Pessoas na Cidade

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PESSOASNACIDADE





Pessoas na Cidade

Trabalho Final de Graduação Mariana Campos Demuth Orient. Clice de Toledo Sanjar Mazzilli

Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP Dezembro de 2016



Resumo | Abstract Livro sanfonado, ilustrado e lúdico que propõe ensaiar as relações entre as pessoas e o espaço público da cidade. O objetivo do trabalho é discutir o comportamento das pessoas nas ruas a partir das relações sociais que elas estabelecem entre si, tendo como base principal O Declínio do Homem Público de Richard Sennett que aborda a presença da personalidade na sociedade.

Illustrated ludic acordion-book that try to discover the possibles relationships between people and the public spaces in the cities. This work aims to discuss the human behavior in the streets thought the behavior between humans themselves, having as principal base, The Fall of Public Men, by Richard Sennett wich discuss the presense of the personallity in public life.

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Sumário Resumo | Abstract 7 Agradecimentos 13 INTRODUÇÃO 15 Livro: suporte de um processo 17 Descobrindo um método 21 Tema e estrutura 27 PESSOAS 29 O café 33 Padrões 37 Primeiro livro 51 CIDADE 69 Lembranças 73 Introdução 77 Grupinhos 79 Espaço personalizado 82 Identidade 87


Memória 92 Segundo livro 97 PERCURSO 117 Largo Santa Cecília 118 Minhocão 120 Arouche 122 Praça da República 124 Largo do Paissandu 126 Vale do Anhangabaú 128 CONCLUSÕES 131 Descobertas 133 Caminhando 135 Bibliografia 137




Agradecimentos



INTRODUÇÃO



Livro: suporte de um processo O assunto desse trabalho é o comportamento das pessoas nos espaços públicos da cidade. Por que, então, fazer uso do livro como ferramenta processual, ao invés de aproveitar a formação em arquitetura e utilizar o projeto e produção do próprio espaço? Por que não fazer um projeto arquitetônico? Adianto que, apesar das razões que darei a seguir, o mais importante era a minha vontade em produzir um livro e a minha falta de vontade em produzir um projeto arquitetônico. Mas vamos lá. O assunto discutido no trabalho é bastante complexo e amplo, exige o estudo de algumas áreas além da arquitetura em si, como a sociologia. É, no fundo, uma crítica à sociedade e ao comportamento humano atual e também uma análise de como o espaço pode atuar como estimulador ou desestimulador de uma sociedade individualista. Mas esse trabalho não chegaria e não chegou a ser tudo isso, nem perto. É muito mais o caminho que segui para chegar no desejo de discutir esses assuntos, o primeiro contato com eles e o levantamento dos primeiros dados. Ao propor um projeto de arquitetura como produto final eu estaria, necessariamente, propondo uma “solução” espacial para as questões levantadas. Seria necessário já definir o que faz de um espaço estimulador ou não de determinados comportamentos humanos e, ainda, quais são esse comportamentos humanos. Se optasse por essa abordagem técnica, provavelmente o trabalho ficaria mais claro e consistente, mas não deixaria uma porta aberta. Tornaria-se um estudo de caso ou um ensaio projetual e se encerraria em si. Porém, não quero “dar por encerrado” esse assunto. Sendo tão amplo e complexo, existe muito mais a ser descoberto e aprofundado do que a imediata composição que um projeto poderia trazer.

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Poderia optar, então, por um projeto de arquitetura livre da técnica. Poderia conceber espaços loucos, montagens, poderia modificar fotos da cidade... poderia mil coisas. Acontece que tive muita dificuldade para entender o tema (observa-se na escrita confusa) e o exercício de transpor o que penso em um produto final, inteligível para os outros, ainda que com certa subjetividade, foi essencial. Esse foi um dos motivos que fez do livro o suporte perfeito para me auxiliar no processo desse trabalho. O livro é um objeto que deve ser suficiente em si, mesmo que acompanhado de outros que o contextualizem. Não precisa (e talvez nem deva) ser um objeto pronto, o leitor deve fazer parte, ou seja: o livro pode expor uma questão e deixá-la em aberto. Por fim, o processo de criação de um livro é quase que inteiramente novo para mim. Não existem vícios de projeto, nem metodologia pronta. É um assunto novo, assim como esse trabalho trata de um tema novo. Fiquei tão animada que, inicialmente, queria testar diversas formas e técnicas. Mas vamos com calma.

Primeiro teste de livro sanfonado no TFG 1.

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Ladeira Porto Geral.


