto de maneira tradicional (pintura), como de forma contemporânea (filme). Tomamos a obra Ao longo do rio durante a festa de Qingming como principal exemplo para comparar e revelar essa particularidade do plano-sequência. Comecemos pela apresentação dessa famosa pintura em rolo. Trata-se de uma longa sequência de imagens organizadas umas após as outras, formando um vasto panorama. O dia de Qing Ming na beira do rio é um rolo de pintura longo e estreito. Mede 24,8 cm de altura e, desenrolado, possui mais de cinco metros de comprimento. Foi pintado no século XI por Zhang Zeduan (1085-1145), época em que reinava a Dinastia Song. Qing Ming é uma festa muito antiga, que, inicialmente, era ligada ao calendário agrícola e, hoje, é consagrada à limpeza dos túmulos familiares. A festa acontece sempre em abril e poderia ser comparada à Festa de Todos os Santos francesa (Toussaint). Essa pintura é extremamente célebre e sua principal característica é um realismo minucioso. Zhang Zeduan pintou centenas de personagens e dezenas de animais que se amontoam, se acotovelam, gritam. Mas também pintou prédios, pontes, barcos, charretes e lojas. É uma verdadeira reportagem sobre a vida em Kaifeng, no século XI. Podemos captar a ambiência e não apenas “ver” os lugares, como também ouvir os animais e as pessoas, sentir seus cheiros e participar dessa atmosfera.
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No entanto, há uma espécie de distância entre o olhar do diretor e as pessoas filmadas. Nós não vemos, necessariamente, o elo entre o movimento da câmera e a narrativa. Há apenas o travelling e o travelling panorâmico horizontal, como se a câmera fosse apenas um observador neste plano-sequência. Siety afirma que “para não serem arbitrárias, as escolhas de um movimento de câmera, de uma distância focal etc. devem participar da implementação de uma relação pensada entre o cineasta e o espaço ou com os personagens com os quais ele decidiu se confrontar”. O que torna o plano-sequência particular é o seu movimento: travelling panorâmico à distância. A segunda observação diz respeito às pessoas filmadas. No caso de A marca da maldade, de Orson Welles, é evidente que estamos em uma ficção. Os atores nos levam a um universo diegético. Nós seguimos o movimento da câmera e o diálogo dos protagonistas. As pessoas filmadas estão no centro do plano-sequência. São eles que lançam a ação e empurram o avanço da história. Entretanto, na sequência de abertura de Em busca da vida, as pessoas filmadas vivem suas vidas cotidianas. Não há um centro de narração, as pessoas não se deslocam em frente à câmera. É uma série de retratos. Elas estão quase imóveis na frente da câmera. O que difere são as figuras no plano-sequência. O movimento horizontal e as faces imóveis são elementos próprios do plano-sequência desse filme. Certamente, podemos dizer que isso se aproxima mais da linguagem do documentário. Não há nada de espantoso nisso, já que Em busca da vida nasceu do documentário Dong. Trata-se, então, de um híbrido entre a ficção e o documentário. Agora, iremos questionar de onde vem essa particularidade.
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Quando contemplamos essa pintura, perguntamo-nos: como os chineses veem o mundo? E, para respondê-la, teremos que abordar a noção de “olhar-passeio” (regard-promenade) e de “perspectiva dispersa”. Pois é graças a essas duas noções que podemos compreender a visão de mundo que deu início à forma da pintura em rolo. E, para terminar, veremos como essa visão se prolonga no plano-sequência de Em busca da vida. Como os chineses veem o mundo? O olhar é uma noção bastante estudada sob a perspectiva psicanalítica2: uma maneira de ver que é ligada ao acúmulo de experiências humanas. Aumont define: “O olhar é o que define a intencionalidade e a finalidade da visão”. Ou seja, nós olhamos com consciência e intenção. Nosso olhar tem um objetivo. Então, “se olhamos com nossos olhos, é com o espírito que nós vemos. Ver é saber”3. Essa definição nos permite supor que existem diversas formas de olhar próprias diferentes coletividades humanas. Assim como temos culturas variadas, cada civilização tem a sua própria visão de mundo. Portanto, nosso olhar muda de acordo com o ponto de vista, com a ideologia, com a cultura e com o estado de espírito. O olhar se abre um campo de visão: o espaço visual. Na parte seguinte, abordaremos a maneira como os chineses veem o mundo. A partir daí, poderemos nos questionar como é construído o espaço plástico na arte pictórica chinesa tradicional e por que foram pintadas paisagens com perspectivas múltiplas. Com efeito, é uma perspectiva particular que cria um espaço pictórico em imagem contínua, sem moldura. Para terminar, explicaremos como esse olhar se forma no dispositivo do desenrolar da pintura.
A parte central do rolo de Ao longo do rio durante a festa de Qingming
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O sentido de leitura do rolo de pintura horizontal Para contemplar o rolo horizontal de pintura, o espectador deve posicionar suas mãos em cada uma das extremidades. Hu-Sterk explica como apreciar esse tipo de arte: “O uso da pintura em rolo, especificamente chinesa, permite que a obra adquira uma dimensão temporal. A contemplação obra se dá num espaço de tempo, e o espectador vê apenas uma parte de cada vez. À medida que a pintura é desenrolada, o olhar do espectador é levado a seguir os detalhes da paisagem em todas as suas minúcias. Diferentemente do quadro ocidental, bem emoldurado e estático, o rolo chinês exige uma atenção contínua do espectador, porque seu olhar deve seguir as variações de uma paisagem dinâmica e em constante transformação. Essa forma de pintura assume, portanto, um aspecto narrativo. “A rolo chinês, quando desenrolado completamente, não pode ser visto integralmente; ele deve ser contemplado por seções de cerca de 60 cm cada, com a mão esquerda desenrolando-o, enquanto a mão direita enrola”4.
A obra é lida da direita para a esquerda. Essa é a direção do sentido da leitura principal. A cada vez que a pintura é enrolada, aparecem cenas diferentes no ritmo desse movimento. 2 3
p.40, “L’image” (“A imagem”), A psicologia da percepção visual consagra capítulos importantes ao estudo da psicologia do olhar.
p.12 LARNAC Gérard, « Le Regard échangé: Une histoire culturelle du visible » (Troca de olhares: uma história cultural do visível), Paris, Editions Mare et Martin, 2008.
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4
p.172 A beleza de outra forma.
Esse tipo de olhar se torna uma progressão temporal cujo ritmo é ditado pelas composições simultâneas. Esses dois elementos constroem a experiência de panorama para o espectador. O espectador ocidental que descobre esse tipo de pintura fica surpreso. Ele não está acostumado a essa forma de olhar que inverte o sentido habitual de leitura. E quem já se acostumou a ler nessa direção, com os mangás, por exemplo, não necessariamente frequenta museus de arte asiática. Além disso, nos museus, para facilitar a apresentação e evitar a manipulação, os rolos são expostos abertos, o que distorce a sua proposta. A perspectiva dispersa da pintura em rolo Assim como para o poeta chinês, a posição do pintor e a direção de seu olhar têm um papel determinante na contemplação de uma cena. O olhar imaginário que contempla o mundo de uma forma panorâmica tem uma longa história. Voltemos a Ao longo do rio durante a festa de Qingming para explicar.
O movimento do olhar tem uma função que pode ser comparada àquela da câmera em movimento. O espectador tem a liberdade para fazer a sua própria edição. No entanto, é antes de tudo o olhar do pintor que guia o espectador. Também podemos nos perguntar de onde vem esse olhar específico. Dito de outra maneira: o que é que impõe que nosso olhar se desloque pelo rolo de pintura? A resposta está na noção de “perspectiva dispersa”. Podemos chamá-la também de perspectiva múltipla (sandian toushi 散點透視 e pinyin 平遠). “Dispersar” (san散) é também o caractere usado na expressão moderna “perspectiva dispersa” (散點透視), usada hoje em dia. Essa maneira de ver permite ao pintor se situar em diferentes lugares ao mesmo tempo. É o oposto da perspectiva linear que cria uma imagem que deve obedecer à regra do ponto de fuga. O pintor chinês compõe suas/sua paisagem seguindo essa técnica, que permite que o olhar se desloque no espaço da pintura. É também por conta dessa noção que o rolo horizontal de pintura se torna uma imagem contínua. A imagem é composta não em torno de um único ponto de fuga, mas de uma perspectiva dispersa. A mobilização do olhar encarnada no plano-sequência de Em busca da vida Iremos agora analisar a particularidade do movimento no plano-sequência à luz do que foi dito acima. Vamos comparar a pintura chinesa clássica, que usa a técnica da “perspectiva dispersa”, aos movimentos de câmera para tentar encontrar o elo entre eles e identificar o que o rolo de pintura e o filme têm em comum, além de tentar compreender por que experimentamos uma sensação semelhante quando vemos os dois. Depois, voltaremos a abordar a noção de migração de Jacques Aumont, para compreender melhor essa particularidade no plano-sequência de Em Busca da Vida. Construímos essa análise sob três aspectos principais: Uma viagem do olhar Já evocamos a noção de “olhar-passeio”, que está associada à ideia de perspectiva dis5
p.105 Capítulo A dinastia Cing e a dinastia Song, A pintura chinesa.
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“(...) o rolo permanece uma imagem viva da vida cotidiana na China do século XI e um panorama através do qual o olho se desloca como uma câmera em movimento. Se pudéssemos ouvi-lo, ressoariam os sons dos vendedores ambulantes (...) é uma representação do comércio e um resumo virtual do realismo na pintura”5.
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persa. É por essa razão que a imagem da pintura em rolo (horizontal ou vertical) é apresentada em uma tira contínua. Porque o olhar dos chineses é duradouro, flutuante e sem fim. Quando um espectador desenrola e enrola uma pintura horizontal, a alternância de movimentos conduz o seu olhar: ele passeia pelo rolo de pintura. Essa experiência corresponde àquela do próprio pintor. O dispositivo do cinema clássico, em oposição ao da pintura em rolo, é formado por uma sala, uma tela e um espectador sentado, que não tem o direito de manipular a duração do filme. Daí, essa experiência de “passeio do olhar”, como diz Aumont: “Se o olhar está mobilizado, isso deveria se traduzir efetivamente no comportamento desse substituto dos olhos que a câmera sempre foi”6. Desde o início de Em busca da vida, um longo plano-sequência sobre homens comuns que são passageiros de um barco é apresentado. A câmera se desloca da esquerda para a direita, em um movimento suave, flutuante e longo, como se o espectador pudesse controlar a velocidade de seu desenrolar. Nosso olhar flutua nessa sequência e não se prende a nada em particular. Podemos fazer várias observações: esse plano-sequência se torna uma imagem contínua, independentemente das sobreposições de imagens produzidas pelo crossfade. Notamos que a imagem se desenrola da mesma maneira que na pintura em rolo. Um longo travelling panorâmico, filmado horizontalmente, corresponde à mobilização do olhar que acontece na pintura em rolo.
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O que nos faz lembrar o rolo de pintura? À ocasião de um colóquio “Bazin na Ásia”, diversos artigos evocaram a influência de Bazin sobre os cineastas asiáticos. Mas o que nos interessa não é a noção do realismo, mas um detalhe de do comentário. Para Cécile Lagesse, uma observação em sua descrição da abertura de Em busca da vida nos confirma que existe uma percepção de um olhar comum entre o rolo de pintura e o plano-sequência. Ela diz: “Essas lentes panorâmicas revelam progressivamente o espaço real da mesma maneira que fazem os rolos de pintura chinesa, incluindo novos elementos e informações no quadro na medida em que progridem.”7 Segundo Cécile Lagesse, o movimento lento de câmera faz com que experimentemos essa sensação. O panorama se desenrola suavemente, progressivamente, e a imagem fílmica se revela pouco a pouco, como se olhássemos lentamente para os elementos de uma paisagem. Lagesse não é a única a notar isso. Emmanuel Lincot faz a mesma observação em seu artigo Cinéma e peinture8. Ele fala da pintura de Liu Xiaodong9 e da maneira como esse pintor trabalha com Jia Zhangke na região da represa das Três Gargantas. Ele constata também que o movimento de câmera é tão singular que nos faz imediatamente pensar no desenrolar da pintura tradicional chinesa. Ele descreve: “Os elementos fundamentais da estética chinesa que o cineasta utiliza no espaço como se fossem um rolo de pintura (...). Em Jia Zhangke, as imagens panorâmicas seguem o movimento dos rolos de pintura clássica, como um grande desdobrar-se. Verdes e cinzas das ruínas industriais inundam o quadro.”10
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p.73 AUMONT Jacques: Matière d’images, redux, (Matéria de imagem, redux), Paris, Edition de la Différence, 2009. p.80 Cahier du cinéma/ Dezembro 2008. p.72 Cinema e pintura. O exemplo de Liu Xiaodong---- por Emmanuel Lincot. Um pintor contemporâneo chinês, com quem Jia Zhangke fez primeiro o documentário Dong, depois decidiu filmar Em busca da vida. p.72 Ibid.
Uma outra migração Podemos distinguir dois tipos de migração: 1 – A migração da experiência do olhar: do olho à câmera pelo gesto do autor; e do sentido de leitura ao movimento de câmera. 2 – A migração do agenciamento pictórico: a perspectiva dispersa e o crossfade do rolo de pintura são reproduzidos com o movimento de câmera para estarem no plano-sequência. A primeira migração é a experiência do olhar, que se desloca, primeiramente, do rolo de pintura aos olhos de Jia Zhangke. Em seguida, essa viagem toma forma pelo movimento de câmera no plano-sequência. O exemplo da sequência de abertura nos mostra que a imagem fílmica desfila incessantemente diante do espectador: é a mobilização do olhar da pintura em rolo sob a visão de mundo do diretor que migra para o plano-sequência. Enfim, o olhar toma forma: ele é o movimento registrado pela câmera. A segunda migração é o agenciamento pictórico. A perspectiva dispersa nos oferece uma imagem contínua com diferentes locais e tempos. Sabemos que o agenciamento do rolo de pintura é feito com auxílio da perspectiva dispersa. É interessante mencionar aqui o dispositivo do rolo de pintura horizontal. É uma longa série de visuais composta por três pedaços: o título no início, depois o centro da pintura e, enfim, uma apreciação final ou um poema (ver esquema abaixo). Mesmo que o sentido de leitura esteja completamente invertido em relação ao sentido do movimento de câmera, há uma lógica que se assemelha à composição das sequências de um plano. Imaginemos que essas diferentes imagens fílmicas se estendam em um longo suporte. Se encadearmos uma após a outra, encontraremos o plano longo, que é filmado graças ao movimento contínuo da câmera. Essa tira de visuais está baseada na direção da leitura e na composição da pintura em rolo. Jacques Aumont, em O que pensam os filmes? (A quoi pensent les films), afirma: a imagem pensa. “Nós somos direcionados a aceitar que os filmes contam histórias, mas analisar filmes só faz sentido se, em suas imagens visuais em movimento (e em suas imagens sonoras, necessariamente temporais), se diz alguma coisa a mais, ou alguma coisa além, de uma enredo.” Por fim, podemos obter uma imagem longa com múltiplos pontos de vista. Há uma migração da perspectiva dispersa no plano-sequência.
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Em resumo, o que provoca essa sensação é o movimento próprio da câmera, que evoca a pintura em rolos. Esses dois autores descreveram esse movimento, sem, no entanto, entrar na análise da relação entre o movimento de câmera e o rolo de pintura. Isso nos leva a continuar a nos interrogarmos sobre essa ideia: o movimento de câmera cria uma sensação similar ao olhar que segue o desenrolar de um rolo de pintura. Esse movimento está ligado à mobilização do olhar, que podemos chamar de “olhar desenrolado” – esse tipo particular de olhar sobre o mundo que tinham os chineses de outrora. Mas como essa experiência do “passeio do olhar” se transporta do rolo de pintura ao movimento do plano-sequência?
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O crossfade ou uma técnica de enunciação Na representação de um rolo de pintura horizontal, cada cena diferente é conectada por uma paisagem. Para efetuar essa conexão, motivos paisagísticos como árvores, caminhos ou nuvens podem ser utilizados, permitindo que cada cena seja encadeada. A migração do arranjo das imagens, aqui, explica a função das três “diluições” ou dos três fades como técnica de enunciação na sequência de abertura de Em busca da vida. As diluições em preto fazem a transição entre as duas sequências, assumindo, assim, a mesma função dos motivos paisagísticos na pintura em rolo. É raro ver fades em um único plano ou em um plano longo. Normalmente, são feitos cortes na edição, mas Jia utiliza três fades para relacionar as diferentes sequências. No quadro do plano-sequência, os créditos não são nem ao estilo de Bazin nem de Christian Metz, mas têm uma função dupla. Por um lado, servem para introduzir o filme, assim como o título faz no rolo de pintura. Por outro lado, fornecem também a direção da leitura para que o espectador entre no filme da mesma forma como vê um rolo de pintura. A diferença é que o movimento de câmera é realizado da esquerda para a direita, enquanto o olhar que contempla uma pintura em rolo se move da direita para a esquerda. Para esclarecer essas observações, a composição da pintura chinesa pode fornecer instrumentos para analisar o modo de fazer do cineasta.
As árvores na pintura têm a função de unir espaços diferentes.
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Quatro imagens capturadas da sequência de abertura: o crossfade é feito da esquerda para a direita, encadeando dois planos diferentes.
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Por meio da análise dessas duas migrações, podemos concluir que a primeira permite compreender o sentido do olhar e a segunda nos mostra os porquês do emprego desse dispositivo pictórico na estrutura do plano-sequência. Ambas as migrações devem coexistir no plano-sequência para que o espectador tenha a sensação de estar totalmente imerso no sentido de leitura de um rolo de pintura. O olhar “desenrolado” toma forma graças a essas duas migrações e reflete o pensamento e a percepção do diretor. Por que nos deparamos com essa migração do olhar? De onde ela vem? A maioria dos estudos sobre Jia aponta seu caráter realista e social e a tentativa de se tornar, ao mesmo tempo, a memória coletiva e individual de seus contemporâneos. O desenvolvimento industrial da China moderna é tão rápido e radical que a China tradicional desaparece. Em busca da vida é quase considerado um documentário. Mas nós acreditamos que o cineasta não está concentrado apenas no lado contemporâneo, ele leva consigo também a civilização antiga. Vimos a importância da migração no plano-sequência, mas por que há
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essa migração? Primeiramente, todos os protagonistas do filme são migrantes, voluntários ou não. Os habitantes da região inundável deixam suas casas e a mão de obra de outras províncias chega para construir a represa. Assistimos a um grande movimento migratório neste local, que é posto em cena. De onde vem essa migração? Jia realmente produz uma transmigração, não apenas no plano real, mas também estético. A migração do olhar “desenrolado” se funde à mobilidade da câmera. A estética da pintura chinesa nos ajuda a compreender a particularidade do plano-sequência e a migração nos permite ver como todo esse dispositivo gira em torno do rolo de pintura no cinema. O olhar “desenrolado” passa da memória do cineasta ao movimento da câmera para encontrar-se no plano-sequência. Essa migração reflete a sua nostalgia. Aquelas cidades vão desaparecer sob a água, então ele utiliza a técnica da pintura chinesa, um tipo de arte que também está morrendo. Ao utilizar a técnica artística do olhar “desenrolado”, Jia promove um retorno ao passado, com o silêncio pesado da nostalgia. Não há nada mais a ser dito, todo o sentimento transparece graças ao olhar: o olhar “desenrolado”. Hoje, esse local foi engolido pelas águas, deixando lembranças apenas através das imagens capturadas no filme. Todo esse local “migrou” para as sequências do filme.
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THE LEGACY OF THE VIEW The Chinese painting Along the River during the Qingming festival in the film In Still Life CHENG-YING WANG Introduction The idea of conducting a survey to prove that there is a relationship between cinema and painting came from a film in which the director used a sequence-shot and the traveling technique to build a scene. The camera movement was done horizontally, from the left to the right, at a slow pace. It immediately reminded me of a type of paintings from my country: those Chinese paintings that traditionally are made with rolls of rice paper pasted on thicker paper that can be performed top down - in fact, the most common form - or from the right to the left. My reflection has started at this point. Is there any relationship of viewpoint between cinema and painting art in rolls? In addition, an enormous digital version of the famous work roll Along the River during the Qingming festival was displayed in the Chinese Pavilion during World Expo 2012, in Shanghai. A long moving panorama valued the beauty of traditional Chinese painting in a new presentation technique. I had the intuition that this was a point that had not been studied in the Eastern world. In this context, my study will present a reflection on the meaning of the plan-sequence in Still Life (Sanxia Haoren, 2006), Jia Zhangke, using the aesthetics of the scroll paintings. The director creates a new cinematography linked to the view, which is undoubtedly a legacy of scroll painters. In a broader way, I would also ask myself a question about the part of the framework in the aesthetic of Jia Zhangke. Can film exceed painting and offer an additional possibility of interpretation - or even open other fields of knowledge, thanks to the way the director sees life? The special feature of the plan-sequence The description of the opening sequence At first, the entire screen is black. Multiple sounds of boats announce that the movie is about to start. Then we hear noises of conversations between passengers and the soundtrack comes adding some harmony. This is the first sequence-shot. The image is unclear while it moves. The camera seems to be floating slightly to the right, toward the faces of ordinary people, which progressively appear on the screen. It is a kind of portrait of the Chinese people. They are travelers going to the Three Gorges hydroelectric plant. They smoke, they play cards and they chat. We have the impression that we are watching a documentary - or rather, we have the impression that we are among them. Then there is an outlet that cuts the scene.
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Image captured from the opening sequence: a series of portraits of the travelers.
The camera movement follows a stable rhythm. The melodic sounds of a canto of the Sichuan opera incites a sense of nostalgia. The viewer watches all those workers on the boat. The camera shows men, women with children, elderly people. They all enter into an agreement to live together, for a moment on the boat, and as the background there is a landscape of water and mountains. You shan, you xue, such as traditional Chinese painting. But this place will be completely flooded by the waters of the great Three Gorges Dam. The picture is blurred. It’s a crossfade, a fusion of images. The movement continues. The middle plane shows people making calls from their cell phones. Alongside, other people ask a fortune teller in hope of getting to know what their future holds. New crossfade. We see a man and a woman fanning a fan because of the hot climate. The movement of the long sequence-shot stops in our hero, Saming, who is looking for his wife. He looks away. The first sequence-shot ends.
Image captured from the film: a panoramic traveling shoots horizontally, from the left to the right.
There is not necessarily a story or narrative scenes. Our gaze follows the movement of the panoramic camera traveling to the right with a greater speed than in the beginning, as a show of images on the viewer. This show of the sequence of pictures gives the sequence-shot a sense of gradual progress as the one of the Chinese scroll painting, which we discuss in the third part. It is a show of images before the viewer, a sequence of pictures on the screen. That leads to a feeling identical to that responsiveness which we have when we slowly unroll a piece of traditional painting.
A special plan-sequence The first observation we make is about the proper movement of the camera of Jia Zhangke. With a style opposite of Orson Welles, the camera wanders among several scenes. Sometimes next to the object, sometimes far from the object. So it makes the traveling. The movement is active and dynamic in the plane-sequence. Often, the drive of the camera is connected to the mise-en-scène to guarantee a continuous and connected narrative. The camera will occupy the space, approaching or departing in accordance with the rhythm of the narration of the sequence-shot. This is a characteristic of most directors who use flat-sequence in their movies. In the films of Laura d’Otto Preminger, for example, this movement has quite a narrative function. The active camera always sets the pace. However, the movement of the camera of Jia in both plan-sequences remains calm and serene. In the first case, it is true that the camera goes back and forth in real space. However, there is a kind of distance between the eye of the director and the people. We do not
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End of the opening sequence: Saming looks away from the boat.
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necessarily see the link between the camera movement and the narrative. There is only the traveling and the horizontal panoramic traveling, as if the camera is on an observer’s seat on the plane-sequence. Siety says “to do not be arbitrary, the choices of a camera movement, of a focal distance etc.. must participate in a conceived relationship between the filmmaker and the space or the characters he decided to confront1”. What makes the particular sequence-shot is its movement: panoramic traveling in the distance. The second observation concerns the recorded subjects. In the case of Touch of Evil (Orson Welles) it is clear that we are in a fiction. The actors lead us into a diegetic universe. We follow the camera motion and the dialogue of the protagonists. People are filmed in the center of the sequence-shot. They cast the action and push the advancement of the story. However, following the opening of Still Life, we can see people living their everyday lives. There is no central narrative, people do not move in front of the camera. It is a sequence of portraits. They are almost motionless in front of the camera. The figures in the sequence-shot make the difference. The horizontal motion and motionless figures are typical elements in the plan-sequence of this film. Certainly, we can say that it is closer to the language of a documentary. There is nothing surprising in that, since that Still Life is born from the documentary Dong. Then it is a hybrid between fiction and documentary. Now we wonder from where this feature comes.
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The movement of the look takes form in a pictorial space: the use of the scroll painting In order to seek what causes the particularity of this plan-sequence, we must go back to the traditional Chinese painting. Effectively, we assume that the camera movements are influenced by the scroll painting. In addition, the immobility of the filmed people is not just a coincidence. The film and the painting reflect a certain “artistic view” on people and on the landscapes, which is embodied both in the traditional way (painting) as in the contemporary form (film). We take the work Along the River during the Qingming festival as a prime example to compare and reveal this peculiarity of the sequence-shot. We begin by presenting this famous scroll painting. This is a long sequence of images arranged one after the other, forming a vast overlook. The day of Qing Ming in the river is a long narrow roll of painting. It measures 24.8 inches tall and unfolds over five feet long. It was painted in the eleventh century by Zhang Zeduan (1085-1145), during the Song Dynasty. The Qing Ming is a very ancient festival, which initially was linked to the agricultural calendar - and that today is devoted to the cleaning of family tombs. The festival is held in April and could be compared to the Feast of All Saints in France (Toussaint). This painting is extremely well known and its main feature is a meticulous realism. Zhang Zeduan painted hundreds of characters and dozens of animals that huddle, crowd together and scream. But he also painted buildings, bridges, boats, carts and shops. It is a true story about life in Kaifeng, in the eleventh century. We feel the weather and we almost can “see” the locations, as well as listen to the animals and to the people, scent the environment and feel part of this whole atmosphere. When we contemplate the painting, we ask ourselves: how do the Chinese see the world? And, in order to answer the question, we have to address the notions of “ride of the look” (regard-promenade) and of “dispersed perspective.” Because it is thanks to these two notions that we can understand the worldview started in the scroll painting form. Finally, we will see how this view extends to the plan-sequence of Still Life.
How do the Chinese see the world? The look is a broadly studied concept in the psychoanalytic perspective2: a way of seeing that is linked to the accumulation of human experiences. Aumont defines: “The look is what defines the intent and the purpose of the view.” What means that when we observe something we do this with consciousness and intentionality. Our view has a purpose. So, “if we look with our eyes, is the spirit that we see. To see is to know.3” This definition allows us to suppose that there are different ways of looking, inherent to each different group of people. Just as we have different cultures, each civilization has its own worldview. Our view changes according to the view point stated by ideology, culture or state of mind. The eye opens a field of view: the visual space. In the next part we will discuss the way that Chinese people see the world. From there we can ask ourselves how the plastic space is built in traditional Chinese pictorial art and, also, why the landscapes were painted with multiple perspectives. In fact, it is a particular perspective that creates a pictorial space in a continuous image, unframed. Finally, we explain how this look is formed in the scroll paint device.
The central part of the roll Along the river during the Qingming festival.
The sense of reading of the horizontal scroll painting To contemplate the horizontal scroll painting, the viewer must place hands on both extremities. Hu-Sterk explains how to appreciate this kind of art: “The use of scroll painting, specifically the Chinese, allows the work to acquire a temporal dimension. When contemplating the work, the viewer sees only one part at a time. As the paint is unrolled, the look of the viewer is taken by the details of the landscape in all its minutiae. Unlike the western context, well framed and static, the Chinese scroll painting requires greater attention, since the look of the viewer has to follow the changes in a dynamic and ever-changing landscape. Therefore, this form of painting assumes a narrative aspect. “The Chinese painting cannot be fully seen, it should be contemplated in sections
The book is read from the right to the left. This is the direction of the main reading. Each time the painting is rolled a different scene appears in the rhythm of the movement. This kind of look becomes a temporal progression whose pace is dictated by the simultaneous compositions. These two elements build the panorama experience for the viewer. The Western viewer who finds this type of painting is surprised. He is not used to the way of the look that reverses the usual reading order. And those who have become accustomed to reading in this direction, with the manga, for example, do not necessarily attend at museums of Asian art. Moreover, in museums, to facilitate the presentation and avoid manipulation, the rollers are exposed open, which distorts the intention.
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p.40, “L’image” (“The image”), The psychology of visual perception devotes important chapters to the study of the psychology of look.
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of about 60 cm each, the left hand rolling, while the right hand rolls.4”
p.12 LARNAC Gérard, « Le Regard échangé: Une histoire culturelle du visible » (Exchanged Look :, Paris, Editions Mare et Martin, 2008. p. 172 Another way of beauty.
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The dispersed perspective of scroll painting For the Chinese poet both the painter’s position and the direction of his look have a decisive role in the contemplation of a scene. The imaginary view that contemplates the world in a panoramic fashion has a long history. We go back to Along the River during the Qingming festival to explain. “(...) The roll remains a vivid picture of daily life in China from the eleventh century and a panorama through which the eye moves as a moving camera. If we could hear it, it would resound like the sound of the street vendors (...) it is a representation of the trade and a virtual abstract portrait of the painting5”.
The eye movement has a function that can be compared to that of the moving camera. The viewer has the freedom to a private editing. However, it is primarily the look of the painter that guides the viewer. We can also ask ourselves: where does this particular look come from? Or put in another way: what requires our attention to move crossway into the scroll painting? The answer lies in the notion of “dispersed perspective”. We can also call it multiple perspective (Sandian Toushi 散 点 透视 and Pinyin 平 远). “Disperse” (san 散) is also the character used in modern term “dispersed perspective” (散 点 透视) used nowadays. This view allows the painter to be located in different places at the same time. It is the opposite of linear perspective that creates an image that must obey the rule of the vanishing point. The Chinese painter composes his works following this technique, which allows the eye to move in the space of the painting. It is also because of this notion that the horizontal scroll painting turns into a continuous image. The image is not composed around a single vanishing point anymore, but from a dispersed perspective. The mobilization of the look in the plan-sequence of Still life. We will now analyze the characteristic of the motion in the sequence-shot based on what was said above. Let’s compare the classical Chinese painting, which uses the technique of “dispersed perspective” with the camera moves to try to find the link between them and identify what scroll painting and movies have in common. And also to try to understand why we experience a similar feeling when we see them. Then, we will address the notion of migration of Jacques Aumont to better understand this peculiarity in the sequence-shot of the movie.
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We build this analysis on three main aspects: A Voyage of the view We already evoked the notion of “ride of the look”, which is associated with the idea of dispersed perspective. It is for this reason that the image of the scroll painting (horizontal or vertical) is presented in a continuous strip. This happens because the view of the Chinese is durable, buoyant and endless. When a spectator unfolds and rolls a horizontal painting the alternative movements leads the look: he wanders around the scroll painting. This experience corresponds to that of the painter himself. The device of classic cinema, opposed to the device of the scroll painting, consists of a living room, a screen and a sitting viewer, who has not the right to manipulate the length of the movie. Hence, this experience of “ride of the look” as Aumont says: “If the look is mobilized, it should be reflected effectively in the behavior of what just happened to the eyes: the camera.6” 5
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6
p.105 The Cing Dynasty and the Song Dynasty Chapters, Chinese painting. p.73 AUMONT Jacques: Matière d’images, redux, (Matéria de imagem, redux), Paris, Edition de la Différence, 2009.
In the beginning of Still Life a long sequence-shot about common men who are the passengers of a ship is presented. The camera moves from the left to the right, in a soft movement, floating and longing as if the viewer could control the speed of the events. Our look floats in the sequence and it is not related to anything in particular. We can make several observations: the plan-sequence becomes a continuous image, regardless of overlapping images produced by crossfade. We note that the image takes place in the same manner as in the scroll painting. A long panoramic traveling, horizontally shot, corresponds to the mobilization of the look that happens in the scroll painting. What reminds us of a scroll painting? At the symposium dedicated to Bazin, in Asia, many articles discussed the influence of Bazin on Asian filmmakers. But what interests us is not the notion of realism, but a detail from a comment made by Cécile Lagesse. Her comment regarding the opening of Still Life confirms that there is a perception of a common look between the scroll painting and the sequence-shot. She says: “These panoramic lenses progressively reveal the actual space in the same way that the rolls of Chinese painting, including new elements and details in progress7.” According to Cécile Lagesse, the slow camera movement makes us experience that feeling. Gradually the panorama unfolds in a smooth way, and the filmic image is revealed slowly, as slowly as we look to the elements of a landscape. Lagesse is not the only one to notice this. Emmanuel Lincot makes the same observation in his article Cinema and Painting . He talks about the painting of Liu Xiaodong and about how this painter works with Jia Zhangke in the Three Gorges Dam region. He also notes that the camera movement is so unique that makes us think immediately of the conduct of traditional Chinese painting. He describes: “The basic elements of the Chinese aesthetics that the filmmaker uses in the space as if it was a scroll painting (...). The panoramic images of Jia Zhangke follow the movement of the classic scroll painting. Green and gray of the industrial ruins flood the picture10.”
Another migration We can distinguish two types of migration: 1 - The migration of the experience of he view: from the authorial eye to the camera; and from the meaning of reading to the camera movement. 2 – The migration of the pictorial device: the dispersed perspective and the scroll painting crossfade are reproduced with the câmera movement to be in sequence-shot. The first migration is the experience of the view, moving in the first place from the 7 8 9 10
p.80 Cahier du cinéma/ December 2008. p.72 Cinema and Painting. The example of Liu Xiaodong ---- Emmanuel Lincot.
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In short, what causes this feeling is the proper movement of the camera, evoking the scroll painting. These two authors have described this movement, without, however, entering the analysis of the relationship between the camera motion and the scroll roller. This leads us to the further question about this idea: the movement of the camera creates a sensation similar to the look witch follows the unroll movement of a scroll painter. This movement is linked to the mobilization of the view that we might call “unrolled view” - this particular kind of worldview that the Chinese had. But how can the experience of “ride of the look” be transported from the paint rolls to the sequence-plan?
A Chinese contemporary painter, with whom Jia Zhangke’s made the documentary Dong before decided to film Still Life. p.72 Ibid
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scroll painting to the eyes of Jia Zhangke. Then, this trip takes shape by the movement of the camera in the sequence-shot. The example of the opening sequence shows us that the film image incessantly shows itself before the spectator - the mobilization of the view of the scroll painting under the worldview of the director that migrates to the sequence-shot. The view takes shape and is reflected in the movement recorded by the camera. The second migration comes with the pictorial device. The dispersed perspective offers a continuous image with different places and times. We know that the device of the paint scroll painting is made with the aid of the dispersed perspective. It is interesting to mention here the device of horizontal scroll painting. It is a long strip of images composed of three pieces: the title at first, then the center of the painting and, finally, a final assessment or a poem (see diagram below). Although the direction of the reading is completely opposite to the direction of the movement of the camera there is a logic composition which resembles the sequences of a plane. Imagine that these different filmic images extend in a long holder. If we move one image after another, we find the long plane, which is filmed thanks to the continuous camera movement. This strip of images is based on the direction of the reading and on the composition of the paint roller. Jacques Aumont, in A quoi les films pensent says that the image thinks by itself. “We are driven to accept that movies tell stories, but analyzing movies only makes sense if, in their visual moving images (and its noise and temporal images), it says something else, or something beyond a story”. Finally, we can get a long image with multiple points of view. There is a migration of the dispersed perspective to the plan-sequence.
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Poem or final considerations | Subsequent separation | Paint Center | Previous separation | Title
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The crossfade or a technique of enunciation In a horizontal scroll painting each different scene is connected by a landscape. To make this connection different motifs - trees, paths, clouds, etc. - can be used, allowing each scene to be connected to the other. The migration of the arrangement of the pictures explains the function of the three “dilution” or of the three fades that work as a technique of annunciation in the opening sequence of Still Life. The dilutions in black make the transition between the two sequences, assuming the same function of landscapes in the paint roller. It is rare to see fades in a single or long plane. Typically, cuts in the editing are made, but Jia uses the three “dilutions” to relate the different sequences. Under the frame of the plan-sequence credits are neither in the style of Bazin nor in the Christian Metz style, but they have a dual function. On the one hand they serve to introduce the film, as the title does in the scroll painting. They also provide a reading direction to make the viewer enter the movie as it was a scroll painting. The difference is that the camera motion is performed from the left to the right while the view that is contemplating a scroll
painting moves from the right to the left. To clarify these observations the composition of the Chinese painting can provide tools to examine the art of the filmmaker.
The trees in the painting have the function of uniting different spaces.
Four images captured from the opening sequence: crossfade is done from the left to the right, connecting two different planes.
Why do we face this migration of the look? Where does it come from? Most studies about Jia point the realistic and social characteristic as an attempt to become, at the same time, the collective and individual memory of his contemporaries. The industrial development of modern China is so fast and radical that traditional China disappears. Still Life can practically be considered a documentary. But we believe that the filmmaker is not only concentrated in the contemporary side because he also brings with him the ancient civilization. We saw the importance of migration in the sequence-shot. But why is there such a migration? In the first place all the protagonists of the film are migrants, voluntary or not. The inhabitants of the flooded area leave their homes and the workforce from other provinces comes to build the dam. We are witnessing a great migratory movement at this location, which is put into play. Where does this migration come from? Jia actually produces a transmigration, not only in the real plane, but also in the aesthetic plane. The migration of the “unrolled” view merges with the mobility of the camera. The aesthetics of Chinese painting helps us to understand the particularity of the plan-sequence, and the migration allows us to see how all this device revolves around the scroll painting in cinema. The “unrolled” view moves from the filmmaker’s memory to the camera movement, and is reflected in the sequence-shot. This migration reflects nostalgia. Those cities will disappear under water, so he uses the technique of Chinese painting, an art form that is dying too. By using the art technique of the “unrolled” view Jia promotes a return to the past, with the heavy silence of nostalgia. There is nothing more to be said, all feeling emerges thanks to the look: the “unrolled” look. Today, this place is drowned by the waters, leaving only memories through the images captured on the film. This whole place “migrated” in the sequences of the movie shots.
