Quadros de Referência "Table" e "Tableau" nas Colagens e Construções de Picasso

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Quadros de Referência: “Table” e “Tableau” nas Colagens e Construções de Picasso* Christine Poggi

Na primavera de 1912, Picasso colou uma peça de tecido impermeável estampada com um padrão trompe l’oeil de palhinha de cadeira na superfície de uma pequena tela oval representando uma natureza morta de mesa de café. Esta obra, que ele também emoldurou com uma corda grosseira, adquiriu um status legendário na história da arte como a primeira colagem deliberadamente executada; a primeira obra de arte, ou seja, em que os materiais apropriados da vida cotidiana, relativamente não transformados pelo artista, penetram no domínio tradicionalmente privilegiado da pintura. A obra de Picasso Nature morte à la chaise cannée [Natureza morta com palha de cadeira] desafiou algumas das premissas mais fundamentais sobre a natureza da pintura herdada pelos artistas ocidentais desde a época da Renascença, inclusive nosso entendimento de como as obras de arte existem no mundo. Este estudo aborda as formas pelas quais as colagens de Picasso minam tanto os modelos clássicos como “modernistas” quanto ao entendimento do status ontológico das obras de arte, ao instituir um jogo de ambiguidade com molduras e motivos de enquadramento, assim como com a relação de table (plano da realidade) e tableau (plano da ilusão). * Uma versão deste estudo foi entregue em novembro de 1985 ao Whitney Humanities Center, Universidade Yale. Gostaria de agradecer ao Whitney Humanities Center e à Fundação Georges Lurcy por me concederem uma bolsa de estudos no período 1985-86, que me permitiu realizar a pesquisa e redigir este trabalho. As ideias apresentadas aqui fazem parte de minha dissertação, “In Defiance of Painting: The Invention and Early Practice of Collage, 1912-1919” (Universidade Yale, maio de 1988).

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Os dois paradigmas mais evocados para explicar como as obras de arte devem ser vistas são a janela (ou espelho), um modelo mais claramente articulado nas teorias renascentistas de Alberti, e o objeto autossuficiente, um modelo que pode ser rastreado pelo menos até o século dezoito com o esteticismo modernista inicial de Kant. Ambos estes modelos evidentemente opostos partem do pressuposto do realismo: a janela por propiciar uma visão convincente da realidade, o objeto por exemplificar sua própria realidade material. Não é de surpreender que estes modelos tenham sido usados para explicar as inovações formais do cubismo, especialmente por aqueles que afirmam que o cubismo representa uma modalidade superior de realismo, geralmente denominada “realismo conceitual”. Afirma-se com frequência que as obras cubistas exemplificam esta nova modalidade de realismo ao rejeitar o paradigma da janela em favor da representação conceitual de percepções múltiplas ou ao enfatizar os aspectos materiais da obra de arte como objeto autossuficiente. No entanto, este esforço para ver no cubismo uma nova modalidade de realismo é, em última análise, uma forma de controlar o cubismo ao refundi-lo nos moldes de um projeto tradicional. As colagens de Picasso, no entanto, tornam o projeto do realismo problemático ao minar a capacidade do espectador de experimentar ou ler uma obra por meio da aplicação de um paradigma único e obrigatório. Em lugar disso, suas colagens, a começar por Nature morte à la chaise cannée [Natureza morta com palha de cadeira], geralmente justapõem dois paradigmas dominantes – a janela e o objeto – para que cada um seja definido em relação ao outro. Picasso se refere ao modelo de pintura como janela através do plano vertical do tableau. Este é o plano que corresponde à postura normal de visualização vertical e, portanto, é o plano clássico de ilusão pictórica. Picasso se refere ao objeto autossuficiente através do plano horizontal da table (mesa), o plano de objetos reais que existem no espaço tridimensional. A justaposição de table e tableau, bem como suas implicações para a interpretação realista das colagens de Picasso, é objeto do presente ensaio. Uma das asserções mais frequentes feitas sobre a obra de arte cubista é que ela redefiniu o status ontológico da obra de arte. Não mais modelada de acordo com a noção clássica de que a pintura é como uma janela transparente para o mundo, diz-se que as obras cubistas são concebidas como objetos autônomos e autossuficientes. Os primeiros críticos em particular, e efetivamente alguns dos próprios artistas, enfatizaram que, ao rejeitar as normas de imitação, o artista foi liberado das restrições tanto da tradição como da natureza. Desta forma, o artista cubista parecia atingir um poder divino inédito de criação, acrescentando, ao mundo das coisas, novos “objetos” cuja presença material afirmava o que era descrito como uma nova forma de “realismo”. Surge aqui, no entanto, um paradoxo essencial e recorrente na interpretação do cubismo. Pois, na medida em que o “objeto” cubista é usado para exemplificar o ser concreto ou a autopresença autônoma, deve recusar a função de representação. Este paradoxo passou, em grande parte, despercebido pela maior parte dos críticos e historiadores do cubismo. Geralmente, aqueles que afirmam a qualidade de objeto das obras cubistas também afirmam que as inovações cubistas formais pretendiam dar ao espectador informações mais completas sobre a natureza essencial das coisas no mundo cotidiano. Estes críticos e historiadores da arte alegam que, ao rejeitar o sistema renascentista de perspectiva de ponto único e os efeitos acidentais da luz, os artistas cubistas foram capazes de combinar visões diferentes dos objetos, desta forma apresentando ao espectador o que era conhecido sobre estes objetos, em lugar do que poderia ser imediatamente percebido. Um exemplo desta evocação dupla do realismo ocorre no influente livro de John Golding, Cubism: A History and an Analysis, 1907-1914. Nesta discussão das primeiras obras cubistas de Picasso, de 1909, Golding escreve:

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O abandono da perspectiva tradicional por Picasso havia sido resultado de seu interesse em investigar a natureza das formas sólidas e do desejo de expressála de forma pictórica nova, mais completa e abrangente... Picasso desejava apresentar em cada imagem a maior quantidade de informações possível sobre o assunto. Quando subdivide e faceta a forma, revela uma tentativa de avançar para sua estrutura interna... Temos a impressão de que Picasso procura uma verdade pictórica final, uma representação absoluta da realidade.2