Descobrindo um método Qual a relação entre a cidade de São Paulo e seus moradores? Como as pessoas enxergam a cidade e como se comportam? Qual o sentido de coletividade, de compartilhamento no espaço público? Essas questões apareciam ao meu redor enquanto fazia o caminho de casa para o trabalho, rotineiramente pelo Centro, e me deparava com pessoas conversando nas esquinas, jogando bola ou xadrez nas praças, vendendo cacarecos nos calçadões; ao mesmo tempo que jogavam lixo no chão (e não me refiro a papéis de bala, mas garrafas de plásticos, fraldas sujas e restos de móveis da sala de estar) e quebravam lixeiras. Me deparava com bancos de praça desconfortáveis para que ninguém pudesse se deitar e espinhos de metal em soleiras altas, para ninguém sentar. Essas imagens propõem, para mim, que a vontade de utilizar e aproveitar os espaços públicos da cidade existe, mas também existe descaso com o que é de todos e intolerância na concepção do uso do espaço público. Nunca havia me interessado em procurar fontes que me permitissem entender o comportamento das pessoas com relação ao que é público. Apesar de há muito tempo me incomodar, essa questão começou a se tornar maior que outras dentro de mim apenas quando voltei do intercâmbio, há dois anos, onde experimentei outra cultura, a qual estabelecia uma relação diferente entre as pessoas e espaço público que compartilhavam. Época que coincidiu com meu primeiro estágio, quando passei a vivenciar mais o centro da cidade. Tudo casou. O TFG foi o momento de me dedicar a essas questões. É preciso esclarecer que tudo que digo aqui está sendo escrito agora, ao final de todo o processo e que, no início, eu não tinha nem dez por cento da clareza (que

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Tema um: estudo de representação do espaço da cidade na infância.

Tema dois: Ilustração da história cotidiana de uma rua a partir de um relato.

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ainda é meio turva) que tenho agora sobre o tema e objetivo deste trabalho. Comecei definindo o produto: um livro. Queria fazer desenhos e buscava entender o comportamento das pessoas. Pareceu-me muito oportuno estudar primeiro as crianças, achava que o comportamento delas se resumia em um reflexo do comportamento dos adultos e, por isso, pensei em montar um livro com a percepção que elas poderiam ter dos espaços na cidade. Essa idéia foi bem fantasiosa e sem embasamento. Caiu logo por chão. A outra que surgiu quase imediatamente partiu, novamente, do produto final: um livro com diversas memórias do cotidiano de pessoas mais velhas do centro de São Paulo. Foi nela que terminei meu TFG-I. Mas não estava satisfeita ainda. Parecia pouco embasado, sem uma questão a ser levantada e isso parecia deixar o trabalho sem sentido. Revirei as anotações das orientações e achei diversas vezes anotado o nome de um livro: O Declínio do Homem Público, de Richard Sennett. Pronto! Foi nele que achei a questão que me satisfez. Resumindo de maneira bem simplista, o livro de Sennett trata da inserção da personalidade na sociedade, das diferentes maneiras com que ela influenciou o comportamento das pessoas no ambiente público durante os dois últimos séculos. Descreve como a sociedade saiu da era das máscaras (quando as pessoas adotavam comportamentos públicos com o objetivo de transmitir aos outros uma determinada imagem que não correspondia ao que elas eram ‘realmente’, mas ao que a sociedade considerava ‘conveniente’) para entrar na era da intimidade plena, quando as pessoas abandonam as máscaras e se esforçam para serem o mais “autênticas” possível em todos os momentos, sejam públicos ou íntimos, extinguindo-se as distinções entre relações públicas e as relações íntimas. No livro, Sennett condena esse comportamento atual íntimo e defende a existência de máscaras porque elas permitem

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que as pessoas se relacionem socialmente sem necessariamente criarem laços umas com as outras, preservando a diferença entre a intimidade de cada um e o ser público de cada um, e ainda explica como a sociedade íntima atual fomenta o egoísmo e a individualidade. Pois este é o ponto em que me encontrei. Uma sociedade individualista não valoriza o que é público. E por que ela é individualista? A partir dos textos de Sennett, entendo que um dos aspectos que podem ser estudados como causa dessa individualidade extrema na sociedade é a introdução da personalidade no ambiente público, porque, uma vez que a personalidade de cada um é transparente para todos, ela se torna a preocupação número um de cada pessoa, “como sou?”, “o que pensam de mim?”. Isso pode ser extremamente frustrante e acabar por gerar uma sociedade onde todos se preocupam apenas com sua própria individualidade, mas ao mesmo tempo são infelizes com o indivíduo que são (mais para frente desenvolveremos essas ideias confusas com mais calma). E é por isso que as pessoas jogam lixo no chão? Bom, o problema pra mim não é o lixo no chão exatamente, e sim o que esse ato representa aqui na cidade: descaso total com o espaço público. Como no ditado popular: “o que é de todos, não é de ninguém”; o que é de todos não representa uma pessoa, mas o conjunto delas, e o conjunto não tem valor para uma sociedade que está a todo momento preocupada com a individualidade. A leitura do livro de Sennett me deixou entusiasmada. Sei que foi apenas uma leitura, dentre tantas que seriam necessárias para concretizar uma opinião sobre esse tema que é muito extenso. Por isso, não considero este livro a tradução da verdade plena sobre o comportamento das pessoas. Mas me deixei envolver pelo entusiasmo e, junto de outras leituras que também foram importantes para esse trabalho, busquei interpretar o assunto.