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Both migrations must coexist in the plan-sequence so that the viewer has the feeling of being totally immersed in the reading mode of a scroll painting. The “unrolled” view takes shape thanks to these two migration reflecting the thinking and perception of the director.
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JIA ZHANGKE | FILME AQUILO EM QUE VOCÊ ACREDITA (Uma conversa com Hou Hsiau-hsien) Eslite Reader, novembro de 2006
Hou - Em Busca da Vida (Sanxia haoren) é diferente do documentário Dong?
Jia - Sim. Após uma dezena de dias de filmagem de Dong, eu tive vontade de fazer um filme de ficção.
Hou - Foi porque alguma coisa no processo te motivou?
Jia - Foi isso. Durante a filmagem do documentário, eu imaginava a cada dia toda uma série de enredos. Aquele lugar, aquele espaço, o charme das pessoas, era tudo diferente de nosso país, no Norte. Eles eram confrontados por outras dificuldades. Em Pequim ou no Shanxi, mesmo os menos favorecidos possuíam eletrodomésticos, baús, armários. Mas nas Três Gargantas, além de quatro paredes, as pessoas não têm praticamente nada. Hou - É como eu imaginava. A percepção vem primeiro; as ideias se formam em seguida. Eu vi em Um artista batedor de carteiras (Xiao Wu) que a sua intuição da disposição dos materiais e dos atores emanava da sua experiência. Depois do sucesso de Um artista batedor de carteiras, você quis mostrar tudo a respeito de que refletiu, e deixou de lado o indivíduo. Você se concentrou sobre o espaço, sobre a forma, mas o resultado demonstrou-se muito forçado, muito impaciente. Em Em Busca da Vida , encontramos pessoas muito vivas. O filme oferece uma representação direta da situação atual, que reflete a energia da filmagem de Um artista. Você mudou, você voltou atrás.
ESCRITOS | JIA ZHANGKE
Jia - Entre Um artista batedor de carteiras e Em Busca da Vida, eu dirigi três filmes que me fizeram sentir a pressão da criação. Em Um artista batedor de Carteiras, eu prestei uma grande atenção à emoção oriunda da natura psicológica do ser humano. Por conseguinte, refleti sobre o lugar do homem na história e em sua relação com seus semelhantes. Foi por isso que me interessei menos por indivíduos. Quando estávamos nas Três Gargantas, os raios de sol incidiam sobre nós, e a reação direta do meu corpo ao clima me permitiu reencontrar o que eu havia perdido, sobretudo quando me dirigir aos lugares de demolição. Vi que as pessoas haviam desmantelado a construção à mão, tijolo a tijolo, até que ela desaparecesse. Os homens que passavam diante de minha objetiva me tocaram. Esse encontro evocou minha natureza selvagem e meu senso de justiça. É como se minha criatividade fosse um corpo humano cujos pontos vitais agonizantes tivessem sido tonificados.
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Hou - É porque a criação não requer apenas imaginação. Ela também necessita do real. Meu caso é diferente. Depois de dirigir Flores de Xangai (Hai shang hua), esperei por propostas. Eu não sabia o que é que eu queria filmar, e isso pouco me importava. Eu possuía, no entanto, a técnica e conhecimentos. Alguém me oferece um assunto e eu dirijo. De um ponto de vista artístico, esse modo de trabalhar é igualmente interessante.
JIA ZHANGKE | FILM WHAT YOU BELIEVE IN (A conversation with Hou Hsiau-hsien) Eslite Reader, november 2006
Hou - Is Still Life (Sanxia Haoren) different from Dong?
Jia - Yes. After about ten days into shooting Dong, I felt like directing a fiction feature.
Hou - Was it because something in the process motivated you?
Jia - That was it. During the filming of the documentary, I imagined every day a number of plots. That place, that space, the charm of the people, everything was different from our country, in the North. They were confronted by other difficulties. In Beijing or Shanxi even the less fortunate had appliances, chests, cabinets. But in the Three Gorges, besides four walls, people had virtually nothing. Hou - That’s how I imagined it. The perception comes first; the ideas form later. I noticed in Pickpocket (Xiao Wu) that your intuition on disposing of the materials and actors emanated from your experience. After the success of Pickpocket, you wanted to show everything you have meditated on, and put the individual aside. You focused on the space, the form, but the result proved to be very forceful, very impatient. In Still Life, we find quite lively characters. The film offers a direct representation of the current situation, which reflects the energy of Pickpocket. You’ve changed, you backtracked.
Hou - It’s because creation requires not only imagination, but also a bit of reality. My case is different. After shooting Flowers of Shanghai (Hai shang hua), I waited for proposals. I did not know what I wanted to shoot, and it mattered very little to me. I had, however, the technique and knowledge. Someone offers me a subject and I’ll shoot. From an artistic point of view, this is also an interesting way of working. The imprint of life gets stronger when it is translated into words
Jia - During my film studies, I was very inspired by The Boys from Fengkuei (Feng gui
WRITINGS | JIA ZHANGKE
Jia - Between Pickpocket and Still Life, I directed three films that made me feel the pressure of creating. In Pickpocket, I paid great attention to the emotion that comes from the psychological nature of human beings. After that, I thought about the place of Man in history and in relation to his peers. That’s why I became less interested in individuals. When we were in the Three Gorges, the sun shone upon us, and the instant reaction of my body to the weather allowed me to regain what I had lost, especially when I drove to the demolition sites. I saw that people had dismantled the building by hand, brick by brick, until it disappeared. The men who passed before my lens touched me deeply. This meeting released my wild nature and my sense of justice. It’s as if my creativity was a human body whose agonizing vital points had been healed.
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A marca da vida ganha força quando é traduzida em palavras Jia - Durante meus estudos de cinema, fui muito inspirado por The Boys from Fengkuei (Feng gui lai de ren). Fiquei muito espantado quando o vi pela primeira vez em 1995, na faculdade de cinema. Esse filme me pareceu familiar. Tive a impressão de que me falava de meus amigos de minha cidade natal, mesmo se ele conta a história de jovens taiwaneses. Compreendi mais tarde que era graças à marca e às experiências da vida individual, que ganham força quando são traduzidas em palavras. A cultura do continente, da minha geração, sobretudo, nascida durante a Revolução Cultural, era apenas uma mistura de melodramas e lendas que compunham a base das obras revolucionárias. O melodrama permite contaminar o público, e mesmo o povo mais pobre. A lenda servia para suprimir a vida cotidiana e o indivíduo, para guardar apenas uma fábula. A Moça dos Cabelos Brancos conta, por exemplo, a história de uma mulher que passa trinta anos dentro de uma gruta, até que seus cabelos fiquem brancos. No fim, os comunistas salvam-na. O enredo não dá nenhum sinal de vida. O filme não exprime nenhuma experiência íntima da existência. Ao contrário, The Boys from Fengkuei era um filme muito familiar, muito acessível. Assisti em seguida A Cidade do Desencanto (Bei qing cheng shi). Mesmo sem conhecer bem o Massacre dos 228, eu mergulhei no filme, como quando observo uma obra de caligrafia. Também aprendi muito e herdei da forma com que você faz cinema, de seus procedimentos narrativos. Hou - A criação é muitas vezes ligada às nossas influências porque é assim que instalamos nossas raízes. A literatura exerceu grande influência sobre mim. Desde que me lembro, li obras de Chen Yingzhen (Une Race de Généraux, Le Platycodon, Le Chemin dans la montaigne), que descrevem as condições de vida sob a opressão do Kuomintang, durante o “terror branco”. Assim, me situei sob uma certa perspectiva. Adotei uma determinada atitude com relação à história. Esta fase está encerrada. Apesar de tudo, é o homem que desperta meu interesse. Após a filmagem de Flores de Xangai, quis retornar à época contemporânea, de Millenum Mambo e Café Lumière até A Viagem do Balão Vermelho, filmado recentemente na França.
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Conciliar a tradição do filme de gênero com a expressão do sentimento e do ideal
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Hou - Nos últimos tempos, comecei a entender até que ponto um filme está marcado pela realidade, quaisquer que sejam as inclinações do cineasta. Ora, o rumo que o cinema mundial segue atualmente, que consiste em colocar a teatralidade em primeiro plano, é também uma realidade. Os chineses não prestam atenção ao formato da história, mas à história que exprime aspirações nobres, que expõe um ideal, que traduz um estado de espírito. A estética que buscamos é bem diferente daquela que as pessoas aceitam de bom grado na realidade. Jia - É o mesmo no continente. De sua passagem para o teatro civilizado, os chineses mantiveram seus hábitos de espectadores. Para eles, cinema é teatro. As pessoas esperam muita teatralidade do cinema. Elas não se preocupam com a qualidade. Pouco importam os defeitos, contanto que haja teatralidade. Os filmes de estilo diferente têm dificuldade de ir contra essa tradição.
lai ren). I was very amazed when I first saw it in 1995 in film school. This movie seemed familiar to me. I had the impression that it spoke of my friends from my hometown, even if it tells the story of a Taiwanese youth. I realized later that it was thanks to the imprint and the experiences of individual life, which gain strength when they are translated into words. The culture of the continent, of my generation, which was born during the Cultural Revolution, was just a mixture of melodrama and legends that formed the basis of revolutionary works. The melodrama contaminates the public, even the poorest people. The legends served to suppress the everyday life and the individual, leaving only a fable. The White-Haired Girl, for example, tells the story of a woman who spends thirty years in a cave, until her hair turns white. In the end, the Communists rescue her... The plot shows no sign of life. The movie does not express any intimate experience of existence. On the other hand, The Boys from Fengkuei felt very accessible, very familiar. I then watched A City of Sadness (Bei qing cheng shi). Even without knowing much about The 228 Massacre, I immersed myself in the movie, as if I were observing a calligraphy work. I also learned and inherited a lot from the way you make movies, your narrative procedures. Hou - Our creations are often connected to our influences because that’s how we settle our roots. Literature exerted great influence on me. Since I can remember, I’ve read the works of Chen Yingzhen (Une Race Généraux, Platycodon, Le Chemin dans la Montaigne), describing the living conditions under the oppression of the Kuomintang, during the “White Terror”. It gave me a certain perspective. I adopted a certain attitude towards history. This phase is over. At the end, my main interest is Man. After filming Flowers of Shanghai, I wanted to return to the contemporary era of Millenium Mambo and Café Lumière, to Flight of the Red Balloon, which was recently filmed in France. Reconciling the genre movie tradition and the expression of feelings and ideals
Jia - It’s the same on the continent. From the transition to civilized theater, the Chinese kept their habits as spectators. For them, cinema is theater. The people expect a lot of theatricality from movies. They don’t care about the quality. They don’t worry about the faults, provided there is enough theatricality. Movies of a different style are struggling to swim against the current of this tradition. Hou - Cinema comes from the theater scene. This tradition is very strong. Storytelling with images used to be an extremely free form, but when the sound appeared, it approached cinema and theater. Playwrights were invited to write screenplays. The center of gravity of a film is its theatricality. In such circumstances, you can declare: I keep my way of exposing the facts, as it was in the ancient Book of Songs. It expresses my ideal, and is not guided by
WRITINGS | JIA ZHANGKE
Hou - Lately, I began to understand how filmmaking was marked by reality, whatever be the inclinations of the filmmaker. The direction of the world cinema today, which consists on putting theatricality in the foreground, is also a reality. The Chinese do not pay attention to the shape of the story; they look for expressions of noble aspirations, for histories that set an ideal, that translate a state of mind. The aesthetics we seek are very different from what people are willing to accept in reality.
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Hou - O cinema vem do teatro, da cena. Essa tradição é muito forte. A narração por imagens era uma forma extremamente livre, mas quando o som apareceu, o cinema se aproximou do teatro. Pede-se a dramaturgos que escrevam roteiros para o cinema. O centro de gravidade de um filme é sua teatralidade. Em tais circunstâncias, você pode declarar: eu mantenho minha forma de expor os fatos, apresentada já no antigo Livro dos Cânticos. Ela exprime meu ideal, e não é guiada pela história contada. É, contudo, difícil explicar a nossos contemporâneos, porque eles foram por demais influenciados pelo teatro ocidental. É a tendência do momento, impossível de modificar. Se entendemos dessa forma, podemos encontrar um acordo entre teatro tradicional e expressão de sentimentos e do ideal. Esse acordo é o da fusão entre Oriente e Ocidente. Livrar-se dos desacordos superfulos Jia - Creio que enquanto recurso, o cinema é constantemente influenciado por novas invenções tais como o DVD, o videogame ou a TV por satélite. Do mesmo modo, pude ver como os programas da televisão taiwanesa eram abundantes e variados: ensaios de todos os tipos, conflitos de homens políticos etc. Quando a sociedade inteira é teatralizada, como fazer filmes? Me parece que não há mais necessidade. Percebi, entretanto, que alguns diretores encontraram no filme de gênero um meio de integrar suas opiniões, de introduzir uma visão particular. No fim das contas, numerosos elementos apresentados nos filmes de gênero são bem recebidos.
Hou - Um bom filme de gênero deve abandonar o real para retornar a ele em seguida.
Jia - Na última vez em que nos encontramos em Pequim, você me deu um conselho que muito me marcou. Você disse: “Usando o processo mais simples, exprima o máximo de coisas”. A meu ver, o processo mais simples é desfazer-se dos desacordos supérfluos que nos separam das massas.
ESCRITOS | JIA ZHANGKE
Hou - Sim, é um confronto direto, capturar o ponto focal da história duma só vez, para dar origem a um ritmo que espelhe a observação e a reflexão do cineasta. Penso que é difícil alcançar um nível “simples porém profundo”: simples, para que todos compreendam, mas profundo, não é fácil.
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Jia - A simplicidade tende talvez a ser uma forma sem desvios, como nas obras do neorealismo italiano no fim dos anos quarenta. Eles mantinham uma relação muito íntima com o povo, que muito os apreciava. Vejamos Ladrões de Bicicletas: esse filme provou que não havia antinomia entre a profundidade da obra e a recepção do público. Em alguma medida, A Estrada da Vida, de Fellini, é igualmente acessível ao grande público. Tudo bem considerado, nossa reflexão sobre o tema e a forma do cinema é bem confusa. Nós devemos encontrar um processo simples e direto. Retornar ao espírito do começo
Jia - Qual é sua opinião acerca das obras dos novos diretores taiwaneses?
the story. It is, however, difficult to explain to our contemporaries because they were way too influenced by western theater. It is the trend of the moment, it’s impossible to modify it. If we understand this, we can find a compromise between traditional theater and expression of feelings and ideals. This agreement is the fusion between East and West. Getting rid of unnecessary distances Jia - I believe that as a resource, cinema is constantly influenced by new inventions such as the DVD, the videogames or satellite TV. Similarly, I could see how the Taiwanese television programs were plentiful and varied: experiments of all kinds, political conflicts, etc. When the entire society is dramatized, how to make movies? Seems to me they’re unnecessary. I realized, however, that some directors found in genre movies ways of integrating their opinions, of introducing a particular view. In the end, many elements presented in genre movies are well received.
Hou - A good genre film should quit reality, only to return to it later.
Jia - The last time we met in Beijing, you gave me some advice that really struck me. You said: “Using the simplest process, express a maximum of things.” In my view, the simplest process is to get rid of unnecessary distances that separate us from the masses. Hou - Yes, it is a direct confrontation, capturing the focal point of the story at once, to give birth to a pace that mirrors the observation and reflections of the filmmaker. I think it is difficult to achieve a “simple yet profound” level: simple enough for everyone to understand, yet profound. It ain’t easy. Jia - The simplicity tends to be a shape without meanderings, as in the works of Italian neo-realism directors in the late forties. They maintained a very close relationship with the masses, who really appreciated them. Consider The Bicycle Thief: this film proved that there was no contradiction between the depth of the work and a good reception by the general public. To some extent, The Road, by Fellini, is also accessible to the general public. All things considered, our meditations on the subject and the way of cinema are still quite confusing. We must find a simple and straightforward process.
Jia - What is your opinion on the works of the new Taiwanese directors?
Hou - They have seen many films since their childhood, so they tend to make “movies within movies.” They don’t have a great experience of life and feelings. They don’t recognize their own position. In fact, it is not solely a problem of position. Because they are not firm enough, the shape and purpose of his films are influenced by the tradition of the image. When you are determined, you need to shoot what you believe in.
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Return to the spirit of the beginnings
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Hou - Eles viram muitos filmes desde a infância, de modo que, quando dirigem, se perdem a fazer “filmes dentro de filmes”. Não têm uma grande experiência da vida, dos sentimentos. Ignoram a própria posição. Em verdade, não é unicamente um problema de posição. Como não são suficiente firmes, a forma e o propósito de seus filmes são influenciados pela tradição da imagem. Quando estamos obstinados, é preciso filmar aquilo em que acreditamos.
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Jia - É uma questão universal. Comecei a trabalhar quase no começo da reconversão dos diretores da “Quinta geração”. Ocorriam debates acalorados. À época, no continente, criticava-se muito o valor cultural do cinema. De forma geral, a economia do cinema foi posta em primeiro plano, os investimentos e as receitas, sobretudo. Eu achava isso triste, porque ao sair da sala, as pessoas não discutiam a respeito do que o filme queria transmitir, mas a respeito de questões econômicas. É por isso que penso que, enquanto diretor, é essencial agarrar-se ao “tema”. É preciso uma personalidade forte para não deixar-se determinar por outra coisa. Em sua origem, o cinema era uma atração. Para sê-lo, é preciso um senso do divertimento. Exercemos essa profissão para nos alegrarmos, não por tudo o que se esconde por detrás. Precisamos retornar ao espírito do começo. Como você já disse, é mais fácil dizer isto do que fazer. Eu não encontrei essa sensação até dirigir Em Busca da Vida.
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Jia – It’s a universal issue. I started working almost at the beginning of the reconversion of the directors of the fifth generation. There were heated debates. At the time, the cultural value of cinema was doubted a lot. Overall, the economy of cinema was put into the foreground, investments and revenues especially. I thought it was sad, because when you leave the screening, people aren’t arguing about what the movie wanted to convey, but about economic issues. That’s why I think that, as a director, it is essential to hold on to the “subject”. It takes a strong personality not to let oneself be determined by something else. In its origin, cinema was an attraction. To be so, it takes a sense of fun. We exercise this profession in order to rejoice, not because of everything that is hidden behind. We need to return to the spirit of the beginnings. As you have already said, this is easier said than done. I never felt this feeling until I directed Still Life.
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2006 / 70 min / HDCM
DONG direção e roteiro Jia Zhangke elenco Liu Xiaodong, Han Sanming direção de fotografia Chow Chi-sang, Jia Zhangke, Li Tian, Yu Likwai música Lim Giong produção Chow Keung co-produção Bo Dan
O pintor Liu Xiaodong vai até Fengjie para recriar a paisagem dessas cidades históricas que estão desaparecendo em baixo da água. Depois disso, Xiaodong parte em uma viagem pelo rio Mekong. As pinturas do artista e a tela de Jia Zhang Ke recriam o universo pictórico chinês. The painter Liu Xiaodong goes to Fengjie to recreate the landscape of these historical cities that are disappearing under water. After that, Xiaodong goes in a trip down the Mekong River. The paintings of the artist and Zhang Ke Jia canvas recreate the Chinese pictorial universe.
Um plano médio, pouco contraste. Um homem de costas para a câmera observa a paisagem à nossa frente. Um desfiladeiro cinzento, exuberante, aparentemente desabitado. O homem segue para a nossa direção e olha para o canto direito do quadro. Uma melodia imprime certa docilidade à imagem, enquanto a câmera sobe aos céus, às nuvens. Título do filme. Dong (2006). Fade. Um barco, ao longe, se aproxima. O barulho estridente do motor toma o lugar da música. Corte. Estamos dentro da embarcação. Sucessão de planos de homens lendo ou dormindo. Um deles ouve a popstar inglesa Kylie Minogue no celular. Um breve curto-circuito espaço-cultural se instala. As janelas explodem um branco estourado e alertam para o mundo lá fora. A voz da comissária avisa sobre os serviços do barco. Corte. Liu Xiaodong, o homem do plano anterior, fala ao telefone no deck da embarcação. Ele explica que não está em Pequim, mas na Usina das Três Gargantas. Corte. Plano geral. Escombros à frente, desfiladeiro ao fundo. O som recheia a imagem de humanidade: obras, cachorros, vozes etc. Dong cruza o quadro. A câmera o acompanha em um travelling lateral. Por vezes, o ultrapassa redesenhando constantemente a imagem e seu sentido. Cálculo e arejamento. Vemos prédios e ruínas. Elas exalam um passado e nos faz especular sobre ele. Um certo ritmo, uma espécie de atmosfera a ser habitada, se faz sentir, tátil, movediça, onde todas as coisas se identificam entre si. Talvez o plano geral seja, por si mesmo, um detalhe intimista. Aos poucos, outros sons são adicionados à faixa sonora que, nesse momento, se transforma em uma massa indiferenciada. Dong se detém, espreguiça, olha ao redor e volta a caminhar. Ao fim, ele está à nossa frente, cercado por ruínas, agachado, brincando com um tijolo, em primeiro plano. Documentário? Ficção? Representação? Acontecimento? Tudo está em questão e fora de questão. Jia Zhangke é um cronista e historiador do presente. Ele elege um grupo de pessoas totalmente abandonado à sua própria sorte como efeito colateral inevitável de um processo de modernização feito a toque de caixa. Assim, constrói laços afetivos inesperados e maneiras de continuar vivendo mesmo em condições inóspitas. A Usina de Três Gargantas é o mais grandioso projeto da China desde a construção da Grande Muralha. Uma bomba relógio socioambiental responsável por elevar em até 180 metros o nível da água em uma área de mais de 600 quilômetros quadrados, atingindo inúmeras cidades, vilarejos e cerca de 1,3 milhão de pessoas. Dong recusa o recorte meramente sociológico e se mantém distante do tom de denúncia ou crítica social. Não é que essas perspectivas não façam sentido mas, definitivamente, não dão conta desse filme. O mais importante ou proveitoso, talvez, seja pensar a tonalidade que as sequências de abertura descritas acima imprimem ao filme. Ali, somos submetidos ou levados a submetermos a uma experiência cujas coordenadas nos escapam. O que vemos é uma proposta de sobrevoo e imersão espaço-temporal; planos longos que não se afirmam somente a partir de suas qualidades referenciais; espaços amplos e prenhes de vida passada e presente; personagens evasivos que sentem, lentamente, a passagem do tempo; um olhar sensível à menor variação, mas pouco inclinado a hierarquizar as impressões; uma imagem conflituo-
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sa, terreno de passagens, entre corpos humanos e ambiente, entre a vontade dos primeiros e a necessidade de se adequar aos segundos, entre o destino coletivo e a história individual, entre o registro e a expressão, entre a reflexão e o envolvimento emocional. Dong1 é, curiosamente, uma espécie de depuração do estilo de Jia Zhangke. Nele, o cineasta acompanha o amigo Liu Xiaodong enquanto ele pinta duas séries de quadros, uma com operários da Usina e a outra com jovens mulheres em Bangkok, na Tailândia. Dong, em um primeiro olhar, é o retrato desse artista no processo de sua obra, entre a figuração de seus modelos e a representação dos sujeitos em cena. Viajamos com ele, o vemos pintando, interagindo com outras pessoas. Ouvimos falar do mundo, da China, da arte. Em um segundo olhar, Dong seria uma espécie de filme manifesto. O pintor é o alter ego do cineasta. Há uma evidente afinidade entre Dong e Zhangke. Essa é a condição de possibilidade do filme, uma espécie de energia que espalha Dong por todos os lados. Em determinada cena, Dong fala sobre um método para alcançar a realidade: ater-se ao momento, à fruição de um momento, e manter um certo controle; uma certa distância. Para tanto, ele se arma de curiosidade, procedimentos e estratégias. No contato, no flagrante de uma suposta realidade, se deixa levar por um acúmulo de impressões e sensações. Não é muito diferente do que acontece no cinema de Zhangke. A imagem é resultado direto de uma certa sensibilidade pessoal em um processo absolutamente marcado pelas locações, pela experiências da equipe, dos personagens, pela bagagem emocional e intelectual que eles trazem consigo. Se a arte, seja um quadro ou Dong, se faz em um mergulho na realidade, é preciso fazê -lo de maneira que o espectador possa senti-la. E assim, cada rua, cada corpo, cada ruína ou terreno baldio, cada diálogo, choro ou sorriso, deve ser registrado e construído como uma experiência que o artista compartilha com seus personagens e conosco. Não é isso que fica quando Dong visita a família de um dos trabalhadores de Três Gargantas? O homem, que havia sido um dos modelos do pintor, morre em um acidente. É mais uma vítima do silencioso e brutal processo histórico e civilizatório chinês. O que vemos, contudo, são rostos, o tempo de um cigarro, a troca de presentes, algumas risadas, o choro de Dong. O registro não apreende nada além disso, uma forma de ser, um ritmo, uma atmosfera. Realismo? Sim, em certo sentido. Zhangke compartilha com o amigo o desejo por um “sentimento da realidade”, que não se referencia simplesmente a algo anterior à obra, mas delineia e anima, representa e narra, figura e põe em movimento, ao mesmo tempo, em um ir e vir constitutivo de nossa imaginação. Para ambos, a realidade não se encontra como algo dado. Ela é sempre um ato de imaginação. Ou seja, para atingir um sentimento de realidade, é preciso fazê-lo através de um olhar, personagens, dramas, efeitos visuais e sonoros. A arte não é uma apreciação ou um julgamento do mundo, mas um processo dinâmico e perpétuo de criação, recriação e experimentação de um mundo. Processo que implica uma simultaneidade de presença e ausência, visibilidade e invisibilidade, perfeição e inacabamento, totalidade e abertura. O vídeo tem, certamente, a sua parcela de responsabilidade, bem como Yu Lik-wai, fotógrafo de todos os filmes de Zhangke. Não seria também o digital uma tecnologia que possibilita a imersão na cena e ao mesmo tempo a preservação de uma certa distância em relação a ela? Permitindo a captação de um ritmo, de uma pulsação, de um movimento e de 1
O filme está intimamente associado à Em Busca da Vida (2006). Zhangke foi para Três Gargantas pela primeira vez a convite do amigo pintor. Uma semana depois, o cineasta já havia decidido rodar Em busca da vida e as filmagens de ambos aconteceram simultaneamente. Além de partilharem a mesma equipe técnica, os filmes contam com a reincidência de personagens, planos e sequências, incluindo a presença do ator não professional Han Sanming, primo de Zhangke que já havia aparecido discretamente em alguns de seus longas anteriores.
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seu acompanhamento? Com ele, o que se sobressai não é justamente a natureza maleável dos elementos e procedimentos imagéticos, onde corpos, personagens, objetos, paisagem, emoções e dramas estão sempre em formação, em um nascimento continuado da matéria, da forma, do sentido? O vídeo, muito mais do que um suporte ou uma mídia, seria algo como um espaço a ser descoberto, explorado, vivido. Uma ambiência digital, portanto. Talvez, seja mesmo por aí. Dong, em sua segunda metade, transforma-se. Em uma quebra de eixo, saímos da paisagem cinzenta e chuvosa das Três Gargantas e adentramos em cenários urbanos mais ensolarados. Dong, em trajes floridos, como um turista, passeia por uma feira local. A legenda nos localiza: Bangkok, Tailândia. Logo em seguida, o pintor está em um estúdio, rodeado por jovens da região, compondo novos painéis. A câmera ora se aproxima, ora recua quando não permanece estática. Ora parece como acessório daquele espaço, como se desejasse passar desapercebida, ora parece querer ser aceita como testemunha. As modelos cantam algo típico da região. Não sabemos do que se trata. Tampouco Dong. Não importa. Resta o presente como ruptura, como impasse, rompendo mais uma vez a serialidade linear e tragando tudo pela urgência de viver e documentar um momento após o outro. Como nós, Dong não passa de um espectador. O filme se descentraliza, navega de uma imagem a outra, de um personagem a outro, em uma mobilidade e reflexividade deliberadas, porém aparentemente aleatórias. Uma conjugação nada fácil de ser alcançada. Uma das modelos de Dong é adotada. Acompanhamos parte de seu dia a dia. Com ela, percorremos algumas avenidas, ouvimos a cidade, testemunhamos os efeitos do processo de homogeneização mundial, que acomete a todos. Um sentimento de insegurança cultural, de perda de referências, se faz sentir. Talvez, a China esteja caminhando a passos largos nesta direção, em uma cópia mal feita e acelerada do desenvolvimentismo que assolou o mundo em que vivemos. Pode ser. Dong, no início do filme, alerta para a vitalidade que emana dos espaços e das pessoas. “Você não percebe”, diz ele, “mas as pessoas explodem em energia”. Ou seja, mesmo no ambiente mais profundamente trágico e desolador, é possível descobrir vida, sempre em movimento. Zhangke nos alerta para as possibilidades de troca e comunicação, chama atenção para o fato de que a vida continua. Seus personagens, ainda que desgarrados, perdidos, atravessados por agressivos processos históricos, vivem, insistem. O cinema do chinês é feito sempre, apesar de tudo, como uma espécie de convite ao enfrentamento da tirania do mundo. E é na existência cotidiana, física, repetitiva e banal que a vida se mostra como a maior de todas as certezas de um mundo em contínuo renascimento. Dong talvez seja mesmo um filme menor diante de Plataforma ((Zhantai , 2000), O mundo (Shijie, 2004), Em busca da vida (Sanxia haoren, 2006). Um filme ambicioso, descentrado, disperso, mas cuja ressonância - seja no que diz respeito a sensação renovada de verdade e tempo cinematográfico, seja no que concerne a crônica histórica de um mundo físico em seu movimento microscópico e permanente ou a busca por reencontro com a realidade - tem o tamanho do cinema de Zhangke.
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A medium shot, low contrast image. A man standing with his back to the camera observes the landscape ahead. A gray canyon, exuberant, seemingly uninhabited. The man turns to our direction and looks to the right corner of the frame. A melody starts to be announced and prints certain docility to the image, while the camera goes up to heaven, to the clouds. Title of the film. Dong (2006). Fade. A boat in the distance approaches. The shrill engine noise replaces the music sound. Cut. We’re inside the boat. A sequence of takes goes on showing several men reading or sleeping. One of them is listening to the English pop star Kylie Minogue on his cell phone. A brief cultural and space short-circuit takes place. The windows explode in a white burst so we are aware of the outside world. The voice of the cabin steward warns about the boat services. Cut. Liu Xiaodong, the man showed in a previous shot, talks on the phone on the vessel deck. He says not to be in Beijing, but in the Three Gorges Power Plant. Cut. Wide shot. We see the rubble in front of us, and the deep canyon in the background. The sound fills the image with humanity: construction works, dogs, human voices etc. Dong crosses the shot. The camera accompanies him in a sidelong travelling. The camera movement continues as if it overtakes him in certain moments, as if it is constantly redrawing the image and its meaning. Calculation and aeration. We see buildings and ruins. Those surroundings exhale to a past and lead us to speculate about it. We are able to anticipate a certain rhythm, a kind of atmosphere to be inhabited, as a tactile, quicksand kind of feeling, where all things identify themselves to each other. The wide shot seems to be itself an intimate detail. Gradually, other sounds and noises are added to the soundtrack which at a certain point, turns into an undifferentiated mass of sounds. Dong stops, sprawls, look around, starts walking again. At the end, he is in front of us, surrounded by ruins, crouched, playing with a brick in the foreground. A documentary? Fiction ? Representation ? An event telling ? All this is in question and out of the question. Jia Zhangke is a chronicler and a historian of the present. He chooses a group of completely abandoned people to their own fate as an inevitable side effect of a modernization process, carried out in a hurried and full speed disoriented manner. These people build unexpected affectionate bonds trying to endure and go on living even in inhospitable conditions. The Three Gorges power plant is the greatest Chinese project since the construction of the Great Wall. It is a social-environmental ticking time bomb responsible for raising up to 180 meters the water level in an area of more than 600 square kilometers, reaching countless cities, villages and about 1.3 million people. Dong, however, refuses the purely sociological clipping, and it also keeps a distance from a pure tone of complaint or social criticism. It does not precisely means that those prospects don’t make sense anymore; But those definitely do not reflect the film and hit the issues. Maybe more important or useful should be thinking about the tone imposed to the film by the opening scenes described above. With those scenes, we are subjected or submitted to such an experience which coordinates we´re not able to reach. What we see is a proposal for an overflight and some space-temporal immersion; long shots that do not affirm themselves only by their reference qualities; wide spaces and pregnant of a past and a present life; evasive characters who feel, slowly, the time passing; a sensitive view to the slightest
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The film is closely associated with Still Life (Sanxia Haoren, 2006). Zhangke went to Three Gorges for the first time invited by his friend, the painter. A week later, the filmmaker had already decided to film Still Life and both were filmed simultaneously. Besides the fact that both films share the same technical team, the films also rely on the recurrence of some characters, plans and sequences - including the presence of the non-professional actor Han Sanming, cousin of Zhangke, who had appeared discreetly in some of his previous films.
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variation, but not much inclined in prioritizing its impressions; a contentious image, a transition terrain between human bodies and environment, between the will of the first ones and the need to adjust themselves to the seconds, between the collective destiny and the individual history, between the record and the expression, between the thoughtfulness and the emotional involvement. Dong¹ is curiously a kind of a purged style of Jia Zhangke himself. In the film we see the filmmaker following his friend Liu Xiaodong, as he is working in two series of paintings, one of them with the power plant workers and the other with young women in Bangkok, Thailand. At a first glance Dong is a portrait of the artist in the process of his work, between the models portrait and the individual representation in the scene. We travel with him, we see his working in the paintings, interacting with other people, we hear his talking about the world, China, art. On a second glance, Dong would be a kind of a manifesto film. The painter is the filmmaker alter ego. There is a clear affinity between Dong and Zhangke. And such affinity is the condition which makes the film possible, a kind of an energy that spreads Dong all over the place. In a particular scene, Dong talks about a method to achieve the reality: stick to the moment, to the enjoyment of a moment, and maintain a certain control, a certain distance. In order to do so, he is filled with curiosity and arms himself with a series of procedures and strategies, and by the time he contacts a certain reality, in the flagrant of such given reality, he lets himself be driven by some accumulated impressions and sensations. It is not very different from what happens in Zhangke films. The image is a direct result of a certain personal sensitivity in a process absolutely settled by the chosen locations, by the experiences of the team, of the characters, the emotional and intellectual load that they bring with them. If the art, shall it be a painting or Dong, is done through a dive in the reality, we must do it in such a way as to allow that the viewer can feel it. And in such a way, every street, every body, each ruin or waste land, each dialogue, cry or smile, should be registered and built as an experience that the artist shares with his characters and with us. Isn’t that what remains by the time Dong visits the family of a worker from the Three Gorges? The man, who had been one of the models for the painter, dies in an accident: another victim of the silent and brutal historical civilizing Chinese process. What we see, however, are these faces, the time passing by smoking a cigarette, the exchange of gifts, some laughter, Dong´s crying. The registry does not seize anything beyond this, a way of being, a rhythm, an atmosphere. Realism? Yes, in a sense. Zhangke shares with his friend a desire for a “sense of reality”, which is not simply referenced to something prior to the art work itself, but outlines and invigorates it, represents and narrates it, portrays and sets it in motion, it all at the same time, in a back and forth process that composes our imagination. For both of them, the reality is not something cleared showed by itself. Rather, it is always an act of imagination. Which means: in order to achieve a feeling of reality you need to do it through a certain look, characters, drama, visual and audio effects, and the art is not an appreciation or a judgment of the world, but a dynamic and perpetual process of creation, rebuilding and experiencing the world. A process that implies a simultaneity of presence and absence, visibility and invisibility, perfection and incompleteness, wholeness and openness. The video has for sure its share of responsibility – as well as Yu Lik-wai, photographer of all Zhangke films. Which means: wouldn’t the digital process be a technology that ena-
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bles the immersion in the scene, and at the same time the preservation of a certain distance from it, allowing the capture of a rhythm, a pulse, a movement, and its follow-up ? Using such a process, isn´t it precisely the malleable nature of the elements and the imaging procedures that comes to evidence, where bodies, characters, objects, landscape, thrills and dramas are always being developed in a continuous birth of the matter itself, the shape, the sense? The video, much more than a support resource or media, would be something like a space to be discovered, explored, lived. Therefore, a digital ambience it is. Perhaps that should really be the case. Because Dong, in its second half, transforms itself. As a shaft rupture, we leave the gray and rainy landscape of the Three Gorges and enter in some sunnier urban settings. Dong, in floral costumes, as a tourist, strolling through a local market. The subtitles bring us to the right location: Bangkok, Thailand. Shortly thereafter, the painter finds himself in a studio, surrounded by local youths, composing new painting panels. The camera now gets closer, sometimes retreats, when it does not remain static; sometimes it seems merely an accessory of that space, as if it wants to be passed unnoticed, but sometimes it seems like wanting to be accepted as a witness. The models sing something typical of the region. We don’t know what it is. Neither does Dong. It does not matter. The present remains, as a rupture, as a break-even point, breaking once more the linear motion system, swallowing it all by the urgency of living and documenting one moment after another. Now Dong, like us, is nothing more than a spectator. The film decentralizes, navigates from one image to another, from one character to another, in a deliberate reflexivity and mobility in an apparently random manner. Such combination is something not easy at all to be reached. One of Dong’s models is adopted. We are following up part of their daily lives. With her, we travel through some avenues, we hear the city, witness the effects of a world homogenization process that affects us all. We can feel a sense of cultural insecurity, loss of references. Perhaps China is moving fast in such direction, as a bad quality copy of the hurried developmental process that devastated the world in which we live. It could be. Dong, however, right in the beginning of the film, warns us about the vitality that emanates from the spaces and the people. “You don’t realize,” he says, “but people explode as energy”. In other words, even in the most deeply tragic and bleak environment, it’s possible to discover life, always on the move. Zhangke stresses the possibilities of exchanges and communication, he calls our attention to the fact that life still goes on. Even though his characters are misplaced, astray, lost, traversed by aggressive historical processes, they live, they insist. The Chinese cinema places itself always, after all, as a kind of invitation to confront tyranny in the world. And it is in everyday physical existence, repetitive and commonplace that life shows itself as the largest of all the certainties of a world in continual rebirth. Maybe Dong is really a minor, a lower film compared to Platform (Zhantai, 2000), The World (Shijie, 2004), and Still Life. An ambitious film, decentered, dispersed, but whose resonance has the size of ZhangKe filmography. Whether if it is because of some renewing feeling of truthfulness and timing in the film production, whether if it is concerning to a historical chronicle of a physical world in its microscopic and permanent movement, or finally, a search for reunion or recovering the reality.