Em outra parte de seu texto, Golding afirma que “os cubistas viam suas pinturas como objetos construídos com existência própria e independente, como pequenos mundos autocontidos, não refletindo o mundo externo, mas o recriando de forma completamente nova”.3 A colagem, uma técnica inventada por Picasso e Braque em 1912, é, na opinião de Golding “o produto lógico” desta concepção de obras cubistas como “objetos autocontidos e construídos”, pois a inclusão de diferentes materiais em colagens “enfatizava de maneira muito concreta seu peso e solidez como objetos materiais.”4 Golding não reconhece nenhum deslize ou mudança em sua definição de realismo cubista entre 1909 e 1912, mas enfatiza a continuidade da intenção estética do movimento antes e depois da invenção da colagem: “... embora o papier collé envolvesse novos métodos de trabalho e iniciasse quase simultaneamente uma nova fase na arte de Picasso e Braque, não envolvia mudanças fundamentais de estética... O cubismo continuava a ser a arte do realismo; seu objeto permanecia o mesmo, assim como os interesses e intenções dos pintores.”5 Discussões semelhantes da intenção realista dos artistas cubistas dominam grande parte da literatura sobre o cubismo sem referências às contradições inerentes a este tipo de análise. No entanto, uma teoria de realismo baseada na presença material do objeto como um mundo autocontido não coexiste facilmente com uma teoria de realismo baseada na quantidade de informações transmitidas sobre o mundo fora do contexto. Uma análise da representação e subversão de Picasso no que se refere às teorias tradicionais e contemporâneas do realismo em suas colagens será objeto deste ensaio. A invenção e prática inicial da colagem propiciam um excelente ponto focal para a análise do “realismo” cubista, pois os elementos individuais da colagem foram lidos como “reais” tanto dentro do contexto ilusório da pintura ou desenhos como nos sinais da realidade não fisicamente presente. O status duplo destes elementos recapitula o paradoxo essencial da obra cubista em si, que parece existir como objeto material (e para chamar atenção para si como tal) e como uma modalidade de representação. Além disso, as obras de colagem de Picasso dramatizam o desafio cubista aos padrões dominantes de unidade pictórica, tanto acadêmica como de vanguarda. A noção de unidade pictórica foi um fator crucial na tentativa crítica de definir o status ontológico da obra cubista. Para a obra cubista afirmar sua autossuficiência material e formal, precisava parecer internamente coerente, regida por leis derivadas do meio em si. Entretanto, para a obra cubista ser interpretada como “conceitualmente” realista, a estabilidade e realidade do referente tiveram que ser colocadas. A unidade pictórica então tomou a forma de “síntese” criativa de informações objetivamente conhecidas. Nos dois casos, os primeiros críticos favoráveis tendiam a ver as obras cubistas, inclusive colagens, como exemplificadoras do ideal de unidade pictórica. Daniel-Henry Kahnweiler, por exemplo, descreveu o cubismo como uma técnica que assume (e resolve) problemas que são “as tarefas básicas da pintura: representar três dimensões e cores em uma superfície plana e incluí-las na unidade daquela superfície”. E isto foi concretizado com uma estrutura de “composição não agradável”, mas intransigente, organicamente articulada”.6 Kahnweiler insistia, no entanto, que este “retorno para a unidade da obra de arte, no desejo de criar não esboços, mas organismos acabados e autônomos”,7 fosse conciliado com a função representacional da pintura. 3


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Ao assim proceder, Kahnweiler recorria à sua recente leitura de Kant, que lhe oferecia um modelo para a interpretação do “grande avanço de Picasso, conseguido em Cadaques” em 1910. Este avanço – a perfuração da forma fechada – podia então ser visto como meio de combinar diferentes visualizações de objetos em um todo sintético, perceptualmente unificado: “Em lugar de uma descrição analítica, o pintor pode, se preferir, também criar desta forma uma síntese do objeto, ou nas palavras de Kant, ‘reunir as várias concepções e abranger sua variedade em uma percepção’”.8 Para Kahnweiler, a solução do conflito entre a representação e a estrutura era uma das grandes realizações da pintura cubista, mas suas explicações são eivadas de contradições internas e não chegam a fazer justiça à complexidade autoconsciente e sagacidade irônica das obras cubistas. No entanto, a atenção que ele deu a este problema em seus escritos revela sua importância para os artistas e seu público no período cubista. O próprio Picasso frequentemente chamava a atenção para a questão da unidade pictórica através do motivo da moldura, tornando problemáticos seu lugar, forma de aparência, e, em última análise, seu significado. Suas manipulações das molduras reais de suas colagens, e dos motivos das molduras, no entanto, sugerem um desafio, em lugar de uma exemplificação, do ideal da obra unificada. Na pintura clássica, a moldura desempenha o importante papel de definir o limite entre o mundo ficcional e unificado da pintura ou desenho e o mundo real externo. A moldura, então, desempenha um papel duplo: estabelece a diferença entre a ficção dentro da moldura e a realidade além dela, mas o faz com o objetivo de definir este mundo ficcional como uma realidade coerente e autônoma. As molduras de Picasso, no entanto, frequentemente aparecem em suas obras, desta forma quebrando sua unidade interna e a distinção clara entre o mundo da realidade e da ficção.9 As molduras de Picasso são curiosamente semelhantes aos seus elementos de colagem – clippings de jornal, jogo de cartas, fragmentos de papel de parede, partes de pautas musicais – em que os elementos de molduras e colagem são objetos familiares do cotidiano normalmente excluídos do campo da ilusão pictórica. Seu surgimento dentro daquele campo representa uma subversão de noções dominantes da unidade artística e isto, por sua vez, coloca em questão a interpretação “realista” das colagens de Picasso. É melhor começar o estudo das manipulações de molduras e motivos de molduras de Picasso e sua relação com esta prática de colagem com sua primeira colagem evidentemente deliberada, Nature morte à la chaise cannée [Natureza morta com palha de cadeira]. Esta obra apresenta ao espectador não apenas a surpreendente inclusão de uma peça de tecido impermeável estampada com uma imitação de palhinha de cadeira, mas também uma moldura na forma incomum de uma corda de marinheiro. O último dispositivo pode ter sido inspirado pelo uso de molduras de corda ou cânhamo nas cromolitografias populares, que Picasso sabidamente colecionava10 ou pelo uso de corda para emoldurar espelhos de souvenir em cidades portuárias.11 A corda, então, assim como o tecido impermeável, é um material pronto, produzido em massa, associado com a arte popular e não com as belas artes, e é usada por Picasso para simular a habilidade artesanal. A corda, um material de arte “baixa” ou mesmo de “não arte”, serve para parodiar as molduras de madeira chanfrada que tradicionalmente significam “arte de alto nível”, assim como a inclusão do tecido impermeável parodia o valor acordado do meio de pintura a óleo em si. Os borrões proeminentes e gestuais da pintura a óleo na superfície lisa do tecido impermeável enfatizam ainda mais esta irônica justaposição de meios. Ao chamar atenção para a moldura, no entanto, Picasso deu a ela uma função paradoxal adicional. A corda, ao marcar a borda da colagem como o retrato de uma mesa de um café, também torna a tela oval propriamente um sinônimo da mesa, desta forma misturando o objeto literal com a mesa que representa.12 Já na primavera de 1911, um ano antes da obra Nature morte à la chaise 4