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Encontrei minha questão! Ainda que meio torta, sem um formato exato e com pouco tempo para entendê-la melhor, mas ela existia e fiquei mais tranquila. Já me considerei feliz com o trabalho que só começou. Diferente dos outros dois temas que havia escolhido para fazer o TFG, não comecei definindo um produto final. Fui observando as pessoas na cidade e desenhando umas aqui, outras ali, nos meus momentos de deslocamento cotidiano: de casa pro trabalho, do trabalho para um bar com amigos, do médico para casa, etc. Sem, no entanto, sair do recorte escolhido: o centro de São Paulo. Ao juntar os desenhos e os grifos nos livros lidos, o produto foi se formando. O mais importante foi não restringir ideias ainda imaturas com a definição de um produto final ou de um objetivo bem desenhado e começar a produzir, mesmo sem saber muito bem o quê e para quê. Vamos então ao processo.

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Tema e estrutura Qual a relação entre o comportamento das pessoas nos espaços públicos da cidade e como isso modifica esses mesmos espaços? Como a maneira pública de ser de cada um provoca mudanças nos espaços coletivos? Como esses espaços, por sua vez, podem estimular comportamentos diferentes nas pessoas e qual o papel do urbanista na manipulacão desses espaços? Para tentar entender essas questões e para conseguir transmiti-las de maneira organizada, dividi o estudo delas em duas partes:

PESSOAS: primeiro deveria buscar como é a relação entre as pessoas em uma sociedade. Para isso, me baseei principalmente no livro de Richard Sennett, O Declínio do Homem Público, 1989. CIDADE: entendendo melhor o comportamento das pessoas na sociedade, o segundo passo foi buscar as relações estabelecidas entre esse comportamento social e o espaço em que ele atua. Devo ressaltar que este TFG não tem o objetivo de esgotar esse assunto, longe disso. Esse trabalho consiste no primeiro contato com as ideias sobre o comportamento humano em sociedade e no processo de entendimento dessas ideias a partir da construção de um livro objeto illustrado. Por esse motivo, optei por manter o assunto simples, mesmo que isso significasse um empobrecimento de conteúdo. Foram deixados de lado aspectos vitais para entender o comportamento das pessoas, como o sistema capitalista, as diferenças de classe e preconceitos contra minorias. Porém, a decisão pela omissão desses aspectos também foi a decisão pela viabilidade desse TFG.

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PESSOAS



“Não faz muito tempo, pelo final de uma tarde de outono, sentei junto à ampla janela abaulada do café D..., em Londres. Eu tinha estado doente durante alguns meses, mas estava agora convalescendo e, recobrando minhas forças [...].” “A rua em questão é uma das principais artérias da cidade, e tinha estado apinhada de gente o dia inteiro. Mas à medida que escurecia, a massa ia aumentando; e, quando os lampiões já estavam todos acesos, dois fluxos densos e contínuos de gente corriam diante da porta. Eu nunca estivera antes em situação parecida naquele momento específico da noite, e o mar tumultuoso de cabeças humanas me enchia, portanto, com uma emoção deliciosamente nova. Renunciei, afinal, a todo interesse pelas coisas de dentro do hotel e fiquei absorto na contemplação da cena lá fora.” “A princípio minhas observações tomaram um rumo abstrato e generalizante. Olhava para os transeuntes em massa, e considerava-os em suas relações coletivas. Logo, no entanto, passei para os detalhes, e examinava com minucioso interesse as inúmeras variedades de figura, vestuário, jeito, andar, rosto e expressões fisionômicas.” [O homem da multidão. Edgar Allan Poe, 1840]



O café Entrei no Café da esquina e sentei ao lado da janela. Podia ver uma boa parte da rua, até a entrada da Ladeira Porto Geral de onde ia e vinha um bocado de pessoas. Eram tantas que não conseguia me ater a uma, meio confusa. - Um café e um pão na chapa, por favor. O garçom acenou com a cabeça e andou de volta ao balcão que era dividido por uma escada feita de metal e madeira. Ao meu redor, duas moças conversavam olhando com desdém para os lados, um senhor lia o jornal e um grupo de homens de terno falava alto demais para aquela hora da manhã, sentados em uma mesa central. Ali, naquele Café requintado do Centro, era fácil perceber as pessoas. Digo isso, porque conseguia enxergar cada uma individualmente. Além de serem poucas, era possível observar com calma as características de cada uma. Uma das moças, por exemplo, cruzava e descruzava as pernas de maneira elegante, usava salto alto, tinha cabelos em um coque bem feito e pediu apenas um café. A moça que estava com ela, usava um óculos grande e quadrado, tinha uma franja pequenina, usava roupas coloridas e sorria sempre, olhando para os lados. Pediu um suco e um pão de queijo. - Seu pedido. O garçom deu as costas novamente em diereção ao

