Estudos em ciencia da religião

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ISBN 978-85-8084-509-9

ESTUDOS EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO Professor Dr. José Francisco de Souza

graduação TEOLOGIA

MARINGÁ-pr 2012


Vice-Reitor: Wilson de Matos Silva Filho Pró-Reitor de Administração: Wilson de Matos Silva Filho Pró-Reitor de EAD: Willian Victor Kendrick de Matos Silva Presidente da Mantenedora: Cláudio Ferdinandi

NEAD - Núcleo de Educação a Distância Diretor Comercial, de Expansão e Novos Negócios: Marcos Gois Diretor de Operações: Chrystiano Mincoff Coordenação de Sistemas: Fabrício Ricardo Lazilha Coordenação de Polos: Reginaldo Carneiro Coordenação de Pós-Graduação, Extensão e Produção de Materiais: Renato Dutra Coordenação de Graduação: Kátia Coelho Coordenação Administrativa/Serviços Compartilhados: Evandro Bolsoni Coordenação de Curso: Edrei Daniel Vieira Gerente de Inteligência de Mercado/Digital: Bruno Jorge Gerente de Marketing: Harrisson Brait Supervisora do Núcleo de Produção de Materiais: Nalva Aparecida da Rosa Moura Capa e Editoração: Daniel Fuverki Hey, Fernando Henrique Mendes, Jaime de Marchi Junior, José Jhonny Coelho, Luiz Fernando Rokubuiti e Thayla Daiany Guimarães Cripaldi Supervisão de Materiais: Nádila de Almeida Toledo Revisão Textual e Normas: Cristiane de Oliveira Alves, Janaína Bicudo Kikuchi, Jaquelina Kutsunugi e Maria Fernanda Canova Vasconcelos.

Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Central - UNICESUMAR

CENTRO UNIVERSITÁRIO DE MARINGÁ. Núcleo de Educação a Distância: C397 Estudos em ciências da religião/ José Francisco de Souza - Maringá - PR, 2012. 177 p. “Curso de Graduação em Teologia - EaD”.

1. Teologia. 2.Ciência da religião. 3.EaD. I. Título.

ISBN 978-85-8084-509-9

CDD - 22 ed. 200.7 CIP - NBR 12899 - AACR/2

“As imagens utilizadas neste livro foram obtidas a partir dos sites PHOTOS.COM e SHUTTERSTOCK.COM”.

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APRESENTAÇÃO DO REITOR

Viver e trabalhar em uma sociedade global é um grande desafio para todos os cidadãos. A busca por tecnologia, informação, conhecimento de qualidade, novas habilidades para liderança e solução de problemas com eficiência tornou-se uma questão de sobrevivência no mundo do trabalho. Cada um de nós tem uma grande responsabilidade: as escolhas que fizermos por nós e pelos nossos fará grande diferença no futuro. Com essa visão, o Centro Universitário Cesumar assume o compromisso de democratizar o conhecimento por meio de alta tecnologia e contribuir para o futuro dos brasileiros. No cumprimento de sua missão – “promover a educação de qualidade nas diferentes áreas do conhecimento, formando profissionais cidadãos que contribuam para o desenvolvimento de uma sociedade justa e solidária” –, o Centro Universitário Cesumar busca a integração do ensino-pesquisa-extensão com as demandas institucionais e sociais; a realização de uma prática acadêmica que contribua para o desenvolvimento da consciência social e política e, por fim, a democratização do conhecimento acadêmico com a articulação e a integração com a sociedade. Diante disso, o Centro Universitário Cesumar almeja reconhecimento como uma instituição universitária de referência regional e nacional pela qualidade e compromisso do corpo docente; aquisição de competências institucionais para o desenvolvimento de linhas de pesquisa; consolidação da extensão universitária; qualidade da oferta dos ensinos presencial e a distância; bem-estar e satisfação da comunidade interna; qualidade da gestão acadêmica e administrativa; compromisso social de inclusão; processos de cooperação e parceria com o mundo do trabalho, como também pelo compromisso e relacionamento permanente com os egressos, incentivando a educação continuada. Professor Wilson de Matos Silva Reitor ESTUDOS EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO | Educação a Distância

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Seja bem-vindo(a), caro(a) acadêmico(a)! Você está iniciando um processo de transformação, pois quando investimos em nossa formação, seja ela pessoal ou profissional, nos transformamos e, consequentemente, transformamos também a sociedade na qual estamos inseridos. De que forma o fazemos? Criando oportunidades e/ou estabelecendo mudanças capazes de alcançar um nível de desenvolvimento compatível com os desafios que surgem no mundo contemporâneo. O Centro Universitário Cesumar, mediante o Núcleo de Educação a Distância, o(a) acompanhará durante todo este processo, pois conforme Freire (1996): “Os homens se educam juntos, na transformação do mundo”. Os materiais produzidos oferecem linguagem dialógica e encontram-se integrados à proposta pedagógica, contribuindo no processo educacional, complementando sua formação profissional, desenvolvendo competências e habilidades, e aplicando conceitos teóricos em situação de realidade, de maneira a inseri-lo(a) no mercado de trabalho. Ou seja, estes materiais têm como principal objetivo “provocar uma aproximação entre você e o conteúdo”, desta forma, possibilita o desenvolvimento da autonomia em busca dos conhecimentos necessários para a sua formação pessoal e profissional. Portanto, nossa distância nesse processo de crescimento e construção do conhecimento deve ser apenas geográfica. Utilize os diversos recursos pedagógicos que o Centro Universitário Cesumar lhe possibilita. Ou seja, acesse regularmente o AVA – Ambiente Virtual de Aprendizagem, interaja nos fóruns e enquetes, assista às aulas ao vivo e participe das discussões. Além disso, lembre-se de que existe uma equipe de professores e tutores que se encontra disponível para sanar suas dúvidas e auxiliá-lo(a) em seu processo de aprendizagem, possibilitando-lhe trilhar com tranquilidade e segurança sua trajetória acadêmica. Então, vamos lá! Desejo bons e proveitosos estudos! Professora Kátia Solange Coelho Coordenadora de Graduação do NEAD - UniCesumar

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APRESENTAÇÃO Livro: ESTUDOS EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO Professor Dr. José Francisco de Souza

Caro(a) aluno(a), este trabalho tem como objetivo principal oferecer alguns recursos em termos históricos e conceituais para uma abordagem interdisciplinar do fenômeno religioso. Esses recursos poderão contribuir para a reflexão e construção teológica que você desenvolverá ao longo de sua vida ministerial. Da mesma forma, tais recursos serão somados consideravelmente à sua tarefa de abençoar vidas, já que serão de suma importância não só para a construção teológica e científica, considerando que este é o primeiro passo para um discurso religioso bem elaborado e equilibrado que alcance o coração e a mente do ouvinte com plausibilidade contribuinte para o enriquecimento do homem e crescimento do Reino entre todos nós. Afinal, nossa tarefa como ministro é aproximar as pessoas de Deus para que se tornem seres humanos melhores a fim de que vivamos mais intensamente o presente da vida abundante disponibilizada a nós pela graça. Para isso, quanto mais aprimorado nosso autoconhecimento, mais eficaz será a nossa atuação pastoral, portanto conhecer o fenômeno religioso em suas diversas dimensões nos faz conhecedores de nós mesmos. O fato do ser humano crer, elaborar e organizar sistemas religiosos é algo que intriga o próprio ser humano. É um verdadeiro desafio para todo estudante investigar e chegar a conclusões razoáveis a respeito do fenômeno religioso. A religião tem suas “delicadezas” por ser o espaço onde as pessoas encontram o sentido de sua existência. Onde há um grupo humano organizado em comunidade há um sistema simbólico com sentido próprio, com seus mitos, rituais e provável crença em algo transcendente que proporciona experiências pessoais e comunitárias que explicam e dão o sentido para existência e para toda movimentação social e pessoal no mundo. Esses sistemas são chamados “religião”. Sua diversidade é imensurável, a criatividade impressa neles é algo fantástico e, provavelmente, inexplicável na sua plenitude. Mas como compreender algo que não pode ser alcançado na sua totalidade? Algo que se distingue de tudo por suster em si uma esfera íntima e pessoal? Não seria melhor não discutir e simplesmente experimentar? Talvez essa característica tão intrínseca do fenômeno religioso explique o jargão popular “religião não se discute”. Contudo, por mais obscuros que sejam os recônditos da experiência religiosa, não podemos perder a oportunidade de compreender mais amplamente a nós mesmos. Não podemos deixar de lado, sem qualquer consideração, ESTUDOS EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO | Educação a Distância

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a capacidade humana de produzir símbolos e construir mundos que só existem em nossa imaginação, transcendentes da experiência sensorial e empírica. Não podemos deixar de investigar algo que só o ser humano possui e experimenta, sendo isso um dos caracteres que nos diferenciam de todas as outras espécies de seres que existem. Sistemas religiosos, em toda a sua complexidade, devem ser discutidos sim, devem ser tratados em todas as formas capazes que o ser humano tem de raciocinar, seja pelas ciências hermenêuticas, seja pelas ciências empíricas descritivas, pois é certo que elas têm muito a nos ensinar sobre religião. Já não é de pouco tempo que as ciências têm tratado do fenômeno religioso. Em certas ocasiões, esse tratamento teve a intenção de desmerecer a religiosidade, rotulando-a como algo infantil e fantasioso, intencionando ainda levantar a possibilidade de que a explicação científica racionalista do mundo, de seus fenômenos e de suas leis iria “desmascarar” a religião a ponto de torná-la algo obsoleta pelo reconhecimento de que a explicação do mundo por meio de mitos e crendices infundadas acontecia simplesmente em função do desconhecimento da ciência. Esse desmerecimento, em certa medida, teve sua razão por internalizar a pretensão de livrar o pensamento das amarras de um mundo totalmente preso ao sistema teocêntrico que limitava os espaços para investigações mais audaciosas que coubessem na mente humana e abrisse outros espaços de relações com o universo. A ciência tem explicado esse seu equívoco pela percepção da complexidade do fenômeno religioso, que vai se expondo a cada investida dos pesquisadores na busca de compreensão racional dos mistérios da fé. As Ciências da Religião exploram a religiosidade em suas múltiplas dimensões, tanto na questão da percepção individual quanto nas inúmeras manifestações de ordem ritualista, doutrinária, mitológica, ética, social, econômica e política. Sem pretensão de defender ou questionar a validade, ou mesmo a veracidade de uma determinada dimensão religiosa, as Ciências da Religião procuram uma postura externa aspirando uma limpidez que caracterize sua cientificidade. Sabemos que uma isenção nunca é total, não significa também que o cientista não possa ser um crente, mas diz-se apenas que este deve praticar um ateísmo metodológico para não cair no erro de estabelecer juízos de valor enaltecendo sua fé e desmerecendo as outras, o que, no universo acadêmico, colocaria a perder a cientificidade da pesquisa. O fato de a religião ter dimensões diversas convida o pesquisador a buscar um conjunto de disciplinas que lhe auxiliem no alcance da abrangência almejada. O pesquisador da religião deve recorrer à História, à Sociologia, à Antropologia, à Psicologia etc.

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Neste trabalho, apresentaremos uma introdução aos estudos de Ciências da Religião. Esta disciplina tem conquistado cada vez mais autonomia nos meios acadêmicos e vai se mostrando muito eficaz para a Teologia quando ambas se propõem ao diálogo visando à contribuição e troca mútua de conteúdos, ideias, valores, métodos etc. Os Estudos em Ciências da Religião devem se iniciar com uma conceituação científica para o termo “Religião”. Esta conceituação deve transpor o senso comum, os denominacionalismos e as definições que se caracterizam apenas por um determinado aspecto essencialista ou, simplesmente, pela função social que a religião cumpre, com o fim de alcançar uma definição mais próxima possível de ser universal, tarefa difícil quando se consideram culturas mais distanciadas do universo judaico-cristão ocidental. Para isto é preciso uma observação mais cuidadosa ao tratamento que se dá ao termo até que se chegue a um consenso que possibilite o desenvolvimento do estudo, afinal trata-se do objeto que será abordado durante todo o trabalho. Em seguida, conhecer o desenvolvimento da história de uma disciplina é importante para a compreensão de sua trajetória, a inocência dos primeiros tempos, os primeiros estudos e seus resultados até a sua emancipação e como se movimenta no meio acadêmico contemporâneo. Toda ciência tem uma história, elas estão enraizadas em um espaço social, político e acadêmico. Ela nasce de outras ciências e se emancipa com seus objetos e métodos próprios. As Ciências da Religião estão nesse processo, compõem uma área de estudos acadêmicos que ainda se depara com várias controvérsias em termos de método, de objeto, em termos de distinção de outras disciplinas, em termos de emancipação delas mesmas, enfim há uma história rica e interessante que é importante conhecer para se compreender o que são hoje no Brasil os estudos em Ciências da Religião. Essa história envolve as primeiras teorias que deram início aos estudos de Religião, o naturalismo de Max Müller, o animismo de E. B. Tylor e a magia de Frazer como as principais teorias essencialistas. Em seguida, Durkheim, Freud e Marx propõem suas teorias funcionalistas que reduzem o fenômeno religioso às suas funções sociais. São modelos de abordagem e investigação do fenômeno religioso que acrescentam, em termos de compreensão de efeitos sociais, que os sistemas religiosos impõem naturalmente, mas também expõem seus equívocos redutivos em termos da complexidade do fenômeno enquanto algo que envolve uma faceta do ser humano que ainda tem muito a ser explorada para sua compreensão, a saber, a fé, o ato de crer, a relação com o transcendente. Portanto, essas teorias haverão de ser superadas ESTUDOS EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO | Educação a Distância

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pelo que não se dispuseram a considerar, por métodos mais ampliados, atentos ao labiríntico universo religioso. Essa amplidão que um método de abordagem do fenômeno religioso deveria alcançar é uma das propostas que caracterizam a fenomenologia da religião. Contraria as abordagens funcionalistas e reducionistas que minimizam o fenômeno religioso a um “fato social”, por exemplo, ou ao “ópio do povo” ou mesmo a um “estágio infantil da sociedade”. O pensamento fenomenológico procura explorar o que a religião tem de singularidade, sua dimensão sagrada que comporta algo de não racional e que a distingue de qualquer outro fenômeno social, político, econômico etc. A fenomenologia procura mostrar que o ser humano vive simultaneamente em dois espaços de existência, o profano e o sagrado. Portanto, para esse método de investigação, qualquer abordagem do fenômeno religioso deve ser feita a partir de considerações de suas peculiaridades. O método fenomenológico tem sofrido duras críticas e, de certa forma, em alguns países como a Alemanha, por exemplo, em várias de suas universidades, é considerado não científico, porém, foi e tem sido uma ferramenta poderosa que contribui para a conscientização da “inocência” funcionalista reducionista quanto à falta de percepção e sensibilidade diante da complexidade do fenômeno religioso. Assim, as Ciências da Religião hoje – embora não com a unanimidade que se almeja – têm espaço para as ciências hermenêuticas como a teologia, espaço esse que abordaremos na penúltima parte deste trabalho. Por fim, na última unidade, nos valemos da contribuição do Professor Dr. José Adriano Filho, que apresenta alguns temas de estudos em Ciências da Religião, como exemplo do exercício científico dessa disciplina. Boa leitura e espero que o aprendizado contribua muito positivamente para sua formação de teólogo.

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Sumário UNIDADE I RELIGIÃO E CIÊNCIAS DA RELIGÃO O QUE É RELIGIÃO?...............................................................................................................15 UNIDADE II UMA BREVE HISTÓRIA DAS CIÊNCIAS DA RELIGIÃO CIÊNCIA DA RELIGIÃO?.........................................................................................................31 O SÉCULO DAS LUZES E A RELIGIÃO NATURAL................................................................36 TEORIAS DA ORIGEM DAS RELIGIÕES................................................................................37 UNIDADE III AS TESES FUNCIONALISTAS DOS ESTUDOS DE RELIGIÃO E REAÇÃO FENOMENOLÓGICA A TEORIA SOCIOLÓGICA DE DURKHEIM............................................................................53 A PSICANÁLISE FREUDIANA.................................................................................................55 KARL MARX – RELIGIÃO COMO ALIENAÇÃO......................................................................57 A REAÇÃO DA FENOMENOLOGIA .......................................................................................59 UNIDADE IV AS CIÊNCIAS DA RELIGIÃO HISTÓRIA DA RELIGIÃO.........................................................................................................89 A SOCIOLOGIA DA RELIGIÃO................................................................................................92 TEOLOGIA E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO..................................................................................94


UNIDADE V TEMAS EM ESTUDOS DA RELIGIÃO OS PRIMEIROS CRISTÃOS..................................................................................................103 A VIVÊNCIA DO SAGRADO E A RELIGIÃO.........................................................................104 O MITO...................................................................................................................................108 A ATITUDE MÍTICA................................................................................................................ 111 METÁFORA............................................................................................................................ 116

CONCLUSÃO.........................................................................................................................129 REFERÊNCIAS......................................................................................................................132


UNIDADE I

RELIGIÃO E CIÊNCIAS DA RELIGÃO Professor Me. José Francisco de Souza Objetivos de Aprendizagem • Conhecer os fundamentos das definições de religião importantes para as Ciências da Religião. • Conceituar cientificamente o termo religião. Plano de Estudo A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade: • O que é Religião • A religião entre os primeiros romanos • Os primeiros cristãos • A vivência do sagrado e da religião



INTRODUÇÃO

Fonte: SHUTTERSTOCK.COM

O QUE É RELIGIÃO?

“O problema religioso toca o homem em sua raiz ontológica. Não se trata de fenômeno superficial, mas implica a pessoa como um todo. Pode caracterizar-se o religioso como zona de sentido da pessoa. Em outras palavras, a religião tem a ver com o sentido último da pessoa, da história e do mundo”.1

Esta é uma questão difícil de ser respondida com exatidão. O termo “religião” e a pergunta por sua conceituação têm provocado um debate intenso, uma vez que leva ao cerne dos estudos em Ciências da Religião. Já no início do século XX, o psicólogo da Religião James Leuba afirmou que há centenas de definições diferentes de “religião”2. Embora existam muitas definições de religião e novas sejam lançadas permanentemente, até hoje não se chegou ao resultado esperado, pois não há uma definição que não seja rejeitada por, pelo menos, uma pessoa. Quando determinado pensador afirma que religião é caracterizada por seres espirituais, seu crítico responde que não, e diz que religião é caracterizada pela promessa de redenção, outro então diz que, se é assim, o marxismo teria que ser uma religião 1

ZILLES, Urbano. Filosofia da Religião. São Paulo: Paulus, 2004, p. 6.

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LEUBA, James H. Psycological origina and the nature of religion. London: Archibald Constable & Co Ltd, 1909, p.1.

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e de fato não é, portanto... Procurando por definições, pensadores cristãos têm em mente categorias cristãs, cientistas adeptos ou não de outras religiões, mas que têm seu universo de pensamento enrizados nelas, também se valem de suas categorias para definir religião. Chegar-se-á a um consenso? Será que veremos uma definição com a qual todos concordarão? Muito improvável3. Contudo, Segundo Klaus Hoch, professor de História da Religião e Religião e Sociedade da Universidade de Rostock na Alemanha, autor do texto Introdução à Ciência da Religião, é importante abordar algumas questões fundamentais que compõem o trabalho de definição do termo “religião” para que se tenha orientação no prosseguimento do estudo científico da(s) Religião(ões).4 Consideraremos, a seguir, algumas dessas questões. Primeiramente, é preciso admitir que o termo “religião” originou-se em um contexto histórico específico, ou seja, pertence à história intelectual do ocidente. Quando necessária sua aplicação a outros contextos históricos e culturais, algumas dificuldades se apresentam. Em várias línguas do continente europeu, a palavra “religião” está profundamente enraizada, uma vez que a cultura europeia é marcada incisivamente pelo Cristianismo. Quando europeus ouvem a palavra religião a associação à fé cristã é imediata. O termo “religião” tem suas raízes na palavra latina religio, que descreve a “atuação com consideração” ou a “observância cuidadosa” no serviço cúltico. Para os romanos, significava a exatidão ritual, um desempenho exato no ato religioso. Cícero fez uso do termo referindo-se à sequência correta nos atos do culto, no serviço de adoração a determinado deus ou aos 3

GRESCHAT, Hans-Jürgen. O que é Ciência da Religião? São Paulo: Paulinas, 2005, p. 20.

“Embora seja notório que as definições em si nada estabelecem, se forem cuidadosamente construídas elas podem, por elas mesmas, fornecer uma orientação ou reorientação útil do pensamento, de forma que desenrolá-las pode ser um caminho efetivo para resolver e controlar uma linha de pesquisa. Elas têm a virtude muito útil de serem explícitas: elas se comprometem de uma forma que a prosa discursiva não assume, pois sempre está disposta a substituir o argumento por uma retórica, especialmente neste campo”. In: GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC – Livros Técnicos e Científicos Editora S.A., 1989, p. 67. 4

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deuses. Assim, religio, no contexto latino, está para a ortopraxia e não caracteriza a ortodoxia5. Essa delimitação do termo no ambiente romano não dá exatidão à sua interpretação. Agostinho (354-430) fez uso da definição de Lactâncio (Sec. III-IV) que derivou o termo de religare (ligar, amarrar, ligar de novo, ligar de volta, levar de volta) para descrever a religio vera, a “verdadeira religião”, incumbida de reconciliar a alma que se desvencilhou de Deus. Este é o sentido mais comum do termo nos ambientes cristãos. Contudo, há algumas demonstrações de religio sendo ainda aplicado no sentido da “atuação correta”. Quando seu conteúdo se opõe à superstitio, (superstição) não se refere a uma fé errada, mas a atuação errada, no sentido de um ato incorreto ou também realizado de modo exagerado, sem legitimação ou autorização. Outro exemplo pode ser a referência que se faz ao monge, às freiras e a outros membros de congregações ou ordens como “religiosos”. Esse status tem sua caracterização na atuação correta do serviço e no serviço de culto, e não naquilo que é “crido”. Nessa simples demonstração, percebemos que “o debate sobre a derivação certa do termo religio mostra que a sua definição não é possível nos moldes de uma definição objetiva, ‘dada’, mas permanece vinculada a um contexto histórico-cultural específico”6. No final do século XV, início do século XVI, os humanistas passam a se relacionar com o termo como sinônimo do que o senso comum tinha por “fé cristã” ou confissão. Com a Reforma, “religião” se torna um termo com uma função crítica em dois sentidos: contra superstição e magia e contra a atuação cúltica da Igreja Católica Romana em seus serviços divinos que, aos olhos dos reformadores, era errada. Foi na era das Luzes que o termo tomou para si uma forte tendência à generalização. Assim, conceitualmente, “religião” passa a estar por trás da diversidade das religiões, terminologicamente, põe-se acima de toda a diversidade religiosa.7 Nos séculos XIX e XX, por uma aliança entre o evolucionismo histórico e a conceituação 5

HOCH, Klaus. Introdução à Ciência da Religião. São Paulo: Edições Loyola, 2010, p. 18.

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HOCH, Klaus. Op. cit., p. 18.

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Ibidem. p. 19.

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de religião como termo geral no singular, o conceito religião foi profundamente relacionado à justificação da crítica ao Cristianismo em sua pretensão de superioridade, assim como à fundamentação da sua exigência de ser reconhecido como absoluto pela suposição de que a “religião” perpassaria por um processo de desenvolvimento linear e, desse modo, estaria se movendo em direção à sua realização no mundo e nesse processo o cristianismo, como forma mais civilizada e mais altamente desenvolvida de religião, estaria mais perto desse ideal do que as outras religiões da humanidade. Assim, nesse tempo, “religião” aparece como um “todo” ideal que está presente nas religiões somente de forma truncada e insuficiente por não cumprirem ainda o seu processo evolutivo8. Portanto desde a era do Iluminismo estamos lidando com o problema de que o termo religião, como um termo da história intelectual ocidental, deve sua origem e a definição de seu conteúdo ao contexto histórico-cultural específico da Europa, por um lado, mas que ele, como conceito geral por outro, reivindica a possibilidade de nomear também em outros contextos histórico-culturais algo que corresponde àquilo que ele também descreve no Ocidente (“cristão”).9

Uma vez cientes de que o termo “religião” tem seu conteúdo enraizado em um contexto histórico-cultural, cabe-nos compreender que em outras culturas e em outras épocas históricas não há uma correspondência com o termo “religião”. Os termos mais aproximados como eusébeia, do período clássico da Grécia, designam temor e respeito, mas não apenas aos deuses, referem-se também a pessoas importantes ou objetos; latreia, que pode se referir a um serviço de culto, tem um sentido genérico e designa um serviço prestado em um sentido geral e profano; threskeia descreve um ato concreto, o cumprimento de um mandamento. Há algo em comum entre esses termos e o nosso termo “religião”, contudo eles vão além do que entendemos como religião10. Nada é facilitado quando se avalia a correspondência do termo em contextos histórico-culturais distintos do universo ocidental cristão. 8

HOCH, Klaus. Op. cit., p. 19.

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Ibidem. p. 20

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Ibidem.

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No ambiente islâmico, a palavra árabe dîn deriva da raiz semítica dâna, que significa aproximadamente “acertar algo” – no sentido de pagar uma dívida, aquilo que se deve a Deus. Esse sentido é estranho ao que se atribui à religião, desse modo não é possível fazer uma associação desprovida de uma série de restrições e cuidados para uma correspondência. O termo também descreve formas de vida, costumes/hábitos ordenados conforme ordem e direito. Em âmbito índico, dharma, do sânscrito, significa carregar, segurar no sentido de que os deuses seguram, mantêm unido o cosmo; também tem sua abrangência, alcançando “lei” e a ordem de castas em tradições hindus, que colocam em evidência, com este uso do termo, aspectos do sistema de ordenamento ritual e social. Nas tradições budistas o termo é relacionado com o ensinamento do Buda e alcança uma abrangência como categoria ontológica, relacionada à existência11. Esse também é um termo que se distancia, em seu significado e abrangência, do termo “religião”, considerado no ambiente ocidental. A problemática da questão se acentua quando considerados outras regiões e povos. Ainda segundo Klaus Hoch: Uma perda total de qualquer chão seguro há, por exemplo, no caso das religiões africanas ou oceânicas, onde geralmente não encontramos nada que se destaque como área parcial claramente distinguível de "religião" dentro do complexo geral da cultura. Não é de admirar que, antigamente, viajantes ou etnógrafos que se confrontaram com essas culturas julgaram ou que ali não haveria religião alguma ou concluíram que ali tudo era religião.12

Essa realidade justifica o porquê da busca por padrões e regularidades que governam a vida religiosa da humanidade remontar séculos. Friedrich Max Müller, em 1870, quando sugeriu a criação de uma nova disciplina que chamou de “Ciência da Religião”, tinha como um de seus alvos encontrar elementos padrões e princípios 11

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Ibidem. p. 21. HOCH, Klaus. Op. cit., p. 22.

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que pudessem oferecer uniformidade a todas as religiões de todos os tempos e lugares. Ele entendia que muito poderia ser ganho se os fatos, costumes, rituais e crenças que compunham as diversas religiões fossem investigados pelos métodos científicos para que houvesse desenvolvimento de teorias e comparações, a fim de se compreender a complexidade, o cerne e a natureza do fenômeno religioso e poder explicá-lo em termos estritamente racionais, exatamente como os cientistas procedem nas áreas de biologia ou química para explicarem a natureza13. Este elemento comum, uma vez encontrado, imprimiria ao conceito “religião” a exatidão que tanto se almeja entre os pesquisadores do fenômeno religioso. Assim os esforços são constantes em duas vias: tenta-se encontrar esse elemento comum nos conteúdos, em uma “substância”, com a pretensão de alguns de chegarem a uma “natureza”, a “essência” da religião, aquilo que estaria na base de todas as religiões distintas; outra via consiste em perguntar por aquilo que as religiões realizam, ou seja, quais as funções que as religiões

Fonte: PHOTOS.COM

cumprem e a singularidade entre essas funções.

Para a compreensão essencialista, muitas vezes “Deus” é o elemento fundamental constitutivo das definições que se caracterizam assim, seja de uma forma mais concreta, ou mais abstrata 13

PALS, Daniel L. Eight Theories of Religion. New York: Oxford University Press, 2006, p. 4.

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(uma divindade, ou deuses no plural). Essa compreensão segue a proposta de Edward Burnett Tylor (1832-1917), partindo do princípio de que não podemos simplesmente seguir o impulso natural para descrever religião como simplesmente a crença em Deus, pois, essa definição haveria de excluir uma grande porção da raça humana, pessoas que são plenamente religiosas, mas creem em mais de um e em outros deuses diferentes de cristãos e judeus. Portanto, sua proposta, que procura por um lugar comum de onde se possa partir, é uma definição mínima: religião é “a fé em seres espirituais”.14 Contra essa definição essencialista e as demais que derivaram dela, impõe-se a objeção de que nem todas as religiões conhecem deus, deuses, nem mesmo seres espirituais ou sobrenaturais, o exemplo mais incisivo é o budismo, intitulada como uma religião não teísta.15 Para contornar essa dificuldade, outras definições essencialistas se apegam a fenômenos mais fundamentais como conteúdo ou objeto de religião. Na vertente fenomenológica da religião esse lugar foi ocupado pelo “sagrado”. Rudolf Otto define o “sagrado” como categoria fundamental pela qual se capta a religião. Outras definições essencialistas trabalham com outra abstração para definir a essência fundamental da religião, a transcendência ou a experiência da transcendência. Mas, por mais abrangente que seja a categoria transcendência, ainda resta dúvida se ela pode resolver o problema do que seria comum a todas as religiões, já que deixa dúvidas em que medida pode ser constitutiva para o Budismo primitivo, para o Confucionismo e para o Taoísmo.

14

PALS, Daniel L. Op. cit., p. 26.

O termo “não teísta” refere-se à divergência entre o Budismo e religiões que partem da ideia de um Deus eterno que existe fora do cosmo criado por ele e, portanto, não é sujeito da impermanência que determina a vida relativa. É importante ressaltar isso, uma vez que, no decorrer da sua história, o Budismo incluiu diversas divindades locais no seu panteão, porém “desvalorizou” as figuras celestiais incorporadas do Hinduísmo e do Xamanismo tibetano, localizando esses seres supra-humanos dentro da roda de vida (samsara). Entrevista com Franki Usarski por ocasião da edição de sua tese de livre docência pela Pontífice Universidade Católica de São Paulo (PUC SP). Fonte: <http://www.ihuonline.unisinos.br>. Para uma compreensão do Budismo ver: USARSKI, Frank. O Budismo e as Outras: Encontros e desencontros entre as grandes religiões mundiais. Aparecida: Ideias e Letras, 2009. 15

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Fonte: SHUTTERSTOCK.COM Definições que abrem mão da essência, que não perguntam o que a religião é, preferem defini-la pelo que ela faz e o que causa. São as definições funcionalistas, pois estão vinculadas à suposição de que a religião reage a problemas humanos comuns e fundamentais que não podem ser solucionados tecnicamente (crises existenciais, dúvidas quanto ao sentido último da vida etc.). Essa caracterização humana, uma essência que não se acomoda, mas transpõe as respostas e soluções tecnicistas, descreve o ser humano como ser religioso, fazendo, portanto, da religião, parte da condição humana. Mas é discutível se as questões existenciais, as dúvidas quanto ao sentido da vida e outras inconformidades a que os seres humanos estão sujeitos ocorrem “em si”, independentes, como simples produtos da natureza humana a despeito da cultura. Por outro lado, caso esse funcionalismo resolvesse a questão, as respostas pelo empenho da religião seriam muito diversificadas, ficaríamos expostos a uma multiplicidade de definições funcionais, uma para cada um dos problemas humanos que não podem ser submetidos às soluções técnicas. Uma tentativa de solucionar o problema das definições múltiplas da funcionalidade é limitá-las ao âmbito social com a seguinte pergunta: o que se espera da religião em vista da cultura em seu conjunto? A resposta com maior plausibilidade é que, nessa perspectiva funcionalista, a

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função principal da religião consiste na integração na sociedade. Os principais representantes dessa corrente funcionalista da religião são o sociólogo Emile Durkheim (1858- 1917) e o etnólogo Bronislaw Malinowski (1884-1942). Um modelo harmonizador de cultura está vinculado a estas teorias. Ele se fundamenta no funcionamento ideal da cultura em suas diferentes áreas (ciência, economia, direito, religião...) se complementando mutuamente e em recíproca sintonia. Nesse conjunto, a função da religião seria integrar as pessoas à sociedade, acomodá-las ao seu meio social e torná-las agentes de harmonização. O equívoco aqui está para a falta de atenção nas evidências históricas de que a religião pode ser um fator de desintegração, tendo um efeito desestabilizador da harmonia social. As definições funcionalistas da religião têm seus limites. Segundo Hoch, à semelhança das definições essencialistas, quanto mais genéricas se propõem, mais alto o nível de abstração do elemento funcional da religião. O seguinte exemplo evidencia sua tese: Um exemplo para um grau especialmente alto de abstração é a teoria de religião do sociólogo da religião (falecido em 1998) Niklas Luhmann, que define o empenho de religião aproximadamente assim: o mundo é contingente – isto é, ele é como é por acaso, e poderia muito bem ser diferente; diante dessa situação de insegurança e indefinição, a religião torna o indefinível definível, ao reduzir a complexidade: seleciona entre a infinidade de todas as possibilidades e, dessa maneira, produz “sentido”. Portanto o empenho particular da religião consiste em sua função orientadora. Religião é a prática de como lidar com a contingência por meio da redução da complexidade. Devido a seu alto grau de abstração, a definição de Luhmann pode ser aplicada com relativa facilidade às formas concretas e diferentes de religião16.

A crítica a teses funcionalistas como esta é que elas ignoram os conteúdos específicos da religião e tornam esses elementos não religiosos para responderem à pergunta pelo empenho e função da religião. Vemos que tanto as definições essencialistas como as funcionalistas apresentam seus problemas e suas limitações. Essa constatação nos deixa longe de uma definição genérica 16

HOCH, Klaus. Op. cit., p. 26.

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e abrangente o suficiente para alcançar as singularidades das diversas expressões religiosas existentes, bem como o fenômeno religioso em seu possível elemento comum. Diante da, até então, impossibilidade de fechar uma definição de religião em um conteúdo inequívoco, propõe-se renunciar uma definição e deixar a questão em aberto. Tal proposta também apresenta seus problemas. Uma vez impossível de se definir um objeto de pesquisa, como manter uma Ciência para investigar esse objeto? Pode ser que essa renúncia à definição seja equivalente a renúncia à própria Ciência da Religião como uma disciplina independente. Propõe-se então uma caracterização aproximativa de “religião” nomeando critérios que permitem definir mais concretamente o que se quer dizer com “religião”, de modo que não se limite a uma definição estreita. Uma vez que as definições costumeiras sejam caracterizadas por estabelecerem seu objeto de modo unidimensional, ou seja, entre a grande variedade de fatores, são selecionados determinados aspectos como fé, experiência, ética, sistema de pensamento, ato (ritual), a divindade etc., observa-se que a “religião” compreende um conjunto de componentes. Portanto, a conceituação do termo religião precisa se referir a uma gama de diferentes elementos, critérios, e dimensões que, em seu conjunto, apresentam um quadro em que a Ciência da Religião encontra seu objeto. Esses elementos relacionados entre si podem determinar o que é “religião”. Hans-Jürgem Greschat, professor emérito da Universidade de Marburgo na Alemanha, defendendo a totalidade do objeto religião como um ideal para o cientista afirma que: Diferentemente das definições de religião, o objeto "religião" não existe somente na cabeça dos pesquisadores. Ele está no mundo exterior, onde pesquisadores realmente o enxergam. O objeto "religião" é algo concreto, ou seja, é sempre uma determinada religião. Cada uma das milhares de religiões que podem ser escolhidas e estudadas é representada como uma totalidade passível de investigação de acordo com quatro perspectivas: como comunidade, como sistema de atos, como conjunto de doutrinas ou como sedimentação de experiências.17 17

GRESCHAT, Hans-Jürgem. Op. cit. pp. 24-25.

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Vale citar também as dimensões de religiosidade desenvolvidas por Charles Glock e Rodney Stark: a dimensão ideológica, a dimensão ritualista, a dimensão da experiência, a dimensão intelectual e a dimensão pragmática. A partir destas, Ursula Boos-Nünning acrescenta a dimensão do vínculo com a comunidade. O professor Frank Usark em resposta a uma entrevista de alunos mestrandos da PUC de São Paulo apresenta uma definição de religião que contempla a abertura do conceito, considerando as dimensões do fenômeno religioso: [...] não considero adequado pensar em uma definição fechada de religião e opto por um conceito aberto capaz de superar um entendimento pré-teórico que generaliza fenômenos religiosos, [...]. A partir dessas considerações meu conceito de religião contém quatro elementos: primeiro, religiões constituem sistemas simbólicos com plausibilidades próprias. Segundo, [...], a religião caracteriza-se como a afirmação subjetiva da proposta de que existe algo transcendental, [...]. Terceiro, religiões se compõem de várias dimensões: particularmente temos que pensar na dimensão da fé, na dimensão institucional, na dimensão ritualista, na dimensão da experiência religiosa e na dimensão ética. Quarto, religiões cumprem funções individuais e sociais. Elas dão sentido para a vida, elas alimentam esperanças para o futuro próximo ou remoto, sentido esse que algumas vezes transcende o da vida atual, e com isso tem a potencialidade de compensar sofrimentos imediatos. Religiões podem ter funções políticas, no sentido ou de legitimar e estabilizar um governo ou de estimular atividades revolucionárias. Além disso, religiões integram socialmente, uma vez que membros de uma comunidade religiosa compartilham a mesma cosmovisão, seguem valores comuns e praticam sua fé em grupos.18

Temos também a definição científica de Hoch um tanto mais minuciosa, com uma complexidade que entendemos alcançar a completude do fenômeno religioso como objeto de pesquisa. Para ele “religião” é: Um construto científico que abrange todo um feixe de definições de caráter funcional de conteúdo, através do qual podem ser captados, como “religião”, num esquema, elementos relacionados entre si e formas de expressão, como objeto e área de pesquisa científico- religiosa (e outra). Pertencem a esses elementos e formas, entre outros, dimensões de ética e da atuação social (normas e valores, padrões de comportamento, formas de vida), dimensões rituais (atos cúlticos e outros atos simbólicos), dimensões cognitivas e intelectuais (sistemas de doutrina e de fé, mitologias, cosmologias etc., 18

USARK, Frank. As constituintes da Ciência da Religião. São Paulo: Paulinas, p. 135.

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ou seja, todo o saber “religioso”), dimensões sociopolíticas e institucionais (formas de organização, direito, perícia religiosa etc.), dimensões simbólico-sensuais (sinais e símbolos, arte religiosa, música etc.) e dimensões da experiência (experiências de vocação e de revelação, sentimentos de união mística, experiências de cura e de salvação, experiências de comunidade e de unificação...).19

Temos então um conceito aberto que deixa a questão da funcionalidade ou da essência para um segundo plano, tornando possível a articulação dos dois conceitos sem que o objeto seja comprometido em sua abrangência como fenômeno humano real, existente. Também deixa aberto o espaço para que o fenômeno seja avaliado cientificamente, com métodos e linguagem científicos, com conteúdo e resultado distintos do próprio discurso religioso. De forma mais sucinta, mas com profundidade e abrangência acentuadas, Cliffird Geertz apresenta uma das mais aceitas conceituações abertas de religião atualmente20: um sistema de símbolos que atua para estabelecer poderosas, penetrantes e duradouras disposições e motivações nos homens através da formulação de conceitos de uma ordem de existência geral e vestindo essas concepções com tal aura de fatualidade que as disposições e motivações parecem singularmente realistas.21

19

HOCH, Klaus. Op. cit., p. 29.

20 “[...] um paradigma é uma entidade dinâmica que se desenvolve com o decorrer tempo. Kuhn propõe como uma regra que a disciplina passa por movimento cíclicos de três fases: a subida de um paradigma, a fase da ciência normal rotineira e o declínio de plausibilidade, ou seja, a validade de um paradigma até a revolução científica mediante a qual um novo paradigma se impõe como sujeito do mesmo processo histórico”. USARSKI, Frank. Perfil paradigmático da Ciência da Religião na Alemanha. In: TEIXEIRA Faustino (org.). A(s) Ciências da Religião no Brasil, Afirmação de uma área acadêmica. São Paulo: Paulinas, 2001, p. 77. Penso que seja praticamente este o caso de Clifford Geertz na área de Antropologia em sua proposta de a religião como sistema cultural. “Se o estudo antropológico das religiões está de fato num estado de estagnação geral, eu duvido que ele se possa pôr em movimento novamente apresentando apenas pequenas variações sobre temas teóricos clássicos. [...]Para conseguir isso não precisamos abandonar as tradições estabelecidas da antropologia social nesse campo mas apenas ampliá-las. Pelo menos quatro dentre as contribuições dos homens [...] que dominam nosso pensamento a ponto de paroquizá-lo – Durkheim [...], Weber, Freud e Malinowski [...] – parecem-me pontos de partida invitáveis para que qualquer antropologia da religião seja útil. Mas elas são apenas pontos de partida. GERTZ, Clifford. Op. Cit., pp. 65-66. 21

GEERTZ, Clifford. Op cit, p. 67.