2007 / 80 min / HDCM
INÚTIL
WUYONG / USELESS direção Jia Zhangke elenco Ma Ke direção de fotografia Jia Zhangke, Yu Likwai música Lim Giong produção executiva Chow Keung, Kang Jianmin, Mao Jihong produção Youyishanren, Yu Likwai, Zhao Tao
O filme retrata e reflete sobre os aspectos do mundo da confecção de roupas e da moda, mostrando o trabalho de grandes indústrias, de uma estilista consagrada internacionalmente e de pequenos alfaiates e costureiras rurais – ofício quase em extinção. The film portrays and reflects the Textile and Fashion industry aspects, showing the work in major industries, and also a famous international fashion stylist, besides the works of small tailors and rural seamstresses – an almost extinct handcraft as a way of living.
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RESISTÊNCIA: MODOS DE USAR Ensaio sobre Inútil AMARANTA CESAR
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Made in China Made in China, a inscrição repetida em série e transportada por todo planeta, espalhada discretamente no avesso das roupas que correm - e cobrem - o mundo, atando paisagens e corpos dispersos, é o ponto de onde se pode tecer, de qualquer lugar distante, uma relação de proximidade com Inútil (Wuyong, 2007), segundo documentário de longa-metragem de Jia Zhangke. É nessa China, geografia fragmentada, mosaico transnacional composto de múltiplos objetos baratos e descartáveis, que se ancora nosso olhar, – estrangeiro –, para que seja tão logo desafiado. Desafiado, primeiro, pela materialidade mesmo de um território e de seus corpos, ocupados por produções industriais de escalas gigantescas. Desafiado, depois, pelos indivíduos em suas tarefas de existir enquanto grandes mutações econômicas, ambientais e sociais são vividas pelo país. Com os operários nas linhas de montagem de Cantão, os alfaiates e mineiros de carvão em Fenyang, cidade natal do realizador, e a artista que desenterra sua China memorial nas passarelas de Paris, Jia Zhangke tece, em Inútil, um tríptico, alinhavando três espaços e aspectos da produção de roupas na China contemporânea – o industrial, o artístico e o artesanal. O ponto de partida é a indústria têxtil, a linha de condução é a observação da maneira como os sujeitos, nas suas experiências singulares, são afetados pela liberalização econômica – tema caro ao realizador - e o destino é o encontro com a vida que se esgueira nos intervalos das cesuras do poder e do capital, esses que parecem fazer da China um árido terreiro industrial global. O que se descortina logo nas primeiras sequências do filme é justamente este cenário de aridez: as linhas de montagem da fábrica de roupas e seus espaços e disposições disciplinares, opressivos. Lentos travellings horizontais revelam operários alinhados, gestos coordenados, cabides, máquinas de costuras enfileiradas conduzidas por mulheres concentradas, mãos que operam tesouras em sincronia, vestidos iguais dispostos em série, o amplo e escuro refeitório vazio, os utensílios coloridos que descansam aglomerados em um armário retilíneo, a sirene, o refeitório povoado, os operários comendo, as câmeras de vigilância, os ventiladores em ação. A grande fábrica é um espaço de controle onde inclusive a mise-en-scène, os planos, os movimentos de câmera e mesmo os ruídos, mixados a melodias melancólicas, são controlados, de modo que a aspereza da produção industrial em série embala-se numa suavidade inesperada, através de uma aproximação serena com operários cujos corpos, no entanto, experimentam seus limites, como se observa no consultório médico da zona industrial. Olhos inflamados, estafa, tosse: corpos em falência apresentam-se em sucessivas consultas médicas, e parecem, ainda assim, obedecer a uma coreografia discreta, conduzidas por raccords e suaves movimentos de câmera. Não há desespero. Há torpor. E controle, perturbado apenas por uma versão inusitada da antológica cena dos operários saindo da usina: uma câmera fixa, à distância dos corpos em retirada, flagra os trabalhadores atravessando os portões ainda e, talvez para sempre, fechados. De costas para a câmera, indiferentes à sua presença, em um único plano-sequência, os operários escalam a grade ou espremem-se entre as barras de ferro que fecham o caminho para escapar para o outro lado – difícil saber se o de fora ou o de dentro. A transgressão é registrada e observada à distân-
Exceção, Inútil. A aproximação que se efetiva, finalmente, se justifica pela condição de exceção (em contraponto à repetição e à opressão): a criação e a produção de singularidades como possível lugar de resistência. A última sequência de movimentos e planos na indústria de roupas nos conduz a um vestido pendurado exibindo uma etiqueta com a palavra-marca “Exception”, que logo é explicada pela sua criadora, num espaço que em nada se assemelha ao da fábrica. É de um ateliê arejado, verde, amplo, que surge o primeiro personagem, propriamente dito, do filme: a designer de alta-costura, Ma Ke. E é ela quem nos informa a condição de excepcionalidade: “Embora os chineses sejam os maiores exportadores de roupa do mundo, não existe nenhuma grife chinesa. Há massa assalariada mas ninguém pensa em nós como pessoas criativas”. Através dos procedimentos documentais mais triviais e castigados (a entrevista, o texto em off sobreposto a imagens da entrevistada em ação, ilustrando o que diz) Ma Ke conta, com solenidade, sua trajetória na moda: da marca criada a partir de uma postura crítica em relação à “produção em massa que estava inundando o mercado” - Exceção - até o projeto mais pessoal e artístico, a grife de alta-costura através da qual a artista retoma o tear, a produção artesanal e busca resgatar a temporalidade, a história e a memória que as roupas descartáveis perderam – Inútil. Se o gesto de montagem de Jia Zhanke nos apresenta a Ma Ke em uma relação de continuidade com a produção massiva, o discurso da estilista, e maneira como ele a filma, desenvolvem-se para afirmar sua singularidade, seu lugar de exceção. Mas seu esforço conceitual em encontrar sentidos para suas peças, além de proclamar uma crítica ao sistema industrial e a seus modos de produção massivos e desumanizantes, tomando nítida distância deles para ocupar um lugar de resistência que se opera pela arte, termina por evidenciar também a imbricação entre o capitalismo e a pro-
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cia, enquanto o trabalho, e mesmo seus danos ou o repouso, são encenados. A imbricação entre documentário e ficção, observada na obra de Jia Zhangke por diversos autores, parece aqui ganhar um sentido esquemático, mas bastante razoável: para os corpos em estado de controle em suas operações de trabalho, recorre-se aos regimes da ficção, enquanto mesmo os mais sutis gestos de resistência, para serem flagrados, demandam o documentário. E talvez esse seja um caminho para entender a última sequência desse primeiro “retrato” do tríptico. Em uma temporalidade sem causalidades, os operários aparecem novamente pilotando máquinas de costuras amontoadas, ao som de uma canção melodramática, cantada por uma voz que parece sofrer (de amor?) e que abafa todos os outros sons, injetando sensações estranhas aos gestos repetidos, mecânicos. A canção que se projeta no primeiro plano dos nossos sentidos preenche de melancolia e ao mesmo tempo de ternura as mulheres concentradas nas suas tarefas automatizadas. E parece ensaiar, pela via ficcional, junto com um movimento de câmera suave que quase toca a pele de uma operária, uma aproximação afetiva, que, no entanto, nunca se efetiva totalmente. Os operários roçam a ficção mas não se tornam personagens nem sujeitos. Frequentemente associados a palavras como escravidão ou exploração, eles permanecerão nas ficções do regime (do partido, comunista/ capitalista) e nos recônditos do nosso imaginário – agora, perturbado, desafiado por essa música, essa câmera, esse corpo, essa pele. E se houver quem espere de um documentário uma utilidade de natureza pragmática, associada talvez ao seu poder de denúncia - nesse caso, dos custos humanos escondidos nos avessos das roupas efêmeras produzidas em larga escala-, Inútil é um título que cai bem ao filme de Jia Zhangke.
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dução de subjetividades, cosendo pontas, aparentemente, opostas do mundo e do mercado das roupas. Ma Ke enterra as peças que cria para que elas interajam com a natureza, para que, em contato com o pó da terra, recuperem uma história, uma memória, e sejam posteriormente reerguidas em Paris, em uma instalação, na agenda da semana de moda. São roupas que não serão usadas por ninguém fora das passarelas e que, apesar de acionarem recursos instigantes e nitidamente diferentes das visualidades do mundo fashion, podem se prestar também à fetichização – exclusividade e inutilidade são também valores de mercado. Pela montagem, Jia Zhangke esquiva-se em tecer um discurso polarizado, escapa de uma possível montagem dialética, bem como desvia de uma exposição das contradições da obra/discurso de Ma Ke ou de uma adesão aos seus conceitos, tencionando e provocando aberturas nos espaços e personagens só aparentemente autônomos. De todo modo, a solenidade dos dispositivos convencionais através dos quais ele a filma suscitam um certo estranhamento – de repente, é como se estivéssemos diante de um documentário de divulgação da grife de alta-costura chinesa1. Mas, contraditoriamente, é justamente por sua fragilidade, tanto discursiva quanto formal, que esse segundo ato/retrato do filme engendra e potencializa aquilo que há de mais singular no cinema de Jia Zhangke. De volta à terra De volta à China, longe de Cantão ou de Paris, a poeira ocupa a paisagem, encobre a arquitetura das usinas de carvão e borra a disputa pela estrada entre um caminhão e uma bicicleta – o antigo e o novo. A terra retorna em sua materialidade. Ma Ke dirige o carro, em direção às zonas afastadas da urbe onde ela se sente “como uma amnésica que começa a lembrar”: “Ir nesses lugares remotos é como recuperar uma memória perdida”. A frase soa como uma senha para que Jia ZhangKe abandone o carro da estilista que segue sozinha seu rumo, seu texto. É ele mesmo quem volta, agora, à terra, a terra natal, Fenyang, para seguir os passos de trabalhadores que carregam suas roupas em sacolas plásticas reutilizadas, roupas remendadas e ajustadas por artesãos, costureiras e alfaiates, que cobram pouco e executam uma outra mediação entre a indústria e sujeito, desafiando cotidianamente, sem os artifícios da arte, a impessoalidade e a efemeridade das peças em pequenos ateliês ameaçados de demolição, para que se construam novas fábricas, usinas. É, pois, nesse lugar onde as transições se operam – entre tempos, regimes, tradição e modernidade - que o cineasta é chamado, literalmente, a falar. Irremediavelmente chamado para dentro do filme, ele interroga uma mulher, trabalhadora da mina, que vem recuperar nas mãos da costureira uma calça que precisava ser diminuída para lhe caber. “Você mesma não poderia fazer isso?”, pergunta, fora de campo. “Não. Mas meu marido poderia”, ela responde. O marido, antigo alfaiate, trabalha também na mina porque a concorrência da indústria de roupas tornou sua antiga profissão impossível. Os dois ocupam, na sequência seguinte, um mesmo quadro - ele à frente, ela um pouco mais atrás, com o corpo colado ao dele -, e conversam com o diretor, de quem se ouve a voz projetada do ante-campo. Que roupas vestem os trabalhadores? Como escolhem suas roupas? Onde as compram? O que buscam nelas? Jia procura as memórias e as histórias das roupas usadas pelos homens e mulheres que se enterram eles mesmos para produzirem a energia que alimenta as indústrias. É o trabalhador que lhe interessa - esse que opera e é operado pelas transformações da China, em suas experiências singulares, em seus modos de atribuir sentindo à vida. É o marido quem escolheu a peça usada pela esposa mas, para ele, tanto faz, pouco importa o que ela veste, ela é bonita de 1
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É possível encontrar em algumas críticas e resenhas sobre o filme a informação (imprecisa e não confirmada) de que o filme é uma obra encomendada por Ma Ke, a exemplo do comentário de Richard Brody, na revista americana The New Yorker (In: http://www.newyorker. com/arts/reviews/film/useless_zhangke, acessado em 15/06/2014).
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qualquer jeito, conforme conta a Jia. A conversa é um tanto desajeitada, os dois operários das minas demoram para buscar os sentidos que não necessariamente procuram e parecem um pouco constrangidos com as perguntas. Mas é justamente no flagra da desigualdade entre os desejos e discursos buscados, nessa lacuna de sentido, que aquilo que poderia ser uma situação documental trivial de embate entre sujeitos desiguais erige-se como uma cena, a cena, aquela em que as roupas, finalmente, desnudam-se. O que resta dessa cena é o silêncio, e a câmera abandona os rostos sorridentes do casal para encontrar as luzes da decoração modesta piscando, latejando e indicando que são lampejos de vida que, enfim, importam e interessam. É isso que, finalmente, o cineasta encontra em Fenyang. Ali sucedem-se esboços de histórias e personagens, captados entre observação e encenação, entre o poder e a resistência, numa combinação singular (encontrada em outros filmes) que perturba o esquema exposto acima, segundo o qual a resistência é a parte do documentário, enquanto a ficção dá forma ao controle do tempo e do espaço do trabalho. Mineiros descem à terra, fumam fitando coreograficamente a câmera, e desnudam-se, literalmente, flagrados em banhos de cuia coletivos, a limpar a terra e a fuligem que cobrem seus corpos, para voltarem novamente à superfície. O marido e a mulher passeiam de moto, ao som de outra canção, provavelmente também de amor. Sobre outra motocicleta, contra o fundo empoeirado das usinas de carvão, um garoto agita uma camisa branca, que logo ficará marrom de terra, gritando esboços de palavras, festejos ou queixas, dizeres indiscerníveis. O alfaiate ameaçado de expulsão de seu ateliê, sozinho com sua máquina de costura manual, executa o gesto antigo de tocar os pedais com os pés, enquanto as mãos empurram o tecido ao encontro das agulhas. Em Fenyang, os trabalhadores, artesãos ou operários, roçam a ficção e, simultaneamente, fitam o documentário. Eles insinuam-se em fragmentos de histórias ínfimas, mas suficientes para torná-los sujeitos porque dão conta da maneira como sobrevivem à tarefa de participar, à revelia, das transmutações gigantescas por que passa a China, fornecendo energia às suas infatigáveis linhas de montagem, ao mesmo tempo em que vivem e executam pequenas resistências, tarefas no caminho de tornarem-se apenas memória. Nesses interstícios, em que a ficção e o documentário, bem como a opressão e a resistência, imbricam-se, parece residir o poder de evidência e de invenção do cinema de Jia Zhangke.
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RESISTANCE: WAYS TO WEAR Essay on Useless
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AMARANTA CESAR
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Made in China Made in China, the repeated inscription in series and transported all over the world, discreetly scattered on the back of the clothes that are in - and covers - the world, tying landscapes and dissipated bodies, is the point from where we can compose, in any faraway place, a close relationship with Useless, the second feature-length documentary by Jia Zhangke. It´s in this China, a fragmented geography, transnational mosaic composed of multiple cheap and disposable objects, that we anchor our – foreigner – critical view, so that it is soon enough challenged. At first, challenged by the very materiality of a territory and its bodies, occupied by industrial productions of gigantic scales. Secondly, challenged by the individuals in their tasks to exist while major economic, environmental and social changes are experienced by the country. With the workers on the assembly lines of Guangzhou (Canton), the tailors and coal miners in Fenyang, the director’s hometown, and the artist who digs out her memorial China on the catwalks of Paris, Jia Zhangke weaves, in Useless, a triptych, tacking three spaces and aspects of the clothing production in the contemporary China – the industrial, the artistic and the handcrafted clothing industry. The starting point is the textile industry, the driving line is the observation of the workers/characters/individuals, in their unique experiences, how they are affected by the economic liberalization – a dear theme to the director - and the destination is the encounter with the life that sneaks in the intervals of the power and the capital restraints, those that seem to make China become the arid and desolated global industrial back yard. What the early sequences reveal is precisely this barren scenario: the assembly lines of a garment factory, its spaces and its controlled, domesticated and oppressive arrangements. Slow horizontal travelling reveals aligned workers, coordinated gestures, hangers, sewing machines lined up and conducted by focused women, hands operating scissors in sync, copies of dresses aligned in series, the wide and dark empty cafeteria, colorful utensils resting clustered in a rectilinear closet, the siren, the cafeteria full of workers, the workers eating, the surveillance cameras, fans in action. The large factory is a space of control and the mise-enscène, the shooting plans, the camera movements, the noises, and even the melancholic melodies mixed, are all controlled, so that the harshness of the industrial production in series transforms itself in an unexpected softness, through a serene approach with those workers, whose bodies, though, experience their limits, as noted in the physician’s office of the industrial zone. Inflamed eyes, fatigue, nervous exhaustion, coughing: bodies in bankruptcy are presented in successive medical appointments, and yet, seem to obey an unobtrusive choreography, conducted by raccords and smooth camera movements. There is no despair. There is torpor. And control, which is only interrupted by an unusual version of an anthological scene when workers are leaving the plant: one camera observes from a distance, static shot, those retreating bodies, checking out the workers coming through the gates that are still closed, and may remain forever like this. With their back to the camera, oblivious to its presence, in a single sequence plan,
Exception, Useless. The approach that becomes effective is finally justified by the exception condition (as a counterpoint to the repetition and the oppression): the creation and production of singularities as a possible place for resistance. The last sequence of movements and shooting plans on the clothing industry leads us to a hanging dress displaying a label with the word “Exception”, which is soon explained by its creator, in a space completely different, that does not look like the factory environment. It is in a green, airy and large studio, that the first real film character appears: the Haute Couture designer Ma Ke. And she’s the one who informs us about the condition of exceptionality: “Although the Chinese are the largest exporters of clothing in the world, there is not one Chinese brand. There is a mass earning minimum wage but nobody thinks of us as creative people”. Through the documentary procedures commonly used, trivial and wasted (the interview, the text in off overlapping the images of the designer during the interview, illustrating what she says) Ma Ke tells us, with solemnity, her career in fashion: the brand created from a critical position related to the “mass production that was flooding the market “Exception” - until the most personal and artistic design, the Haute Couture fashion, through which the artist returns to the loom, to the handcrafted production, and tries to rescue the temporality, the history and the memory that the disposable clothes have lost – Useless. If Jia Zhangke editing procedures presents us Ma Ke in a relation of continuity with the
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workers climb the grid or squeeze between the iron bars that close the way to escape to the other side – difficult to know whether from the outside or the inside. The transgression is recorded and observed from a distance, while the work, and even its damages or resting, are staged. The overlapping between documentary and fiction, observed in the work of Jia Zhangke by various authors, seems here to win a schematic meaning, but pretty reasonable: for the bodies in a domination and controlled state in their work duties, the appeal is to a fiction scheme, while even the most subtle gestures of resistance, to be caught in the act, demand the documentary register. And maybe that’s a way to understand the last sequence of this first “picture” of the triptych. In a temporality without causalities, the workers appear again operating stacked sewing machines, with the sound of a melodramatic song, sung by a voice that seems to suffer (for love?) and that suffocates and suppresses all the other sounds, injecting weird and bizarre sensations in viewing the repeated and mechanical gestures. The song that rises projected into the foreground of our senses fill of melancholy and at the same time tenderness the concentrated women in their automated tasks. And it seems to be rehearsed, through the fictional path, along with a smooth camera movement that almost touches the skin of a worker, an affectionate approach, which, however, is never fully effective. The workers brush the fiction but do not become characters or individuals. These workers often related to words as slavery or exploitation, will remain in the fictions of the regime (of the party, communist/capitalist) and in the secluded places of our imagination – now, disturbed, challenged by this music, this camera, this body, this skin. And if someone waits to see in a documentary a usefulness of pragmatic nature, perhaps associated to its power of former complaint - in this case, the human costs hidden in the reverse of those ephemeral clothes produced on a large scale, Useless is a title that suits well to this Jia Zhangke film.
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massive production, the stylist speech, and the way the director films her, are developed to affirm her uniqueness, her place of exception. But her conceptual effort in finding meanings to her creations, in addition of proclaiming a critical view of the industrial system and its massive and dehumanizing production ways, taking a clear distance from that to occupy a place of resistance through the art, ends up by highlighting the overlap between capitalism and the production of subjectivities, sewing shreds apparently opposed to the world and the clothing market. Ma Ke buries the pieces created by her, so that they interact with nature, as if the process of contacting the dust of the earth could make those clothing pieces retrieve a history, a memory, to be subsequently re-erected in an installation, at Paris fashion week. These are clothes that will not be used by anyone outside the catwalks, which, regardless of putting in action some challenging resources, clearly different from the fashion world commonly seen features, can also be taken as a ‘fetishization’ process – exclusivity and uselessness are also market values. By the film editing results, Jia Zhangke avoids to weave a polarized speech, escaping from a possible dialectical film editing. Besides, he avoids to show any contradictions from Ma Ke’s art works/speech but also to exhibit an adherence to its concepts, intending and provoking gaps in the displayed spaces and characters which are only apparently autonomous. Anyway, the solemnity of the conventional devices through which he films her raises a feeling of strangeness – all of a sudden, it’s like we’re on a documentary to promote the Chinese Haute Couture design¹. But, conversely, as a paradox, it is precisely because of its fragility, both in the speech as in a formal sense that this second act of the film engenders and enhances what is most unique in Jia Zhangke’s movies. Back to Earth Back to China, far from Canton or from Paris, the dust fills in the landscape, covering the coal plants architecture and blurs the dispute on the road between a truck and a bicycle – the old and the new. The earth returns in its materiality. Ma Ke drives her car, towards the distant areas of the city where she feels “like an amnesiac who begins to remember”: “Going into these remote places is like recovering a lost memory”. The phrase sounds like a password so that Jia Zhangke abandons the stylist car on its own course, to its own fate. Now he is getting back to the land, to his homeland, Fenyang, to follow into the footsteps of those workers that carry their clothes in plastic reused bags, who have mended clothes that are adjusted by artisans, seamstresses, and tailors, who charge so little for their work. This relation provides another type of mediation between the industry and the individuals, challenging without the art artifices, in their everyday lives, the impersonality and the ephemerality of the clothes in small workshops and studios, threatened to be demolished, so that new factories and power plants are built. It is therefore in such place where those transitions operate that the filmmaker is called, literally, to speak out. These transitions appear between regimes, times, the tradition and the modernity. The director is inevitably called into the film, interrogates a woman that works at the mine, when she is coming to the recover her pants that needed to be reduced to fit her in, with a seamstress: “You couldn’t do it by yourself?” he asks, out of the take. “No. But my 1
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It is possible to find in some in some reviews and journalistic critics about the movie the information (inaccurate and unconfirmed) that the film was promotional commissioned by Ma Ke. We can find an example of such kind of criticism in Richard Brody´s review in the American magazine The New Yorker (@: http://www.newyorker.com/arts/reviews/film/useless_zhangke, accessed on 06/15/2014).
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husband could do it.”, she replies. Her husband, a former tailor, also works at the mine because the clothing industry competition has turned his former profession impossible to be practiced. The two of them occupy in the following sequence the same frame - he’s ahead from her, and she is a little further back, with her body very close to his -, and they chat with the director, whose voice we hear projected from behind the camera. What clothes do the workers wear? How they choose their clothes? Where do they buy them? What do they seek in them? Jia looks for the memories and the histories of the clothing worn by the men and women who bury themselves to produce the energy that feeds the industries. It is the employee that matters to him – the very one that operates and is operated by the transformations of China, in his unique experiences, in his ways of assigning meaning to life. It is the husband who chooses the clothing piece to be used by the wife as according to him it does not matter whatever she wears. She is beautiful anyway, as he tells Jia. The conversation is somehow clumsy, both the mines workers take a long time to get the senses that they do not necessarily seek out and they seem to be a little embarrassed with the questions. Nevertheless, it is precisely in the flagrant of that dissimilarity between the wishes and the searched speeches that as a real scene, the scene is erected. It happens in this gap of meaning, which could have been only a trivial documentary situation showing a collapse between different subjects. It is in this erected scene that the clothes are finally undressed. What remains from this scene is the silence, and the camera leaves the smiling faces of the couple to meet the modest decoration flashing lights, pulsing and showing they are glimpses of life, which do matter and mean something after all. That is what the filmmaker finally discovers in Fenyang. There are a number of stories and characters sketches succeeding to each other, captured between the observation and the staging, between power and resistance, a singular combination (that is also found in other films) that disturbs the previous scheme above described, in which resistance is part of the documentary, while the fiction shapes the controlling of the time and the work space. Miners descend into the earth, to the underground, smoking and looking choreographically to the camera, and then are shown literally undressed, naked. They are caught in the act of collective baths, using buckets to clean themselves from the earth dust and the soot that covers their bodies, so that they can be brought up to the surface again. The husband and wife ride a motorcycle, with the sound of another song, probably a love song. On another motorcycle, against the dusty background of the coal plants, a boy waves a white shirt, which will soon become dirty brown, screaming words drafts or sketches, related to celebration or complaint, indiscernible words. The tailor who is threatened to be expelled from his studio, alone with his manual sewing machine, continue to rehearse the ancient gesture of touching the pedals with his feet, while his hands pushes the fabrics to meet the needles. In Fenyang, workers, artisans or workmen, rub the fiction and, simultaneously, gaze the documentary. They insinuate themselves into tiny fragments of stories, but enough to make them protagonists/subjects, because they are able to survive to the task of participating, even if against their will, to the gigantic transmutation in China, providing power to its indefatigable assembly lines. At the same time, they live and are able to perform some small resistances, some kind of labor and tasks that are on the way to becoming just memories. These interstices, in which fiction and documentary, as well as oppression and resistance, overlap into each other, is where it seems to live and remain the power of invention and the evidence of Jia Zhangke’s films.
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2007 / 9 min / HDCM
OUR TEN YEARS WOMEN DE SHI NIAN
direção e roteiro Jia Zhangke elenco Liang Jingdong, Yuan Tian, Tao Zhao direção de fotografia Lu Sheng música Lim Giong produção Chow Keung
Duas jornadas de trem pela província de Shanxi se deparam com situações diferentes e iguais ao mesmo tempo, em um intervalo de poucos anos. Two train journeys through Shanxi province portray different and equal situations at the same time, in a time span of few years.
2008 / 112 min / HDCM
24 CITY
ER SHI SI CHENG JI direção Jia Zhangke roteiro Jia Zhangke, Zhai Yongming elenco Chen Jianbin, Chen Joan, Lü Liping, Zhao Tao direção de fotografia Wang Yu, Yu Likwai música Yoshihiro Hanno, Lim Giong produção executiva Chow Keung, Ren Zhong-Iun, Yong Tang produção Shozo Ichiyama, Jia Zhangke, Wang Hong co-produção Satoshi Kubo, Ning Ma, Masayuki Mori, Yuji Sadai, Xu Pengle, Takio Yoshida, Zhu Jiong
A dramática queda de uma fábrica estatal de munições e a sua conversão em um complexo de apartamentos de luxo. O filme combina as histórias de três gerações de trabalhadores em uma fascinante história da China pós-revolucionária. The dramatic fall of a government munitions factory and its conversion into a complex of luxury apartments. The film combines the histories of three workers generations in a fascinating history of the post-revolutionary China.
A POESIA DO DESAPARECIMENTO Notas sobre 24 City LÚCIA MONTEIRO
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“We that have done and thought, That have thought and done, Must ramble, and thin out Like milk spilt on a stone.” Spilt Milk (1933), W. B. Yeats
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Ao lançar 24 City (Er shi si cheng ji), em 2008, Jia Zhangke já era um cineasta consagrado. Dois anos antes, Em busca da vida (Sanxia haoren) havia conquistado o Leão de Ouro, no Festival de Veneza. Embora enfrentasse dificuldades para filmar e para exibir seus filmes na China, Jia mantinha-se firme no propósito de retratar as transformações brutais da política, da economia, da paisagem e da sociedade chinesas da era pós-maoísta, sob a ótica do indivíduo comum ou das “pessoas ordinárias”, como ele costuma dizer. Já estava no cerne de seu cinema a intenção de retratar a maneira como a população mais marginalizada tem vivido a escalada do capitalismo no país depois da morte de Mao Tsé Tung, com a abertura para o mercado internacional, as privatizações e os vultosos índices de crescimento econômico. Esse olhar está em todos os longas de ficção que o cineasta realizara até então, de Um artista batedor de carteiras (Xiao Wu, 1997), história de um trombadinha absolutamente leal a seus companheiros que não consegue adaptar-se à época do cada um por si, a Em busca da vida, em que duas histórias de amor e separação paralelas têm lugar em Fengjie, cidade que se prepara para ser inundada pela construção da represa das Três Gargantas. As mudanças radicais vividas pela China também transparecem em documentários como Dong (2006), retrato do artista Liu Xiaodong gravado em Fengjie praticamente ao mesmo tempo que Em busca da vida, e Inútil (Wuyong, 2007), concentrado na moda chinesa e nas relações de trabalho do setor têxtil. Se as grandes obras de arte permitissem a separação entre forma e conteúdo, seria possível dizer que, no âmbito temático, 24 City constitui-se como um prolongamento desse projeto de cinema que Jia Zhangke vinha desenvolvendo. O filme acompanha os últimos dias de funcionamento de uma antiga fábrica de aviões de guerra e armamentos, a fábrica 420, demolida para dar lugar a um conjunto habitacional de alto padrão, chamado de 24 City. Instaura-se ali, no entanto, uma importante diferença com relação aos longas precedentes: o realizador problematiza, pela primeira vez de maneira frontal, a divisão de sua filmografia entre ficções e documentários, lançando uma dúvida sobre a maneira como sua cinematografia vinha sendo percebida. Depoimentos reais de cinco operários e ex-operários da fábrica 420 são combinados a quatro entrevistas fictícias, protagonizadas por atores. Não há nisso qualquer pretensão de enganar o espectador. As plateias (sobretudo chinesas) reconheceram sem dificuldade os rostos do elenco profissional: Joan Chen, que faz o papel de Gu Minghua, apelidada de Pequena Flor, que havia estrelado blockbusters, como o filme O Último Imperador (1987) e a série de televisão Twin Peaks; Zhao Tao, que interpreta a vendedora de roupas de luxo Nana, que havia atuado em todos os filmes precedentes de Jia; Lv Liping era conhecida por sua participação em seriados chineses e em filmes como Sonho Azul (1993); único homem entre os atores, Chen
Nostalgia do presente Nove entrevistas estruturam 24 City. Todas apresentam elementos dramáticos e, coisa rara no cinema de Jia Zhangke, lágrimas brotam no rosto de alguns personagens. Em filmes anteriores, momentos mais dramáticos costumavam ser escondidos em elipses ou aconteciam fora de campo; aqui, eles ganham frontalidade e duração. Até mesmo os respiros entre as falas dos operários e ex-operários são constituídos por imagens impactantes, como as cenas da fábrica em seus últimos dias de funcionamento, os planos da lenta retirada dos letreiros com o nome do grupo Chengfu da entrada e a visão da demolição do prédio ao mesmo tempo em que se ouve um coro de trabalhadores cantando a versão chinesa da Internacional canto revolucionário composto na segunda metade do século XIX por Eugène Pottier (letra) e Pierre Degeyter (música). A melancolia de fundo nostálgico e o desencanto com o presente fazem parte do repertório do cineasta que, em diversas ocasiões, soube combinar experiências individuais com sentimentos predominantes no momento histórico. Lembremos, em Plataforma, da dissolução do grupo de teatro, em um contexto em que organizações coletivas se desagregam em todo o país. Na nostalgia dos integrantes da trupe pela juventude que acabou ressoa o fim de uma era na política e no tecido social do país. Já não havia mais lugar para sonhos coletivos. No caso de 24 City, a unidade entre as falas dos personagens reside no gesto de lembrar outros tempos, comum a todos. Esse rememorar oscila entre a saudade e a dor, em um mo-
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Jianbin era uma figura recorrente na TV chinesa. Foi ao cabo de um processo de entrevistas com cerca de 50 funcionários e ex-funcionários da 420 que Jia Zhangke e a poeta Zhai Yongming, que assina o roteiro ao lado dele, escreveram as histórias narradas por cada um dos quatro atores. Não se trata apenas de produzir um híbrido, recurso aliás nada inédito na história do cinema — no Brasil, Eduardo Coutinho o empregava mais ou menos na mesma época, em Jogos de Cena (2007). Além de permitir a condensação de diversas histórias, é como se Jia Zhangke afirmasse que, em seu cinema, verdade e invenção são inseparáveis, que a ficção talvez seja um caminho necessário para chegar ao real. Fica claro que o próprio cineasta também atua. Ele não aparece na tela, como faria mais tarde, em Um Toque de Pecado (Tian zgu ding, 2013), mas reconhece-se sua voz, vinda do extracampo, quando faz perguntas aos entrevistados ou reage ao que eles respondem. Com 24 City, fica evidente que o interesse de Jia Zhangke pelo documentário vai além da preparação de suas ficções. Os documentários anteriores de Jia costumavam ser vistos como pesquisa para os longas de ficção. Rodado em Datong, In Public (Gong gong chang suo, 2001) exibe de fato ligações com Prazeres desconhecidos (Ren xiao yao, 2002); Dong e Em busca da vida compartilham a mesma paisagem. Pode-se, ainda, estabelecer um paralelo entre a investigação sobre o setor têxtil desenvolvida em Inútil e uma das partes de Um toque de pecado. 24 City ajuda a entender a profunda conexão do cineasta com a temporalidade dos acontecimentos mesmo e sobretudo em suas ficções, um componente quase “jornalístico”, para retomar o termo usado por André Bazin ao qualificar o cinema que realizadores do neorrealismo italiano criaram depois da Segunda Guerra Mundial. Além disso, o filme interpela elementos fundamentais da história do cinema, desde sua origem, no final do século XIX, como veremos adiante.
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vimento em que os dois sentimentos acabam por se tornarem indissociáveis. Na origem do choro dos entrevistados, remorso, frustração, saudade e arrependimento se misturam. Como não se entristecer vendo ruir a usina a que dedicaram a vida inteira e pela qual se sacrificaram? Como podem os operários não sentir saudades de um tempo que, embora fosse pontuado de sacrifícios e restrições, remete à juventude e encerra as memórias? Essa estranha condição, ligada à passagem do tempo, gera uma nostalgia difusa, que não se limita ao que foi bom, tampouco ao que já foi. Trata-se, por um lado, da nostalgia do presente borgesiana1, a que o escritor italiano Enrico Ghezzi recorre para falar do cinema de Alexandre Sokúrov, outro cineasta interessado no que o presente faz das ruínas do comunismo, ou nas ruínas do comunismo produzidas pelo tempo presente2. Por outro lado, há muito, aí, da maneira de olhar para o futuro descrita por Walter Be njamin em suas teses sobre a história, especialmente quando ele pensa na aquarela de Paul Klee, Angelus Novus (1920): a história aparece como uma sucessão de catástrofes e o momento presente é o de um desabar do solo sob os pés3.
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Leite derramado Ao mostrar a demolição da usina, em um ápice emocional do filme, Jia Zhangke nos faz lembrar não só dos prédios que vêm abaixo em Em busca da vida, mas também da tradição de imagens desse tipo na história do cinema. De fato, a destruição é um motivo do cinema desde seu nascimento, como atesta o filme Demolição de uma Parede, dirigido por Louis Lumière, em 1896 (Auguste aparece na imagem). O desejo de dar permanência e visibilidade a eventos efêmeros e à contingência está na origem do que Mary Ann Doane chama de tempo cinemático: o cinema seria uma arte capaz de controlar o tempo e criar um reservatório de memória4. Incêndios, erupções vulcânicas e diversos tipos de acidentes estão presentes no vocabulário cinematográfico desde Lumière e Méliès na França, e desde os Miles Brothers nos Estados Unidos. Ou seja, há um interesse genuinamente cinematográfico por “catástrofes”. Vale aqui explicitar que o uso da palavra se apoia em sua etimologia: no grego antigo, katastrophê descreve um movimento em direção ao fim e ao fundo, e designa eventos não necessariamente negativos. Catástrofes provocam cisões definitivas na linha do tempo, instauram um antes e um depois. Pequena catástrofe com hora marcada para acontecer, a demolição oferece ao cinema a possibilidade de filmar uma catástrofe que não é imprevisível, uma maneira de domesticar a contingência. Em 24 City, uma espessa nuvem de poeira se forma assim que a fábrica é implodida. O espectador encara uma situação paradoxal: apesar de ter sido filmado em tempo real, o acontecimento “catastrófico” do fim da usina não pode ser visto com clareza, justamente por causa das partículas de concreto destruído, que impedem sua visão. A demolição filmada pelos Lumière já gerava um obstáculo à vista de mesma ordem, e não é um acaso se essa imagem costumava ser mostrada nos dois sentidos, ou seja, primeiro normalmente, e em seguida de trás para frente. No filme de Jia Zhangke, o poema de W. B. Yeats Leite Derramado, citado na epígrafe 1
Refiro-me ao poema Nostalgia do Presente, publicado por Jorge Luis Borges em A Cifra (1981) e incluído no volume Poesia (São Paulo, Companhia das Letras, 2009, trad. Josely Viana Baptista). 2
Enrico Ghezzi, “Il cinema (che) non si vede”, in Stefano Francia di Celle, Enrico Ghezzi e Alexei Jankowski (orgs.), Aleksandr Sokurov – Elissi di cinema, Torino Film Festival, Turin 2003, p. 5. 3
Walter Benjamin, “Tese IX” (1940), trad. Jeanne Marie Gagnebin e Marcos Luiz Müller, in M. Lowy, Walter Benjamin: aviso de incêndio. Uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”, São Paulo: Boitempo Editorial, 2005, p. 87-95. 4
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Mary Ann Doane, The Emergence of Cinematic Time. Modernity, Contingency, the Archive, Cambridge e Londres, Harvard University Press, 2002.
deste texto, acompanha o momento da implosão, em uma tradução chinesa que modifica ligeiramente o original, e que em português ficaria assim: “As coisas que pensamos e fizemos Se espalham antes de desaparecer
Como o leite derramado sobre uma pedra.”