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cannée [Natureza morta com palha de cadeira], Picasso havia ocasionalmente definido as bordas das mesas em suas naturezas mortas com cordas torcidas, às vezes incluindo as franjas de uma toalha de mesa, de forma que a corda, algumas vezes com franjas ou debruns, vieram a denotar a presença de uma mesa.13 Este uso do motivo da corda provavelmente terá sido facilmente entendido pelos contemporâneos de Picasso, já que franjas, debruns e bordas eram frequentemente usados para decorar mobília, especialmente mesas, cadeiras e sofás, em lares burgueses do final do século dezenove e início do século vinte. Uma foto do estúdio de Picasso em 1909 mostra Braque sentado próximo a uma mesa redonda coberta com uma toalha de mesa com franjas semelhante àquelas que poderiam ser vistas nas residências mais ricas da época. A presença de uma versão barata de tal objeto decorativo no estúdio de Picasso é consistente com o que conhecemos da “mania de colecionar” objetos por parte de Picasso, que “não estaria fora de lugar na portaria de um edifício”. Isto, Fernande Oliver nos diz, “fazia parte de atração destes objetos para ele”.14 Em uma das várias telas para representar a mesa da natureza morta com fragmentos de corda, Les échecs [O xadrez], a corda serve como recurso de enquadramento em dois sentidos opostos. Os fragmentos de corda, desenhados de maneira ilusionista no meio de um sistema de outra forma hermético de formas pictóricas fraturadas, significam tanto as bordas da moldura da mesa da natureza morta retratada como o laço da cortina do canto superior direito da obra. Assim como o laço da cortina e a franja, a corda se refere ao modelo de pintura renascentista, em que a tela é aparentemente transformada em uma janela transparente ou aberta. O laço da cortina também sugere o tradicional repoussoir, um elemento de enquadramento que cria a ilusão de profundidade ao parecer estar no plano frontal da tela, de forma que outros objetos possam aparecer por trás. Portanto, é um motivo associado com a ideia de visualização como revelação, de enxergar na profundidade como modo de conhecimento. Os artistas frequentemente usam cortinas para este fim, sendo que a apropriação por Picasso deste recurso convencional é particularmente significativa no contexto cubista. Ver a corda como referência às noções tradicionais de transparência e ilusão esclarece a ironia da retratação por Picasso do fragmento da corda naquilo que foi descrito como realismo trompe l’oeil, mas que em sua crueza parecer mais provavelmente uma caricatura deliberadamente ingênua de trompe l’oeil. O “naturalismo” do estilo de desenho usado para retratar a corda dificilmente engana os olhos e pode ser chamado de trompe l’oeil apenas em comparação com o desenho geométrico do restante da obra. O laço e franja da cortina, portanto, servem mais como emblemas ou representações da ilusão trompe l’oeil e não realizam suas funções tradicionais: a cortina metafórica deixa de revelar uma visão coerente em uma profundidade ilusória mais adiante. Pelo contrário, os objetos e formas retratados aqui e nas outras obras de Picasso deste período parecem flutuar em um espaço raso e ambiguamente definido. A ironia de Picasso não se restringe, no entanto, a referências a recursos ilusionistas do passado. Na obra Les échecs [O xadrez], o motivo da corda serve também para estabelecer a borda da estrutura da mesa. Enquanto a tela é o suporte literal do quadro de Picasso, a mesa é o suporte figurativo dos objetos de natureza morta que estão sobre ela; ao “emoldurar” a mesa, Picasso desenhou um paralelo entre estes dois suportes ou bases, igualmente metafóricos, de sua arte. O laço e franjas da cortina, referindo-se à noção tradicional da tela como plano vertical transparente, flutuam como um talismã descartado nos cantos superiores destes quadros opacos. A borda/ moldura da mesa, referindo-se ao conceito alternativo e modernista da obra de arte como objeto material, ocupando um plano horizontal, também aparece em forma fragmentar. Em nenhum dos dois sentidos, o uso do motivo da corda como material de moldura conseguiu estabelecer um paradigma metafórico definitivo para a maneira de receber a obra. O motivo da corda, então, denota, emblematicamente, dois modelos conflitantes para a relação do espectador com a obra de arte sem estabelecer a primazia de um sobre outro. Nestas explorações de 1911, no entanto, a oposição do plano vertical do tableau ao plano horizontal da table permanece como 5


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questão de alusão pictórica. No entanto, o isolamento deste tema nas pinturas de Picasso como Les échecs [O xadrez] demonstra seu interesse inicial em analisar a relação de ilusão e objeto como função da oposição dos planos vertical e horizontal.15 Pode ter sido em parte como meio de elevar a possibilidade de leitura literal da table como objeto concreto que Picasso finalmente decidiu emoldurar Nature morte à la chaise cannée [Natureza morta com palha de cadeira] com uma corda real. A forma oval ambígua da tela/table, no entanto, imediatamente mina a possibilidade de uma leitura uníssona e literal, pois o oval pode representar uma mesa redonda vista de um ângulo oblíquo, vista, de fato, da maneira como uma pessoa sentada a uma mesa de café a veria. Além disso, Picasso enfatizou a divergência de sua tela oval como objeto daquilo que a tela representa pela pintura nas bordas de uma mesa retangular, grosseiramente ao longo da borda horizontal inferior e mais finamente na diagonal que implica recessão à direita. Na medida em que é construída a borda da mesa como moldura, estas bordas alternadas da mesa retratada podem ser lidas como outro exemplo do uso por Picasso de “molduras internas”. As bordas da mesa, em parte sinônimas do limite de acabamento da tela, reaparecem dentro daquele limite, desta forma desmantelando as oposições binárias tradicionais de dentro/fora, obra de arte/mundo exterior. A intrusão do tecido impermeável estampado com palhinha de cadeira funciona de maneira semelhante: subverte o papel convencional da moldura para definir uma borda coerente dentro do que a obra deveria ser unificada de forma composicional e material. A obra Nature morte à la chaise cannée [Natureza morta com palha de cadeira] da primavera de 1912 permaneceu como um experimento relativamente isolado nas obras de Picasso até que sua colaboração com Georges Braque no outono daquele ano levou os dois artistas a explorar uma grande variedade de técnicas de colagem. Naquela ocasião, Picasso fez uma colagem incomum, Violon et journal [Violino e jornal], como parte de uma série de obras sobre o tema de um instrumento musical pendurado na parede. Pintado em vidro, Violon et journal [Violino e jornal] novamente retoma o motivo da janela, sendo interessante comparar com uma obra anterior de Braque, Le Portugais [O português], de 1911. O quadro de Braque geralmente é descrito como se representasse um violonista português e, de fato, algumas vezes se diz que foi inspirado por um determinado violonista que ele havia visto em Marselha.16 Mas, como argumentou Jean Laude, Braque representou este violonista como se fosse visto por meio de uma janela de um café de tal forma que a cena retratada parece coincidir com o próprio vidro da janela.17 O fato de estarmos olhando para o violonista pela janela do café é sugerido pelo laço da cortina e a franja à direita, e pelas letras e palavras, que parecem ser propagandas em estêncil no vidro da janela. No entanto, estas palavras, como as formas do violonista, são tão arbitrariamente fragmentadas que negam a ilusão da transparência da janela de um espaço claro, legível além dela. Em lugar disto, a figura e o fundo parecem se fundir no jogo oscilante de formas opacas e transparentes. A obra Violon et journal [Violino e jornal] de Picasso demonstra que mais uma vez ele expressou o que em sua obra anterior ou na de Braque havia permanecido figurativo. Aqui o fundo da tela deu lugar a um vidro de janela realmente transparente, que em termos convencionais mal funciona como fundo. Uma das coisas que esta obra revela é que a tela deve ser opaca para funcionar de maneira convincente como figura de transparência. Pois, ao olhar através das partes “inacabadas” do vidro, vemos uma faixa de lambris que faz parte da parede por trás do vidro, mas que, nesta foto tirada no estúdio de Picasso, entra na composição da obra como elemento estranho, perturbando assim sua unidade interna e autossuficiência. No entanto, esta “realidade” do exterior do quadro deixa de permanecer completamente estranha à composição de Picasso, pois não se parece muito com uma moldura e, além do mais, se parece com o fragmento pintado de uma moldura (também possivelmente com cordas de violino deslocadas) acima. E no jogo de múltiplas substituições – sinalizadas pela palavra “JOU” (abreviada de “journal”) – o lambri, 6