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balcão e quando voltei meu olhar para a mesa em frente, as duas moças estavam de saída. Observei-as saírem do café e entrarem na rua apinhada de gente de lá e de cá. Elas se misturaram rapidamente e tornaram-se parte da grande massa de pessoas. Que engraçado, somos todos pessoas únicas quando observadas de perto, mas nos tornamos indistintas quando estamos juntos na multidão. Fiquei mais alguns minutos observando as pessoas passando pela janela e comecei a perceber que, apesar de inicialmente formarem uma multidão anônima, com o passar do tempo, é possível perceber que a maioria delas detém, em sua imagem, alguma coisa qualquer que parece gritar uma personalidade, algum fator que as tornam algo maior do que uma unidade de padrão em um conjunto. Não, cada pessoa ali tinha uma história, uma maneira de enxergar o mundo e de lidar com ele. Mesmo que essas maneiras fossem parecidas ou até iguais, umas às outras, a imagem de cada uma revela traços de quem elas realmente são. Será? O que vejo em uma pessoa é o que ela é ou o que ela quer parecer? Levei a xícara vazia à boca. Que tristeza! Levantei-me para ir até o caixa. Será que tudo que pensamos de uma pessoa qualquer na rua é intencional? Quero dizer, será que as pessoas manipulam suas aparências para parecerem possuir uma determinada

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personalidade ou será que elas são realmente o que aparentam ser? Como eu sou? Ao sair do Café, me perguntei se alguém ali tentava me adivinhar pelas roupa e maneiras minhas. Bom, se sim, era melhor apressar-se pois já estava fechando a porta e entrando na multidão dissimuladora.

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Padrões Todo dia, ao andar de manhã pelo mesmo caminho no centro de São Paulo, eu brincava de inventar histórias sobre as pessoas que via. A partir da imagem de cada uma, eu tentava deduzir quem essa pessoa era e o que a levou a estar naquela rua naquele momento. Será que eu acertava? Será que é possível descobrir tanto sobre uma pessoa apenas pela aparência dela? Ou será que produzimos uma aparência específica para o ambiente público que esconde e protege quem realmente somos na intimidade? Ao procurar uma bibliografia que pudesse me direcionar ou explicar melhor essas questões, me deparei com o texto de Pierre de Mayol, Morar, no livro: A invenção do Cotidiano II, onde o autor trata da vida cotidiana na Paris do início do século passado e tenta explicar as relações sociais a partir da conveniência (repressão de certos impulsos humanos dentro da vida social para manter um comportamento ou postura esperados pelas demais pessoas da sociedade, a fim de obter aceitação social e favorecimentos por parte dos outros).

O bairro é um palco “diurno” cujos personagens, são a cada instante, identificáveis no papel que a conveniência lhes atribui: a criança, o pequeno comerciante, a mãe de família, o jovem, o aposentado, o padre, o médico, máscaras e máscaras por trás das quais o usuário do bairro é “obrigado” a se refugiar para continuar usufruindo dos benefícios simbólicos com os quais pode contar. (MAYOL in CERTEAU, p 51)

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Nesse trecho, Mayol compara a cidade a um teatro, onde cada pessoa é encarregada de interpretar um papel. Esses papéis consistem no conjunto de ações as quais a sociedade espera de cada pessoa. Essa organização existe para que as pessoas ajam conforme o esperado pela sociedade, ou seja, de maneira conveniente, porque agir fora do que está previsto no “papel” pode gerar desconforto - ser inconveniente - e, por isso, causar um certo estranhamento em relação à pessoa responsável pela ação, excluindo-a de certos grupos ou favorecimentos cotidianos. Digamos que uma pessoa foi até a padaria comprar um pão francês. Ela pediu para a atendente pegar “dos mais moreninhos”. A atendente escolhe os pães e, enquanto embala e pesa, faz algum comentário sobre ser sexta-feira e pergunta ao cliente se vai viajar no fim de semana. Se o cliente responder de acordo com o que é conveniente, poderá iniciar uma pequena aliança de confiança, principalmente se frequentar a padaria cotidianamente. Mas, se o cliente simplesmente não responder nada, a atendente pode achar esse comportamento inconveniente e, da próxima vez, não se preocupar em escolher mesmo os melhores pãezinhos. Esse é um exemplo bem simples, mas acho que bem ilustrativo ao que Mayol se refere em seu texto, quando explica as interações sociais através da conveniência e descreve a existência de papéis a serem exercidos por cada pessoa dentro da sociedade. E quais são esses papéis? Mayol cita alguns exemplos: criança, aposentado, padre, médico... mas o texto se refere a uma cidade completamente diferente de São Paulo e em outra época. Quais são os papéis esperados pela sociedade em que vivemos hoje no centro de São Paulo? Passei algumas semanas desenhando pessoas aleatoriamente pelo cen-

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tro da cidade. Tentei não escolher pessoas, apenas desenhava aquela que passou muito próximo ou que se demorou alguns segundos a mais na minha frente. Não foi tão fácil, não posso dizer que fui seriamente fiel ao compromisso de não preferir desenhar alguém. Muitas pessoas chamam a atenção pelo modo como andam, como se vestem, como se comportam, etc. Algumas vezes causam curiosidade, confusão, riso ou revolta. Após alguns desenhos, percebi que essas características que chamavam a minha atenção, na verdade, poderiam ser exatamente os papéis que eu procurava identificar, e me despi de qualquer bloqueio, desenhando quem eu quisesse. Algumas vezes, anotava junto ao desenho uma palavra ou observação sobre a pessoa, ou sobre a situação que observava. Depois de alguns desenhos, parei para rever o material que tinha e tentei buscar uma ordem ou um padrão.