Retrato de grupo Neste ponto, torna-se necessário pensar a relação entre figura e fundo que se estabelece no filme. Apesar de as entrevistas serem individuais, é a configuração de retrato de grupo que prevalece, como se vê nos recorrentes planos de operários da usina quase imóveis, como se posassem para uma fotografia com tempo de exposição alto. Num retrato de grupo, uma figura não deve se destacar da massa; não deve haver protagonista. Nenhum indivíduo ocupa o primeiro plano, mas o conjunto. Eis aqui uma outra característica do cinema de Jia: o privilégio do olhar para o coletivo, para o fundo da imagem, em detrimento de qualquer investida sobre a psicologia individual. O Almoço de Bebê (1895), filme dos irmãos Lumière projetado junto com A Saída dos Trabalhadores da Fábrica Lumière na primeira sessão pública de cinema, convidava os espectadores a observarem um movimento que acontecia no fundo da imagem. Diferenciando-se da fixidez do pano de fundo teatral, o cenário do cinema era móvel; até “as folhas se mexem”, como afirma a escritora Nicole Vedrès5. Com Jia Zhangke, a dinâmica é, de certo modo, semelhante. Não basta olhar para o que acontece no primeiro plano, pois a tensão reside na relação entre figura e fundo. Tomemos, por exemplo, duas sequências em que a cidade de Chengdu é vista do alto. Primeiro, quando uma garota, filha de operários da fábrica 420, anda de patins na cobertura do prédio; depois, no plano final do filme, quando Nana, a personagem interpretada por Zhao Tao, observa a paisagem do alto de uma torre. No primeiro caso, o magnetismo da composição se localiza em algum lugar entre a menina que desenha repetidos círculos com seus patins e o farol dos carros que, sob uma névoa espessa, atravessam o quadro da direita para a esquerda. O filme termina com a paisagem contemplada por Nana. Também filha de ex-funcionários da 420, a personagem interpretada por Zhao Tao em 24 City não consegue entrar na universidade, e para não trilhar o mesmo caminho dos pais compra quinzenalmente roupas e acessórios de grife em Hong Kong, para revendê-las às mulheres ricas de 5
Nicole Vedrès, “Les fuilles bougent”, Paris, le..., Paris, Mercure de France, 1958, pp. 51-62.
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É de ordem visual a ligação do poema com o momento do filme em que ele aparece. A imagem do leite derramado sobre a pedra, evocada pelo poeta irlandês, traz consigo a opacidade como forma visual, a mesma opacidade que a demolição leva para o filme. A poeira que sobe quando o prédio rui mostraria um limite à transparência cinematográfica, se ainda fosse possível acreditar nela. Os ideogramas da tradução chinesa do poema se inscrevem na tela, como se o filme enunciasse suas condições de fabricação, revelando seu alicerce na memória, que sempre carece de exatidão, e oferecendo uma visão limitada. A poesia surge, assim, para demarcar o lugar privilegiado que o invisível ocupa na obra: 24 City é um filme sobre o desaparecimento. Para que não haja confusão: os conceitos de opacidade e transparência tal como costumam ser trabalhados pela teoria do cinema e pela história da arte, baseados em abstrações, são aqui propositalmente confrontados a situações óticas muito concretas, em que a transparência real da objetiva da câmera está voltada para um meio opaco.
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Chengdu. O espectador cinéfilo talvez relacione a Nana de Jia à protagonista de Vivre Sa Vie (1962), de Jean-Luc Godard. Há inúmeras relações entre as duas personagens. A Chengdu para onde a Nana chinesa olha é uma paisagem de edifícios de pouca nitidez, encobertos pela neblina, como mostra a panorâmica que conclui o longa. Talvez o céu poluído da cidade industrial explique essa configuração. Por outro lado, devemos lembrar que a atmosfera ganha visibilidade graças ao filtro verde usado por Yu Lik Wai, que divide com Yu Wang a direção de fotografia, e à correção de cor na pós-produção. Jia Zhangke disse em algumas ocasiões6 que o filtro verde usado remetia às lembranças de sua própria infância, já que as paredes das repartições públicas eram pintadas dessa cor até a altura de um metro e ele, sendo pequeno, não chegava a ver o branco acima daquele barrado. Seja pela poluição do ar, seja pelo filtro verde, a realidade é que, nesses momentos de contemplação da paisagem urbana, o ar parece ganhar concretude. Do lado de cá da tela, somos envolvidos pela massa embranquecida que recobre a paisagem como o leite de Yeats cobre a pedra. Lê-se, então, um poema escrito pelo chinês Wan Xia, natural de Chengdu, que talvez possa ser traduzido assim: “Chengdu / esse seu aspecto evanescente / é o suficiente para que minha vida seja exaltada”. Como se estivesse parodiando Wan Xia, Jia Zhangke dá visibilidade à China que se esvaece e exalta o que se mantém invisível nesse processo.
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Essa informação me foi dada pelo próprio cineasta, em uma entrevista que realizei com ele em La Roche Sur Yon, França, em outubro de 2011. O assunto também foi tratado numa conversa entre o cineasta e o teórico norte-americano Dudley Andrew, reproduzida em Jia Zhangke, “Un poète du cinema qui dépeint la Chine” (8 de dezembro de 2008), trad. François Dubois e Ping Zhou, Dits et écrits d’un cinéaste chinois, Paris, Capricci, 2012, pp. 226-241.
THE POETRY OF DISAPPEARANCE Notes on 24 City LÚCIA MONTEIRO
When he released 24 City (Er shi si cheng ji), in 2008, Jia Zhangke was already a celebrated filmmaker. Two years before, Still Life (Sanxia haoren) had won the Golden Lion at the Venice Festival. Although facing difficulties to shoot and show his films in China, Jia stood firm to the purpose of portraying the brutal transformations of Chinese politics, economy, landscape and society in the post-Mao era, from the standpoint of the common individual or “ordinary people”, as he usually calls them. The intention of portraying the manner in which the more marginalized population has lived through the escalation of capitalism in the country after Mao Zedong’s death, opening to the international market, with privatizations and impressive rates of economic growth, was already in the core of his cinema. This view is present in all the fiction feature films thus far, from Xiao Wu (1997), the story of a pickpocket who is unfailingly loyal to his mates and who cannot adapt to the idea of each man for himself, Still Life, in which two parallel stories of love and separation take place in Fengjie, a town on the verge of being flooded for the construction of the Three Gorges dam. The radical changes undergone by China also appears in documentaries Dong (2006), a portrait of the artist Liu Xiaodong filmed in Fengjie practically at the same time as Still Life, and Useless (Wuyong) (2007), focused on Chinese fashion and labor relations in the textile industry. If masterpieces permitted separating form from content, one could say that, as far as themes go, 24 City is an extension of this project of cinema that Jia Zhangke had been developing. The film follows the last days of operation of an old plant that manufactured war planes and armament, the Factory 420, knocked down to make room for a high level residential project, called 24 City. However, the film marks an important difference from preceding feature films: for the first time, the filmmaker frontally questions the dividing line between fiction and documentaries, casting doubt on how his films were being perceived. Actual testimonials of five workers and former workers of Factory 420 are combined with four fictitious interviews, performed by actors. The intention is not to deceive the spectator. Audiences (especially the Chinese) had no difficulty recognizing the professional cast: Joan Chen, who plays Gu Minghua, nicknamed Little Flower, who had starred in blockbusters, like The Last Emperor (1987) and the television series Twin Peaks; Zhao Tao, who plays the luxury clothes saleswoman Nana, who had acted in all Jia’s films; Lv Liping was known for participating in Chinese series and films like Blue Dream (1993); the only male actor, Chen Jianbin, is a familiar figure in Chinese television. It was at the end of a process of interviewing around 50 employees and former employees of 420 that Jia Zhangke and the poet Zhai Yongming, who signs the script with him, wrote the stories narrated by each of the four actors. It is more than merely producing a hybrid, recurrent in the history of cinema— in Brazil, Eduardo Coutinho used it at around the same time in Jogos
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“We that have done and thought, That have thought and done, Must ramble, and thin out Like milk spilt on a stone.” Spilt Milk (1933), W. B. Yeats
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de Cena (2007). Additionally to enabling the condensation of several stories, it is as if Jia Zhangke stated that, in his films, fact and fiction are inseparable, that fiction could be a necessary means to reach reality. It is clear that the filmmaker himself also acts. He does not appear on screen, as he would later do in A Touch of Sin (Tian zgu ding) (2013), but his voice is recognized, off-screen, when he asks questions to the interviewees and reacts to their answers. 24 City, makes it clear that Jia Zhangke’s interest in documentaries exceeds preparation for his fiction films. Shot in Datong, In Public (Gong gong chang suo) (2001) shows connections with Unknown Pleasures (2002); Dong and Still Life share the same landscape. One can also see the parallel between the investigation into the textile industry in Useless and one of the parts of A Touch of Sin. 24 City helps understand the filmmaker’s deep connection with the temporality of events even and especially in his fictions, a nearly “journalistic” element, to use the term coined by André Bazin to qualify the creation of neo-realist filmmakers in Italy after the Second World War. Additionally, the film calls upon essential elements of the history of cinema, from its very origin, at the end of the 19th Century, as we will discuss later. Nostalgia of the present Nine interviews structure 24 City. All of them present dramatic elements and, unusual in Jia Zhangke’s films, tears stream down the faces of some characters. In previous films, more dramatic moments were concealed in ellipses or took place off-screen; here they gain prominence and duration. Even the sighs that punctuate the lines of workers and former workers are composed of impacting images, like the factory scenes in its last days of operation, the planes of the slow removal of the sign with the name of the Chengfu group from the entrance and the vision of the building’s demolition as we hear a choir of workers singing the Chinese version of the Internationale – revolutionary song composed in the second half of the 19th Century by Eugène Pottier (lyrics) and Pierre Degeyter (music). The nostalgic melancholy and disillusion with the present are part of the filmmaker’s repertoire that, on several occasions, combined individual experiences with feelings that dominated a historic moment. In Platform (Zhantai), the dissolution of the theatre group makes reference to the context of breakdown of collective organizations all over the country. The nostalgia of the members of the group for the end of youth resonates with the end of an era in politics and in the social tissue of the country. There was no longer room for collective dreams. In 24 City, the unity of the lines of characters lies in remembering other times, shared by all. This recollection alternates between nostalgia and pain, in a movement that renders the two feelings inseparable. In the origin of the tears of the interviewees, remorse, frustration, longing and regret are mixed. How not to be saddened by the sight of the collapse of the mill to which they dedicated their whole lives and for which they sacrificed? How can the workers not yearn for a time which, albeit filled with sacrifice and restrictions, relates to youth and holds so many memories? This strange condition, linked to the passage of time, creates a diffuse nostalgia, not limited to good moments or to what has passed. On the one hand, it is a borgesian1 nostalgia for the present to which Italian writer Enrico Ghezzi resorts when speaking of Alexandre Sokurov’s cinema, another filmmaker interested in what the present makes of the ruins of communism, or the ruins of communism produced by the present time2. On the other hand, there is a lot of the way of looking into the future described by Walter Benjamin in his thesis 1
I make reference to the poem Nostalgia for the Present, published by Jorge Luis Borges in La Cifra (1981) and included in the volume Selected Poems, edited by Alexander Coleman (New York and London, Penguin Books, 2000). 2
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Enrico Ghezzi, “Il cinema (che) non si vede”, in Stefano Francia di Celle, Enrico Ghezzi and Alexei Jankowski (orgs.), Aleksandr Sokurov – Elissi di cinema, Torino Film Festival, Turin 2003, p. 5.
about history, especially when he reflects on Paul Klees’s watercolor, Angelus Novus (1920): history appears as a succession of catastrophes and the present time is that of the collapse of the ground beneath the feet3. Spilt milk By showing the plant’s demolition, in an emotional climax of the film, Jia Zhangke refers us not only to the knocked down buildings in Still Life, but also to a tradition of similar images in the history of cinema. Indeed, destruction has been a cinema theme from its very beginning, as evidenced in the film Demolition of a Wall directed by Louis Lumière in 1986 (Auguste appears in the image). The wish to lend permanence and visibility to ephemeral events and to contingency is in the core of what Mary Ann Doane calls cinema time: cinema as an art capable of controlling time and creating a reservoir of memory4. Fires, volcanic eruptions and several kinds of accidents have been present in the cinema vocabulary ever since Lumière and Méliès in France, and the Miles Brothers in the United States. In other words, there is a genuinely cinematographic interest in “catastrophes”. The term is employed here with basis on its etymology: in ancient Greek, katastrophê describes a movement towards the end and the bottom, and designates events which are not necessarily negative. Catastrophes provoke irreversible splits in the time line, create a before and an after. A small catastrophe scheduled to happen, the demolition offers cinema the possibility of filming a catastrophe which is not unpredictable, an attempt to tame contingency. In 24 City, a thick cloud of dust appears as soon as the plant is imploded. The spectator is faced with a paradoxical situation: although the film was shot in real time, the “catastrophic” event of the end of the plant cannot be clearly seen, precisely because of the particles of destroyed concrete, which block the view. The demolition filmed by the Lumière brothers blocked the vision in the same way, and it is not by mere chance that this image used to be shown in both directions, i.e., first in a regular sequence and, later, backwards. In Jia Zhangke’s film, the W. B. Yeats’s poem Spilt Milk, quoted at the beginning of this text, follows the moment of the implosion. Some subtitles slightly modify the original and that would read:
The connection of the poem with the moment in which it appears is of visual nature. The image of milk spilt on a rock evoked by the Irish poet brings inside it opacity as a visual form, the same opacity that the demolition brings to the film. The dust that rises when the building collapses shows a limit to cinematographic transparency, if it were still possible to rely on it at all. The ideograms of the poem’s Chinese translation appear on the screen, as if the film spelled out the manufacture conditions, revealing its foundation in memory, which always lacks precision and provides a limited view. The poem appears to mark the privileged place that the invisible occupies in the work: 24 City is a film about disappearance. To avoid doubts: the concepts of opacity and transparency as usually employed in the theory of cinema and history of art, based on abstractions, are here purposefully used to very concrete optical situations, in which real transparency of the camera’s lenses is geared to an opaque medium. 3 4
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“The things that we have thought and done Ramble before they disappear Like milk spilt on a rock.”
Walter Benjamin, “Thesis IX” (1940), in M. Löwy, Fire Alarm: Reading Walter Benjamin’s On the Concept of History, New York, Verso, 2005. Mary Ann Doane, The Emergence of Cinematic Time. Modernity, Contingency, the Archive, Cambridge and London, Harvard University Press, 2002.
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Group portrait At this point it is necessary to address the relationship between foreground and background established in the film. Although the interviews are individual, the configuration of group portrait prevails, as evidenced in the recurring planes of nearly immobile plant workers, as if posing for a snapshot with high exposure. In a group portrait, one figure should not stand out; there is no protagonist. No single individual occupies the foreground, the group does. This is another characteristic of Jia’s cinema: the privilege of looking at the collective, at the background of the image, to the detriment of any attempt at individual psychology. Baby’s Lunch (1895), film by the Lumière brothers screened together with Workers Leaving the Lumière Factory in the first public film session ever, invited viewers to observe a movement that happened in the background of the image. Differentiating from the rigidity of theatrical stages, the cinema setting is mobile; even “the leaves move”, as stated by Nicole Vedrès5. With Jia Zhangke, the dynamics is somewhat similar. It is not enough to see what happens in the foreground because the tension lies in the relationship between foreground and background. Let us take, for example, two sequences in which the town of Chengdu is seen from above. First, when a girl, the daughter of workers of Factory 420, roller skates on the roof of the building; later, in the final plane of the film, when Nana, the character played by Zhao Tao, watches the scenery from the top of a tower. In the first case, the magnetism of the composition is somewhere between the girl drawing repeated circles with her roller skates and the headlights of the cars that, in the thick fog, cross the picture from right to left. The film ends with the scenery observed by Nana. Also the daughter of former employees of Factory 420, the character played by Zhao Tao in 24 City cannot enter university, and in order not to tread the same path as her parents, fortnightly buys designer clothes and accessories in Hong Kong, to sell to the rich women of Chengdu. The movie aficionados may relate Jia’s Nana to the protagonist of Vivre Sa Vie (1962), directed by Jean-Luc Godard. There are numerous relations between the two characters. The Chengdu at which the Chinese Nana looks is a landscape of bare clarity, enveloped in fog, as seen in the panoramic image that concludes the film. Perhaps the polluted sky of the industrial town can explain this configuration. On the other hand, we must remember that the atmosphere gains visibility thanks to the green filter used by Yu Lik Wai, who shares with Yu Wang the direction of photography, and to color correction in post-production. On some occasions6, Jia Zhangke said that the green filter related to memories of his own childhood, since the walls of the public offices had that color up to one meter from the floor and that he, being so small, could not see the color white above that border. Be it from air pollution or the green filter, the fact is that these moments of contemplation of the urban landscape seem to gain concreteness. From this side of the screen, we are involved by the whitened mass that covers the landscape, like Yeats’s milk spilt on the rock. We then read a poem written by the Chinese Wan Xia, born in Chengdu, that can be thus be translated: “Chengdu / this evanescent aspect / is enough to glorify my life”. As a parody of Wan Xia, Jia Zhangke gives visibility to a vanishing China and hails what remains invisible in the process.
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Nicole Vedrès, “Les fuilles bougent”, Paris, le..., Paris, Mercure de France, 1958, pp. 51-62.
This information was passed to me by the filmmaker himslef, in an interview I conducted at La Roche Sur Yon, France, in October 2011. The topic was also addressed in a conversation between the filmmaker and the North American theoretician Dudley Andrew, reproduced in Jia Zhangke, “Un poète du cinema qui dépeint la Chine” (December 8th 2008), translated by François Dubois and Ping Zhou, Dits et écrits d’un cinéaste chinois, Paris, Capricci, 2012, pp. 226-241.
2008 / 20 min / HDCM
CRY ME A RIVER direção Jia Zhangke elenco Aaron Shang, Lei Hao, Wang Hongwei, Zhao Tao direção de fotografia Yu Wang
UUm romance sobre a reunião de quatro amigos da escola e seus amores depois de dez anos. A narrative about four friends meeting, and their loves from school time, after ten years.
2008 / 5 min / HDCM
BLACK BREAKFAST direção Jia Zhangke roteiro Zhao Jing elenco Tao Zhao, Duan Yanan, Gu Danni, Lin Tianshu, Zhang Wei, Xue Gang, Han Long direção de fotografia Yu Likwai desenho de Som Zhang Yang produção Zhang Dong, Eva Lam
O curta-metragem faz parte do longa composto por 20 curtas chamado Stories on humam rights inspirado pela Declaração Universal dos Direitos Humanos. The short film is part of the feature called “Stories on human rights” inspired by the Declaration of Human Rights.
JIA ZHANGKE | ISTO É FICÇÃO E TAMBÉM UM DOCUMENTÁRIO (Uma conversa com Tsai Ming Liang) Eslite Reader, janeiro de 2008
A formação dos diretores da geração “encravada”
ESCRITOS | JIA ZHANGKE
Tsai Ming Liang - Não podemos dizer que as nossas ideias, a atitude com que fazemos nossos filmes, são realmente diferentes. Seguimos caminhos próximos, cuja orientação não é comercial. Nossa ideia de cinema não tem muito a ver com as correntes que dominam o mercado. Suas obras têm um perfume que me lembra os filmes de Wang Bing, de quem pude ver Tie Xi Qu: West of the Tracks no Festival de Cinema de Marselha. Os jovens cineastas chineses da sua geração todos enfrentam o problema de uma China em plena mudança. Com as mudanças políticas e econômicas, as pessoas são motivadas exclusivamente por dinheiro. Não têm mais ideais, não têm mais sonhos... No entanto, alguns diretores, dos quais você faz parte, revelam a contradição. Ao meu ver, sua geração foi entravada pela anterior, a geração de Zhang Yimou e outros. Creio que nossas respectivas situações são muito similares. Eu mesmo me situo entre Hsiao-Hsien e toda uma nova geração. Além disso, eu vim do exterior... Nós somos uma geração intermediária. Temos um certo ideal, e somos obrigados a encarar uma realidade superdimensionada.
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Jia - Eu também tenho a impressão de estar encravado. Nosso trabalho, nossos ideais, nossas convicções são radicalmente diferentes dos valores da sociedade de consumo. Torneime capaz de fazer filmes a partir de 1997, ano que coincide com um rápido desenvolvimento econômico e uma expansão do consumo na China. O cinema que aprecio, e no qual acredito, está em oposição total com a sociedade. Sem intenção, tornei-me um rebelde, rebelado contra a cultura comercial e contra a sociedade de consumo. Eu nem sempre quis fazer cinema. Nasci em 1970 e ingressei no ensino fundamental bem ao fim da Revolução Cultural. Os bens materiais estavam terrivelmente em falta. Lembro-me de sentir fome durante a maior parte dos meus anos de infância. As gerações “pós-80” e “pós90” não conheceram essa sensação de fome, elas não chegaram a esses extremos. Na época, a cultura era muito pouco presente em nossa vida. Para as crianças que éramos, a única coisa que se aproximava disso era ver filmes. Mesmo assim, eu jamais havia pensado em tornar-me diretor eu mesmo. Ao mesmo tempo, qualquer coisa progressivamente emergiu em meu espírito, como uma ideia do destino. A escola primária durava, então, cinco anos. Quando fiz os exames ao fim do quinto ano, diversas partidas foram dispersando o meu grupo de amigos. Eu, de minha parte, continuei meus estudos ingressando no colégio; por razões familiares, ou porque sofreram um crescimento precoce, alguns entraram no exército ou na polícia; outros abandonaram a escola, porque seus pais acharam que era suficiente para eles que estudassem apenas cinco anos, e então foram trabalhar; alguns, finalmente, deixaram a escola sem encontrar um emprego, e tornaram-se vagabundos. Eu ainda era uma criança, mas entendi que era o destino. Compreendi vagamente que os homens eram todos diferentes. Foi aí que comecei a me interessar pelos homens, porque compreendi a diversidade de suas existências.
JIA ZHANGKE | THIS IS FICTION AND A DOCUMENTARY TOO A conversation with Tsai Ming Liang Eslite Reader, january 2008
The education of the filmakers of a generation that was caught in the middle
Jia - I also have the impression of being jammed. Our work, our ideals, our beliefs are radically different from the values of the consumer society. I started making movies on 1997, which coincides with a rapid economic development and expansion of consumption in China. The cinema I appreciate and believe in is in total opposition to society. Unintentionally, I became a rebel, rebelling against the commercial culture and against the consumer society. I didn’t always make movies. I was born in 1970 and joined elementary school at the end of the Cultural Revolution. Material goods were missing terribly. I remember feeling hungry during most of my childhood years. Generations “post-80” and “post-90” did not know the feeling of hunger, they have not reached these extremes. At the time, culture had very little presence in our lives. For the children we were, the closest we could get to it was watching movies. Still, I never thought of becoming a director myself. At the same time, something progressively dawned on me. Primary school back then lasted five years. When I took the exams at the end of the fifth year, my group of friends was dispersing due to several departures. I, for my part, continued my studies; others, for family reasons, or because they suffered an early growth, entered the army or the police; some others dropped out of school because their parents thought it was enough for them to study only five years, and wanted them to work; some left school without finding a job, and became bums. I was still a child, but I understood it was fate. I vaguely understood that all men were different. It was then that I began to become interested in men, because I realized the diversity of their existence. For the same reason, I began to write and read a lot. I’ve read Yao Lu’s Life, which addresses an important social problem, the problem of the hukous, the household registration records. The Chinese are divided between those that have an urban hukou and those who have a rural hukou. There is no conversion possible except for one single walkway which is
WRITINGS | JIA ZHANGKE
Tsai Ming Liang - We cannot say that our ideas or the attitude with which we make our movies are really different. We follow similar paths, whose orientation is not commercial. Our idea of cinema doesn’t have much to do with the currents that dominate the market. Your works have a feel that reminds me of Wang Bing, whose Tie Xi Qu: West of the Tracks I’ve seen at the Film Festival of Marseille. The young Chinese filmmakers of your generation all face the issue of China in the middle of a shift. With the political and economic changes, people are motivated solely by money. They have no ideals, they no longer have dreams ... However, some directors, of which you are part, reveal this contradiction. In my view, your generation has been hampered by the former, the generation of Zhang Yimou and others. I believe that our situations are very similar. I find myself between Hsiao-Hsien and a whole new generation. Also, I came from abroad... We are a middle generation. We have a certain ideal, and we are forced to face an amplified reality.
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Pelo mesmo motivo, comecei a escrever e ler muito. Li A Vida de Lu Yao, que trata de um importante problema social, o problema dos hukous, os carnês de residência. Os chineses se dividem entre aqueles que possuem um hukou urbano e aqueles que possuem um hukou rural. Não há conversão possível além de uma única passarela entre esses dois estados, que é o concurso de acesso à universidade. Quando eu era criança, antes de ler esse romance, eu não enxergava o que havia de injusto nessa situação. Eu então entendi porque é que, enquanto nós, portadores de um hukou urbano, pensávamos apenas em diversão, as crianças de nossa turma que vinham do campo comiam pedaços de pão de milho seco e batatas doce, e passavam todo seu tempo a estudar, até as onze horas ou a meia noite. Elas queriam mudar de destino. Em muito devo à leitura, que me dotou de capacidade de refletir e de duvidar. Foi assim que comecei a me interessar pelas existências humanas sob uma perspectiva social.
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Tsai - Os elementos particulares a nossos respectivos filmes, como as canções de Bai Guang e Ge Lan para mim, ou a música pop de Taiwan e Hong Kong para você, vieram de nossa própria experiência. Tais coisas podem se tornar elementos importantes, inseparáveis do filme. Apenas os cineastas que vão na contracorrente do mercado podem fazer isso. Outro dia, encontrei duas jovens chinesas que haviam visto meus filmes, Vive l’amour e Rebels of the Neon God, durante os anos 90. Elas não estavam convencidas: “Não é possível que seja tão lento!”. Quando assistiram a esses mesmos filmes novamente pouco mais de dez anos mais tarde, já não acharam que fossem tão lentos assim, porque hoje em dia tudo é rápido, e essa lentidão merece ser preservada. Se pude me beneficiar à época de um tal espaço de criação, foi graças à nova onda taiwanesa, que aliviou os cineastas de seus fardos ao lhes poupar de estarem à serviço das bilheterias. Quando assisto a seus filmes, me digo que um elemento merece atenção em especial. Você não divaga, não se deixa influenciar pelo mercado, você mantém seus próprios centros de interesse. É meu caso também (risos). A maior parte das pessoas se indagará sem dúvida: “Mas o que é que ele está fazendo?”. Não há, porém, necessidade de se questionar profundamente, porque mesmo em se tratando da obra de uma minoria, essas coisas merecem toda nossa atenção. Mais vale interrogar-se a respeito da legitimidade do que a respeito do que a maioria está fazendo. Jia - Eu concordo plenamente com você. Todos os níveis de trabalho devem ser apresentados na cultura. Em verdade, depois do vigor econômico que ostentava o mercado chinês no fim dos anos 90, os critérios de valor mudaram. O dinheiro se tornou unidade de medida. Há na cultura chinesa uma tendência deplorável a “cortar os picos para preencher os vales”. Me parece que é também o caso de Taiwan. Já ouvi críticos dizerem que diretores como Hou Hsiao-Hsien ou Tsai Ming-Liang atrapalharam o cinema taiwanês. Do mesmo modo, disseram que os filmes de Jia Zhangke desencaminhavam a juventude, atrapalhavam o desenvolvimento do cinema chinês. É uma maneira estranha de apresentar as coisas. Os picos estão bem onde estão, e os vales podem ser preenchidos por aqueles que têm com o que preenchê-los. Todos os tipos de filmes deveriam estar disponíveis aos diretores que os amam. Parece-me que não temos responsabilidade individual em relação à indústria do cinema. Cada um faz seu trabalho independentemente.
the access to university. When I was a child, before reading this novel, I could not see what was wrong in this situation. Then I understood why, while we, urban hukou holders, were solely occupied by our amusements, the kids who came from the country ate pieces of dry bread and corn and sweet potatoes, and spent all their time studying, even until eleven o’clock or midnight. They wanted to change their fate. I owe a lot to the habit of reading, which endowed me with the ability to reflect, and to doubt. That’s how I became interested in the human existence from a social perspective. Tsai – There are elements particular to our movies respectively, like the songs of Bai Guang and Ge Lan for me, or pop music from Taiwan and Hong Kong in your case, that came from our own experience. Such things may become important, inseparable elements of the film. Only filmmakers that swim against the current of the market can do this. The other day, I met two young Chinese women who had seen my films, Vive l’amour and Rebels of the Neon God during the nineties. They were not convinced: “They are so impossibly slow!”. But while watching these same movies again just over ten years later, they no longer felt they were as slow, because nowadays everything is faster, and this slowness deserves to be preserved. If I could profit at the time of such a space of creation, it was thanks to the Taiwanese new wave, which released the filmmakers of their burdens by saving them from being at the service of the box office. When I watch your movies, I believe that an element deserves special attention. You do not wander, you don’t let yourself be influenced by the market, you hold on to your own interests. It’s my case too (laughs). Undoubtedly, most people will inquire: “But what is he doing?”. There is no reason, however, to question yourself deeply, because even if it’s a work of a minority, these things deserve our full attention. Better wonder about the legitimacy than about what most people are doing.
The documentary and the distance of observation Tsai - You direct fictions and documentaries. For my part, I always did fiction and thought very little about the documentary. I think it comes to finding the right opportunity. I focused mainly on AIDS victms, and mediums, in A Conversation with God. I believe that this work on patients suffering from AIDS is a form of documentary. At the time, society marginalized them, and also stigmatized AIDS as a gay disease. The Fubon Foun-
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Jia - I fully agree with you. All levels of creation should be present in culture. In fact, after the economic force that lifted the Chinese market in the late ‘90s, the value criteria have changed. Money has become the unit of measure. There is, in Chinese culture, a deplorable tendency to “cut the peaks to fill the valleys.” Seems to me that is also the case of Taiwan. I’ve heard critics say that directors like Hou Hsiao-hsien and Tsai Ming-liang spoiled Taiwanese cinema. Likewise, they said Jia Zhangke’s films mislead the youth and hindered the development of Chinese cinema. It is a strange way of seeing things. The peaks are fine where they are, and valleys can be filled by those who have something to fill them with. All kinds of films should be available to directors who love them. It seems to me that we don’t have an individual responsibility regarding the film industry. Each should do their work independently.
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O documentário e a distância de observação
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Tsai - Você dirige ficções e documentários. De minha parte, sempre fiz ficção e pouco refleti a respeito do documentário. Acho que se trata de encontrar a oportunidade. Trabalhei principalmente sobre os pacientes de AIDS, e sobre os médiuns, em A Conversation with God. Considero que esse trabalho sobre os pacientes que sofrem de AIDS é uma forma de documentário. À época, a sociedade os marginalizava, estimava que a AIDS era uma doença gay. A Fundação Fubon me pediu, assim como a Sylvia Chang e outros quatro cineastas, para dirigir um filme. Eu escolhi filmar os homossexuais para mostrar a situação real e contradizer essa ideia pré-concebida. A Conversation With God foi comissionado pelo Festival Internacional do Filme de Jeonju. Eu lembro que você devia fazer um. O último foi dirigido pelo inglês John Akofrah. Eu estava muito reticente quanto à ideia de utilizar aquela câmera digital portátil. Além disso, o que eu poderia filmar? Eu me disse que era necessário um assunto que me fosse familiar. Foi por isso que quis filmar a cidade de Taipei. Em verdade, esse não foi realmente um documentário; foi mais uma transcrição de meu estado de espírito, como um diário. Eu transformei em imagens o sentimento que me causava o ambiente. Um noticiário anunciou que havia peixes mortos no rio, então fui filmar os peixes. Eu me interessava pelos médiuns, então filmei os médiuns. Eu me perguntava para que serviam as passagens subterrâneas, então resolvi filmá-las. Ao fim, tudo isso resultou em símbolos. Por exemplo, a passagem subterrânea é uma passagem, mas se relacionamos-a ao estado de comunicação entre o homem e o divino, o que isso significa? No todo, ainda não refleti seriamente sobre o documentário. É por isso que a maior parte de meus filmes é de ficção. No entanto, não gosto quando as pessoas dizem que meus filmes se parecem com documentários.
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Jia - O primeiro documentário foi In Public (Gong gong chang suo, 2001), que filmei como você, sob o tema “três filmes, três tons”, à ocasião do Festival de Jeonju. Naquele momento, em Seul, todos falavam em representação do conceito de espaço. Eu, então, me lembrei das construções de cidades de médio porte que havia visto durante a viagem. Por exemplo, uma rodoviária servia de salão de dança, mesmo se víssemos claramente que ela havia sido uma rodoviária. As pessoas maduras ou desempregadas iam para lá após o café da manhã, e dançavam até o almoço para recomeçarem após a siesta. Essa mutação de função dos espaços me atraía, mas eu não havia refletido suficientemente sobre a questão, nem conduzido uma observação verdadeira. Me contentei em entrar com minha câmera para sentir os lugares. Após In Public, dirigi Dong (2006), e depois Inútil (Wuyong, 2007). Dong se concentrava acerca de Liu Xiaodong, um pintor de quem gosto muito, mas cujos modos de trabalhar me eram estranhos. Quis usar o documentário para entender sua forma de trabalhar. Inútil trata da criação de indumentária por Ma Ke. Eu ouvi falar de sua coleção Inútil por acaso, e o conceito filosófico me seduziu. Por outro lado, as indumentárias de Ma Ke são uma forma de reagir à realidade chinesa atual. Eu jamais havia pensado que vestimentas pudessem expressar uma tal coisa. Ma Ke trabalha exclusivamente à mão. É sua visão das coisas. Antes, nós éramos capazes de saber a origem dos objetos. Por exemplo, um cachecol confeccionado por nossa mãe ou irmã portava consigo uma certa afeição. Desde que o trabalho se dá sobre as linhas de montagem automáticas, essa ligação foi cortada. Além disso, a questão ambiental
Jia - My first documentary was In Public (Gong gong chang suo). I shot it like you, under the theme “three films, three shades,” on the occasion of the Festival of Jeonju. At that moment, in Seoul, everyone was talking about the representations of the concept of space. I then remembered the buildings I’ve seen in medium-sized cities during my itinerary. For example, I thought of a bus station that served as a dance hall, even if we saw clearly that it had been a bus station. Retired and unemployed people went there after breakfast, and danced until lunch only to start again after siesta. This function mutation of spaces attracted me, but I had not sufficiently meditated on the issue, nor conducted a true research. I settled in to visit the places with my camera to get their feel. After In Public (Gong gong chang suo), I directed Dong, and then Useless (Wuyong). Dong was about Liu Xiaodong, a painter I love, but whose methods of working were strange to me. I wanted to use the documentary as a way of understanding his way of working. Useless is about the costumes created by Ma Ke. I heard of her Useless collection by chance and the philosophical concept appealed to me. On the other hand, Ma Ke costumes are a way to respond to China’s current reality. I never thought that clothes could express such a thing. Ma Ke works exclusively by hand. It is her view of things. Before, we were able to know the origin of the objects. For example, a scarf made by our mother or sister carried a certain affection. Since the work was taken on by automatic assembly lines, this connection was broken. Moreover, the environmental issues come into play. Ma Ke established a true system of thought. It contains some paradoxes, but I believe that something so rare should be appreciated to its true value. If I was interested in Ma Ke after having filmed Xiaodong, it’s because I was eager to get in touch with these contemporary artists, who used different media to face the same reality of China. I think the feeling of getting in touch with them brought down the barriers of the cinema, letting emerge a certain cultural vitality. I hope to establish, with the documentaries, a modest walkway between the general public and the work of these intellectuals. If society were to demolish the bridges that allow us to hear the voice of these intellectuals and artists, something should be feared.
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dation asked me, as Sylvia Chang and four other filmmakers, to direct a moovie. I chose to shoot homosexuals, to show the real situation and contradict this preconceived idea. A Conversation With God was commissioned by the International Film Festival of Jeonju. I remember you also had to shoot one. The latest was directed by Englishman John Akofrah. I was very hesitant about the idea of using a portable digital camera. Besides, what could I shoot? I told myself that a matter familiar to me was necessary. That’s why I wanted to shoot in the city of Taipei. In fact, this wasn’t really a documentary; it was more like a transcript of my state of mind, a sort of diary. I turned into images the feelings the environment caused on me. I heard on the news that there were dead fish in the river, so I went to the river and filmed the fish. I was interested in people with psychic abilities, so I filmed them. I wondered why there were subways, so I decided to film them. At the end, it all turned into symbols. For example, the subway is a way, but if we relate them to the state of communication between men and the divine, what does it mean? In general, I haven’t meditated much about the documentary. That’s why most of my movies are fiction. However, I do not like when people say my films look like documentaries.