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que aparece logo abaixo do violino pintado, também denota a borda de uma mesa de apoio. A despeito de seu modo de aparência incomum, não é de surpreender que Picasso escolheria introduzir o motivo de lambri como um tipo de «moldura interna» nesta pintura de violino. Uma obra relacionada do outono de 1912, Violon Accroché au Mur [Violino na parede], representa um violino com lambri de madeira pintado e painel à direita. Outra seção do lambri de madeira pintado, de formato horizontal e colocado logo abaixo do violino, sugere a presença de uma mesa de apoio. Seria interessante saber se Picasso pretendia que a obra Violon et journal [Violino e jornal] fosse emoldurada de forma convencional, o que iria, sem dúvida, diminuir muito a ambiguidade que esta obra estabelece entre realidade e ilusão. Um indício de que ele não pretendia está em uma foto do estúdio de Gertrude Stein, tirada em uma data provavelmente no final de 1912 ou 1913. Na foto, várias pinturas cubistas e colagens de Picasso estão sem moldura em paredes muito cheias, inclusive a obra intitulada Violon [Violino],18 que é muito semelhante em sua composição à obra Violon et journal [Violino e jornal]. A apresentação sem moldura da obra Violon [Violino] e outras obras sugere que Picasso provavelmente também pretendia que Violon et journal [Violino e jornal] permanecesse sem moldura como parte de sua estratégia de desafiar a coerência ficcional do mundo contida no quadro. Como Gertrude Stein declarou em seu ensaio de 1938 sobre Picasso, com a criação do cubismo “o enquadramento da vida, a necessidade de que um quadro exista em sua moldura, permaneça em sua moldura, chegara ao fim”.19 Em um esforço maior para romper a unidade pictórica de Violon et journal [Violino e jornal], Picasso criou um relevo real em determinadas áreas ao acrescentar areia à superfície de vidro e ao simular lambri com tinta aplicada grosseiramente. Estas áreas texturizadas atraem o sentido tátil do espectador e as informações que geram permanecem independentes das informações geradas pelas formas mais puramente ópticas ou pictóricas. Assim como na obra Le Portugais [O português], de Braque, as várias partes dos objetos retratados nesta colagem não aderem de forma convencionalmente orgânica. Algumas vezes foi dito por críticos modernistas como Clement Greenberg que os cubistas colavam pedaços de papel liso em seus fundos de tela para enfatizar o nivelamento do plano do quadro. Esta ênfase no nivelamento é vista como confirmação do nivelamento necessário e original do meio da pintura em si. No entanto, obras como Violon et journal [Violino e jornal] chamam atenção para o fundo para que elas se tornem problemáticas e não seguras. O relevo real de determinadas áreas e a visibilidade dos objetos por trás do plano do quadro negam a homogeneidade e nivelamento do fundo como características ideais do campo representacional. Qualquer interpretação das colagens de Picasso que enfatize o interesse do artista em chamar atenção para o meio para dramatizar sua integridade e primazia é cega para a força radical disruptiva das obras cubistas de Picasso. Não são obras autocontidas e unificadas que podem ser facilmente assimiladas na aspiração modernista por um domínio atemporal, puro e ideal por meio da arte.20 Em lugar disto, colagens como Violon et journal [Violino e jornal] demonstram que o fundo não segura, a moldura não enquadra e as formas não significam uma realidade sinalizadora e unificada. Fragmentos de corda torcida, algumas vezes com franja, e padrões de moldagem (ambos desenhados ou recortados de papel de parede) continuam a aparecer nas colagens de Picasso nos dois anos seguintes. Na primavera de 1913, Picasso criou uma série de naturezas mortas em que a permutabilidade destes motivos de enquadramento é um tema importante. A corda é usada para significar a mesa de apoio em A xícara de café e em Guitare, verre, bouteille de Vieux Marc [Violão, taça de vinho, garrafa de Vieux Marc], ao passo que a moldagem a partir da borda de um padrão de papel de parede significa a borda da mesa em Garrafa de Vieux Marc, copo e jornal e na colagem muito simplificada, Violão sobre uma mesa. Nestes exemplos, o papel de parede engendra uma leitura dupla, análoga àquela encontrada em Nature morte à la chaise cannée [Natureza 7


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morta com palha de cadeira] de Picasso: um único elemento pictórico (aqui, o papel de parede; na colagem anterior, a corda) se refere ao plano vertical nivelado da parede (e por implicação, do plano do quadro), assim como ao plano horizontal da mesa. Uma dualidade relacionada aparece em Guitare, verre, bouteille de Vieux Marc [Violão, taça de vinho, garrafa de Vieux Marc]e em A xícara de café. Nas duas obras, o papel de parede reforça um sentido de verticalidade em relação à horizontalidade da mesa, mas a mesa em si é retratada tanto como com bordas retas como redonda. A última duplicação de significantes pictóricos também lembra a mesa duplamente representada em Nature morte à la chaise cannée [Natureza morta com palha de cadeira] em que uma mesa com bordas retas foi retratada dentro da borda literal da mesa oval. Em nenhum destes exemplos, no entanto, a justaposição de significantes representa uma tentativa de sintetizar diferentes “visões” de uma mesa em um único todo sintético; em lugar disso, os significantes permanecem em oposição. E nas duas colagens ocorre o mesmo princípio construtivo no tratamento do violão, que é composto de metades desarticuladas curvas e retas, ou na visualização do gargalo da garrafa de Vieux Marc, circular e quadrado, modelado e nivelado, na obra Guitare, verre, bouteille de Vieux marc [Violão, taça de vinho, garrafa de Vieux Marc. O espectador não adquire uma riqueza de informações sobre estes objetos representados, mas percebe que sabe muito pouco sobre eles. A mesa é redonda ou quadrada? A imagem permanece suspensa entre estas duas possibilidades contraditórias, mas simultaneamente afirmadas. Albert Gleizes e Jean Metzinger haviam alertado seus leitores sobre o perigo de oposições formais equivalentes em seu tratado de 1912, Do Cubismo. Em seu texto didático, argumentavam que a ciência do design consiste em instituir relações entre linhas retas e curvas. Um quadro que contivesse apenas linhas retas ou curvas não expressaria existência. Seria o mesmo com um quadro em que as linhas curvas e retas se compensassem exatamente, pois a equivalência é igual a zero.21

De acordo com Gleizes e Metzinger, então, a equivalência estrutural de linhas curvas e retas em uma obra resultaria em uma composição autocancelada, separando e não afirmando o vínculo com a “existência”. Ironicamente, esse parece ser o caminho escolhido por Picasso. Suas oposições pictóricas afirmam a artificialidade da arte e a natureza arbitrária e diacrítica de seus sinais. Com base em uma série de relatos contemporâneos, sabemos que Picasso poderia ser extremamente cáustico com aqueles que insistiam em buscar estabelecer um vínculo essencial ou verdadeiro entre arte e natureza. Andre Salmon, um dos amigos poetas de Picasso, relatou o seguinte incidente engraçado, mas esclarecedor no Paris-Journal em 1911: “Para um jovem, que pergunta a ele se seria preciso desenhar pés redondos ou quadrados, Picasso responde com muita autoridade: ‘Não há pés na natureza!’ O jovem fugiu e ainda está correndo para grande alegria de seu mistificador”.22 De acordo com Kahnweiler, o jovem em questão era o próprio Metzinger.23 No entanto, talvez em resposta a todos aqueles que observaram a arbitrariedade sistemática das formas de Picasso em 1912-14, a palavra do artista afirma a não identidade de sua arte com o que ela representa. Em uma entrevista em 1923, Picasso reconfirmou este princípio: “Falam de naturalismo em oposição à pintura moderna. Gostaria de saber se alguém já viu uma obra de arte natural. Natureza e arte, sendo duas coisas diferentes, não podem ser a mesma coisa. Por meio da arte, expressamos nossa concepção do que a natureza não é”.24 Claramente, os significantes pictóricos de Picasso se referem a objetos cotidianos no mundo; no entanto, eles atuam sem se parecer com os mesmos objetos no sentido tradicional (coerente) ou mesmo, como já se afirmou, ao recorrer a um realismo “conceitual” mais elevado. Se o realismo for entendido como um modo de representação que é, em algum sentido, 8