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Tentei organizar as pessoas conforme a profissão, como aparece no texto de Mayol. Várias delas, no entanto, não revelavam em sua imagem o trabalho ou vocação que possuiam. Talvez os papéis de hoje não sejam definidos pelas profissões, afinal. Pensei em separá-las por idade e sexo, mas essas são características que não revelam nada significativo sobre cada pessoa. O que seria significativo, então? Revi as anotações do texto de Mayol. Buscava algum fator que pudesse explicitar quem eram aquelas pessoas na sociedade. Para isso, eu havia partido do pressuposto de que as pessoas fazem uso de uma dupla personalidade: a exibida no ambiente público (pessoa pública) e a exibida no ambiente íntimo (pessoa íntima), como defende Mayol:

[...] ”é preciso conviver” [em sociedade], encontrar um equilíbrio entre a proximidade imposta pela configuração pública dos lugares e a distância necessária para salvaguardar a sua vida privada. (MAYOL, p. 47)

Nesse trecho, o autor defende a necessidade da existência da dupla personalidade (pública e íntima) para viabilizar a convivência entre as pessoas. Sendo a personalidade pública das pessoas definida pelos “padrões” da sociedade, eu deveria encontrar esse padrões facilmente. Mas tudo que achei foram algumas categorias insuficientes.1 Mais tarde, investigando outras bibliografias, me deparei com texto de Sennett “O Declínio do Homem Público” que apresenta um discurso examinador da sociedade contemporânea. Nele, encontrei uma possível resposta:

1 Aqui caberia citar a influência do capitalismo ou a existência das divisões de classe social que formariam, em partes, as categorias as quais me refiro. Mas como explicado anteriormente no capítulo introdutório, esse aspecto não será abordado.

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“Quando a máscara se tornou rosto, quando as aparências se tornaram indícios de personalidade, havia-se perdido o auto distanciamento. Que liberdade tem as pessoas quando são o que aparentam?” (SENNETT, p. 313).

Esse trecho condensa diversas ideias sobre o comportamento social. Primeiro, ele se refere às máscaras, uma figura de linguagem que pode ser associada a dos “papéis”. Ao sair na rua, a pessoa tem uma imagem que ela mesma construiu para ela: o cabelo, as roupas que usa, a maneira de andar de falar, de interagir com o meio. Essa é a máscara a que Sennett se refere. Ela não é a tradução de quem é realmente a pessoa, mas a representação de quem a pessoa quer ser publicamente. Esse ser público de cada pessoa é encaixado pelas demais em algum dos padrões - ou papéis - definidos pela sociedade, os quais implicam em certos comportamentos Mas a que Sennett se refere quando diz: “quando a máscara se tornou rosto”? Sennett explica que na época moderna, ocorreu um determinado fenômeno social: a entrada da personalidade na sociedade, quando as pessoas se confundem entre o “eu íntimo” e o “eu público” (entre o indivíduo e o cidadão) e passam a acreditar que a máscara utilizada em público representa quem elas realmente são. Quando isso acontece, a imagem (porque já não podemos chamar de máscara, já que não existe uma distinção correta entre a pessoa e a aparência que ela possui) que se constrói ao sair em público ganha uma importancia enorme, visto que ela é reveladora do “eu verdadeiro” de cada um. Por isso, as aparências

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se tornam indícios de personalidade (SENNETT, 1989, p. 313). Retomando os desenhos, entendi o porquê eu não consegui encontrar um padrão para as pessoas. Na realidade, a ideia de padrão está (ou já foi) desconstruida na sociedade contemporânea. Padrões evocam a ideia de coletividade, de conjunto, se é um padrão, é porque se repete; uma vez que se repete, não é único. Em uma sociedade em que a imagem pública das pessoas é a tradução direta da personalidade de cada um, não é possível existir um padrão, cada pessoa deve ser única pois cada personalidade é única. Também entendi porquê tive dificuldade em não escolher pessoas para desenhar. Como a imagem de cada pessoa é reveladora de sua personalidade, algumas se tornavam automaticamente mais interessantes para mim do que outras, tanto pela identificação que eu mesma estabelecia com ela, quanto pela total diferença. Ao esclarecer os conceitos de papéis e máscaras e entender a confusão que acontece na sociedade atual em relação ao que é íntimo e o que é público, percebi que os padrões de Mayol, hoje, não se revelam nas pessoas em si e nem em suas profissões, mas exclusivamente em elementos da aparência. E quais são os indícios de personalidade que podem ser encontrados nas aparências das pessoas? Na verdade, todos os elementos da imagem de cada pessoa revelam (de acordo com a teoria de Sennett) algum traço de personalidade: se está sorrindo, se usa óculos redondo ou quadrado, se anda em postura, se as roupas são novas, se tem cabelo colorido, etc. Tanto isso é verdade e tanto nos preocupamos com esses detalhes que é muito fácil encontrar no mundo da internet infográficos que expliquem esses elementos de forma cômica. Como mostrado abaixo.