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entra em jogo. Ma Ke estabeleceu um verdadeiro sistema de pensamento. Este contém alguns paradoxos, mas eu creio que algo tão raro deve ser estimado em seu valor verdadeiro. Se me interessei por Ma Ke após ter filmado Xiaodong, é porque tinha muita vontade de entrar em contato com esses artistas contemporâneos, que utilizam mídias diferentes para encarar uma mesma realidade da China. Penso que o sentimento de entrar em contato com eles fez cair as barreiras do cinema, deixando emergir uma certa vitalidade cultural. Tenho esperança de estabelecer, graças ao documentário, uma modesta passarela entre o trabalho desses intelectuais. Se a sociedade viesse a demolir as pontes que nos permitem ouvir a voz desses intelectuais e artistas, haveria de se temer. Para que essas pontes sejam construídas, decerto, não basta que eu dirija dois documentários. Nós devemos, conscientemente, restabelecer as pontes entre os intelectuais e o grande público. O DVD de Dong, lançado em conjunto com Em busca da vida, vendeu centenas de milhares de exemplares dentro do país. Cem mil pessoas provavelmente de fato o assistiram. Elas puderam ouvir Liu Xiaodong se expressar sobre a transformação, a vida, o corpo de que a época dispõe. Me parece necessário prosseguir com essa escuta, com esse trabalho. Tsai - É um pouco como quando fui convidado a filmar pelo Louvre e pela Cité Interdite. Eu não trabalho no domínio da pintura ou das Belas Artes, então por que eu? Creio que é porque meus filmes impõem um retorno ao ato de olhar. O olhar depositado sobre o processo da criação também é levado em conta. Insisti diversas vezes na necessidade do espectador adotar a atitude daquele que olha. É algo a que os museus de arte também se agarram. Deve ser por isso que fui convidado a filmá-los. Eles se dizem, talvez, que eu posso levar o público do cinema ao museu, e que o público do museu virá assim ao cinema. A respeito do olhar, gostaria de dizer que, enquanto diretor, estarei sempre à procura da boa distância entre o assunto e a minha câmera, a distância que corresponde ao ângulo de minha leitura interior. Meus filmes não buscam contar uma história, mas inspirar uma reflexão, uma apreensão, pelas vias de um processo de leitura. Essa forma de olhar requer evidentemente uma análise. Não é preciso mergulhar completamente, ao menos não como em uma ficção comum. Em meus filmes, a imagem é submissa ao meu controle, o que às vezes cria problemas de entendimento na montagem. É porque filmo o que quero. O que filmei é, portanto, o que eu quis. Me é necessário pensar sobre a forma de filmar antes de filmar. O momento em que filmo é um critério decisivo: não se deve filmar nada sem que se saiba se aquilo terá força. É o que chamo de uma confrontação séria ao problema da criação. Como digo com frequência, a imagem não se dirige apenas com o auxílio de uma câmera. Ela coloca em obra as qualidades de diversos operadores. É um processo complicado. Para dominar uma imagem, não bastar ter uma câmera. O operador deve ser muito bom. É por isso que penso que é preciso ser prudente na filmagem, no enquadramento. Tanto quanto se dirige um documentário quanto uma obra de ficção. Quando você pega uma câmera, você tem a ideia de criar, sim ou não? Quais informações e que ponto de vista você deseja transmitir? Será possível utilizar as imagens obtidas para transmitir sua opinião e convencer? O quadro não deve em nenhum caso se apoiar sobre o enredo. Tantas histórias idênticas se repetem. Jia - A noção de distância é, igualmente, importante para o documentário. Ela coloca em questão a relação entre quem filma e quem é filmado. Eu paro sempre a uma certa distância,
True, for these bridges to be built, it is certainly not enough for me to direct two documentaries. We must consciously restore the links between the intellectuals and the general public. Dong was released in DVD in a box set together with Still Life, which sold hundreds of thousands of copies within the country. One hundred thousand people have probably actually seen it. They could hear Liu Xiaodong express himself about transformation, life, and the body. To me, it seems necessary to proceed with this listening, with this work.
Jia - The notion of distance is also important for the documentary. It calls into question the relationship between who films and who is filmed. I always stop at a distance, doing my best not to make contact with the filmed subject. Similarly, I rarely ever resort to the interview, which brings awareness of the presence of the camera. It’s an aesthetic choice. The appearance of an individual can, by itself, convey information of immense power. It’s pointless going too deeply into concrete events, the details of their life. What counts are the details, the aura, the walking, the movements of the eyebrow, the silences, the way they smoke ... An observation from a distance can reconstitute their state from fragments. Viewers can then translate their personal experiences to this outward appearance in order to understand it and feel it. This transposition process is particularly interesting. The images we see may as well find their place in the memory of others. If you are too passive, if you don’t want to project your memories and feelings, you might get bored by the movie. If you have some experience of life, a space within which feelings communicate and complete each other, it might not bore you.
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Jia – It’s a bit like when the Louvre and the Cité Interdite invited me to shoot. I do not work in the field of painting and fine arts, so why invite me? I think it’s because my films require an attention to the act of seeing. I have repeatedly stressed the need for the viewer to adopt the attitude of a beholder. This is something that art museums also hold on to. That must be why I was asked to film them. They figured that maybe I could bring the audience of the movies to the museum, and that the audience of the museum would also go to the cinema. Regarding the act of looking, I would say that, as a director, I will always be searching for the ideal distance between the subject and my camera, the distance that corresponds to the angle of my inner interpretation. My films do not aspire to tell a story, but to inspire a meditation, by the means of a reading process. There is no need to dive in completely, at least not as much as in ordinary fiction. In my films, the image is submissive to my control, which sometimes creates problems when it comes to editing. It’s because I shoot what I want. What I filmed is what I wanted. It’s necessary for me to think about how to shoot before shooting. The moment I shoot is a decisive criterion: one should not shoot anything without knowing if it will have enough power. It’s what I call a serious confrontation with the problem of creation. As I often say, the image is not directed simply with the aid of a camera. It requires the skills of several operators. It is a complicated process. To master an image, it’s not enough to have a camera. The operator should be very good. That’s why I think that one must be cautious when filming a frame. It doesn’t matter if it’s a documentary or a work of fiction. When you grab a camera, do you have an idea, yes or no? What information and what points of view do you want to convey? Can you use the images obtained to convey your opinion? The frame should not, under any circumstances, rely on the plot. So many similar stories are told.
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fazendo o meu possível para não estabelecer contato com o assunto filmado. Do mesmo modo, raramente recorro à entrevista, que traz a consciência da presença da câmera. É uma escolha estética. A aparência de um indivíduo pode, por si só, transmitir informações de imensa riqueza. É inútil entrar muito profundamente em eventos concretos, nos detalhes de sua vida. O que conta são os detalhes, a aura, o caminhar, os movimentos da sobrancelha, os silêncios, o jeito de fumar etc. Uma observação à distância permite reconstituir seu estado a partir de fragmentos. Os espectadores podem então transpor suas experiências pessoais a esse aspecto exterior, de modo a compreendê-lo e senti-lo. Esse processo de transposição é particularmente interessante. As imagens que fazemos ver podem assim encontrar seus lugares na memória de outras pessoas. Se você é muito passivo, se você não deseja projetar suas memórias e sentimentos, corre o risco de achar o filme entediante. Se você possui uma certa experiência de vida, no seio da qual os sentimentos se comunicam e completam, talvez ele não o entedie.
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A realidade e a força encarnadas pela imagem
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Tsai - Muito honestamente, eu acho que a suposta fronteira entre documentário e ficção não existe. O que quer que filmemos, é preciso não se prender aos métodos formalistas do documentário e da ficção. Tudo deve ser explorado sem cessar. Sempre foi assim para a imagem, que progride sem interrupção. São dois modos de operação diferentes, mas que criam uma mesma forma para o espectador. Jia - Quando dirijo um documentário, não sei ao certo se dirijo um documentário ou uma obra de ficção. A minha percepção da filmagem é absolutamente a mesma nos dois casos, porque meus documentários são muito encenados e subjetivos. No cinema, a verdade é de ordem estética. Ela não deveria se engajar em vista da verdade formal. Tudo é posto ao seviço da verdade estética. A filmagem é portanto muito livre. O que é curioso, é que, em geral, após um longo período de observação durante o qual eu reflito muito, eu me sirvo frequentemente da ficção para representar o que observei. Escrevo um roteiro, com uma história, atores. Para sentir e capturar os fatos e as pessoas que ainda não compreendi, me utilizo, por sua vez, do documentário. É o modo de me aproximar de meus assuntos para compreendê-los. Escolhi agrupar Um artista batedor de carteiras (Xiao Wu, 1997), Plataforma (Zhantai, 2000) e Prazeres desconhecidos (Ren xiao yao, 2002) em uma “Trilogia do país natal”. Um artista batedor de carteiras foi filmado em 1997. O filme conta uma história que data do início da reconversão da economia. Plataforma se desenrola de 1979 a 1990. Ele expõe as mudanças que afetaram a China durante essa década. Do ponto de vista cronológico, Plataforma é o primeiro e Um artista o segundo. Prazeres desconhecidos, cuja história se desenrola em 2000, é o terceiro. Eles formam um afresco de pessoas comuns nas pequenas cidades da China. Esse agenciamento vem do documentário, de um efeito estético e uma ambição que só o documentário pode alcançar. Tsai - Me interrogo com frequência sobre a essência do cinema. Por muito tempo, fiz Lee Kangsheng interpretar. Minha forma de utilizá-lo difere um pouco, sem dúvida, da forma como outros cineastas utilizam seus atores. Mesmo se muitas pessoas fazem alusão a Truffaut quando falam de mim, eu não acho que dirijo Lee Kangsheng a interpretar da mesma forma
Reality and force embodied by image Tsai - Quite honestly, I think the supposed boundary between documentary and fiction does not exist. Whatever one films, one must not cling to formalistic methods associated with either documentary or fiction. Everything should be explored unceasingly. It has always been like that; the image progresses without interruption. Fiction and documentary are two modes of operation, but they create similar shape to the viewer.
Tsai - I often wonder about the essence of cinema. For a long time, I filmed with Lee Kangsheng as an actor. My way of filming him differs somewhat, there’s no doubt, from how other filmmakers use their actors. Even if many people allude to Truffaut when they talk about me, I do not think Lee Kangsheng is for me what Jean-Pierre Léaud was for him. My way of filming evokes the documentary. When writing roles, some ideas come to me only because I know that he will be the actor. When he saw the film written and directed by Lee Kangsheng, Help Me Eros, Molin Wang said: “How could an actor can be as lucky as you are? I follow your works since Rebels of The Neon God. Between your twenties and your thirties, you haven’t stopped changing, and such changes were all recorded. “ It’s pretty much that. Even if he has always played different roles, half of each role always remains Lee Kangsheng. I ended up realizing that deep down in me was a fluid boundary between “truth” and “cinema”. In the documentary, no one can witness an absolute frankness by every moment of the shoot, which is possible in fiction. The image projected by actors is one of a great accuracy. They do everything you want. But where is the ultimate truth? I think sometimes it is unstable. That’s exactly the reason why this medium touches us. My quest for the “truth” follows the endless changes of Lee Kangsheng in his roles. I cannot reach the “truth”, but I can witness the changes of Lee Kangsheng, on his age, his constitution... Unleashed from the market, my work has allowed me to capture the true changes of Kangsheng Lee. My films are both works of fiction and documentaries. This ac-
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Jia - When I’m directing a documentary, I’m not sure if I’m directing a documentary or a work of fiction. My perception of the footage is absolutely the same in both cases, because my documentaries are very staged and subjective. In film, the truth is the aesthetic. It should not engage in view of the formal truth. Everything is put to service of aesthetic truth. The footage is very unrestrained. What is curious is that, in general, after a long period of observation during which I reflect a lot, I often use fiction to represent what I have observed. I write a script with a story, with actors. To feel and capture the events and people that still do not understand, I turn to the documentary. It’s my way of approaching subjects to understand them. I chose to group Pickpocket, Platform and Unknown Pleasure in a “trilogy of the homeland”. Pickpocket was filmed in 1997. The film tells a story that takes place during the beginnings of the economic reconversion. Platform is set from 1979 to 1990. It exposes the changes that affected China during this decade. From a chronological point of view, Platform is the first and Pickpocket is the second. Unknown Pleasures, whose story happens in 2000, is the third. They form some sort of “fresco” of the lives of ordinary people in small chinese cities. This comes from the documentary, from an aesthetic effect and an ambition that only the documentary can achieve.
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ESCRITOS | JIA ZHANGKE
que ele dirigia Jean-Pierre Léaud. Minha forma de filmar evoca o documentário. Quando escrevo os papéis, algumas ideias me ocorrem unicamente porque sei que será ele que interpretará. Quando viu o filme escrito e dirigido por Lee Kangsheng, Help me Eros, Wang Molin lhe disse: “Como um ator pode ser tão feliz quanto você? Eu o acompanho desde Os Rebeldes do Deus Neón. Entre os vinte e os trinta anos, você não parou de mudar, e todas as mudanças ficaram registradas”. É bem isto. Mesmo se ele sempre interpretou papéis diferentes, a metade de cada um deles continua sendo Lee Kangsheng. Terminei por compreender que, no fundo, havia em mim uma fronteira fluida entre “verdade” e “cinema”. No documentário, ninguém pode testemunhar uma franqueza absoluta a cada instante da filmagem, o que é possível na ficção. A imagem que os atores fornecem é de uma grande exatidão. Eles fazem tudo o que você quer. Mas onde se encontra a verdade definitiva? Creio que, às vezes, ela é instável. É por isso mesmo que essa mídia nos comove. Minha busca pela “verdade” vem então seguir as infinitas mudanças de Lee Kangsheng em seus papéis. Eu não alcanço a “verdade”, mas posso testemunhar as mudanças de Lee Kangsheng, sua idade, sua constituição etc. Liberta do sistema comercial, minha obra me permitiu constatar as verdadeiras mudanças de Lee Kangsheng. Meus filmes são ficções e também documentários. Esse ator, como os papéis que interpretou e sua forma de interpretar, se inscreve na zona instável, na fronteira entre documentário e ficção. As definições pretensas do documentário e da ficção não têm mais importância alguma.
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Jia - Um aspecto de sua longa colaboração com Kang me deixa particularmente admirado: a confiança mútua entre vocês deu origem pouco a pouco a uma força que quebra tabus. Por exemplo, a audácia e abertura de espírito de O Sabor da Melancia, do mesmo modo que o desejo e a solidão que são representados, podem oferecer novas possibilidades à sociedade. Pela narração e pela descrição, vocês permitem ao espectador de mergulhar no mais profundo do espírito dos personagens. Eu dizia que não via diferença entre documentário e ficção quando filmava um documentário. Do mesmo modo, quando filmo uma obra de ficção, não vejo diferença entre ela e o documentário. Espero, mesmo, que meus filmes ganhem um valor documental. Em alguns anos, quando as pessoas assistirem Um artista batedor de carteiras, todas as vozes e barulhos, serão para eles os sons da China em 1997. Foi assim que o concebi. Por outro lado, coloco-me frequentemente sob uma perspectiva de documentário para observar os personagem, e revelar a graça e a beleza particular desses. Em Um artista, por exemplo, à metade da filmagem, meu trabalho já registrava o ritmo próprio do ator Wang Hongwei. Mais tarde, ao longo de nossa colaboração, de Plataforma, em 2000, a Em busca da vida, Zhao Tao compôs toda uma galeria de retratos. Desde sua estreia, aos vinte anos, até os vinte sete, vinte e oito, essa jovem amadureceu, se transformou, seu estilo de interpretação se modificou. Ela representou a transformação de uma mulher chinesa. Sob essa perspectiva, os meus filmes em que ela aparece são também documentários. Tsai - Para resumir, seja no documentário ou na ficção, a imagem não deve ser mais que um assunto de discussão. Muitas pessoas debatem assuntos por demais numerosos. Quais são as obras que podem ter força, aumentar a sensibilidade das pessoas? A força da imagem encontra-se atualmente desgastada. É o que mais me entristece.
tor, as the roles he played and his way of interpreting, falls within the unstable zone, the boundary between documentary and fiction. The alleged definitions of documentary and fiction no longer have any significance. Jia – There’s one aspect of your long collaboration with Kang I particularly admire: the mutual trust between you gradually created a force that breaks taboos. For example, the audacity and open-mindedness of The Wayward Cloud, as well as the desire and loneliness that are portrayed, may offer new possibilities for society. Through narration and the description, you allow the viewer to delve deeper in the spirit of the characters. I’ve said I see no difference between documentary and fiction while filming a documentary. Similarly, when I film a work of fiction, I see no difference between it and the documentary. I really hope my films will eventually reach a documentary status. In a few years, when people watch Pickpocket, all voices and noises will be for them the sounds of China in 1997. That was how I conceived it. On the other hand, I often put myself under the perspective of a documentary to observe a character and reveal their particular grace and beauty. In Pickpocket, for example, during half of the shootings, it was possible to notice the peculiar rhythm Wang Hongwei. Also, during our collaboration from Platform, in 2000, to Still Life, Zhao Tao composed a whole gallery of portraits. Since its debut at the age of twenty, until the twenty-seven, twenty eight, this young woman matured, and her style of interpretation has changed. She represents the transformation of a Chinese woman. From this perspective, my films in which she appears are also documentaries.
WRITINGS | JIA ZHANGKE
Tsai - To summarize, whether in documentary or fiction, the image should not be more than a matter of discussion. Many people debate too many issues. What are the works that may have strength, that may increase the sensitivity of the people? The power of the image is currently outworn. This is what grieves me most.
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2009 / 12 min / HDCM
REMEMBRANCE direção e roteiro Jia Zhangke elenco Tao Zhao, Entai Yu direção de fotografia Yu Likwai música Lim Giong produção Eva Lam, Ning Ou, Zhang Dong
A memória contada a partir de imagens de dez anos de relacionamento de um casal, e como a relação foi influenciada por momentos históricos recentes em Pequim, e a intensa modificação tecnológica, na última década. Filme encomendado pela revista Modern Weekly para a comemoração de seus dez anos na China. The memory of a couple´s relationship based on ten years of images, and how the relationship was influenced by the recent historical moments in Beijing, and the intense technology changes in the last decade. Film ordered by Modern Weekly magazine to celebrate their 10th aniversary.
2010 / 138 min / Digital RED ONE
MEMÓRIAS DE XANGAI
HAI SHANG CHUAN QI / I WISH I KNEW
direção e roteiro Jia Zhangke elenco Yindi Cao, Chang Hsin-I, Chen Danqing, Du Meiru, Fei Mingyi, Han Han, Huang Baomei, Lee Chiatung, Tony Leung Chiuwai direção de fotografia Yu Likwai música Lim Giong
Desde 1930, a megalópole chinesa Xangai sofreu diversas transformações, incluindo revoluções políticas e culturais, assassinatos e fluxos migratórios. Dezoito pessoas relembram episódios de suas vidas nessa cidade. Since 1930, the Chinese megacity of Shanghai has undergone over several transformations, including political and cultural revolutions, assassinations and migration. Eighteen people recall episodes of their lives in this city.
MEMÓRIAS DE XANGAI CAROLIN OVERHOFF FERREIRA O cinema foi sempre um lugar que interrogava o senso comum, servindo como um espaço de pensamento heterodoxo. Desde o cinema mudo, filmes exploram e trans-gridem as fronteiras disciplinares, expondo a construção dos seus métodos através de estéticas de dissenso. Inspirada na definição da indisciplinaridade pelo filósofo francês Jacques Rancière (2006), gostaria de chamar esses filmes de indisciplinares (FERREIRA 2012, 2013). A visão de mundo desses filmes é heterogênea, ou seja, aceita contradições e paradoxos. Assim, eles partem da copresença de temporalidades (passado e presente), da identidade de alto e baixo (cultura erudita e popular), e da analogia entre a razão dos fatos e a razão das ficções (a ausência de fronteiras entre documentário e ficção). Sublinham a dimensão política da arte sem que queiram deliberadamente ati-var a posição do espectador – no sentido de somente fazer pensar – sendo que a recep-ção que aspiram é sempre cognitiva e sensível, ativa e passiva. Caracterizam-se pela interrogação de qualquer tipo de binarismo ou oposição binária. Memórias de Xangai (Hai shang chuan qi, 2010) de Jia Zhangke, filme encomendado pela Exposição Mundial da cidade em 2010, poderia ser entendido como um filme desse tipo ao interrogar a história oficial da China através de sua memória, sobretudo depois da Revolução de Mao Ze-dong em 1949, que separou o país na República Comunista da China e na República da China (Taiwan). A primeira sequência já visualiza a heterogeneidade do tempo e nos faz sentir a história de maneira descontínua, aleatória e regressiva, durante os primeiros sete planos. Depois de um fade in da tela preta, olhamos sobre o ombro de um típico leão de guarda imperial que se confronta com escombros, uma rua com trânsito pesado, prédios de dois andares, e, no fundo, arranha-céus em construção. No próximo plano, vemos o leão de bronze em close-up. Sua juba estilizada está sendo polida, como a cidade através do desenvolvimento urbanístico.
FILMES | MEMÓRIAS DE XANGAI
Figura 1: Planos 1 e 2
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Quando um plano médio mostra o faxineiro, ouvimos um rugido eletrônico na trilha sonora de cordas sinfônicas, como se o símbolo das glórias passadas estivesse vivo. Um corte para o filhote embaixo da pata indica que o diretor escolheu a leoa que representa o ciclo de vida (enquanto o leão ao lado se apoia, como um verdadeiro imperador, em um globo). O futuro, já sinalizado no primeiro plano através das construções, surge agora sob a premissa do tempo biológico.
Figura 2: Planos 3 e 4
O próximo corte nos leva para o outro lado da rua. Temos o casal de leões, popularizados na dinastia Han, em frente a outro ícone do passado, o banco das comunicações, símbolo do desenvolvimento econômico nos primeiros anos da República chinesa (19121949). Um zoom condensa as divisões entre as ruas, as barreiras em frente aos escombros e os leões decorativos em um enquadramento que traduz, visualmente, a im-possibilidade de ultrapassar os impedimentos à fortuna que os leões e o banco orginalmente representaram. O plano seguinte explora ainda mais a vulnerabilidade do progresso. O leão é apenas um fragmento, enquanto um trabalhador da construção passa em câmera lenta, carregando outro objeto de divisão.
Figura 3: Planos 5 e 6
Figura 4: Planos 7 e 8
De fato, o título chinês e suas conotações surgem logo em seguida nas imagens de barcos e ferryboats que flutuam pelos rios e baías, filmadas em Xangai, Hong Kong e Taipei como metáforas visuais da identidade instável chinesa. Assinalam também a segunda temá-
FILMES | MEMÓRIAS DE XANGAI
Um corte rápido recua revelando os carros que flutuam, também em câmara lenta, em frente ao leão imóvel. Enquanto o passado está sempre presente, o futuro e sua prosperidade estão apenas em construção. É verdade que símbolos e signos da fortuna são sempre invocados, mas os escombros do passado permanecem na imagem, bem como a flutuação do tempo que segue seu próprio ritmo. Logo em seguida, há um fade to black e depois o título aparece em chinês e inglês. Em ideogramas: Hai shang chuan qi e I wish I knew, no alfabeto latino. O primeiro é uma alusão a um filme de Hou Hsiao-hsien’s Flores de Xanghai (1998). Ao trocar apenas um ideograma, o filme ganha uma dimensão mais histórica e marítima, Lenda do Mar (ver RAYNS, 2010).
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tica do filme, a migração, que entra em colisão com o discurso oficial, porque sugere que a identidade chinesa é não só flutuante, mas também inacabada, como afirma Yingjin Zhang (2010, p. 126). Flutuar é, no entanto, uma experiência proposta ao espectador logo depois do título. Uma lente com zoom olha por uma grade que embaça a visão. A objetiva segue um barco que se desloca da direita para a esquerda rumo ao porto. O movimento da câmera que gira na direção oposta traz a sensação de instabilidade.
Figura 5: Planos que seguem os títulos
Não é a única forma de desestabilizar o nosso olhar. Seguem imagens de um grupo de pessoas num ferryboat. A câmera se aproxima de uma mulher sentada em uma moto. Ela é uma das muitas pessoas anônimas no filme, focadas pela câmera como se fossem protagonistas.
FILMES | MEMÓRIAS DE XANGAI
Figura 6: Passageiros anónimos
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Essas sequências visuais complementam as 17 entrevistas, a espinha dorsal do filme. Cinco entrevistas ocorrem em Xangai, as quatro seguintes em Taiwan, três novamente em Xangai, depois três em Hong Kong e outras duas novamente na Lenda do Mar. Os entrevistados oferecem lembranças da história chinesa e da migração para Taiwan e Hong Kong. Embora surjam datas históricas de referência, o filme não de-monstra interesse em relatar os acontecimentos de forma coerente. As três megalópoles são portos, portanto é fácil confundir as imagens que ser-vem para introduzir as entrevistas. As filmagens possuem movimentos parecidos: há um fluxo entre tempos e espaços. A primeira entrevista de Chen Danqing pode servir como exemplo. O artista plástico, que introduziu uma mudança de paradigma na pintura chinesa ao abandonar o realismo socialista, está sentado em uma cadeira de design em uma fábrica abandonada. A câmera gira em torno dele, criando imagens de duplo sentido. A repressão da vida cultural e artística da qual fala convive com a decadência do comu-nismo e as grades atrás das quais ele fala.
Além dos entrevistados, existe uma personagem semificcional, uma mulher ves-tida de branco. É sobrinha de um homem que conta a vida de sua mãe, uma atriz que atuou em um filme propagandístico, Two Stage Sisters, e depois foi perseguida pela Revolução Cultural. Usando clipes de outros filmes como esse, Jia estabelece um denso diálogo com outras produções cinematográficas, sobretudo chinesas, o que pode ser descrito como edição da história do cinema de seu país. Entre os exemplos, é possível nomear a sequência de Suzhou River (2000), sem créditos. O filme nunca foi exibido na China e Lou Ye foi proibido de atuar depois de mostrá-lo no festival de Roterdã sem permissão oficial. Os clipes são essenciais na construção de heterogeneidade também quando filmes de propaganda são incluídos parece que não faz sentido essa frase. A entrevista da filha de um comunista, executado pouco antes da “liberação” de Xangai em 1949, é seguido por um clipe de To Liberate Shanghai (1959) de Wang Bing, servindo como contrapeso à solidariedade estabelecida com a entrevistada. Em seguida, há um trecho do filme taiwanês, Red Persimmon (1996) de Wang Toon, para apontar que o sofrimento atingiu todos os lados, indiferente da ideologia. Ou? Esse ou não faz sentido as inserções homenageiam diretores das outras Chinas, de Taiwan e Hong Kong, entre eles Hou Hsiou -Hsien e Won Kar Wai. Essas homenagens consistem em planos que demonstram uma filiação estética. Afinidade é também estabelecida com Michelangelo Antonioni que filmou Chung Kuo/China em 1974 a convite do partido de Mao, mas cujo filme depois foi publicamente criticado e proibido (ver SONTAG, 1977). A citação de um clássico, Spring in a Small Town (1948) by Fei Mu, difamado na altura “difamado na altura” isso não é muito como se diz em português, ta estranho, demonstra que o parentesco se estende além da contemporaneidade. Histórias de Xangai termina com a mulher vestida de branco. Ela aparece diversas vezes divagando pela cidade, entre escombros e prédios modernos. Nos últimos minutos, sobe uma passarela. Filmada com câmera baixa e lenta, fica contemplando os trabalhos de construção. Lembra o anjo da história, célebre alegoria de Walter Benjamin (2003), apesar do filme de Jia não ter nenhuma metafísica benjaminiana. O seu realismo heterogêneo procura recuperar humanismo e compaixão no aqui e agora, na maior cidade da China que não quer saber nem aprender com sua história. Podemos concluir que Jia Zhangke não deseja construir uma história sobre Xangai. Usa lembranças para mostrar que as versões contadas sobre a cidade não passam de construções cujo objetivo principal é esquecer o passado – a separação e as feridas da Revolução de 1949 – e abraçar um futuro de progresso. Assim, o cineasta não trabalha de forma disciplinar, isto é, como documentarista. Não procura provas para construir uma tese e criar uma certa ideia sobre o passado. Também não é um autor no sentido clássico, pois quer que os outros falem: as pessoas e as coisas. Por isso, sua câmera registra paisagens,
FILMES | MEMÓRIAS DE XANGAI
Figura 7: Chen Danqing, primeiro entrevistado
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pessoas anônimas e objetos que acrescentam uma dimensão não argumentativa às palavras e documentos registrados, abrindo espaços de significação. Vale lembrar que Histórias de Xangai é resultado de uma longa trajetória que partiu de um realismo mais bazaniano. Contudo, compartilha com os filmes anteriores ao não ser nem subjetivo, nem autorreflexivo. É um filme indisciplinar que confia na capacidade do registro e da montagem de uma realidade heterogênea – da vida de uma cidade – em nos fazer sentir e pensar que o suposto consenso sobre sua História se ba-seia, na verdade, na construção de mentiras. *** Referências: FERREIRA, Carolin (2012). “Em favor do cinema indisciplinar: o caso português” (In favour of indisciplinary cinema: the Portuguese case), Rebeca –Revista brasileira de estudos de cinema e audiovisual, vol.1-2, 2012, pp.100–138. _________________ (2013). “Indisciplinary cinema: Jia Zhang-Ke’s Hai shang chuan qi/I Wish I Knew (2010)”, Transnational Cinemas, vol. 4-2, 2013, pp. 43-66. RANCIÈRE, Jacques. “Thinking between disciplines? An aesthetics of knowledge”, Parrhesia, no 1, p. 1-12. RAYNS, Tony (2010). Currency/I Wish I Knew. Issue 44. [Disponível na internet: http://cinema-scope.com/wordpress/ web-archive-2/issue-44/currency-i-wish-i-knew-jia-zhangke-china]. SONTAG, Susan (1977). On Photography. New York: Picador. ZHANG, Yingjin (2010). “Chinese cinema and transnational film studies”. In: Natasa DUROVICOVA, Natasa; NEWMAN,
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Kathleen (orgs.), World Cinemas, Transnatio-nal Perspectives. Londres: Routledge.
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I WISH I KNEW CAROLIN OVERHOFF FERREIRA Film has always been used as a place to interrogate common sense, a space for heterodox thinking. Since Silent Cinema, movies have explored and transgressed disciplinary frontiers and have challenged their methods, formulating dissent by means of their aesthetics. Inspired in French philosopher Jacques Rancière’s (2006), I have called this kind of films indisciplinary (2012, 2013). The vision of the world in these films is heterogeneous, that is, they accept contradictions and paradoxes. In order to do so, they present the co-presence of time (past and present), the identity of high and low (erudite and popular culture), see the reason of facts and the reason of fictions as analogous (the boarders between the documentary and the fiction film, for example, are inexistent). They also underline the political dimension of art without trying to deliberately activate the spectator’s position – in the sense of making him think –, since they understand reception as always cognitive and sensible, active and passive. In other words, these films interrogate binary oppositions. I Wish I Knew (2010) by Jia Zhangke, which was commissioned by the World Exposition in Shanghai in 2010 – China’s most modern and fastest growing city – interrogates, in this sense, Chinese official History through the memory of its citizens, as well as of those who were forced to migrate after the Mao Ze Dong Revolution in 1949, responsible for the creation of the Chinese Republic of China, Taiwan. The first sequence of I Wish I Knew actually makes us experience history as discontinuous and accidental by visualizing temporal heterogeneity. Fading in from black, the first shot looks over the back of a traditional imperial guardian Lion that faces rubble, a street with heavy traffic, simple two storey houses, and, in the far background, sky-scratching modern apartment blocks. In the following shot we see the bronze lion in close up, his stylized mane being polished, as is the rest of the city by means of its new constructions.
When a medium shot displays the cleaner, digital roaring sounds are introduced into the soundtrack’s romantic tune of symphonic strings, as though the symbol of past glories was in fact alive. A cut to a close-up of the Lion’s cub under the paw indicates that the director is focusing on the female that represents a biological idea of time: the cycle of life (her male counterpart holds an embroidered ball that represents the world). It echoes the hint to the future, signposted in the first shot through the modern buildings under construction, but now under the premise of nature’s ways.
FILMS | I WISH I KNEW
Figure 1: Shots 1 and 2
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Figure 2: Shots 3 and 4 of I Wish I Knew.
The subsequent shot proposes another perspective by taking us across the street. We now see the pair of guardian lions, which became popular during the Han Dynasty (206 BC – 220 AC), in front of an additional yet more modern icon of the past, the Bank of Communications. It was founded in 1908 as one of the first major national banks and chartered ‘the bank for developing the country’s industries’ during the early years of the Chinese Republic (1912-1949). A zoom lens condenses the division gates between the roads, the barriers in front of the rubble and the decorative lions into an image that visually translates the impediments to upcoming fortune that the lions as mythic protective benefits and the bank originally stood for. It is not only a comment on the heterogeneity of time, but also on the dialectic between construction and destruction that constitutes it. The sixth shot explores the vulnerability of progress to time further. The lion is now merely a fragment out of focus on the left corner, while a construction worker passes in slow motion, carrying another street barrier on his shoulder.
Figure 3: Shots 5 and 6
FILMS | I WISH I KNEW
A quick cut takes us to an over-the-shoulder shot in which the lion, prominently seated on the left corner, watching the cars floating by, equally in slow motion. While the past is always present, the prosperous future is only in the making and might not be reached as fast as economists and urban developers would like to think. Symbols and signs of prosperity have always been invoked, but the rubble from the past remains in the picture, as does the flow of time that follows its own rules. After a fade to black the Chinese and the English title can be read: ‘Legend on the Sea’ in ideograms (Hai shang chuan qi) and ‘I wish I knew’ in Latin alphabet (see RAYNS, 2010).
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Figure 4: Shots 7 and title of I Wish I Knew.
The Chinese title and its maritime and historical connotations are quite important for the comprehension of the film, since images of ships or ferries on rivers or the sea, filmed in Shanghai, Hong Kong and Taipei are used as visual metaphors for the city’s fluctuating,
transnational, identity. They are related to a second important theme that informs Jia’s indisciplinary approach, migration, which enters into collision with the official discourse on Chinese identity. Usually it is not understood as fluctuating or unfinished, as described by Yingjin Zhang (2010). Spectators can experience the metaphorical drifting of Shanghai’s and China’s identity right after the title of the film. Instead of telling us something about the city, this long sequence has one aim: to develop the sensation of floating. The objective follows a boat that is steaming from right to left in the direction of the harbour. At the same time, the camera pans from left to right. Two opposite movements result in our experience of the relativity of movement: even though the boat has moved towards the harbour, it remains almost in the same spot. Thus, the camera movement makes us feel unstable.
Figure 5: Shots following the title of I Wish I Knew.
It is not the only way to destabilize our way of looking. The following shots show a group of people on a ferry-boat. The camera dollies in on a woman on a scooter, while she keeps on gazing into the objective.
Anonymous characters are frequently depicted and they are as important as the seventeen people interviewed in the course of the movie. Five interviews take place in Shanghai, the following four in Taiwan, another three return to Shanghai only to speak about family members that left for Hong Kong, which is visited for another three interviews. All of them offer recollections of Shanghai’s and China’s history that triggered off migration to Taiwan and Hong Kong. Even though they offer several historical dates, the film clearly does not have any interest in a coherent form of presenting these events but rather meanders in the different times so as to point to how strongly they are intertwined. Even though they are introduced with establishing shots and orienting titles, it is easy to lose track of which city the interview is taking place in, since the three megalopolises are set at the water. In other words, the recomposing sense of fluctuation remains. The first interview can serve as an example. Chen Danqing, an artist who introduced a change of paradigm in Chinese painting by abandoning Socialist Realism is sitting in a designer chair in an abandoned factory. The camera circles around him and creates images of double meanings: the repression of the cultural and artistic life about which he speaks cohabits in them with the decadence of Communism of the space and the grades from behind which he speaks.
FILMS | I WISH I KNEW
Figure 6: Anonymous passengers
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FILMS | I WISH I KNEW
Figure 2: Chen Danqing, First to be interviewed
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Besides the interviewees there is a semi-fictional character, a woman dressed in White. She is probably the niece of a man who tells his mother’s story. She was an actress who performed in the propaganda film Two Stage Sisters, but was, nonetheless, later persecuted during the Cultural Revolution. By using clips from films like this one, Jia establishes an intense dialogue with other film productions, mainly Chinese. This could be described as his personal editing of the film history of his country. Other examples are Suzhou River (2000), which is, however, not credited to any filmmaker. The film had never been shown in China because Lou Ye, its author, had been banned from filmmaking after showing it at the Festival of Rotterdam without official permission. The clips are also essential for the construction of a heterogeneous worldview, even when propaganda films are being included. An interview with the daughter of a communist who was executed shortly after Shanghai’s “Liberation” in 1949 is followed by a short clip from the film To Liberate Shanghai (1959) by Wang Bing It works as a counterpoint to the solidarity that is evoked by the fate of the earlier interviewee. Shortly after follows a clip from Red Persimmon (1996) by Wang Toon that is used to point towards the suffering of all parts of the population caused by the conflict, indifferent to which ideological side they were on. And there are still excerpts that serve as homages to film directors from the other Chinas – Taiwan and Hong Kong, among them Hou Hsiou-Hsien and Won Kar Wai. These homages consist in shots that argue for a shared aesthetic affiliation. Among these affinities is also Michelangelo Antonioni’s film Chung Kuo/China from 1974. It was made following an invitation by Mao’s party but, when presented, was publicly criticized and its exhibition prohibited (see SONTAG, 1977). The citation of a now renowned classic, Spring in a Small Town (1948) by Fei Mu, demonstrates that Jia’s filiation extends itself no only geographically but also over a long space of time. I wish I knew closes with the woman in white. We have seen her several times wandering through the city, among the rubble and the modern buildings. At the end of the film we see her walking up the stairs of a catwalk that crosses a busy motorway. Then she stands still. Filmed from a low angle and in slow motion, she contemplates the construction work. The shot is reminiscent of Walter Benjamin’s (2003) famous allegory of the angle of history. But the film knows no benjaminian metaphysics. Instead, its heterogeneous realism tries to recover humanness and compassion in Chinas’ biggest and fastest growing city that does not want to learn from History. It is possible to say that Jia Zhangke does not try to construct a history of Shanghai. He uses memories in order to show that the existing versions that are being told about the city are nothing more than constructions, whose prime objective consist in forgetting the past – especially when we think of the discourse on progress of the World Exhibition – the separations and wounds that are left over from the 1949 Revolution. Thus, the filmmaker does not work in a disciplinary fashion, that is, as a documentarist. He does not look for proves of a
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thesis and neither develops a certain idea about the past. Accordingly, he is not an author in the common sense, because he wants that others speak: people and objects. Therefore his camera records landscapes, anonymous people, things, that add a non-argumentative dimension to the words and documents he registers, opening up new spaces for signification. It is worth remembering that I wish I knew is the result of an already long trajectory of the filmmaker that began with what might be called a more bazanian concept of realism. However, it shares with his earlier films that it is neither subjective nor self-reflexive. I wish I knew is indisciplinary in that it develops and edits a heterogeneous perspective – of the life of a city – which can make us feel and think that the supposed consensus of its History is, in fact, based on the construction of lies.