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verdadeiro ou adequado aos objetos representados, as colagens cubistas de Picasso devem fracassar. Essas obras, em particular, são construídas pelo jogo entre significantes diferenciais: borda reta versus curva, modelado versus nivelado, transparente versus opaco, feito à mão versus feito à máquina, literal versus ilusório. O princípio da diferença, já operante na distinção entre natureza e arte, então se torna um princípio que rege também a organização interna da obra de arte. As oposições formais que Picasso emprega são retiradas da história da arte25 e das teorias estéticas contemporâneas, como as de Seurat ou Leger, baseadas em “leis de contraste” e, nesse sentido, não são arbitrárias; pertencem a uma tradição pictórica compartilhada e já são imbuídas de significado. Estas oposições, no entanto, realmente apontam para sua própria arbitrariedade em relação ao objeto representado, mesmo na medida em que permitem que a representação ocorra. A pergunta que ainda deve ser feita é se o sistema de diferenças formais em jogo na obra cubista de Picasso descreve um campo fechado – em que está circunscrito ou “emoldurado” – ou um campo aberto à mudança e ruptura, talvez por meio do papel interpretativo do espectador. A resposta a esta questão pode ser encontrada apenas quando se recorre novamente às colagens de Picasso, e ao leitmotif da moldura conforme representado nas referidas colagens. A tendência nas obras de Picasso pós-1912 no que se refere a elementos de colagem que rompem com as molduras literais ou figurais, tornou-se especialmente marcante em suas construções. A maior parte dessas obras extremamente frágeis, feitas com materiais humildes e improváveis, permaneceu nas mãos de Picasso durante toda sua vida e algumas são conhecidas apenas por foto. Gertrude Stein lembra que ela ficou “muito impressionada naquela época, quando o cubismo estava um pouco mais desenvolvido, com a maneira pela qual Picasso conseguia reunir objetos e fotografá-los. Guardei um deles, e pela força de sua visão não era necessário que pintasse o quadro. Ter reunido os objetos já os transformava, não em outro quadro, mas em algo diferente, nas coisas como Picasso as via”.26 Um exemplo disto é uma montagem de 1913, uma invenção de grande ironia e inteligência, que em sua forma original parece ter dispensado totalmente as bordas de acabamento de uma moldura. Esta obra continha um desenho em papel dimensionado, pendurado como uma cortina contra a parede do estúdio de Picasso, representando um arlequim parcialmente mascarado, com braços e mãos recortados de jornal e presos com pinos e barbante a um violão real, suspenso do teto. Há também uma mesa real, muito semelhante às mesas das naturezas mortas de Picasso daquele período, com a garrafa, xícara, cachimbo e jornal familiares, todos muito próximos à parede. O violão, em particular, parece incrivelmente inteiro e fisicamente presente em comparação com o desenho fragmentar e realmente «inacabado», ou com o Violino construído também pendurado na parede. No entanto, Picasso inseriu este objeto familiar em um sistema representacional que nos obriga a reconhecê-lo, paradoxalmente, como um violão real e como sinal de um violão. Se a definição mais fundamental de um sinal é que se refere a algo que está ausente, ou se, em outras palavras, deve haver uma diferença entre o significante e o referente, o status do violão é realmente problemático. Pois o violão parecer ser idêntico a si mesmo e, portanto, parece existir, bem simplesmente, como um objeto real ou literal, muito semelhante à mesa ao lado. A mesa em si poderia parecer independente deste tableau, não fosse pelo jornal sobre ela, que está virado contra a parede, levando-a ao domínio das ficções, assim como os braços de jornal do arlequim se estendem e se apropriam do violão para si. Uma vez inserido no contexto semelhante a um palco do estúdio de Picasso, a literalidade do violão é colocada em questão; parece ser semelhante a si mesmo, tornar-se um modo naturalista de representação em oposição ao desenho geométrico cubista ao lado, muito semelhante aos detalhes naturalistas que apareceram nas pinturas mais herméticas de Picasso e Braque de 1910 até o início de 9


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1912. O violão também está invertido, uma posição que o transforma em não funcional e sugere que o violão é um reflexo ou reprodução de si mesmo,27 em lugar de um objeto singularmente existente. A manipulação do violão por Picasso, assim como de outros objetos nesta montagem, cria um trampolim entre a identidade literal destes objetos e nossa percepção deles, desta forma transformando as coisas em sinais. O violão e a mesa podem ser lidos, então, não apenas como representações das próprias naturezas mortas contemporâneas de Picasso, mas também como um comentário irônico sobre sua aspiração de alcançar o status do real. A imagem de um violonista segurando um violão invertido pode também se referir a representações anteriores na história da arte, particularmente Le Chanteur Espagnol [O cantor espanhol] de Manet. Os críticos de Manet haviam observado que o violão na obra Le Chanteur Espagnol [O cantor espanhol], com as cordas colocadas para um músico destro, foi invertido e, além disso, que as posições das mãos do “violonista” indicavam que ele não sabia tocar o instrumento. Picasso pode ter sido atraído inicialmente para a pintura de Manet devido às associações espanholas, mas se isto foi um precedente para sua montagem, parece ter sido principalmente pelos “erros” observados pelos contemporâneos de Manet. Devido ao esforço do próprio Picasso para quebrar a coerência espacial, não é de surpreender que estaria interessado em Manet ou que poderia escolher se referir apenas às características da pintura de Manet que os críticos haviam considerado mais perturbadoras. O que os críticos teriam dito das cordas tocadas pelas mãos de jornal de três dedos do arlequim de Picasso? E do violão e da mesa, que são pequenos demais em relação ao desenho em tamanho maior que o real no fundo? Ou do músico, que parece ter pernas incapazes de sustentá-lo; feitas de papel e pregadas ao suporte, podiam claudicar sob a mesa? Finalmente, o violonista de Picasso, como o de Manet, é retratado vestindo a fantasia. Na pintura de Manet, a fantasia do violonista, algo de um pastiche, chama atenção ao fato de que Manet pintou um modelo “em pose” em seu estúdio.28 Na montagem de Picasso, o ambiente do estúdio é uma característica ainda mais óbvia da apresentação da obra.29 Ao transformar os objetos de sua montagem em sinais de representações anteriores, Picasso “inverteu” a relação normal de representação para um modelo, uma relação que ele inverteu mais uma vez ao tirar a foto, introduzindo, portanto uma moldura e sujeitando estes objetos à “força de sua visão”. A incerteza do espectador a respeito do status destes objetos surge somente na ausência desta moldura, com a fusão do espaço pictórico, semelhante a um palco e da vida real que existia no ambiente do estúdio original. Naquele ambiente, talvez tenha sido possível ver o violão e a mesa como objetos reais e potencialmente funcionais. Se, no entanto, introduzirmos um tipo de acabamento ou moldura, como faz a foto, estes objetos parecem elementos de um sistema predeterminado de oposições formais, como figuras do real, tornadas temporariamente em não funcionais pelas manipulações de Picasso e nossa própria atividade constitutiva como espectadores. A maior parte das colagens e construções subsequentes de Picasso introduz a moldura como borda a ser parodiada ou transgredida. Na obra Taça, dado e jornal, da primavera de 1914, por exemplo, seções cortadas e torcidas de uma lata de leite, grosseiramente pintadas para parecer vidro e fragmento de jornal, se projetam de um plano delimitado do tableau vertical, como se para sinalizar um desejo de atingir a função tridimensional do objeto. Novamente, a moldura desempenha um papel fundamental ao estabelecer este jogo entre a profundidade ilusória e real que, por sua vez, ameaça omitir a distinção entre pintura e escultura. Na obra Verre et bouteille de Bass [Taça e garrafa de Bass], também da primavera de 1914, Picasso criou uma moldura simulada ao colar uma borda de papel de parede nos quatro lados de sua foto. Mas esta moldura não funciona de forma convincente, porque o papel foi recortado de forma muito grosseira e colado (marcas de tesoura e sobreposições são visíveis), a orientação da estampa alterna ao redor das quatro bordas e, o que é mais crucial, falta uma parte do canto superior direito. Picasso preencheu esta lacuna com uma moldura desenhada a 10