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Hipster. Fonte: http://designontherocks.com.br

Os elementos elencados nesse exemplo de infográfico, fazem da pessoa que os usa, hipster. Faço uso deste “estilo” como exemplo, por ser muito comentado atualmente, mas poderia falar de geracão y, geeks ou hypes. Todos esses nomes se referem a uma aparência que remete a um estilo de vida e procuram definir “quem a pessoa é”. Eles poderiam, inclusive, constituir os padrões que eu procurava. Mas essas “categorias” diferem tanto dos padrões citados por Mayol que não consigo estabelecer uma relação direta entre os dois. isso porque as “categorias” atuais são movimentos gerados pelos jovens - talvez em busca de uma personalidade que os realize - e as categorias de Mayol incluem todas as pessoas

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da sociedade: o velho, a criança, a dona de casa, o padre. É importante, no entanto, observar como essas “categorias” atuais explicitam a importancia que a imagem de cada pessoa ganhou na sociedade contemporânea. Essa busca por uma imagem que traduza a personalidade própria possui tanto peso que acaba por esvaziar o próprio entendimento do “eu”.

O eu de cada pessoa tornou-se o seu próprio fardo; conhecer-se a si mesmo tornou-se antes uma finalidade do que um meio através do qual se conhece o mundo. E precisamente porque estamos tão absortos em nós mesmos, é-nos extremamente difícil [...] dar qualquer explicação clara para nós mesmos ou para os outros daquilo que são as nossas personalidades. (SENNETT, p. 16)

Sennett deixa claro que cada pessoa na sociedade atual, ao tentar com tanto afinco construir uma imagem para si que traduza fielmente a própria personalidade, acaba por tornar essa imagem mais importante do que o próprio “eu”, ou pior, transforma-a em seu “eu”. Isso acontece, por exemplo, quando uma pessoa deseja ter uma imagem que não corresponde ao quem ela é, e então, ela gera uma modificação do próprio ser para se “encaixar” na imagem que ela deseja ter. Essa inversão de valores gera uma enorme confusão entre “ser” e “parecer”. As palavras “ser” e “parecer” possuem diversos - e complexos - sentidos. Neste trabalho, elas são utilizadas com o seguinte significado:

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ser

características de alguém,

parecer

interpretação rápida feita

independente de imagem.

a partir de uma imagem.

Ou seja, o conjunto de características comportamentais e físicas de uma pessoa define o “ser”. O que o restante das pessoas interpreta ao observar o comportamento e a imagem física de alguém é o “parecer”. A discussão aqui levantada é a perda do limite entre um e o outro, já que é possível modificar uma imagem a partir do desejo de ser interpretada de uma determinada forma pela sociedade, misturando a “pessoa concreta” com a “pessoa coletiva”.

A entrada da personalidade para o domínio público significava que uma pessoa coletiva pareceria dever ser, em essência, como uma pessoa concreta. Inversamente, uma pessoa concreta deveria ser capaz de reconhecer-se a si mesma na coletividade. (SENNETT, p. 295)

Todas essas questões sobre como cada pessoa se enxerga dentro de uma sociedade são fundamentais para entender o comportamento delas nos espaços públicos de uma cidade. Apesar de ainda confusas e bem rasas em mim, elas me estimularam a observar mais o comportamento cotidiano das pessoas e a estudar algumas primeiras interpretacões próprias. No caso dos padrões de Mayol, o que encontrei nos caminhos cotidianos pelo centro não foram pessoas específicas ou caricaturadas em padrões de-

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terminados. O que encontrei foram objetos e comportamentos (símbolos) que remetem a um padrão (como exemplificado na imagem do hipster na página 43). As pessoas adquirem esses símbolos na tentativa de formar uma imagem que exprima aquilo que elas são (ou querem ser). A liberdade de imagem e a ideia de “ser o que quiser” trouxe consigo uma grande valorização do eu, colocando-o acima, principalmente, dos interesses sociais, retirando a força da população como um organismo unido, tornando-a apolítica. Os espaços públicos refletem as interações sociais da população e, no caso de São Paulo, o individualismo transformou a configuração da cidade, tomou as ruas expulsando as pessoas e reforçando mais ainda a desvalorização do coletivo. Mas isso veremos no capítulo Cidade

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Primeiro livro »»   O FORMATO Desde o início do TFG, o formato de livro que trabalhei foi o sanfonado. Tanto por ser uma forma simples e lúdica por si só, quanto por representar, de certo modo, uma ação cíclica que remete ao cotidiano.

Formato “livro infinito”.

