Sacrif ício ao Amor O Pintor Debaixo do Lava-Loiças Afonso Cruz texto
Mariana Serra ilustração
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Frantiska costumava inclinar-se sobre os traços que os seus sapatos haviam sulcado no chão, os traços que as suas correrias haviam feito na terra, e lia o que diziam.
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Pronunciava sentenças solenes, muito séria, e obrigava Sors a beijar o chão (para acordar a terra, para acordar os mortos. Comportava-se como um Oráculo da Antiguidade...
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Punha muitas vezes raminhos de louro no cabelo, pois o louro dissipa as sombras, mas quando se estĂĄ triste nĂŁo se consegue chorar.
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Uma vez Sors foi obrigado a passar a tarde a saltar ao pĂŠ-coxinho, pois, disse Frantiska, a terra nĂŁo deve ser pisada pelo pĂŠ direito de um homem.
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A palavra รกgua ou se bebe ou afoga-nos. Porque hรก pessoas com sede e pessoas que se afogam.
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É assim que se separa a humanidade: uns pegam nas coisas para morrer e outros para viver.
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Os sonhos de dormir são mais distantes e vêm de lugares tão antigos que nunca lá poderemos chegar a caminhar pelo tempo...
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Sors brincava com Frantiska: abria os braços e ela atirava bolas de neve, sem qualquer compaixão.
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Sors recebia o impacto com prazer, como se estivesse fuzilado pelo amor.
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Eram balas frias, mas deixavam-lhe a pele da cara vermelha, a arder.
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...Sors mantinha-se perfeitamente imóvel, com braços abertos. Era um sacrif ício ao amor.
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Sacrif ício ao amor Františka dividia o seu jardim em quatro partes e eles nunca pisavam o quadrado que ficava mais distante, do lado esquerdo de quem saía de casa. Františka não deixava, pois aquela terra, quando pisada, provocava insónias à noite. Quando acabava de correr pelo jardim, Františka costumava inclinar-se sobre os traços que os seus sapatos haviam sulcado no chão, os traços que as suas correrias haviam feito na terra, e lia o que diziam. Pronunciava sentenças solenes, muito séria, e obrigava Sors a beijar o chão (para acordar a terra, para acordar os mortos). Portava-se como um oráculo da Antiguidade e tinha, na sua cabeça, um conjunto de regras que mudavam com frequência. Dizia que as linhas arredondadas sulcadas pelos seus sapatos eram as linhas da paixão e não deveriam ser interrompidas por linhas retas, pois isso provocava demasiados suspiros. As linhas direitas eram as linhas do fígado ou do conhecimento. Se fossem muito grandes eram dúvidas, se fossem curtas eram respostas. Punha muitas vezes raminhos de louro no cabelo, pois o louro dissipa as sombras, mas quando se está triste não se consegue chorar. As regras mudavam todos os dias. Uma vez Sors foi obrigado a passar a tarde a saltar ao pé cochinho, pois, disse Františka, a terra não deve ser pisada pelo pé direito de um homem. Dividia as gemas das claras dos ovos estrelados e quando comia uma não comia a outra. Dizia que há dias para comer a gema e outros para comer a clara. - Repete comigo o que eu disser, Jozef. As palavras são tudo. Olha: a palavra frio desce. A palavra calor sobe. A palavra ninho tem ovos lá dentro e um pássaro a dormir. Há quem não queira que confundamos as palavras com as coisas, que o mapa não é o território, mas as palavras é que são as coisas. Há mapas, mas não há nenhum território. A palavra porta abre e fecha; e a palavra janela, se
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for velha, tem o vidro partido. A palavra água ou se bebe ou afoga-nos. Porque há pessoas com sede e pessoas que se afogam. É assim que se separa a humanidade: uns pegam nas coisas para morrer e outros para viver. E há a palavra mar que afunda todos os navios. Františka olhava em frente enquanto, com o pé, desenhava círculos na terra. - Olha: são tão importantes, Jozef, que sem elas éramos ocos. Sem a palavra vertical andávamos a rastejar e sem a palavra horizontal só poderíamos sonhar acordados. Os sonhos de dormir são mais distantes e vêm de lugares tão antigos que nunca lá poderemos chegar a caminhar pelo tempo, pelo passeio pelos jardins. Só lá chegamos deitados, adormecidos até ao chão. Repete comigo, Jozef: cova, dedo mindinho, sete... Aquelas tardes eram eternas e duravam infinitos e, no inverno, a neve enchia os telhados de branco. Sors brincava com Františka: abria os braços e ela atirava bolas de neve, sem qualquer compaixão. Sors recebia o impacto com prazer, como se estivesse a ser fuzilado pelo amor. Eram balas frias, mas deixavam-lhe a pele da cara vermelha, a arder. Františka parecia não se cansar. Durante minutos baixava-se, levantava-se, arredondava a neve na concha das suas mãos e atirava as bolas contra a cara dele. Ria-se quando acertava (batia palmas e gritava «bravo!») e fazia caretas de descontentamento quando falhava. Chegava a praguejar, Sors mantinha-se perfeitamente imóvel, com os braços abertos. Era um sacrif ício ao amor. O inverno, muito por causa disso, era a estação de que ele mais gostava. Era quando ele se tornava o alvo de Františka. Com braços abertos, encostado ao muro. Afonso Cruz - O Pintor Debaixo do Lava-Loiças
Mariana Serra (Pintura) 7040 Ilustração Iniciação FBAUL 2014/2015