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lápis diretamente no fundo de cartolina sem, entretanto, fazer nenhuma tentativa de imitar a estampa do papel de parede. Enfatizando ainda mais a diferença desta parte desenhada à mão da moldura do papel de parede, Picasso a fez formar uma sombra ilusionista à direita, como se apenas a moldura desenhada tivesse presença volumétrica. No entanto, devido à sua natureza isolada e fragmentada, a sombra não pode ser confundida com uma sombra real e, portanto, chama atenção para si mesma como ilusão. A função da moldura como borda de acabamento também é negada pela extensão do fundo da cartolina além do perímetro marcado pela moldura (interna), fazendo as bordas literais e emolduradas da colagem divergir. A borda do papel de parede, portanto, aparece como uma foto (mal feita) de moldura. O pequeno pedaço de papel que traz o nome de Picasso é igualmente paradoxal. Funciona para este quadro como uma placa de identificação literal do tipo (quando não do material) frequentemente encontrado em museus e como uma imitação irônica destas placas de identificação. Dentro da moldura de papel de parede da obra Verre et bouteille de Bass [Taça e garrafa de Bass], Picasso criou um quadro de natureza morta de table/tableau pendurado na parede feita de “papel de parede”. Uma foto do apartamento de Daniel-Henry Kahnweiler, tirada naquela época, nos dá indícios de que o marchand cubista pendurava as obras de Picasso e de outros artistas em paredes forradas com papel de parede listradas que se parecem muito com o fundo desta colagem. Portanto, a “ideia” de Picasso da modalidade dominante de apresentação de obras de arte (inclusive de suas colagens) inclui rótulo, moldura e parede. Ironicamente, foi acrescentada uma referência posterior ao modo de venda de obras de arte à obra Verre et bouteille de Bass [Taça e garrafa de Bass] na forma de um pequeno adesivo azul com o número 354 de uma das vendas de Kahnweiler, realizada no início da década de 1920. Na obra Still Life (The Snack), novamente da primavera de 1914, são introduzida duas molduras alternadas: o fragmento chanfrado de madeira, que sugere a moldura e lambri do quadro, e a franja dourada decorativa, que denota a borda da mesa. Nenhuma das molduras consegue estabelecer um limite definitivo para a obra ou mesmo conseguir relevância como paradigma dominante. No entanto, o movimento que sai de um campo emoldurado, literalmente plano e figurativamente transparente, é restrito, o contexto é definido de forma paradoxal, mas clara. O literal é consistentemente significado como tal, dentro de um sistema representacional em que se opõe ao figurativo. O tratamento naturalista do queijo e linguiça, que estão sobre a superfície da “mesa”, por exemplo, contrasta com a construção formal e parcialmente fragmentada do copo. Além disso, o copo está fixado ao plano vertical do “quadro” e paira, ironicamente, logo acima da mesa. Por meio deste truque inventivo, Picasso estabeleceu uma oposição entre o queijo e a linguiça, que se comportam como objetos literais sujeitos à gravidade e, portanto, pertencem ao mundo real da mesa do café, e o copo, que está suspenso (pendurado como um quadro) do fundo alternado do tableau. Estes dois mundos evidentemente exclusivos se chocam para formar uma cena única e convincente que, mais uma vez, é enfraquecida, pois estabeleceu a oposição entre table e tableau: com uma mudança de foco, o copo aparece como uma projeção “literal” do plano nivelado do tableau, ao passo que o queijo e a linguiça são revelados como feitos de madeira, pintados de forma um tanto descuidada. Além do mais, o tampo da mesa em si está inclinado para cima, de forma que ele também demonstra estar sujeito a deformações de perspectiva.30 E isto significa que o queijo e a linguiça (assim como o copo) devem ser colocados no lugar. No final, o que se afirma é a permutabilidade dos termos “literal” e “figurativo” – ou seja, a forma pela qual, em um sistema em que termos individuais não têm um significado essencial, mas apenas valores diferenciais, a identidade funcional de termos opostos pode ser revelada. Nenhuma interpretação pode ser vista como estável ou fixa, sendo que Picasso brinca com as consequências desta noção em suas colagens e construções com grande perspicácia. Oposições binárias são continuamente afirmadas, depois negadas, só para reaparecer de forma deslocada. 11


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No entanto, Picasso jamais desloca o sistema de oposições em si. Este jogo de oposições acaba assumindo o papel tradicional da moldura em si, para determinar quais elementos pertencem à obra e quais não pertencem. Nas colagens, construções e montagens cubistas de Picasso, a unidade não é mais principalmente uma questão de objeto, material ou estilo – embora estes continuem a ser fatores importantes do jogo. Em lugar disso, a unidade se torna uma questão de estruturas opostas formais percebidas pelo artista/espectador, e depende, portanto, do contexto, estando sujeita a mudança. A relação da mesa, como sinal da aspiração modernista pelo objeto literal, pelo tableau, como sinal de ilusão tradicional, é, em minha opinião, fundamental. Andre Lhote nos diz que “neste novo tema, Picasso e Braque bordaram os mais delicados e mais inteligentes arabescos. Buscaram assimilar a mesa ao tableau”.31 E de acordo com Kahnweiler, os pintores em si discutiam muito a noção do tableau-objeto: “Os cubistas, seguindo os passos de Cézanne, sempre insistiam na existência independente da obra de arte. Falavam sobre ‘le tableau-objet’, um objeto que poderia ser posto em qualquer lugar... Os poetas cubistas também costumavam falar de ‘le poème-objet’. 32 Como a conhecida brincadeira de trocadilhos e outros paradoxos (tanto linguísticos como pictóricos) no meio dos pintores e poetas algumas vezes denominadas “la bande a Picasso”, estas discussões podem ter levado a um interesse nas possibilidades semânticas contidas na palavra “tableau”. Esta palavra, que deriva do latim “tabula”,33 significando placa ou prancha de madeira, se refere, por extensão, a “mesa”, assim como a outras superfícies lisas e niveladas disponíveis para inscrição. Por volta do século treze na França, um tableau significava pintura em painel de madeira e, finalmente, com a ascensão da visão “estética” da arte no século dezoito, a pintura cavalete portátil, autossuficiente.34 Portanto, a tabula denota historicamente mesas e pinturas. Talvez a origem comum de mesa e tableau do termo tabula tenha se tornado um insight útil para Picasso, que o inspirou a buscar uma reciprocidade ou identidade oculta nos objetos que haviam anteriormente parecido ser contraditórios por natureza. É esta visão da identidade paradoxal da obra de arte como potencialmente table e tableau (seja derivada da análise visual ou verbal, ou ambas) que permitiram a Picasso brincar com a substituição e inversão infinitas na oposição destes termos/objetos, como tinha sido construído por seus contemporâneos. Este jogo formal revela uma crítica da demanda do tableau-objeto, na medida em que poderia ser construído como se fosse uma nova alegação de transparência do significante ou “realismo”, como os contemporâneos de Picasso geralmente o chamavam. Ao inventar a colagem cubista, Picasso colocou em questão muitas das premissas fundamentais de seus predecessores simbolistas e, efetivamente, seus contemporâneos. Suas obras de colagem, em particular, rompiam não apenas com as ficções convencionais do tableau clássico, mas também com aquelas do novo, tableau-objeto de vanguarda. Ao inscrever os dois paradigmas em um jogo paradoxal de identidade e diferença, Picasso demonstrou que a literalidade material do “objeto” em si se constituía dentro de um sistema de oposições, assim como a então desacreditada “transparência” do plano do quadro havia sido constituída como ficção em oposição ao mundo externo à moldura. Como se motivado por um projeto nietzschiano de dúvida radical, Picasso parecia testar cada nova alegação de autenticidade artística ou “realismo” para revelar sua base convencional. A estratégia de Picasso para realizar isto era deslocar a oposição predominante do tableau e do tableau-objeto, ao recorrer a um novo paradigma, que, não surpreendentemente, pode também ser derivado da tabula. Esta era a noção da obra de arte como table à jouer, mesa de jogo. Assim concebida, a obra de arte se tornou um campo de representação “convencionalizado”, aberto ao jogo do paradoxo, de interpretações conflitantes e da colisão de múltiplos códigos culturais (“alto” e “baixo”, pictórico e verbal). A fragmentação e dispersão de formas no cubismo de Picasso emanavam por esta perspectiva da linguagem artística como essencialmente construída 12