O formato sanfonado pode compor um “livro infinito” ou um “zig-zag”. O primeiro foi descartado por ser menos prático de manusear e dificultar a leitura das imagens por inteiro, como se observa nos desenhos ao lado.

Formato “zig-zag”.

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O cotidiano pode não ser citado como tema nesse trabalho, mas ele está presente na discussão do comportamento social. É o ambiente natural do objeto de estudo e foi o ponto de partida do tema: o caminho que eu fazia diariamente da minha casa ao centro, observando as pessoas. Esse mesmo tema também ajudou a definir o formato quadrado, além do fato de ser um formato fácil na utilização de imagens. As dimensões do livro foram definidas a partir de três premissas: o conforto no manuseio, a correspondência com o tamanho dos outros livros desse trabalho e o aproveitamento do papel na gráfica. Esse primeiro livro foi pensado para ser manuseado sem auxílio de um suporte (uma mesa, por exemplo), apenas com as mãos. Por isso, ele precisaria ser menor, mas também deveria comportar as imagens. As dimensões deste caderno, que acompanha os dois livros, foi definido exclusivamente pelo conforto ao ler e foi baseado em alguns livros que julguei ter essa qualidade. Ele possui 14x20 cm (sendo levemente menor que um A5, facilitando o refile no final). As medidas do carderno ajudaram a definir as dimensões dos dois livros deste trabalho que são quadrados: o primeiro com

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metade da altura do caderno (10 x 10cm) e o segundo com a largura (14 x 14 cm).

caderno livro 2 livro 1

14

14

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No papel da gráfica, esse formato permitiu a impressão de três livros em apenas duas pranchas de 32x45 cm (área impressa) como mostrado abaixo.

»»   Prancha um:

frente

verso

»»   Prancha dois:

frente

verso

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O aproveitamento da segunda prancha, como mostrado acima, não foi tão bom quanto o da primeira, pois o livro possui 7 páginas e não 8, que seria o número que configuraria o melhor aproveitamento do papel. Mas, para que o livro tivesse as capas viradas para lados diferentes, era necessário um número ímpar de páginas, como mostrado nas imagens abaixo. Isso foi importante para garantir um título para cada um dos dois lados do livro. Esquema de números de páginas: V = verso F = frente

Número ímpar de folhas (5):

Número par de folhas (4):

frente e verso possuem uma

frente e verso possuem quan-

capa cada e a mesma quanti-

tidades diferentes de páginas

dade de páginas (4).

(uma com 4 e a outra com 2) e as duas capas se encontram em apenas um dos lados.

O livro final possui 7 páginas em cada lado, sendo uma dessas páginas, a capa.

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»»   O CONTEÚDO O livro busca transmitir a idéia de individualismo a partir da afirmação do “eu”, mostrando a imagem de uma pessoa por página e colocando esse individualismo em contraponto com a idéia de conjunto, ao diminuir o zoom da cena e mostrar mais pessoas que, apesar de comporem um conjunto, não interagem entre si, reforçando a idéia de uma sociedade individualista. Não acho que seja interessante explicar o que exatamente se buscou como narrativa na composição do livro, mas para efeito de estudo de forma, é importante saber se o resultado foi alcançado. Outras narrativas são possíveis e bem vindas, possivelmente até melhores do que essa explicacão técnica que dei. O importante é a presença das questões do individualismo, da pessoa íntima e a pessoa pública. Os elementos mais importantes nesse livro são os títulos e a figura que aparece como central, no caso, uma menina com uma sacolinha. O livro é composto por imagens que são sequenciais mas que não possuem uma narrativa completa por si só, permitindo diversas interpretacões. Por esse motivo, o título possui um peso enorme porque serve de guia para a leitura e foi a parte mais complicada. Precisava ser conciso, contendo a idéia de indivíduo x coletivo sem a explicitude de usar exatamente essas palavras. O título é, ainda, o convite para a leitura e deve reforçar a conexão com o leitor, complementando os outros elementos presentes no livro. Foi essa última característica que levou a escolha definitiva do título. Depois de algumas reuniões em atendimentos com a orientadora e outros alunos do TFG, a visão de um colega que estava de fora de todo o processo, trouxe uma outra abordagem e levou ao título que agora está. Sobre a personagem central, apareceram muitas dúvidas. Em um pri-

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meiro momento, coloquei um homem cabisbaixo como elemento central. Depois, achei que uma figura sombreada poderia levar a ideia de dúvida sobre “eu”. No fim, percebi que poderia utilizar um fato ocorrido enquanto eu desenhava as pessoas na rua: uma menina que percebeu que estava sendo desenhada. Ela se surprendeu quando se deu conta da minha presença. Aproveitei para usar essa surpresa para colocá-la no meio da multidão desconexa.

Imagens testes: homem cabisbaixo e sombra

Imagem final

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»»   CORES E TRAÇO Inicialmente, eu pretendia fazer alguns testes de técnicas para representar os desenhos. Cheguei a fazer alguns com tinta acrílica, tentei usar diferentes papéis também, como o craft (ver desenho abaixo), mas me dei conta de que esse TFG não trata da exploração de várias técnicas, mas da descoberta de uma linguagem própria, rápida e simples que possibilitasse os desenhos nas ruas, como uma documentação do que foi visto.