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2011 / 88 min / Digital RED ONE
YULU direção Jia Zhangke, Chen Shizhengn, Chen Tao, Fang Song, Tan Chui Mui, Wang Zizhao, Tie Wei produção Jia Zhangke
Filme feito sob encomenda para a campanha publicitária da marca Johnie Walker. Jia Zhangke reuniu seis jovens diretores para fazer 12 curtas-metragens sobre a juventude proeminente na China, com menos de 40 anos e vivendo a vida que desejam. Film made to the publicity campaign for Johnie Walker brand. Jia Zhang Ke met six young directors to make 12 short films on the Outstanding China Youth under 40 years old, and their way of leaving in the way they choose.
2012 / 3min / Digital RED ONE
ALONE TOGETHER (3.11 A SENSE OF HOME FILMS) direção e roteiro Jia Zhangke elenco Tian Yuan, Qin Hao produção Yang Fan, Zhao Tao produção associada Zhang Dong direção de fotografia Yu Likwai som Li Danfeng
O curta foi feito como parte do projeto 3.11 a sense of home films onde 21 diretores/artistas do mundo todo se voluntariaram a dirigir seu curta-metragem de 3 minutos e 11 segundos dedicado às vitimas do Terremoto “Tohoku” ocorrido dia 3 de março de 2011 no Japão. Os 21 filmes deram origem ao longa-metragem de 75 minutos organizado pelo festival Nara International FIlm Festival. The short-film is part of a film project dedicated to the victims of and the affected areas by the Tohoku Earthquake that occured on March 3rd, 2011.21 filmmakers/artists around the world voluntarily offered their films of 3min 11sec long which were specifically made for the project. The 21 films are put together in one film in the length of 75min, titled “3.11 A Sense of Home Films”.
2013 / 128 min / Digital ALEXA
UM TOQUE DE PECADO
TIAN ZGU DING / A TOUCH OF SIN
direção e roteiro Jia Zhangke elenco Jiang Wu, Luo Lanshan, Meng Li, Wang Baogiang, Zhang Jiayi, Zhao Tao direção de fotografia Yu Likwai música Lim Giong desenho de som Zhang Yang produção executiva Jia Zhangke, Masayuki Mori, Ren ZhongIun produtores associados Jia Bin, Kazumi Kawashiro, Liu Shiyu, Yuji Sadai co-produtores Gao Xiaojiang, Eva Lam, Qian Jianping, Zhang Dong
Quatro histórias diferentes sobre vidas violentadas na China contemporânea. Um road movie com cenas de ação. Qour different stories about assaulted lives in the contemporary China. A road movie with action scenes.
FIGURAS REBELDES SOBRE PAISAGEM EM MUTAÇÃO VICTOR GUIMARÃES
Toda a obra ficcional de Jia Zhangke é animada por um conflito essencial: o embate entre a figura humana e a paisagem. Durante a década que nos conduziu de Um artista batedor de carteiras (Xiao Wu, 1997) a Em Busca da Vida (Sanxia Haoren, 2006), Jia se empenhou em tecer variações sobre esse mesmo leitmotiv: diante de um fundo composto por uma China em transformação (um país que ainda venera seus ídolos já gastos, mas aposta crescentemente em uma ideia de progresso econômico sem limites), ele desenhou seus personagens (outsiders, homens e mulheres que se movem na contramão da história oficial). Mantendo a analogia com a pintura, é como se o trabalho da dramaturgia consistisse em destacar essas figuras – espessas, ambíguas, intensamente trágicas – de um fundo (geográfico, econômico, moral) dominado pela planificação e pela euforia desenvolvimentista, ao qual elas não podem pertencer. A construção realista dos dramas humanos assume o primeiro plano da imagem, mas mantém sempre o confronto – produtivo, vibrante – com a paisagem que se transforma vertiginosamente ao redor. Nos créditos iniciais de Um Toque de Pecado (Tian zhu ding, 2013), o refrão se anuncia logo na primeira imagem: um motoqueiro solitário está parado na beira de uma estrada, diante de um caminhão de tomates tombado. Enquanto ele contempla o cenário desolado que o circunda, adivinhamos em seu rosto (e em seu displicente e repetitivo gesto de arremessar e apanhar um tomate com uma das mãos) a densidade de uma tragédia por vir. O que ainda não sabemos é que o vermelho dos frutos espalhados pelo chão anuncia também um desvio significativo no cinema de Jia Zhangke: esse será um filme em que, pela primeira vez, a violência ocupará a tela de maneira recorrente e brutal. Ainda durante o prólogo, outro motoqueiro atravessa a estrada. O homem é abordado por três ladrões munidos de pequenos machados, e é então que a transmutação se confirma. Ao invés de baixar a cabeça, resignado, ele saca um revólver e alveja os três impiedosamente, como um legítimo herói extraído de algum thriller recente de Hong Kong. As panorâmicas de Yu Lik Wai, acostumadas a descortinar o espaço em que envolve os personagens, convertem-se em uma dança da morte digna do melhor cinema de ação. Em Um Toque de Pecado, o confronto entre as figuras e a paisagem será embalado pelos barulhos de tiro e facada e terá gosto de sangue. Desde Um artista batedor de carteiras, sabemos que Jia é um dos maiores cronistas de uma malaise contemporânea que contamina cada personagem que vemos na tela. Como os astronautas que não se adaptam à ausência de gravidade, seus heróis e heroínas padecem de uma síndrome de adaptação ao espaço – excluídos das narrativas correntes de um país que os relega à margem, eles já não conseguem pertencer a lugar algum. Aqui, há certa continuidade, mas há, sobretudo, uma transformação radical em relação a esse motivo. Como a trupe de atores em Plataforma (Zhantai, 2000), a prostituta e os jovens desempregados em Prazeres desconhecidos (Ren Xiao Yao, 2002) ou os funcionários do parque em O Mundo (Shijie, 2004), os protagonistas das quatro histórias de Um Toque de Pecado continuam a ser
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Aqui tudo parece Que era ainda construção E já é ruína Caetano Veloso
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marginais em meio à enxurrada do progresso inevitável, mas algo os distingue profundamente: pela primeira vez na obra de Jia, a vontade dos homens e mulheres se rebelará efetivamente contra a inércia; enfim, os personagens videntes (dos quais nos falava Deleuze) se tornarão actantes, intervindo violentamente sobre o curso da história. A serialização da narrativa sugere um esforço de painel, e é bem isso o que vemos. Ainda que as quatro histórias sejam muito diferentes entre si, há um princípio comum a atravessar essa estrutura em patchwork. Os personagens, vivendo em um contexto que lhes é desfavorável, decidem empreender um ato que rompe a ordem natural das coisas. Embora as motivações sejam diversas – da autodefesa da recepcionista Xiao Yu ao puro automatismo do ladrão Zhou San – e os atos também variem – do assassinato em série ao suicídio –, há uma mesma atitude a guiar os gestos violentos. Imersas em uma paisagem hostil, as figuras adquirem ímpeto para promover uma rebelião vital contra o fundo que as aprisiona. Logo no primeiro episódio, o mineiro Dahai se revolta contra a corrupção no vilarejo e se converte em justiceiro de espingarda na mão, mergulhando em uma espiral de violência gráfica que fará dele um corpo estranho em meio ao deserto de almas que o rodeia. Mas se o justiceiro, o ladrão, a amante e o jovem romântico não são mais passivos diante das atrocidades que se tornaram cotidianas é porque a paisagem também se transformou. Se o olhar de Jia Zhangke sempre reconheceu nas imagens triunfalistas da Nova China a marcha de uma civilização doente, projetando sobre o que parece construção épica a sombra trágica da ruína iminente de um povo, em Um Toque de Pecado essa cartografia crítica atinge um ápice. Filmando os episódios em diferentes cidades chinesas, Jia constrói um mosaico formado por inúmeras alegorias visuais da ruína: a ponte suntuosa deixada a meio caminho na estrada, o grupo de trabalhadores pobres reunido sob a velha estátua de Mao, o avião do empresário a compor o quadro com as crianças uniformizadas para recebê-lo, as pernas das jovens prostitutas que se insinuam no jogo de espelhos. A China de Um Toque de Pecado é uma nação inteiramente entregue à marcha do capital, contaminada por um vírus de amoralidade e desesperança. Se a briga entre Xiao Ji e Bin Bin era um acontecimento alheio à comemoração da escolha de Pequim para a sede das Olimpíadas nas ruas de Prazeres Desconhecidos (alegoria presente, mas situada em segundo plano), aqui a rejeição ao status quo é mais incisiva: Zhou San, o ladrão que caminha entre os fogos de artifício que celebram o Ano Novo junto do filho, saca a arma e dispara em direção ao mesmo céu colorido. Às diferentes notícias lidas pela amiga (“A ministra das cidades comprou 130 bolsas Louis Vuitton”; “Uma mina explodiu em Shanxi deixando dezenas de mortos”), o jovem operário Xiao Hui sugere sempre o mesmo comentário: “dane-se”. No entanto, se há uma potência e um vigor inauditos nessa atitude resoluta das personagens, Um Toque de Pecado também carrega outras camadas de significação. Em primeiro lugar, trata-se de um realista se apropriando de um gênero que não lhe pertence, o que produz um imediato efeito de desnaturalização do código: a devoção pialatiana à presença dos atores faz com que a violência segundo Jia seja inevitavelmente pontuada pelo som da respiração ofegante das vítimas e pelo titubeio mal disfarçado dos assassinos. Por outro lado, em diversos momentos, a mise-en-scène dos atos violentos exibe uma eloquente fissura em relação a todo o resto. Quando a recepcionista vivida por Zhao Tao decide se insurgir contra o cliente que a ameaça e humilha a golpes de maço de dinheiro (numa composição que retoma diretamente a sequência do trailer em Prazeres Desconhecidos), ela se converte imediatamente (como num passe de mágica) em uma exímia faquir, uma típica heroína de
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wuxia. Num átimo, o realismo de proximidade – característico de toda a obra de Jia até aqui – se transfigura em encenação francamente maneirista, que reenvia a Tsui Hark ou Johnnie To: o corpo tornado traço visual, o movimento convertido em pura coreografia. A exuberância do gesto violento restitui a dignidade ameaçada da personagem, mas, findo o ataque, voltamos a acompanhar sua deriva pela estrada, ensanguentada e já sem o glamour das artes marciais, a desviar dos caminhões como uma transeunte qualquer. Essa transfiguração abrupta da mise-en-scène (e seu posterior retorno ao realismo), paradoxalmente, parece traduzir uma dimensão trágica ainda mais espessa. É como se a única possibilidade de escape desses personagens residisse no terreno da fantasia do estilo, como se a utopia rebelde só pudesse se concretizar no plano da farsa. Quando se vê diante da tarefa de encenar a violência, Jia Zhangke só pode fazê-lo com uma pitada de distanciamento e inverossimilhança (o tigre de pano precisa rugir na banda sonora, a recepcionista precisa se transfigurar magicamente em virtuose das armas brancas). De volta ao mundo real, a coreografia dos corpos continua a ser a da repetição incessante dos homens e mulheres sem qualidades. No epílogo, a personagem de Zhao Tao (ela, a atriz que atravessara toda a obra de Jia, a mulher que guarda em cada ruga do rosto cansado a memória de um sofrimento de décadas) tenta se integrar novamente à sociedade (não por acaso, candidatando-se a uma vaga na empresa corrupta contra a qual Dahai se revoltara no início). “Por que veio trabalhar tão longe? Você está fugindo de algum problema?”, pergunta a senhora Jiao, responsável por comandar a companhia no lugar do marido assassinado. “Sim, estou”, ela responde sem dissimular. Eternos fugitivos, inveterados foras da lei, os marginais de Jia Zhangke resolveram mergulhar na violência e agora não são mais os mesmos, mas continuam a se debater contra a paisagem que os oprime. Em um mundo em que todas as forças aprisionam e empurram para a inércia, que pelo menos reste a eles a dignidade da convicção.
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REBEL FIGURES ON A MUTATING LANDSCAPE VICTOR GUIMARÃES
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Here it seems It was still construction And it is already ruins Caetano Veloso
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All of Jia Zhangke’s fictional work is moved by an essential conflict: the struggle between the human figure and the landscape. Throughout the decade that took us from Pickpocket (Xiao Wu) to In Search of Life (Sanxia Haoren), Jia engaged in weaving variations on this same leitmotiv: facing a background composed by a transforming China (a country still worshiping worn out idols, but increasingly betting on an idea of unlimited economic progress), he drew his characters (outsiders, men and women who move in the opposite direction of the official history). Keeping the painting analogy, it is as if the dramatic work consisted of separating these figures – thick, ambiguous, intensely tragic – from a background (geographic, economic, moral) dominated by the planning and developmental euphoria, to which they cannot belong. The realistic construction of human drama takes the image’s foreground, but always maintains the struggle – productive, vibrant – with the astoundingly transforming surrounding landscape. In the opening credits of A Touch of Sin (Tian zhu ding visual refrain is presented right in the first image: a lone biker stands at the side of a road, facing an overturned tomato truck. While he contemplates the desolate scenery around him, we predict in his look (and in his careless and repetitive gesture of throwing and picking up a tomato with one hand) the density of a tragedy to come. What we still don’t know is that the red color of the fruit scattered on the ground also indicates a significant detour on Jia Zhangke’s cinema: this will be a film in which, for the first time, violence is going to take the screen in a recurring and brutal manner. Still during the prologue, another biker crosses the road. The man is approached by three thieves armed with small axes, and it is then that the transmutation is confirmed. Instead of putting his head down in resignation, he draws a gun and shoots them mercilessly, like a proper hero from some recent Hong Kong thriller. Yu Lik Wai’s panoramics, accustomed to unveiling the space involving the characters, turn into a deadly dance worthy of the best action films. In A Touch of Sin, the struggle between figures and background will be accompanied by the noises of gunshot and stabbing and by the taste of blood. Since Pickpocket, we have known that Jia is one of the greatest chroniclers of a contemporary malaise, which contaminates each character on the screen. Like astronauts who don’t adapt to the absence of gravity, his heroes and heroines suffer from a syndrome of adaptation to space – excluded from the running narratives of a country which relegates them to the fringe, they don’t belong anywhere. Here, there is some continuity, but there is, above all, a radical transformation in relation to this motif. Like the troupe of actors in Platform (Zhantai), the prostitute and the unemployed youngsters in Unknown Pleasures (Ren Xiao Yao) or the park staff in The World (Shijie), the protagonists of the four stories of A Touch of Sin continue to be marginalized in the midst of the torrent of inevitable progress, although something sets them profoundly apart: for the first time in Jia’s work, the will of men and women is going to effectively rebel against inertia; at last,
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the visionary characters (of which Deleuze would speak of) are going to become active, violently intervening in the course of the story. The serialization of the narrative suggests a panel effort, and that’s exactly what we see. Although the four stories are very different from each other, there’s a common principle across this patchwork structure. The characters, living in an unfavorable context, decide to undertake an action which breaks the natural order of things. Though motivations vary – from the receptionist Xiao Yu’s self-defense to thief Zhou San’s automatism – and actions also vary – from mass murder to suicide –, there’s a common attitude guiding the violent gestures. Immerse in hostile surroundings, figures develop an urge to raise a vital rebellion against the landscape which imprisons them. Right in the first episode, miner Dahai rebels against corruption in the village and turns into a rifle toting vigilante, diving into a spiral of graphic violence which will turn him into a foreign body amidst the desert of souls that surround him. But if the vigilante, the thief, the lover and the romantic youngster are no longer passive in the face of the routine atrocities, it is because the landscape has also been transformed. Whereas Jia Zhangke’s view has always recognized the march of a sick civilization in the triumphant images of a New China, projecting on the seemingly epic constructions the tragic shadow of the imminent ruin of a people, in A Touch of Sin this critical cartography reaches its peak. Filming episodes in different Chinese cities, Jia forges a mosaic of countless visual allegories of ruin: the sumptuous bridge left unfinished on the road, the group of poor workers under Mao’s old statue, the businessman’s jet composing the frame with children in uniforms waiting to greet him, the suggesting legs of young prostitutes in a game of mirrors. The China of A Touch of Sin is a nation entirely surrendered to the march of capitalism, contaminated by a virus of amorality and hopelessness. Whereas the struggle between Xiao Ji and Bin Bin was disconnected from the celebration of Beijing being elected to host the Olympic games in the streets of Unknown Pleasures, (allegory present, but placed in the background), here the rejection of the status quo is more incisive: Zhou San, the thief who walks among fireworks that celebrate the New Year with his son, draws his gun and fires towards the same colorful sky. To the different headlines read by a friend (“The minister of the city bought almost 130 bags of Louis Vitton”; “ A mine exploded in Shanxi. Dozens killed”), the young factory worker Xiao Hui always responds with the same comment: “Fuck that!”. However, while there’s a powerful and unique strength in the determination of the characters’ attitude, A Touch of Sin also presents other layers of meaning. First of all, it’s a realist filmmaker claiming a genre that does not belong to him, which produces an immediate effect of denaturalization of code: the pialatian devotion to the presence of the actors makes violence, according to Jia, inevitably marked by the sound of the victim’s heavy breathing and the murders’ poorly disguised faltering. On the other hand, on several occasions, the mise-en-scène of violent acts shows an eloquent split with everything else. When the receptionist played by Zhao Tao decides to take a stand against the client who threatens and humiliates her with wads of money (in a composition which directly revisits the trailer sequence in Unknown Pleasures), she immediately turns (as if by magic) into a skilled fakir, a typical wuxia heroine. In an instant, realism of proximity – characteristic of Jia’s work so far – turns into blatantly mannerist acting, which resembles Tsui Hark or Johnnie To: the body turned into visual trace, movement turned into pure choreography. The exuberance of the violent act restores the character’s threatened dignity, although
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when the attack ends we follow her wandering down the road, soaked in blood and devoid of the glamour of martial arts, avoiding trucks like any passer-by. This abrupt shift of mise-en-scène (and subsequent return to realism) seems to paradoxically translate an even thicker tragic dimension. It is as if the only possibility of escape of this character lay in the fantasy of style, as if the rebellious utopia could only materialize as farse. When faced with the task of enacting violence, Jia Zhangke can only accomplish it with some distancing and unlikelihood (the cloth tiger has to roar in the sound band, the receptionist needs to magically turn into a virtuoso of cutting weapons). Back to the real world, the choreography of bodies remains the incessant repetition of ordinary men and women. In the epilogue, Zhao Tao’s character (she, the actress that had participated in all Jia’s work, the woman who holds in every wrinkle of her tired body the memory of a decade old suffering) tries to reintegrate back into society (not by chance, applying for a position in the corrupt company against which Dahai had rebelled at the beginning). “Why have you come so far for work? Are you running away from some problem?” asks Mrs. Jiao, in charge of running the company in the place of her murdered husband. “Yes, I am”, she candidly answers. Eternal fugitives, inveterate outlaws, the outcasts of Jia Zhangke decided to embrace violence and are no longer the same, but continue to fight against the landscape that oppresses them. In a world in which all the forces imprison and push to inertia, at least let them keep the dignity of conviction
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2013 / 2min / Digital ALEXA
VENEZIA 70 FUTURE RELOADED direção Jia Zhangke
Curta feito para a celebração de 70 anos do Festival de Veneza Short film for 70th Venice Int’l Film Festival
ENTREVISTA / INTERVIEW
ENTREVISTA COM JIA ZHANGKE por Jo Serfaty e Mariana Kaufman. *Em junho de 2014 foi enviada por email para Jia Zhangke uma entrevista com 26 perguntas. Jia respondeu várias delas juntando, por vezes, mais de uma pergunta em uma mesma resposta. Reorganizamos as perguntas e respostas resultando na entrevista a seguir.
Em 1997, depois de dirigir Volta pra casa, você publicou um texto dizendo que “arte virou mercado, os artistas já não mais se perguntam sobre a questão da arte e por isso prefiro permanecer um cineasta amador”. Você ainda se sente assim depois de quase vinte anos e mais de dez longas-metragens, sendo o último Um toque de pecado? Você ainda se sente um cineasta amador? Você acha que a ideia de cineasta amador ou independente hoje, na China, é muito diferente do que era há vinte anos? O que significa ser independente ou amador hoje? JIA - Preciso esclarecer que, em 1997, a mídia chinesa simplesmente não podia usar a expressão “cineasta independente” no jornal. Eu podia dizê-la, mas era proibido escrevê-la. É por isso que ficou “cineasta amador”. A mídia sabia o que eu queria dizer. Eu tinha o sentimento de que a indústria cinematográfica chinesa se tornava muito comercial rapidamente e é por isso que fiz esse comentário, na época.
ENTREVISTA
Ao longo de sua trajetória, está claro, tanto em seus filmes, quanto nas suas falas e escritos, sua relação de admiração por alguns cineastas, tanto os europeus Robert Bresson e Michelangelo Antonioni, quanto o japonês Yasujirô Ozu e os chineses Tsai Ming Liang e Hou Hsiao-hsien. Fale um pouco sobre a influência deles na sua obra.
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JIA - Bresson e Antonioni me influenciam de maneiras distintas. Antes de me tornar um diretor de cinema, li uma entrevista com Antonioni. Ele dizia que, sempre que rodava um filme, ao entrar em um espaço, ele interagia com o espaço por alguns minutos. Como eu ainda não era um cineasta, eu não pude entender as palavras de Antonioni naquele momento, apenas guardei-as em minha mente. Ao me tornar um diretor, foi com os filmes e as palavras de Antonioni que me dei conta da singularidade de cada espaço. Os espaços são exatamente como as pessoas: cada um tem personalidade e características únicas. Uma das tarefas mais importantes para os realizadores é saber como de lidar com os espaços. Os espaços contêm marcas das atividades que as pessoas exercem neles, eles fornecem muitas indicações sobre como as pessoas vivem e imaginam seu destino. Pode-se dizer que filmes de Antonioni como A Aventura (L’Avventura, 1960) e O Deserto Vermelho (Il Deserto Roso, 1964) me ajudaram a perceber a essência do espaço. Já os filmes de Bresson me atraem por seus efeitos temporais. Por exemplo, em Um condenado à morte escapou (Un condamné à mort s’est échappé ou Le vent souffle où il veut, 1956), a maneira como o prisioneiro balança a colher me levou a pensar que ela seria uma ferramenta para a fuga. No decorrer do filme, no entanto, a colher não ajuda em nada. Isso me fez prestar atenção na essência do tempo. Em nossa vida, muitas coisas nunca aconte-
cem e efetivamente é impossível narrativizar o tempo inútil. A vida é preenchida por tempos inúteis. Bresson me inspirou sobre o tempo, sobre a relação entre as pessoas e o tempo. Em 1989, A cidade do desencanto (Bei qing cheng shi), de Hou Hsiao-hsien, ganhou o Leão de Ouro no Festival de Veneza. Só pude vê-lo em 1993, quando consegui entrar na Academia de Cinema de Pequim. Dos filmes premiados, é meu favorito. Fiquei muito tocado por sua poesia e por seus efeitos temporais. O conteúdo do filme me impressionou mais do que o fato de um chinês ganhar o Leão de Ouro. Em 1947, houve em Taiwan uma grande rebelião contra o partido ditatorial Kuomintang (KMT). Num episódio conhecido como “Incidente 228”, o KMT enviou a polícia e o exército para repreender os manifestantes, provocando a morte de cerca de 30 mil pessoas. O cineasta taiwanês Hou Hsiao-hsien descreveu esses acontecimentos da perspectiva da família Lin. No filme, sob a poeira, os Lin tiram uma fotografia com a família toda reunida e mandam um de seus garotos para o exército; debaixo de chuva, numa imensidão vazia, uma família realiza um funeral e homens vestidos de preto seguram a fotografia de seu irmão morto; em uma estação de trem desconhecida, um homem e uma mulher seguram uma criança enquanto esperam pelo trem, numa plataforma, com poucas pessoas em volta. O sentimento sobre o qual menos se fala com relação a esse filme é o fato de que, quando o KMT recuou para Taiwan, as pessoas foram obrigadas a falar mandarim, inclusive os funcionários de um hospital construído pelos japoneses. Médicos idosos foram forçados a falar na nova língua ‘dor, dor de estômago’. A parte mais triste é que, quando o Incidente 228 aconteceu, os taiwaneses locais quiseram expulsar os imigrantes e a capacidade de falar a língua taiwanesa era um critério para distinguir as identidades. No filme, Tony Leung Chiu -Wai interpreta um personagem mudo. Quando o filme de Hou Hsiao-hsien estreou, os incidentes políticos na China continental estavam encerrados1, mas Taiwan havia colocado a verdade do Incidente 228 na tela. Grandes filmes são capazes de prever. Em 1987, Taiwan aboliu a lei marcial. Em 1988, Chiang Ghing-kuo morreu. Em 1989, A cidade do desencanto estreou. No que se refere à precisão na maneira de se relacionar com o tempo a que pertence, que outro filme pode ser comparado com A cidade do desencanto?
JIA - Em Um artista batedor de carteiras, comecei por aprender uma lição. Ainda que estejamos enfrentando os resultados de mudanças na sociedade como um todo, as expressões emocionais vêm de indivíduos, e não da ideologia ou dos pensamentos do governo. É por isso que insisto em abordar os tópicos que escolho a partir de uma condição “personalizada”. Meus filmes seguem basicamente a jornada da vida natural. Claro que Plataforma é uma exceção. Ele pertence ao passado. De Um artista batedor de carteiras até Prazeres desconhecidos, até O mundo (Shijie), até agora, sinto que meus filmes seguem na realidade um
ENTREVISTA
Seus três primeiros longas-metragens, Um artista batedor de carteiras (Xiao Wu), Plataforma (Zhantai) e Prazeres desconhecidos (Ren xiao yao), fazem parte da trilogia que você chamou de “trilogia da cidade natal”. Assistindo aos filmes, percebemos que eles falam de um constante retorno à casa. Essa casa não é estática, mas está em constante movimento, simultaneamente às transformações da China em cada período histórico retratado. Por que esse desejo de retornar? Como esse movimento se apresenta em cada um dos filmes?
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Embora Jia não as tenha mencionado diretamente, é provável que aqui ele faça uma referência aos protestos de estudantes chineses, sufocadas pelo exército no que ficou conhecido como Massacre na Praça da Paz Celestial, em Pequim, em 4 de junho de 1989 (NDT).
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caminho linear. O público pode saber o que essas pessoas têm feito ao longo dos últimos dez anos. Em Plataforma, Sanming era um minerador muito jovem. Em Em busca da vida (Sanxia haoren), ele se torna o personagem principal, procurando por sua mulher. Em Um toque de pecado, ele volta a fazer o papel de um minerador que quer voltar para Fengjie. Há conexões interessantes entre meus filmes. Uma vez eu disse que só é possível chegar a sua cidade natal depois de deixá-la. Quando eu era pequeno, a sociedade chinesa era muito fechada. Não havia como se movimentar livremente. Há muitas restrições para os viajantes. É preciso obter uma permissão do governo antes de viajar. Mudar de cidade é ainda mais difícil. Pode-se dizer que, com esse fechamento, muita gente na China tem curiosidade em conhecer lugares distantes, quer viajar — e eu me incluo nisso. No final dos anos 70 e no início dos 80, têm início as reformas econômicas. O povo chinês passa então a poder se movimentar com mais liberdade. A urbanização começa e muitas pessoas que viviam em áreas rurais se mudam para a costa leste e sul, em busca de novas possibilidades. A busca por oportunidades de vida fez com que a “mudança” passasse a ser a salvação para muitas pessoas. A cada ano, encontramos um monte de gente desse tipo em trens, ônibus e embarcações. Em meus filmes, a maioria dos personagens são pessoas que deixaram sua casa em busca de uma vida. Ao mesmo tempo, o núcleo da sociedade chinesa é baseado na família. As pessoas dependem de seu relacionamento com a família para viver e se desenvolver. As famílias ainda ajudam as pessoas. É por isso que, a cada Ano Novo Chinês, todo mundo volta para casa, não importa quão longe ela esteja. Voltar para a cidade natal é um ritual importante. Ir embora também. Meus filmes refletem isso.
ENTREVISTA
Como um cineasta chinês que observa as transformações do tempo presente, em que medida você considera importante voltar ao passado para entender a China contemporânea? Como você vê e trabalha a relação, o choque e contraste entre a tradição chinesa e a cultura pop industrial em seus filmes? Tomemos o exemplo dos Jardins Chineses, que fazem parte de uma tradição muito antiga na China e que, em dado momento da história, durante a Dinastia Ming, passaram a ser vistos como obras de arte. A construção, a ocupação e o deslocamento no espaço em seus filmes (como por exemplo O mundo) refletem esses jardins diretamente?
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JIA - Para falar sobre a China tradicional e a China industrial contemporânea, vou recorrer ao exemplo das roupas. No desenvolvimento de Um toque de pecado, bem no início do processo, coloquei o modo de se vestir em consideração. Quando o roteiro ficou pronto, recolhi algumas referências. Quando decidi filmar, deixando a cidade de Baisha, em Chongqing, falei para Liu Weixin, o diretor de arte de Forgetting to Know You (Mo sheng, 2013)2: “vamos nos preparar para o próximo filme”. Dei então a ele as linhas gerais da história. Liu Weixin é um de meus diretores de arte favoritos. Ele fez parte da equipe de Summer Palace (Yihe yuan, 2006) e de Purple Butterfly (Zi hudie, 2003), ambos de Lou Ye. Em meus filmes até então, pode-se dizer que o design de arte era detalhado e realista. Já em Um toque de pecado, o design é forte. Hu Dahai parece com Lu Zhishen, um personagem muito conhecido de Margem de Água. Fizemos um brainstorming e decidimos colocar uma jaqueta militar nele. Com isso, nós visávamos seu senso de exército, sua habilidade para executar ações. No final, substituímos a jaqueta convencional, de algodão, por uma de lã. Pela maneira como 2
Filme realizado por Ling Quan e produzido por Jia Zhangke.
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ENTREVISTA
ele se veste, é possível saber que ele teve a sorte de integrar o grupo de decisão do vilarejo, mas que não foi sempre assim. Embora tenha uma relação especial com o prefeito do vilarejo, ele é como um tigre doente. Quando começa sua ação, no entanto, ele é extremamente militar. É por isso que colocamos nele uma calça azul da polícia, a jaqueta e um par de botas militares. Quando discutíamos suas roupas com Jiang Wu, ele nos contou que deixaria a barba crescer para compor o personagem. Sentimos que era uma boa ideia. Não tínhamos pensado nisso antes. Quando o encontramos de novo, Jiang Wu perguntou: “O que vocês acham da minha barba grisalha?”. Achamos fantástico. Eu diria que Jiang Wu é um ator que entende de verdade os roteiros. Ele tem o sentido do roteiro. Por meio do roteiro, troquei muita coisa com Jiang Wu. Ele é um ator capaz de enriquecer sua imaginação com base em minha composição. Nesse diálogo profundo, senti que eu criava algo novo, e não apenas trabalhava com uma estrela. Sua concentração vinha do fundo do coração. No processo de produzir o filme, a concentração de atores como Jiang Wu e Zhang Jiayi me ajudou muito. Eu diria os quatro atores e atrizes principais de Um toque de pecado têm um desempenho de fato muito bom, e que eles costumam ser negligenciados. Eles fizeram um ótimo trabalho no filme. Wang Baoqiang se vestiu como Wu Song na ópera chinesa3. Ele estava todo de preto e nós acrescentamos um colete. Tentamos encontrar um chapéu representando Wu Song e, no final, usamos um boné do Chicago Bulls. Quando ele veste o terno, temos uma imagem de Wu Song. É possível sentir nele o cheiro das ruas. Com relação a Zhao Tao, é claro que ela foi construída como uma heroína feminina. Sua personagem tinha um rabo de cavalo heróico, ela era a única a portar uma arma branca. Diferentemente de um tiro de revólver, que é um sistema em si, a arma branca é uma continuidade do corpo. Quando seu rabo de cavalo balançava, era possível imaginar que uma heroína dos tempos antigo se movimentaria daquela maneira. Sua aparência precisou ser tão singular quanto sua movimentação. Por isso, colocamos-lhe uma peruca. Liu Weixin disse que devíamos vesti-la com uma camisa branca. Na ópera chinesa, camisas brancas têm a função de dar a base dos personagens. Na ópera chinesa, wusheng4 são caracterizados com a cor verde, sobre uma base branca. Usamos uma camisa com colarinho alto, calça jeans, colete e um par de botas pesadas. A calça jeans vermelha que ela usa simula Lin Chong em Margem da Água. Na ópera chinesa, pelo que me lembro, calças vermelhas representam os prisioneiros. É por isso que Zhao Tao aparece sempre de calça vermelha. Fiquei muito emocionado no momento em que os atores experimentaram os figurinos. Senti nela um personagem antigo, embora cada peça de seu figurino fosse contemporânea. Tenho tecido relações entre o mundo antigo e o moderno. Para Luo Lanshan, foi uma simples camisa de trabalho azul, desabotoada no peito. Senti que essa era a imagem dos personagens masculinos nos filmes de Chang Cheh. Era mais uma conexão entre pessoas antigas e modernas. Fiz o mesmo tipo de conexões com relação aos espaços. Nas cenas de Jiang Wu, construções centenárias, como templos e muralhas, funcionavam como palcos. Pessoas modernas interpretam histórias de pessoas antigas. Nas cenas de Wang Baoqiang, ele atravessa montanhas e rios. Nas cenas de Zhao Tao, quando ela corre nas montanhas à noite, e quando Luo Lanshan caminha nos fundos de Guangdong, penso que, na verdade, eu estava inconscientemente procurando pela relação entre o antigo e o moderno. Descobri depois a razão dessa busca: é que o destino das pessoas se repete por centenas de anos. Essa relação importa muito para mim. Não tenho certeza de que o público percebe essa relação da mesma maneira. Para mim, é um trabalho difícil Wu Song é um dos personagens de Margem da água.
Wusheng é uma categoria de personagens que, na ópera chinesa, são bons de luta. wusheng is a category of characters in Chinese Opera. Wusheng are good at fighting.
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construir a relação entre o mundo antigo e o moderno. Devo dizer que todos nós convivemos com as memórias dos povos antigos. Fiz um discurso depois que Um toque de pecado foi exibido no Festival Internacional de Cinema de Busan e terminei minha fala com as seguintes palavras: “Meu trabalho é cada vez mais parecido com o dos antigos. Como Shi Naian, que escrevia romances. Como os autores das óperas chinesas. Como contadores de histórias de que alguns livros dão conta. Um filme não é apenas uma mídia contemporânea. Nós temos os mesmos deveres: transmitimos nossas experiências das gerações mais velhas para as gerações mais novas.” No final, eu disse: “Me considero como um contador de histórias. Conto as histórias da República Popular da China. Embora Shi Naian conte as histórias da dinastia Song e eu conte as histórias da República Popular da China, a verdade é que fazemos a mesma coisa.” Quando confirmamos os figurinos e cenas, tivemos conversas muito boas com atores e atrizes. Encontrei-me com Jiang Wu no lobby de um hotel. Ele entrou na Academia de Cinema de Pequim em 1990, onde eu entrei em 1993. Não temos certeza se nos conhecíamos na faculdade ou não. Quando nos encontramos pela primeira vez, ele perguntou qual seria seu personagem, e eu respondi: “Você vai interpretar um Lu Zhishen contemporâneo”. Eu contei a história em linhas gerais e dei-lhe o roteiro. Ele me disse que responderia assim que terminasse de ler e, depois de ler, ele aceitou. Na segunda vez que nos reunimos, conversamos sobre as locações e sobre outras coisas. Seu pagamento deveria evidentemente ser abordado naquela ocasião. Propus-lhe um valor muito vergonhoso. Lembro que ele sorriu e disse: “Não se sinta embaraçado, negocie”. Depois disso, eu conversei com Zhang Jiayi, que me disse: “Jia, não precisamos falar de dinheiro. Eu te apoio.” Sinto que há amizade verdadeira nessa indústria.
ENTREVISTA
A trilha sonora é um elemento sempre muito presente em todos os seus filmes (ficção ou documentário, curta ou longa), e as músicas têm claramente grande importância na construção narrativa do filme com a presença forte da música popular chinesa, assim como uma influência clara da música pop mundial. Como você pensa a trilha nos seus filmes? E quando ela aparece? Ainda no roteiro? Na montagem? Como é o processo de criação dessa trilha, quase sempre em parceria com o músico taiwanês Lim Giong?
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JIA - Canções pop fazem parte de minhas memórias mais queridas. Em minha vida, experimentei o processo de transformação da cultura pop, que antes não era nada e agora está bem estabelecida. A cultura pop abastece nossos espíritos. É algo muito importante, especialmente para a geração seguinte. É um mundo espiritual. Gosto bastante da cultura pop de Taiwan e de Hong Kong, porque é possível sentir de fato que há algo perdido ali. Quando ouço canções de René Liu, posso sentir isso. A cultura pop de hoje em dia é bem diferente. Costumo dizer, de brincadeira, que “a música pop feita depois de René Liu e Sally Yeh tem menos paixão”. Cantores e letristas sussurram em suas canções hoje em dia com menos paixão. Gosto dos anos 80 e 90. Naquela época, elementos individuais se sobressaíam, e isso é algo que considero importante nas composições. Vamos falar de Lim Giong. Trabalhamos juntos há dez anos. Ele é muito bom em decifrar filmes. Sua música é individualizada e ele sabe muito bem controlar a atmosfera. Lim Giong me ajudou a tornar meu cinema mais individualizado. Isso é muito importante porque, no passado, os filmes chineses careciam de características individuais, eles eram vazios por dentro.