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e arbitrária, como as regras de um jogo. Como uma relação motivada de forma pictórica para o referente havia sido rejeitada, Picasso conseguiu abandonar as respectivas ficções de significado uníssono e transparente (realismo) e uma forma orgânica ou perceptual da unidade pictórica. Nem as colagens e construções de Picasso afirmam uma experiência de individualidade unificada para o espectador que se envolve no jogo da interpretação. O espectador (jogador) não consegue “ter em mente” os planos perceptualmente alternados da table e tableau de uma só vez, assim como não consegue “ler” as formas pictóricas e os textos dos clippings de jornal imediatamente. As colagens de Picasso exigem uma estratégia interpretativa continuamente em mutação, assim como um foco visual em mudança, e isto deve ocorrer com o passar do tempo. Este processo leva a um acúmulo de significados, mas raramente ao sentido de que alguém tenha resolvido as contradições ou paradoxos apresentados pela obra. A questão da unidade pictórica em si é então deslocada da colagem para a experiência do espectador, em que é suspensa e dispersa no tempo da análise interpretativa, como uma série de movimentos em um tabuleiro. O próprio Picasso assume o papel de jogador mestre/dissimulador que convida o espectador a entrar na cena do jogo. Como os muitos autorretratos de Picasso do período Azul e Rosa com a aparência de arlequim, o arlequim da obra Assemblage with Guitar Player, que o artista preservou como obra independente após desmantelar sua montagem, pode ser interpretado como autorretrato.35 Ironicamente, no entanto, o arlequim está parcialmente desmascarado; dois planos contendo a marca esquemática da orelha (uma curva dupla) e as linhas tangenciais das sobrancelhas e nariz se espalham para a esquerda. Mas o “self” assim revelado demonstra ser formado apenas por outra representação esquemática (uma linha vertical para o nariz e dois pontos para os olhos), como se, para Picasso, o “self” fosse formado por camadas de máscaras, de superfícies semelhantes a papel sem interioridade ou profundidade. A obra de arte considerada como mesa de jogo contribui também para o nosso entendimento do papel do objeto de Picasso durante este período. Picasso recorria muitas vezes a naturezas mortas e, especialmente, à mesa de café, não porque o sujeito pudesse ser considerado um “mero pretexto” para a inovação formal, mas em parte devido à sua associação tradicional com o realismo, inclusive a pintura trompel’oeil. Portanto, Picasso conseguiu subverter a noção de realismo a partir do próprio gênero mais frequentemente preocupado com a descrição visual e a realidade do referente. Além disso, muitos dos objetos familiares às mesas de café de Picasso – instrumentos musicais, jogos de cartas, dados, vinho, cigarros, mesmo a palavra fragmentada «JOU» – evocam cenas populares de jogo e divertimento alegre.36 Como Picasso disse ao amigo dos dias do Bateau-Lavoir, o poeta e pintor André Warnod em 1945: ‘O estúdio de um pintor deveria ser um laboratório. Lá, a pessoa não faz arte à maneira de um símio, a pessoa inventa. A pintura é um jogo do espírito”.37

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1. Esta colagem foi executada algum tempo antes de 18 de maio de 1912, data da partida de Picasso para Sorgues com sua nova amante, Eva Gouel (Marcelle Humbert). Em uma carta a Kahnweiler datada de 5 de junho de 1912, Picasso forneceu a seu agente uma lista das obras que poderia retirar de seu apartamento em Paris. Excluiu especificamente Nature morte à la chaise cannée e uma obra relacionada que também possui moldura de corda, Notre avenir est dans l’air. Para uma reprodução parcial desta carta, veja: Donation Louise et Michel Leiris, Collection Kahnweiler-Leiris, exh. cat., Paris, Centro Georges Pompidou, Museu nacional de arte moderna, 1984, 22 de novembro – 28 de janeiro de 1985, pp. 166-68. 2.

John Golding, Cubism: A History and an Analysis, 1907-1914, Nova York, 1968, p. 81.

4.

Ibid., p. 105.

3. 5. 6.

Ibid., p. 94.

Ibid., pp. 117-18.

Daniel-Henry Kahnweiler, The Rise of Cubism, trad. Henry Aronson, Nova York, 1949, p. 7.

7. Daniel-Henry Kahnweiler, “Accomplissement classique du cubisme Juan Gris [1928]”, em Confessions esthétiques, Paris, 1963, p. 51: “le retour à l’unité de l’oeuvre d’arte, dans la volonté de creér non des esquisses, mais des organismes autonomes et accomplis”. 8.

Kahnweiler (cited n. 6), p. 12.

9. Guillaume Apollinaire descreve a função do “objeto, real ou em trompe l’oeil” como uma espécie de “moldura interna” em Meditations esthétiques: Les Peintres Cubistes, Paris, 1980 [1913], p. 77. Embora mantenha o conceito de Apollinaire de “moldura interna”, este ensaio explora a estrutura de oposição entre o real e o representado nas colagens de Picasso.

10. Fernande Olivier, Picasso et ses amis, Paris, 1933, p. 171, narra o amor de Picasso por “objetos comuns” em suas memórias deste período: “En matière de décoration, Picasso avait un goût qui le portait à acheter, souvent par ironie, les objets les plus ordinaires; il avait des manies de collectionneur pour toutes sortes de petites choses.... II aimait les vieux morceaux de tapisserie, Verdures, Aubussons, Beauvais dont il était parfois difficile de reconnaître le sujet a cause de leur mauvais état. Des instruments de musique, des boîtes, des vieux cadres dédorés. De frais chromos encadrés de paille ornaient les murs de la salle à manger. Ils eussent été à leur aise dans une loge de concierge. Lui-même riait de celà”. 11. Robert Rosenblum sugeriu que Picasso talvez tenha visto um espelho assim durante sua visita a Le Havre, anteriormente à execução desta colagem. Rosenblum reproduz um espelho deste tipo em Nature morte à la chaise cannée [Natureza morta com palha de cadeira]. In: Picasso, do Museu Picasso, Paris, cat. da exp., Minneapolis, Walker Art Center, 1980, p. 43. 12. Rosenblum (citado n. 11), p. 42, observou que a moldura desta colagem pode ser lida tanto como uma moldura pictórica ou como referência à borda esculpida da mesa.