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Fonte: SHUTTERSTOCK.COM Seguimos até aqui a orientação de Klaus Hoch, abordamos algumas questões sobre tentativas e desenvolvimento de um conceito de religião e concluímos que um conceito aberto, científico e que envolva a totalidade do objeto, como sugerem os pensadores anteriormente citados, é o mais coerente com o que se propõe às Ciências da Religião. É claro que este não é o melhor conceito para a Teologia ou para as Igrejas, contudo, a proposta, que já está bem acentuada, é por uma conceituação científica do termo, para que se tenha um objeto de pesquisa empírica sujeito à observação, experimentação, comparação e explicação concernentes com os métodos das ciências humanas e sociais e os resultados racionais que pretendem alcançar. Podemos prosseguir agora para uma compreensão mais elaborada do que é Ciência da Religião, para isso, é importante que se compreenda a trajetória histórica da disciplina. Em que contexto religioso, político e acadêmico surgiu essa disciplina, quais suas primeiras propostas e teorias, como se desenvolveram os métodos até que se chegasse aos dias de hoje como uma disciplina autônoma no ambiente Universitário22.

22

Por autônoma queremos dizer desvinculada da tutela da teologia e do âmbito eclesiástico. Quanto aos métodos

da Ciência da Religião e sua autonomia, essa é outra discussão que esta afirmação não envolve.

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“Qualquer tentativa de falar um idioma particular não tem maior fundamento que a tentativa de ter uma religião que não seja particular... Assim, cada religião viva e saudável tem uma idiossincrasia marcante. Seu poder consiste em sua mensagem especial e surpreendente e na direção que essa revelação dá à vida. As perspectivas que ela abre e os mistérios que propõe criam um novo mundo em que viver; e um novo mundo em que viver – que esperemos ou não usufruí-lo totalmente – é justamente o que desejamos ao adotarmos uma religião”. (Santayana, Reason in Religion)23.

ATIVIDADE DE AUTOESTUDO 1. Quais as funções sociais que você poderia atribuir à religião? 2. A partir dos estudos sobre o termo “religião”, você concorda com o conceito de religião aberto e universalista alcançado pelas Ciências da Religião? Justifique sua resposta negativa ou afirmativa e faça suas comparações com o seu conceito cristão.

23

In: GEERTZ, Cliffird. Op. cit., p. 65.

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UNIDADE II

UMA BREVE HISTÓRIA DAS CIÊNCIAS DA RELIGIÃO Professor Dr. José Francisco de Souza Objetivos de Aprendizagem • Compreender o contexto histórico em que há a proposta de uma Ciência da Religião. • Conhecer o desenvolvimento das primeiras teorias “científicas” da religião. • Avaliar a validade das primeiras teorias da religião que deram início ao estudo científico do fenômeno. Plano de Estudo A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade: • “Ciência da Religião?” • O Século das Luzes e a Religião Natural • Teorias da Origem da Religião



INTRODUÇÃO CIÊNCIA DA RELIGIÃO? Em fevereiro de 1870 Frederic Max Müller, professor alemão, apresentou uma palestra no renomado Instituto Real de Londres. Naquela época, os professores alemães eram famosos por seu conhecimento profundo, e este não era uma exceção. Ele havia chegado à Inglaterra para estudar em Oxford com a intenção de investigar os textos antigos dos Vedas da Índia, seus livros sagrados. Müller era admirado por seu conhecimento do Hinduísmo e também por ter adquirido grau de mestre em escrita da língua inglesa. Seu conhecimento era aplicado com grande maestria em seus escritos populares sobre mitologia, o que, por sinal, atraía muito a atenção dos leitores britânicos. Assim, naquela ocasião, em Londres, ele encorajou-se e propôs um objeto de pesquisa diferente, algo novo que denominou “Ciência da Religião”. Aquelas palavras faziam uma combinação duvidosa que espantou a audiência, afinal tratava-se de duas áreas extremas que, na razão da época, não poderiam se combinar, já que eram opostas, ciência e religião. Müller falava no final de uma década marcada pelo debate incisivo promovido pela polêmica obra “A Origem das Espécies” de Charles Darwin (1859) e sua proposta teórica da evolução pela seleção natural. A mente e os ouvidos britânicos estavam marcados por um discurso muito evidente da ciência colocando-se contrária à religião e vice-

Fonte: SHUTTERSTOCK.COM

-versa.

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Assim, a princípio, não fazia qualquer sentido uma combinação daquela, portanto, uma “Ciência da Religião” caiu naquele ambiente como algo que causou muito espanto e curiosidade, no mínimo. Algumas questões pairaram ali imediatamente: como as antigas certezas da fé poderiam se misturar com um programa de estudos voltado para a experimentação, revisão e mudança? Como as cosmovisões opostas desses dois inimigos mortais se encontrariam sem que uma destruísse a outra? As respostas eram praticamente impossíveis, mas Müller era uma mente diferente. Sua certeza de que ambos universos poderiam se encontrar e que um verdadeiro estudo científico da religião teria muito a oferecer para ambos os lados dessa controvérsia, era evidente. Em sua palestra, a primeira de uma série que foi publicada como “Introdução à Ciência da Religião” (1873), procurou mostrar a possível conciliação entre as duas áreas, ciência e religião. Com tom argumentativo, ele lembrou seus ouvintes de que as palavras do Poeta Goethe para a linguagem humana poderiam também ser aplicadas à religião: “Quem conhece uma, conhece nenhuma”. Sendo assim, aquele seria o momento oportuno para um olhar diferenciado voltado para a religião. Ao invés de seguir os teólogos, treinados para provar a veracidade de sua própria religião e a falsidade de todas as outras, havia chegado o tempo de deixar de lado a aproximação parcial e procurar por aqueles elementos, padrões e princípios que poderiam ser encontrados uniformemente em todas as religiões de todos os tempos e lugares. Muito poderia ser ganho com esse procedimento como um bom cientista, juntando os vários fatos – os costumes, rituais, crenças – das religiões através do mundo e então oferecer teorias descritivas e comparativas que alimentassem o ambiente científico. É claro que nem todos que estavam entre os estudiosos que ouviam Müller concordaram com a ideia de que haveria algum valor a ser encontrado a partir do estudo de várias religiões. Na Alemanha, Adolf von Harnack, o mais famoso historiador da Igreja da época, insistia em que somente o Cristianismo interessava, as outras expressões de fé não tinham qualquer valor em si para que se investisse nelas tempo de estudos para construções teóricas. Para Harnack, “qualquer um que não conhecesse a religião cristã não conhecia nenhuma”. Estas palavras foram a resposta para a visão de Müller. Ele ainda disse “e qualquer um que conhecer a fé

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cristã e sua história, conhece a todas”. Não havia, para o historiador, validade alguma ir aos índios, aos chineses ou mesmo aos negros ou aos papuas para conhecer sua religião. A civilização cristã seria a única destinada a prevalecer. Harnack foi um dos poucos opositores que não se intimidaram em responder diretamente às novas ideias, mas não eram poucos os que compartilhavam com sua discordância. Existia uma considerável parcela de consenso entre os teólogos e historiadores da Europa de que a fé cristã em seus ideais e valores, que formavam o centro espiritual da Europa Ocidental, expressava a mais alta realização em termos de moral e cultura humanas. Como imaginar que algo significante pudesse ser aprendido do conteúdo de outras religiões que eram concebidas como inferiores à civilização cristã. A falta de concordância com sua ideia não desencorajou Müller. Ele estava convencido de que estudos sérios mostrariam como algumas intuições espirituais profundas poderiam relacionar sábios das distantes Índia e China com mártires e santos da Igreja cristã.24 É bem verdade que a proposta de Müller não era tão nova assim, pelo menos sob alguns aspectos. A crítica racional da religião, no Ocidente era um empreendimento tão antigo quanto a filosofia grega, que havia debatido e investigado diversos aspectos. Já no limiar da filosofia, Xenófanes (pré-socrático) submeteu o politeísmo grego a um ataque incisivo: “Mas os mortais imaginam que os deuses são inventados, têm vestimentas como eles, voz e forma semelhantes a eles”. Também Herodoto (484-425 a.C.) descreveu diversas religiões antigas e as contrastou com os costumes e práticas dos gregos. Mas a originalidade do projeto de Müller e de outros pensadores de seu tempo – Britânicos como E. B. Taylor (1832-1917), James George Frazer (1854-1941) – era a natureza do projeto, o tipo de investigação por eles proposta a partir de parâmetros construídos pela ciência moderna. Estava à disposição desses autores um modelo de investigação com poder e eficiência comprovados, construído pelas ciências naturais, que poderia ser adaptado com sucesso para o campo de estudos do fenômeno religioso. Eles se diferenciariam do que havia até então acontecido, estudos caracterizados por um sistema de opiniões baseadas em racionalizações, provenientes de pressupostos filosóficos 24

PALLS, Daniel. Op. cit., pp. 3-4.

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ou teológicos e não da observação e coleta de dados objetiva. Além da comparação ampla capaz de produzir uma teoria universal para dar conta do fenômeno religioso no espaço, uma das tarefas dessa ciência seria a de explicar as origens da religião, identificar as primeiras ideias e práticas religiosas, sua evolução ao longo do tempo até os dias modernos. Para isso a Ciência da Religião teria de ser então, uma ciência histórica. O ambicioso programa proposto parecia factível para os seus idealizadores, pois o avanço de áreas do conhecimento, como a Arqueologia, a História, a Antropologia, a Crítica dos textos, poderia contribuir se fosse posto a serviço da Ciência da Religião25. A ideia e iniciativa de Müller têm suas raízes em uma época em que a Europa estava efervescendo com novas descobertas, principalmente de novos mundos, povos e religiões. Também era um contexto muito negativo quanto à religião cristã. A Reforma havia acontecido, e as guerras que a sucederam criaram dúvidas e frustrações. Além disso, a possibilidade de outra verdade levou muitos a repensarem os paradigmas da fé. Por volta do ano 1500, época das grandes navegações e também da Reforma Protestante, uma nova visão de mundo começa a tomar forma. As viagens dos exploradores, comerciantes, missionários e aventureiros para o Novo Mundo e para o Oriente levaram cristãos a um contato direto com povos que não eram judeus nem muçulmanos, cujas religiões eram desprezadas (a primeira por ser somente um prefácio do Cristianismo, a segunda por ser uma perversão daquela). Missionários viajavam com os conquistadores e exploradores. Sua contribuição era trazer as nações pagãs para Cristo e para a Igreja e, portanto, fizeram muitos se converterem, mas esse processo apresentou muitas surpresas. Quando Matteo Ricci (1552-1610) mudou-se para a China, o missionário rapidamente se “converteu”. Ele descobriu que os chineses tinham uma civilização real, com arte, ética e literatura. Seus métodos eram racionais e seguiam uma impressionante sabedoria moral de seu próprio “Moisés”, o antigo professor Confúcio. Um outro Jesuíta, Roberto de Nobili (1577-1656), teve uma experiência similar na Índia. A sabedoria 25

FILHO, Paulo Gonçalves Silva. Considerações Teóricas em Torno do Reducionismo Funcionalista em Ciências da Religião. In: REVER, Revista de Estudos da Religião, n. 4/2004/pp. 43-72.

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espiritual da Índia capturou sua imaginação, e ele estudou os textos sagrados tão intensamente que ficou conhecido como o “Brâmane Branco”. Na América, missionários descobriram algo conhecido como o Supremo Bem. Quando essas informações foram levadas para a Europa, ocorreu, no círculo de pensamento, que a condenação dessas pessoas como discípulos do demônio parecia algo inapropriado e desviado. A China de Confúcio pôde não conhecer Cristo, mas de alguma forma, sem a Bíblia para guiá-los, eles produziram uma civilização pacífica e de moralidade elevada. Se os apóstolos tivessem visitado, ficariam admirados. Ao mesmo tempo em que esses contatos aconteciam, a civilização cristã encontrava-se envolvida em uma sangrenta guerra. Liderada por Martinho Lutero na Alemanha e pelo jurista João Calvino na Suíça e França, os novos movimentos protestantes ao norte da Europa desafiavam o poder da Igreja Romana e rejeitavam sua interpretação bíblica. Enquanto os exploradores viajavam, seus conterrâneos frequentemente se inflamavam com o fogo das perseguições e das guerras. Comunidades eram divididas pela ferocidade das querelas teológicas, primeiramente entre católicos e protestantes, depois entre as denominações e vários outros diferentes grupos que começaram a aparecer entre a Cristandade. Em meio a tempestade do conflito eclesiástico e o combate político que emperraram a Europa nos séculos XV e XVI, não surpreende que fiéis de todos os lados tinham cada vez menos certeza de que a verdade final de Deus estava em suas mãos somente. A mortal e destrutiva guerra religiosa, que persistiu por mais de cem anos em alguns lugares, levava pessoas a acreditarem que a verdade sobre a religião não poderia ser encontrada em vertentes preparadas para torturar e executar seus oponentes, atribuindo tais aberrações à vontade de Deus. Certamente, alguns entenderam que a verdade da religião deveria ser encontrada além das querelas da Igreja, além das torturas da estaca e do fogo. Certamente, a fé da Europa encontraria uma forma pura e comum, uma estrutura mais universal de fé e de valores.

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O SÉCULO DAS LUZES E A RELIGIÃO NATURAL Diante do pano de fundo sangrento da era anterior, os pensadores do século XVIII, a Era do Iluminismo, propuseram a busca por uma religião antiga pura e natural compartilhada pela humanidade inteira. A Religião natural formou as bases do Deísmo, como ela veio a ser chamada. Na lista dos deístas estão as vozes mais articuladas e os nomes mais celebrados daquela era: filósofos britânicos como John Toland e Matthew Tindal; os americanos Thomas Jefferson e Benjamin Franklin; Homens brilhantes como Denis Diderot e Voltaire na França; dramaturgos como Gotthold Lessing e o filósofo Immanuel Kant na Alemanha. Todos deste grupo aderiram à ideia de uma religião universal e natural. Nela se inclui a crença em um Deus criador que fez o mundo e então o deixou livre para funcionar de acordo com as suas próprias leis naturais, paralelamente com uma lei moral para guiar a conduta da humanidade com a promessa de que os bons, obedientes a essa lei herdariam uma recompensa na vida após a morte, aqueles que não obedecessem a essa lei haveriam de receber uma punição. Para os deístas, esse simples e elegante credo havia sido a fé dos primeiros seres humanos, eles atribuíam a ideia a um primeiro filósofo, o primeiro pensador entre todas as raças. A grande esperança de toda a humanidade era retornar a esse credo original e viver em uma irmandade universal – cristãos, judeus, muçulmanos, hindus, confucionistas e demais – sob seu único Deus Criador. Além desse trabalho de promover a tolerância, a noção deísta de uma religião natural original abriu as portas para uma nova maneira de explicar as muitas formas de religião, seus conflitos e confusões. Não importava a diferença de crença dos vários grupos cristãos, o ritual dos índios americanos, dos ritos aos ancestrais chineses, ou os ensinos dos mestres hindus, todos poderiam traçar um caminho de volta para a religião natural dos primeiros seres humanos e então perceberem como aquela sabedoria foi se dispersando gradualmente e se transformando nas variantes até a modernidade. A China pôde mostrar prova deste ponto. Conforme os navios do Oriente foram atracando nos portos europeus regularmente nos anos 1700s, a fascinação

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tomou conta dos ocidentais. Suas invenções, especiarias, porcelanas, chás e móveis deram evidências da civilidade, elegância, prosperidade e piedade dos Chineses, tudo obviamente alcançado sem qualquer ajuda da Bíblia. Essas produções culturais aliadas especialmente à ética de Confúcio exibiam as virtudes da religião natural. É evidente na história como o contato do Ocidente com o Oriente e com o Novo Mundo transformou o universo dos pensadores da religião da Europa promovendo grandes transformações no universo religioso daquele continente. Não seria surpresa, em 1870, Frederic Max Müller propor um caminho diferente para se pensar o fenômeno religioso. Paradigmas haviam sido quebrados e a teologia já não respondia aos anseios de um mundo em efervescente transformação. Nasce assim a Ciência da Religião como uma proposta de tornar o fenômeno religioso um objeto de pesquisa empírica, fundamentada no método dedutivo, à procura de um elemento comum que envolvesse todas as religiões, para que a pesquisa não se perdesse em parcialidades e apologias teológicas e filosóficas, mas objetivasse a produção de conhecimento de um fenômeno muito presente na humanidade, porém, muito pouco conhecido e compreendido.

TEORIAS DA ORIGEM DAS RELIGIÕES Várias teorias foram propostas, algumas aceitas e outras rejeitadas. Segundo Aldo Natale Terrin, professor da Universidade Católica de Milão, há alguns motivos para conhecermos e pensarmos nessas teorias hoje, embora pertençam ao século XIX e estejam ligadas à concepção evolucionista da religião. Primeiramente porque o homem comum mesmo não conhecendo muita coisa sobre o estudo de caráter religioso, muitas vezes nutre ainda hoje uma secreta suspeita de que a religião, no fundo nasceu de uma realidade qualquer. [...] Ora é interessante ver que como o homem hoje, que conhece algo mais que ontem sobre os mecanismos inconscientes, tem sido largamente antecipado e ultrapassado em suas previsões e suspeitas pela história das idéias e pela ciência da religião. Em segundo lugar, [...] porque mediante o estudo dessas teses sustentadas por historiadores e etnólogos, nos é possível ter uma síntese de todo um período de investigação etnológica. Enfim,

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[...] nos ajuda a superar uma tentação positivista que retorna sempre e que já está implícita quando se aceita falar de religião como uma realidade humana derivada historicamente de alguma outra realidade e, portanto pretende-se considerá-la como fenômeno "dependente".26

A Teoria do Naturalismo ou da Mitologia da natureza de Müller Para Müller, os deuses nada mais seriam do que personificação de grandes fenômenos da natureza. Seus pressupostos de partida são: a religião deve começar por um conhecimento sensorial, deve ter origem na experiência concreta; os homens sempre tiveram certa intuição do divino, ou uma ideia do infinito. Por meio dessas premissas, a conclusão de Müller é que a ideia do infinito, presente no homem, tem sua explicação espontânea nos grandes fenômenos da natureza, a aurora, a noite, a floresta, o sol, o fogo, a terra etc. Os fenômenos da natureza provocam surpresa nos homens e interferem na sua visão de um mundo produzindo certas conclusões que são internalizadas, como a condição de infinito. Para Müller, os fenômenos da natureza eram apenas símbolos das divindades, mais tarde eles foram identificados como os próprios deuses. Isto se deu por causa da perda da consciência simbólica. Ele identifica uma doença da linguagem pela qual se chegou do simbólico à personificação do objeto ou fenômeno natural, assim o nome dos fenômenos da natureza tornaram-se os numes (nomia sunt numina). Alguns exemplos: Agni, um dos principais deuses ao qual se dirigem os hinos e orações nos Rig-Veda (antiga coleção de hinos e orações hindus), indicava no início apenas o fato natural do fogo (agni = ignis). Enquanto mais tarde chegou a constituir uma divindade importante e popular na religião védica. Para Müller, então, o estudo dos mitos baseados na filologia e na etimologia das palavras é o único meio prático para se entender a religião. 26

TERRIN, Aldo Natale. Introdução ao Estudo Comparado das Religiões. São Paulo: Paulinas, 2003, pp. 51-52.

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A teoria de Müller se tornou muito frágil, apesar de ter alguns fundamentos, pois, no nível filológico, não existem os correspondentes que ele havia anunciado entre as divindades e os fenômenos naturais, ou seja, nem todos os nomes das divindades védicas têm o correspondente natural que lhes poderia ser atribuído.27 De modo geral, poder-se-ia observar que se essa teoria fosse verdadeira, as divindades e os mitos seriam tão-só produto de um processo verbal equivocado. Mas – poderíamos perguntar – como esse sistema de imagens fictícias teria condições de durar por tanto tempo e dar origem a um fenômeno tão importante como é o fenômeno da religião?28

Apresentamos aqui somente um breve resumo da característica principal da teoria do naturalismo ou da mitologia da natureza de Müller, que apreciada do presente, à luz de todo desenvolvimento das Ciências da Religião é fragilizada, não sendo importantes seus pormenores neste trabalho. Embora sua teoria não tenha se perpetuado como base de estudos do fenômeno religioso, ainda assim Müller é reconhecido como um dos principais proponentes da Ciência da Religião. Seus trabalhos deram insights para outras teorias sobre a religião e conhecer esses trabalhos, como diz Natale, ainda nos permite transpor certas “inocências” e tentações das quais poderíamos ser vítimas. Animismo de Edward Burnett Tylor Edward Burnett Tylor, já mencionado neste trabalho por sua definição de religião, foi um autodidata inglês que tinha grande interesse pelos estudos da cultura humana e pela organização social. Alguns até o consideram como o fundador da antropologia social ou cultural como são praticadas agora na Inglaterra e Estados Unidos. Embora descendente de uma próspera família de Quakers – um forte ramo do protestantismo inglês muito conservador – Tylor preferiu uma posição religiosa mais liberal, o que é claro em seus trabalhos, que mostram uma grande aversão por todas as formas de tradicionalismo de fé e prática cristãs,

27

TERRIN, Aldo Natale. Op. cit., pp. 53- 54.

28

Ibidem, p. 54.

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principalmente o Catolicismo Romano29. Tylor ficou órfão quando ainda era jovem e procurou se preparar para administrar os negócios de sua família, contudo, aos vinte e três anos, teve de deixar a Inglaterra e os negócios da família para passar um tempo em um lugar de clima quente, buscando a cura para sua tuberculose. Tylor mudou-se para a América Central em 1855. Parece que a mudança foi promissora, pois combinava muito bem com seu interesse em estudar culturas diferentes. Enquanto viajava, foi tomando nota de tudo que se referia aos costumes e as crenças dos povos com os quais tinha algum contato. O resultado de suas observações foi publicado quando ele voltou à Inglaterra, em um livro intitulado Anahuac: Ou Mexico and the mexicans, ancient and modern (1861). Contudo, sua obra-prima, foi publicada em 1871, Primitive Culture. Um texto editado em dois volumes pela sua densidade, nos quais ele desenvolve toda a sua teoria do animismo. Esse se tornou o principal trabalho de sua carreira e um marco no estudo da civilização humana. Esse importante texto entusiasmou vários jovens estudantes a se tornarem discípulos de Tylor. Em 1884, foi convidado pela Universidade de Oxford para ser o primeiro palestrante do novo campo, Antropologia. Mais tarde tornou-se o primeiro professor da disciplina, tendo uma longa carreira que se estendeu até depois da Primeira Guerra Mundial.30 Acordos e diferenças entre Mas Müller e E.B. Tylor Müller e Tylor concordavam em que o apelo ao sobrenatural deveria ser descartado em suas discussões, mas discordavam radicalmente quanto à validade da pesquisa etnológica de Tylor. Como vimos acima, Müller entendia que a chave para a compreensão da religião, dos mitos e outros aspectos da cultura estava na linguagem. Ele e outros estudantes de filologia haviam mostrado que formas de expressões da Índia e da maioria dos povos da Europa pertenciam a um grupo de línguas que se originou em um povo antigo chamado Ariano. Comparando palavras paralelas por entre essas línguas, eles tentaram mostrar que o padrão de pensamento 29

PALLS. Daniel. Op. cit., pp. 18-19.

30

PALLS, Daniel. Op. cit., pp. 19-20.

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de todos esses “Indo Europeus” era praticamente o mesmo, e que, nesta grande porção da raça humana, a religião começou quando as pessoas reagiram aos grandes e poderosos atos da natureza31. Tylor não tinha um profundo conhecimento de línguas, mas entendeu que algumas poucas ideias de Müller faziam algum sentido e as aceitou em seus trabalhos. Mas ele discordava radicalmente do procedimento de Müller de desenvolver quase que a totalidade de sua teoria em um pouco mais do que hábitos linguísticos e palavras derivadas. Segundo Tylor, é preciso muito mais dos que alguns erros de compreensão verbal dos eventos da natureza para se explicar o início de um complexo sistema de crenças e rituais que recebe o nome de religião32. Um dos propósitos da obra de Tylor Primitive Culture era apresentar sua abordagem diferente. Mesmo sem conhecer profundamente as línguas, ele entendia que o caminho mais adequado era considerar as culturas em todas as suas partes e componentes para alcançar de fato os hábitos, as ideias e os costumes que a linguagem descreve. Para ele a Etnologia era certamente melhor do que a etimologia. A Etnologia insiste em que qualquer comunidade ou cultura organizada deve ser compreendida de forma completa, como um conjunto formando uma unidade, ou seja, um complexo sistema construído a partir de conhecimento e crenças, de arte e moral, ferramentas e tecnologia, linguagem, leis, costumes, lendas, mitos e outros componentes. Todos esses elementos formam o todo de uma singularidade. Para a Etnologia, esse complexo deve ser investigado cientificamente33. Essas diferenças entre os dois proponentes dos estudos científicos do fenômeno religioso dão a Tylor maior evidência, pois sua teoria teve uma história mais extensa e obteve consenso mais amplo. A teoria animista.

31

Ibidem, p. 21.

32

Ibidem.

33

Ibidem, p. 22.

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Sua base tem três pontos. Em primeiro lugar, existe a ideia de alma, que está na origem da religião; da ideia de alma, lentamente se passou à ideia de espírito, que, ao longo do tempo torna-se objeto de culto; enfim, a ideia de espírito teria se multiplicado incluindo muitos espíritos. Em certo momento da história primitiva, um espírito teria se sobressaído aos outros, sendo-lhe atribuído o título de Ser supremo34. Para Tylor o caminho ideal para obter-se a resposta quanto à origem da religião está na investigação dos mitos. Este caminho deveria ser tomado a partir do momento em que se soubesse exatamente o que é religião. Já vimos anteriormente sobre o seu conceito de religião, “a fé em seres espirituais”. Esta fórmula tem o mérito de ser simples, franca e abrangente. Embora se encontrem outras similaridades entre as religiões, Tylor concluiu que uma característica compartilhada por todas as religiões, fossem elas grandes ou pequenas, antigas ou modernas, era a crença em espíritos que pensam, agem e sentem como pessoas humanas. A essência da religião como mitologia é o animismo (do latim anima, que significa espírito) – a crença em vida, poderes pessoais por trás de todas as coisas. Animismo seria a mais antiga forma de pensamento, o qual é encontrado em toda a história da raça humana. Assim, Tylor sugere que, se realmente queremos explicar religião, a questão que precisamos responder é esta: como e por que a raça humana passou a acreditar que coisas como seres espirituais realmente existem? Algumas respostas podem ser simples, pessoas vão dizer que creem em seres espirituais porque esses seres realmente falaram com elas de forma sobrenatural, por meio da Bíblia ou do Corão, ou outra escritura sagrada. Tal resposta é suficiente e satisfaz um fiel dentro de uma confissão religiosa, mas para Tylor, bem como para Müller e outros pensadores daquele momento, essa não era uma resposta plausível para a ciência. Ele insistia em que qualquer tentativa de saber como um ser humano, ou a humanidade inteira, veio a acreditar em seres espirituais, deveria apelar a uma causa natural. Essa tarefa deveria se valer dos mesmos métodos e ferramentas que cientistas e historiadores usam para qualquer outro objeto de 34

TERRIN, Aldo Natale. Op. cit., p. 55.

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pesquisa. Haver-se-ia de presumir que os homens primitivos tiveram suas primeiras ideias sobre religião por meio dos mesmos mecanismos de raciocínio empregados em todos os outros aspectos da vida. Como nós, sem dúvida, eles observaram a dinâmica do mundo e então procuraram alguma explicação para isso. Que tipo de observação esses homens primitivos poderiam ter feito? Quais as explicações ou conclusões a que eles chegaram? Para esta resposta, Tylor procurou perscrutar minuciosamente o tempo pré-histórico para reconstruir o pensamento do mais primitivo ser humano. It seems as though thinking men, as yet at low level of culture, were deeply impressed by two groups of biological problems. In the first place, what is it that makes a difference between a living body and a dead one; what causes waking, sleep, trance, disease, death? In the second place, what are those human shapes which appear in dreams and visions? Looking at these two groups of phenomena, the ancient savage philosophers probably made their first step by the obvious inference that every man has two things belonging to him, namely, a life and a phantom as being its image or second self; both are perceived to be things separable from the body…. The second step … It is merely to combine the life and the phantom ... the result is that well-known conception… the personal soul, or spirit.35

Uma vez que essas ideias de alma são sedimentadas na mente dos homens primitivos, elas não são mantidas da mesma forma. Como tudo na história, o animismo também teve o seu desenvolvimento. Em um primeiro momento, as pessoas pensavam em uma alma individual, pequena e específica, associada com cada árvore, rio, animal que eles viam. Com o passar do tempo seu poder estende-se. Gradualmente, no pensamento tribal, a alma de determinada “Embora pareçam homens pensadores, ainda estavam num nível preliminar de cultura, e eram profundamente impressionados por dois grupos de problemas biológicos. Em primeiro lugar, o que é isto que faz diferença entre um corpo vivo e um morto? O que provoca movimento, sono, inconsciência, doenças, morte? Em segundo lugar, o que são aquelas silhuetas humanas que aparecem nos sonhos e visões? Olhando para esses dois grupos de fenômenos, os antigos filósofos selvagens provavelmente deram seu primeiro passo pela inferência óbvia de que todo homem tem em si duas pertenças, a vida e um espectro como se fosse sua imagem ou seu outro eu; ambos são percebidos como sendo separados do corpo... O segundo passo a ser dado, [...] é simplesmente combinar a vida com o espectro... o resultado é o conceito que é bem conhecido ... a alma pessoal, ou espírito”. (Tradução: Prof. José Francisco de Souza) In: TYLOR, Edward B. Primitive Culture: Researches into Development of Mythology, Philosophy, Religion, language, art, and Custom. London: John Murray, 1903, p. 429.

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árvore cresce em poder e passa a ser a alma da floresta ou das árvores em geral. Mais adiante, a mesma alma torna-se cada vez mais separada de seu objeto de controle e adquire sua própria identidade e características. Nesse estágio, as pessoas adoram a deusa da floresta, que já não é mais uma alma, mas um espírito totalmente livre de seu objeto de controle. Os adoradores reconhecem que a floresta é sua casa, mas eles sabem que ela pode deixar a sua casa se desejasse. Entre os vários deuses da Grécia Antiga, por exemplo, Posseidon foi primeiramente a alma dos mares, depois adquiriu seu tridente, sua barba e então características que lhe distinguiam como um espírito independente. Nos tempo do poeta Homero, Posseidon era uma divindade pessoal que podia deixar o mar e viajar rapidamente para o monte Olimpo, onde Zeus reunia os deuses em assembleia. Diferente de Müller, que defendia a tese de que a complexidade das religiões e seus panteões eram produto de uma “doença da linguagem”, para Tylor a religião grega, uma das mais complexas mitologias, pertencia a uma época em que houve progresso cultural.36 É claro que a teoria de Tylor tem base na observação de fatos, certamente o homem primitivo construiu a respeito da alma o que viu em seus sonhos, isso é confirmado pela etnologia. Contudo, queremos aqui concordar com algumas críticas interessantes de Terrim: 1. A teoria funda-se sobre alguns fatos para chegar a uma construção teórica que perde passo a passo o contato com a realidade, usando um método de psicologia introspeccionista que certamente não pode ser controlável. O etnólogo Evans Pritchard escreve a respeito disso, que se trata de um exemplo refinado de construção hipotética, e que as idéias da alma e espírito poderiam ter surgido na maneira descrita por Tylor, mas não há evidências de que as coisas tenham passado desse modo; 2- mesmo admitindo que o sonho, com duplicidade que ele cria, tenha origem à idéia de alma, resta a ser esclarecido o valor etnológico da segunda passagem da alma para o espírito. Aqui, de fato parece que encontramos o ponto fraco da teoria de Tylor, como apontam os etnólogos, por haver uma diferença muito grande entre ficar livre do corpo e um espírito que se torna objeto de culto; 3- a terceira e última objeção de sempre, de caráter geral. Como é possível que, a partir de uma ilusão, tenha-se desenvolvido um mundo religioso que desde sempre se apropriou de valores fundamentais reconhecidos por toda a humanidade? Na realidade, se a teoria animista fosse verdadeira, as crenças 36

PALLS, Daniel, pp. 28-29.

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religiosas se reduziriam a simples ilusões, sem nenhum fundamento objetivo, pelo fato de que na noção de espírito e de divindade nada mais se vê a não ser a noção de “alma mais elevada”. Tudo isso não é admissível: não se pode admitir que as idéias de alma e espírito tenham surgido de um simples erro de raciocínio que dizia respeito aos sonhos depois de repercutido em toda a história da humanidade e na constituição da própria religião.37

Embora mais coerente e mais aceita entre os estudiosos da religião de sua época e posteriores, a teoria do início da religião fundamentada no animismo tem seus problemas e incoerências. Apesar de ter todo o cuidado para ser o mais científico possível, vemos que Tylor foi vítima de uma forte tendência de seu tempo, basear suas pesquisas e as suas conclusões em inferências que, embora se caracterizem como argumentos intelectuais muito bem construídos, ainda assim não podem ser considerados científicos pela falta de dados e experimentação. Também os conceitos de alma e espírito que ele carrega compõem uma construção derivada do seu ambiente religioso proveniente da cultura judaico-cristã e greco-romana. O ramo Dourado – Magica em James George Frazer Desde cedo em sua carreira, quando ainda um jovem estudante dos clássicos em Cambridge University, James George Frazer tornou-se um converso às ideias e métodos de Tylor. Consequentemente, investiu seus esforços em pesquisas na área de antropologia e procurou ampliar e criar sua própria versão da teoria animista. Sua principal obra foi The Golden Bough (Ramo Dourado) (1890 – 1915), um estudo monumental de costumes e crenças primitivas. A publicação desse livro ocupou a maior parte de seus anos de vida adulta e tornou-se sua afirmação definitiva sobre a origem e natureza da religião. A obra teve três edições e foi composta por doze volumes, o que lhe custou perto de vinte anos de sua vida. O que na primeira edição era um livro em dois volumes tornou-se uma enciclopédia. Por sua obra, conteúdo e volume, Frazer tornou-se um dos mais conhecidos no campo da etnologia, a própria escola francesa nas pessoas de Durkheim e Levy-Brunl colheram material dela, assim como Freud. Contudo: 37

TERRIN, Aldo Natale. Op. cit. pp. 57-58.

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Se a importância de Frazer é incontestável sob vários pontos de vista, não é assim tão fundamental no tocante a uma nova teoria da religião. Para fazer com que a religião derivasse da magia ou de formas geralmente mais primitivas de experiência e de pensamento, bastava apenas empregar o esquema clássico vigente no século XIX (e que vinha do filósofo August Comte), segundo o qual a humanidade teria passado por três fases: a fase mitológica (ou mágica), a fase metafísica (ou teológica) e a fase científica, que permitiria finalmente conhecer e levar em consideração a maturidade do homem e a sua situação no mundo38.

Mágica e religião tornam-se o principal tema da obra de Frazer, são elementos centrais em

Fonte: SHUTTERSTOCK.COM

The Golden Bough.

Para compreender a importância desses dois elementos na vida das sociedades primitivas, é preciso dar atenção às condições de vida na floresta, por exemplo, ou em outra qualquer paisagem da Terra e ao fato de como deveria ser a luta pela sobrevivência nesses ambientes. Os caçadores precisavam de animais para abater, os que cultivavam a terra precisavam do sol e da chuva no tempo certo para a plantação. Quando a natureza não os atendia nessas necessidades, possivelmente se colocavam a pensar fazendo um esforço para que pudessem compreender a natureza e se possível transformá-la. O primeiro produto desse esforço deu-se em forma de mágica. 38

TERRIM, Op. cit., p. 59.

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A magia seria esclarecida mediante uma série de consequências que repousam sobre falsas premissas. Essas premissas são dadas por dois princípios fundamentais de associação de ideias: imitação, a mágica que conecta coisas no princípio da similaridade; contato, coisas que estão em contato, ou que estiveram em contato uma vez entre si, continuam a agir também à distância. Pelo primeiro princípio, temos a magia chamada analógica, e pelo segundo a magia contagiosa. Quando os camponeses russos simulavam uma chuva, jogando água em uma tela para que ela gotejasse como chuva, acreditavam que essa semelhança forçaria uma chuva realmente. Os bosquímanos do Kalahari (África), antes da caça, desenham no chão os animais que se propõem a caçar e simbolicamente o abatem. Esse também é um exemplo de magia analógica baseado no princípio de que o semelhante produz o semelhante. Quanto à magia por contágio, o exemplo pode ser do sacerdote vodu que finca um instrumento pontiagudo (um espinho ou um espeto) no coração de um boneco que tenha uma unha ou um fio de cabelo de seu inimigo, ele imagina que pelo contato – pela transmissão de contágio – a morte de seu inimigo pode ser uma realidade imediata. Assim, segundo a teoria de Frazer, magia seria a coerção direta das forças da natureza por parte do homem, enquanto a religião, o ato de propiciação da divindade por parte do crente. A atitude mágica é ditada pela vontade de obter exigindo e obrigando, enquanto que a atitude religiosa, pelo contrário, se manifesta pela súplica, pela prece, pelo sacrifício para obter algo que não está sujeito à vontade do fiel. Essas premissas nos mostram o lugar da magia e da religião nas teses de Frazer. A magia fica para a origem do processo evolutivo, em seguida se transforma em religião, até que se chega à ciência que apresenta a verdadeira explicação dos fenômenos naturais. A magia seria o momento de acentuada simplicidade, pois não exige qualquer reflexão para admitir algo sobre-humano, ainda não considera um ser como deus. Quanto à religião, seria o estágio mais avançado e complexo que exigiu a reflexão em função do fracasso da atitude mágica, pois a conclusão é que a natureza está sujeita a leis mais altas do que aquelas que o homem pode lhe impor.

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As Teorias que foram consideradas aqui são as primeiras após Müller lançar o desafio da Ciência da Religião. A originalidade de seus autores está no método que se dispuseram a aplicar em seus estudos de religião. Partem da decisão de serem científicos, e assumem que qualquer explicação da religião que se baseie em eventos sobrenaturais como revelação, por exemplo, deve ser desconsiderada como ciência. Somente as teorias com elementos naturais poderiam ser aceitas como explicação da cultura dos povos religiosos ou não. Os estudos da cultura religiosa de todos os povos deveriam ser fundamentados em vasta coleta de dados e de fatos, seguidos de comparação e classificação e somente depois dessas fases da pesquisa se formularia uma teoria geral. Outra consideração a ser feita é que Tylor e Frazer explicaram a religião em termos de sua origem pré-histórica. Ela teve início em eras longínquas e foi passando por um processo de evolução até o tempo presente. Eles acreditavam que o principal parâmetro para se explicar a religião deveria ser pela descoberta de como ela começou, observando a partir das formas mais simples e então seguir seus passos do passado até o tempo presente. Partindo de princípios evolucionistas, entendiam que a religião havia cumprido seu papel no processo de evolução do pensamento humano e com a chegada da ciência esse processo estaria concluído. Nos parágrafos acima, temos somente a introdução da história da Ciência da Religião. Essas teorias nos mostram como a consideração do fenômeno religioso pela ciência teve início e como as ciências Etnologia e Antropologia foram aplicadas nessa avaliação. As teses desses proponentes da Ciência da Religião tinham um caráter essencialista e evolucionista, ou seja, como apresentado em nossa discussão do conceito religião, elas partem de uma essência comum para a explicação do fenômeno no geral, já que a preocupação principal desses autores era encontrar o cerne do fenômeno religioso para desvendá-lo em seu desenvolvimento, no papel que cumpriria no processo evolutivo da sociedade até o seu final imposto pela ciência. Porém, outro viés para a explicação do fenômeno religioso irá se expor nas teses dos pensadores funcionalistas que não se importaram com a essência do fenômeno religioso, mas com a sua função social. Sua abordagem parte de um reducionismo

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que minimiza a religião como um fator social que cumpre um determinado papel. As teses funcionalistas e reducionistas haverão de ser combatidas pela fenomenologia. Esse embate será apresentado na unidade seguinte.

ATIVIDADE DE AUTOESTUDO 1. Para um estudo mais aprimorado deste tema, acesse o site da Revista REVER da Puc de São Paulo pelo link abaixo e leia o artigo do Prof. Paulo Gonçalves Silva Filho, “Considerações Teóricas em Torno do Reducionismo Funcionalista em Ciências da Religião”. <http://www.pucsp.br/rever/rv4_2004/p_silva.pdf>. 2. Faça uma síntese do artigo, abordando os temas principais.

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UNIDADE III

AS TESES FUNCIONALISTAS DOS ESTUDOS DE RELIGIÃO E REAÇÃO FENOMENOLÓGICA Professor Dr. José Francisco de Souza Objetivos de Aprendizagem • Distinguir entre as teorias essencialistas e funcionalistas. • Avaliar as perdas do fenômeno religioso a partir dos reducionismos funcionalistas. • Considerar as contribuições para a compreensão do fenômeno religioso a partir do funcionalismo. • Conhecer a Reação fenomenológica e suas categorias. • Avaliar as críticas mais contemporâneas à fenomenologia. Plano de Estudo A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade: • A teoria Sociológica de Durkheim • A Psicanálise Freudiana • A Alienação Marxista • A Reação fenomenológica



INTRODUÇÃO A TEORIA SOCIOLÓGICA DE DURKHEIM Vimos anteriormente algumas das mais influentes teorias da religião de caráter evolucionista, queremos agora abordar aqui, de forma mais breve, uma teoria sociológica de nosso século que, na realidade, tem pouco em comum com as teorias precedentes. A teoria sociológica está ligada ao nome de Emile Durkheim, fundador da escola sociológica francesa e certamente o autor que mais influenciou e influencia a sociologia da religião. Sua obra que trata do fenômeno religioso é As Formas Elementares da Vida Religiosa, publicada em 1912. É importante observarmos que a teoria de Durkheim tem um fundo etnológico e se refere ao conceito de “totemismo” como sendo a religião primária dos homens primitivos. Totemismo é uma categoria etnológica-religiosa utilizada por quase todos os estudiosos das culturas primitivas, contudo, segundo Terrin, nunca foi explicada. Frazer, na tentativa de explicar, disse que o totemismo consiste na ligação existente entre um clã e uma classe de animais, razão pela qual há uma consideração para com esse animal, certa reverência e se acredita em um parentesco remoto: o animal totêmico (totem = parente) é considerado o antepassado mítico do qual o clã descende. O uso que Durkheim faz a respeito do totem parte do pressuposto de que o totemismo é uma das expressões básicas e mais elementares da cultura e da religião dos povos primitivos. O Totem cumpre uma variedade de funções. Ele é, antes de tudo, um símbolo, um emblema do clã, é desenhado na frente das casas dos chefes e esculpido nos objetos que são considerados como os monumentos do clã. Tem um caráter religioso, serve para classificar o que é sagrado em relação ao que é profano. O totem é o tipo de tudo que é sagrado, é uma expressão eminente do sagrado.