As pessoas realmente expressam seus sentimentos através da música. Eu experimentei isso no karaokê. Por que o karaokê é tão popular na cultura chinesa? Eu diria que os chineses eram bastante incapazes de expressar seus sentimentos. Desde sua invenção, o karaokê se tornou uma maneira fundamental de expressar emoções íntimas que, embora fossem avassaladoras, não costumavam extravasar. Já me aconteceu de observar um homem de meia idade cantando em um karaokê. Não havia salas separadas e as pessoas faziam fila, esperando por suas canções. Esperávamos que um homem cedesse seu lugar mas ele nunca parava de cantar de um jeito horrível. No início eu achava insuportável, mas no final ele tinha conquistado minha compaixão. Ninguém se importava com as expressões dele. Ele de fato cantava mal, mas cantava com afinco. O importante era a maneira como ele se expressava. Em meus filmes, há personagens que são muito ruins na maneira de se expressar. A música e o design sonoro os ajudam nisso. Xiao Wu, por exemplo, é uma pessoa silenciosa. Na cena do isqueiro, Für Elise ajuda-o a se expressar. Ele pode ser tímido em público, pode ser alguém que só canta debaixo do chuveiro. Em Em busca da vida, dois personagens estavam um contra o outro no início, e é através da música do celular que eles se comunicam e começam a se entender5. O desenho de som também tem uma força muito grande; o ruído da cidade movimentando a narrativa. Como você pensa o som e como funciona a construção disso nos filmes em colaboração com Zhang Yang?
Percebemos que nos seus documentários há uma tentativa de controle maior sobre os personagens em quadro, colocando-os em primeiro plano frontal, com luz artificial mergulhando nas histórias e memórias pessoais de cada um. Já nos filmes de ficção, é no quadro e na cena, muitas vezes no improviso dos atores e nas locações à luz do dia que você deixa aparecer o risco do real e do inesperado. Em uma entrevista certa vez, você falou que busca na ficção a objetividade, e no documentário justamente o lado subjetivo dos personagens. Você trabalha como se a ficção fosse o documentário e documentário fosse a ficção? Como funciona o processo de criação de seus documentários? Em que momento os elementos ficcionais são agregados?
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Jia se refere à cena em que Sanming e Pequena Flor tornam-se amigos.
ENTREVISTA
JIA - A ambiência sonora é parte da vida dos personagens. De fato, eu modifico muita coisa na edição de som. O desenho de som Zhang Yang é composto de muito som ambiente e verdadeiro. Nós ampliamos a força do som. Em Em busca da vida, Zhang Yang e eu gravamos o som da área das Três Gargantas. É rico, é como uma sinfonia. Você pode ouvir o som dos barcos no rio, o som das casas sendo destruídas, o som das buzinas dos barcos. Quando produzo filmes, conto muito com a construção do som. O mundo sonoro amplifica a maneira como percebemos o espaço, as linhas gerais do roteiro. Experimentamos todo tipo de boa ambiência e deixamos o Lim Giong colocar o som dentro de sua composição musical. Sempre que o Zhang Yang faz a mixagem sonora, o Lim Giong participa diretamente. Se a mixagem é em Xangai, o Lian Giong vai até lá. Ele fez algumas composições musicais durante a mixagem. Ele diz: “Pode deixar que vou resolver essa parte”. Daí vai para o hotel e compõe. Quando volta, nós discutimos e mudamos. Ele é responsável por uma grande parte desse processo.
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JIA - Documentários factuais lidam com evidências. Os elementos ficcionais estão ligados à necessidade de síntese. Os documentários desenvolveram a minha vida. Para Memórias de Xangai (Hai shang chuan qi), entrevistei dúzias de mulheres de Xangai. Como as histórias que elas contaram eram descontínuas, senti que eu precisava recolher esses pedaços de informação e depois condensá-los em um personagem específico. Escrevi os personagens de Memórias de Xangai do mesmo jeito que escrevo os personagens de um filme de ficção. Naquele momento, não parecia existir diferença ou contradição entre os elementos ficcionais e o documentário factual. Eu podia colocá-los juntos de várias maneiras. Foi também nesse momento que eu cruzei a fronteira entre o documentário e a ficção. Gosto bastante das partes experimentais de 24 City (Er shi si cheng ji), que é um misto de documentário e performance. Coloquei atrizes profissionais, como Joan Chen e Lu Lìpíng, em meio a dúzias de trabalhadoras de Xangai, nas fábricas de Chengdu. Assim, fiz com que o filme fosse “desclassificado” tanto no campo do documentário quanto no dos filmes de ficção. Nesse processo, pude investigar a qualidade intrínseca das imagens. No filme, os espaços são tão importantes quanto as histórias. Para isso, foi preciso construir narrações e imagens. Por um lado, nós imaginamos como era a vida daqueles personagens no passado. Por outro, vemos a maneira como eles vivem hoje em dia. Enquanto os narradores contavam histórias sobre seu passado, eu tinha a obrigação de transmitir uma mensagem sobre como eles vivem no presente. É uma necessidade de narração e de expressão emocional. Foi assim que eu apresentei as experiências deles, a trajetória que eles viveram: por meio de palavras, por meio do que a imagem não pode captar. Imagens são diretas e intuitivas. As palavras são relativamente abstratas, mas necessárias enquanto ferramentas para expressar os sentimentos de quem fala. Às vezes, as palavras não podem ser substituídas por imagens.
ENTREVISTA
Você disse, muitas vezes, que prefere trabalhar com não atores, amadores, pois eles não têm um corpo moldado que já vem com gestual pronto. Como você pensa o processo de direção do ator e a construção dos personagens nos filmes? Considerando que você usa os mesmos atores em vários filmes, principalmente Zhao Tao, isso muda com o tempo? Como esse processo acontece com os personagens dos documentários? A maneira como você lida com eles é semelhante da forma como trabalha com não atores, que representam seus próprios papéis em seus filmes de ficção?
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JIA - Em meus filmes, a proporção entre documentários e ficções é de cerca de metade e metade. Se incluirmos os curtas, talvez a proporção dos documentários seja maior. Sou viciado no estatuto da pausa de alguém. É por isso que eu às vezes insiro características de documentários em minhas ficções. Não acredito que haja uma fronteira clara entre documentário e ficção, pois tudo o que é imaginário se enraíza na realidade. Continuo tentando colocar o documentário na ficção e vice-versa. Minha tentativa de borrar a fronteira entre documentário e ficção resulta de minhas experiências da sociedade chinesa, um conjunto muito complexo e em rápida transformação. Tanto em documentários factuais quanto em criações ficcionais, preciso de técnica para mostrar a complexidade da sociedade chinesa. Os documentários, com o poder da evidência, apresentam histórias e figuras verdadeiras de maneira direta. Já a parte ficcional traz regras e fatos implícitos, algo que a câmera não poderia captar diretamente. Eu rodei Em
busca da vida durante as gravações de Dong. Ambos são híbridos de ficção e documentário, da mesma maneira que 24 City e Memórias de Xangai. Em uma entrevista recente, você fala que em Um toque de pecado, os atores tinham liberdade para criar os diálogos de algumas cenas e, em outras situações, nas cenas mais dramáticas, você precisava que eles decorassem os diálogos exatamente como tinha escrito. Como se dá o processo de criação do filme — escrita do roteiro, ensaios, filmagem, edição —, e como os atores se relacionam com esse processo? JIA - Em 2010, eu terminei Memórias de Xangai e iniciei a preparação de Zai Qing Chao6. Olhei para trás para observar todos os filmes chineses de Wuxia7 que eu já tinha visto antes. Esse processo foi como um rearranjo das minhas memórias de filmes antigos, a que eu assistira quando tinha 13 anos. Eu não queria produzir um filme de Wuxia aleatoriamente. Elementos do cinema de gênero não são aleatórios, eles se baseiam em pesquisas. Na preparação de Zai Qing Chao, me dei conta de que tinha vivido no mundo do Wuxia por bastante tempo e por isso me permiti ver filmes de King Hu, Chang Cheh, Chor Yuen, Cheng Kang e Kuo Nan-Hong. Para mim, uma pista importante é entender como o Wuxia evoluiu para o kung-fu e como o kung-fu foi para a comédia de artes marciais. Depois do período da comédia de artes marciais, Tsui Hark iniciou uma nova era de Wuxia. Em minha vida, é necessário ter esse contexto claro, já que o mundo do cinema é fundamental para mim. Outra pista fundamental está no mundo real, na internet. Eu costumava entender a internet como algo simples: checava meus e-mails e lia notícias. Não conseguia perceber ou aceitar a relevância que as mídias sociais ganharam. Por que alguém prestaria mais atenção na tela do que no mundo real? Comecei a entender isso depois da entrevista com Pan Shiyi8 para o projeto Yulu9, em que ele me alertou, dizendo que rejeitar o Weibo10 significa se alienar da vida contemporânea. No instante em que o que não era dito pela mídia tradicional, o que costumava ser censurado, começou a afluir para o Weibo, foi possível perceber que a China é ainda mais surpreendente do que parecia. Acredito que os usuários do Weibo escrevam a verdade, não apenas por causa da distância espacial e temporal, ou por causa da censura sobre a mídia tradicional. É também interessante notar que há perspectivas. Quando as pessoas lutam através do Weibo, tem-se uma ideia de como a sociedade está desordenada. Vivemos em meio a inúmeras reviravoltas no tempo. É verdade que incidentes inesperados são por definição mais surpreendentes, como o incidente com Deng Yujiao11 ou os suicídios 6
Zai Qing Chao é o título provisório do filme que Jia Zhang-ke prepara desde antes de iniciar Um toque de pecado. Primeira cooperação de Jia com Johnnie To, também é um filme de Wuxia e kungfu. As filmagens ainda não começaram. 7
Wuxia, termo que numa tradução literal quer dizer “herói marcial”, é o nome de um vasto e antigo gênero da ficção chinesa, que trata das aventuras de artistas marciais. Aparece atualmente em obras da literatura, na ópera, no cinema, na televisão e nos videogames. Na sociedade chinesa antiga, os heróis do Wuxia eram oriundos de classes sociais inferiores e costumavam seguir um rígido código de honra, que incluía a luta por justiça e o combate ao opressor. 8
Pan Shiyi é um grande empresário chinês. Atualmente ele preside o grupo Soho China, da área de empreendimentos imobiliários e famoso por criar construções icônicas e emblemáticas na paisagem de Pequim e Xangai. Lançado em Xangai em 2011, o projeto Yulu foi uma campanha publicitária desenvolvida pela Ogilvy para a marca de uísque Johnnie Walker que usava uma abordagem de documentário para contar as histórias de doze pioneiros chineses, entre empresários e artistas. Jia Zhangke dirigiu os doze filmes da campanha e Pan Shiyi era um dos doze personagens entrevistados. 10 11
Weibo é um serviço de microblogs muito popular na China, parecido com o Twitter.
Em 2009, Deng Yujiao, uma pedicura de 21 anos que trabalhava em um hotel em Badong, na província de Hubei, tentando frear o assédio de um empresário local que fora até o hotel em busca de serviços sexuais, acabou por feri-lo mortalmente. A personagem interpretada por Zhao Tao em Um toque de pecado foi diretamente inspirada na história de Deng Yujiao. 12
Em 2010, mais de dez funcionários da Foxconn International Holdings, fabricante chinesa dos produtos de marcas como Apple e Hewlett-Packard, cometeram suicídio. Segundo um relatório produzido conjuntamente por vinte universidades de Hong Kong, Taiwan e da China continental, a empresa era um “campo de trabalhos forçados” em que as leis trabalhistas eram amplamente desrespeitadas. (Ver http://www.scmp.com/article/727143/foxconn-factories-are-labour-camps-report).
ENTREVISTA
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na Foxconn12. Todos esses tipos de incidentes violentos que respondem a situações ruins funcionam para mim como pistas, eles me ajudam a conectar dois mundos: o da realidade atual e o antigo mundo do Wuxia. Por que eu deveria construir um filme de Wuxia ambientado na dinastia Qing? As coisas ainda acontecem como nas histórias de Margem da Água13, como nos filmes de Chang Cheh e de King Hu. O povo reage à repressão. Forças se agregam para lutar contra outras forças, até um desfecho trágico. Amo o Wuxia por sua essência trágica. A maioria dos Wuxia termina com uma triste destruição. Luta-se até que um partido caia. Queria fazer um filme descrevendo tais incidentes em cenários contemporâneos. Na verdade, durante os últimos anos, é isso que tenho buscado, em minha vida e nos meus pensamentos. Agora vamos falar de Memórias de Xangai, que trata de Xangai, dos anos 30 até hoje. Há uma enorme violência por trás da sociedade ali. A instabilidade da sociedade fez com que muita gente se separasse. A Guerra Sino-Japonesa14 e o incidente de 194915 deixou muita gente desabrigada. Especialmente 1949. De uma hora para outra, os xangaienses que viviam em Hong Kong e Taiwan ficaram impedidos de voltar para casa. Era uma violência drástica e inevitável, causada por disputas políticas e guerras nacionais. A maioria dos chineses pensavam “Bem, se não podemos voltar, vamos encontrar uma garota para casar, trabalhar, ter filhos e ficar”. Eu diria que essas pessoas viviam sob uma força esmagadora. É como quando você entorta alguns galhos: eles nunca mais se endireitam; só lhes restará viver curvados até que a morte chegue. Minhas expressões tinham sido implícitas e indiretas até eu realizar Um toque de pecado. Naquele momento, meus pensamentos mudaram. Me recusei a fazer outro filme implícito. A realidade me fez produzir um filme inequívoco. Como os personagens, o filme pode ser aniquilado. Eu o produzi sem subentendidos, sem hesitação — eu precisava desse tipo de estética. A violência na sociedade chinesa fez aumentar a violência em meu coração. Isso não significa que eu tenha esfaqueado alguém. Eu apenas filmei como as pessoas se esfaqueiam umas as outras. Eu queria entrar no mundo delas, estar presente no momento em que não há mais controle. Minha câmera também deixou de ter controle. Eu precisava entender aquelas pessoas da perspectiva delas. Não que eu concorde com os crimes que elas cometeram ou com a violência. É o contrário: discordo disso. Só me adotei a perspectiva delas porque tentava entendê-las. Dessa maneira, fiz algo que é considerado violento, fiz esse filme. No que se refere à montagem, eu terminei a montagem logo depois de concluir a filmagem. Sempre monto rapidamente, porque estou sempre envolvido na montagem. No momento em que faço as storyboards, já penso na montagem.
ENTREVISTA
Na China, a representação do animal tem forte teor simbólico. Em Um toque de pecado, a figura do animal aparece com grande frequência. Por que essa forte incidência dos animais no filme? Você quis relacionar essas figuras em contexto sociopolítico daqueles personagens? De que forma?
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Margem da Água (Shui Hu Zhuan) é o título de um romance atribuído a Shi Naian (circa 1296-1372), considerado um dos quatro grandes romances da literatura chinesa clássica. 14
Guerra travada entre 1937 e 1945 entre a China e o Japão, é considerada um desdobramento da Primeira Guerra Sino-Japonesa (18941895), quando a China perde Taiwan e a Coreia. A Segunda Guerra Sino-Japonesa teve início depois da anexação de territórios chineses por parte do Japão e que só terminou em 1945, com a rendição dos japoneses às forças aliadas, no âmbito da Segunda Guerra Mundial. 15
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1949 marca a vitória dos comunistas na China continental. Em outubro, Mao Tsé-Tung proclama a República Popular da China, pondo fim ao governo de Nanjing e à guerra civil. Chiang Kai-shek estabelece o governo da República da China em Taiwan.
JIA - Os animais estão presentes nas quatro partes desse filme. Eles representam os personagens. O cavalo castigado é como Dahai. Ele foi açoitado e sofreu, assim como Dahai. Ao mesmo tempo, eu queria discutir a violência sofrida pelos animais, a dor que eles sentem. Intuitivamente sabemos que é errado tratar violentamente seres humanos. No entanto, ignora-se muito com relação à dor sofrida pelos animais. É também uma violência, mesmo que não seja contra seres humanos, mas contra animais.
JIA - Nos últimos dois ou três anos, houve muitos incidentes violentos na China. Isso me chocou. Tentei entender, através do filme, como esses faits-divers violentos acontecem em nosso cotidiano. Prestei atenção em mais de dez episódios similares, mas não conseguia encontrar uma boa maneira de colocá-los no filme. De repente eu me dei conta de que as pessoas desses episódios compartilham a mesma sina dos personagens de filmes de Wuxia. Nos Wuxia dos anos 60 e 70, feitos por King Hu e Chang Cheh, pode-se por exemplo ver mudanças drásticas na sociedade e a enorme pressão que as pessoas sofriam naquelas circunstâncias. Os heróis dos filmes de Wuxia reagem a essa pressão com violência. Fiquei muito entusiasmado ao perceber as ligações entre histórias contemporâneas e o Wuxia. Comecei então a lidar com essas histórias contemporâneas através de um modo oriundo do Wuxia. Os filmes de Wuxia costumam refletir o mundo antigo e eu queria incorporar essa característica em histórias contemporâneas. Não é difícil encontrar histórias semelhantes na cultura popular tradicional, como em Margem da água, na ópera chinesa, nos romances e nos livros de Wuxia. Os mesmos tópicos têm sido repetidos. Isso me faz perceber que posso inscrever Um toque de pecado na linhagem dessa cultura popular. Não tenho familiaridade com grande parte das técnicas dos filmes de Wuxia, seus movimentos e suas narrativas. Tentei usar novas técnicas, esperando que isso desse um frescor ao filme. Todos esses incidentes são histórias verdadeiras, ocorridas nos últimos dez anos. Escolhi os quatro mais inesquecíveis para mim. Filmei em quatro lugares diferentes porque quis retratar um espectro mais amplo da China, através de climas e cenários geográficos diferentes. Assim, as pessoas sentiriam que a violência não é meramente um problema local. Uma outra razão que me fez escolher essas quatro histórias é porque eu queria muito saber como a violência foi crescendo no dia a dia, e como as pessoas comuns foram empurradas para esse destino de violência. Cada uma dessas histórias representa um tipo de violência diferente. O primeiro é causado por uma questão social; o segundo tem a ver com uma batalha mental pessoal e uma maneira errada de se atualizar; o terceiro está ligado à resistência do personagem à exploração da dignidade; e o último é a auto-destruição por desespero. É possível voltar no tempo, para um pouco mais de dez anos atrás, desde que os inci-
ENTREVISTA
Temos a sensação de que todos seus filmes são parte de uma mesma grande narrativa. Eles contam com a presença dos mesmos atores, que fazem às vezes papéis semelhantes, se passam nos mesmos espaços, e tratam da mesma China em transformação. Enfim, você pensou nisso ao longo de todos esses anos? Você vê essa continuidade entre os filmes? Além disso, você tem praticado um exercício complexo de mostrar a realidade da China sem criar categorizações, apresentando e observando os fatos, buscando uma objetividade nas intenções. Já no filme Um toque de pecado, você parece ter resolvido “dar nome ao males desta sociedade”, expressando através de atos violentos a saída para este mundo capitalista. Você acha que você mudou a sua forma de ver as coisas?
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dentes violentos não governamentais começaram a gerar um grande volume de comentários na mídia. As histórias do filme foram todas noticiadas, estiveram sob os holofotes. Não procurei revelar nada. Apenas representei histórias que as pessoas tinham ouvido e depois esquecido, mais uma vez usando as técnicas da arte. Eu terei meu objetivo se, depois de ver o filme, o público pensar sobre o que provoca a violência. As histórias podem ter exagerado um pouco para se encaixar no filme, mas são baseadas em fatos reais. Pode-se dizer que o filme é uma miniatura da sociedade. O fato de que nós ignoramos a violência existente e prestamos zero atenção na morte de pessoas é algo ainda mais violento. Tristemente, muitas pessoas abandonam a moral e a tradição na China moderna, nesse mundo em rápida transformação. Muitos se tornaram frios e insensíveis à vida. Isso me entristece demais. Eu diria que é um crime silenciar sobre a violência na sociedade. A sociedade é formada por todas as pessoas juntas. Espero que Um toque de pecado possa deixar todos um pouco mais introspectivos.
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INTERVIEW WITH JIA ZHANGKE by Jo Serfaty and Mariana Kaufman.
*In june 2014 it was sent to Jia Zhangke by email an interview with 26 questions. Jia answered many of them joining sometimes more than one question in the same answer. We reorganized the questions and answers resulting in the following interview
In 1997, after directing Xiao Shan Going Home, you wrote a “manifesto”, saying “art became the market, artists no longer wonder about the question of art and that is why I prefer to remain an amateur filmmaker.” Do you still feel that after nearly 20 years and more than 10 feature films. After having directed Touch of Sin, do you still feel like an “amateur filmmaker”? Do you think the idea of being an amateur or independent filmmaker in China today is different than it was 20 years ago? What would be independent or amateur today? JIA - I have to clarify that back to 1997 Chinese media couldn’t put the word ‘independent filmmaker’ on paper. I could say it but they couldn’t put it on. That’s why it became ‘amateur filmmaker’. The media also knew what I meant. I had the feeling that Chinese movies industry was going to commercialise rapidly and that’s why I made the comments in that way to the media.
JIA - Bresson and Antonioni influence me in different ways. Before I became a director, I read an interview with Antonioni. He said every time he shot a movie, as he got into a space, he interacted with this space for few minutes. At that time, since I hadn’t become a director yet, I couldn’t understand his words, but I’ve kept these words in my mind. When I became a director, through Antonioni’s movies and words, I realised the uniqueness of every space. Spaces are just like people: everyone has its own unique character and personality. One of the most important tasks for film directors is handling spaces. Spaces contain traces of people’s activities and provide many clues about how people live and imagine their fate. You may say Antonioni’s movies like L’Avventura (1960) and Red Desert (Il Deserto Roso, 1964) helped me realising the essence of space. Bresson’s movies attract me for their temporal effects. For instance, in A Man Escaped (Un condamné à mort s’est échappé ou Le vent souffle où il veut, 1956), the prisoner swinging the spoon made me take it a tool for escaping. However, when the film ended, never had the spoon been of help. This made me focus on the essence of time. In our life, many things just never happen and we can’t narrate the useless time effectively. Coincidently, life is filled with useless time. Bresson inspired me on time and the relationship between people and time. In 1989, Hou Hsiao-hsien’s A City of Sadness (Bei qing cheng shi) won the Golden Lion
INTERVIEW
Throughout your films, your speeches and writings, we can clearly notice your respect and admiration for some filmmakers, such as the Europeans Robert Bresson and Michelangelo Antonioni, the Japanese Yasujirô Ozu and the Chinese Tsai Ming Liang and Hou Hsiao Hsien. Could you describe their influence on your work?
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at the Venice Film Festival. It’s my favourite award-winning movie. In 1993, as I was admitted to Beijing Film Academy, I could finally watch it. I was really touched by it’s poetry and temporal effects. The content shocked me more than seeing a Chinese director winning the Golden Lion. In 1947, Taiwan had seen a large riot against the dictatorial party KMT. This instance is called “228 Incident”. KMT sent police and army to repress the manifestations and caused nearly 30,000 people died. The Taiwanese director Hou Hsiao-hsien depicted it from the perspective of the Lin family. In the movie, at the dust, the whole Lin family took a family picture and sent one of their boy to the army; in the rain, in the wilderness, a family holding a funeral with some men in black holding their dead brother’s picture; at an unknown train station, man and wife holding their child waiting for the train on a platform with few people. The most untold aspect in the movie is the fact that, when KMT retreated to Taiwan, they made people speak Mandarin, including employees in a hospital built by the Japanese. The old doctors were forced to speak in the new language “ache, stomach ache”. And the saddest part is that when 228 Incident occurred, local Taiwanese wanted to beat the immigrants and in order to distinguish identities, they would verify who could speak Taiwanese language. However, Tony Leung Chiu-Wai plays a dumb character in the movie. At the same year, in Mainland China, some political incidents had just finished, but Taiwan had already put the truth of 228 Incident on the screen. Great movies predict. In 1987, Taiwan lifted the martial law. In 1988, Chiang Ching-kuo passed away. In 1989, A City of Sadness was released. In regard to its accurate connection to its time, what film could be compared with A City of Sadness?
INTERVIEW
Your first three feature films, Xiao Wu, Platform (Zhantai) and Unknown pleasures (Ren xiao yao), are part of what you called “Hometown Trilogy”. When we watch these films we realize that they talk about a constant going back home, but this home is not static, it is in constant movement, together with the transformations of China in each historical period you portray. What is the origin of this desire to return? How does this movement is depicted by each film?
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JIA - In Xiao Wu, I started learning a new lesson. Even though we are facing the results of a transformation in the whole society, emotional expressions come from individuals and not from the government ideology or thoughts. That’s why insist on treating the topics I choose since then from a “personalised” condition. My movies follow, basically, natural life journey. Platform is an exception, of course, as it belongs to the past. From Xiao Wu to Unknown Pleasures, to The World (Shijie) and until now, I feel my movies actually follow a linear path. The audience might know what these people have been doing for the last ten years. In Platform, Sanming was a very young coal miner. In Still Life (Sanxia haoren), he became the main character, searching for his wife. In A Touch Of Sin, he plays a miner again, and he wants to go back to Fengjie. There are interesting connections between my movies. I once said you can only get to your hometown after you leave it. When I was little, China society was really closed. You couldn’t move freely. There are many restrictions on travellers. You have to get an authorisation from the government before traveling. To move to a new living place is something even harder. With this closure, lots of Chinese people,
including me, feel curious about distant locations and desire to travel. In the late 70s and early 80s, economic reform began. Chinese people start moving freely. China starts urbanisation. Many people from rural zones moved to eastern or southern coastal areas, searching for new possibilities. Searching for living opportunities made “moving” a lifeline to many people. Every year, we meet lots of people of that kind traveling by train, bus or boat. In my movies, most characters are persons who left their home searching for a life. At the same time, the core of Chinese society is based on families. People depend on their family relations for living and developing. Families still get people around. That’s why every Chinese New Year people go back home, no matter how far it is. It’s an important ritual to go back to the hometown and to leave the hometown. This is also reflected in my movies.
JIA - On the topic of traditional and contemporary industrial China, I’d like to exemplify with clothing. During the development of A Touch of Sin, I put clothing into consideration at a very beginning step. Since the script was finished, I began gathering some references. I decided to shoot it while leaving Baisha town, Chongqing. I told Liu Weixin, the art designer of Forgetting to Know You (Mo sheng, 2013): “Let’s get prepared for the next film.” Then I told him the story line. Liu Weixin is one of my favourite art designers. He participated in Summer Palace (Yihe yuan, 2006) and Purple Butterfly (Zi hudie, 2003) by Lou Ye. We can say in my films, the design were detail and realistic; in A Touch of Sin, design is strong. Hu Dahai resembles Lu Zhishen, a well-known character from Water Margin. We brainstormed together and decide to put a military coat on him. In this way, we addressed his sense of army and his executive ability. We finally picked up a woollen jacket rather than the ordinary cotton one. You can tell from his outfit that he had a chance to become part of the decision group in the village, but it was not always like that. Even though he has a special relationship with the village mayor, he is like a sick tiger in the village. But when he starts his action, he is so military. That’s why we put military coat, blue trousers of police and military boots on him. As we discussed the outfit with Jinag Wu, he told us he would grow a beard for the character. We felt it was a good idea. We didn’t consider that further before. The next time we met him, he asked us: “What about my grizzled beard?” We thought it was fantastic. I would say Jiang Wu is an actor who does understand scripts. He has the sense of the script. Through the script, I exchanged a lot of things with him. I think he is an actor who can enrich his imagination based on my composition. Through the deep conversations we had, I felt I was creating something new rather than merely working with a star. He was extremely focused, deep from his heart. In the journey of producing this film, their concentration helped me a lot, including Zhang Jiayi. I would say the four main actors/actresses in A Touch of Sin are really good at performance but people overlooked it. They did a really good job in the film. Wang Baoqiang dressed like Wu Song in Chinese opera. He was all in
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As a Chinese filmmaker who observes the transformation of your own time, how important do you think it is to return to the past to understand contemporary China? How do you see and create in your films the relationship and the contrasts between Chinese tradition and pop-industrial culture nowadays? Take the example of the Chinese Gardens, that are part of a very old tradition in China and at a certain point in history, during the Ming Dynasty, the began to be seen as works of art. Is there a direct relation for instance between the construction and the spatial displacement in The World and those gardens?
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black and we put a vest outside. We kept trying to get the hat representing Wu Song and we finally got a Chicago Bulls hat. As he put the suits on, he got an image of Wu Song. You can feel his smell of the street. As for Zhao Tao, of course she was set as a heroic female. She had a heroic ponytail and she was the only one holding cold weapon. Gun shooting is a system and using cold weapon is a following up of your whole body. When she waved it, you can imagine her hair would wave like an ancient heroic female. Her outfit needed to be as unique as her movements. So we made her a wig. Liu Weixin said we must put a white shirt on her. White shirts in Chinese Opera serve the function of underpainting the characters. In Chinese opera, wusheng1 would be in green with white underprinting. We got a high collar shirt, a pair of jeans, a down vest and a pair of heavy boots. Those red jeans mimic Lin Chong in Water Margin. In Chinese opera, according to my memories of Lin Chong, red trousers representing prisoners. That’s way Zhao Tao kept wearing red pants. When we were trying out the outfits, I was full of emotions. I felt her totally an ancient character albeit every piece was contemporary. I built up those relations between ancient and modern worlds. As for Luo Lanshan, a simple blue working shirt with chest disclosed. I felt it was the image of male characters in movies by Chang Cheh. It was another connection between ancient and modern people. I made the same connections on spaces, too. In Jiang Wu’s scenes, hundred year-old buildings, such as temples and walls, were like stages not removed. Modern people play stories of ancient people. As for Wang Baoqiang’s scenes, he travelled through mountains and rivers. As for Zhao Tao’s scenes, when she ran in the mountains in the night and when Luo Lanshan walks in the green backgrounds in Guangdong, I think I was actually subconsciously searching for connections between the ancient and the modern. I realised the reason why I kept searching for this connections: people’s fate keeps repeating during hundreds of years. This relation is important to me. I’m not sure if the audience has the same feeling about it. To me, it’s a hard work to build up the relation between ancient and modern worlds. I must say that we all live with ancient people’s memories. I made a speech after A Touch of Sin was played at Busan International Film Festival. I ended the speech with the following words “My job is more and more similar to ancient people. Just like Shi Naian’s, who used to write novels, Chinese opera writers’ and storytellers’ we read about on books. Film is just a contemporary media but we actually have the same duties. We transmit our experiences from older generations to younger generations”. At last, I said: “I take myself a storyteller. I tell the stories of people from Popular Republic of China. Even if Shi Naian used to tell the stories of Song dynasty and I tell the stories of Popular Republic of China, we actually do the same things.” As we confirmed characters’ outfits and scenes, we had very nice conversations with actors/ actresses. I met Jiang Wu at the lobby of a hotel. He got into Beijing Film Academy in 1990 and so did I in 1993. We both are uncertain about if we came to know each other in the college. As we met for the first time, he asked me what character he was going to play. I said: “You’re going to play a contemporary Lu Zhishen.” I told him the story roughly and gave him the script. He said he would reply me as soon as he finishes reading the script. And then he accepted it after reading. The second time we met, we talked about settings and other things. Of course his payment needed to be discussed at that time. I uttered a very shameful amount. I remember he smiled and said: “Don’t feel embarrassed, deal”. After that, I talked with Zhang Jiayi. He said: “Jia, we don’t need to talk about money. We support you.” In this industry, I feel true friendship exists. 1
Wusheng is a category of characters in Chinese Opera. They are good at fighting.
The soundtrack is a very important element in all of your films, and music clearly has a great importance in the narrative construction, with the strong presence of Chinese popular music. How do you think and create the soundtrack in your films? Do you think it before the shooting, during the script, or during the post-production? What’s the important of the music in your films and how is the composing and designing process together with your partner Lim Giong, who has worked in most of your films? JIA - Pop songs are part of my cherish memories. In my life, I have experienced the process of pop culture from nothing to well establishment. Pop culture fills up our spirits. It’s very important especially for the next generation. It’s a spiritual world. I rather like the pop culture of Taiwan and Hong Kong. Because you can feel something lost there and you can really feel it. As I listen to songs by René Liu, I can feel it. It’s rather different from the pop culture nowadays. Sometimes I say that “pop music got less passion after René Liu and Sally Yeh,” in a joking way. Singer/song-writers sigh in their songs but they put less passion in. I like the 80’s and 90’s. In that era, individual elements stood up and that’s something I care about on compositions. Let’s talk about Lim Giong. We’ve been working together for ten years. He deciphers films very well. His music is individualised and he’s good at controlling the atmosphere. He helped me made my movies more individualised. This is very important because, in the past, Chinese movies lacked distinguishing features and were empty inside. Indeed, people express their feelings through music. I experienced it from karaoke. Why is karaoke so popular in Chinese culture? I would say Chinese people were rather unable to express their feelings. However, since karaoke was invented, it became a very important way to spread out the inner emotions, which were unspoken albeit drastic before. I occasionally observed a middle aged man singing at a karaoke. There were not separated rooms and people queued up waiting for their songs. We kept waiting for the man but he never stoped his horrible singing. I felt unbearable at the beginning but had my sympathy at last. No one cared about his expressions. He surely was bad at singing but he sang really hard. It was how he expressed himself. In my films, some characters are bad at expressing themselves. Music and sound design help them express. For instance, Xiao Wu is a silent person. Für Elise at the lighter scene helped him express. In public he may be shy, he can be someone who sings only when he’s taking a shower. In Still Life, two characters were against each other at first but they communicate and start understanding each other through music from their cell phones.
JIA - Ambience is part of the characters’ life. I did modify a lot on sounds. Zhang Yang’s designs are composed of lots of ambience and actual sound. In this way, we can amplify the strength of sound. In Still Life, Zhang Yang and I recorded sound from Three Gorges area. It’s rich, it’s like a symphony. You can hear sound from the ships by the river, the sound of houses
INTERVIEW
The sound design has also a strong presence in your films: the city noises, the TVs, the policeman announcements, the construction sounds. All these sound elements create an atmosphere and move the narrative, bringing important information that we don’t have from the characters dialogues. How do think and works the sound design of your films in collaboration with Zhang Yang?
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being demolished and foghorns. The construction of sound is something I rely on as I produce films. Audio world amplifies our realisation of space, story lines and dissemination. We sample all kinds of good ambience and let Lim Giong put the sound into his music composition. Every time, when Zhang Yang is mixing the sounds, Lim Giong participates in directly. As the mixing was in Shanghai, Lim Giong came. He did some music compositions at the time we mixed. He would say “I’ll take over this part,” and then he go back to the hotel and compose. As he came to us again, we discussed and modified. He took a large part in this. We can notice that in your documentaries, you try to control more the scene and the character in the frame, setting them in front and in the centre of the frame, using artificial lights. In your feature films, it seems that you give more place to the risk and the unpredictable, shooting in location with daylight and including actors’ improvisations. In one of your interviews, you said that in feature films you try to reach the objectivity of fiction and in documentaries you want to achieve the characters’ subjectivity. Do you work as if fiction was documentary and documentary was fiction? Could you describe your process of directing a documentary? At what time you add fictional elements?
INTERVIEW
JIA - Factual documentaries are about evidence. Fictional elements are about summing up. Documentary films developed my life. In I Wish I Knew (Hai shang chuan qi), I interviewed dozens of Shanghainese women. As the stories they told me were discontinuous, I felt I had to gather information in pieces and put them on a specific character. I wrote in the same way I write a character in a feature film. At that time, I didn’t take fictional elements and factual documentaries as different or contradictory. I could put them together anyways. That was also the time I went across the boarder of factual documentaries and fictional elements. I rather like the experimental parts of 24 City (Er shi si cheng ji), which is a mix of documentary and performance. I put professional actresses like Joan Chen and Lu Lìpíng among dozens of Shanghainese female workers in Chengdu factories. By doing so, I made the film “unqualified” in both camps of documentary and feature films. Through this process, I could inspect the intrinsic quality of images. In the film, spaces matter as much as stories. In this way, I had to build up narrations and visualisations. On the one hand, we can imagine how was their lives earlier. On the other hand, we observe how they live nowadays. While the narrators told stories about their past, my duty was to convey the message of what kind of life they live now. It’s a need of narration and emotional expression. I presented their experiences and their life journey through words, through what images didn’t capture. Images are direct and intuitive. Words are relatively abstract but they are tools to express the speakers’ inside feelings. Sometimes, words are not replaceable by images.
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You’ve said many times that you prefer to work with non-actors, amateurs, because they do not have a shaped body that comes with a “ready gesture”. How do you think the process towards the actor, the construction of the characters in the movies? Since you use the same actors in several films, as Tao Zhao, does it change after a few movies? And how do you deal with the characters in your documentaries? Do you work with them in the same way you work with “non-actors”, playing their own roles in feature films?
JIA - In my films, documentary and fiction account for roughly half and half. If we include shorts, documentaries may have a greater proportion. I’m addicted to the status of someone’s pause. That’s why I sometimes put some characteristics of documentary films into my feature films. I believe there’s no such a clear border between documentary and feature films. Just like all the imaginations are rooted in the reality. I kept trying to put documentary characteristics into feature films, and vice versa. My attempt to blur the border between documentary and drama resulted from my experiences of China society, such a complex and rapid changing compound. I need techniques of both factual documentaries and creative fiction, in order to present the complexity of Chinese society. On the one hand, documentary films, with the power of evidence, present true stories and figures directly. On the other hand, fiction presents implicit facts and rules that the camera couldn’t capture directly. I shot Still Life during the shooting of Dong. As for 24 City and I Wish I Knew, both of them are hybrids of documentary and fiction.
JIA - In 2010, I finished I Wish I Knew and started preparing for Zai Qing Chao. I looked back to Chinese Wuxia films systematically, to all the Wuxia films I had watched before. We can take this process as a rearrangement of my memories of old films I used to watch when I was 13. I didn’t want to produce a random one. Elements from genre films are not random things; they are actually based on researches. During the preparation of Zai Qing Chao, I had lived in the world of Wuxia for a long period and I indulged myself into movies by King Hu, Chang Cheh, Chor Yuen, Cheng Kang and Kuo Nan-Hong. It’s important to me to understand how did Wuxia evolve into kung fu and how did kung fu evolve into martial arts comedy. After the period of martial arts comedy, Tsui Hark started a new age of Wuxia. It’s an important clue for my life to get the context clear because the world of cinema really matters to me. The other important clue lies in the real world, the Internet. I used to take the Internet as something simple. I checked e-mails and read news. I couldn’t realize and accept the increasing importance of social media. Why would someone pay attention to the screen rather than to the real world? I started doing so after the interview with Pan Shiyi on ‘YULU’ project, when he warned me, saying that rejecting Weibo means getting away from contemporary life. The instant when the untold by traditional media and censored things flock onto Weibo, we could realize China is more astonishing than it used to seem. I believe Weibo users tell the truth. And you don’t feel it just because of spatial and temporal distance, or because media is censored. The other interesting thing is that there are perspectives. When people fight on Weibo, you realize how disordered the society is. We live through countless twists and turns in time. It’s true that you feel more astonished about unexpected incidents, such as Deng Yujiao incident or Foxconn suicides. All those violent incidents against evil things work for me as glue, connecting the two worlds: the present reality and the ancient Wuxia world. Why must I set a Wuxia film back in Qing dynasty? Things still happen like stories in Water Margin, like movies by Chang Cheh and like movies by King Hu. People react to
INTERVIEW
In a recent interview you say that in A Touch of Sin, the actors were invited to create the dialogues in some scenes and, in other situations, as in the most dramatic scenes, they needed to memorize their lines exactly as you wrote. How is this process of creating the film—writing the script, rehearsing, shooting, editing—and how do the actors take part in it?