13. William Rubin, “Primitivism” in Twentieth-Century Art, vol. I, cat. da exp., Nova York, Museu de Arte Moderna, 1984, p. 316, cita uma longa discussão mantida certa vez com Picasso sobre as franjas de tapeçaria que utilizava frequentemente em suas colagens e construções cubistas como evidência da afirmativa de Rubin de que os materiais tinham um “valor metafórico secreto” para o artista. Minha análise do emprego destas franjas por Picasso sugere que ele se interessava por elas devido à sua função como moldura. A foto de Picasso aos sete anos com sua irmã Lola, em que aparece sentado em uma cadeira decorada com uma longa franja, indica que tais objetos talvez tivessem associações pessoais para ele; veja: Josep Palau i Fabre, Picasso, The Early Years 1881-1907, Barcelona, 1985, p. 34. Picasso evidentemente também apreciava o uso destas franjas, especialmente quando imitavam motivos arquitônicos, precisamente porque eram consideradas de mau gosto por algumas pessoas. Veja a crítica de uma exposição de arte decorativa em Stuttgart escolhida pelo curador exatamente para demonstrar falhas no gosto: C. S., “Aberrations du Gout en Matiere d’ Art Decoratif”, Art et Industrie (outubro de 1909), n.p. De acordo com o autor, o problema com tais “trucs employés par les faussaires” é que “ils sortent un peu du cadre du Musée”. 14.

Olivier (citado n. 10).

15. Pode-se até rastrear este interesse em misturar orientações verticais e horizontais até Demoiselles d’ Avignon de Picasso, em que a segunda demoiselle a partir da esquerda é retratada como uma figura reclinada catapultada para uma posição sentada. Leo Steinberg, “The Philosophical Brothel”, Art News, Parte 1, 71:5 (setembro de 1972), 14


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pp. 20-29; Parte 2, 71:6 (outubro de 1972), pp. 38-47, discute este fenômeno e sua relação com nus “reclinados” de forma semelhante em Matisse. Steinberg também discute a relação de planos verticais e horizontais em pinturas combinadas de Robert Rauschenberg em “Other Criteria”, Other Criteria, Nova York, 1975, [1972].

16. Veja, por exemplo, o item de catálogo referente a Le Portugais [O português] in, George Braque: An Exhibition of Paintings, cat. da exp., Londres, The Tate Gallery, 28 de setembro – 11de novembro de 1956, p. 32. 17.

Nicole Worms de Romilly e Jean Laude, Braque, le Cubisme fin 1907-1914, Paris, 1982, p. 48.

19.

Gertrude Stein, Picasso, Boston, 1959, [1938] p. 12.

18.

Violino pendurado na parte inferior da parede direita, a segunda obra a partir do centro.

20. Thomas Crow fez uma crítica relacionada da interpretação “modernista” da colagem in “Modernism and Mass Culture in the Visual Arts”, Modernism and Modernity: The Vancouver Conference Papers, ed. Benjamin H. D. Buchloh, Halifax, N.S., 1983. Para uma visão das colagens de Picasso como iniciadoras de um importante rompimento com o modernismo, veja: Rosalind Krauss, “Re-Presenting Picasso”, Art in America 68:10 (dezembro de 1980), pp. 90-96 e idem, “In the Name of Picasso”, 16 de outubro (primavera de 1981), pp. 5-22. 21. 22.

Citado na tradução in Edward Fry, Cubism, Nova York, 1966, p. 108.

“Pablo Picasso”, Paris-Journal (21 de setembro de 1911), citado na tradução in ibid., p. 68.

23. Daniel-Henry Kahnweiler, com Francis Cremieux, My Galleries and Painters, trad. Helen Weaver, Nova York, 1971, p. 43. 24.

“Picasso Speaks”, The Arts, 3:5 (maio de 1923), p. 319.

26.

Stein (citado n. 19), p. 18.

25. Krauss, “Re-presenting Picasso” (citado n. 20), p. 96, compara as oposições formais de Picasso com aquelas estabelecidas no texto “modernista” da história da arte e conclui que se baseiam no mesmo sistema bipolar que estrutura a obra de Wolfflin, Principles of Art History: “Os predicados fixados pelas peças de colagem cubista funcionam como inteiros de tal sistema, o mesmíssimo sistema formal do conjunto de termos mestre de Wolfflin: fechado/aberto, linha/cor, planaridade/recessão... Nas importantes e complexas colagens cubistas, cada elemento produz um par afim de significados formais: linha e cor, clausura e abertura, planaridade e recessão”. Os pares afins de Picasso de significados formais, no entanto, não se referem diretamente aos esquemas históricos de Wolfflin e, na medida em que existem paralelos, isto reflete uma percepção histórica paralela. Muitas das oposições formais de Picasso resultam de antinomias estéticas contemporâneas como, por exemplo, a distinção entre arte popular e belas artes, ou entre linhas curvas e retas. 27. Agradeço a Celeste Brusati pela observação de que o inverso do violão lembra o avesso de objetos em impressos e certas espécies de meios de reprodução.

28. Gostaria de agradecer a Anne Coffin Hanson por chamar minha atenção para o caráter acessório do traje usado pelo violonista de Manet. 29. Não é minha intenção alegar que a montagem de Picasso faz necessariamente uma referência consciente à obra de Manet Le Chanteur Espagnol [O cantor espanhol], embora haja amplos indícios de que Picasso era fascinado pela obra de Manet tanto antes como após a execução de Assemblage with Guitar Player. Desejo simplesmente sugerir esta referência como uma possibilidade tentadora. O inverso do violão de Picasso, no entanto, é significativo mesmo sem especificamente evocar Le Chanteur Espagnol [O cantor espanhol] de Manet. 30.

Agradeço a John McCoubrey por chamar minha atenção para o ângulo do topo desta mesa.

32.

Daniel-Henry Kahnweiler, Juan Gris, His Life and Work, trad. Douglas Cooper, Nova York, n.d. [1977], p. 68.

31. Andre Lhote, “Naissance du Cubisme”, em Histoire de l’arte contemporain, ed. René Huyghe, Nova York, 1968, p. 216: “Sur ce theme nouveau, Picasso et Braque broderent les plus délicates et les plus sages arabesques. Ils imaginèrent d’assimiler la table au tableau”. 33. Para a etimologia de tabula, ver: Eugene Benoist e Henri Goelzer, Nouveau Dictionnaire Latin-Français, 10ª ed., Paris, 1922, p. 1550 e P. G. W. Glare, ed., Oxford Latin Dictionary, Oxford, 1982, pp. 1898-99.

34. Para uma discussão do significado de tableau no século dezoito, particularmente na crítica de Diderot, veja: Michael Fried, Absorption and Theatricality: Painting and Beholder in the Age of Diderot, Berkeley, 1980, pp. 89-96. 15


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35. Estou convencida de que esta obra, agora intitulada Tête d’homme [Cabeça de homem], executada em papel dimensionado, é a parcela sobrevivente do fundo de “Assemblage with Guitar Player”. Picasso evidentemente recortou o fundo no tamanho atual e elaborou em cima de sua representação da cabeça do arlequim (acrescentando alguns detalhes ornamentais, mas sem alterar a estrutura subjacente) antes de vender a obra a Roger Fry em 1913. 36. É importante notar que o próprio Picasso não tocava instrumentos musicais nem jogava cartas como tão frequentemente representava. Tendia a encarar estes objetos como acessórios, tendo declarado que seu interesse no violão era principalmente simbólico. Veja: Werner Spies, Sculpture by Picasso, Nova York, 1971, p. 71. 37. “En peinture tout n’est que signe”, Arts (29 de junho de 1945): “Un atelier de peintre doit être un laboratoire. On n’y fait pas un métier de singe, on invente. La peinture est un jeu d’esprit”.

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