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A partir dessa conceituação, Durkheim pôde sistematizar sua tese: sendo o totem a forma mais sensível de religião, é o próprio deus totêmico e se ele é ao mesmo tempo o símbolo do clã e o emblema do grupo social, significa que o símbolo principal da religião e o fundamental da sociedade são a mesma coisa e que definitivamente o deus totêmico do clã nada mais é que o próprio clã, porém personificado e compreendido em sua forma mais ideal. A tese de Durkheim diz que a religião é o mito que a sociedade faz de si mesma. O culto prestado ao totem é um culto prestado a própria sociedade. Logicamente é verdade que em seus rituais de culto, que são sempre em comunidade, os membros dos clãs aborígenes, por exemplo, entendem que estão prestando culto a divindade, um animal, uma planta, que está fora da comunidade, em algum lugar do mundo, que pode controlar a chuva ou mesmo fazê-los prosperar. Mas o que realmente está acontecendo é algo que pode ser mais bem compreendido em termos de função social. A sociedade precisa do comprometimento individual dos seus membros. Esse comprometimento, segundo Durkheim, “não pode existir senão através da consciência do indivíduo; por isso que o princípio totêmico deve sempre penetrar e se organizar conosco”39. Além disso, podemos saber exatamente quando e como isto acorre. Isto ocorre naqueles cerimonias inspiradores e ao mesmo tempo intimidadores, causam medo, terror, respeito e reverência, é uma ocasião em que a comunidade toda se reúne para praticar seus ritos, seja o clã ou a tribo. Nessas grandes e inesquecíveis cerimônias, os adoradores selam seu comprometimento com a própria comunidade. In the sacred principle is nothing more nor less than society transfigured and personified, it should be possible to interpret in social terms. And, as a matter of fact, social life, just DURKHEIM, Émile. The elementar Forms of the Religions Life. New York: The Macmillan Company, 1915, p. 419. “No princípio sagrado é nada mais, nada menos do que a sociedade transfigurada. Isto deveria ser possível interpretar em termos sociais. E, como uma questão de facto, a vida social, tal como o ritual, move-se em um círculo. Por um lado, o indivíduo recebe da sociedade a melhor parte de si mesmo, tudo o que lhe dá um caráter distinto e lugar especial entre os outros seres, sua cultura intelectual e moral... Mas por outro lado, a sociedade existe e vive somente em/e através de indivíduos. Se a idéia da sociedade fosse extinta em mentes individuais, as crenças, tradições e aspirações do grupo não seriam mais sentidas e partilhadas pelos indivíduos, a sociedade iria morrer. [...] Vemos agora a verdadeira razão pela qual os deuses não podem fazer, sem os seus adoradores, mais do que estes podem fazer sem os seus deuses, é porque a sociedade, de quem os deuses são apenas uma expressão simbólica, não pode prescindir de indivíduos mais do que estes podem fazer sem a sociedade”.

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like the ritual, moves in a circle. On the one hand, the individual gets from society the best part of himself, all that gives him a distinct character and special place among other beings, his intellectual and moral culture… But on the other hand, society exists and lives only in and through individuals. If the idea of society were extinguished in individual minds and the beliefs, traditions and aspirations of the group were no longer felt and shared by the individuals, society would die. […] We now see the real reason why the gods cannot do without their worshippers any more than these can do without their gods; it is because society, of which the gods are only a symbolic expression, cannot do without individuals any more than these can do without society40.

Neste parágrafo conclusivo, Durkheim deixa claro sua tese, que é o cerne de sua teoria. A crença religiosa e os rituais são, em última análise, expressões simbólicas da realidade social. O culto ao totem é, na realidade, a afirmação da fidelidade ao clã. Embora Durkheim tenha se preocupado com a forma mais primitiva de religião, sua busca principal não se fundamentava na descoberta da origem do fenômeno religioso e seu elemento comum a todas as formas de religião. Como sociólogo, ele preferiu direcionar sua teoria para esclarecer sobre a funcionalidade da religião como produtora de solidariedade social.

A PSICANÁLISE FREUDIANA A teoria psicanalítica da origem da religião de Sigmund Freud é outro exemplo do desenvolvimento dos estudos da religião no final do século XIX e início do século XX. O plano de trabalho de Freud é muito ambicioso: na realidade tem a pretensão de fazer com que os etnólogos entendam o que não conseguem compreender, fazendo que enxerguem primeiro uma analogia e depois uma identidade de comportamento entre o homem primitivo com os seus tabus e o seu totemismo, e o neurótico, que por sua vez, também está sujeito a tabus que ele mesmo cria e a uma forma particular de totemismo.41

A teoria de Freud baseia-se em um espesso entrelaçamento de caráter etnográfico e de caráter 40

Ibidem, p. 347.

41

TERRIN, Aldo Natale. Op. cit., p. 65.

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psicanalítico42 dos quais consideraremos os aspectos principais. Primeiramente, é preciso que os termos principais sejam esclarecidos. Tabu é uma proibição fortíssima e antiquíssima para o qual não existe uma razão imediata. O tabu é exogâmico, por exemplo, um membro do clã não pode se casar com uma mulher do mesmo clã. Por sua vez, o totem é considerado o “deus totêmico”, isto é, como o animal ao qual o clã atribui um culto especial e do qual se sente dependente.43 Ora, a teoria de Freud sobre a origem da religião poderia ser resumida nestas poucas palavras: considerada a semelhança existente entre os tabus do neurótico e os tabus do homem primitivo, e considerando que na origem de toda neurose há um chamado complexo de Édipo, o autor é levado a prefigurar um complexo de Édipo como uma história verdadeira projetada no início da humanidade, segundo a qual os filhos – num tempo histórico ou mítico – teriam se revoltado contra o pai e o teriam matado por ciúme e para possuir as mulheres que eram, todas, monopólio do pai. Porém, essa morte do pai (parricídio) teria imediatamente criado uma fonte de perturbação e um remorso sem igual, razão pela qual os filhos não estariam mais em condições de suportar diretamente a lembrança da imagem paterna, que precisaria ser substituída simbolicamente44.

Os primitivos são culpados por matarem o pai, mas não podem suportar a lembrança desse fato, para aplacar o remorso daí decorrente, criam o símbolo totêmico, que nada mais é do que a imagem disfarçada do pai odiado, mas com o qual querem se reconciliar de qualquer maneira. A religião é explicada nessa tentativa de superar a dor da culpa e do remorso pelo parricídio, mostrando sentimentos de reverência para o totem, o símbolo do pai, e elevando-o a divindade para não senti-lo mais hostil e reconciliar-se com ele. Enfim, a religião seria uma espécie de neurose universal e estaria contida dentro do complexo de remorso e reconciliação. “Não é necessária muita acuidade crítica para reconhecer a frágil teoria freudiana como algo 42

Ibidem.

43

Ibidem, p. 66.

44

TERRIN, Op. cit., p. 66.

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sem sentido, acreditando poder explicar também o cristianismo nessa mesma dimensão psicanalítica defeituosa”.45 A tese funcionalista de Freud quanto à religião afirma que esse fenômeno social é um subproduto do inconsciente, com a função de reprimir pulsões instintivas antissociais46.

Fonte: SHUTTERSTOCK.COM

KARL MARX – RELIGIÃO COMO ALIENAÇÃO

Para Marx, religião é a mais pura ilusão. Pior talvez, é uma ilusão com consequências muito negativas. Religião é um exemplo extremo de ideologia, de um sistema de crença cujo propósito do dirigente é simplesmente prover razões – desculpas na verdade – para manter exatamente a forma de organização social dominadora que o opressor aprecia.

45

Ibidem, p. 67.

46

Willian E. Arnal. Guide to the Study of Religion, Verbete Definition, p. 25. In: SILVA, Paulo Gonçalves. Op. cit., p. 51.

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Marx também entendeu que a religião deve ser investigada em razão das funções que desempenha na sociedade e não com base em seus conteúdos e elementos internos. Ele postula um conjunto de causas que estão diretamente relacionadas com a “miséria real” construída por meio de processos econômicos, sociais e políticos, pela luta de classes e seu impacto na sociedade e na história. Assim, para ele, não faz sentido uma pesquisa que centre seus interesses no conteúdo das crenças, nas aquisições ou perdas intelectuais ou emocionais produzidas por elas, na reunião de mitologias, rituais etc., e suas comparações, pois o que realmente importa é a compreensão dos processos econômicos produtores da miséria, bem como sua reflexão e expressão na religião e a função que ela exerce no quadro geral da vida coletiva. Os conteúdos desenvolvidos pela religião são, na melhor das hipóteses, ideologias – ideias tendenciosas, representações falsas, parciais e incompletas da realidade – construídas para reforçar a dominação e a opressão, além de impedir a sua superação. A religião e suas instituições sancionam as formas econômicas de exploração, apoiam os governos que as promovem, defendem a divisão desigual de poderes e riquezas e as apresentam como a ordem natural das coisas, se não a expressão da vontade divina. Prometem, em um mundo futuro, uma vida plena e feliz para desviar a atenção dos oprimidos no seu presente, assim evitam que eles se esforcem para mudar as estruturas que produzem sua miséria.47 Diante de sua abordagem “econômica” do fenômeno religioso, Marx afirma que a religião é irracional, superstição, o ópio do povo. A manutenção de sua existência se dá por ela estar ligada a processos sociais fundamentais, não simplesmente formas individuais de expressão ou resposta para explicar o mundo e suas vicissitudes48. Embora ele tenha escrito mais de meio século antes de Freud e Durkheim, Marx aborda o fenômeno religioso de forma similar a eles, ou seja, a partir de seus aspectos funcionais e 47

SILVA, Paulo Gonçalves. Op. cit., p. 50.

48

Ibidem, p. 51.

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não essenciais ou fenomenológicos. O que lhe interessa não são os conteúdos das crenças religiosas, nem muito menos o que as pessoas dizem ser verdade a respeito de Deus, céu, Bíblia ou qualquer outro elemento sagrado. Seu interesse é pelo papel que essas crenças desempenham na luta social no sentido de inibir e acomodar os fiéis em uma formatação social que mantém as diferenças de classe e a exploração do trabalho, fatos que fazem parte do seu conceito de alienação. Os funcionalistas insistem em que a chave para a compreensão do fenômeno religioso só pode ser encontrada quando se descobre a função que a religião exerce na sociedade, somente quando se esclarecem os efeitos sociais e psicológicos da fé na vida das pessoas.

A REAÇÃO DA FENOMENOLOGIA Fenomenologia como uma ciência A fenomenologia estendeu-se no campo da religião pretendendo-se uma “ciência” autônoma, ou seja, como fenomenologia da religião. Há, no estudo da religião, uma pluralidade de perspectivas e níveis para a análise desse fenômeno. Cada uma dessas perspectivas tem o seu método de trabalho e pesquisa para o mesmo objeto. Para ilustrarmos esses diferentes saberes, apresentamos a classificação que Martin Velasco traz para delimitar as diferentes formas de abordar o religioso.49 O quadro mostra como a fenomenologia da religião estabeleceu-se na ordem das ciências religiosas, enquanto a teologia configura-se como uma reflexão de caráter normativo como a filosofia.

49

GOTO, Tommy Akira. O Fenômeno religioso. A fenomenologia em Paul Tillich. São Paulo: Paulus, 2004, p. 55.

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Quadro 1 – Esquema resumido dos diferentes saberes sobre o religioso50 DIFERENTES SABERES SOBRE O RELIGIOSO História das religiões (perspectiva histórica)

Nível científico: estudos analíticos de diferentes perspectivas

Sociologia da religião (perspectiva sociológica)

Psicologia da religião (perspectiva psicológica)

Estudo positivista do religioso: Ciências da Religião

Nível fenomenológico: estudo sintético e global

Fenomenologia da religião

Filosofia da Religião Reflexões normativas sobre o religioso Teologia

A fenomenologia da religião foi estruturando-se como disciplina autônoma no estudo da religião e da experiência religiosa no decorrer do século XX. Essa definição como “ciência” independente aconteceu pelo fato de apresentar-se como um método de abordagem ampla, não exigir restrições quanto ao objeto de estudo. Essa denominação foi cunhada pelo historiador Gerardus van der Leeuw (1890-1950), cujo trabalho tornou-se clássico nessa abordagem. Outros representantes da fenomenologia da religião são: Brede Kristensen, Geo Widengren, C. J. Bleeker, Max Scheler, Edith Stein, Jean Héring entre outros. VALASCO, José Martín. Introduccion a la fenomenologia de la religión. Madrid: Cristiandad, 1976, p 77. In: GOTO, Tommy Akira. Op. cit., p. 56. 50

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A fenomenologia da religião teve como um dos vetores de sua constituição a polêmica contra as teorias da religião primitiva, e também a reação aos postulados reducionistas e funcionalistas. Entre os autores mais contemporâneos dois se destacam, são eles Rudolf Otto (1869-1939) e Mircea Eliade (1907-1986). Rudolf Otto, em seu livro Das Heilige (traduzido para o português como “O Sagrado”), procurou expor a ideia do sagrado compreendido como algo divino, diferente de qualquer realidade natural perceptível e que escapa aos processos de racionalização. No subtítulo do livro ele mostra o caminho que percorreria: uma análise dos elementos irracionais e racionais que compõem o sagrado. Mircea Eliade tem como uma de suas principais divisas a revalorização das religiões “primitivas” e tradicionais e a refutação da ideia de que eram portadoras de superstições irracionais, ou pertencentes a um estágio primitivo, mágico, na aurora da humanidade. Contra o funcionalismo opôs aquilo que se tornou uma das principais características de seu pensamento, a irredutibilidade do sagrado, e a incisiva defesa da autonomia e independência do fenômeno religioso. Podemos agora tratar, por meio das ideias desses autores, da reação fenomenológica. Mircea Eliade Nas palavras de Daniel L. Palls “a genuinely multicultural scholar” que falava e escrevia em várias línguas europeias. Eliade nasceu e foi educado na Romênia, estudou e ensinou na Europa ocidental e finalizou sua carreira nos Estados Unidos como professor na Universidade de Chicago. Apesar de seu interesse intelectual ser vasto e um talento fabuloso para escrever, decidiu dedicar seus estudos ao campo religioso. Em sua carreira profícua, como escritor e professor, teve um papel importantíssimo desenvolvendo ideias em oposição às teorias reducionistas, que em seu parecer, não compreendem o papel da religião na vida humana. Como defensor da autonomia do campo religioso, Mircea Eliade sugeriu que a religião fosse

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avaliada com critérios religiosos, pois o sagrado não pode ser submetido ao reducionismo das Ciências Sociais, História ou Psicologia, afinal, religião faz parte de uma categoria sui generis. Um fenômeno religioso somente se revelará como tal com a condição de ser apreendido dentro da sua própria modalidade, isto é, de ser estudado à escala religiosa. Querer delimitar este fenômeno pela fisiologia, pela psicologia, pela sociologia e pela ciência econômica, pela linguística e pela arte, etc... é traí-lo, é deixar escapar precisamente aquilo que nele existe de único e de irredutível, ou seja, o seu caráter sagrado. É verdade não existirem fenômenos religiosos ‘puros’, assim como não há fenômeno única e exclusivamente religioso. Sendo a religião uma coisa humana, é também, de fato, uma coisa social, linguística e econômica – pois não podemos conceber o homem para além da linguagem e da vida coletiva. Mas seria vão querer explicar a religião por uma dessas funções fundamentais que definem o homem, em última análise51.

Já no prefácio de título Tratado de História das Religiões, o romeno de Bucareste deixa claro como ele trataria o fenômeno religioso de forma diferente da abordagem funcionalista, pois a complexidade do fenômeno religioso se destinava a sustentar que qualquer religião, mesmo a dos povos mais primitivos e com nenhuma sofisticação do ponto de vista material ou tecnológico, possuía um complicado sistema simbólico e um conjunto de mitos e ritos que traduzem uma cosmovisão profunda do mundo, da vida humana e comunitária. Eliade sustentou que o conhecimento antropológico sobre as religiões primitivas não encontrou qualquer possibilidade de se estabelecer um marco zero, uma origem comum ou única, e que as religiões das sociedades primitivas sempre se revelaram em um contexto histórico, negando o esquema evolucionista do simples ao complexo, da magia ou animismo às ideias de Deus. Eliade nunca negou que os estudos de religião pudessem se beneficiar da identificação de processos históricos ou sociais com as quais se relacionam, mas, como já adiantado acima, sempre defendeu que o fenômeno religioso possui uma dimensão autônoma irredutível, que é aquilo que a diferencia e a caracteriza como religião e que precisa ser captado e compreendido. O argumento eliadiano, construído por analogia com a arte ou filosofia, sustenta que é necessário, para entender Platão, por exemplo, estudar a sociedade grega, os ELIADE, Mircea. Tratado de História das Religiões. Trad. Fernando Tomaz, Natalia Nunes, 4. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010, p. 2. 51

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embates políticos e culturais de sua época, no entanto, sua filosofia tem autonomia em relação a esses dados primários, e só pode ser de fato compreendida a partir de seus textos, da pesquisa interna dos diálogos, sua cadeia de razões, argumentos – são esses os elementos que constituem e tornam sua obra filosófica propriamente dita52. Não pode ser diferente com a religião. A compreensão de tudo que envolve o ambiente cultural, econômico, social, histórico que envolve o fenômeno religioso estudado é imprescindível, porém as ciências que estudam esse cenário são apenas auxiliares para o entendimento do fenômeno religioso, que tem a sua compreensão fundamentada em sua linguagem interna, seus mitos, ritos, simbologia, autônomos e irredutíveis. Outra característica fundamental do pensamento de Mirce Eliade é a universalidade da religião. Essa universalidade pode ser compreendida a partir de duas constatações: a de que jamais foi encontrada uma sociedade sem religião; em qualquer religião encontram-se formas constantes universais e símbolos que revelam conteúdos também universais. Tais constatações exigem um método específico, comparativo, histórico e universal que abarque a complexidade de seu objeto53. Essas peculiaridades do fenômeno religioso, a saber, complexidade, irredutibilidade e 52

SILVA, Paulo Gonçalves, Op. cit., p. 58.

“A estratégia, portanto, para o estudioso das religiões, decorrente da natureza específica e autônoma de seu objeto, se quiser apreendê-lo, deve atender a algumas exigências: em primeiro lugar, precisa captar as hierofanias através da interpretação de sua significação simbólica, depois, compará-las e catalogá-las para poder se determinar as suas modalidades e tipos fundamentais. O resultante desse método de catalogação e comparação será a construção de grandes tipologias que Eliade denomina de ‘modalidades do sagrado – que apresenta como formas religiosas que podem aparecer como celestes, aquáticas, lunares, da vegetação, espaciais e temporais, entre outras. Essa primeira tarefa será assim, uma atividade tipicamente fenomenológica – a busca da identificação em cada fenômeno religioso daquilo que ele tem de fundamental e essencial, a sua estrutura. A segunda tarefa será a do historiador, que investigará na história da criação, a modificação, ou a extinção de um determinado símbolo, mito, ou religião, ou ideia religiosa. Além disso, dada a universalidade do fenômeno religioso, a estratégia precisará ser capaz de produzir, no campo da fenomenologia, uma comparação que seja a mais ampla possível e que inclua ‘exemplos’ significativos e classes da vida religiosa da humanidade e também uma historiografia mundial. A ciência da religião terá que perseguir uma estratégia comparativa e classificatória, e também histórica se quiser ser simétrica e comensurável com seu objeto irredutível, complexo e universal”. Esses eixos da metodologia de Eliade podem ser encontrados em suas obras Tratado de História das Religiões e História das Ideias e Crenças Religiosas. In: Ibidem, p. 59. 53

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universalidade mostram ou pelo menos permitem a suspeita de que a religião é uma dos aspectos mais fundamentais da realidade humana e social. Assim, a fenomenologia concebe uma visão de homem que sustenta a existência do “homo religious” como o mais originário e

Fonte: SHUTTERSTOCK.COM

fundamental.

O homem religioso quer viver no espaço sagrado o maior tempo possível, um espaço-tempo experiencial, expressão radical de tudo aquilo que é primeiro, absoluto, importante e tem valor. Um centro que é real por excelência e o fundamento último do cosmos da vida. O homem primitivo, que é difamado pelos cientistas da religião, tem aqui primazia, pois o que o caracteriza é sua proximidade com o sagrado. O homem das sociedades arcaicas tem a tendência de viver o mais possível no sagrado ou muito perto dos objetos consagrados. Essa tendência é compreensível, pois para os "primitivos" como para o homem de todas as sociedades pré-modernas, o sagrado equivale ao poder em última análise, a realidade por excelência. O sagrado está

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saturado de ser. Potência sagrada quer dizer ao mesmo tempo realidade, perenidade e eficácia. A oposição sagrado/profano traduz-se muitas vezes como oposição entre o real e o irreal ou pseudo-real. [...] É, portanto, fácil de compreender que o homem religioso deseje profundamente ser, participar da realidade, saturar-se de poder.54

O sagrado é o oposto do que é profano. Existem dois modos de ser no mundo, o sagrado e o profano. O profano é o que acontece todos os dias, o espaço onde as coisas ordinárias são realizadas. O sagrado é a esfera do sobrenatural, das coisas extraordinárias, memoráveis e monumentosas. Enquanto o profano se desvanece pela fragilidade, o sagrado é eterno, completo de substância e realidade. A sacralidade é, em primeiro lugar, real. Quanto mais religioso é o homem, mais real ele é, e mais ele se desvia da irrealidade de um devir privado de significação. Daí a tendência do homem para ‘consagrar’ toda a sua vida. As hierofanias sacralizam o cosmos, os ritos sacralizam a vida. Esta sacralização pode ser também obtida de maneira indireta, isto é, pela transformação da vida num ritual.55

O profano é a arena dos afazeres humanos, os quais são instáveis e normalmente caóticos. O sagrado é a esfera da ordem e da perfeição, a casa dos ancestrais, dos heróis e dos deuses. De qualquer lugar que olhemos para as sociedades arcaicas, a religião tem sua fundamentação nessa separação.56 Eliade foi educado na França e seu conceito de religião fundamentado nas esferas de sagrado e do profano tem suas bases no pensamento de Durkheim. A diferença entre os dois é que quando Durkheim menciona o sagrado e o profano ele está pensando na sociedade e suas necessidades. O sagrado para ele refere-se à sociedade, o clã, enquanto o profano, refere-se ao indivíduo. Para Durkheim, símbolos e rituais parecem aludir ao sobrenatural, mas tudo não passa de aparência superficial. O propósito dos símbolos é simplesmente fazer as pessoas tomarem consciência de seu papel social, já que o deus totêmico é simplesmente um símbolo 54

ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano: a Essência das Religiões. São Paulo: Martins Fontes, 1992, pp.

18,19. 55

ELIADE, Mircea. Tratado de História da Religião. Op. cit., p. 374.

56

PALLS, Daniel. Op. cit., p. 199.

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do próprio clã. Por outro lado, Eliade, quando se refere ao sagrado não é o clã cultuado que ele tem em mente. Para ele, o cerne da religião é evidentemente o sobrenatural. Embora ele se valha da linguagem durkheiminiana e concorde que são temos que envolvem mais do que deuses pessoais, a visão de religião de Eliade é mais próxima das de Tylor e Franz, que concebem a crença em seres sobrenaturais. Pode-se medir o precipício que separa as duas modalidades de experiência – sagrada e profana – lendo-se as descrições concernentes ao espaço sagrado e à construção ritual da morada humana, ou as diversas experiências religiosas do Tempo, ou as relações do homem religioso com a Natureza e o mundo dos utensílios, ou à consagração da própria vida humana, à sacralidade de que podem ser carregadas suas funções vitais (alimentação, sexualidade, trabalho etc.). Bastará lembrar no que se tornaram, para o homem moderno e a-religioso, a cidade, a casa, a natureza, os utensílios ou o trabalho, para perceber claramente tudo o que o distingue de um homem pertencente às sociedades arcaicas ou mesmo de um camponês da Europa cristã. Para a consciência moderna, um ato fisiológico – a alimentação, a sexualidade etc. – não é, em suma, mais do que um fenômeno orgânico, qualquer que seja o número de tabus que ainda o envolva (que impõe, por exemplo, certas regras para o "comer convenientemente" ou que interdiz um comportamento sexual que a moral social reprova). Mas para o ‘primitivo’ um tal ato torna-se um "sacramento", quer dizer, uma comunhão com o sagrado.

Mais ainda, [...] O sagrado e o profano constituem duas modalidades de ser no Mundo, duas situações existenciais assumidas pelo homem ao longo da sua história. Esses modos de ser no Mundo não interessam unicamente à história das religiões ou à sociologia, não constituem apenas o objeto de estudos históricos, sociológicos, etnólogos. Em última instância, os modos de ser sagrado e profano dependem das diferentes posições que o homem conquistou no Cosmos e, consequentemente, interessam não só ao filósofo, mas também a todo investigador desejoso de conhecer as dimensões possíveis da existência humana57.

Apesar da terminologia de Durkheim, é mais plausível pensarmos em outro pensador como mais incisivo no pensamento de Eliade: o alemão teólogo e historiador das religiões Rudolf Otto que, em 1916, publicou seu famoso livro Das Heiligi (O Sagrado). 57

ELIADE, Micea. O Sagrado e o Profano. Op. cit., p. 20.

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Rudolf Otto - O Sagrado Rudolf Otto (1869-1937) nasceu na Alemanha, em Peine próximo a Hnover. Estudou nas Universidades de Erlanger e Göttingen onde lecionou, além de Breslau e Marburg, nesta última exerceu o cargo de reitor. Luterano convicto, austero e profundamente dedicado aos estudos, foi apelidado de “o santo” por seus alunos em Marburg. Nessa Universidade, Otto montou um acervo denominado “coleção Religiosa” que reunia materiais sobre símbolos, rituais e aparatos religiosos diversos, formando um centro de estudos da Religião. Sua principal obra, “O Sagrado”, apresenta uma síntese de suas inquietações filosóficas, fenomenológicas e teóricas que já haviam sido evidenciadas em outros textos. Em seu trabalho, o sagrado aparece como categoria complexa, que se constitui de dois elementos importantes: o elemento não racional, ao qual ele define como numinoso, e o elemento racional, definido como predicador. Ao lançar sua crítica em relação ao racional presente na ideia de sagrado, Otto procura esclarecer que enunciados, conceitos e definições, por mais claros que transpareçam, em nenhum momento explicam por completo o sentimento religioso. Por esse argumento, ele procura reconsiderar, para a filosofia e para a teologia do século XX, o elemento não racional da religião, o numinoso colocado de lado pela excessiva atenção dada à racionalização na cultura ocidental. Dessa forma, o resgate do que se pode chamar de essência da religião coincide com a necessidade de compreendê-la como uma experiência humana originária. O Núcleo central da religião deve então ser redescoberto, já que a ênfase intelectualista acabou acobertando seu caráter não racional. Recuperar a importância e a consideração pelo caráter não racional do fenômeno religioso não implica em colocar a religião alheia ao plano racional, mas resgatar, na ideia de Deus, o que havia sido colocado de lado pelo racionalismo. Sua busca então é desenvolver as categorias dos elementos racionais e não racionais que formam o sagrado e observar e avaliar as relações intrínsecas que existem entre eles para evidenciar a complexidade do sagrado. Tal complexidade é proveniente de sua composição, que acontece na interação entre o que é numinoso e o que é predicador. Nessa perspectiva, o racional é tomado em seu sentido mais

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amplo e profundo, porém obscuro, escapando à explicação racional, não se valendo a um simples e equivocado sentido, como que simplesmente ainda não fosse abarcado pela razão afinal: Por irracional não entendemos o que é informe e estúpido, o que ainda não está sob controle da razão, o que na nossa vida instintiva ou no mecanismo do mundo, é rebelde à racionalização. Partimos do sentido habitual da palavra, daquele que tem, por exemplo, quando dizemos a propósito de um acontecimento singular que, pela sua profundidade, se furta a uma explicação racional [...] chamamos racional na idéia do divino ao que pode ser claramente captado pelo nosso entendimento e passar para o domínio dos conceitos que nos são familiares e susceptíveis de definição.58

Para Rudolf Otto, Deus e o sagrado não podem caber na razão pura, e ainda que tais ideias estejam presentes nas religiões, nada mais são do que uma ideia de sagrado carregada de noções racionais, sendo estas apenas predicados que esquematizam ou racionalizam o elemento originalmente não racional identificado como numinoso. Os conceitos causam um encobrimento do numem, objeto próprio da ideia de sagrado, impossível de ser comunicado em sua totalidade por conceitos racionais. Os conceitos podem somente indicar analogamente, pois falam ainda do campo da razão e não pertencem ao domínio da religião. É o caso, por exemplo, do sentimento sublime, termo emprestado do domínio da estética, que apenas indica um pálido reflexo do que realmente seria a experiência religiosa. Uma compreensão verdadeira só pode acontecer pela experiência do numinoso, um estado puramente afetivo da alma, realidade que se encontra em uma profunda obscuridade e escapa a qualquer tentativa de explicação ou mesmo de conceituação. Contudo, existe no ser humano uma necessidade natural de se dirigir racionalmente ao mundo à sua volta; do ponto de vista fenomenológico, acontece um acesso racional à essência não racional própria do domínio religioso. Nesse sentido, “O elemento numinoso não racional esquematizado por meio de noções racionais, dá-nos a categoria complexa do sagrado no sentido pleno da palavra, na totalidade do seu

OTTO, Rudolf. O Sagrado. Lisboa: Ed 70, 1982, p. 86. In: CRUZ, José Raimundo Barros. Rodulf Otto e Edmund Husserl: considerações acerca da origem do método da Fenomenologia da Religião. Belo Horizonte: Horizonte v. 7, n. 15 p. 132, 2009. 58

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conteúdo”.59 Desta forma, a categoria do numinoso caracteriza-se como algo sui generis, não passível de definição explícita, mas sim de observação e descrição como todo fenômeno originário. A presença do numem desencadeia um estado de alma, uma reação consciente que pode ser objeto de análises psicológicas ou fenomenológicas, as quais procuram descrever o sentimento numinoso. Quando a alma se abre às impressões do Universo, a elas se abandona e nelas mergulha, torna-se susceptível, segundo Schleiermacher, de experimentar intuições e os sentimentos de algo que é, por assim dizer, um excesso característico e livre que se acrescenta à realidade empírica, um excesso não apreendido pelo conhecimento teórico do mundo e da conexão cósmica, tal como está constituído pela ciência.60

Os elementos que compõem a parte irracional do sagrado são descritos a partir da reação sentimental que vivenciamos diante do objeto numinoso, uma vez que este pertence ao plano da experiência religiosa vivida. A presença e a experiência do numem provoca uma reação emotiva denominada estado de criatura ou sentimento de criatura, que desencadeia uma espécie de aniquilamento do ser, ou percepção pura da existência. Esse sentimento de ínfima criatura frente ao mistério do divino é experimentado como se fosse a projeção de uma sombra, oriunda do objeto numinoso na consciência. Nesse momento, se está presente diante do mysterium tremendusm et facinans, o conjunto de sentimentos que correspondem à apreensão do numinoso. O elemento mysterium é a forma; seu conteúdo qualitativo repulsivo é tremendum, pois provoca o terror; e o facinans o que atrai o que provoca desejo, encanto fascinação.61 No ano da morte do rei Uzias, eu vi o Senhor assentado sobre um alto e sublime trono, e as abas de suas vestes enchiam o templo. Serafins estavam por cima dele; cada um

59

OTTO, Rudolf. O Sagrado. Lisboa: Ed 70, 1982, p 69. In: CRUZ, José Raimundo Barros.

60

OTTO, Rudolf. O Sagrado. Lisboa: Ed 70, 1982, p. 188. In BAY, Dora Maria Dutra. Fascínio e terror: O Sagrado. Cadernos de pesquisa interdisciplinar em ciências humanas n.61, 2004, p. 7.

61

Ibidem.

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tinha seis asas: com duas cobria o rosto, com duas cobria os seus pés e com duas voava. E clamavam uns para os outros, dizendo: Santo, santo, santo é o SENHOR dos Exércitos; toda a terra está cheia da sua glória. As bases do limiar se moveram à voz do que clamava, e a casa se encheu de fumaça. Então, disse eu: ai de mim! Estou perdido! Porque sou homem de lábios impuros, habito no meio de um povo de impuros lábios, e os meus olhos viram o Rei, o SENHOR dos Exércitos! Então, um dos serafins voou para mim, trazendo na mão uma brasa viva, que tirara do altar com uma tenaz; com a brasa tocou a minha boca e disse: Eis que ela tocou os teus lábios; a tua iniquidade foi tirada, e perdoado, o teu pecado. Depois disto, ouvi a voz do Senhor, que dizia: A quem enviarei, e quem há de ir por nós? Disse eu: eis-me aqui, envia-me a mim. Então, disse ele: Vai e dize a este povo: Ouvi, ouvi e não entendais; vede, vede, mas não percebais. Torna insensível o coração deste povo, endurece-lhe os ouvidos e fecha-lhe os olhos, para que não venha ele a ver com os olhos, a ouvir com os ouvidos e a entender com o coração, e se converta, e seja salvo. Então, disse eu: até quando, Senhor? Ele respondeu: Até que sejam desoladas as cidades e fiquem sem habitantes, as casas fiquem sem moradores, e a terra seja de todo assolada, e o SENHOR afaste dela os homens, e no meio da terra seja grande o desamparo. Mas, se ainda ficar a décima parte dela, tornará a ser destruída. Como terebinto e como carvalho, dos quais, depois de derribados, ainda fica o toco, assim a santa semente é o seu toco.62

O texto de Isaías, capítulo seis, é para Otto um exemplo pleno de toda a sua teoria da experiência religiosa. WHILE the feelings of the non-rational and numinous constitute a vital factor in every form religion may take, they are pre-eminently in evidence in Semitic religion and most of all in the religion of the Bible. […] The capital instance of the intimate mutual interpenetration of the numinous with the rational and moral is Isaiah. The note struck in the vision of his call is the keynote of his entire prophecy. And nothing is in this regard more significant than the fact that it is in Isaiah that the expression the Holy One of Israel first becomes established as the expression, par excellence, for the deity, prevailing over all others by its mysterious potency.63 62

(Isaías 6:1-13 RA).

OTTO, Rudolf. The Idea of Holly. London: Oxford University press, 1933, pp. 74-78. “Enquanto os sentimentos do não-racional e numinoso constituem um fator vital em todas as formas de religião, eles estão em eminente evidência na religião semita e mais do que tudo, na religião da Bíblia [...] A instância capital da interpenetração mútua e íntima do numinoso com o racional e moral é Isaías. A nota atingida na visão de seu chamado é a tônica de sua profecia inteira. E nada é, nesse sentido, mais significativo em escala do que o fato de que é em Isaías que a expressão o Santo de Israel se estabelece primeiro como a excelência de expressão, sem par, para a divindade, prevalecendo sobre todos os outros por sua potência misteriosa”. - Tenho usado, para este trabalho, a edição inglesa citada acima. As notas citadas por outros autores que estão no texto são da edição portuguesa 63

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A evidência do numinoso é clara nas reações de Isaias e na atmosfera de sua experiência. O mistério está na forma em que a experiência se apresenta, na visão, nos sons, no cenário, um lugar extraterreno e seus movimentos. O temor de Isaias e sua reflexão “ai de mim...” deixa claro o tremendum, a aversão que ele sente por aquela experiência e o temor por estar diante de um ser tão grande e poderoso. Mas ao mesmo tempo sua atenção a todos os detalhes, a observação e descrição que ele faz, a disposição que apresenta diante de seu chamamento, “eis-me aqui...” demonstram a fascinação por aquele momento, pelo divino, pelo próprio mistério que lhe é parcialmente desvendado e pela participação que terá dali pra frente, a experiência acontece em todo o tempo de sua profecia, em toda a sua vida. “O divino apresenta-se em nosso sentimento como um mistério inefável, suprarracional. Este ser numinoso qualitativamente diferente exerce sobre nós uma estranha harmonia de contrastes: uma repulsa demoníaca e, ao mesmo tempo, uma tração que fascina e cativa”.64 O teólogo de Göttingen fez, a partir da vivência religiosa, a descrição de alguns elementos numinosos que se manifestam por sentimentos religiosos. Essa descrição apresenta-se de forma fenomenológica por que sempre se estabelece a relação do homem com o sentido da religião na experiência originária, sem recorrer a deduções ou induções racionais. A descrição da experiência numinosa que Rudolf Otto desenvolveu em sua obra se dá de forma fenomenológica. Em “O Sagrado”, não temos uma descrição objetivando dados empíricos, somente uma descrição em termos fenomenológicos, uma descrição densa, exaustiva que, diante daquilo que permite compreender, conduza à essência do fenômeno em questão. A proposta de Otto é de encontrar e fundamentar o sagrado na esfera não racional, sem a necessidade de conceituá-lo em uma categoria do entendimento, isto só é possível fenomenologicamente. A descrição fenomenológica é o melhor método para explicitar de forma não-conceitual de Portugal. 64

BIRCK, B. O. O Sagrado em Rudolf Otto, p. 23. In: GOTO, Tommy Aquira.

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um fenômeno, porque se limita em descrever o visto, o sentido ou o vivido do sujeito, sem entrar no mérito do julgamento ou das avaliações. Entretanto, descrever não é suficiente para chegarmos à essência do fenômeno, apesar de ser o melhor caminho. A descrição não se esgota como método de investigação, mas precisamos recorrer à interpretação daquilo que é vivenciado. Dessa maneira, temos a descrição expressa por uma linguagem, esta sendo interpretada segundo os seu sentido. Assim, completa-se o esquema da descrição como: coisa percebida/percepção/explicitação do percebido; e o da hermenêutica: símbolo (ou sinal)/significado/significante/contexto cultural. Assim, a fenomenologia torna-se hermenêutica para ampliar a descrição nos seus aspectos mais originários e significativos.65

O homem quando se encontra com o sagrado vivencia um estado de ser, um sentimento de criatura que se assombra em sua insignificância e desaparece diante do que está acima de toda a criatura. O mistério é o objeto do numinoso e, no sentido geral, apresenta-se como algo secreto e estranho que causa espanto. “O espanto, no sentido próprio da palavra é um estado de alma que, em primeiro lugar, pertence exclusivamente ao domínio do numinoso [...]”.66Otto define: Mas tal realidade, o misterioso em sentido religioso, o verdadeiro mirum, é, para empregar o termo que é a sua expressão mais exata, "totalmente outro", aquilo que nos é estranho e nos desconcerta, o que está absolutamente fora do domínio das coisas habituais, compreendidas, bem colocadas e, por conseguinte "familiares"; é o que se opõe a esta ordem de coisas e, por isso, nos enche de espanto e paralisa67.

Portanto, o mistério é tudo aquilo que aparece de estranho, alheio à ordem do profano, que remete a uma dimensão existencial diferente das vivências normais, terrenas. É por isso que a experiência numinosa se difere de qualquer outra, por proporcionar o sentimento de criatura diante da estranheza que paralisa o ser.68 O misterium é tremendum, é o temor místico ou religioso, que nos faz temer diante do sobrenatural. Não pode ser confundido com um medo psicológico, pois esse está sempre 65

GOTO, Tommy Akira. Op. cit., p. 89.

66

OTTO, Rudolf. O Sagrado. Lisboa: Edições 70, 1992, p.38. In: Ibidem.

67

OTTO, Rudolf. O Sagrado. Lisboa: Edições 70, 1992, p. 39. In: Ibidem.

68

Ibidem.

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relacionado àquilo que se conhece, que se tem certo controle ao menos cognitivo. O mistérium tremendum é o medo do desconhecido, do misterioso, sobrenatural, inacessível, só pode ser vivenciado, não cabe na razão. “Deste terror, na sua forma bruta, que apareceu originariamente como sentimento de alguma coisa de ‘sinistro’ e que surgiu como uma estranha novidade na alma da humanidade primitiva é que procede todo o desenvolvimento histórico da religião”.69 Além do texto de Isaías citado anteriormente, na Bíblia, podemos citar alguns textos que mostram a vivência desse terror: “não temais os que matam o corpo e não podem matar a alma; temei antes aqueles que podem fazer perecer no inferno a alma e o corpo” (Mt 10:28); “Quão terrível é cair nas mãos do Deus vivo” (Hb 10:31). A presença do mistério é também vivenciada pelo elemento facinans. Este tem a qualidade de atrair, cativar e fascinar, fazendo com que o teor do trememdum entre em harmonia contrastante. “Por outro lado e ao mesmo tempo, é algo que exerce atração particular, que cativa, fascina e forma o elemento repulsivo do temendum uma harmonia de contraste”.70 Quanto mais terrível o mistério, mais atraente ele se torna, exatamente por sua qualidade de maravilhoso: “eu vi o Senhor assentado sobre um alto e sublime trono, e as abas de suas vestes enchiam o templo...”. Estes não podem esgotar seu conteúdo, apenas relacionam-se analogicamente. Assim, a beatitude religiosa é muito mais que ser consolado, ter confiança felicidade presente no amor. A felicidade religiosa não se esgota em elementos naturais elevados à perfeição do sentimento. Esta experiência inclui elementos profundamente não-racionais71.