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repression. They pick up forces against other forces and it all ends up like in a tragedy. I love Wuxia for its tragic essence. Most Wuxia stories end with a sad destruction. They fight until one party falls. I wanted to make a movie describing such incidents in contemporary scenes. Actually, during the past few years, I’ve been searching this with my life and thoughts. Let’s talk about I Wish I Knew. This film is about how Shanghai has been from the 30’s until now. There was a huge violence behind this society. Social instability forced people to be apart. Many people became homeless after Sino-Japanese War and 1949 Incident. Especially after 1949. Shanghainese in Hong Kong and Taiwan were suddenly unable to come back home. It was a drastic and unavoidable violence, caused by political fights and national wars. Most of Chinese people were like “Fine, if we can’t go back, we just marry a girl, labour, have children and stay”. I would say that people lived under an overwhelming force. Like once you bend grasses, they can never straighten themselves again. They can only live curly until their death approaches. My expressions had been implicit and indirect until I produce A Touch of Sin. At that time, my thoughts changed. I refused to make another implicit movie. Reality made me produce an unequivocal film. Like the characters, the film can be shattered. I would produce it with no hidden things, with no hesitation. I needed this kind of aesthetics. Violence in China society grew the violence in my heart. By doing so, I didn’t chop anyone. Instead, I shot how people chop other people. I wanted to get in their world, into the moment they couldn’t hold anymore. Neither should my camera held anymore. I needed to understand them through their perspectives. It doesn’t mean I agree with the crimes they committed or with their violence. It is the contrary: I disagree with that. I just adopted their perspectives as I tried to understand them. I thus made something considered “violent”: I made this movie. As for editing, I finished it as I finished shooting. I always edit fast because I am always involved in editing and when I make the storyboards, I already consider editing. In China the animal representation has a strong symbolic content. In A Touch of Sin, beast figures appear with great frequency. Why is there such a high incidence of animals in the film? Did you relate these figures to the sociopolitical context of those characters?
INTERVIEW
JIA - Animals are present in the four parts of this film. Animals represent characters. The beaten horse is like Dahai. It was beaten and suffering, just like Dahai. Meanwhile, wanted to discuss the violence put on animals, the pains on them. It’s intuitively wrong to violently treat human beings. However, people are rather ignorant about animals’ suffering. It is still violence even if it is over animals, rather than on human beings.
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Your films might be understood as parts of a same great narrative, because of the presence of the same actors, sometimes doing similar roles, and of course the same themes and spaces, the same China in transformation. Do you see this “continuity” between your films? You have been doing a complex exercise to show the reality of China without creating any categorizations, presenting and observing the facts, seeking objectivity in intentions. However, in A Touch of Sin, you seem to have decided “to name the evils of this society,” expressing through violent acts the way out of this capitalist world. Do you think you changed the way you see things?
INTERVIEW
JIA - In the past 2-3 years, there were many violent incidents in China. They have shocked me. I tried to understand, through films, how do these violent incidents happen in our daily lives. I had paid attention to ten-something similar incidences, but I couldn’t find a good way to handle the film. Later I suddenly realised people in these stories share the same destiny with characters in Wuxia films. For instance, through Wuxia in the 60s and 70s, by King Hu and Chang Cheh, we can see drastic society changing and the pressure of the circumstances over people. Heroes in Wuxia films react to the pressures they are submitted to with violence. I found out the links between contemporary stories and Wuxia and it made my excited. I started to handle contemporary stories in a Wuxia way. Wuxia films used to reflect the ancient world and I want to adopt it in contemporary stories. You can easily find similar stories in traditional popular culture, like Water Margin, like Chinese opera, and like Wuxia novel and films. They’ve been repeating the same topic. These made me feel I can put A Touch of Sin into the queue of such popular culture. The techniques of Wuxia films, including the motions and narratives, are rather unfamiliar to me. I tried the new techniques and hoped it would bring you a fresh feeling. These incidents were all true stories that occurred during the past ten years. I chose these four because to me, they seemed to be the most unforgettable. I shot the film in four different places because I wanted to depict broader phases of China, through different climates and geographic scenes. In this way, people would feel the violence is not merely a local problem. I chose these four stories also because I really wanted to know how the violence was increasing in daily life, and how were ordinary people pushed into the fate of violence. Each one of the stories represents a different kind of violence. A social issue causes the first kind of violence; the second one is about personal mental struggle and a wrong way of self-actualization; the third is about the character’s resistance of dignity-exploitation; and the last is a case of self-destruction among despair. It can be traced back to ten-something years ago since non-governmental violent incidents have made huge amount of comments on media. Stories in the film were all reported and under the spot light. I didn’t mean to reveal anything. I just represented them, the stories people have heard but forgotten, once again with techniques of art. I would say I’ll reach my goal if the audience think about what cause the violence after the have watched the film. The stories might be exaggerated a bit in order to fit in the film but they are based on true stories. You can say the film is a miniature of the society. It’s even more violent that we ignore the existing violence and we pay zero attention on peoples’ death. Sadly, many people abandon moral and tradition in modern China, the rapid changing world. Many people have become cold and senseless to their life. These made me feel sad. I would say it’s a crime to be silent toward violence in society. The society is actually formed by people all together. I hope A Touch of Sin can make everyone introspect.
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JIA ZHANGKE | EU PRECISO DE ÁLCOOL PARA QUE MEUS PENSAMENTOS VOEM
ESCRITOS | JIA ZHANGKE
Depois que dirigi Um artista batedor de carteiras (Xiao Wu, 1997), mais e mais pessoas quiseram me conhecer. Eu não ousava ignorá-las, isto é certo, e não queria perder nada. No jiaghu1, dizemos que um amigo a mais é uma solução a mais. Como todos os que vêm a Pequim, de mala e cuia, para encontrar um meio de ganhar a vida, sempre fui grato à atenção que os outros me oferecem. É preferível encontrar pessoas a observar paisagens. Além disso, naquela época, eu dispunha de muito tempo livre. Mesmo quando discutíamos frugalidades, eu sentia prazer em fazer companhia às pessoas. Faltava um lugar para nos encontrarmos. Isso era um problema para mim, porque eu ainda não tinha um escritório. Minha casa era pequena, desorganizada; eu não podia receber visitas. Para cada um dos meus encontros, eu deixava o lugar à escolha dos convidados, mas eles se mostravam gentis e diziam que iriam aonde eu preferisse. Após algum silêncio, e de esquentar um pouco a cabeça, me vinha sempre à mente o Pavilhão Amarelo. Ainda hoje, o perímetro de meus deslocamentos se situa ao redor de Xin, Ma, Tai: Xinjiekou, Madian et Taipingzhuang2. Esses locais são próximos da faculdade de Cinema. Como estudei lá por quatro anos, minhas pernas me levam para lá automaticamente. O Pavilhão Amarelo é um bar que se encontra a cem metros ao norte da faculdade de cinema. Seu nome completo era “50, O Pavilhão Amarelo”. Ele era fácil de localizar porque se via o estúdio de cinema para crianças do outro lado da rua. Como havia poucos clientes à tarde, podia-se conversar à vontade. Foi o apogeu do dapaigang que se situava ao lado, perto da faculdade de Aeronáutica e Astronáutica. Ao cair da noite, todo tipo de pessoa o frequentava. Turbilhões de fumaça espalhavam um aroma de cominho. Podíamos assistir a lutas armadas enquanto degustávamos um ragu de cordeiro. Lá, os Ouighours solicitavam os serviços das senhoritas do Sichuans, ora numa língua, ora em outra. Abaixava-se a cabeça ao perceber os estudantes da mesa ao lado chorando por razões desconhecidas. A desordem e a confusão reinavam, mas era um lugar cheio de vida, muito a meu gosto. O Pavilhão Amarelo era diferente. Cada vez que passava por ele, para ir à faculdade, eu via pela janela sua iluminação escura, que eu achava insípida. Minha família, de Shanxi, era pobre e desde a minha infância meus parentes economizavam eletricidade. A lâmpada de 15W por muito tempo me obscureceu a vista: eu me tornei ávido por claridade. Também ocorre que os jovens não conhecem a voluptuosidade. Eu ainda possuía muita vontade de narrar grandes acontecimentos. Eu tinha dificuldade em me identificar à luz de velas e lanternas. Foi no início de 1997 que fui pela primeira vez ao Pavilhão Amarelo. Em Hong Kong, eu havia encontrado o diretor de fotografia Yu Likwai e nós havíamos decidido trabalhar juntos na filmagem. Eu ainda não havia começado o roteiro quando ele chegou a Pequim. Quando recebi sua ligação, ele estava no Pavilhão Amarelo. Quando entrei, algumas garrafas vazias encontravam-se enfileiradas sobre sua mesa. Acendi um cigarro Derby, que chamamos aqui de “má sorte”, mas tudo correu maravilhosamente bem. Nesse encontro, decidimos partir a Shanxi. Daí nasceu Um artista batedor de carteiras. 1
Termo oriundo dos romances de capa e espada chineses (wuxia) que designa a sociedade paralela que escapa à ordem estabelecida e obedece aos códigos dos bandidos e aventureiros. Em seu sentido atual, equivale ao que podemos chamar de uma “selva”, regida por códigos não oficiais, ou pela lei do mais forte. O jianghu representa também a aspiração do povo à justiça, à coragem e à liberdade individual, em oposição às leis instituídas da sociedade feudal, que é caracterizada pela corrupção e senilidade. 2
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Revista TV, 2003
Os caracteres iniciais desses três bairros de Pequim compõem um acrônimo dos três destinos principais de turismo de negócios na China: Singapura, Malásia e Tailândia (Xin, Ma, Tai).
JIA ZHANGKE | I NEED ALCOHOL IN ORDER FOR MY THOUGHTS TO FLY Revista TV, 2003
After I directed The Pickpocket, (Xiao Wu) more and more people wanted to get to know me. I did not dare to ignore them, that is for sure, and I did not want to miss out on anything. At the jiaghu1, we say that another friend is another solution. As everybody that comes to Beijing with a bag and baggage to find a living, I was always grateful for the attention that others give me. It is better to find people than to observe the scenery. Besides, at that period, I had a lot of free time. Even when we were discussing frugalities, I felt pleasure in keeping people company. We lacked a place to meet. This was a problem for me, because I did not have an office yet. My house was small, disorganized; I could not entertain guests. For each of my encounters, I would leave the place for the guest to choose, but they showed themselves to be courteous and said that they would go to where I preferred. After some silence, and heating my head up a bit, the Yellow Pavillion always came to mind. To this day, the perimeter of my displacements is situated aroud Xin, Ma, Tai, Xinjiekou, Madian and Taipingzhuang2. These places are near the Cinema faculty. Since I studied there for four years, my legs took me there automatically. The Yellow Pavillion is a bar that can be found a hundred meters north of the Cinema faculty. Its full name was “50, The Yellow Pavillion”. It was easy to place because you could see the movie studio for kids across the street. As there were few costumers in the afternoon, you could converse at ease. It was the height of the dapaigang that was situated next to it, near the faculty of aeronautics and astronautics. As the night fell, all kinds of people went to it. Whirls of smoke spread an aroma of cumin. We could watch fixed fights while we tasted a lamb ragu. There, the Ouighours solicited the services of ladies from the Sichuans, at times in one language, at times in another. You lowered your head when you realized the students at the next table were crying for unknown reasons. Disorder and confusion reigned, but it was a place full of life, much to my taste. The Yellow Pavillion was different. Every time you went by it to go to the faculty you could see its dark lighting through the window, which I thought to be insipid. My family from the Shanxi was poor and since my childhood my relatives saved electricity. The 15W bulb obscured my sight for a long time: I became avid for clarity. It also happens that young people do not know voluptuousness. I still had a great urge to narrate grand events. I had difficulty identifying myself with that light coming from lanterns and candles. It was in the beginning of 1997 that I first went to the Yellow Pavillion. In Hong Kong, I had found the the cinematographer Yu Likwai and we had decided to work together in the shooting. I had not yet started the script when he arrived in Beijing. When I received his call, he was at the Yellow Pavillion. When I got in, a few empty bottles were lined up on his table. I lit up a Derby cigarette, which we here call “bad luck”, but it all went wonderfully well. At this meeting we decided to go to Shanxi. From there The Pickpocket was born. 1
A term originated in Chinese swashbuckling novels (wuxia) that designates the parallel society escaping established order and following the code of rogues and bandits. In its current meaning, it equals what we can call a “jungle”, ordered by unnoficial codes, or by the survival of the strongest. The jianghu also represents a popular aspiration towards justice, courage and individual freedom, in opposition to the laws instituted by feudal society, which is caracterized by corruption and senility.
WRITINGS | JIA ZHANGKE
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The initial characters from these three neighborhoods in Beijing compose an acronym of the three main business destinations in China: Singapure, Malasia and Thailand (Xin, Ma, Thai).
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ESCRITOS | JIA ZHANGKE 262
Como bom bebedor, Yu Likwai se tornou habitué do Pavilhão Amarelo. Por consequência, eu retornei muitas vezes, e fiquei amigo do dono. Depois de algum tempo, algumas pessoas começaram a se divertir chamando o Pavilhão Amarelo de “escritório do Jia Zanghke”. O dono, Jian Ning, é um poeta. Ele abriu círculos de poesia na mesma época em que abriu seu bar. Ele, frequentemente, obrigava o barman Xiao Chen a jogar xadrez com ele à meia noite. Quando me via entrar, ele me chamava de “irmão Jia”, e dizia a Lili para me servir um chá. Lili era uma garçonete, prima distante de Jian Ning, qe gostava de ver TV e usava pequenas tranças, como uma menina do período republicano nas novelas televisionadas. Eu tinha, assim, um lugar a mais onde me distrair. Mesmo se eu fosse sozinho, sempre encontraria alguém para conversar. As pessoas como eu não eram raras. Um inglês chamado David, professor convidado da faculdade de Tecnologia Química, vinha frequentemente ao bar à meia noite. Ele pedia um chope e contava a Xiao Chen algumas histórias de sua cidade nos subúrbios de Londres, enquanto retorcia o pescoço para assistir ao futebol. À meia noite, esses rostos se confundiam em uma mesma nostalgia. Não havia entre eles uma amizade profunda, o que lhes permitia manter discussões autênticas. Eu havia me habituado a encontrar muitas pessoas à tarde, a convidar meus amigos para conversar dos velhos tempos e tomar uma bebida, a encontrar inimigos para brigar com eles e dar murros na mesa, a dar entrevistas, pedir coisas a meu produtor, implorar por assistência, pedir conselhos aos mestres. Eu não bebia muito, mas sempre tinha algo a dizer. Na minha região natal, produzimos o destilado Fen, para o qual algumas celebridades fizeram propagandas. Um verso de não sei quem me veio, um dia, à cabeça: “Eu preciso de álcool para que meus pensamentos voem. Não é em tão longa prosa que minha alegria repousa”. Meu espírito, então, se agitou. No momento em que eu brindava com os outros, meu coração se fechou. Pensando que nós não havíamos abordado ainda nenhum assunto sério, eu senti uma imensa tristeza. Com o queixo sobre meus braços cruzados sobre a mesa, eu fiquei de repente sem palavras. Observei a chama da vela que tremia. Aos meus ouvidos, o burburinho se tornava pouco a pouco abstrato, remetendo à atmosfera de Flores de Xangai (Hai shang hua). Percebi que minha juventude se encaminhava dia após dia rumo à velhice, que perdia meu tempo a não fazer nada. Sentia meu corpo pesar sobre a leveza da vida. Como um velho estranho, levantei-me bruscamente da mesa. No caminho de volta, na escuridão, revi confusamente minha infância passada. Percebendo que estava um pouco bêbado, disse ao motorista: “Apenas com o álcool meus pensamentos voam”. O motorista já havia visto outros, e não respondeu nada. Ele sabia que ao amanhecer esse homem estaria sóbrio, que sorriria aos outros, apertaria suas mãos, ignorando o quanto fora imbecil e que fizera um espetáculo. Em outra tarde, sempre no Pavilhão Amarelo, eu esperava uma visita. Ele demorava tanto a chegar que minha excitação se dissipara. Conformando-me com a atmosfera despreocupada da tarde, fui à janela para olhar o exterior. Sob um sol ofuscante, em busca de aventuras que eu ignorava, as pessoas se locomoviam sobre suas bicicletas. Os homens me pareceram pardais. Curiosamente, isso me deixou infeliz. Nesse momento, uma mulher de meia idade entrou. Ela pediu uma bebida e solicitou a Xiao Chen que colocasse uma canção de Jeff Chang. Antes que o canto começasse, ela desandou a chorar. Esse bar era também um lugar para lágrimas. O bar foi demolido. Resta hoje um monte de terra. É uma metáfora: tudo pode se transformar em poeira. É por isso que resolvi me investir firmemente no cinema. Não para me tornar imortal, mas porque nele podemos chorar.
WRITINGS | JIA ZHANGKE
As a good drinker, Yu Likwai became a habitué of the Yellow Pavillion. As a consequence, I returned many times, and we and the owner became friends. After a while, some people began to amuse themselves calling the Yellow Pavillion “Jia Zhangke’s office”. The owner, Jian Ning, is a poet. He opened poetry circles at the same time that he opened his bar. He frequently made Xiao Chen the barman play chess with him at midnight. When he saw me come in, he would call me “brother Jia”, and told Lili to serve me some tea. Lili was a waitress, a distant cousin of Jian Ning, who liked to watch TV and kept little braids like a girl from the republican period in televised soap operas. I had, thus, another place to distract myself .Even if I went alone, I would always find someone to talk to. People like me were not rare. An Englishman named David, an invited professor at the faculty of chemical technology, frequently came to the bar at midnight. He would order draft beer and told Xiao Chen a few stories from his town on the suburbs of London, while he craned his neck to watch football. At midnight, these faces mingled in the same nostalgia. Between them there was no deep friendship, which allowed the discussions to be kept authentic. I had gotten used to finding many people there on the afternoon, to inviting my friends to talk about the old days and have a drink, to finding enemies to fight them and smashing the table, giving interviews, asking my producer for things, begging for assistance, asking the masters for advice. I did not drink a lot but always had something to say. At my home region, we produce the drink Fen, for which a few celebrities have made advertisements. A verse by I don’t know who came to my mind one day: “I need alcohol in order for my thoughts to fly. It is not in such long prose that my joy lies.” My spirit then got agitated. At the moment in which I was toasting the others, my heart closed. Thinking that we had not yet touched on any serious subject, I felt an immense sadness. With my chin on my crossed arms over the table, I was suddenly wordless. I watched the candle’s shivering flame. To my ears, the noise was little by little becoming abstract, calling to mind the atmosphere from Flowers of Shangai. I realized that youth carried itself day by day towards old age, that I was wasting my time doing nothing. I felt by body weighting over life’s lightness. As a strange old man, I got up briskly. On the way back, in the darkness, I confusedly looked back over my past childhood. Realizing I was a bit drunk, I told the driver: “Only with alcohol do my thoughts fly”. The driver had already seen others, so he did not answer anything. He knew that when the morning came this man would be sober, that he would smile to the others, shake their hands, ignoring how stupid he had been and that he had made a spectacle. In another afternoon, always at the Yellow Pavillion, I was waiting for a visit. He was talking so long to get there that my excitement had dissipated. Conforming myself to the careless atmosphere of that afternoon, I went to the window to look outside. Under a bright sun, looking for adventures which I ignored, people were riding their bikes. The men seemed like sparrows to me. Curiously, this made me unhappy. At that moment, a middle-aged woman got in. She asked for a drink and for Xiao Chen to put on a Jeff Chang song . Before the singing began, she started crying. This bar was also a place for tears. The bar was demolished. Now what is left is a clump of earth. It is a metaphor: anything can turn into dust. That is why I decided to invest myself firmly in cinema. Not to become immortal, but because in it we can cry.
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BIOGRAFIAS
AMARANTA CESAR é professora do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Possui doutorado em Cinema e Audiovisual pela Sorbonne Nouvelle - Paris 3 (2004-2008), e pós-doutorado pela Universidade de Nova Iorque (2013-2014). É idealizadora e curadora do Cachoeiradoc - Festival de Documentários de Cachoeira (BA). Fez curadoria para diversas mostras e festivais, tem publicado e apresentado artigos sobre cinema documental, cinema brasileiro, cinema africano e da diáspora. Amaranta Cesar is a professor of Cinema and Audiovisual at the Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). She has a Ph.D. in Cinema and Audiovisual at Paris 3 Sorbonne Nouvelle University (2004-2008) and a PostDoctorate at the University of New York (2013-2014). She is the creator and the curator of Cachoeiradoc – Festival de Documentários de Cachoeira (BA). She organized several exhibitions and festivals as a curator and she has published and presented articles on documentary filmmaking, Brazilian and African Cinema and about the diaspora.
CAROLIN OVERHOFF FERREIRA é professora de Cinema Contemporâneo da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). É autora dos livros O cinema português – aproximações a sua história e indisciplinaridade (2013), Identity and difference – transnationality and postcoloniality in Lusophone films (2012), Diálogos africanos (2012) e Neue Tendenzen in der Dramaturgie Lateinamerikas (1999). Organizou os livros África – um continente no cinema (2014), O cinema português através dos seus filmes (2007 e 2014), Manoel de Oliveira – novas perspectivas sobre a sua obra (2013), Terra em Transe – ética e estética no cinema português (2012) e Dekalog – On Manoel de Oliveira (2008) Carolin Overhoff Ferreira is a professor of Contemporary Cinema at Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). She is the author of the books O Cinema Português – aproximações e história da Indisciplinalidade (2013), Identity and difference - postcoloniality and transnationality in Lusophone films (2012), Diálogos Africanos (2012) and Neue Tendenzen in der Dramaturgie Lateinamerikas (1999). She organized the books África – um continente no cinema (2014), O cinema português através dos seus filmes (2007 and 2014), Manoel de Oliveira – novas perspectivas sobre sua obra (2013), Terra em Transe – ética e estética no cinema português (2012) and Dekalog - on Manoel de Oliveira (2008).
CECÍLIA MELLO é professora de cinema na Escola de Comunicações e Artes da USP e pesquisadora FAPESP na Unifesp Campus Guarulhos, com o projeto Intermidialidade, Estética e Política no Cinema Chinês de Jia Zhangke. Foi bolsista FAPESP de pós-doutorado (2008-2011, ECA-USP), é doutora em Cinema pela Universidade de Londres, autora de diversos ensaios no Brasil e no Reino Unido e organizou com Lúcia Nagib o livro Realism and the Audiovisual Media (Palgrave Macmillan, 2009). Cecília Mello is a professor at the School of Communications and Arts at USP and a Researcher at FAPESP at the Unifesp Campus Guarulhos, with the Project “Intermedialidade, Estética e Política no Cinema Chinês de Jia Zhangke”. She was a postdoctoral colleger of FAPESP (2008-2011, ECA-USP), a PhD in cinema at the University of London. She is the author of several essays published in Brazil and in the UK. She organized, with Lúcia Nagib, the book Realism and the Audiovisual Media (Palgrave Macmillan, 2009).
CHENG-YING WANG é taiwanesa e estudou Belas Artes entre 2004 e 2008. Sempre foi apaixonada por cinema, e por isso acaba de se tornar Mestre em Estudo das teorias do cinema e do audiovisual na Sorbonne Nouvelle – Paris 3. Graças a sua cultura chinesa, começou a estudar a relação entre o cinema e a pintura nesse local. No futuro, pretende continuar seus estudos por essa área. Cheng-Ying Wang is Taiwanese. She studied Fine Arts between 2004 and 2008. She has always been passionate and for that reason, she is now studying Cinema and Audiovisual in Paris 3. Thanks to her Chinese background, she started to study the relation between cinema and painting in China. Her plans include a broader study of this theme.
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CHRIS BERRY é professor de Estudos de Filme na King’s College London. No anos 80, trabalhou na China Film Import and Export Corporation em Pequim, e sua pesquisa acadêmica é baseada no cinema chinês. Principais publicações: Cinema and the National: China on Screen, em parceria com Mary Farguhar (Columbia University Press and Hong Kong University Press, 2006); Postsocialist Cinema in Post-Mao China: the Cultural Revolution after the Cultural Revolution (New York: Routledge, 2004) e The New Chinese Documentary Film Movement: For the Public Record, editado com Lu Xinyu e Lisa Rofel (Hong Kong: Hong Kong University Press, 2010). Chris Berry is Professor of Film Studies at King’s College London. In the 1980s, he worked for China Film Import and Export Corporation in Beijing, and his academic research is grounded in work on Chinese cinema. Primary publications include: (with Mary Farquhar) Cinema and the National: China on Screen (Columbia University Press and Hong Kong University Press, 2006); Postsocialist Cinema in Post-Mao China: the Cultural Revolution after the Cultural Revolution (New York: Routledge, 2004); and (edited with Lu Xinyu and Lisa Rofel), The New Chinese Documentary Film Movement: For the Public Record (Hong Kong: Hong Kong University Press, 2010).
ERIK BORDELEAU é professor e pesquisador na SenseLab (Concordia University). É o autor de Foucault anonymat (Le Quartanier, 2012, Prêmio Spirale- Eva-Legrand 2013) e Comment sauver le commun du communisme? (Le Quartanier, 2014). O foco de suas pesquisas é a mudança do pensamento contemporâneo. Vem trabalhando sobre a presença de espíritos, deuses e outras forças sobrenaturais no cinema do leste asiático. Faz parte da Épopée, um coletivo de cinema que dirigiu Insurgence (2013) e Rupture (2014), dois filmes sobre a greve estudantil em Quebec, em 2012. Erik Bordeleau is a Montreal-based lecturer and researcher at the SenseLab (Concordia University). He is the author of Foucault anonymat (Le Quartanier, 2012, Spirale- Eva-Legrand 2013 award) and of Comment sauver le commun du communisme? (Le Quartanier, 2014). He is interested in the current speculative turn in contemporary thought and has been working on the mode of presence of spirits, gods and other surexistential forces in East Asian cinema. He is part of Épopée, an action group in cinema which directed Insurgence (2013) and Rupture (2014), two movies about Quebec’s 2012 student strike.
ERLY VIEIRA JR é cineasta, escritor e pesquisador, com ênfase no cinema contemporâneo. Doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ (2012), é professor do curso de Cinema e Audiovisual da UFES e dos programas de pós-graduação em Artes (PPGA) e Comunicação e Territorialidades (PPGCOM) na mesma universidade. Desde 2000, realizou nove curtas-metragens, entre documentários e ficções, exibidos em diversos festivais. Erly Vieira Jr is a filmmaker, a writer and a researcher with an emphasis on contemporary cinema. He has a PhD in Communication and Culture (UFRJ - 2012), a professor at Film and Audiovisual (UFES), at the postgraduate programs in Arts (PPGA), and at the Communication and Territorialities (PPGCOM) at the same university. He has made nine short films since 2010, including documentaries and fictions, exhibited at several festivals.
HERNANI HEFFNER é Conservador-Chefe da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio e Janeiro, professor da PUC-Rio e curador da Mostra de Cinema de Ouro Preto - Temática Preservação Hernani Heffner is the Conservative-Chief of the Cinematheque of the Museum of Modern Art of Rio Janeiro (MAM), PUC-Rio and the curator of the Mostra de Cinema de Ouro Preto (which has preservation as its theme).
ISAAC PIPANO é professor de cinema, fotógrafo e, às vezes, faz filmes. Vive entre o Rio de Janeiro e Niterói. Participa do projeto de cinema, educação e direitos humanos, Inventar com a Diferença. Mestre em Comunicação com trabalho sobre o capitalismo contemporâneo, a cidade e a memória no documentário de Jia Zhangke. Isaac Pipano is a professor, a photographer and, sometimes, he shoots films. He lives between Rio de Janeiro and Niterói. He is a member of the Inventar com a diferença, which is a project about filmmaking, education and human rights. He is a Master in Communication, with work focused on contemporary capitalism, the city and the memory in the films of Jia Zhangke.
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JO SERFATY foi curadora da mostra de Claire Denis na Caixa Cultural e produziu a mostra Eduardo Escorel. Dirigiu quatro curtas-metragens: o documentário Confete, ganhador do prêmio de melhor direção no FEMINA 2013; o curta de ficção Sobre a mesa; Peixe, finalizado recentemente, codirigido com Diogo Oliveira. Agora está em processo de montagem do seu novo filme A ilha do Farol, dirigido junto com Mariana Kaufman. Ganhou o Rumos Itaú Cultural para realizar o projeto audiovisual Diário de férias. Jo Serfaty is the curator of the Claire Denis exhibition at Caixa Cultural, and produced the Eduardo Escorel exhibition. She directed four short films: the documentary Confete, winner of the Best Director at FEMINA 2013 award; the short fiction Sobre a mesa; the recently finished Peixe, co-directed with Diogo Oliveira; and she is now in the process of making her new movie A Ilha do Farol, directed with Mariana Kaufman. She won the Romus Itaú Cultural award with the visual project Diário de férias.
JULIANO GOMES é crítico de cinema, diretor e professor. Formado em Cinema, Jornalismo e Publicidade pela PUC -Rio. Doutorando em Tecnologias da Comunicação e Estética pela ECO-UFRJ, onde pesquisou sobre os filmes-diário do artista Jonas Mekas. É redator da Revista Cinética. Tem textos publicados em revistas como a Filme Cultura, em livros e catálogos de mostras e festivais pelo Brasil, além de ter participado de júris e comitês de seleção de festivais no país. Juliano Gomes is a film critic, a director and a professor. He is graduated in Cinema and Journalism (PUC-Rio). He has a PhD in Communication Technologies and Aesthetics (ECO-UFRJ), where he researched the Journal-films of Jonas Mekas. He writes in Revista Cinética. He has published texts in Filme Cultura and in books and catalogues of festivals and exhibitions, and he participated in juries and in selection committees of festivals in Brazil.
JULIO BEZERRA desenvolve pesquisa de pós-doutorado sobre o corpo no cinema contemporâneo na ECO-UFRJ. Jornalista e crítico de cinema, contribuiu para uma grande variedade de publicações e sites, como Bravo!, Revista de Cinema, Cinética, Globo Online, Programa etc. Assinou ainda a curadoria das retrospectivas de Abel Ferrara e Samuel Fuller (CCBBs) e mantém o blog Kinos (www.cinekinos.blogspot.com). É um dos diretores da série Esquinas, exibida no Canal Brasil. Julio Bezerra is now developing a post-doctoral research on the body in contemporary cinema (ECO-UFRJ). He is a journalist and a film critic He contributed to a wide variety of publications and websites, such as Bravo!, Revista de Cinema, Cinética, Globo Online, Programa, etc.. He was the curator of the Abel Ferreira e Samuel Fuller exhibition at CCBB. He writes in Kinos (www.cinekinos.blogspot.com) and is one of the directors of Esquinas (Canal Brasil).
LÚCIA RAMOS MONTEIRO é doutora em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo e em cinema pela Sorbonne Nouvelle – Paris 3, onde atuou como professora até 2011. Ela integra o coletivo parisiense de pesquisa e curadoria Le Silo, e é uma das organizadoras do livro Oui, c’est du cinéma/Yes, it’s cinema (Campanotto Editore, 2009), sobre as relações entre cinema e arte contemporânea. Lúcia Ramos Monteiro has a PhD in Communication Sciences (Universidade de São Paulo) and a PhD in cinema at the Sorbonne Nouvelle - Paris 3, where she worked as a professor until 2011. She is a member of the Parisian research and curatorial group LE SILO. She is one of the organizers of the book Oui, c’est du cinéma / Yes, it’s cinema (Campanotto Editore, 2009), on the relationship between cinema and contemporary art.
MARIANA KAUFMAN é diretora e roteirista, e também curadora de mostras de cinema. Sócia da produtora Fagulha Filmes, graduou-se em Cinema (UFF) e Design (ESDI), estudou roteiro na NYU e pós-graduou-se em roteiro na PUC RJ. É editora de livros de cinema como Luz em Movimento. Dirigiu o curta Confete, ganhador do prêmio de melhor direção no FEMINA 2013, com a sócia Jo Serfaty, com quem também dirige o novo filme, em edição, A ilha do Farol (contemplado pela Riofilme). Acaba de lançar A mulher que não queria parar de beber suco de maracujá, e finaliza o doc/videoarte, Bolívia, realizado a convite da Bienal de Arte da Bolívia. Mariana Kaufman is a writer and a director, and a curator of film festivals. She is one of the owners of FAGULHA FILMES. She graduated in Cinema (UFF) and Design (ESDI), and studied script at NY and post graduated in script at (PUC RJ). She publishes books about cinema such as Luz em movimento. She directed the short film Confete winner
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of the Best Director at FEMINA 2013 award with her partner Jo Serfaty, with whom she also directed a new movie, now being edited: A Ilha do Farol (covered by Riofilme). She just released A mulher que não queria parar de beber suco de maracujá and finished the documentary/video art Bolívia, made due to an invitation of the Art Biennial of Bolivia.
VICTOR GUIMARÃES é graduado e mestre em Comunicação Social pela UFMG. Crítico da Revista Cinética, professor do Centro Universitário UNA e um dos coordenadores de programação do Festival Internacional de Curtas de Belo Horizonte (2014). Integrante das comissões de seleção do forumdoc.bh (desde 2012) e curador da mostra Políticas do Cinema Moderno, do Cineclube Comum (2013). Tem ensaios publicados em livros, catálogos de festivais e revistas como Doc Online (Portugal), Lumière (Espanha), Imagofagía (Argentina) e La Furia Umana (Itália). Victor Guimarães is graduated and has a Master in Social Communication (UFMG). He writes in Cinética, he is a professor at UNA University Center, and he is one of the coordinators of the International Short Film Festival Program of Belo Horizonte (2014). He is a member of the selection committees of forumdoc.bh (since 2012) and a curator of the Políticas do Cinema Moderno of the Cineclube Comum (2013). He has published essays in books, festivals catalogs and magazines as the Doc Online (Portugal), Lumière (Spain), Imagofagía (Argentina) and La Furia Humana (Italy).
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CRÉDITOS
Presidente da CAIXA Jorge Fontes Hereda
MOSTRA
CATÁLOGO
Empresa coordenadora e produtora
Organização
Fagulha Filmes
Mariana Kaufman e Jo Serfaty
Coordenação geral e curadoria
Edição
Jo Serfaty e Mariana Kaufman
Mariana Kaufman
Produção executiva
Programação visual
Júlia Motta e Viviane Mendonça
Felipe Braga
Coordenação de produção
Tradução
Barbara Kahane
Agustin Arosteguy
Produção Julia Menna Barreto
Eduardo Lopes Fernanda Miguens
Produção de cópias
Gilson Carvalho
Jo Serfaty
Giovanni Jiabin O.
Coordenação editorial Mariana Kaufman
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Ana Adão
Lúcia Monteiro Maíra Amorim Maria Isabel Lamim
Programação visual
Marta Barbosa
Felipe Braga
Thaís Britto
Assessoria de imprensa
Revisão Português
Julia Ryff
Vania Horta
Produção local Rio de Janeiro
Revisão Versão Inglês
Julia Menna Barreto
James Bennet
Produção local São Paulo
Editora
Elaine Esteves
Fagulha Filmes
AGRADECIMENTOS
Adelina von Fürstenberg Adriana Rattes Alessandra Castaneda Aline Gomes Ana Lucia Lima Ana Rosa Marques André Sturm Andréa França Angélica Oliveira Angelo Defanti Anne-Laure Barbarit Antoine d’Artemare Antonio Termenini Art for the world Augusto Malbouison Beatriz Seigner Cachoeira Doc César Guimarães César Migliorin Chow Keung Cícero da Silva Cinética Claudio Silva Consuelo Lins Contracampo Damien Ounouri Denilson Lopes Dora Kaufman Elaine Silva Fabio Andrade Felipe Bragança Felipe Lopes Fernando Fraiha Flavio Datz Gabriela Serfaty Gilda Lima Gisela Cardoso Gustavo Pacheco Hyuk Yong Kwon Ivan Gianini Janaína Mello Jiddu Pinheiro João Kaufman João Luiz Vieira Joice Scavone José Carlos Avellar Julia Levy Juliano de Souza Justine Wang Luiz Kaufman
Marcelle Darrieux Margot Rossi Maria Nauer Mariana Baltar Mariana Santos Marina Pessanha Maya Da-Rin Michael Berry Noémie du Chaffaut Pedro Pipano Peking University Press Rafael Spínola Raul Lonrenzeti Sabrina Nóbrega Sarah Arnaud Sata Cissokho Sau Ip Scapegoat Sesc TV Sidênia Freire Pereira Silvia Boschi Silvia Porto Tadeu Capistrano Talise Lafert Tatiana Leite Tatiana Monassa Thais Blank Thiago Lacaz Thiago Poggio Pádua Vanessa Aragão Walter Salles Xiao Qinan Yaro Carvalho Yu Likwai Zhao Tao Zhao Xin
*Os escritos de Jia Zhangke foram originalmente publicados por Peking University Press e gentilmente cedidos para este livro. *The Jia Zhangke writings were originally published by Peking University Press and kindly provided to this book.
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5 a 17 ago 2014. CAIXA Cultural Rio de janeiro Av. Almirante Barroso 25, Centro. infos: 21 3980-3815
12 a 24 ago 2014. CAIXA BELAS ARTES R. da Consolação 2423, Consolação. infos: 11 3258-4092 Verifique a classificação indicativa dos filmes na programação.
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