Concluindo, temos dois elementos da experiência numinosa descrita na vivência, ou seja, como mysterium tremendum et facinans. Assim: A categoria do sagrado de Otto, na verdade, não é uma categoria de compreensão, mas uma intuição categoral. A categoria do sagrado não tem uma função lógica

69

OTTO Rudolf. O Sagrado. Lisboa: Edições 70, p. 24.

70

Ibidem, p. 49.

71

Ibidem, p. 49.

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de compreensão de algo já percepcionado. A categoria do sagrado é a intuição da essência divina. O numinoso só é captado, identificado, significado. [...] O numinoso só é captado enquanto experiência viva. [...] O sagrado, tal como Otto o descreve não é um conceito formal, mas descrição fenomenológica do fato primeiro da religião. É a descrição do numem tal como se manifesta na consciência religiosa.72

Quadro 2 – A complexidade do conceito do Sagrado73 O SAGRADO – Complexidade do Conceito TREMENDUM (TEMOR)

SAGRADO

RACIONAL TREMENDUM

MAJESTAS (PODER)

ÉTICA ORGÉ

IRRACIONAL MYSTERIUM

(ENERGIA)

MORAL AUGUSTUS (SANTO) FACINANS

SEBASTUS (PRUDÊNCIA)

“A fenomenologia não é o nome de uma nova ciência, nem uma palavra de substituição para a fi losofi a, mas uma postura espiritual, com que se recebe algo para ver ou para viver, algo que sem ela permaneceria oculto, um dirigir-se para aqueles ‘fatos puros’ que o homem em geral, e mesmo o cientista, não sabe captar” (Max Scheler).

72

ODELIO, Bruno. O Sagrado em Rudolf Otto. p. 47. In: GOTO, Tommy Akira. Op. cit., p. 91.

73

BAY, Dora Maria Dutra. Op. cit., p. 15.

74

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As Críticas à reação fenomenológica A Crítica ao ramo clássico da Fenomenologia da Religião tem sido incisiva nas últimas décadas. No âmbito das Ciências da Religião, a mais polêmica tem sido a crítica ao sagrado. Nos parágrafos seguintes, vamos apresentar como exemplo duas das principais razões do ceticismo diante da abordagem fenomenológica do conceito de sagrado. Em 2004, o professor Frank Usarski, em artigo para a Revista de Estudos da Religião da PUC de São Paulo, apresentou uma síntese das críticas ao ramo clássico da Fenomenologia da Religião e seus conceitos-chaves. Em seu artigo, ele faz uma apresentação de oito temas que se opõem ao conceito de Sagrado e outros aspectos particulares da Fenomenologia da Religião, são eles: 1. A crítica à negligência do contexto sócio-histórico do surgimento do termo e a falta de reflexão sobre suas implicações. 2. A crítica à suposta universalidade do significado do termo sagrado. 3. A crítica às implicações ontológicas e “criptoteológicas” da noção do sagrado. 4. Reflexões críticas sobre o objeto privilegiado pela Fenomenologia. 5. A crítica à negligência das referências múltiplas à transcendência no mundo religioso empírico. 6. A crítica à suposta singularidade da experiência do sagrado. 7. A crítica às implicações normativas na abordagem da Fenomenologia. 8. Críticas à Fenomenologia da Religião. A título de exemplo de como está o debate e qual o nível das críticas impostas à Fenomenologia da Religião, quero apresentar resumidamente as duas primeiras críticas que o autor sintetizou

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em seu trabalho.74 O Contexto Sócio-histórico do Termo “Sagrado” A primeira crítica que se faz contra o conceito sagrado vem da negligência do contexto sócio-histórico em que o termo ganhou seu valor e da falta de atenção às implicações que limitam sua validade como conceito no campo de ação das Ciências da Religião. O texto “Das Heilige” foi publicado em 1917, quando a Europa vivia a Primeira Guerra Mundial. Aquele era um momento histórico marcado pelo desespero diante da disparidade acentuada entre os anseios humanos e a realidade de suas ações. Por outro lado, a intelectualidade não foi capaz de apresentar horizontes que pudessem direcionar para a superação dos pesares produzidos pelos seguidos anos de conflito entre as nações europeias. O sonho de um mundo harmonioso ambicionado pelos pensadores iluministas experimentava a frustração de uma Europa destruída pela guerra, consequência da incapacidade de seus líderes superarem suas diferenças e suas ambições econômicas e políticas pela lógica da razão e pelas promessas da ciência. Esse foi um cenário apropriado para a grande aceitação da obra alentadora de Rudolf Otto. Ela foi recebida como um consolo providencial pelo leitor comum e como um manancial de esperança para os teólogos mais conservadores atordoados pelo Liberalismo e pela Teologia Dialética. Esses dois grupos de leitores de O Sagrado entenderam-se supridos como se o texto fosse o peso colocado do outro lado da balança, dando um equilíbrio para a ênfase da racionalidade que tomava conta do pensamento teológico e para o desencantamento do mundo, já que resgata a existência universal do sagrado ontologicamente, independente dos "fatos reais", contudo imanente no interior do homem. 74

O artigo intitulado Os Enganos Sobre o Sagrado-Uma Sínteseda Crítica do Ramo “Clássico” da Fenomenologia da Religião e seus Conceitos-chave do professor Frank Usarski, está disponibilizado na rede no endereço <http://www.pucsp.br/rever/rv4_2004/p_usarski.pdf>, também está publicado no livro: USARSKI, Frank. Constituintes da Ciência da Religião, cinco ensaios em prol de uma disciplina autônoma. São Paulo: Paulinas, 2012 (última edição).

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Considerando esse ambiente, os precursores do termo e seu envolvimento como a fé cristã protestante, a crítica de Frank Usarski se dá no sentido de que o termo é cunhado e usado de forma não refletida diante da afinidade do conceito de sagrado com a religiosidade das famílias e sociedades desses autores precursores e pioneiros da fenomenologia que tem seu ápice no texto de Rudolf Otto. Mais concretamente falando, é o "esquema protestante" no sentido da relação imediata do ser humano diante do "seu" Deus que constitui o padrão básico de todas as interpretações do termo. Portanto, quem o emprega de maneira afirmativa não está apenas promovendo uma abordagem sentimentalista e romântica, mas também simpatiza como o pensamento evangélico característico de autores como Schleiermacher, Söderblom, van der Leeuw, Wach, Otto ou Mensching.75

Essa primeira crítica apresentada pelo professor Usarski resume-se então ao emprego indevido do termo sagrado, já que é feito a despeito da consideração do contexto histórico, social e religioso em que o termo foi conceituado por Rudolf Otto que, segundo a crítica, é tendencioso, pois está muito arraigado a um referencial cristão protestante. Sendo assim, a afirmação de que o conceito de sagrado pode ser universalizado fica comprometida e passível de reavaliação. Segue-se então a segunda crítica, justamente relacionada à universalização do termo sagrado. A Universalização do termo sagrado O Sagrado “é uma categoria universal no mundo religioso mais essencial do que a palavra Deus”76. Essa afirmação de Söderblom mostra que ele é consciente de um estudo da religião abrangente que não se limite às religiões monoteístas, mas alcance as politeístas e aquelas que não estão preocupadas com um aparato teológico como o budismo primitivo. Assim, torna-se necessário uma terminologia que supere os conceitos das religiões monoteístas (Judaísmo, Cristianismo e Islamismo). USARSKI, Frank. Os Enganos Sobre o Sagrado – Uma Síntese da Crítica ao Ramo “clássico” da Fenomenologia da Religião e seus Conceitos-Chave. In: Rever, Revista de Estudos da Religião. São Paulo, 2004, p. 79-80.

75

Söderblom, Nathan: Holiness, In: Encyclopaedia of religion and Ethics. Ed. by James Hastings, vol IV, 1913, pp. 713-714. In: Usarski, Frank. Ibidem, p. 80.

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Para os críticos da Fenomenologia, essa não é a realidade do termo e, portanto, do conceito de sagrado, uma vez que adquiriu seu valor em um determinado contexto sociocultural a partir de um significado muito amplo nas traduções dos textos da Bíblia, sendo muito mais análogo do que conceitual de fato. Assim, uma comparação em várias linguagens religiosas revela que a palavra “Heilig” não é universalmente traduzível, mas apenas desempenhou um papel particular conforme o consenso linguístico de uma geração dominante de pesquisadores nas primeiras décadas da história da Ciência da Religião como disciplina institucionalizada.77

As críticas à Fenomenologia da Religião nos ensinam que sua terminologia, por se tratar de uma ciência hermenêutica, necessita ser utilizada com cuidado e precisão, pois, como vimos, só o termo sagrado é rodeado de uma polêmica bastante acentuada. Por outro lado, ele é de grande validade por realmente alcançar a grande maioria das manifestações religiosas em prol da descrição de uma determinada crença. No mundo acadêmico, pode ser usado então como uma referência a crentes que acreditam na qualidade sagrada de sua tradição, seja ela escrita ou de outra forma. Contudo, as categorias desenvolvidas na Fenomenologia da Religião precisam ser consideradas em função de sua potencialidade de imprimir autonomia ao objeto religião. Enquanto considerado apenas no âmbito empírico e funcional, a religião é privada de sua originalidade como fenômeno humano, limitando o alcance de sua compreensão. Quero aqui finalizar esta discussão com as palavras de Aldo N. Terrin, um nome forte na defesa de um estudo do fenômeno religioso caracterizado como tal: Os fenômenos religiosos, para poder manter a própria e verdadeira identidade devem ser estudados em escala religiosa. Não é possível pensar que os fenômenos religiosos sejam apenas estudados com métodos que não têm relação com o religioso e que sejam interpretados e "explicados" por aproximações que até podem ser importantes e necessárias nos planos histórico, sociológico, psicológico ou outro qualquer, mas que são ‘redutivos’ do mundo religioso. 78 77

USARSKI, Frank. Ibidem, p. 81.

TERRIN, Aldo Natale. O Sagrado Off Limits. A experiência Religiosa e Suas Expressões. São Paulo: Edições Loyola, 1998, pp. 17-18. 78

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Em meu juízo, essa posição é satisfatória quanto à sua sutileza em considerar as abordagens reducionistas ou funcionalistas como importantes, formando uma parceria com o estudo da religião enquanto objeto autônomo de investigação científica e hermenêutica. Porém, entre aqueles que já não consideram a possibilidade de validade para qualquer abordagem fenomenológica, há também a preocupação de afirmar a ciência da religião como uma disciplina autônoma, inclusive para vê-la emancipada da Teologia. Essa discussão tem evidências logo na denominação da disciplina: Ciência da Religião (singular/singular); Ciências da Religião (plural/singular); Ciências das Religiões (plural/plural); Ciência das Religiões (singular plural). Esses são os títulos discutidos na academia para uma definição homogênica que, no Brasil, ainda está um pouco longe de acontecer.

Fonte: SHUTTERSTOCK.COM

Uma questão epistemológica difícil

Para os estudos fenomenológicos da religião, essa parece uma questão bem resolvida, a definição terminológica da disciplina foi definida por Frederic Max Müller quando ele propôs “uma ciência da religião”, um método de abordagem único para um único objeto. Os pesquisadores e autores fenomenológicos se familiarizam bem com “os singulares”, afinal é um método, a Fenomenologia da Religião e um objeto, o Fenômeno Religioso indistintamente com categorias universalizadas.

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A questão mais delicada é: como uma ciência da religião não fenomenológica que depende do instrumental teórico-metodológico de outras disciplinas consegue manter sua autonomia e identidade no mundo acadêmico? Quem fala de Ciência da Religião tende, de um lado, a pressupor a existência de um método científico e, de outro, também de um objeto unitário. Quem ao contrário [...] prefere falar de ciências das religiões, o faz porque está convencido tanto do pluralismo do metodológico (e da impossibilidade de reduzi-lo a um mínimo denominador comum) quanto do pluralismo do objeto (e da não-liceidade e até impossibilidade no plano da investigação empírica, e de construir sua unidade). Assim, haverá quem fale de ciência das religiões ou, então, quem prefira falar de ciências da religião.79

A ideia de uma Ciência da Religião provoca um questionamento sobre a pretensa necessidade de um enfoque singular para o estudo do fenômeno religioso. “O nome da disciplina sugeriria que um fenômeno empírico – histórico e cultural (também ‘espiritual’) – como o é a religião, exigiria uma ciência específica [...] para seu tratamento”.80 Qual seria essa ciência? Ou melhor, quais seriam os métodos aplicados no estudo da religião que o distinguiria como uma ciência autônoma do ferramental teórico-metodológico das disciplinas que lhe dão suporte, a saber, a história, a sociologia, a psicologia entre outras? Essa questão não tem uma resposta, há um consenso entre os estudiosos de que o estudo não fenomenológico do fenômeno religioso é devedor das metodologias dessas disciplinas, contudo alguns argumentos são levantados para que a autonomia do estudo da religião seja evidenciado, compreendido e aceito. Primeiramente, há uma defesa do teor interdisciplinar do estudo da religião como o item que singulariza, assegura e justifica uma “Ciência da Religião” autônoma. O Cientista

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FILORAMO, Giovanni & PRANDI, Carlo. As ciências das religiões. São Paulo: Paulus, 1999, p. 12.

CAMURÇA, Marcelo. Ciências Sociais e Ciências da Religião: polêmicas e interlocuções. São Paulo: Paulinas, 2008, pp. 20 e21. Para o autor citato, “é bem verdade que o fenômeno religioso, em sua especificidade ‘espiritual’, já possui uma ‘ciência’ exclusiva para o seu tratamento que é a teologia. A questão que se coloca na formulação hard de uma ‘ciência da religião’ é: além da teologia, ainda será necessário uma ciência de novo tipo, para tratá-la enquanto fenômeno material e não espiritual? Sua realidade sui generis chegaria a tanto?”

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Social da Religião, Professor Marcelo Camurça, defende a tese de que Joaquim Wach foi quem, primeiramente, defendeu a interdisciplinaridade aplicada aos estudos da religião pela pluralidade disciplinar com uma abordagem articulada entre as ciências humanas. Uma concepção peculiar do conceito de "Ciência da Religião" em uma direção plural, no meu juízo, foi realizada por Joaquim Wach. Para ele, a "Ciência da Religião" assentava "na necessidade de várias ciências abordarem não justapostas, mas organicamente associadas, tanto a natureza da religião e da experiência religiosa como das expressões objetivadas". Com esta perspectiva Wach não desejava criar nenhuma ciência particular, nem um conjunto de disciplinas que estudassem separadamente a religião, mas uma abordagem articulada entre as ciências humanas para o fenômeno religioso81.

Adiante ele conclui que: Portanto, Wach, no meu entender, foi um autor que, ao levar em conta a pluralidade disciplinar no tratamento da religião, foi pioneiro na defesa do que veio a se chamar posteriormente de interdisciplinaridade. Ao considerar dois níveis de abordagem do fenômeno religioso – um primeiro que trataria da experiência religiosa tout court, circunscrito à fenomenologia, psicologia, psiquiatria, e um segundo que trataria da "expressão objetivada dessa experiência religiosa" nos rituais, doutrinas e organizações religiosas, objeto da sociologia, antropologia, História – ele defendia que tanto as abordagens fenomenológicas não deveriam ser feitas arbitrariamente, mas retiradas das análises objetivas que a Sociologia da Religião realiza por meio da elaboração de "tipos sociológicos, quanto as análises sociológicas da religião, sob pena de criar um reducionismo, não poderiam fugir às implicações da experiência religiosa" parte de sua própria natureza particular, trazidas à tona pelo enfoque fenomenológico.82

O pioneirismo de Wach, para os pesquisadores não fenomenólogos, tem seu valor por conta da sua proposta interdisciplinar, quanto a incluir a fenomenologia como uma abordagem da experiência que deve se entrelaçar às outras disciplinas como condição sine qua non para um alcance pleno do objeto abordado é totalmente rejeitada. É esta convergência, afunilamento para uma ciência particular no tratamento da religião, que considero problemática! Primeiramente porque a Teologia parece já cobrir este lado da irredutibilidade da experiência religiosa. E, em segundo lugar, porque a "ciência

81

CAMURÇA, Marcelo. Op. cit., p. 21.

82

Ibidem, p. 22.

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da religião", tal como preconizada, incorreria no risco de, ao privilegiar a compreensão de uma estrutura e essência religiosa universal, terminar por amesquinhar a interdisciplinaridade disciplinar em seu tratamento ao estabelecer uma hierarquização, como o primado de uma reflexão nobre – a fenomenológica – que captaria o sentido último deste a priori religioso, relegando a um papel auxiliar e coadjuvante das Ciências Sociais que se ocupariam de seus epifenômenos e formas contingentes.83

Nesse sentido, o singular “Ciência da Religião” tem uma intenção totalizante e pluridisciplinar a partir das diversas disciplinas que investigam o fenômeno religioso conduzindo-as a se organizarem em um campo disciplinar que como tal possua uma estrutura aberta e dinâmica dando a devida autonomia e singularidade à Ciência da Religião. Portanto, interdisciplinaridade é o elemento-chave nessa distinção. Há ainda, outra tentativa de se defender os singulares como denominação dos estudos do fenômeno religioso que é muito enfatizada por autores alemães como Frank Usarski e HansJürgen Greschat. Cientistas da religião na Alemanha preferem a designação ciência da religião, no singular [...] para salientar a integridade substancial de sua disciplina e o status particular no ambiente acadêmico por concentrar-se em um conteúdo determinado de forma mais profunda e abrangente do que qualquer outra matéria. Desta maneira, a ciência da religião, acostumada a combinar várias técnicas de outras disciplinas para investigar o mundo religioso em suas múltiplas facetas históricas e empíricas, ganha identidade apesar de não ter desenvolvido técnicas autênticas de pesquisa, um aspecto freqüentemente questionado por autores que negam o status particular da ciência da religião e argumentam em favor da nomenclatura ciências da religião.84

Frank Usarski faz uma comparação da Ciência da Religião com a Pedagogia, dizendo que embora esta disciplina não tenha um método próprio e se valha da intersecção de várias outras disciplinas como, por exemplo, a Sociologia da Educação, a Psicologia da Educação e a Filosofia da Educação, ela não é denominada “pedagogias”. Em outras palavras: não se questiona a mudança do nome pedagogia porque nela 83

CAMURÇA, Marcelo. Op. cit., p. 23.

84

Usarski, Frank. Perfil Paradigmático da Ciência da Religião na Alemanha. In: TEIXEIRA, Faustino (org). A(s) Ciência(s) da Religião no Brasil – afirmação de uma área acadêmica. São Paulo: Paulinas, 2001, p 94.

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reside uma concentração do tema de educação dentro de um quadro acadêmico que ao mesmo tempo serve como um reservatório intelectual disposto a integrar qualquer resultado de pesquisa direta ou indiretamente vinculado à educação, independente da questão de um saber relevante ter sido produzido originalmente dentro da própria disciplina ou em qualquer outra85.

Aqui vemos que a totalidade do objeto também determina a singularidade dos termos “ciência” e “religião”. Segundo Hans-Jürgen Greschat, a totalidade da religião é o que distingue os cientistas da religião de outros pesquisadores que tratam dela eventualmente. O que define um cientista da religião é associar suas investigações especiais à religião como totalidade. Ele ainda afirma que os cientistas da Religião devem olhar para seu objeto e circunscrevê-lo em três frases; “vêem o objeto ‘religião’ como uma totalidade; reconhecem que essa totalidade apresenta-se de maneira quádrupla; observam que essa totalidade está viva e que, portanto, não pára de se transformar”.86 Diferentemente das definições de religião, o objeto "religião" não existe apenas na cabeça dos pesquisadores. Ele está no mundo exterior, onde a pesquisadores o enxergam. O objeto "religião" é algo concreto, ou seja, é sempre uma determinada religião, Cada uma das milhares de religiões que podem ser escolhidas e estudadas é representada como uma totalidade passível de investigação de acordo com quatro perspectivas: como comunidades, como sistemas de atos, como conjunto de doutrinas ou como sedimentação de experiências”.87

Em contraposição ao singular “Ciência da Religião” estão os italianos Giovanni Filoramo e Carlo Prandi que, em seu manual “As ciências das religiões”, deixam claro a posição que adotam, pois estão convencidos tanto do pluralismo metodológico (e da impossibilidade de reduzi-lo a um mínimo denominador comum) quanto do pluralismo do objeto e da impossibilidade de construir sua unidade”, pois, para esses autores só podem ser objeto de investigação empírica as religiões históricas ou, se preferir, os aspectos humanos das religiões, em seu concreto devir histórico. A conclusão que chegam portanto é de que as ciências das religiões não constituem 85

Ibidem, p. 95.

86

GRESCHAT, Hans-Jürgen. O que é Ciência da Religião?. São Paulo: Paulinas, 2005, p. 24.

87

Ibidem, pp. 22; 25.

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uma disciplina distinta, à parte, como gostaria a tradição interpretativa ou hermenêutica, com um método único e um objeto definido também como único. Para eles, as ciências das religiões compõem um campo disciplinar e, como tal, são uma estrutura aberta e dinâmica. Neste material adotaremos, daqui em diante, a terminologia Ciências da Religião (plural singular), que é a utilizada por algumas das principais universidades confessionais que oferecem o curso de pós-graduação em Ciências da Religião no Brasil que, embora tenham enfoques e propostas diferentes se valem da interdisciplinaridade para autenticarem e justificarem a presença de um programa autônomo dentre os cursos de pós-graduação oferecidos. Três exemplos podem ser apresentados aqui: O programa de pós-graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo (UMESP) se apresenta com a seguinte ementa: O Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião estuda as religiões em suas formas de expressão e articulação próprias e nas relações com seus contextos histórico, social e cultural. Desenvolve a interdisciplinaridade no campo extenso das ciências da religião, recorrendo ao instrumental teórico fornecido sobretudo pelas ciências humanas: teorias literárias e da linguagem, da cultura, de gênero, historiográficas, das ciências sociais, da teologia, da exegese, da filosofia, da psicologia e da pedagogia.88

A Universidade Presbiteriana Mackenzie apresenta a seguinte justificava para a proposta de seu curso: A inclusão das Ciências da Religião no Programa de Pós-Graduação da Universidade Presbiteriana Mackenzie busca compreender a contribuição da memória e da tradição do Cristianismo, bem como da influência do pensamento religioso cristão do Protestantismo Reformado, tanto nas instituições sociais, como no cotidiano das pessoas. Neste sentido, a abordagem das Ciências da Religião estará sempre muito próxima da epistemologia, dialogando com a Teologia Reformada, a História Social das Religiões, a Teoria Sociológica e a Sociologia do Conhecimento, a Antropologia da Religião e a Psicologia Social das Religiões. O Programa busca ainda maior integração entre a Pós-Graduação e a Graduação em Teologia, nos níveis de ensino, pesquisa e

88

Disponível em (grifos meus): <http://www.metodista.br/posreligiao/sobre>. Acesso em: 17 set. 2012.

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extensão.89

A Pontífice Universidade Católica de São Paulo (PUC) tem no histórico de seu programa de pós-graduação em Ciências da Religião o seguinte texto: O Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC-SP teve início em 1978, com o Mestrado, e passando a oferecer também o Doutorado em 2002, ambos stricto sensu e nota cinco pela avaliação da Capes. Nos últimos anos, o Programa avançou na concretização de seus principais objetivos, como o de formar e capacitar pesquisadores e docentes de nível universitário superior, através da titulação de mestres e doutores em sua área de conhecimento, e produzir conhecimento científico de qualidade. O Programa tem se destacado no desenvolvimento de um novo paradigma multidisciplinar que supere a precariedade e fragmentação da área de estudos da religião, na qual a fundamentação se mostra ainda insuficiente. Este fato que pode ser comprovado na realização de eventos e na produção bibliográfica, não apenas na de autoria de nossos docentes, como também na tradução e publicação de obras até então inacessíveis a muitos de nossos estudantes.90

Por essa coerência entre as universidades confessionais, e por tratarmos aqui de um curso de “Estudos em Ciências da Religião”, faz sentido adotarmos essa nomenclatura, apesar de toda a divergência entre os acadêmicos que discutem as questões de autonomia e “afirmação de uma área acadêmica”. Diante das propostas dos cursos mencionados acima, percebemos que a UMESP deixa claro o exercício pleno da autonomia teórico-metodológica das ciências humanas em torno de uma área interdisciplinar com interesse comum na religião. A Universidade Mackenzie com ênfase na religião cristã de cunho protestante reformada, presa pelo diálogo com as várias disciplinas afins. A PUC, embora apresente uma pretensão mais unificadora – “um novo paradigma multidisciplinar que supere a fragmentação da área...” ainda assim adota o termo “Ciências” no plural, caracterizando os métodos usados das ciências humanas e sociais aplicados nos estudos de religião. No meu entender, elas têm em comum a interdisciplinaridade, a multidisciplinaridade e o diálogo entre as áreas de estudo que os programas oferecem, além de investigarem o fenômeno religioso caracterizado

89

Disponível em (grifos meus): <http://www.mackenzie.br/ciencias_religiao.html>. Acesso em: 17 set. 2012.

90

Disponível em (grifos meus): <http://pos.pucsp.br/cienciasreligiao/sobreoprograma>. Acesso em: 17 set. 2012.

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por sua universalidade, sem desconsiderar o singular de cada religião, mantendo um cuidado acentuado no uso de categorias fenomenológicas para a área de Teologia e um debate intenso quanto a sua validade científica. Portanto, “Ciências da Religião”. Quais são então as Ciências que investigam o fenômeno religioso que compõem as Ciências da Religião? Quais os métodos de cada uma delas e como convergem entre si para dar a tão buscada autonomia para essa área de pesquisa acadêmica? Vamos, então, pensar em algumas respostas a essas perguntas tão pertinente provocadas pelas discussões acima. Três áreas do conhecimento cientifico91 se distinguem como as majoritárias na sua aplicação em estudos de religião: a história e a sociologia são exemplos de ciências empíricas. “Essas ciências estudam metodicamente a consciência religiosa concreta e suas múltiplas objetivações na história”.92 Outras disciplinas também compõem as Ciências da Religião, pois, como um campo aberto e dinâmico, sempre há a possibilidade de expansão. Podemos pensar na Psicologia, na Antropologia e hoje já se fala estudos econômicos da religião, geografia da religião, estética da religião, religião e literatura etc. Também há espaço para a Filosofia da Religião e para a Teologia como disciplinas normativas que tratam do fenômeno religioso. Nos parágrafos seguintes, trataremos de forma sintética de algumas destas ciências, História e Sociologia e, por fim, a Teologia.93

ATIVIDADE DE AUTOESTUDO 1. Escreva um texto diferenciando as fundamentações metodológicas entre a fenomenologia e as abordagens funcionalistas da religião. 2. Para um estudo mais aprimorado deste tema, acesse o site da Revista REVER da Puc de São Paulo pelo link abaixo e leia o artigo do Prof. Frank Usark Os enganos sobre o Sagrado – Uma Síntese da Crítica ao Ramo “Clássico” da Fenomenologia da Religião e seus Conceitos-Chave: <http://www.pucsp.br/rever/rv4_2004/p_usarski.pdf>. 91

Entenda-se aqui “científico” como um adjetivo para distinguir as três áreas dos estudos normativos Teologia e Filosofia e da Fenomenologia que também se distingue das demais. O quadro da página 60 pode esclarecer bem estas distinções.

92

ZILLES, Urbano. Op. cit., p. 5.

93

Ver quadro ilustrativo p. 60.

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UNIDADE IV

AS CIÊNCIAS DA RELIGIÃO Professor Dr. José Francisco de Souza Objetivos de Aprendizagem • Compreender a contribuição das ciências humanas e sociais para o estudo da Religião. • Conhecer algumas das Ciências da Religião. • Distinguir os métodos das Ciências da Religião. • Avaliar o lugar da Teologia nas Ciências da Religião. Plano de Estudo A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade: • História da Religião • Sociologia da Religião • Ciências da Religião e Teologia



INTRODUÇÃO

Fonte: PHOTOS.COM

HISTÓRIA DA RELIGIÃO

A história da religião como disciplina acadêmica divide-se em duas vertentes: A Ciência da Religião Histórica ou História da Religião e a Ciência da Religião Comparativa. Essa divisão foi proposta por Joachim Wach em 1924. Não se trata de duas disciplinas, trata-se de duas subdivisões da Ciência da Religião. A História da Religião tem como fundamento descrever os desenvolvimentos históricos das diversas religiões. Todos os componentes de determinado credo religioso pode ser objeto da sua história, doutrinas e práticas de fé, costumes e forma de organização, formação de tradições dentro da religião, bem como sua relação com outras tradições, por exemplo, as raízes judaicas do Cristianismo ou do Islamismo. A história da religião, para desenvolver seu trabalho, vale-se dos métodos histórico-críticos e procura apoio em outras ciências afins como a Sociologia, Psicologia, Etnologia, Antropologia, Arqueologia etc. A investigação histórica do fenômeno religioso pode dar-se de forma geral, ou seja, o pesquisador tem a liberdade de contemplar e descrever a totalidade das religiões em sua dimensão histórica. Também pode

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se especializar em uma determinada religião e expor toda sua trajetória no tempo e no espaço. Pode ainda, valer-se de um elemento singular dentro de uma determinada religião e tratar de seu desenvolvimento histórico. A importância do estudo da história da religião para os estudos desse campo é de vital importância, a história é a base e o fundamento para qualquer outra ciência investigativa que se ocupe do fenômeno religioso. Como afirma Terrin: Não é por acaso que colocamos como primeira disciplina, no âmbito do estudo das religiões, a história, com sua profundidade e seriedade de pesquisa. A história das religiões não é apenas uma entre as disciplinas que estudam as religiões, mas a disciplina-mãe de qualquer estudo das religiões. De fato, como poderíamos falar das religiões sem conhecer suas origens, seus fundadores, os textos sagrados que foram se formando, os períodos históricos de maior desenvolvimento das doutrinas etc.?94

Além da descrição e informação de dados, a história oferece também seu método específico de pesquisa, cujos pontos de maior destaque são estudo minucioso das fontes das línguas originais respectivas em textos sagrados e documentos mais significativos; uma cronologia do desenvolvimento histórico e as passagens internas que ocorreram no tempo; a procura por manter certa “neutralidade” diante do objeto de seu estudo, isto é, a própria religião para não comprometer o caráter “científico” da pesquisa; e por fim, a história das religiões apresenta-se como uma disciplina altamente especializada em seu campo de atuação, por isso tem a limitação de não alcançar um conhecimento específico de todas as religiões, cada historiador é um especialista em uma determinada religião.95 O segundo método seria o comparativo, que “consiste em aproximar, a fim de ilustrar mutuamente, usos religiosos, narrativas, ritos de todos os povos, de todas as civilizações”.96 Dá atenção maior em comparar as religiões em si para melhor entender sua organização e seu valor. Max Müller era um comparatista, usava essa estratégia metodológica entendendo que ela lhe daria uma compreensão mais aprofundada do fenômeno religioso. 94

TERRIN, Aldo Natale. Op. cit., p. 19.

95

Ibidem, p. 20.

ALBUQUERQUE, Eduardo Bastos de. A história das Religiões. In: USARSKI, Frank (Org). O espectro disciplinar da Ciência da Religião. São Paulo: Paulinas, 2007, p. 26.

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O método comparativo é descritivo, mas, como toda comparação, ele tem seu teor interpretativo, pois na medida em que confronta os sistemas religiosos tende a ir além da descrição e exprimir juízos de valor e significados. Uma característica importante a ser destacada no método comparativo é sua tendência a não limitar sua atenção exclusivamente para o tempo histórico em que se deu o fenômeno religioso para que haja maior liberdade e criatividade para as comparações entre fenômenos distantes no tempo e no espaço, mas que podem apresentar afinidades e similaridades pelas analogias a serem feitas. Por exemplo, colocam-se em comparação os grandes mitos das origens das religiões ou as diferentes formas do sacrifício presentes nelas, ou ainda as orações mais recorrentes, ou a maneira pela qual são consideradas as tarefas próprias dos ministros de culto. Tudo isso independentemente da diversidade de tempo em que se colocam os fenômenos religiosos.97 O método histórico comparativo tem sido de importância especial para o desenvolvimento científico-histórico da religião. Um dos resultados marcantes é que ele acentua a possibilidade de demonstrar o caráter genérico dos fenômenos religiosos. O que durante muitos séculos foi algo singular para o ocidente cristão, em tempos mais recentes, foi encontrado em outras religiões, sob forma semelhantes, fatores como, por exemplo, o conceito de messianismo, o conceito de homem-deus, narrativas do nascimento de fundadores de religiões, a necessidade de sacrifícios de sangue para remissão etc. Assim, fez-se necessária a compreensão de que, em última análise, nenhum fenômeno religioso pode ser encontrado em uma única religião, mas sempre em várias.98 97

TERRIN, Aldo Natale Op. cit., p. 21.

É claro que como cristãos questionamos essa conclusão, entretanto, não é este o espaço para entrarmos no mérito da questão, mas, ainda assim quero deixar uma história que ilustra essa discussão e que acentua nossa discordância ou no mínimo a dúvida. “Durante uma conferência britânica de religiões comparadas, especialistas de todo mundo debatiam se realmente havia algo que tornasse o Cristianismo uma fé única e o que seria esse algo. Eles começaram por eliminar algumas possibilidades. Encarnação? Outras religiões têm diferentes versões de deuses que se manifestaram na forma humana. Ressurreição talvez? Novamente, outras religiões também apresentam dados de retorno da morte para a vida. O debate continuou na sua efervescência, até que C. S. Lewis

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A SOCIOLOGIA DA RELIGIÃO “Toda a sociedade humana é um empreendimento em construção do mundo. A religião ocupa um lugar destacado nesse empreendimento”.99 A Sociologia da Religião trabalha com as questões da relação entre religião e sociedade. Diferencia-se da Etnologia por tratar das religiões de sociedades complexas, deixando para aquela as sociedades ágrafas. Nessa área de estudos, os aspectos religiosos são contemplados como aspectos sociais e explicados com o recurso a aspectos sociais. Isso acarreta para a Sociologia da Religião a acusação de “sociologismo” ou de “reducionismo”, já que ignoraria a característica típica de fenômenos e categorias religiosas e os submeteria a critérios alheios ao seu objeto. Porém, é importante ressaltar que a Sociologia da Religião faz apenas aquilo que é sua tarefa própria, a saber, aplicar os critérios teórico-metodológicos, suscitar questionamentos sociológicos à área da religião considerando a ação religiosa como uma área parcial da atuação social. Assim, não pode ser objetivo da Sociologia da Religião reforçar ou apoiar causas religiosas. Os autores Filoramo e Prandi corroboram essa distinção da Sociologia da Religião afirmando que: “a Sociologia da Religião não coloca a religião no centro dos seus interesses; antes fixa a atenção no fato religioso entendido como ‘produto social’ ou como fruto de uma criação coletiva dotado de uma estrutura simbólica, pelo papel que exerce no interior dos mecanismos sociais. Como escreve B. Wilson”. O significado da religião deve ser buscado na sua capacidade de entrou discretamente no salão. ‘O que está acontecendo aqui?’ Ele perguntou e seus colegas responderam que discutiam sobre a singularidade da fé cristã e sua contribuição entre o mundo religioso. Lewis respondeu: ‘Oh, isso é fácil. É a Graça.’ Depois de algumas outras discussões, os conferentes tiveram que concordar. A noção do amor de Deus sobre nós gratuitamente, sem qualquer condição, parece contrário a qualquer instinto humano. Os budistas tem seu caminho a percorrer, a doutrina hindu tem sua doutrina do carma, os judeus devem cumprir sua aliança, e os muçulmanos tem seu código legal – cada uma oferece uma forma de conquistar aprovação. Somente o Cristianismo ousa oferecer um amor incondicional”. In: YANCEY, Philip. What’s so Amazing About Grace? Where is God when It hurts? Two books in one. Michigan: Zondervan, Grand Rapids, 2008, p. 329. (tradução: Prof. José Francisco de Souza). 99

BERGER, PeterL. O dossel sagrado. Elementos de uma Teoria da Religião. São Paulo: Paulus, 1985, p. 15.

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oferecer categorias e símbolos, que ao mesmo tempo facilitam a compreensão, por parte do homem, da sua situação e lhe dão a possibilidade de avaliá-la e enfrentá-la emotivamente”.100 Para esses autores ainda, a Sociologia da Religião tem como objetivo estudar as funções sociais da religião em uma tríplice perspectiva: a) determinação dos conteúdos sociais implícitos num sistema religioso; b) análise da "retícula" religiosa (e da sua solidez a longo prazo) como elemento de conexão com uma dada estrutura social; c) configuração das modalidades sociológicas nas quais e através das quais um sistema religioso articula as próprias estruturas simbólicoinstitucionais, os papéis do próprio pessoal, o aparato dos poderes e das doutrinas que o regem [...].101

Uma linha originária da Sociologia da Religião pode ser atribuída a crítica à religião de Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895). Com base na teoria de luta de classes, a religião é considerada um fenômeno puramente social que, por um lado, é a expressão de protesto contra as condições sociais existentes e, por outro, torna-se o “ópio do povo”, por seu caráter ilusório, além de ser parte de uma fase transitória da humanidade, ainda não superada, que desaparecerá na sociedade sem classes. Religious distress is at the same time the expression of real [economic] distress and the protest against real distress. Religion is the sigh of the oppressed creature, the heart of a heartless world, just as it is the spirit of a spiritless situation. It is the opium of the people. The abolition of religion as the illusory happiness of the people is required for the real happiness. The demand to give up the illusion about its condition is the demand to give up a condition which needs illusion. 102

O conceito de Marx, com forte tendência crítica à religião, foi levado à frente especialmente 100

FILORAMO, Giovanni. Op. cit., p. 91. Nesse trecho os autores citam B. Wilson, la religione nel mondo contemporâneo, Il Mulino, Bolonha, 1985, p. 20. 101

Ibidem.

“A miséria religiosa é ao mesmo tempo a expressão da miséria real e o protesto contra a miséria real. Religião é a visão do homem oprimido, o coração de um mundo sem coração, o espírito de uma situação sem espírito. A Religião é o ópio do povo. A abolição da religião como felicidade ilusória é a exigência para a felicidade real. A exigência para a desistência da ilusão sobre sua condição é a exigência para superar a condição que cria a ilusão”. (In: PALLS, Daniel. Op. cit., p. 135).

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na segunda metade do século XX, na teoria da Escola de Frankfurt. Seus representantes colocaram no centro de suas reflexões incrédulas os aspectos da religião que, por suas análises, legitimavam e apoiavam e preservavam a ordem estabelecida, bem como as formas tradicionais de dominação e governo. Essa compreensão radical teve sua compensação no pensamento de Antonio Gramsci (1891-1937), que procurou evidenciar o papel ambivalente da religião, afirmando que ela pode ser conservadora daquilo que já está estabelecido, porém tem potencial de agir contrariamente, promovendo transformações sociais.103 Esses são exemplos de duas das ciências empíricas que abordam o fenômeno religioso. Nos parágrafos seguintes trabalharemos com uma das disciplinas, a Teologia.

TEOLOGIA E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO A pergunta pela relação entre a Teologia e a Ciência da Religião é um tema muito debatido, disputado, sensível, trata-se de uma crise entre “mãe e filha emancipada”, mas que não vivem uma sem a outra, ou seja, as Ciências da Religião há muito tempo, como as outras ciências, já não vivem na dependência da teologia ou confundindo-se com ela – as discussões acima deixam essa realidade bem clara. Por outro lado, é claro também que ambas, tanto a Teologia quanto as Ciências da Religião, trabalham nas mesmas áreas e dedicam-se a questões semelhantes, parcialmente iguais. Teologia e Ciências da Religião – diferenças e aproximações Depois de alguns anos de debate, chegou-se ao consenso de que a teologia é um saber, cuja racionalidade depende da experiência de fé no universo de uma comunidade de pertença. O Teólogo, uma vez vocacionado, tem uma incumbência afirmativa e confirmativa em relação à sua própria fé e à comunidade à qual pertence. Contudo, é fundamental que essa função tenha

103

HOCK, Klaus. Op. cit., p. 103.

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uma faceta crítica, pois se o papel do teólogo se restringir a reprodução literal do pensamento dos fundadores de seu credo, de seus mentores e professores, perde-se a essência de seu saber juntamente com o compromisso de contextualização e reinserção contínua da sua fé e dos fiéis de sua comunidade de pertença no tempo presente, sua fé deixa de ter relevância e sentido de existência. O exercício teológico, portanto, precisa, para ser configurado como tal, não apenas reforçar consensos, mas precisa ser em certo grau incômodo, considerar os lugares teológicos na história e na atualidade além de pesquisar novos, apresentar razões da fé, cumprindo seu papel de esclarecimento e buscar melhores razões para aprofundamento. Enquanto busca razões verdadeiras e justas, tem um papel crítico. Por fim, seu pragmatismo, como a direção de todas as ciências, tem uma dimensão pastoral que procura tornar o ser humano melhor. A ideia de que a Teologia não pode ser uma ciência por se restringir a uma autoridade que a controla é não entender seu movimento libertador e sua contínua tensão crítica em relação a si mesma e em relação a aqueles instrumentos que se pretendem autoridade, a instituição, a denominação, a tradição104, o conservadorismo, a interpretação dos clássicos, e as próprias escolas teológicas, por sinal, todas estas “autoridades” têm sua raiz em uma faceta de questionamento e de crítica nascida da liberdade que a ciência teologia oferece a si mesma e que a caracteriza como tal.105 Há quem discorde dessa liberdade tão abrangente da construção teológica, o professor Afonso Maria Ligório Soares afirma o seguinte: ”A Teologia [...] é a reflexão ou especulação acerca da Realidade última que parte dos dados oferecidos por determinada tradição espiritual – em geral, referendados por um acervo coerente de escritos – que pode, ou não chegar à adoração da Realidade afirmada. A teologia, embora possa questionar um ou mais dados ou a interpretação destes que chegam via tradição, não questiona a tradição em si, uma vez que admite como premissa de sua reflexão ser a tradição uma consistente doadora de sentido, isto é, uma fonte com razoáveis chances de ser verdadeira por remontar um conjunto coerente de testemunhas referenciais, por sua vez conectadas a uma origem ontológica presumida”. Disponível em: <http://www.fiuc.org/cms/COCTI/Actes%20 all/paper%20Prof%20Soares.pdf>. Atrevo-me a discordar do autor por entender que a história da Igreja Cristã, por exemplo, está marcada por vários cismas que se iniciaram com teologias que questionavam a tradição em si, embora outras Igrejas tenham surgido, o conteúdo desses questionamentos, as críticas que apresentam e os resultados continuam sendo teologias. 104

105

Ibidem. p 557.

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Uma vez dados esses esclarecimentos que oferecem à teologia seu caráter científico, a saber, sua capacidade e característica de ser crítica, e a relevância de seu pragmatismo, é importante acentuar que o pensador teólogo tem um lugar de pertença e de partida, ele está dentro de sua fé e de sua comunidade e não sobre elas e, portanto, para fazer teologia deve-se partir de dentro desse ambiente para elaborar seu pensamento de forma racional e razoável para a própria comunidade. Partindo desse “lugar” apropriado, então, a construção teológica deve lançar mão de meios filosóficos e científicos, métodos rigorosos, controláveis e comunicáveis no universo científico. Assim, falamos de História, Literatura, Sociologia, Antropologia, Psicologia e da própria Fenomenologia etc. A Teologia é construída sempre com elementos, categorias e procedimentos das ciências, mas, como a filosofia, a literatura, as artes, não permanece circunscrita às regras dessas ciências.106 Segundo o professor Luiz Carlos Susin, são três as exigências epistemológicas da construção teológica contemporânea: Ao sair do engessamento metafísico da escolástica, a Nouvelle Thêológie, desde a década de 1940, esclareceu-se epistemologicamente com três exigências: 1. Estudo crítico das fontes literárias e da história, incluída a tradição doutrinária; 2. Confrontação com os saberes da cultura contemporâneos; 3. Preocupação “pastoral” da teologia. Esta última exigência mostra o que há de mais peculiar no saber teológico: um saber pragmático como serviço ou ministério, desde a comunidade de fé, serviço para dentro dela mesma e para fora dela. No entanto, as outras duas exigências tornaram a teologia e a própria fé um saber com marcas de historicidade, de hermenêutica, de provisoriedade e pluralismo. Por isso se deve falar em plural, em teologias.107

Como já vimos acima, a pesquisa em Ciências da Religião se distingue da Teologia por não ter o mesmo lugar de partida. As Ciências da Religião, para fazer suas investigações sobre os fenômenos religiosos, partem das ciências sem a necessidade do pré-requisito da fé.108 106

Ibidem. p. 558.

107

Ibidem.

Essa distinção deveria ter como uma de suas principais razões a pretensa neutralidade das ciências, a saber, a condição do cientista de se abster de qualquer ideologia para que a objetividade da pesquisa não seja comprometida, contudo, esta é uma questão que há muito vem sendo debatida e já se sabe que todo cientista tem o seu lugar social e por mais que ele procure ausentar-se desse lugar para que a sua pesquisa e os resultados dela sejam isentos de qualquer teor ideológico, a impossibilidade de tal façanha comprova-se pela própria ideologia da 108

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Portanto, o cientista da religião parte das ciências, isento de um compromisso com uma comunidade de fé, com um credo religioso e com o pragmatismo teológico. Essas diferenças de aproximação e resultado entre ambas as ciências não necessariamente as afastam uma da outra, pelo contrário, são métodos de abordagem de um mesmo fenômeno que podem se completar para construções mais elaboradas, aproximadas da realidade e muito eficazes no ambiente científico e na própria humanização das comunidades religiosas. Cientista da Religião e Teólogo podem ser companheiros de trabalho produzindo um intercâmbio de ideias e saberes profícuo. Por muitas vezes, o teólogo é o próprio Cientista da Religião.109 Mas, ainda assim, é importante deixarmos bem claro que “faz parte das determinações fundamentais das ciências da religião o não ser teologia”.110 As linhas divisórias podem ser resumidas assim: quanto à convicção de verdade, não é algo de que se ocupem as Ciências da Religião; deve-se manter a distância de instituições religiosas; a comparação de diferentes culturas religiosas com total abstenção de juízo de valores (abordagem comparativa não apologética), ou seja, a descrição neutra quanto à validade em perspectiva externa. Os opostos, para a Teologia, são: participação do/no ponto de vista interno à religião; explicação de sua convicção de verdade e justificação diante de interpelações; avaliação normativa de fenômenos religiosos empíricos; e tarefas práticas de formação para os membros do clero.111 Podemos pensar assim, no lugar da Teologia entre os estudos sobre religião somente a partir pretensa neutralidade. É praticamente impossível se falar fora de um lugar social. Ao deixarmos um lugar social por completo, automaticamente estamos inseridos em outro e é dali que se ouvirá a nossa voz. Não é raro um teólogo, membro de uma comunidade de fé e tradição religiosa, tornar-se um cientista da religião, incorporando, para uma boa teologia, os métodos das ciências e seus resultados. Por outro lado, é muito raro um cientista da religião tornar-se um teólogo, ou um participante de uma comunidade religiosa como fiel. Contudo, a construção teológica para este último é de importância fundamental para seus estudos. 109

110 DIERKEN, Jörg. Teologia, Ciência da Religião e Filosofia da Religião: definindo suas relações. Disponível em: <http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/veritas/article/viewFile/5071/3736>. Acesso em: 17 set. 2012. 111

Ibidem. p. 115.

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de uma conceituação de ciência que ultrapasse as ciências empíricas e que considere as ciências hermenêuticas. Autores como Giovanni Filoramo e Carlo Prandi, que entendem as Ciências da Religião(ões) como disciplinas de base empírica, não entendem a Teologia como um ciência da religião. Por que nesse quadro não existe, nas CR, espaço para a teologia e para a filosofia da religião? Que identifica o campo das CR é sua base empírica; o método indutivo é que delimita os seus confins; o que o caracteriza são os juízos de fato, fundados nos limites do possível e na neutralidade do observador.112

Também não se pode pensar em uma Teologia que se pretenda simplesmente tornar plausível e justificável racionalmente uma revelação religiosa. Há um ponto onde a teologia não é ciência: quando trata da fé e da revelação. A própria teologia afirma que não é ciência de Deus, porque não há tal ciência. Se a teologia quiser ser ciência e fazer parte da academia, só poderá ser ciência da religião. Em 1919, Paul Tilich já distinguia entre uma teologia eclesiástica, encarregada de sistematizar os conteúdos da mensagem cristã, e uma teologia da cultura, cuja tarefa é de estudar (analisar, classificar e sistematizar) o conteúdo religioso de toda a cultura e de forma cultural. Podemos dizer que, neste segundo sentido, a teologia procura analisar criticamente e dialeticamente os sistemas interpretativos da cultura da religião. Encontra o seu ponto de partida, não nos dogmas oficiais e tampouco num modelo teológico normativo confessional, mas na experiência humana concreta, postulando a presença de uma dimensão religiosa em toda a experiência autêntica. Apresenta-se como hermenêutica da dimensão radical de sentido ou da dimensão religiosa das culturas (incluindo as religiões). A consequência mais clara dessa concepção [...] é uma significativa aproximação entre teologia e as ciências hermenêuticas em geral, incluindo a filosofia e as ciências humanas.113

Nesse ponto, é importante destacar a diferença entre o discurso teológico e o discurso religioso apresentado por Faustino Teixeira, baseado em Clodovis Boff: O discurso teológico distingue-se do discurso religioso: há entre os dois uma continuidade de conteúdo, mas há descontinuidade de método. Enquanto o discurso religioso é marcado pelo traço auto-implicativo, instaurando-se uma relação mais direta com a experiência vivida, o discurso teológico é regrado por exigências da razão. Trata112

FILORAMO, Giovanni & PRANDI, Carlo. Op. cit., p. 22.

113

HIGUET. Etienne. Teologia e Ciência da Religião. Mimeo, 1999, p. 2.

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se de um discurso sistemático, metódico e disciplinado: "a diferença da linguagem religiosa, a linguagem teológica se caracteriza por sua criticidade, isto é, pelo controle vigilante de suas proceduras e operações, controle que se exprime no esforço do rigor analítico e na busca da organização sistemática da inteligência da fé". Isto não significa que a teologia não tenha uma incidência na prática, ou vice-versa. O que o corre é uma dialética entre teoria e prática na teologia: ela é "imediatamente teórica" e "mediatamente prática". Quer conhecer-se para em seguida amar e praticar.114

Para as ciências da religião, o exercício teológico não pode ocorrer senão como razão crítica, caso contrário se transforma em discurso ortodoxo oficial, pautado pela transcedentalização, ideologização e falsificação. Não se deve negar que a fé exige um princípio essencial de inteligibilidade da teologia, mas não significa que tem que dispensar o trabalho hermenêutico que garante a distância da dogmatização da própria teologia. O trabalho hermenêutico caracteriza a teologia crítica, dando a ela cientificidade quanto ao método, ele exige da criatividade para que verdades antigas sejam transformadas em linguagem acessível e relevante, trata-se de uma interpretação continuada e inesgotável. Portanto, toda dedicação aplicada à interpretação se estabelece como uma obra criativa.115 Portanto, há de concordar com uma relação positiva entre a Teologia e as Ciências da Religião, como propõe Faustino Teixeira, na linha de uma “cooperação crítica”, afinal, para ser mais crítico em sua própria pré-compreensão, o teólogo precisa do suporte das ciências da religião116, bem como o cientista da religião depende da Teologia para compreender o pensamento, as crenças, o significado dos símbolos e suas dinâmicas históricas, os mitos, as doutrinas e a própria história de determinada vertente religiosa que se propõe a investigar. Entendo que não há dúvidas quanto ao lugar da teologia como Ciência interpretativa no conjunto das Ciências da Religião.

TEIXEIRA, Faustino. O Lugar da Teologia na Ciência da Religião. In: Faustino Teixeira (org.) As Ciências da Religião no Brasil. Op. cit., pp. 300-301.

114

115

TEIXEIRA, Faustino (org.). Op. cit., pp. 303-304.

116

TEIXEIRA, Faustino. Op. cit., pp 312-313.

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“Antes de tudo, convém aclarar que a teologia não fi ca bem-vestida de rainha nem de gata borralheira entre as ciências: a ‘redução das ciências à teologia’ foi plausível numa sociedade confessionalmente homogênea e teocêntrica. A ‘redução da teologia às ciências’ foi plausível numa sociedade predominantemente iluminista e positivista. A primeira redução está desconstruída por séculos de crítica e de triunfo do saber científi co como experimentação, verifi cação, pragmatismo. A segunda tem uma história mais recente e ainda incandesce: as ciências humanas e a fi losofi a contemporânea não pouparam crueza cirúrgica na ‘rainha mãe’, para que deixasse de assombrar a autonomia do saber”. 117

ATIVIDADE DE AUTOESTUDO 1. Qual a relevância das Ciências da Religião na construção do pensamento teológico?

SUSIN, Luis Carlos. O Estatuto epistemológico da Teologia como ciência da fé e sua responsabilidade pública no âmbito das ciências e da sociedade pluralista, 2006, p. 556. Disponível em: <http:// revistaseletronicas.pucrs.br>. Acesso em: 17 set. 2012. 117

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UNIDADE V

TEMAS EM ESTUDOS DA RELIGIÃO Professor Dr. José Adriano Filho Objetivos de Aprendizagem • Apresentar alguns temas de Estudos da Religião. Plano de Estudo A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade: • Mito e Atitude Mítica • Metáfora • Alegoria • Rito, Doutrina e Moral



INTRODUÇÃO Os Estudos técnicos, históricos, conceituais e metodológicos apresentados até então nos dão algumas ferramentas intelectuais diferenciadas das teológicas para abordarmos temas religiosos a partir dos métodos das Ciências da Religião. O Prof. José Adriano nos oferece alguns desses temas para estudo e reflexão e também uma análise que pode distinguir entre estudos teológicos e estudos em ciências da religião. Suas considerações a partir dos temas apresentados têm como fundamento metodológico a fenomenologia da religião.

Fonte: SHUTTERSTOCK.COM

OS PRIMEIROS CRISTÃOS

O cristianismo é filho da cultura judaica em sua relação primeira com o sagrado, mas também dono de uma interpretação própria dessa experiência. Ele trouxe uma nova concepção de religião e, junto com ela, uma tentativa de justificação etimológica diferente. Tertuliano menciona a religião dos romanos, dos judeus e dos cristãos. As cartas do Bispo Inácio, de Antioquia, registram, junto com essas distinções, os contrastes e as oposições: “judaísmo” e “cristianismo”, “vossa religião” e “nossa religião”. Subjaz a essas formulações, sem dúvida, a polêmica do livro da Sabedoria e de Filón de Alexandria, lição que foi aprendida pela Epístola a Diogneto. A tendência da exclusividade religiosa se encontra pouco depois cristalizada em Arnobio

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de Sicca, cujo discípulo Lactâncio (século III d.C.) não só contrapõe a “religião de Deus” a “religião dos deuses”, mas também introduz a inovação mais importante: o antagonismo entre vera (“verdadeira”) e falsa religio (“falsa religião”). A partir do monopólio da religião cristã, Lactâncio introduz uma drástica restrição no pensamento sobre o sagrado no Ocidente. Ele admite primeiro, com Cícero, que a religião como piedade ou sentimento pelo qual os homens reconhecem que Deus é Pai diferencia o gênero humano das espécies animais, mas ao mesmo tempo propõe uma etimologia inédita do vocábulo religião, centrada na experiência sagrada cristã que estabelece uma relação pessoal entre Deus e o homem. Para ele, o termo religião deriva de religare, porque Deus se liga ao homem e o ata pela piedade. Pode-se dizer que só a religião verdadeira religa, e não a falsa; e o que importa é o que se venera e não a forma de adorar. Com essa proposta nova e clara da experiência do homem com o sagrado que se afirma sobre a base de uma relação exclusiva entre Deus e o homem, desaparece um conceito de religião, que é substituído por outro de origem judaica e de impulso cristão (“as duas alianças”), o qual dominará total e irrestritamente o pensamento ocidental.

Fonte: SHUTTERSTOCK.COM

A VIVÊNCIA DO SAGRADO E A RELIGIÃO

A construção etimológica do temo religião derivado de religare, apesar de indicar características de validade arcaizante ao subordinar o sagrado a uma de suas possíveis expressões, a religião

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baseada na consciência pessoal contribuiu, sem dúvida, para limitar a revelação espontânea. A nota dominante da noção cristã de religião baseia-se no fato de que a instância básica da repetição rítmica do “começo” que permite sua reatualização e que, segundo a vivência arcaica do religioso, constituiu o núcleo da atitude de reverência, esvazia-se de sentido e se subordina à fé na existência e vontade de um Deus único e criador que vem ao homem. Desse modo, se “no princípio era o Verbo”, “o Verbo se fez carne” e “ressuscitou dos mortos”, esta realidade reatualiza-se periodicamente no rito sacramental da eucharistia (“ação de graças”), mas como etapas intermediárias de uma etapa final, meta e plenitude que o Verbo inaugurou historicamente ao realizar a vontade do Pai, a qual permite a entrada das criaturas na ordem definitiva e eterna de Deus. A adoção de uma postura imparcial diante da religião e dos fenômenos nela envolvidos com respeito ao sagrado exige, portanto, que ultrapassemos a perspectiva cristã ou de qualquer outra religião particular para poder abarcar o ato religioso em sua essência e extensão que lhes são próprias, segundo o experimentam os diferentes povos. A religião, em sua essência própria, é tanto uma experiência humana de respeito para com a esfera do sobrenatural, divino e sagrado, como o conjunto de atos exteriores relacionados que objetivam tal veneração como vivência compartilhada que trata de reatualizar a ligação com essa esfera, mediante o cultivo de recursos que remontam a esses estados de caráter primordial e permanente. Os componentes externos básicos da religião que fundamentam a atitude subjetiva de adesão ao divino incluem ações, objetos, palavra e normas prescritivas: constituem o rito, a doutrina e a moral. Rito Etimologicamente, a palavra rito vem do latim ritus, que significa “ordem prescrita” ou “ordem estabelecida”. No grego, esse termo está ligado a artýs ou artus, que também significa “prescrição”. A raiz ar, mais antiga e original, “modo de ser, disposição organizada e harmônica das partes no todo”, encontra-se na palavra rta, do sânscrito védico, cujo significado remete a uma força de ordem cósmica, mental e de relação das pessoas entre si, e em arta (arte),

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do iraniano, que dá ideia de “harmonia restauradora”. A etimologia do termo rito indica que há uma ideia de ordem, organização, estabilidade e restauração, presente no significado da palavra rito. O rito coloca ordem, classifica, estabelece as prioridades, dá sentido do que é importante e do que é secundário; permite viver em um mundo organizado e não caótico, sentir em casa, em um mundo que, do contrário, apresentar-se-ia a nós como hostil, violento, impossível. Se é verdade que o cosmo tem a força de opor-se ao caos, isso se deve ao rito e à sua força organizadora. O rito é, portanto, “uma ação que pode ser individual ou coletiva, mas que sempre permanece fiel a certas regras. Mas isso não significa que o rito seja inflexível e não comporte uma margem de improvisação”. Certamente, os ritos evoluem, modificam, “em geral é de forma lenta e imperceptível”. As mudanças que ocorrem no rito são introduzidas com extrema prudência; “a repetição é dada na própria essência do rito”. Doutrina Os ritos não incluem somente ações, mas também palavras. O silêncio e a palavra compõem a trama do rito. O mito é o fundamento da palavra religiosa, relato epifânico e tradicional. Como narração que se apoia não no discurso racional, mas no relato que conta uma experiência primordial, carregada do prestígio que conserva a sucessão dos relatos qualificados, ilustra a origem, o sentido último e a realidade dos atos do mundo e a existência. O mito, vivência do primordial que se desdobra por meio de um relato, desse modo, é indissociável do rito e convive em seu seio. As escrituras sagradas das grandes religiões têm suas raízes na experiência do mito. Nesse sentido, procuram mesmo de substituí-lo, mas não anular o essencial de sua natureza, o valor do segredo divino que transportam. Os dogmas, as confissões de fé e a teologia emergem da inspiração dos dados revelados por Deus, por isso as Escrituras têm autoridade da crença, de serem testemunhas fidedignas da vontade e saber divinos. O que o símbolo implica o mito desdobra por meio de um relato e a doutrina o desenvolve intelectualmente. O crede ut intelligas (“creia para poder entender”), de Santo Agostinho, é uma forma madura que esclarece a decisão de substituição do mito, do qual se desenvolve a filosofia grega pela Escritura Cristã, e de compreensão de que esta Sabedoria convoca a

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razão para explicar a realidade teológica e filosoficamente. Moral O sentido de comunidade, de grupo social coletiva e cosmicamente integrados está, desde o início, ligado à veneração ao que é primordialmente poderoso e a necessidade de sua manutenção mediante a repetição arquetípica ou providencial da ação ritual e a palavra mítica ou ritual. Não é o indivíduo particular, mas os membros do grupo em convivência que são levados a respeitar o que determinam os de ritos e as celebrações, aceitando seu cumprimento e conservando-os. O mesmo acontece na relação cósmica e social. A continuidade interativa tem precedência para a conduta, razão porque é necessário ater-se às normas individuais e coletivas que permitem a manutenção do grupo na ordem mundana e a serviço da ordem. A comunicação do respeito espontâneo com o sobrenatural inspira, portanto, formas de comportamento que obrigam os homens à ação ou omissão, mediante regulamentações que protegem o grupo e seus membros da desorientação e, igualmente, dos condicionamentos negativos da ordem. O âmbito ambivalente dos tabus e, a partir dele, das prescrições e vetos, deixa clara, a partir da observação da ética religiosa e sua projeção nas primeiras manifestações do direito, por meio de regulamentações sobre puro e impuro, a relação entre a justiça e a punição, os sistemas de castas, os estados da vida etc. A ele também pertencem as grandes modificações operadas pelas religiões denominadas proféticas, nas quais a sanção de mandamentos e de normas legais de origem divina e normativas para a conduta constituem uma característica proeminente da transformação do conceito de religião transferido do reino do arcaico para o encontro entre a vontade de um Deus único e onipotente e a vontade do homem. O tema da ética religiosa e a duplicidade de valores oferecidos em seu domínio, frente ao que a mentalidade religiosa admite como interdito ou proibido e permitido, conduz-nos para o centro determinante do universo das ideias religiosas, ou seja, a relação existente entre a religião e o sagrado.

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O MITO Os mitos são relatos, narrativas, as formas mais antigas por meio das quais o ser humano procura esclarecer o mistério de sua existência no mundo, valendo-se assim do conteúdo de narrativas, histórias, relatos e legendas transmitidas de geração em geração. O mito é a atitude humana de reconhecimento da irrupção do sagrado na existência e a expressão do desejo de retorno ou nostalgia do sagrado como princípio ou arché. O ser humano mítico vive plenamente quando alcança viver no princípio. O mito apresenta-se como fenômeno ou ato cultural, como uma palavra que é reveladora ou epifânica, pois comunica uma mensagem ao relatar uma cadeia ou série de atos que tiveram lugar no marco de origem. Os protagonistas desses atos foram seres sobrenaturais, os autores diretos de ações extraordinárias que deram nascimento ao cosmos ou algum aspecto novo dele. Segundo Francisco García Bazán, mito envolve: Símbolo A palavra símbolo deriva da língua grega e significa “lançar conjuntamente ou ao mesmo tempo”. O que é considerado simbólico tem a capacidade de reunir eficazmente. O símbolo é atividade reveladora e, por esse motivo, une o que está separado; aponta para um significado que é real e diferente do que sua estrutura imediata comunica ao conhecimento empírico ou habitual. Como linguagem, encobre e revela sentidos que, à simples vista, estão escondidos. Sugere a aproximação ao que não diz, estando próximo dos seguintes termos: huponoia (o sentido subentendido), alegoria (dito que afirma uma coisa, mas que significa outra) e metáfora (transposição de significado). •

O símbolo é imagem e, portanto, realidade auxiliar e reflexo do que está escondido e que põe de manifesto; sendo imagem, o símbolo não só é a realidade mais fraca do que é revelação, mas figurativamente inverso com respeito ao que expressa.

O símbolo é a imagem reflexa, mas inseparável e necessária em relação ao que manifesta,

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logo, sua origem não é nem convencional, nem efeito da arbitrariedade, mas superior ao domínio humano individual e coletivo. •

O caráter de imagem do símbolo descrito o apresenta como análogo, como diferente e idêntico ao que revela, pois como imagem especular se torna visível, compartilha daquilo que reflexamente manifesta. Quando a natureza analógica inerente ao símbolo se põe em movimento, cumpre-se propriamente a função simbólica desveladora, pois o participado como dom é outorgado gratuitamente como experiência participante.

Palavra O mito é palavra, mas palavra que relata, reúne ou liga. Relaciona-se com logos (“palavra”) não em seu sentido especial (“a palavra que reúne e enlaça mediante o exercício racional”), mas com o sentido amplo de reunir progressivamente. O mito é palavra autorizada que se impõe pelo prestígio da união com a origem e seu caráter legendário. O logos, em seu sentido restrito, é a palavra do discurso em seu deslocamento racional, lógico e retórico ou persuasivo. A passagem do mito ao logos ocorreu já na cultura grega na época dos filósofos pré-socráticos. História O mito é uma narrativa de acontecimentos, um relato dos atos que aconteceram em um tempo primordial. Nesse sentido, é epifania ou revelação. O relato mítico é também palavra tradicional, ou seja, símbolo-relato que se transmite, se recebe, conserva e interpreta ou reatualiza e de novo se entrega. A origem do mito é não humana ou pessoal. O mito é a memória ancestral da humanidade a partir de um momento pleno, no qual o desenvolvimento do tempo sucessivo atual não existia. Tempo atemporal O tempo primordial ou original próprio dos atos a que o mito se refere é um tempo que está fora do tempo; uma atemporalidade de natureza intensa, de expectativa global e que

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não se desdobra sucessivamente. Por isso, o tempo do estado mítico que se expressa na continuidade linear do relato, não gera o desgaste nem se desgasta com seu transcorrer os seres e acontecimentos que nele aparecem. O tempo primordial contém, em germe, o conjunto uno e total das realidades mutáveis que se desdobrarão através do tempo natural vivido biológica, social, psicológica e cronologicamente, em cuja dimensão está a origem, a corrupção e o aniquilamento. Seres sobrenaturais Os mitos narram atos extraordinários nos quais intervêm personagens sobrenaturais que não vivenciam as experiências humanas de fragilidade, falha, desilusão e destruição. Essas personagens pertencem à esfera dos deuses, semideuses e são mais que humanos; possuem poderes e atributos que, salvo exceções, não são vivenciados no cotidiano; participam das potencialidades que se fizeram efetivas no momento do nascimento do cosmos e de seu equilíbrio. Por conviverem no marco de um clima sagrado, realizaram atos prototípicos individuais inesquecíveis como criadores ou fundadores. Atos excepcionais As proezas são apreendidas pela memória coletiva ou corporativa, como ações singulares, devido sua força exemplar, paradigmática ou prototípica. Diante delas, a fuga do tempo, as limitações locais, a diversidade e mutabilidade dos suportes físicos representam riscos de desaparecimento. As características únicas e universais dos acontecimentos protofigurativos transmitidos por meio da força ilustrativa das histórias míticas aconteceram no espaço e tempo primordiais, dentro de uma cronologia e geografia figurada carregadas de sentido sagrado, tornando-os orientadores da existência comum, razão porque se quer voltar a eles, pois representam a origem. O homem arcaico não suporta estar desorientado, extraditado e alheio à sua origem.

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Ponto de partida do cosmos ou de parte dele Os relatos míticos são primordialmente cosmogônicos. Eles ilustram como aconteceu o nascimento do mundo e da ordem primitiva ou narram o modo como algum aspecto dele sofreu alguma alteração substancial.

A ATITUDE MÍTICA Há no mito um tipo de consciência de si mesmo no todo que vive na tensão entre a lembrança do arquetípico e o temor de seu desgaste ou desaparecimento. As categorias opostas, as polaridades do sagrado e o profano, de que dependem os demais opostos, ordem e caos, orientação e desvio, se impõem fundamentalmente ao mito. O temor da deterioração do ancestral corre lado a lado com a erosão que o tempo produz nos seres e nas coisas ao aliená-los do momento da criação ou primeira manifestação da ordem. A expansão de uma ordem implícita, manifestada em episódios simultâneos e sucessivamente relatados, é a expressão das proezas dos deuses, a intrusão irrefreável e manifesta do sagrado. O mito, como memorial oral autorizado, como relação com o sucedido, revela os momentos, o poder e a majestade da origem, a época primordial ou parêntesis paradigmático entre a ordem que se inicia e o caos que afasta. O mito é uma síntese poderosa, uma manifestação sacral intensa, que abre seus braços ao homem como refúgio frente à ameaça do profano, que o torna impuro e procura destruí-lo de diversas formas. O mito é hierofânico (manifestação do sagrado por excelência), ontofânico: revelador do que é realmente; trescofânico: iluminador do comportamento ritual; cratofânico e axiofânico; expressão de poder e gravidade/seriedade. O homem primitivo não é o que se opõe ao civilizado, mas o de mentalidade arcaica que anseia pela reatualização, repetição real da origem, para experimentar diretamente suas virtualidades regenerativas. A celebração da festa de akitu, o ano novo babilônio, ilustra o que estamos falando.

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Nessa festa, a figura central era o rei, representante divino na Terra e responsável por sua regeneração natural e social. A festa durava doze dias e em seu transcurso se recitava várias vezes o poema tradicional da criação, o Enuma Elish, que narra as façanhas do deus Marduk contra Tiamat. Marduk venceu Tiamat, do corpo desmembrado do Tiamat criou o mundo e, do sangue de seu súdito Kingu, criou o homem. O mito era representado por dois grupos de atores no templo da Marduk. Nessas cerimônias, havia também a “festa das sortes”, com os presságios que correspondiam a cada um dos meses do ano, uma temporada de tristeza pela descida de Marduk ao mundo inferior, sua humilhação e, finalmente, uma hierogamia ou casamento sagrado do rei com uma sacerdotisa, representando, respectivamente, o deus e a deusa Sapanitum. O significado dos comportamentos descritos dramatizados neste relato é o seguinte: •

O domínio de Tiamat representa a força do caos. Os episódios relacionados com a desordem social, a abolição da hierarquia e a eclipse do poder de Marduk estão ligados com a desordem final, que esgota a influência de Marduk, sendo, deste modo, precursora por seus sinais apocalípticos das trevas pré-cósmicas e pré-formais.

A criação do mundo é um ato que se realiza fora do tempo, razão porque, ao se cumprir o ciclo anual, se reatualiza ou regenera.

O ser humano, ao participar na ação dramática, participa também na cosmogonia. O mundo invadido pela desordem projeta-se, agora, no tempo imortal dos começos, supera a desordem, rompe as amarras do profano, torna-se contemporâneo ao tempo primordial que temporaliza e habita no espaço que dá lugar e orientação a qualquer espaço local.

Há também um sentido do porvir, pois as sortes estão ligadas aos meses e os dias previstos no tempo original, que seguem, sem começo e fim, ao caos cósmico anterior.

A união sagrada do deus e da deusa é o símbolo que prenuncia o renascimento ou regeneração do novo mundo e humanidade, uma nova ordem que possui a força e

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sacralidade renovada, intrínseca à origem. Mas lentamente, o cosmos afasta-se do domínio e da familiaridade com os deuses, o caos avança com sua obra de deterioração, como uma ameaça permanente sobre o mundo das formas manifestadas, e o ser humano ansiará por não perder o ponto de apoio da origem, que tem suas raízes no princípio. •

Nas Escrituras Cristãs, o Apocalipse de João também preservou uma narrativa mítica sobre o dragão como o monstro do caos. Este relato, Apocalipse 12, apresenta grande afinidade com o modelo do mito do combate, bastante difundido no Oriente Próximo e no mundo clássico: na forma de um grande dragão vermelho, com sete cabeças e dez chifres, Satanás aparece no céu, pronto para reduzir o mundo ordenado ao caos.

O mito do combate descreve a batalha que se dá entre dois seres divinos e seus aliados pelo domínio universal. Um dos combatentes, usualmente um dragão, representa o caos e a esterilidade, enquanto o seu oponente está associado com a ordem e a prosperidade. O resultado da batalha constituirá ou abolirá a ordem na sociedade e a fertilidade na natureza. A estrutura do mito do combate é a seguinte: a. Um casal de dragões - o oponente é frequentemente um par de dragões ou bestas: (1) marido e esposa, e/ou (2a) irmão e irmã ou (2b) mãe e filho. b. Caos e desordem - forças que o oponente representa. c. O ataque - o oponente quer (1a) impedir que o deus principal (ou os deuses mais jovens) chegue ao poder, e/ou (1b) destituí-lo depois de alcançar o poder. d. O herói. e. A morte do herói. f. O reino do dragão - enquanto o deus está morto e confinado ao mundo subterrâneo, o dragão governa destrutivamente: (1) saqueia e satisfaz os seus vários desejos; em

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particular (2) ataca a esposa ou mãe do deus. g. Restabelecimento do herói: (1) a esposa, irmão e/ou mãe do deus empenha-se em restabelecê-lo (a) pela mágica, ou (b) seduzindo o dragão, ou (c) lutando ela mesma com o dragão; ou (2) seu filho o ajuda (a) restabelecendo a força perdida do deus, ou (b) assumindo ele mesmo o papel de deus (ou rei). h. Batalha renovada e vitória. i. Restauração e confirmação da ordem. O dragão está associado ao caos e a desordem, porque representa uma ameaça à ordem cósmica. Ele que devorar a criança, pois seu objetivo é impedir que criança “governe todas as nações”. A criança é resgatada do poder do dragão (v.5) pela ação de Miguel, um aliado angélico (v.7). Os vv.7-9 descrevem uma batalha no céu, de onde o dragão é expulso. A restauração e a confirmação da ordem são anunciadas e celebradas no hino, associadas com o “reino do nosso Deus e a autoridade do seu Cristo” (v.10). A ordem é restaurada no céu, como indica o grito do v.12. Os vv.13-18 retratam o reino terrestre do dragão e o seu ataque à mãe do menino recém-nascido. A descrição da besta como drakon indica sua relação com a serpente-monstro marinho do Antigo Testamento, livyathan (Isaías 27,1 - “drakon” LXX). Leviatã e as bestas relacionadas (Rahab - Jó 9,13; 26,12; Isaías 51,9; Salmos 89,10; Tannin - Salmo 74,13) refletem claramente o oponente de Baal, Yamm (mar), e o monstro do mar, Lotan, da mitologia cananeia. Em Apocalipse 12, o dragão está associado com o fogo e a água (v.3.5). É a mesma combinação de Jó 41 usada para descrever o Leviatã, cujos movimentos agitam as águas subterrâneas tehôm (vv.10-13; 23-24). A derrota do dragão por Miguel (12,7-9) está associada com o motivo dos (1) exércitos celestiais: Miguel e seus anjos; (2) e com a expulsão daquele que foi derrotado pelo vitorioso: satanás é arremessado à terra. O combate entre dois deuses é descrito como o encontro central de uma

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batalha entre dois grupos ou gerações de divindades. No Enuma Elish, Tiamat e sua consorte realizam uma batalha contra os deuses do céu, mas Marduk, como o representante dos deuses do céu, os derrota. A batalha de Zeus e seus aliados com os Titãs (Hesíodo, Teogonia 617735) e com os gigantes (Apolodoro 1.6.1-2) é análoga à batalha de Marduk com Tiamat, Kingu e seus aliados. Quando Zeus derrotou os Titãs, ele os enviou a Tártaro (Hesíodo, Teogonia 717-735). Na forma arcaica dos mitos que envolviam lutas de deuses, o mito do combate indicava as tensões entre a fertilidade e a esterilidade, a ordem e o caos, e a vitória de uma divindade era entendida em sentido cosmogônico. No Enuma Elish, esse aspecto cosmogônico é visto na descrição da criação do cosmos a partir do corpo de Tiamat que foi conquistado. A vitória da ordem sobre o caos, da fertilidade sobre a esterilidade, deve ser entendida como um evento que se repete ao longo das estações e dinastias, como o uso cúltico do Enuma Elish o indica. O mito do combate tem um caráter cosmogônico quando ele aparece no Antigo Testamento (Jó 26,5-14) e foi a linguagem usada pelos profetas para descrever os eventos históricos (Isaías 51,9-11 - a batalha de Javé com Yamm); esta estrutura apresenta o tema da independência política e estabilidade que são constituídas pelo ato criador, já que a interferência do poder estrangeiro é expressada como ameaça e caos (Naum 1,4; Jeremias 51,34; Daniel 7-8). O modelo do mito do combate de Apocalipse 12 é dominado pela figura do dragão e seus atos de rebelião que provocam o caos: um mito do ressurgimento e da conquista do caos. A situação de batalha na qual a comunidade apocalíptica se encontra é descrita como um conflito cósmico, sob essa óptica é que Apocalipse capítulo 12 deve ser lido. Este aspecto é ilustrado pela indicação de como o papel de Satanás é determinado pelo mito do combate. Seu papel como kategor (“acusador”) na corte celestial é subordinado ao seu papel como guerreiro. Sua atividade na terra depois de ter sido atirado do céu é caracterizada como “fazer guerra aos que mantém o testemunho de Jesus” (12,17). As atividades subsequentes de satanás são todas dominadas pela linguagem da batalha. No capítulo 13, ele concede poder e autoridade à besta que luta contra os santos (v.7; cf. 18,19). Em 16,13-14, Satanás, auxiliado por duas

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bestas, reúne os reis do mundo para a batalha. No final do livro, reúne Gog e Magogue para a batalha contra aqueles que se alegram no reino messiânico (20,7-10). Especialmente digno de nota é o fato de que o motivo de Satanás como sedutor é interpretado em termos militares, já que seduzir as nações equivale a ajuntar as nações para a batalha (20,8).

METÁFORA Nos seus Diálogos, Platão utiliza amplamente linguagem figurada ou imagens. Ele lança mão de figuras relacionadas com a esfera artesanal (demiurgo, modelo), com corpo (ama de leite, pai, mãe, filho, amante, amado), com a arte, com as relações harmônico-musicais e alfabéticas, com a luz, o sol, a casa, o mar, o comércio dos metais. Ele utiliza figuras ampliadas em alegorias, como a apresentação dos homens como marionetes das Leis ou o relato da caverna; nos seus desenvolvimentos doutrinários, ele interpõe mitos tradicionais ou fórmulas dos mistérios órficos e eleusinos. Platão critica também o literalismo das narrações dos poetas (Homero e Hesíodo) e o inconveniente de ensinar essas fábulas às crianças, visto que elas não estão preparadas para distinguir onde se dá o “sentido oculto” ou alegoria. Existe a necessidade do uso, mas também o risco verdadeiro do emprego da linguagem indireta. Uma filosofia da linguagem de fundamento metafísico como a inaugurada pelo Crátilo, apoiada no ensino sobre a retórica como a do Fedro, tornará possível uma concepção da língua e de seus recursos na qual a concepção de metáfora como “significado profundo, oculto ou sutil” que sugere, transportando o ouvinte ou leitor, é transmitida a partir dos vocábulos hyponoia, alegoria e símbolo em seu correspondente contexto literário. Aristóteles emprega o vocábulo metáfora com sentido retórico: transferência de sentido de uma palavra a outra diferente com a eliminação da conjunção “como”, o que é próprio da comparação. Cícero difundirá na língua latina esse emprego peculiar da linguagem figurada que se afasta da língua primitiva ou natural, referindo-se concretamente à metáfora, alegoria (entendida como uma metáfora prolongada), enigma, metonímia, sinédoque e, como figuras

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ornamentais, no marco restrito da decoração estilística. Essa tradição didática, prosseguida por Quintiliano, não só deixou o interesse autorrealizativo inerente aos valores arcaicos das imagens linguísticas num segundo plano, mas também está na base da metamorfose da retórica em tropologia. Alegoria No período helenístico, a linguagem mítica não podia mais ser concebida ao pé da letra ou em seu sentido literário, exigindo uma interpretação “alegórica”. Nesse contexto, os estoicos elaborarão uma interpretação sistemática, racionalizante e, portanto, alegórica dos mitos, a qual estava a serviço da adaptação de um antigo patrimônio espiritual à mentalidade de épocas posteriores. Os estoicos utilizavam a palavra hyponoia, forma de comunicação indireta, que diz algo para dar a entender algo diverso. O verbo allegorein conduzirá ao conceito que significa literalmente “afirmar algo diverso”, e isso publicamente. Surge, assim, o termo alegoria; por trás do sentido da ágora há outro, mais profundo, que à primeira vista parece estranho à ágora, à interpretação pública. A interpretação alegórica dos mitos consistia em encontrar atrás do chocante sentido literal um significado mais profundo. Mas, o que é esse significado de natureza diversa? Não se precipita na arbitrariedade quando o sentido literal é abandonado? Ao responder a essa questão, os intérpretes alegóricos acentuavam que sempre se devia partir do sentido literal, para ordená-lo corretamente, recorrendo, para tal, à etimologia. Os estoicos achavam que os humanos mais antigos ainda carregavam em si o logos não falsificado, podendo, para isso, penetrar na essência das coisas. A etimologia fornecia esclarecimentos sobre a direção do significado oculto que ultrapassa o sentido literal. A palavra allegoria foi cunhada pelo Pseudo-Heráclito (1o séc. a.C.), que definiu a alegoria como um tropos retórico que possibilita dizer algo e, ao mesmo tempo, aludir a algo diverso; a linguagem convida a reconhecer o logos literário em suas limitações e a ultrapassá-las. Esta norma foi aplicada especialmente na interpretação dos mitos homéricos, visto que o cerne da

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hermenêutica se radica na tensão latente, mas real, que existe entre o que se diz e o que se quer dar a entender, entre o significado aparente e o sentido oculto, outra forma de expressão do ensino da base ontológica sobre a aparência do que se mostra e a realidade do escondido. Dessa forma, antes de se tornar uma técnica da interpretação, a alegoria era uma forma de discurso, de natureza retórica, pois o fazer retórico está relacionado com a mediação de sentido, razão porque se tomou usual estabelecer uma distinção entre a alegoria, como figura discursiva originária, direcionada ao supraliterário, e a alegorese, que significa o processo explícito de interpretação, a recondução da letra à vontade de sentido que nela se comunica. A alegoria e o pensamento cristão As comunidades cristãs estiveram, desde seu surgimento, expostas ao desafio particular inerente ao anúncio de Jesus e à sua implícita relativização da lei judaica. A partir de sua doutrina, a lei mosaica e, sobretudo, sua esperança profética messiânica já não podiam ser entendidas literalmente. Recomendava-se interpretá-las alegoricamente e relacioná-las com a pessoa de Jesus. Jesus era o espírito, a partir do qual a letra do Antigo Testamento devia ser interpretada. Aqui não era possível sofismar sobre o sentido literal das Escrituras. Essa interpretação alegorizante do Antigo Testamento, relacionada com Jesus, adquiriu, no século XIX, o nome de “tipologia”. Seu objetivo visava descobrir no Antigo Testamento typoi, isto é, prefigurações da figura de Cristo, as quais, antes do aparecimento de Cristo deviam permanecer desconhecidas. Essa leitura tipológica da Bíblia era na sua época chamada de “alegórica”. A tipologia busca encontrar no Antigo Testamento prenúncios e analogias historicamente reais da pessoa de Jesus. Um fato narrado no Antigo Testamento − por exemplo, a saída dos israelitas do Egito – prefigura ainda imperfeitamente outro, o advento, a vida e paixão de Cristo, e realiza-se nele em sua perfeição. O Êxodo, assim, seria prefiguração da Redenção da humanidade, obtida por meio da morte de Cristo na cruz. Também o sacrifício de Isaac por Abraão devia prefigurar a morte sacrifical de Cristo por seu Pai; os três dias passados por Jonas no ventre do grande peixe deviam simbolizar o período de tempo entre a morte e

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a ressurreição de Cristo etc. Fica, portando, estabelecida uma relação entre duas pessoas ou acontecimentos, que são ambos reais no tempo e não se preocupa com conceitos e abstrações, que são inteiramente secundários. A figura é diferenciada da maior parte das formas alegóricas conhecidas em outros contextos pela realidade histórica do que significa e é significado. Quem primeiro falou expressis verbis de alegoria foi o apóstolo Paulo. Em Gálatas 4:21-31, ele elabora uma interpretação “tipológica” da história dos dois filhos de Abraão, um da escrava (Agar) e o outro da livre (Sara). Isto, explica Paulo, foi dito alegoricamente. Porque o filho gerado pela escrava significa a Jerusalém atual, que se encontra na escravidão, isto é, sob a lei. O que foi gerado pela mulher livre, no entanto, não é escravo da lei (ou da carne), porém livre, por ser herdeiro do espírito. O início de Gálatas 4:24: “O que se entende por alegoria”, indica que esta palavra teve uma história de desenvolvimento. A palavra é de origem grega tardia e foi usada para substituir a palavra hyponoia. Em Filón e outros alegoristas alexandrinos a palavra veio a descrever a “interpretação figurativa de um texto autoritativo”. No exemplo de Paulo, fica claro pelo contexto que ele não está falando somente de um processo alegórico, mas ele está interessado em entidades alegóricas, ou seja, em seu pensamento, Sara e Agar representam realmente algo que é vital para a expressão da fé cristã, já que a partir das figuras históricas de Agar e Sara fala sobre a liberdade e a escravidão. Paulo espera este momento preciso na carta para apresentar este argumento e a vantagem de utilizar a alegoria inclui pelo menos o seguinte: a. Permite a Paulo continuar usando a figura de Abraão. b. Aparentemente, Paulo está utilizando um estilo de exegese que os judaizantes conheciam ou para estabelecer suas próprias doutrinas. c. Permite a Paulo sumarizar seus argumentos principais por meio de uma ilustração

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aceitável da história sagrada de Israel. d. Permite a Paulo utilizar a tradição para fazer um apelo emotivo. e. Dá a Paulo uma fundamentação para dizer algo que não poderia ser omitido, ou seja, que os judaizantes deveriam ser repelidos. A alegoria focaliza “duas alianças”. Agar e Ismael representam os que vivem sobre a escravidão da Lei. Agar gerou a Ismael “segundo a carne”, representando as coisas que acontecem fora das promessas de Deus. Assim, “Agar e Ismael simbolizam as pessoas que esperam realizar a justiça com base em suas próprias obras”. Sara e Isaque representam a aliança da liberdade. Esta é a segunda das alianças representadas. É não só uma aliança histórica que está representada, já que as duas alianças representam duas esferas diferentes da existência humana. A condição de mãe é apresentada como algo que representa o destino do filho. O propósito dessa alegoria é, então, dar seguimento ao argumento básico de Paulo de que “a vida vivida sob a lei é escravidão, a vida vivida em resposta à bênção prometida por Deus em Cristo é liberdade”. Há três aspectos que caracterizam o método alegórico paulino: sua epistemologia, perspectiva histórica e sua escatologia. Primeiro, sua epistemologia é “fé”, e não “conhecimento”. Gálatas prioriza a palavra “fé”. Paulo compartilha com seus destinatários aquilo que em um tempo anterior de sua vida tentou destruir (1:23). Mais tarde, em seu confronto com Cefas, Paulo sustenta que a justificação não ocorre mediante as obras da Lei (2:16). Referindo à sua própria experiência de conversão, diz que ele estava crucificado com Cristo e a vida que ele agora vivia, vivia pela fé no Filho de Deus, que o amou e se deu por ele (2:20). No contraste entre “fé” e a Lei, Paulo já havia antecipado a alegoria Sara/Agar de 3:7, que afirma: “Sabemos que somente os que são da fé são filhos de Abraão”. Segundo, sua perspectiva da história da salvação é descrita como “liberdade”. O conceito de

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“libertação” era parte da história de Israel. Cinco vezes nesse parágrafo Paulo usa a palavra “liberdade” para demonstrar a “realidade histórico-redentiva da fé”. A história da salvação apresentada pode ser traçada desde Abraão, que tinha dois filhos, o segundo nascido de uma mulher livre (4:22) por causa da promessa (4:23). Assim, a Jerusalém de cima é também “liberdade” (4:26) e está pronta para dar à luz a alguém que viria viver na promessa. Com um apelo à Escritura, Paulo cita Gênesis 21:9, 10, para fundamentar a afirmação de “somente os filhos da mulher livre são realmente livres”. Terceiro, sua escatologia, que é marcada pela esperança e culmina na pessoa de Cristo. Esse aspecto, além da ênfase na história da salvação, faz com que Paulo não se afaste do contexto original da narrativa de Gênesis. Paulo identifica Jerusalém e Agar como o Monte Sinai na Arábia e relembra aos destinatários de Gálatas que a promessa escatológica está na Jerusalém celestial. Assim, entrelaça aspectos midráxicos e legais do Antigo Testamento, o que resulta numa hermenêutica homilética e pastoral relacionada com a missão aos gentios no contexto da iminência da parousia. Além de Paulo, Orígenes (185-254 e.C.), no seu livro De principiis, desenvolveu a doutrina das três faixas de sentido da Sagrada Escritura. Ela deve indicar que também o intérprete deve inscrever o sentido da Escritura em sua alma, primeiro o sentido corporal, depois o psíquico e, por fim, o sentido espiritual. Essa tripartição corresponde à tripartição neotestamentária e filônica do ser humano em corpo, alma e espírito. O sentido corporal, isto é, literal, destina-se às pessoas simples ou ingênuas. Ele não pode ser rejeitado, porque a multidão daqueles que, graças a ele, creem fielmente, dá testemunho de sua utilidade. O sentido anímico direciona-se para aqueles que já fizeram maior progresso na fé e cujo olhar, pela alma da Sagrada Escritura, é capaz de ampliar seu horizonte. Somente aos “perfeitos” se desvela o sentido espiritual, que deve revelar os mistérios supremos da sabedoria divina, ocultos na letra. Os três níveis do sentido bíblico são, assim, desejados por Deus para possibilitar aos cristãos um progresso do visível ao invisível, do corporal ao intelectual. Por isso, o Espírito Santo ocultou um sentido mais profundo sob o céu de uma narrativa comum (IV, 2, 7; IV, 2, 9).

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Orígenes emprega a alegoria predominantemente de modo tipológico, a qual descobria em todo o Antigo Testamento. Ele aplica também a interpretação alegórico-tipológica ao Novo Testamento. O Novo Testamento também quer ser o prenúncio de algo misterioso, a saber, da parousia divina, expressão da espera, para breve, de uma nova vinda do Senhor, que caracterizava a primeira cristandade. Da mesma forma como o Antigo Testamento devia ser uma tipologia do Novo Testamento, este aspecto deve também ser encarado como a tipologia do “Evangelho eterno”, segundo a palavra da Revelação. Orígenes, assim, abria à cristandade o caminho para a interpretação alegórico-simbólica do Novo Testamento, como penhor de algo diverso e mais elevado. Segundo Orígenes, tudo o que é escriturístico compõe-se de mistérios. Com isso, ele universalizava a dimensão do tipológico: direcionada por natureza para a revelação do mistério, a Sagrada Escritura deveria ocultar um mistério em todas as suas letras. A alegoria era, pois, o nome que a antiga Igreja dava ao seu método tipológico de interpretação. O Antigo Testamento se tornou uma alegoria do Novo Testamento, o qual revelava o espírito a partir do qual deveria ser entendida a letra do Antigo. O ensino da tipologia histórica, uma das correntes de interpretação religiosa da linguagem figurada dos inícios do cristianismo, está aqui em síntese e, como isso, foi lançada a sentença condenatória da futura vigência religiosa da mitologia grega que estava a serviço da mentalidade mítica e não da mentalidade histórica. Os tipos ou figuras do Antigo Testamento adquirem seu pleno sentido nos antítipos do Novo Testamento. A alegoria adota o caráter cristão como um estilo de expressão religiosa, histórica e cristocêntrica. A contribuição de Santo Agostinho é também importante no desenvolvimento da interpretação alegórica das Escrituras. Para Agostinho, palavras escritas são sinais de palavras faladas, e palavras faladas, por sua vez, são sinais de pensamentos falados. As palavras escritas da Escritura são sinais que ajudam a dirigir os olhos da nossa mente para as realidades que eles significam. A Escritura é como um indicador. Não aprendemos coisas inteligíveis de Moisés ou Paulo ou dos evangelistas; nós aprendemos ao vê-las por nós mesmos na Verdade eterna. As

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palavras da Escritura são sinais que dirigem nossa atenção para o que podemos ver, mas que nunca veríamos sem elas. Há também verdades que pertencem à esfera do tempo e mudança, e o acesso independente que temos a essas verdades se dá por meio de nossos sentidos. Eu não consulto a Cristo a fim de ver se a porta do meu escritório está aberta. Somente olho. Esses sentidos podem falar a mim somente sobre o presente; a memória do sentido também me fala sobre o passado – somente o meu próprio passado, e não todo o meu passado. Isto significa que a maior parte do passado não é só desconhecida, mas que não se pode conhecê-lo. Naquele passado não conhecível estão verdades que necessito desesperadamente estar consciente delas, sendo a mais importante a que diz que “a Palavra tornou-se carne e habitou entre nós”. As palavras da Escritura fazem-nos conscientes das verdades do passado não conhecível. A Escritura é indispensável porque ela nos informa sobre coisas que nem a razão nem os sentidos podem agora nos revelar. A Escritura transmite a mensagem da verdadeira realidade, não de vãs imaginações humanas. Ela contém a Sabedoria de Deus revelada temporalmente em Jesus Cristo como manifestação voluntária dos mistérios de Deus. Desse modo, a mensagem polissêmica da linguagem religiosa não só tem por correlato os atos históricos em sua dimensão profana, mas também requer uma interpretação alegórica e espiritual, assim como a interpretação anafórica, própria das realidades escatológicas do tempo final. A língua se torna teofânica, a palavra é recriadora e é necessário ter “ouvidos para ouvir”. A palavra é, então, palavra operante como palavra de Deus, o germe indubitável do “creio para poder entender” de Santo Agostinho e da tradição cristã da filosofia medieval que substitui definitivamente a palavra mítica sem fugir da transcendência. Pureza e perigo No seu livro Pureza e Perigo, Mary Douglas faz uma reflexão sobre os sentidos e conexões entre pureza, poluição e perigo em “sociedades primitivas”. Para ela, pensar sobre pureza

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implica assimilar a poluição como experiência correlata, e em seguida, observar nesta correlação, entre pureza e poluição, o perigo à continuidade das estruturas de um sistema social, ou seja, defende que quando em uma sociedade comportamentos, ações, ideias, categorias sociais e instituições são ordenados, são classificados como puros ou impuros, de modo a evitar o perigo da desestabilização social. O grau de organização e de estabilidade de uma sociedade reflete o nível de consenso e legitimidade alcançado pela ordenação e hierarquização de experiências, puras ou impuras, em si mesmas não unitárias, inerentemente desordenadas. Nesse sentido, o puro, o poluído e o perigoso são classificações simbólicas atribuídas a práticas sociais e situações que fazem sentido para o sistema social estabelecido e que legitimam a ordem hierárquica, o poder de arbítrio de instituições e dos sujeitos que as representam de fato e de direito, e que por isso são hegemônicos. Não há pureza ou impureza absoluta, as quais existem aos olhos de quem as vê, pode arbitrar e constituir verdade. A sujeira ofende a ordem de quem vê, arbitra e persegue a sujeira quando tinge um ambiente; persegue a doença, criando normas para se escapar do contato com a mesma; persegue os grupos marginais, excluindo-os, reprimindo-os ou mesmo exterminando-os. Não há nada de amedrontador ou irracional no evitar a sujeira: é um movimento criativo, um esforço para relacionar forma e função das coisas, ideias e sentimentos, fazer da experiência uma unidade, uma vez que sexo, necessidades fisiológicas, impressões de objetos, sensações ou emoções, diferenciações entre sagrado ou profano são realidades movediças que precisam ser orientadas coletivamente. É um perigo para o sistema social repartir o poder de simbolizar a vida com aqueles cujos caracteres e ideias projetadas são ambíguos e anômalos, ou seja, não se enquadram na ordem social vigente. O corpo humano possui formas variadas, assimétricas, interior e exterior, orifícios de entrada e saída de fluidos, excrementos e objetos; as margens físicas são margens de ideias, de experiências físicas e emocionais, sociais e culturais. O sagrado e a dessacralização A história das crenças religiosas no Ocidente tem experimentado um eclipse gradual da

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experiência com o sagrado. Assistimos, no Ocidente, o avanço do profano materializado na institucionalização massiva das religiões e no progresso autônomo da racionalidade e da utilidade científico tecnológica. A mentalidade desacralizadora iluminista abriu o caminho para uma época pós-religiosa, uma etapa que não só a religião tornou-se desnecessária, mas também considerada hostil ao desenvolvimento e a justiça. O programa ideológico da Revolução Francesa, por exemplo, deixará a religião de lado, mas a substituirá por outras crenças totalizadoras: o culto do prazer, encarnado no bem-estar trazido pela ciência e pelo comércio o credo racionalista e a confiança cega no progresso indefinido. O indivíduo livre foi assim comprometido nas transformações políticas e sociais. A religião foi afastada e vista como incapaz de dar respostas às perguntas pragmáticas, resultando num mundo que foi rapidamente secularizado. No interior da filosofia alemã, a religião, vista como mistério da interioridade, será objeto especial de reflexões de alguns pensadores. Para Manuel Kant, ultrapassada a esfera do conhecimento fenomênico, se a existência moral responde à pergunta: “Que devemos fazer?”, a vida religiosa, por sua vez, responde a uma inquietude diferente: “Que podemos esperar?”. O conteúdo fundado nessa pergunta é facilitado por uma “religião pura”. Esse é o correlato da fé racional filosófica a que se chega reflexivamente pelo exame do uso da razão em sua função prática, já que a vida moral exige uma fé inteiramente racional. Se o sujeito moral, ao obedecer aos imperativos práticos da razão, negar a existência de Deus, cairá em contradição consigo mesmo, pois somente Deus pode garantir que a ação moral neste mundo não esteja destinada ao fracasso. Trata-se, pois, de uma fé dinâmica que coincide com a ação racional do homem moral. Deus é, assim, mais que uma visão do homem, sua aspiração, um incondicionado possível que não pode ser considerado objeto e que abona o caráter de universalidade que lhe confere o caráter de a priori da fé racional, sua condição de possibilidade dentro dos limites razão pura, experimentado humanamente como satisfação incompleta. Nesse sentido, a vida religiosa é um aspecto essencial da existência humana, e as condições de sua possibilidade surgem da análise mesma da razão segundo funciona praticamente a fé do homem livre em Deus. A religião está ligada à conduta ética. É uma disposição de perfeição confiada

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da pessoa que admite que a lei moral regulada pelo imperativo categórico é expressão da vontade de Deus. Friedrich D. Schleiermacher, em seus Discursos sobre a Religião, aprofunda o conceito de religião como “sentimento de dependência absoluta”. Entre os sentimentos humanos, há um sentimento que é cósmico, que indica a situação do homem no mundo. É um sentimento de relação com o universo e o ilimitado, pelo qual o homem tem consciência de sua dependência incondicionada ante o infinito. Mas esse sentimento cósmico é religioso e, além disso, revela o absoluto no fundamento da subjetividade humana e aproxima os homens ente si, constituindo-os em pessoas e em comunidades religiosas. Hegel enfoca o fenômeno religioso do ponto de vista da crise, da instituição e do sentimento. A existência religiosa particular é alienante quando torna o indivíduo estranho a si mesmo; ao contrário, se o integra, torna a pessoa a si e une a totalidade de sua vitalidade subjetiva ao devir da sociedade e cultura do tempo, ou seja, a religião reconcilia o homem com o Espírito Absoluto autoelevando a vida finita à vida infinita pelo esvaziamento divino e revelação interior de Deus. A religião conserva uma afinidade profunda com a filosofia, privilégio que compartilha com a arte. Ela conduz à verdade, mas se mantém em uma etapa inferior da consciência, sob a forma de representações, e precisará superar esse estado tomando consciência de si mesma, objetivo que só alcançado pela filosofia da religião, para que na identidade absoluta de sujeito e objeto, a filosofia possa abolir o que pesa à religião como união incompleta. Para Karl Marx, a religião não é a expressão da essência humana, pois nela o ser humano não se conhece, já que ela se transforma num véu místico que a separa da realidade. Marx identifica o ser humano com o mundo do ser humano, com o estado e a sociedade. Não se fala sobre o ser humano e sim sobre o mundo do ser humano. Com isso, se altera de forma radical o quadro epistemológico dentro do qual o fenômeno religioso deve ser compreendido. A religião, sendo uma consciência invertida do mundo, é falsa, pois nela só há ilusão. Ela não merece ser submetida a nenhum processo de interpretação, pois tem uma função teórica, legitimatória e uma função emocional e, portanto, é produzida por uma realidade repressora.

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A religião ou a alienação ideológica (religiosa) é um sintoma da enfermidade social, porque não se pode penetrar no mundo das relações sociais por meio da religião; é destituída de uma possível importância política. A alienação religiosa é de segunda ordem, uma atividade crítica que se entende como um fim em si mesma, que pressupõe que, uma vez abolida a ilusão, o mundo se transformará. Mas ilusões só existem em situações que exigem ilusões. A alienação religiosa é a expressão ideal de uma alienação material. Marx percebeu e entendeu que uma religião que não abarca a transcendência deveria ser chamada de política. Sigmund Freud também se preocupou com o fenômeno religioso. Em 1894, apresentou uma nova ideia à teoria das enfermidades nervosas, a concepção de neurose obsessiva, que se caracteriza por episódios compulsivos que envolvem o paciente tanto no que se refere a sua mente quanto a sua conduta. O sujeito, por seus complexos causados pela repressão, fica paralisado diante dos desejos internos e os que, de fora, o incitam. Assim, de forma inconsciente e coercitiva, reitera as mesmas condutas. Freud estabelece um paralelo entre comportamento religioso e neurose obsessiva. Examinando a estrutura externa dos atos e esvaziando-os de sua significação, chega a afirmar que a neurose é uma religião pessoal e a religião uma neurose universal. Nesta, estariam se manifestando os complexos mais arcaicos da humanidade; isso não impede de reconhecer que a religião possui uma forte capacidade patogênica para os pacientes neuróticos, que incorporada a comportamentos patológicos colabora para a desintegração da personalidade em formas como o delírio paranoico e as perversões. As noções de inconsciente, de repressão psíquica, de projeção e de sublimação subjazem à interpretação freudiana do ato religioso. Freud insiste também na analogia entre a história do indivíduo e a história da humanidade. O exame da história individual revela indícios que pertencem à história do gênero humano. Há um paralelo entre a proibição do incesto que atua com vigência em toda pessoa e os tabus e obrigações que derivam da pertença ao mesmo clã totêmico. A ressonância obscura de um homicídio ou delito original se impõe ao indivíduo. A história de Édipo pode constituir-se no paradigma estrutural de toda uma rede de

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comportamentos impulsivos e afetivos da família. A partir da mesma perspectiva, o vocabulário religioso, que se expressa como a perda do paraíso, castigo e culpa, juntamente com sexo, pecado e redenção, é igualmente comum ao analista, e é possível que a religião, apesar de sua utilidade, venha a ser superada, graças à evolução e progresso da humanidade. Desaparecimento ou vitalidade do sagrado Max Weber descreveu os processos de Modernização do Ocidente. Quando fala da burocratização, vê nela uma perda de liberdade; quando fala do desencantamento do mundo, vê neste desencantamento uma perda de sentido. Ao mesmo tempo, é de Weber que vem a famosa afirmação de que o moderno reduziu os seres humanos à condição de hedonistas sem coração e especialistas sem cérebro. Weber assinalou esse processo em curso no Ocidente, mas as realidades que vivemos atualmente só parcialmente dão razão a Weber. O desencantamento do mundo já aconteceu e experimenta seu ocaso. De novo os deuses povoam a terra criando um Olimpo novo e poderoso. Mas a massificação e a redução da experiência vital de homens e mulheres, por meio da burocratização e da criação de aparelhos e aparatos de produção e reprodução do poder em variadas esferas, em uma ideologização permanente por meio de práticas de sujeição e da produção de súditos, incluindo os aparatos religiosos de cooptação legitimadora, confirmam as previsões weberianas. A discussão sobre Modernidade e Pós-modernidade continua. A variedade de opiniões e conceitos sobre o que é uma e outra, a indeterminação histórica sobre as origens de ambas, apenas confirma o fato de que se trata de uma discussão sobre em era que vivemos. Dietrich Bonhoefer, do fundo de sua prisão nazista, colocou com veemência a questão: “Como falar de Deus num mundo adulto?” Boa parte, senão todo o esforço da teologia moderna se direcionou para buscar respostas a esta questão. A reflexão teológica sobre a fé é uma hermenêutica da relação necessária entre o que afirmamos e o que praticamos. É preciso romper com a perspectiva imposta pela Modernidade que, privilegiando um dos sujeitos emergentes do processo histórico dos últimos três séculos - a burguesia -, cativou as Igrejas e manteve aprisionada a Palavra de Deus.

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Uma civilização urbana com megalópoles e seus problemas, com fragmentação, anonimato, velocidade dos acontecimentos e a perda do sentido de comunidade caracteriza hoje a sociedade. À semelhança de conjunturas históricas passadas, as Igrejas e suas teologias foram se reformulando em função dos novos valores que iam emergindo e se impondo a elas pelas novas realidades socioculturais em que se encontravam aprisionadas, razão do surto de novas expressões eclesiásticas que respondem às novas visões de mundo vigentes, com seu culto ao individualismo e à solução de problemas pessoais independentemente de suas motivações sociais. O poder aparentemente insuperável do neoliberalismo globalizante, que transforma tudo em mercadoria, até os bens religiosos mais caros de todas as culturas, parece ser uma prova disso. Mas a incapacidade das Igrejas de resistirem a esse processo ao longo dos séculos da Modernidade, dando a legitimidade religiosa pedida pelas diferentes articulações sistêmicas, segundo as demandas de cada conjuntura histórica, parece encerrar as práticas eclesiais e as formulações teológicas que lhes seguiam, em uma outra “gaiola dura como aço”, neutralizando a força histórica do Evangelho.

Atividade de autoestudo 1. Faça uma pesquisa sobre a vida do teólogo alemão Dietrich Bonhoeffer e descreva o que ele entende por secularização.

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CONCLUSÃO Escrever sobre ciências da Religião tem sido um desafio prazeroso. Rever e repensar todos esses conceitos torna-se um exercício que desenvolve o aprendizado e o conhecimento e envolve o nosso dever de pesquisar sempre. Provavelmente, para você, caro(a) aluno(a) do curso de validação em Teologia, este foi um primeiro contato com diferentes autores que tratam do fenômeno religioso a partir de outras abordagens, com as quais não estamos muito familiarizados enquanto teólogos cristãos, pastores, missionários e líderes em nossas Igrejas. Sei também o quanto pode ser difícil para alguns assimilar essa diferença de prisma, aparentemente brusca, entre a abordagem teológica conservadora e a abordagem das Ciências da Religião. Contudo, quero incentivá-lo(a) a dar a devida atenção e valor às Ciências da Religião, sei que é difícil, uma vez que tratamos principalmente com a Teologia. Mas, o nosso objetivo é desafiá-lo(a) a buscar uma conciliação inteligente e equilibrada a fim de que a produção teológica - munida dos suprimentos históricos comparativos, sociológicos, antropológicos, filosóficos e teológicos, psicológicos, fenomenológicos que as Ciências da Religião oferecem - seja enriquecida, ganhe relevância e cumpra com maior eficiência sua tarefa religiosa, social e humana. Tratar com a religiosidade é algo sublime, principalmente na área pastoral. Não são muitos os homens e mulheres habilitados para essa tarefa que acontece no corpo a corpo, e têm a incumbência de interferir no cotidiano e na vida das pessoas a fim de que se tornem melhores e vivam com mais intensidade sua espiritualidade. Portanto, bem sabemos o quanto ela requer cuidado, atenção, dedicação, respeito e muito conhecimento para que a fé mantenha sua pertinência a respeito do sentido que dá a existência de todos nós. Valer-se das Ciências da Religião como um instrumento de aproximação da essência humana por um domínio mais apurado do dinamismo do fenômeno que nos caracteriza como humanos é aproximar-se da essência de todos nós, pois a própria religião nos faz humanos. A seguir, alguns textos que poderão aguçar a curiosidade pelo estudo da religião a partir das ciências. Boa leitura!

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ANEXOS TEXTO 1 DEFINIÇÕES SOCIOLÓGICAS DA RELIGIÃO Definições não podem ser por sua própria natureza, “verdadeiras” ou “falsas”; podem apenas ser mais ou menos úteis. Por esta razão, não tem muito sentido discutir em torno de definições. Porém, caso haja discrepâncias entre definições num dado campo, tem sentido discutir suas respectivas utilidades. É o que nos propomos fazer aqui, com brevidade apropriada a assuntos menores. Na verdade, pode-se alegar, pelo menos no campo da religião, que mesmo definições baseadas em pressupostos patentemente errôneos têm uma certa utilidade. Por exemplo, a concepção de Max Mueller da religião como uma “doença da linguagem” (Essay on Comparative Mythology, 1856) está baseada em uma teoria racionalista da linguagem muito inadequada, mas ainda é útil ao apontar a linguagem como o grande instrumental do homem para construir o mundo, que atinge seu máximo poder na construção de deuses. Não obstante o que a religião possa ser além disso, ela é um universo de significado construído pelo homem, e esta construção é feita por meios linguísticos. Um outro exemplo: a teoria de Edward Tylor sobre o animismo e sua concepção da religião baseada nesta teoria (Primitive Culture, 1871) partem da noção inaceitável do homem primitivo como um tipo de filósofo imperfeito e, além disso, têm uma ênfase muito estreita na alma como categoria religiosa básica. Todavia, ainda é útil relembrar que a religião implica a busca pelo homem de um mundo que esteja relacionado com ele, e que será “animado” neste sentido amplo. Em suma, a única atitude sensata com relação a definições é a de tolerância. Max Weber, no início de sua discussão da sociologia da religião em Wirstchaft und Gesellschaft, assumiu a posição de que uma definição da religião, caso seja possível, só poderia vir no final, e não no começo, do tipo de tarefa que ele se impusera. Não é de surpreender que ele nunca tenha chegado a este final, de sorte que o leitor da obra de Weber acerca da sequência correta entre definição e pesquisa, na medida em que só se pode proceder a esta última no âmbito de um quadro de referência que define o que é e o que não é relevante para a pesquisa. De fato Weber segue a definição do escopo da religião que era corrente na Religionswissenschaft do seu tempo. Do contrário, por exemplo, ele poderia ter discutido a “nação” ou o oikos sob ESTUDOS EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO | Educação a Distância

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o tópico de sociologia da religião, ao invés dos outros tópicos sob os quais aparecem em Wirtschaft uns Gesellschaft. Parece-me que a principal consequência de se evitar ou adiar definições em ciência é que ou o campo de pesquisa se torna impreciso (o que, com certeza, não é o caso de Weber), ou opera-se com definições implícitas em lugar das explícitas (o que, creio eu, é o caso da obra de Weber). A elucidação parece-me o caminho mais desejável. Emile Durkheim, em The Elementary Forms of the Religious Life, começa com uma importante descrição dos fenômenos religiosos, particularmente em termos da dicotomia sagrado/ profano, mas termina com uma definição da funcionalidade social geral da religião. Nisso, ao contrário de Weber, ele foi contra a tendência da erudição Religionswissenschaftliche do período, que tentava definir a religião substancialmente de uma ou outra forma. Pode-se dizer também, em vista disso, que a abordagem durkheiminiana da religião é mais radicalmente sociológica que a de Weber, isto é, a religião é entendida como um “fato social” no preciso sentido durkheiminiano. A alternativa entre uma definição substancial ou funcional é, é claro, uma constante em todos os campos da análise sociológica. Argumentos plausíveis podem ser aventados para cada opção e, na verdade, um dos argumentos mais fortes para as definições funcionais é que elas permitem uma linha de análise sociológica menos ambígua e, portanto, mais “clara” ou mais “pura”. Não estou de forma alguma interessado em tomar uma posição doutrinária a favor de definições substanciais sempre e em qualquer lugar, mas apenas em defender a escolha de uma definição substantiva aqui. A tentativa mais convincente e ousada para definir a religião em termos de sua funcionalidade social é a de Thomas Luckmann (em seu Das Problem der Religion in der modernen gessellschaft, 1963, versão inglesa, The Invisible Religion, 1967). Essa tentativa é claramente de tradição durkheiminiana, embora ampliada por considerações antropológicas gerais que vão bem além de Durkheim. Além disso, Luckmann diferencia cuidadosamente sua concepção de funcionalidade daquela do funcionalismo estrutural contemporâneo. A funcionalidade baseia-se em alguns pressupostos antropológicos fundamentais e não em constelações institucionais particulares, historicamente relativas e que na podem ser alçadas validamente a um status de universalidade (como, por exemplo, fazem os sociólogos da religião peculiar à cultura ocidental). Sem descermos aos detalhes de uma discussão extremamente interessante, a essência da concepção luckmanniana da religião é a capacidade de o organismo humano transcender sua natureza biológica através da construção de universos de significado objetivos, que obri-

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gam moralmente e que tudo abarcam. Consequentemente, a religião torna-se não apenas o fenômeno antropológico por excelência. Especificamente, a religião é equiparada com autotranscendência simbólica. Assim, qualquer coisa genuinamente humana é ipso facto religiosa e os únicos fenômenos não-religiosos na esfera humana são os baseados na natureza animal do homem, ou mais precisamente, aquela parte de sua constituição biológica que ele tem em comum com os outros animais. Eu compartilho inteiramente dos pressupostos antropológicos de Luckmann (vide nosso esforço teórico conjunto em The Social Construction of Reality, 1966, no qual, logicamente, nós contornamos nossa diferença com relação à definição de religião) e também concordo com sua crítica de uma sociologia da religião fixada na Igreja como institucionalização historicamente relativa da religião. Todavia, eu questiono a utilidade de uma definição que iguale religião e humano tout court. Uma coisa é apontar os fundamentos antropológicos da religião na capacidade humana de autotranscendência; outra, igualá-las. Afinal, existem formas de autotranscendência e concomitantes universos simbólicos muito diferentes um dos outros, não obstante a identidade de suas origens antropológicas. Assim, pouco se ganha, em minha opinião, ao se chamar a ciência moderna, por exemplo, de religião. Se se fizer isso, ter-se-à subsequentemente de definir de que forma a ciência moderna é diferente daquilo que todos chamam de religião, inclusive as pessoas engajadas na Religionwissenschaft, o que coloca de novo o mesmo problema de definição. Acho muito mais útil tentar uma definição explícita de religião desde o começo e tratar as questões de suas raízes antropológicas e de sua funcionalidade social como assuntos separados. É por essa razão que, aqui, eu tentei operar com uma definição explícita de religião em termos de postulação de um cosmos sagrado. A diferença nessa definição, é claro, é a categoria do sagrado, que tomei essencialmente no sentido a que, desde Rudolf Otto, a Religionwissenschaft lhe dá (e que, aliás, Luckmann considera como virtualmente intercambiável com sua concepção do religioso, o que torna ainda mais difícil a diferenciação entre as várias formas históricas de simbolização). Isso não é apenas o caminho conceptualmente, mas, penso eu, permite distinções menos complicadas entre cosmos empiricamente observáveis. Deve-se enfatizar, porém, que a escolha de definições não implica em diferenças na interpretação de desenvolvimentos sócio-históricos particulares. Afinal de contas, suponho, definições são questão de gosto e assim ficam sob a máxima de gustibus.118 118

BERGER, Peter. Op. cit., pp. 181-184. ESTUDOS EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO | Educação a Distância

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TEXTO 2 DIFUSÃO DE NOVAS FORMAS DE RELIGIOSIDADE É como acordar numa manhã e encontrar um mundo que não é mais o de sempre, familiar, conhecido. É assim que ocorre e está ocorrendo no mundo religioso a respeito de nossas tradições, de nossos códigos convencionais estabelecidos e consolidados por toda uma tradição. O mundo religioso era uma parte das nossas seguranças das nossas conquistas históricas, tradicionais, culturais; até essa porção de mundo agora está mudando e está se transformando com uma aceleração insuspeitada. Tratar-se de uma mudança que não é indolor: comporta amplas transformações em nossos costumes; um pequeno choque psicológico para quem vivia de suas próprias certezas assimiladas e induzidas por meio da própria biografia religiosa e da própria tradição histórica. Estávamos acostumados a falar com os não-crentes e os não praticantes, mas não estávamos acostumados a ouvir outras linguagens religiosas ou pseudo-religiosas e não se conheciam, por exemplo, comunidades como Findhorn ou personagens como o Sai Baba de Puttaparthi. O mapa que mantinha fixa a nossa morada e assegurava certa tranquilidade aos nossos sonhos não corresponde mais atualmente ao território ou, ao menos, está mudando profundamente até criar uma sensação de vertigem e de vazio à nossa volta. Não existe mais uma grande religião cristã católica na qual nos sentimos ou nos sentíamos seguros, em nossa casa, uma religião cristã protestante que conhecemos e respeitamos, uma muçulmana, uma hindu, uma judaica e uma religião budista, para citar apenas algumas das grandes religiões que dominaram sem contrastes durante séculos o nosso mundo. O tempo atual nos reserva surpresas bastante amargas, pois nos sentimos quase defraudados no que sentíamos ser uma segurança, um refúgio, uma última praia capaz de nos proteger contra o pluralismo invasor e efêmero das ideias que nos obrigam a caminhar sempre mais sobre a areia movediça do deserto. Hoje, também no campo religioso, somos obrigados a sofrer certa violência em nosso quadro simbólico que antes nos prendia a ele tão estreitamente e agora está destinado a se tornar sempre mais limitado de conteúdos e de referências “objetivas”. Hoje o efêmero da moda, o do particular e o do experimental aliaram-se e passaram a dominar, com nossa grande contrariedade, também naquele mundo que deveria levar os sinais do “eterno”, do “imutável”, da verdade imortal. O presente, portanto, tornou-se ainda mais frágil: é somente um ponto no tempo e na história, um ponto sem ancoragem até do ponto de vista religioso. E isso sobre tudo porque novos movimentos religiosos invadiram nosso terreno, tendo quebrado a solidez

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de nosso quadro de referência.119 TEXTO 3 DEUS E O DIVINO NA HISTÓRIA DAS RELIGIÕES E NA RELIGIOSIDADE CONTEMPORÂNEA Uma religião se constrói sobre a concepção e sobre a ideia de Deus. Tudo parte e converge em direção àquele ponto que é o catalisador indispensável e fundamental da experiência religiosa do homem. Deus é certamente a palavra maior e a mais sublime que encontramos no mundo das religiões, é o centro de qualquer reflexão séria sobre o significado que deve ser atribuído ao sentido da existência humana, é o núcleo de significado em volta do qual gravitam os sentidos que são atribuídos a esta e à outra vida, ao valor do homem, à sua existência, ao seu destino. É evidente, portanto, que dentro ou fora de um contexto revelado o problema de Deus resume todos os problemas do homem e é, então, visto como o último ponto de referência de experiências humanas que ultrapassam todos os tempos e vão além de todas as épocas históricas. As religiões passadas e as presentes não colocam certamente em discussão a existência de Deus ou do divino, pois o divino é o próprio leit-motiv da religião. Não existe religião sem uma concepção do divino e o próprio budismo e jainismo, que para muitos se apresentam como religiões “sem Deus” e receberam a etiqueta de morais filosóficas “atéias”, não são absolutamente esses “monstros” estranhos de mistura entre moral e filosofia, mas na realidade são “religiões” no sentido que normalmente atribuímos ao termo. Negar essa identidade seria como afirmar que o hinduísmo não é uma religião só porque nele não se encontra uma palavra como “religião” que indique a religião hindu. É preciso transpor a cerca semântica que às vezes é somente”nominal” para atingir o cerne de uma religião. Nesse ponto, veremos que a ideia do divino aparece no budismo, não somente na religiosidade popular, mas também no budismo das origens como um conceito profundo por meio da concepção do mesmo Anãtman ou da sublime visão do sunyam (vazio) dos místicos budistas que seguem Nagarjuna ou ainda do conceito de dharmakaya do budismo mahayana. O problema, no entanto, que somos chamados a analisar aqui é outro, e explode irreprimível quando experiências diferentes se confrontam e “revelações diversas” vislumbram maneiras 119

Ibidem, pp. 347-348. ESTUDOS EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO | Educação a Distância

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diferentes de pensar no “divino”. Talvez as religiões tenham começado a se dividir, a ficar diferentes, a criar motivos de conflito entre elas quando deram partida à sua visão particular de Deus e do divino. Deus é o primeiro ponto de referência da experiência religiosa e, portanto, é natural que toda confrontação religiosa ocorra em relação a esse nome, ao sentido dessa identidade, a mais sublime e a mais oniabrangente, que se chama Deus ou o divino. Mas quiçá – como acontece na história das religiões – tenhamos de inverter o esquema e observar que toda experiência de Deus e toda linguagem sobre Deus é apenas um feixe de luz que vem do alto e, portanto, não é a experiência humana a captar o divino, e sim o divino que envolve o homem com sua presença e manifesta-se como uma experiência na vida religiosa do homem. Experiência do divino como primeira graça, como luz do alto, como revelação antes da revelação. Na grande e longínqua história das religiões, é exatamente a experiência totalizadora que parece se referir à palavra sânscrita div, que não indica uma pessoa, mas a luz, o brilho do dia, a experiência primordial da vida que se abre à luz; as palavras dies, dyaus, deva, deus, Zeus são todas uma derivação do originário div. Se tal é o esquema inicial, o clichê originário da ideia de Deus, o seu desenvolvimento ligado às religiões históricas apresenta-se muito variado, dificilmente poderá ser levado a uma unidade e mais dificilmente ainda poderá ser colhido numa substancial evolução homogênea daquela primeira experiência prototípica. A partir desse núcleo de diferenciação, tanto se multiplica o conceito de Deus e do divino como se divide e se fragmenta o mundo das religiões.120 TEXTO 4 O ATEÍSMO SARTREANO Como para Feuerbach e Nietzsche, também para o filósofo existencialista francês Jean-Paul Sartre (1905-1980) Deus não têm existência real. No fim de sua obra filosófica L’être ET Le néaunt (O ser e o nada) afirma que “toda a realidade humana é uma paixão, uma vez que ela projeta perder-se para fundar o ser e para constituir, ao mesmo tempo, o ser-em-si que escapa à contingência para ser o seu próprio fundamento, o ens causa sui (o ser, causa de si) que as religiões chamam Deus. assim a paixão do homem é oposta à paixão de Cristo, porque o homem se perde enquanto homem para fazer nascer Deus. mas a ideia de Deus é 120

Ibidem. pp. 377-379.

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contraditória, e nós nos perdemos em vão: o homem é uma paixão inútil” (p. 747). Já que o ser-para-si (ou o ser da consciência) é puro nada, a paixão do homem é ser-em-si. Mas como desejo do ser-em-si (do ser objetivo de fato), a consciência tende para o ideal de uma consciência. Ora este ideal pode chamar-se Deus: “Pode-se dizer assim que aquilo que melhor torna compreensível o projeto fundamental da realidade humana é que o homem é o ser que projeta seu Deus. Sejam quais forem depois os mitos e os ritos da religião considerada, Deus é sensível em primeiro lugar ao coração do homem como aquilo que o anuncia e define no seu projeto último e fundamental. E se o homem possui uma compreensão pré-ontológica do ser de Deus, esta não lhe é conferida nem pelos grandes espetáculos da natureza nem pela potência da sociedade; mas Deus, valor e objetivo supremo da transcendência, representa o limite permanente a partir do qual o homem se faz anunciar o que ele próprio é. Ser homem é tender a ser Deus; ou, se se prefere, o homem é fundamentalmente desejo de ser Deus” (p. 691). Mas não passa de um Deus falido. Na conferência sobre O existencialismo é um humanismo tenta responder às objeções feitas à nova filosofia: a) apresenta uma visão sombria da vida e escandaliza com seu naturalismo, b) que acentua um pessimismo negro e desumano. Responde a tais objeções dizendo que aos existencialistas é comum a tese: “a existência precede a essência”. Enquanto os ateus do século XVIII ainda apresentavam o homem como possuidor de natureza humana, Sartre diz: “O existencialismo ateu, que eu represento, é mais coerente. Afirma que, se Deus não existe, há pelo menos um ser no qual a existência precede a essência, um ser que existe antes de poder ser definido por qualquer conceito: este ser é o homem” (Os pensadores, PP 5-7). Assim, “não existe natureza humana, já que não existe um Deus para concebê-la” (p.6). “O homem nada mais é do que aquilo que faz de si mesmo: é esse o primeiro princípio do existencialismo. É também a isso que chamamos de subjetividade” (p. 6). Sartre logo faz uma declaração sumária: “De início, o homem é um projeto que se vive a si mesmo subjetivamente ao invés de musgo [...] e o homem será apenas o que ele projetou ser” (p. 6). Será isso através de decisão consciente e livre, porque o homem é liberdade. O homem escolhe-se a si próprio, seu próprio ser, “para criar uma imagem do homem tal como julgamos que ele deva ser”. O bem depende dessa escolha. Por isso a consequência é que “o homem é totalmente responsável por sua existência” e de todos os homens. Se não há natureza humana universal, para Sartre, contudo, existe uma condição. ESTUDOS EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO | Educação a Distância

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O objetivo de Sartre neste escrito programático é apresentar o existencialismo em estilo popular, como humanismo, definindo o homem pela ação, pondo seu destino nele próprio: “O homem só existe à medida que se realiza; não é nada além do conjunto de seus atos, nada mais que sua vida” (p. 13). O humanismo existencialista de Sartre, todavia, é ateu. O homem projeta-se continuamente e persegue fins transcendentes para poder existir. Mas esta transcendência constitutiva do homem não é relação com Deus: “O existencialismo nada mais é do que o esforço para tirar todas as consequências de uma posição ateia coerente [...] não é tanto ateísmo no sentido em que se esforçaria por demonstrar que Deus não existe. Ele declara, mais exatamente: ainda que Deus existisse, nada mudaria; eis nosso ponto de vista” (p. 22). Sartre nega Deus para afirmar o homem, de maneira semelhante a Nietzasche. Seu ateísmo também é postulatório, ou seja, não racionalmente provado. Depois de negar dogmaticamente Deus e toda a realidade suprassensível na base de sua filosofia, faz do homem mera “paixão inútil”. Com seu niilismo e sombrio pessimismo deriva o ser do nada e o homem defronta-se com a única opção do absurdo. A explicação do homem e do mundo a partir do nada só pode provocar a náusea.121 TEXTO 5 ATEÍSMO E EXPERIÊNCIA DE DEUS, HOJE Que a sociedade atual vive uma irreligiosidade difusa e certo ateísmo de fundo é uma constatação de fato que pode ser amplamente documentada; e isso apesar de em todo lugar na sociedade e na cultura haver fermentos novos e novos fenômenos de redescoberta do valor das religiões. Ainda que tal constatação seja inegável, e o fenômeno da irreligiosidade e do ateísmo continue a se assentar sempre mais nos setores da sociedade, não parece fácil, no entanto, entender a intensidade e os contornos adquiridos por essa realidade que, em alguns contextos sociais, parece se alastrar ainda hoje como mancha de óleo, correndo o perigo de mudar o aspecto global das instituições e dos costumes de populações inteiras. Na realidade, o ateísmo que se insinua entre nós, se atentamente examinado, parece frágil em 121

ZILLES, Urbano. Op. cit., pp. 185-186.

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sua estrutura por o vermos emergir não como uma escolha consciente e meditada, e sim como fruto de uma situação histórica e cultural não suficientemente refletida e, no mais das vezes, aceita apenas no nível do inconsciente. Além disso, trata-se de um ateísmo que, mesmo na negação de Deus, conjuga-se ainda com certa ideia da transcendência; e assim nunca se apresenta como um fenômeno normal e irreversível, enquanto a tese oposta (“Deus existe”) está sempre mais presente implicitamente e muito bem enraizada. Os homens, até os mais arrojados, têm dificuldade em se tornar ateus. Outra característica pela qual o ateísmo atual parece frágil está na sua origem, sempre ligada a motivações indiretas e induzidas por outros fatores que não dizem respeito diretamente à afirmação ou à negação de Deus. Assim, toda vez que se realiza uma análise das escolhas ateias, reparamos que estas se sustentam em motivos políticos, sociais ou psicológicos que deslocam o problema para outro plano: o plano inclinado dos problemas do homem na sociedade, onde o que é diretamente contestado não é Deus, mas o homem e o seu agir. Enfim, poderíamos observar que o ateísmo atual, exatamente pelas características anteriormente apresentadas, não é “ímpio”, assim como não assume nenhum tom de revide ou de vingança em relação à religião; o ateísmo de hoje, que até não ousa chamar-se por esse nome, não nasce de uma recusa arrogante, mas antes de uma humilhação sofrida e de um sentido de impotência. Não está sob o signo da vitória e da emancipação; nasce, ao contrário, de uma espécie de resignação e cansaço, como se Deus se fizesse esperar demais. Essas poucas observações iniciais, que permitem entender toda a ambiguidade da negação de Deus na sociedade atual, sugerem também os critérios conforme os quais proceder a uma análise desse fenômeno e nos advertem que, antes de pronunciar um juízo de condenação, é necessário entender as motivações profundas da cultura, os elementos presentes de caráter social e psicológico, a mesma dimensão religiosa do homem que, precisamente por viver da ideia da transcendência, precisa reencontrar essa ideia em sua pureza e profundidade não mundana. Diria, portanto, de maneira abrangente, que o problema do ateísmo contemporâneo reflete fundamentalmente uma indecisão do homem de hoje em relação a si mesmo, antes ainda que em relação a Deus. Uma indecisão que, além dos motivos apresentados anteriormente, baseia-se sobre a consciência sempre mais profunda dos seus limites de conhecimento, que não permitem chegar à crítica e ingenuamente à afirmação da transcendência entendida como ESTUDOS EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO | Educação a Distância

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incomensurabilidade absoluta em relação à realidade do mundo. Além disso, uma indecisão que, sustentada por um leque amplíssimo de motivações, acaba conduzindo o homem a uma situação tão difícil que ele fica hesitante e desconcertado ou, até, renuncia inteiramente a fazer referência a Deus com a esperança secreta, no entanto, que antes ou depois Deus mesmo se revele e “se torne presente” no mundo.122 TEXTO 6 A FUNÇÃO DA RELIGIÃO NO PENSAMENTO DE RUI BARBOSA Andrea Braga Fonseca Muitas pessoas, das mais diversas especialidades, já falaram de Rui: Rui jornalista da República, Rui escritor e orador, Rui advogado, Rui renovador da sociedade, Rui ministro da fazenda, Rui diplomata, Rui e a educação. São tantas as facetas e tantos os caminhos por onde seguir. Essa variedade de estudos decorre do fato que Rui Barbosa ter transmitido uma imensa obra sobre o espírito de uma época na qual a sociedade brasileira buscava harmonizar-se com as demais nações consideradas “modernas”. Este artigo tem como objetivo englobar uma outra faceta de Rui – a função da religião no pensamento de Rui Barbosa. Pensamento esse que irá influencia o seu próprio liberalismo. O delineamento deste trabalho se deu a partir das pesquisas realizadas para a elaboração de minha dissertação de mestrado. Quando trabalhei os conceitos de progresso e modernidade no pensamento de um grupo protestante histórico no Brasil, percebi que Rui Barbosa sempre era citado no Jornal Batista, semanário oficial deste grupo. Para esse grupo, ainda que Rui Barbosa continuasse católico na prática até o fim de sua vida, sua teologia esteve muito próxima do pensamento protestante, tanto no que se refere à relação entre igreja e Estado quanto à natureza do relacionamento homem-Deus. Além do mais, boa parte da vida política de Rui Barbosa foi uma tentativa de reproduzir no Brasil a experiência democrática da Inglaterra, o ímpeto reformador dos Estados Unidos. Rui acreditava que só a descentralização administrativa e política, emprestando maior autonomia às províncias, dando cabo dos vícios burocráticos da centralização imperial, encaminharia o Brasil para uma etapa de progresso acelerado. Por isto, não é mera coincidência que os protestantes elegessem Rui seu maior tribuno. Também não foi por acaso que o clero brasileiro o elegeu como seu inimigo quando 122

TERRIN, Aldo Natale. Op. cit., pp. 71-73.

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ele se fez candidato à presidência da república. Este trabalho faz uma leitura dos escritos de Rui com o objetivo de responder algumas questões, tais como: Como Rui Barbosa viu a função da religião numa sociedade em mudança? Como ele construiu o seu conceito de Liberalismo sendo cotejado por sua visão religiosa? POR QUE RUI? Os primeiros protestantes brasileiros almejavam a conversão de todos os cidadãos como porta de entrada para a civilização, contra a barbárie do atraso. O Brasil foi pensado como tendo sido forjado pela ausência criada pela presença de uma Roma distante. A chegada do protestantismo foi interpretada como uma ação do espírito de Deus sobre esta cultura, para redimi-la e impulsioná-la ao progresso. Assim o nascimento do protestantismo no Brasil faz parte também de um movimento histórico, ligado à descoberta do continente latino-americano, como natureza a ser explorada, terra a ser cultivada, cultura a ser dominada e povo a ser convertido. Os primeiros pregoeiros das verdades protestantes (apologistas todos de confissão e colportores a maioria por profissão) apresentaram-nas como capazes de levar o Brasil ao tão desejado progresso social, político e econômico, a partir da disseminação da Bíblia e da implantação de uma nova moral. O pressuposto básico era que o catolicismo romano era o responsável pelo atraso da nação, pensamento compartilhado por alguns autores europeus, como o economista belga Emile Laveleye, para quem o protestantismo e sinônimo de progresso. No Brasil a tese de Laveley foi lida por Rui se constituindo da seguinte forma: o protestantismo é um aliado da democracia e do progresso, porque implica numa norma mais elevada de moralidade pessoal, trazendo para os féis consequentes benefícios em termos de saúde e prosperidade individuais, é a base da democracia; por sua ênfase no livre exame da Bíblia e na abertura de escolas, promove a educação, com inevitável progresso para a nação como um todo. Rui achava que o regime ideal, para o Brasil devia nivelar todas as confissões religiosas: “o crente emancipado na igreja, a igreja livre no Estado, o Estado independente da igreja”. Rui apresentava assim a uma perspectiva religiosa um pouco diferenciada do catolicismo vigente. Na época de Rui intensos combates a respeito da religião foram travados. Podemos citar como exemplo o livro intitulado “O Papa e o Concílio”(1) do historiador excomungado Johann Joseph ESTUDOS EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO | Educação a Distância

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Ignaz von Dolinger, denominado Janus. Na Europa em função desses intensos debates surgiram dois grupos distintos: 1o – centrado na crença no progresso como regenerador da sociedade, encontradas em países de formação protestantes (Alemanha e Inglaterra). 2o – a luta cada vez mais difícil da igreja católica-romana pela permanência de valores tradicionais, mesmo que opostos a linha do progresso científico. Em a “Queda do Império” (2),o que estava em jogo para Rui era a relação entre o episcopado brasileiro e o poder executivo: “a existência, a autonomia, a supremacia terrena do Estado”. Dentro deste debate é que o Brasil moderno começou a ser discutido. Tomando parte nessas visões estava o positivismo, a maçonaria, o catolicismo “liberal”, o catolicismo “ultramontano” e, o protestantismo. A questão era – que modelo seguir? O anglo-norte americano de formação protestante, ou o francês de mentalidade a-religiosa ou o ibero-americano, de cunhagem católica? Rui entra nessa discussão porque queria também pensar um Brasil novo, mas continuou a ser católico por formação e convicção, embora para muitos os caminhos que conduziam ao progresso não poderiam ser seguidos pela fé. Essa não era a posição de Rui, o que faz com que ele seja tão bem recebido entre os protestantes, especialmente os batistas. No caso de Rui a fé não se tratava em um obstáculo ao progresso, como se lê na afirmação seguinte: Muitas vezes esperei descobrir nos recessos da ciência [...] a chave para os arcanos do universo, o alimento são, completo e abundante para o espírito , o balsamo genuíno para as magoas do coração. Deus, pois, estendeu seu braço para mim e crestou a flor do meu orgulho. Então, achei os livros mudos, a razão muda e a filosofia estéril. Chorei e abracei-me à cruz. Foi a fé que me salvou (3).

Rui apesar das críticas ao catolicismo, jamais rompeu com a Igreja Católica. Mas ele próprio acrescenta: “O catolicismo, no entanto, não associa à religião a liberdade” (4). Em sua concepção, não sabia conceber o homem sem Deus: “a necessidade das necessidades (5)” nem visualizava uma nação civilizada e ateia. Para ele fé e progresso podem andar juntos sem problemas, distinguindo a função da Religião e da Ciência, mas ao mesmo tempo se entrelaçando.

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Não me acolhi entre as filosofias que fez da ciência a grande negação. Percorri filosofias; mas nenhuma delas me saciou; não encontrei repouso em nenhuma [...] Vejo a ciência que afirma Deus; vejo a ciência que imprescinde de Deus. A mesma fé que nos arrasta da atribulação da fé ao exclusivismo científico, pode reconduzir-nos do radicalismo científico à placidez da fé (6).

Ou "Em toa a parte, até hoje, tem sido o sentimento religioso a inspiração, a substância, ou o cimento da instituição livre, onde quer que elas duram, enraízam-se e florescem (7)." Na concepção de Rui Barbosa a crença não prejudicaria o desenvolvimento intelectual do povo. E é justamente a junção entre ciência e fé que possibilitariam definitivamente a liberdade e a igualdade. Diante dessa conclusão ele chega a um ponto central – o catolicismo romano conspira – “Contra a ciência e a consciência, entre a história e o evangelismo, entre a liberdade e o progresso” (8). Rui Barbosa não deixa de ser católico, mas ele se levanta contra o catolicismo “ultramontano” e rejeita o dogma e a superstição que envolve esse catolicismo e que atrapalha o desenvolvimento do progresso da nação. [...] o ultramontanismo essa bandeira de reação, intransigente como a fé que ele não nutre, e astuta como interesse político, que é o seu único alimento e a sua moral única [...]. de dous elementos se compõe o ultramontanismo, ambos inacessíveis à razão: um, a fé supersticiosa, que só se rende às alucinações e às pieguices do sobrenatural, recursos de que não disponho; o outro, os interesses de partido, que em nenhum são tão cegos como no clerical. Meu fim único é provar que a liberdade estaria perdida, se contasse com a milícia fiel desses arraias (9).

Com essas posições acaba sendo atacada como materialista e ateu, mas o que se percebe em seus escritos é o contrário: “...o deus das minhas indignações, era o deus da idolatria e da opressão, o deus da hipocrisia, imobilidade, o deus das mundanidades e das ambições temporais”.(10) Sua resposta a Affonso Celso foi clara: “[...] nunca deixei de ser cristão” (11). Era o catolicismo ultramontano o inimigo do progresso moral, político e econômico do Brasil, razão porque ele dizia que o problema religioso do Brasil era um problema político. A doutrina que o catolicismo ultramontano professa, e cuja rejeição constitui uma heresia monstruosa, incomparável com a felicidade eterna é que a Igreja é a lei, o Estado a força, a Igreja o direito, o Estado o braço; a Igreja a inspiração divina infalível e imutável, o Estado a cegueira animal, caduca e inevitavelmente serva (12).

A posição de que fé/ciência/progresso são compatíveis é assumida apos o exílio na Inglaterra. ESTUDOS EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO | Educação a Distância

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Em suas cartas Rui deixa claro sua admiração pela Inglaterra e a possibilidade de conciliação da religião com a razão. Como a seguinte citação: É o inglês com o seu senso religioso, o seu senso comercial e o seu senso político que nos chama a atenção[...] Pelo seu senso religioso que fez o seu caráter excepcional. É a condição fundamental, por onde se habilitou a possuir o mundo... pelo senso político, resultado do seu complexo senso religioso... criou a arte sem precedentes de organizar e consolidar as conquistas... O progresso britânico é profundamente moral, essencialmente religioso. (13).

Isto provocaria uma importante ruptura em seu racionalismo político, pois uma das funções políticas da educação seria a sua capacidade de moralizar (racionalizar) as massas que iriam participar da democracia. Em seu exílio ele constatou que a religião tinha uma certa compatibilidade com o espírito científico (principalmente depois que leu – “Os fundamentos da crença de Balfour"), ele aceitaria a hipótese de que as classes “incultas” poderiam, receber a instrução via igreja. Pelas suas posições muitos o criticavam com um “inglês desterrado entre bugres”. Inclusive por aceitar mal o lado não europeu de nossa cultura. R. Magalhães Jr. cita texto de Rui em que se refere aos chineses: “Pouco mais vantagens lhes levamos do que as da origem européia e dessa superioridade de humanidade e cristianismo, com que encobrimos a miséria orgânica da nossa degeneração”. A degeneração advinha da mestiçagem, ideia de amplo curso em fins do século XIX. Um menosprezo a cultura popular, principalmente suas influências africanas. Dessa forma, Rui acreditava que era necessário um aperfeiçoamento social e político do Brasil por meio de um longo processo educativo e categórico, quando declarou: “A nosso ver, a chave misteriosa das desgraças que nos afligem, é esta e só esta: a ignorância popular, mãe da servilidade e da miséria” (14). Através do ensino poderia ser desenvolvido no aluno a percepção do dever. Assim, todas as funções da escola deveriam estar voltadas na direção da cultura moral que envolve todo o ensino. A ação moralizadora deveria estar presente com vistas à formação do caráter e cultivo de virtudes tais como a valorização do trabalho; o bom emprego do tempo; “o self control”. O cultivo deste sentimento deveria estar associado ao ensino da ciência; da prática, da experimentação, ao contrário da educação Jesuíta que imprime o misticismo e a superstição na cabeça da mocidade. A introdução de uma nova forma de educação faria um importante serviço à cultura dos sentimentos morais. A ciência, para Rui Barbosa, era religiosa e moralizante.

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Está levantado o encontro de Rui com o protestantismo, que desejava estabelecer-se através de uma pedagógica diferenciada, influenciados pela filosofia da Nova Escola difundida na Europa que valorizava a ciência e a prática. Como resultado dessas concepções. O liberalismo religioso de Rui consiste, primordialmente, na compreensão da democracia como sendo a: representação proporcional das minorias, o reconhecimento de que o direito, ainda que seja o de um individuo só, não pode sacrificar-se aos interesses, ainda que seja do povo inteiro; é a sagração do indivíduo, da liberdade da palavra, da liberdade de imprensa, da liberdade de reunião, da liberdade de cultos, da liberdade de trabalho, da liberdade política” (15).

A religião é percebida por ele como algo indispensável da vida humana, e por conseguinte da nacionalidade, uma vez que Deus é percebido como a garantia da liberdade que preconizava. Sua fé passava pelo crivo de um racionalismo moderado e de um tradicionalismo renascentista, uma vez que não seguiu os deístas, na tarefa de depurar o catolicismo daquilo que não passasse pelo cânon da razão, e no projeto de recuperar o original do cristianismo. O catolicismo legítimo para Rui não é o ultramontano, “pois nela a igreja é a lei, o estado a força; a igreja o direito, o estado a dependência; a igreja a cabeça, o estado o braço; a igreja a inspiração divina infalível e imutável, o estado a cegueira animal, caduca e inevitavelmente serva”.(16) Para ele o catolicismo brasileiro não era mais cristianismo, antes era “a mais flageladora de quantas gangrenas morais podem afligir uma sociedade. É pior que uma doutrina; é uma política; um partido, uma permanente solapa às instituições liberais”(17). Nao é por acaso que Rui Barbosa era chamado de “oráculo”dos batistas, nem é acidental que uma foto sua abra os Anais da Convenção Batista em página de praxe destinada aos ilustres mortos batistas. Afinal ele ajudava a pintar o catolicismo como teologicamente corrompido, politicamente avaro e aspirando reger os destinos do Brasil para benefício próprio, razão porque perseguia os protestantes no Brasil. O seu liberalismo é resultante de uma tensão do respeito à lei, à liberdade, à ordem, à razão, ao indivíduo. Liberdade e justiça eram valores básicos do ideário de Rui. Independentemente das instituições ou formas de governo que lhe dessem guarida, é na liberdade por exemplo, que a pátria se assenta. E escreve: "Mas acima da pátria ainda há alguma coisa: a liberdade; porque a liberdade é a condição da vida da pátria, é a consciência, é o homem, é o princípio divino do nosso existir, e o único bem cujo sacrifício a Pátria não nos pode reclamar". ESTUDOS EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO | Educação a Distância

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A partir de meados do séculos XIX importantes conquistas foram obtidas na Europa, ampliando o sufrágio. No entanto, a partir dos anos 1870, a Europa viu uma forte onda conservadora, provocada pelo acesso das classes trabalhadoras no governo através do sufrágio. Esse período provocou nas elites um retrocesso em suas próprias concepções a respeito do liberalismo, fazendo com que o ideal supremo da liberdade começasse a ter restrições morais e políticas – a liberdade e o exercício da cidadania política dependeriam de qualidades morais. E em Stuart Mill que a moralidade seria a condição para que a igualdade produzida pela democratização da sociedade não fosse incompatível com a liberdade. Ao contrário, o desenvolvimento moral permitiria a ampliação da liberdade, ajudando o progresso econômico e político. Rui foi um leitor de Mill. Tanto para Rui quanto para Mill, o analfabeto não poderia votar. E, neste instante, observa, referindo-se à Inglaterra, que lá sim se sentia a importância do sufrágio universal. A teoria do sufrágio de Rui pressupunha a instrução como cláusula preliminar. Sem instrução, sem saber ler nem escrever, não se poderia ser plenamente cidadão. Até porque a única maneira popular e de âmbito nacional de informação política a época era a imprensa (escrita). Portanto, não saber ler era não conhecer a política. A democracia seria o governo da razão. A política em Rui era mais do que uma disputa pelo governo do Estado, uma postura capaz de transformar a sociedade na totalidade, a partir da implantação de um sistema político baseado na liberdade. “Se o Brasil tivesse obtido a liberdade inglesa, só refinados monomaníacos ...aspirariam à República. ... Eu não idolatro formas de governo.... Eu quero a razão nos seus direitos, nos seus direitos o povo, e, pairando acima de ambos a liberdade, garantia comum”. No plano da fé um trecho de um de seus discursos dá o tom de sua crença: O protestantismos nasceu da liberdade da consciência individual, cuja conseqüência política é a liberdade religiosa; do protestantismo é filha a instrução popular, que constitui a grande característica, o principal instrumento e a necessidade vital da civilização moderna; ao protestantismo está associada [...] uma exuberância de prosperidade industrial, luxuriante e vigorosa como a vegetação dos trópicos, em constaste com os países onde os processos de governos católicos, aplicados em seu rigor, cansaram as almas e esgotaram a energia moral do povo (18)”.

A tragédia do Brasil, não era o cristianismo, mas o catolicismo principalmente o ultramontano. O pensamento político de Rui Barbosa recusa qualquer radicalismo, desde o poder pessoal nas monarquias às ditaduras militares e científicas. Do mesmo modo, as ditaduras populares

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seriam rejeitadas. Ou seja, seu liberalismo estaria sempre pronto a combater o despotismo, inimigo da liberdade. Porém, não estava disposto a permitir ao povo, o direito de decidir por ele mesmo, constituindo “governos de ignorância”, enquanto este não possuísse a moralidade e intelectualidade tidas como necessárias. Era preciso imprimir no povo uma nova moral. Como ele mesmo diz: Crenças que se acham deste modo, embebidas no sentimento moral e na cultura política da raça mais forte, mais reprodutora, mais povoadora e mais livre da terra não se pode admitir que estejam descambando para crepúsculo, ou que contrariem o progresso, e sejam inimigas da liberdade. Vede o que tem dado a outras a filosofia francesa do século passado... que assombram com as suas loucuras a nossa época (19).

A nova moral desejada por Rui ou o desejo de estabelecer um desencantamento do mundo racionalista modernizante esbarra no pensamento mágico, irracinalista das crendices e superstições brasileiras, diferentemente dos modelos inglês e norte-americano que desmistificam o mundo. Ciência/Religião/Liberdade/Democracia categorias que se interligam no pensamento ruiano, prova disso é que, quando em 1903, talvez descrente que ainda viesse poder influenciar a vida brasileira, se propôs a fazer, num discurso para os alunos do Colégio Anchieta, seu “testamento político”, uma “expansão pública” do seu amor ao Brasil, praticamente tratou do problema político sob a ótica do problema religioso. CONSIDERAÇÕES FINAIS A postura religiosa de Rui Barbosa não pode ser estudada de forma isolada. Ela está estreitamente relacionada ao projeto de modernidade da sociedade. Era preciso romper as barreiras internas que impediam a inserção do Brasil no movimento mais geral. Seu projeto modernizador se estabelece a partir da educação, ou seja, era preciso vencer a ignorância e o analfabetismo, através do ensino da ciência, de uma postura religiosa que não estivesse ligada ao mundo Ibérico, mas ao anglo-saxônica. A construção da nacionalidade brasileira passava pelo caminho de outras nações. Nesse sentido que as ideias de Rui encontram pouso no pensamento protestantes brasileiro, que precisa se diferenciar do Catolicismo, visto que ambos são cristão. O diferencial encontrado foi o de associar o protestantismo com o progresso e o catolicismo com o atraso. E na construção desse diferencial Rui Barbosa foi usado com bastante propriedade.O desenvolvimento desejado por Rui Barbosa identifica-se com os princípios do progresso educacional protestantes. Se Rui desejava implantar um modelo de progresso para o Brasil, nada melhor do que se apresentar (no caso dos protestantes) como ESTUDOS EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO | Educação a Distância

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representantes legítimos desse modelo. Rui trabalha a ideia do que “deveríamos ser”, ideia essa que encontrou eco no projeto dos protestantes – “o Brasil deve ser aquilo que as nações protestantes são”. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARBOSA, Rui. Obras completas. Rio de Janeiro: MEC/Casa de Rui Barbosa, 1940. 50 Tomos.

. O Papa e o Concílio. Rio de Janeiro: MEC, 1977.

. Queda do Império. Diário de Noticias. Rio de Janeiro: MEC, 1947, vol. 16, t. 1.

CAMARGO, Margarida Maria Lacombe (org.). Atualidade de Rui Barbosa. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2001. LAVELEYE, Emile. Do futuro dos povos católicos. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1944. LUSTOSA, Isabel. (org). Estudos históricos sobre Rui Barbosa. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 2000. SCANTIMBURGO, João de. O drama religioso de Rui Barbosa. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1994. VIANNA FILHO, Luiz. A vida de Rui Barbosa. 2.ed. São Paulo: Nacional, 1952. PAIM, Antonio. História das idéias filosóficas no Brasil. 3. ed. São Paulo: Convivo/INL, 1984.

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TEXTO 7 A INTERPRETAÇÃO FREUDIANA DA RELIGIÃO A interpretação freudiana da religião apresenta-se em dupla face. De fato, a crítica que Freud levanta contra a religião é, por um lado, uma retomada de temas e motivos típicos da crítica iluminista da religião; por outro, porém, a aplicação do método psicanalítico contém núcleos interpretativos originais e fecundos, que influenciaram profundamente a pesquisa psicológica da religião. Freud interessou-se pela religião de maneira contínua e sistemática. A parte contribuições menores, nos últimos trinta anos de sua vida escreveu três trabalhos significativos, em cada um dos quais examinou um nó essencial das relações entre psicologia e religião. Freud gostava de apresentar-se como ateu; e, de fato, passagens da vigorosa e áspera polêmica que encontramos em sua crítica à religião provam que era um ateu militante. O trabalho que melhor expressa o caráter “iluminista” dessa crítica é O futuro de uma ilusão (1927). Freud aí defende a tese de que: “as representações religiosas nascem da mesma necessidade que gerou todas as outras aquisições da civilização, ou seja, da necessidade de defesa diante do massacrante poder da natureza. A isso se soma um segundo motivo: a vontade de corrigir as imperfeições, dolorosamente percebidas, da civilização”. Os deuses assim surgidos desempenham uma tríplice função: “exorcizar o medo da natureza, reconciliar-nos com a crueldade do destino, especialmente com a morte, e compensar-nos pelos sofrimentos e privações impostos ao homem pela vida civil em comum”. A sorte da razão é, porém, marcada pelo progressivo advento de uma civilização dominada pela ciência, característica da idade madura da humanidade: “Na caminhada para uma tão distante meta, as suas doutrinas religiosas deverão ser deixadas para trás, mesmo que as primeiras tentativas falhem, mesmo que as primeiras formações substitutivas demonstrem-se instáveis a longo prazo nada pode resistir à razão e à experiência, e a oposição da religião a ambas é até óbvia. Nem as ideias religiosas purificadas podem escapar a esse destino, à medida que queiram salvar alguma coisa do conteúdo consolador da religião” . O alvo polêmico de Freud era a religião do homem médio, as formas tradicionais e institucionais da vida religiosa recebidas de modo passivo e vividas como formas de defesa diante das ESTUDOS EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO | Educação a Distância

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ameaças do mundo circundante. Elas pareciam-lhe uma forma de neurose coletiva da humanidade, que em tempos passados — segundo uma teoria dos estágios tipicamente evolutiva — haviam desempenhado uma função positiva, reprimindo os instintos sexuais e sublimando os impulsos reprimidos em práticas rituais e crenças mitológicas, o que durante muito tempo favoreceu a coesão do corpo social. Como, porém, na história do indivíduo a fase infantil da onipotência mágica dos pensamentos e a fase animista das representações mítico-religiosas foram substituídas, no homem adulto, pelo reino da razão, assim Freud achava que, na história da humanidade, o estágio da religião seria substituído pelo da ciência, na idade adulta do espírito humano. E a psicanálise deveria ajudar no advento desse estágio, desmascarando a natureza ilusória da religião. Essa avaliação pessoal tão negativa marcou por longo tempo as relações entre psicanálise e religião. E conveniente, pois, recordar que Freud reivindicou várias vezes a neutralidade do método analítico, cuja validade não dependeria das opções de valor — pró ou contra a religião — por parte do estudioso. Como escreveu ao pastor Pfister: “A psicanálise, em si mesma, não é nem religiosa nem irreligiosa, mas um instrumento imparcial do qual pode servir-se tanto o religioso quanto o leigo, desde que seja usado unicamente para libertar o homem dos sofrimentos”. Assim sendo: “se da aplicação do método psicanalítico pode-se obter um novo argumento contra o conteúdo de verdade da religião, pior para a religião, mas como mesmo direito os defensores da religião poderão servir-se da psicanálise para confirmar plenamente o significado afetivo da doutrina religiosa”. A religião está relacionada, segundo a lógica dominante do complexo edipiano, com a “necessidade de ajuda infantil”, uma nostalgia do pai que aprisionaria o homem adulto numa situação tipicamente feminina, de passividade e de dependência da autoridade. Em Totem e tabu (1913) ele atribuiu-se a tarefa de buscar no plano histórico uma confirmação da particular verdade dessa convicção pessoal, confirmação que Freud pensa ter achado no chamado mito científico do parricídio primordial. Baseando-se na hipótese da horda primordial de Darwin e do alimento totêmico de Robertson Smith, ele supõe a existência, na aurora da humanidade, de uma horda primordial na qual haveria o domínio inconteste de um pai prepotente e ciumento, que ficava com todas as mulheres e enxotava os filhos à medida que cresciam.

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Porém: “em certo dia os irmãos enxotados reuniram-se, mataram o pai e o devoraram, pondo fim, desse modo, à horda paterna. Unidos, eles conseguiram realizar aquilo que teria sido impossível ao indivíduo sozinho (talvez um progresso na civilização, o uso de uma arma nova, tenha lhes dado o senso de uma força maior). Que eles tenham devorado o pai assassinado é uma coisa óbvia, pois tratava-se de selvagens canibais. O progenitor violento era membro do grupo dos irmãos. Nesse ponto, no ato de devorá-lo eles realizaram a identificação com o pai e cada um se apropriou da força dele. O alimento totêmico, talvez a primeira festa da humanidade, seria a repetição e a comemoração dessa memorável ação criminosa que marcou o início de muitas coisas: das organizações sociais, da restrições morais e da religião”. Depois de morto, porém, o pai tornou-se ainda mais poderoso do que quando vivo. Nos filhos aflorou o sentimento de culpa, o remorso coletivo. A endogamia, que ele havia proibido, os filhos espontaneamente também a vetaram, porque vítimas daquela situação psíquica que a psicanálise chama de obediência posterior. Interditaram também as mulheres e rememoraram o próprio delito proibindo a matança de um animal vicário, o totem. Criaram se, assim, os dois tabus fundamentais do totemismo e, ao mesmo tempo, foram lançadas as bases para o nascimento da crença em Deus, que para Freud é o coração da religião. Como conclusão, a raiz da religião é a saudade do pai primordial, refletido nas inúmeras figuras divinas que povoam os diversos panteões históricos. Cada religião é uma tentativa — que em seu aspecto externo varia conforme o horizonte histórico-cultural — de enfrentar e de resolver sempre o mesmo problema: conciliar o sentimento de culpa gerado pelo parricídio primordial com o inextinguível elemento de desafio, por parte do filho, em relação à figura paterna. A melhor confirmação da verdade dessa interpretação é, aos olhos de Freud, o cristianismo. Cristo libertaria os homens da ofensa cometida contra o Pai, o pecado original, que outra coisa não é que o parricídio primordial. De fato, deixando se matar, ele confirma que também o Pai foi morto. Mas: “com a mesma ação em que oferece ao Pai a máxima expiação possível, o filho também alcança o objetivo dos seus desejos contra o pai, Toma-se ele próprio Deus, junto com (ou, mais propriamente) no lugar do pai. A religião do Filho substitui a do Pai”. A natureza da interpretação freudiana da religião revela a contradição básica da interpretação psicanalítica da religião. Por um lado, enquanto método dinâmico e genético destinado a evidenciar a natureza conflitiva e inconsciente dos processos psíquicos, o método psicanalítico, ESTUDOS EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO | Educação a Distância

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contribuiu de modo decisivo para precisar o aspecto motivacional da experiência religiosa. O conjunto das crenças e das práticas do indivíduo foi abordado de maneira fecunda, do ponto de vista da realização do desejo, do controle dos estímulos, da duplicidade dos processos de pensamento, da relação objetual, da gênese da consciência e do ideal do eu, da economia dos aspectos libidinosos e agressivos: todos aspectos de uma realidade humana multifacetada e complexa, que o mestre da suspeição contribuiu para revelar e da qual a religião participa como realidade humana sujeita à investigação empírica. A luz desses estudos, a religião não pode ser representada como uma partícula estática ou um traço fixo da experiência, e sim como uma qualidade dinâmica, um aspecto essencial desse conflito fundamental que é a luta pela vida, à qual ela pretende dar uma resposta definitiva. Por outro lado, porém, esse método está profundamente enraizado numa concepção do mundo que, como ensina o caso de Freud e da sua escola, interpreta de maneira radicalmente reducionista a religião, utilizando-se do instrumento com o objetivo de contribuir — segundo o programa iluminista — para o desaparecimento da religião. Como se pode facilmente intuir, tudo isso prejudicou o desenvolvimento dos estudos de Psicologia e Religião. TEXTO 8 CRONOLOGIA DA HISTÓRIA E DAS RELIGIÕES NO BRASIL Dr. Alfredo dos Santos Oliva Neste texto vamos estudar a presença do cristianismo em nosso país. O estudo do cristianismo será dividido em três grandes blocos, que serão estudados a partir das suas maiores expressões desde a chegada dos invasores europeus nessas terras: catolicismo, protestantismo e pentecostalismo. O primeiro está no nosso país desde o século XVI, o segundo foi implantado apenas no decorrer do século XIX, embora tenham existido tentativas fracassadas de sua inserção em períodos anteriores, e o terceiro, como é por si só um fenômeno muito recente, foi implantado no Brasil no início do século XX. Para facilitar o estudo dos três grandes ramos do cristianismo em destaque, vamos começar com uma análise da divisão periódica da história do Brasil, seguida de uma breve cronologia da nossa história. O objetivo é o de construir uma compreensão das nossas expressões religiosas que esteja enquadrada em seus devidos contextos.

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VISÃO PANORÂMICA DO CRISTIANISMO NO BRASIL A historiografia religiosa tradicional difunde a visão equivocada de que no período colonial o Brasil foi um país exclusivamente católico romano. Esta forma de analisar a história considera esta religião apenas em sua vertente oficial ou institucional, que é somente uma das suas múltiplas manifestações. Vamos partir de um pressuposto diferente. Pensamos que, para se conhecer um fenômeno de forma profunda, é preciso visitar o cotidiano das pessoas e procurar perceber como concebiam e vivenciavam sua fé. Enfim, será necessário refletir sobre o modo como o catolicismo romano oficial convivia com as demais expressões de fé, como foi o caso de algumas religiões (judaísmo, protestantismo e candomblé). No período colonial o Brasil foi oficialmente um país católico romano e esta expressão religiosa se instalou e se difundiu no nosso país de diferentes maneiras. Ordens religiosas distintas se espalhavam por espaços geográficos diversos e juntamente com este florescia o catolicismo leigo das confrarias. Qualquer outra expressão religiosa que tentasse se instalar nestas terras, podia ser perseguida pela inquisição. Neste país tivemos algumas visitações do Santo Ofício, embora esta instituição não tivesse a aqui rigidez encontrada na América Espanhola. Outra função do Brasil era a de “acolher” os degredados e “inúteis” da metrópole. Sendo assim, uma das formas de punição de hereges e indesejados era a de enviá-los para o nosso país. Conhecemos alguns casos de degredados europeus que se tornaram reincidentes no nosso país e acabaram condenados à morte pela inquisição. Apesar das proibições e dos riscos decorrentes da profissão de uma fé que não fosse católica romana, outros fenômenos religiosos marcaram presença no Brasil Colonial, como o judaísmo, o protestantismo e o candomblé. Claro que todos tinham que sobreviver na clandestinidade. Qualquer mudança de hábito no dia de sábado podia ser encarada como suspeita de estar judaizando. Exemplos dessas práticas “suspeitas” poderiam ser de vestir roupas limpas ou distintas, deixar de limpar a casa ou abster-se de certos alimentos. Sabemos que muitos judeus foram expulsos da Europa na transição da idade média para a moderna ou tiveram que se converter forçadamente ao cristianismo para preservar suas vidas, passando a ser denominados de cristãos-novos. Só o fato de ser um cristão-novo, já os tornava suspeitos ESTUDOS EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO | Educação a Distância

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perante a inquisição. Outra expressão religiosa fortemente reprimida no Brasil Colonial foi o protestantismo em suas mais variadas manifestações institucionais. Genericamente denominavam os adeptos do novo cristianismo de serem suspeitos de “heresia luterana”. Qualquer crítica à autoridade do papa ou à devoção aos santos podia caracterizar uma adesão ao protestantismo. Os suspeitos denunciados eram levados a interrogatórios e torturas nos tribunais da Santa Inquisição. Também os negros e suas mais diversas expressões religiosas eram passivos de serem perseguidos pelos tribunais. A forma mais comum de religião negra no Brasil Colonial era o candomblé, que podia ser tolerado em suas vertentes sincretizadas com devoções aos santos católicos romanos. A partir do século XIX o nosso país começou a enfrentar importantes mutações em termos religiosos. O protestantismo começou a se instalar sobretudo a partir de meados do século e o pentecostalismo se instalou no início do século seguinte. A partir dos anos 50 e 60 do século XX, a hegemonia do catolicismo romano passou a ser colocada em questão, devido ao aparecimento e a difusão de novos agentes religiosos. Desde então as pesquisas mostram um crescente declínio do catolicismo com equivalente aumento do número de evangélicos e pessoas sem religião. Mais adiante analisaremos esse processo de diversificação do cristianismo brasileiro. CATOLICISMO NO BRASIL Como já indicamos acima, no estudo do cristianismo brasileiro ainda predomina o enfoque sobre as suas formas institucionais ou oficiais. O problema desta abordagem reside nos fatos de ser parcial e não dar a devida atenção às formas como as pessoas ressignificavam e contestavam os discursos e as práticas oficiais. Nosso desafio é o de superar essa visão, fato que não muito simples porque envolve a descoberta de novas fontes que possam revelar o outro lado do cristianismo. Vamos fazer uma tentativa de revelar um pouco da vertente católica não institucional nas linhas abaixo. Religiosidade indígena pré-cristã H. J. Prien fala da existência de movimentos que antecedem ao contato com os conquistadores ibéricos e os designa de “messianismos índios autóctones”. Naturalmente, estes movimentos

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são assim designados por não procederem de um contato com os conquistadores, mas por se basearem na mitologia de certos movimentos indígenas. “A peculiaridade destes messianismos consiste, pois, em que surgiram endogenamente, causados por uma mitologia messiânica. As migrações foram produzidas sob a condução de um profeta carismático, na maioria dos casos um xamã (pajé), buscando a terra sem males para o leste, mais além-mar, o que explica o trajeto desde o interior para a costa.”123 Esse deslocamento dos grupos indígenas no sentido do interior para o litoral se deve a busca de uma terra sem males. Devemos observar com mais detalhes as variações da rota seguida pelos grupos indígenas em busca da terra sem males. Inicialmente eles vão do Oeste para o Leste, do interior para a costa litorânea. Este fato é importante porque, depois do contato com os conquistadores, a tendência é que o sentido da rota se inverta. A partir do contato entre os indígenas e os conquistadores, fica difícil saber o que é essencialmente fenômeno religioso indígena e o que é fruto da influência cultural e religiosa ibérica. O “encontro” de culturas tão diferentes produziu sincretismos tão complexos que se torna impossível chegar às matrizes de cada manifestação religiosa. Precisamos perceber que um fenômeno complexo como o messianismo indígena autóctone se torna mais complexo e assume feições diferenciadas devido ao contato com os conquistadores. A primeira alteração é a inversão do sentido da rota da busca da terra sem males. H. J. Prien informa que “Em 1539 se produz, sob a direção do xamã Viaruzu, um grande êxodo dos Tupi da costa brasileira para os Andes peruanos”.124 Em 1562 há um segundo movimento migratório no mesmo sentido. Segue-se outro movimento migratório por volta de 1600 no sentido da costa brasileira para os Andes e de lá para a região amazônica devido, agora, ao contato com os espanhóis. Acerca do deslocamento do lugar do paraíso Tupi, R. Vainfas nos informa o seguinte: ”O paraíso tupi se deslocaria lentamente do mar para o interior, pois era no litoral, sem dúvida, que se achavam os males e campeava a morte. Não havia de ser na costa, salvo por azares da história, que os tupi buscariam, doravante, a sua velha ‘morada dos ancestrais’”.125 Há um testemunho do Padre Manoel da Nóbrega em 1549 sobre o assunto muito interessante: 123

PRIEN, H.J. La historia del Cristianismo en America Latina. São Leopoldo: Sinodal, 1985, p. 313.

124

Ibid., pp. 313-314.

125

VAINFAS, R. A Heresia dos índios. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 50. ESTUDOS EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO | Educação a Distância

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“Somente entre eles se fazem cerimônias da maneira seguinte: De certos em certos anos vêm uns feiticeiros de mui longe terras, fingindo trazer santidade e ao tempo de sua vinda lhes mandam limpar os caminhos e vão recebê-los com danças e festas, segundo o costume; Em chegando o feiticeiro [...] lhes diz que não curem de trabalhar, nem vão à roça, que o mantimento por si crescerá, e que nunca lhes faltará de comer, e que por si virá a casa e que as enxadas irão cavar e as flechas irão ao mato por caça para seu senhor e que hão de matar muitos dos seus contrários, e cativarão muitos para seus comeres e promete-lhes larga vida, e que as velhas vão se tornar moças [...]”126 Também há uma observação do Padre José de Anchieta em 1557 sobre a religiosidade indígena colonial: “Pelo sertão anda agora um ao qual todos seguem e veneram como a um grande santo. Dão-lhe quanto têm, porque se isto não fazem creem que ele com seus espíritos os matará logo. Este metendo fumo pela boca, aos outros lhes dá seus espíritos, e faz seus semelhantes. Aonde quer que vai o seguem todos, e andam de cá para lá, deixando suas próprias casas”.127 A. Porro também fornece alguns exemplos de messianismos indígena-ibéricos, porém estes são provenientes não da costa litorânea brasileira, mas da região amazônica. Em meados do século XIX no alto do Rio Negro houve um fenômeno religioso chamado “culto de Jurupari”: “O episódio em questão girava em torno de um índio venezuelano que se dizia o segundo Cristo e que sussurrava ou açoitava os adeptos que se reuniam em torno dele para dançar e beber”.128 Catolicismo popular no império e na república A partir do século XVIII as sociedades secretas vão-se instalar no Brasil. O tipo mais conhecido de sociedade secreta que se conhece é a maçonaria. Segundo Barreto, “entre os princípios considerados sagrados para os maçons, existe toda uma filosofia liberal individualista tomada à ilustração do século XVIII ou resultante de uma convergência na mesma direção” (Ação das sociedades secretas, p. 193). Mas é no século XIX que a maçonaria e seus ideais liberais-individualistas vão conquistar o cenário da política brasileira. A maçonaria vai-se opor claramente à religiosidade católica oficial, associando-a a uma imagem de “atraso” que se opõe às “novidades” sacramentadas pela ciência. 126

NÓBREGA, M. Cartas do Brasil. São Paulo: USP, 1988, p. 99.

127

ANCHIETA, J. Cartas.São Paulo: USP, 1988, p. 109.

128

PORRO, A. O povo das águas. Petrópolis: Vozes, 1996, p. 134.

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É exatamente no início do século XIX que o protestantismo é inserido no Brasil. Este vai aliar-se à maçonaria, onde encontra bastante apoio para se difundir. A Igreja Católica vê emergir, ao longo do século XIX, dois grandes inimigos e opositores: a maçonaria e o protestantismo. Agora, também aos brasileiros, é possível ser cristão mesmo sem ser católico, motivo que faria com que o catolicismo oficial vigiasse de perto seus fiéis para que não “distorcessem” as sãs doutrinas. Esta “crise” da Igreja Católica seria agravada com a separação legal (constitucional) entre Igreja e Estado. Tem-se, assim, elementos fundamentais para florescer um imaginário muito rico que vê ao Estado (e tudo que estiver associado a ele: maçonaria, protestantismo) como forças opositoras ao catolicismo (do mesmo modo que o Diabo é um opositor a Deus!). Nesse contexto é possível uma formulação do Estado como o “Anticristo”, uma vez que esse se opõe à Igreja de Cristo. É interessante notar também a forma de organização social brasileira no final de século XIX para entender melhor a questão. M. I. P. Queiroz assinala que a forma de organização social brasileira antes do processo de intensificação da urbanização foi o coronelismo. Esta autora identifica a estrutura dessa forma de poder do seguinte modo: “A estrutura grosso modo, se apresenta hierarquizada em três níveis: os coronéis. Abaixo deles os cabos eleitorais; e, na base da estratificação política, os eleitores” (O Coronelismo numa interpretação sociológica, p. 157). O coronel não é apenas líder político, mas também proprietário de terras dotado de profundo “carisma” (p. 177). Mais que isso, o coronel era o “chefe” da grande família, o protetor, aquele que dava segurança a seus “filhos”. Uma das formas de alimentar laços familiares entre não parentes, era a relação de compadrio. Mas a intensificação do processo de urbanização, que inicialmente contribui para a consolidação do coronelismo, vai destruindo esses laços entre a “grande família” chefiada pelo coronel. Essa breve análise do coronelismo nos permite compreender como é possível a estruturação de milhares de pessoas em torno de uma figura religiosa, como foi o caso de Antônio Conselheiro. O fato de se ter uma sociedade que está estruturada em um poder regionalizado, onde um líder carismático dirige sua “parentela”, facilita em muito a compreensão de Antônio Conselheiro como o “chefe” arraial de Canudos.

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A eclosão do movimento de Canudos se localiza em um contexto histórico de transformação social, marcado pela desarticulação do coronelismo. Também pelas mudanças políticas, como foi o caso da desarticulação do antigo regime colonial. Ainda poderíamos falar de mutações constitucionais, se quisermos falar da separação entre Igreja e Estado. Estes fatores contribuíram para a constituição do povoado de Canudos, como também para uma crise do catolicismo oficial. Canudos, no sertão nordestino, não foi o único movimento ligado ao catolicismo popular brasileiro. Devemos nos lembrar que a região sul de nosso país conheceu um movimento parecido alguns anos depois, que ficou conhecido como guerra do Contestado. R. Facó diz que entre meados do século XIX e início do século XX, há, no Brasil, uma sucessão de “movimentos de rebelião de pobres do campo”, dentre eles o movimento do Contestado, que também revela uma crise do catolicismo oficial. Na questão do Contestado, como nos outros movimentos – cada qual com suas especificidades – houve um traço marcante: “o choque aberto entre religiosidade popular e a religião oficial da Igreja dominante” (Cangaceiros e fanáticos, p. 39). M. Chaui observa que “a diferença entre religião popular e oficial manifesta-se como oposição entre leigos e clero...” (Cultura e democracia, p. 73). A. P. Tota também aponta para esta mesma direção ao afirmar que a religião oficial representava um corpo estranho ao universo social camponês, enquanto que os monges faziam parte da vida social camponesa (Contestado: a guerra do novo mundo, p. 30-31). A. Otten acrescenta que o “catolicismo popular” desenvolveu-se no Brasil “longe do clero que estava a serviço do Estado e dos senhores e se limitava à ministração sumária dos sacramentos.” (Só Deus é grande, p. 93). Segundo o referido autor, essa limitação do “catolicismo oficial” deixou uma lacuna que acabou sendo preenchida pela “elaboração de formas religiosas leigas” (p. 93). Essa forma leiga de expressão do catolicismo como emblema uma vida que, além de ser marcada pela penitência e a “fuga do mundo”, “sonha com advento de um mundo novo mais justo e mais fraterno” (p. 132). D. T. Monteiro em estudo comparativo entre Canudos, Juazeiro e Contestado, observa que dos três movimentos, o movimento do Contestado “foi o único que tomou, inequivocamente, um caráter milenarista.” Os camponeses do Contestado diziam-se monarquistas, mas esta “era percebida como a realização do Reino escatológico”.129 A vinda do Messias deveria ser MONTEIRO, D. Um confronto entre Juazeiro, Canudos e Contestado. In: Fausto, B. O Brasil Republicano. São Paulo: DIFEL, 1982, Tomo III, v.2, p. 75. 129

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acompanhada pela vinda do milênio, uma total transformação da ordem social e de tudo que existe na terra. PROTESTANTISMO NO BRASIL O protestantismo, se tomado como um todo tem sido o fenômeno religioso que mais cresceu nas últimas décadas. Por desconhecer a sua diversidade institucional e teológica, as pessoas não podem identificar, de forma mais específica, quais das suas expressões crescem e quais estão estagnadas. Um meio de perceber as diferenças quanto à velocidade de crescimento é atentar para as particularidades históricas das denominações, bem como para suas principais ênfases teológicas do passado e do presente. A capacidade de adaptação de cada instituição protestante do presente tem variado muito ao longo dos anos. A palavra “evangélico” procura designar todas as denominações protestantes brasileiras originadas ou ligadas, direta ou indiretamente, à reforma protestante do século XVI. Apesar de ser a nomenclatura aceita pela maioria dos protestantes para se referir à sua identidade religiosa, o termo pode ocultar uma enorme variedade institucional, teológica e ritual. Protestantismo no Brasil colonial Os primeiros protestantes chegaram ao Brasil ainda no período colonial e dois grupos são particularmente relevantes. O primeiro a se destacar foi composto pelos franceses na Baía de Guanabara (1555-1567). No final de 1555, chegou ao Rio de Janeiro uma expedição francesa comandada pelo vice-almirante Nicolas Durand de Villegaignon, para fundar a “França Antártica”. Esse empreendimento teve o apoio do almirante huguenote Gaspard de Coligny, que seria morto no massacre do dia de São Bartolomeu, ocorrido em 1572. Em resposta a uma carta de Villegaignon, Calvino e a igreja de Genebra enviaram um grupo de crentes reformados, sob a liderança dos pastores Pierre Richier e Guillaume Chartier (1557). Fazia parte do grupo o sapateiro Jean de Léry, que mais tarde estudou na Academia de Genebra e tornou-se pastor. Ele escreveria um relato da expedição, “História de uma Viagem à Terra do Brasil”, publicado em Paris em 1578. Em 10 de março de 1557, esses reformados celebraram o primeiro culto evangélico do Brasil e talvez das Américas. Todavia, pouco tempo depois Villegaignon entrou em conflito com as ESTUDOS EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO | Educação a Distância

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calvinistas acerca dos sacramentos e os expulsou. Depois de fracassar na tentativa de se instalar no Rio de Janeiro, os franceses se deslocaram para o Norte do Brasil para tentar fundar a França Equinocial. Também essa tentativa de inserção protestante no Brasil Colonial fracassaria. Outro país a marcar presença no Brasil no período foi a Holanda. Tornou-se marcante em nossa história a presença de holandeses no Nordeste no período de 1630 a 1654. Depois de uma árdua guerra contra a Espanha, a Holanda calvinista conquistou a sua independência em 1568 e começou a tornar-se uma das nações mais prósperas da Europa. Passou, então, a desejar estabelecer conquistas ultramarinhas. Fundou a Companhia das índias Orientais e procurou se estabelecer no Brasil. Depois de mais de duas décadas em território brasileiro, os holandeses foram expulsos pelos portugueses, mas suas marcas religiosas seriam deixadas na região Nordeste. Protestantismo no império e na república O século XIX testemunhou a implantação definitiva do protestantismo no Brasil. Após a expulsão dos holandeses, o Brasil fechou as suas portas aos protestantes por mais de 150 anos. Foi só no início do século XIX, com a vinda da família real portuguesa, que essa situação começou a se alterar. Em 1810, Portugal e Inglaterra firmaram um Tratado de Comércio e Navegação que tinha um artigo que concedia tolerância religiosa aos imigrantes protestantes. Logo, muitos começaram a chegar. Entre eles, um bom número de reformados. Depois da independência, a Constituição Imperial (1824) reafirmou esses direitos, com algumas restrições. Um dos primeiros pastores presbiterianos a visitar o Brasil foi James Cooley Fletcher (1823-1901), que aqui chegou em 1851. Fletcher foi capelão dos marinheiros que aportavam no Rio de Janeiro e deu assistência religiosa a imigrantes europeus. Ele manteve contatos com D. Pedro II e outros membros destacados da sociedade e lutou em favor da liberdade religiosa, da emancipação dos escravos e da imigração protestante. Fletcher não fez nenhum trabalho missionário junto aos brasileiros, mas contribuiu para que isso acontecesse. Foi ele quem influenciou Robert Reid Kalley e sua esposa Sarah P. Kalley a virem para o Brasil, o que ocorreu em 1855. Kalley fundou a Igreja Evangélica Fluminense em 1858. No ano

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seguinte chegou ao Rio de Janeiro Ashbel G. Simonton, que viria a ser o fundador da Igreja Presbiteriana do Brasil. O Brasil do início do século XX já possuía várias formas de protestantismo tradicional instaladas. Chegava a vez, então, do nascente pentecostalismo. Este se instalaria no Brasil muito pouco tempo depois de se formar na virada do século XIX para o século XX nos Estados Unidos. Nas décadas que vão de 1910-1940 observamos a chegada simultânea da Congregação Cristã no Brasil e da Assembleia de Deus. Estas igrejas viriam a dominar o campo pentecostal por 40 anos. Nas décadas 1950-1960 o campo pentecostal se fragmentaria, surgiram novos grupos, como a Igreja do Evangelho Quadrangular, Brasil Para Cristo, Deus é Amor e muitos outros. Estas igrejas se expandiriam a partir do estado de São Paulo. A partir dos anos 70 e 80 começam a ser formar as igrejas que viriam a ser denominadas de neopentecostais. Este é o caso da Igreja Universal do Reino de Deus, da Igreja Internacional da Graça de Deus e da Renascer em Cristo. As igrejas se expandem principalmente a partir do estado do Rio de Janeiro. PENTECOSTALISMO NO BRASIL Podemos começar nossa apresentação da história do pentecostalismo com uma visão sintética. Vamos seguir as palavras do teólogo Brunner porque elas expressam uma perspectiva que tem sido consensual entre os pesquisadores sobre as origens do pentecostalismo: “O metodismo foi o terreno moderno em que floresceu o pentecostalismo. O revivalismo era parcialmente, e cada vez mais, a prática norte-americana da teologia metodista, e Finney foi o indivíduo chave, e o movimento da santidade o veículo coletivo daquela teologia e prática”.130 Metodismo O metodismo é uma instituição religiosa que se fundamenta nos ensinamentos de J. Wesley (1703-1791), tendo sua origem no final do século XVIII. É considerado como um ramo tardio da reforma protestante do século XVI. J. Wesley foi pastor anglicano e como tal morreu. O pai do metodismo não fundou esta 130

BRUNER, F. D. Teologia do Espírito Santo. São Paulo: Vida Nova, 1989, p. 34. ESTUDOS EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO | Educação a Distância

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expressão religiosa enquanto denominação ou instituição. O nascimento de uma igreja metodista é posterior à sua morte. A disciplina ética, a personalidade rigorosa, a assiduidade nos exercícios espirituais e os encontros do “clube dos santos” contribuíram para a construção do rótulo de metodista. Estes aspectos passariam a caracterizar a denominação que foi fundada depois de seu falecimento. Falando de um ponto de vista teológico, o metodismo está profundamente entrelaçado ao arminianismo, que teria nascido como uma reação à falta de liberdade humana diante dos decretos predestinantes de Deus, como era pregado pelos calvinistas. Outro fator presente no metodismo, e depois uma importante característica do pentecostalismo, muito ligado à vida de seu fundador, seria uma vivência de cunho emocional que tivera. O peregrino escreve em seus diários como vivia angustiado por ser cristão e pastor e não ter adquirido absoluta convicção de ser salvo e amado por Deus. Quando esta convicção nasceu em seu coração, sua vida e ministério seriam revolucionados. As dificuldades dos inconformados com a igreja anglicana teriam levado muitos ingleses a verem nas terras além-mar possibilidades de construir o tipo de cristianismo tão desejado, mas impossível de ser realizado em sua pátria. O próprio J. Wesley chegou a viajar aos Estados Unidos em missão. Quando o líder religioso inglês e seus colegas avivalistas em geral não “cabiam” mais na igreja oficial, passavam a pregar em outros lugares. Este parece ser o melhor contexto para se compreender a famosa frase de J. Wesley “O mundo é a minha paróquia”. Avivalismo A vida e as pregações de J. Wesley estavam profundamente entrelaçadas com o avivalismo, que é um movimento religioso que aconteceu no interior das igrejas originadas da reforma protestante nos séculos XVIII e XIX, sem ter assumido uma forma institucional específica. Algumas ênfases da reforma protestante supostamente estariam se esfriando e alguns pregadores pensavam que seria necessário fazer com que o entusiasmo inicial pudesse viver ou reviver. A ideia de avivar ou reavivar está relacionada à retomada do fervor religioso que havia marcado as igrejas nascidas da reforma protestante. Os resultados produzidos pelo avivalismo foram o crescimento do número de membros das igrejas protestantes, o nascimento de novas instituições e o despertar missionário que iria caracterizar o século XIX.

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Parece haver uma estreita relação entre os movimentos avivalistas e a nascente revolução industrial. A modernidade seria caracterizada pela crescente industrialização acompanhada da acentuada urbanização. Os grandes conglomerados urbanos europeus seriam palcos de muitos conflitos sociais. Estas massas urbanas encontrariam em expressões religiosas como o avivalismo um importante componente para a construção de sentido em um novo mundo urbano. O avivalismo ofereceu contribuições fundamentais à religião norte-americana e, por conseguinte, ao pentecostalismo. Merece destaque especial tanto a individualização quanto a emocionalização da fé cristã. Uma figura importante nesse cenário foi C. Finney (1792 –1876). Ele foi considerado a maior influência depois de J. Wesley sobre os filhos e filhas do Pentecoste. O pregador avivalista enfatizava uma experiência subsequente à conversão que se chamava batismo no Espírito Santo. Além disso, teria utilizado técnicas de incitação emocional. Movimentos de santidade Simultaneamente ao metodismo e aos avivamentos, se difundiram, nos países de fala inglesa, os movimentos de santidade. Como os movimentos avivalistas, os de santidade não se restringiram a uma configuração denominacional específica. Estavam presentes em diversas igrejas provenientes da reforma protestante. Eram ajuntamentos de pessoas em residências particulares ou locais apropriados para “retiros” com o objetivo de compreender e buscar santidade. A contribuição mais importante do metodismo do século XVIII foi o conceito de segunda graça, distinto da salvação, que Wesley chamava de perfeição cristã. Este conceito seria popularizado pelos movimentos de santidade no século XIX. Esta busca pela santificação é um dos frutos da teologia arminiana que anunciava a participação humana no processo de salvação. Os ajuntamentos coletivos foram se constituindo em um veículo por excelência para que as pessoas pudessem reforçar umas nas outras o fervor na busca pela santidade, bem como para atestar a eficácia desta busca. O pentecostalismo é um fenômeno que se configura entre os últimos anos do século XIX e os primeiros do século XX. Na transição dos séculos vários conceitos e práticas, que circulavam no campo protestante de forma separada, confluíram para dar forma ao pentecostalismo. Como já destacamos acima, três movimentos podem servir de base para que descrevamos ESTUDOS EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO | Educação a Distância

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este conjunto de conceitos e práticas: 1. teologia das “duas experiências” (conversão e santificação) do metodismo; 2. movimentos avivalistas ou revivalistas; 3. encontros promovidos para a busca de santidade. Podemos agora destacar alguns fatores eram comuns aos três movimentos, seguindo as observações de Leonildo S. Campos (As origens norte-americanas do pentecostalismo brasileiro): 1. Necessidade urgente de conversão; 2. Busca permanente de santificação; 3. Ênfase na cura divina; 4. Destaque para volta iminente de Jesus; 5. Presença marcante do Espírito Santo na vida dos fiéis; 6. Evidências físicas que certificariam as experiências dos crentes, como o falar em línguas. Charles F. Parham Viveu entre 1873 e 1929. Era pastor metodista e elaborou a teoria da “terceira bênção”, o batismo com o Espírito Santo. O metodismo falava em duas experiências ou bênçãos, a conversão e a santificação, sendo o batismo com o Espírito Santo a terceira experiência ou bênção. Em 1901, Topeka, Kansas, aconteceram alguns fatos fundamentais para a história do pentecostalismo. Na transição para o século XX, Parham reúne-se com estudantes do Bethel Bible College, onde era diretor e uma de suas alunas (Agnez Ozman) foi batizada com o Espírito Santo, fato evidenciado pelo falar em línguas. Nos dias seguintes, outras pessoas tiveram a mesma experiência, inclusive Parham. Inicia-se, então, um processo de difusão da experiência através da itinerância. Outro momento importante da atuação de Parham foi o ano de 1905, em Houston, Texas, quando teve entre os seus alunos o negro Willian Seymour. Ele teve que assistir às aulas do lado de fora da classe em função da segregação racial nos Estados Unidos. Este viria a ser uma das figuras centrais do pentecostalismo nascente, como veremos mais adiante. Cabe ressaltar que o falar em línguas a que se refere Parham não é a glossolalia (falar em língua desconhecida), mas a xenoglassia (falar em língua estrangeira sem prévio conhecimento da mesma). Em Kansas havia grande percentual de estrangeiros, mas muitos deles não sabiam falar inglês. Portanto, a xenoglassia era fundamental para a urgência da pregação a todos os povos, que se revestia de um caráter pré-milenarista.

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Willian J. Seymour Viveu entre 1870 e 1922. Pertenceu a uma igreja metodista e depois passou para uma igreja Holiness, sendo que em ambas congregavam negros. Foi iniciado no pentecostalismo por Charles F. Parham, em Houston, Texas, no ano de 1905. No ano de 1906, em Los Angeles, Califórnia, uma sequência de fatos importantes da história do pentecostalismo tiveram lugar. Depois de se reunir em dois outros lugares, Seymour aluga um local que havia hospedado uma igreja metodista. O local vira palco de cultos longos e cheios de experiências extáticas. O templo da Rua Azuza vira um centro de difusão do pentecostalismo. Alguns autores gostam de enfatizar o caráter de engajamento social do pentecostalismo entre os negros, especialmente em seus primórdios. Ingo Wulfhorst destaca que no “movimento pentecostal negro a santificação fazia parte da luta política de resistência à dominação econômica dos brancos e da força cultural negra, expressas em símbolos, ritmos e canções”.131 O pentecostalismo dos brancos foi assumindo características diferentes, deixando de lado as questões sociais e econômicas e se voltando para questões mais de cunho espiritual. Este fato teria levado a um “cisma” entre brancos e negros antes de terminar a primeira década do século XX. Da vertente pentecostal conduzida pelos brancos é que se originara o pentecostalismo brasileiro. W. H. Durham Viveu entre 1873 e 1912. Era pastor batista e reduziu a teoria das “três bênçãos” para “duas bênçãos”, ao fundir as experiências de conversão e a santificação. Viajou até Los Angeles e conheceu o movimento dirigido por Willian J. seymour, onde foi batizado com o Espírito Santo. A cidade de Chicago, no estado de Illinois, se torna outro importante centro de difusão do pentecostalismo. Foi nela que Durham passou a exercer forte influência sobre os futuros implantadores do pentecostalismo no Brasil, como foi o caso de L. Francescon (Congregação Cristã no Brasil), D. Berg e G. Vingren (Assembleia de Deus) e A. S. McPherson (Igreja do Evangelho Quadrangular). WULFHORST, I. O pentecostalismo no Brasil. In: WULFHORST, I. et al. Estudos teológicos 1. São Leopoldo: E.S.T. 1995, p. 7. 131

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Raízes brasileiras do pentecostalismo Um estudioso do pentecostalismo brasileiro possui algumas teses muito interessantes sobre a relação do protestantismo brasileiro com a cultura brasileira. Acho que vale a pena acompanhar o que ele diz através de algumas citações: “No Brasil, as denominações do protestantismo histórico consagraram a prática de identificar os valores religiosos nativos com o mal, o pecado e a heresia.” Em seguida diz também algo interessante: “Assim sendo, as missões protestantes desde logo rechaçaram quaisquer expressões religiosas oriundas da matriz e, dessa maneira, contribuíram para recalcá-la ainda mais no plano do inconsciente.” E, por fim, diz que “Tal rejeição tornou-se mesmo um elemento constitutivo da identidade evangélica brasileira, assim como lhe enriqueceu o discurso apologético, visceralmente anticatólico.”132 O pentecostalismo, por sua vez, iria processar algumas mudanças em relação ao modo como o protestantismo encarava a cultura brasileira: “Os pentecostalismos, por seu turno, reprocessaram a religiosidade de origem matricial, apondo-lhe sinais valorativos. Em outras palavras: em vez de rejeitar esse sistema de crenças do senso comum, discriminaram e classificaram aquilo que pertenceria ao domínio de Deus e aquilo que se situaria na jurisdição do Diabo”. E acrescenta que “A rigor, com esse procedimento os pentecostalismos ensejaram que a matriz religiosa brasileira permanecesse intacta, ou seja, apenas realocada e reinserida em um novo sistema religioso”. Com base nas suas afirmações, o autor mencionado chega a uma conclusão muito interessante sobre a relação do pentecostalismo com as demais religiões que fazem parte da cultura de nosso país: “De acordo com essas considerações e à guisa de síntese, podemos arriscar uma equação: o sucesso de uma proposta no campo religioso nacional seria diretamente proporcional ao seu comprometimento, explícito ou implícito, com a matriz religiosa brasileira”.133 Crescimento dos evangélicos no Brasil Alguns dados quantitativos sobre o campo religioso brasileiro nos seus últimos trinta anos podem evidenciar a importância do pentecostalismo brasileiro. Alguns fatores chamam bastante a atenção: 1. a diminuição na casa de quase 20% do número de católicos romanos; 2. 132

BITTENCOURT, J. Matriz e matrizes: constantes no pluralismo religioso. In: PASSOS, J. D. Movimentos do espírito: matrizes, afinidades e territórios pentecostais. São Paulo: Paulinas, 2005, p. 25.

133

Ibid., p. 26.

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a triplicação da porcentagem de evangélicos em geral; 3. o aumento avassalador das pessoas que se autoidentificam como sem religião e 4. o fato de os pentecostais ocuparem a posição de dois terços do total de evangélicos. Anos

População

Católicos

Evangélicos de missão

Evangélicos pentecostais

Evangélicos total

Outras religiões

Sem religião

1970

93.470.306

91,8%

_____

_____

5,2%

2,5%

0,8%

1980

119.009.778

89,0%

3,4%

3,2%

6,6%

3,1%

1,6%

1991

146.814.061

83,3%

3,0%

6,,0%

9,0%

3,6%

4,7%

2001

169.870.803

73,9%

5,0%

10,6%

15,6%

3,2%

7,4%

O quadro acima demonstra que o campo religioso brasileiro apresenta uma forte tendência para a diversificação institucional a partir das últimas décadas da história recente. A hegemonia do catolicismo romano começa a ser ameaçada de forma séria, principalmente se o número de adeptos continuar a decrescer no ritmo que vemos acima. Quase na mesma proporção que diminui a porcentagem de católicos, aumenta a quantidade de evangélicos de uma forma geral. Os responsáveis por este alavancamento do grupo são os pentecostais, o que significa dizer que, na atualidade, para cada três evangélicos do Brasil, dois são pentecostais. Os sem religião têm crescido bastante também. Há algumas hipóteses a serem consideradas: 1. teria aumentado de fato o seu número; algumas pessoas teriam sido católicas, frustraram-se com sua religião de origem e se tornaram evangélicas; estas igrejas, que se colocavam como uma ótima alternativa ao catolicismo, não puderam satisfazer os desejos dos novos adeptos, gerando frustração e o encaminhamento para a alternativa de passar a viver sem uma relação institucional com o sagrado; 2. como nosso país é na atualidade mais plural e as opções mais livres, as pessoas que não tinham uma relação com o sobrenatural perderam o constrangimento de se autoidentificar desta forma; 3. está havendo um processo de “desencantamento” com o sagrado; alguns ventos secularizantes começaram a soprar por estas terras também e 4. os sem religião poderiam ser enquadrados entre os sem vínculo institucional, mas ainda permaneceriam pessoas com fé; o Brasil começaria a estar sendo influenciado por uma religiosidade de tipo nova era, onde a experiência com o sagrado é vivida no âmbito da vida privada. Embora se possa falar com justiça em diminuição do domínio católico romano, não se pode dizer que todos os grupos religiosos têm conseguido se multiplicar com a mesma facilidade dos pentecostais. A umbanda e o candomblé apresentam cifras que demonstram estar em um ESTUDOS EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO | Educação a Distância

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estado de quase estagnação numérica, se tomadas conjuntamente. O mesmo se pode dizer dos protestantes tradicionais, que quase não contribuem para o acelerado crescimento dos evangélicos de uma forma geral. O jornal “Folha de São Paulo” divulgou no dia 05 de maio de 2007 os resultados de uma pesquisa realizada pelo Datafolha que segue uma metodologia um pouco diferente da que foi seguida pelo IBGE, cujas cifras apresentamos acima. O Datafolha entrevistou apenas indivíduos maiores de 16 anos, idade que julgou ser o limite de maturidade para que as pessoas pudessem fazer as suas escolhas religiosas. Este é um dado importante porque o Censo de 2000 levava em consideração a filiação religiosa dos filhos menores de 16 anos a partir da opção dos pais. Os novos dados, construídos a partir de metodologia diferente, apontam para a manutenção da tendência de crescimento dos pentecostais no campo religioso brasileiro. Anos

2007

Católicos

64%

Evangélicos de missão

5%

Evangélicos pentecostais

17%

Evangélicos total

Outras religiões

Sem religião

22%

5%

6%

Penso que o campo religioso brasileiro atual, com base nos dados estatísticos acima apresentados, pode ser sintetizado da seguinte maneira: 1. perda crescente do domínio do catolicismo romano; 2. estabilização de expressões religiosas “tradicionais” como o protestantismo histórico, a umbanda e o candomblé; 3. crescimento expressivo dos evangélicos em geral, tendo como responsável por este crescimento as denominações pentecostais e 4. crescimento dos sem religião, seja por desistência de ter a religião como categoria construtora de sentido para a vida, seja por um processo de privatização do sagrado. Para aprofundar um pouco mais esta descrição preliminar sobre o pentecostalismo, outro quadro pode nos ajudar. Interessante é notar que, se a cada três evangélicos, dois são pentecostais, um em cada pentecostal é assembleiano. Denominações pentecostais Assembleia de Deus

Porcentagem do universo pentecostal 47,7%

172 ESTUDOS EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO | Educação a Distância


Congregação Cristã do Brasil Igreja Universal do Reino de Deus Evangelho Quadrangular Deus é Amor Maranata O Brasil para Cristo Casa da Bênção Nova Vida

14,04% 11,85% 7,44% 4,37% 1,56% 0,99% 0,73% 0,52%

Para chegar ao posto de maior igreja evangélica brasileira, a Assembleia de Deus precisou de várias décadas. O que chama atenção é o fato de a IURD já aparecer como a terceira maior força pentecostal, mesmo sendo uma das igrejas mais novas do nosso país. A denominação dirigida pelo Bispo Macedo nos dias de hoje, em termos numéricos, só perde para as duas igrejas que são quase centenárias. Sua porcentagem está em vias de ultrapassar a igreja pentecostal mais antiga do Brasil, a Congregação Cristã do Brasil. A inserção do pentecostalismo no Brasil e as igrejas pioneiras O pentecostalismo nasceu nos Estados Unidos no fim do século XIX e logo chegou ao Brasil. As primeiras igrejas pentecostais foram implantadas no país no início do século XX: Congregação Cristã no Brasil e Assembleia de Deus. A principal característica destas igrejas era a anunciação de uma segunda benção, o batismo com o Espírito Santo, evidenciado pelo falar em línguas. A Congregação Cristã no Brasil foi a primeira denominação pentecostal a entrar no país. Seu líder pioneiro foi L. Francescon, operário imigrante italiano que encontrou a sua primeira acolhida na igreja presbiteriana italiana dos Estados Unidos, tendo algumas passagens pela igreja valdense. Este fato faz os estudiosos discordarem quanto à sua exata origem religiosa. Sofreu do presbiterianismo a marcante influência da doutrina da predestinação. Seria esta a razão da igreja fundada por ele não evangelizar, mas apenas aguardar que os predestinados respondam ao chamado de Deus. L. Francescon não se restringiu a frequentar a Igreja presbiteriana italiana, mas passou a estar presente nas reuniões dirigidas por C. F. Durham. Em uma dessas reuniões recebeu o dom de falar em línguas e também uma revelação para ser um anunciador da Palavra de Deus. Saiu, então, para Buenos Aires, Argentina, e também para o Brasil. No Brasil instalou-se entre ESTUDOS EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO | Educação a Distância

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imigrantes compatriotas. A Congregação Cristã no Brasil nasceria em 1910 de um cisma ocorrido desde uma pregação feita por L. Francescon em uma igreja presbiteriana. Nos primeiros vinte anos as pregações nessa igreja eram em italiano, mas depois passou à língua local. A Congregação Cristã no Brasil expandiu-se inicialmente, sobretudo, nos estados de São Paulo e Paraná. Paulo D. Siepierski segue a hipótese de que esta igreja teria se expandido a partir das rotas do café. D. Berg e G. Vingren, os fundadores da Assembleia de Deus, eram imigrantes e operários suecos. Teriam se deslocado para os Estados Unidos no início do século em função de uma crise em seu país. Instalaram-se em Chicago no intuito de conquistar melhores condições de vida e acabaram por descobrir as reuniões dirigidas por C. F. Durham. Embora muitos insistam no acaso do chamado missionário de D. Berg e G. Vingren para o Pará, Paulo D. Siepierski argumenta que este estado do Brasil era na época muito famoso no exterior por sua produção de matéria prima para a confecção da borracha. A Assembleia de Deus também nasceu de um cisma dentro de uma igreja protestante tradicional. Desta vez a afetada foi uma igreja batista da cidade de Belém, de onde dezenove pessoas saíram para formar a Assembleia de Deus. Berg e G. Vingren vieram para o Brasil sem sustento para o trabalho missionário. Instalaram-se na igreja batista de Belém e tiveram algumas oportunidades para pregar. A forma como os missionários suecos interpretavam a Bíblia gerou polêmica entre os batistas. A doutrina do Espírito Santo – o falar em línguas como evidência do batismo com o Espírito Santo – foi o elemento que gerou a discórdia entre os missionários suecos e a liderança batista local. Segundo o órgão oficial da igreja, o trabalho de implantação da Assembleia de Deus no Brasil passou por quatro fases: 1. de 1911 a 1924, divisão e construção do primeiro templo; 2. de 1924 a 1930, expansão pelo estado do Pará; 3. de 1930 a 1950, evolução no estado do Pará e estados vizinhos como Ceará, Amazonas e Maranhão; 4. de 1950 a 1990, crescimento com ênfase no trabalho missionário.

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A popularização do pentecostalismo e as igrejas de meados do século XX Até meados do século XX o pentecostalismo era um fenômeno que muito chamava a atenção por seu caráter “exótico”, mas ainda era inexpressivo numericamente. O pentecostalismo começou a ganhar um crescimento vertiginoso a partir de meados do século XX e novas igrejas surgiram: Evangelho Quadrangular e O Brasil para Cristo. A principal característica destas igrejas é a sua ênfase na teologia e prática da cura divina. A S. McPherson é contemporânea dos demais pioneiros do pentecostalismo brasileiro, embora a denominação que fundou tenha chegado ao Brasil apenas em meados do século XX. Ela teria experimentado a cura divina em uma das reuniões de W. H. Durham e passara a difundir tal experiência. Infelizmente a fundadora da Igreja do Evangelho Quadrangular morreu antes mesmo que esta igreja chegasse ao Brasil. A Igreja do Evangelho Quadrangular chegou ao Brasil como fruto de uma “Cruzada Nacional de Evangelização”, promovida pelos pregadores de cura divina H. Williams e R. Bootright. Algumas igrejas protestantes tradicionais, dentre elas uma igreja presbiteriana independente em São Paulo, abriram suas portas para a Cruzada Nacional. Este fato causou polêmicas e divisões no seio da igreja e originando a Igreja do Evangelho Quadrangular. Em princípio esta igreja teria crescido muito, sobretudo a partir da adesão de membros de igrejas tradicionais. É importante atentar para o significado de quadrangular no slogan da igreja, pois através dele se pode ter uma síntese da teologia presente na denominação. Trata-se das quatro ênfases da denominação: Jesus salva, Jesus batiza no Espírito Santo, Jesus cura e Jesus volta. O primeiro ramo do pentecostalismo brasileiro que nasce de uma liderança nacional é a Igreja Evangélica o Brasil para Cristo. Seu grande líder e fundador é o pedreiro pernambucano Manoel de Mello. Manoel de Mello foi da Assembleia de Deus e da Igreja do Evangelho Quadrangular, onde aprendeu a utilizar a técnica itinerante das pregações de cura divina em tendas. Esta igreja traz alguns elementos residuais das igrejas a que pertenceu seu líder/fundador, embora não pareça enfatizar o dom de falar em línguas. Foi uma igreja filiada a órgãos ecumênicos como o Conselho Mundial de Igrejas e seu líder tem grande envolvimento com a política partidária. Outra característica desta igreja que passou a ser também marcante no pentecostalismo brasileiro a partir dos anos 1950/60, é o uso da radiodifusão. ESTUDOS EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO | Educação a Distância

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A emergência das igrejas neopentecostais nas últimas décadas do século XX A partir dos anos 70 do século XX o campo religioso brasileiro começou a passar por acentuada diversificação. Novas igrejas surgiram: Igreja Universal do Reino de Deus, Internacional da Graça de Deus e Renascer em Cristo. O pentecostalismo passa por profundas transformações, podendo ser caracterizado pelos seguintes aspectos: 1. teologia da guerra espiritual; 2. teologia da prosperidade e 3. liberalização dos tradicionais usos e costumes. A IURD foi fundada em 1977 e teve, desde os seus primórdios, Edir Macedo como uma das mais expressivas e carismáticas lideranças. Como costuma acontecer com frequência no âmbito do pentecostalismo, a IURD nasceu como fruto de um cisma no seio de outra estrutura eclesiástica, a Igreja de Nova Vida. Ricardo Mariano afirma que esta igreja, apesar de pequena, desempenhou um papel importante no sentido de fornecer lideranças que iriam formar duas das igrejas pentecostais mais importantes da atualidade, a Igreja Internacional da Graça de Deus e a IURD. Da Igreja de Nova Vida é que saíram Romildo Ribeiro Soares, Edir Bezerra Macedo e Roberto Augusto Lopes para fundar a IURD. Roberto A. Lopes enveredou pelo mundo da política, Romildo R. Soares e Edir Macedo se desentenderam até que este último assumiu sozinho a liderança da Igreja Universal. Edir Macedo é de uma família de origem nordestina. Seus pais migraram de Alagoas para o interior do Rio de Janeiro e tiveram 33 filhos, sendo que apenas 7 sobreviveram. Edir Macedo é o quarto entre eles. Aos 17 anos, tornou-se empregado da loteria do estado do Rio de Janeiro. Antes de se filiar à Igreja de Nova Vida, peregrinou pelo catolicismo romano e pela umbanda. Parece ter conseguido relativo sucesso como funcionário do estado do Rio de Janeiro, mas aos 33 anos deixou o trabalho “secular” para se dedicar à atividade religiosa. Edir Macedo desligou-se da Igreja de Nova Vida para fundar o que viria a ser a IURD. Inicialmente, a nova igreja, fundada por ele e seus parceiros de empreitada, chamava-se Igreja da Bênção e funcionava em uma ex-funerária na cidade do Rio de Janeiro. No ano de 1977, a igreja foi registrada com o nome que a projetaria no Brasil e em vários países do mundo. Em julho de 1980, na comemoração do terceiro ano da igreja, Edir Macedo foi sagrado bispo por

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Roberto A. Lopes, assumindo a forma de governo episcopal para sua igreja. (Endnotes) (1) Barbosa, Rui. O Papa e o Concílio. Rio de Janeiro: MEC, 1977. (2) Barbosa, Rui. Queda do Império. Diário de Noticias. Rio de Janeiro: MEC, 1947, p. 475. (3) Barbosa, Rui. Discurso na sociedade acadêmica beneficente. Obras Completas, I, 1, p. 160. (4) Barbosa, Rui. Excursão eleitoral. Obras completas, XXVII, 1, p. 60 (5) Barbosa, Rui. Discurso no Colégio Anchieta. Obras Completas, XXX, 1, p. 317 (6) Barbosa, Rui. Visita à terra natal. Obras Completas, XX, 1 p. 45. (7) Pereira, Antonio Batista. Rui Barbosa, o organizador da República. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1989, p 34. (8) Barbosa, Rui. Alex Herculano, NDC – HP, p. 68. (9) Barbosa, Rui. A secularização dos cemitérios, p. 47 (10) Barbosa, Rui. Visita à terra natal. OC, XX, 1, p. 52. (11) Barbosa, Rui. Cartas da Inglaterra. OC, XXIII, 1, p. 322. (12) O papa e o Concilio. OC. , p. 116. (13) Vo. XXII – Tomo I. Cartas de Inglaterra. p. 50. (14) “Reforma do Ensino Primário”, Obras Completas de Rui Barbosa, vol. 10, 1883, t. 1, p. 121. (15) Barbosa, Rui. Programa da Tribuna do povo OC, 1, p. 23. (16) Barbosa, Rui. O Papa e o Concílio. Rio de janeiro: MEC, 1977, V. IV t. 1, p. 135. (17) Idem. A Igreja e o Estado. (18) BARBOSA, Rui. Secularização dos Cemitérios. In: Obras Completas de Rui Barbosa. Rio de Janeiro: Ministério da Educação, 1950, v. 7, tomo 1. p. 163. (19) Cartas inglesas. p. 91.

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