Acima, exemplo de um experimento que acabou resultando em um traço duro sem muita expressão. Ao lado, a técnica escolhida com caneta hidrocor e caneta nanquim, mais leve e rápido.

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O que eu buscava, ao esboçar as pessoas, não era retratar a exata aparência, isso seria muito difícil para um desenho rápido (de menos de 1 minuto) e reduziria o número de pessoas as quais eu poderia representar. Assim, a forma como elas foram desenhadas busca transmitir uma conclusão rápida, aquilo que ficou na memória a partir de uma observação momentânea, como quando passamos pelas pessoas na rua. Depois de desenhar na rua, coloria os desenhos em casa com canetas hidrocor. Como eram vários desenhos, mesmo que pequenos, as canetas foram uma boa alternativa, poque são fáceis e rápidas de usar. Quando juntei todos os desenhos de pessoas, percebi que elas próprias já possuiam uma paleta de cores que era, justamente, formada pelas cores das canetas. A partir delas, defini a paleta de cores de todo o trabalho, como mostrado abaixo.

»»   TESTES Esse primeiro livro foi refeito várias vezes. Muitos testes foram necessários para acertar a impressão frente e verso, as cores, os tamanhos, a capa. Uma questão em particular levou um bom tempo para ser resolvida: a emenda. Como a o tamanho máximo de impressão era 45x32 cm, e o livro possui 80 cm de comprimento, foi necessária uma emenda. A idéia de usar uma aba, como é feito normalmente em livros sanfonados, me atormentou por algumas semanas. Como o livro possui desenho na frente e no verso, achei que a presença de uma aba o deixaria mal finalizado.

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Tentei transformar uma página inteira em aba, mas isso fez a gramatura do papel dobrar, tornando uma das páginas mais pesada do que as outras, deixando um acabamento ruim. Tentei imprimir cada lado separado e, dessa forma, consegui não ter abas e manter a mesma gramatura em todas as páginas, como mostrado no esquema abaixo, mas as páginas coladas não se adaptavam bem às dobras e tornava o livro menos maleável e, além disso, essa opção gastaria muito mais folhas, já que a impressão não poderia ser frente-e-verso.

Esquema de livro sanfonado sem aba: Planificacão:

Montagem:

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Por fim, fiz um teste final com aba e deixei-a virada para o lado onde apenas uma figura ocupa cada página, não precisando ter desenho na aba. Foi a melhor solução, com certeza. É engraçado como precisamos passar por determinadas experiências para entender uma solução que já estava dada.

Teste 01: Capa de madeira balsa e transparência. A combinação dos materiais não conversavam com o conteúdo do livro.

Teste 02: Capa de de papel madeira e color plus. O padrão da capa competia com o padrão das pessoas no interior do livro.

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Teste 03: Caixa de papel craft com invólucro de papel color plus 180g. A gramatura do papel colorido não é suficiente para estruturar o invólucro.

Teste 04: Invólucro de papel triplex. Mesmo a menor gramatura provocou um acabamento mal resolvido.

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»»   ACABAMENTOS Alguns testes de papel e fonte foram feitos. A fonte foi escolhida por se assemelhar à escrita manual sem muitos exageros, acompanhando o traço simples do desenho. O papel marfim foi o que valorizou mais as imagens, tanto pela delicadeza dos desenhos, quantos pelas cores claras e opacas que possuem. Inicialmente, eu pretendia utilizar o papel pólem em todos os livros e nesse caderno, mas como a maior gramatura que possui é 90g, era inviável utilizá-lo para os livros que se tornariam muito frágeis. Dessa forma, o papel pólem permaneceu apenas neste caderno e nas capas (encapando o papel roller). No lugar dele, foi usado o papel color plus marfim 180g. A seguir, fotos do livro finalizado.

Livro final 01: Cada um dos lados do livro possui uma capa que serve como título

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Livro final 02: O invólucro foi feito com papel color plus 180g reforçado com craft 200g. Cada exemplar do livro possui uma cor diferente para o invólucro.

Livro final 01: A capa foi feita de papel roller encapado com papel pólen 90g. Essa solução dispensou a necessidade do uso da caixa.

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»»   CONSIDERAÇÕES FINAIS Demorei alguns meses para terminar esse livro. Muito mais tempo do que tive para fazer o segundo livro que, inclusive, é mais complexo e constitui o objetivo desse trabalho. Mesmo assim, foi muito importante finalizar esse primeiro livro que, apesar de bastante simples, exigiu a solução de diversos problemas que, muito provavelmente, apareceriam no próximo livro se já não tivessem sido sanadas nesse primeiro. Para que esse livro chegasse ao formato definitivo foi preciso ter um pensamento muito claro, dentro da minha interpretação, dos conceitos apresentados por Sennett e da relação que criei entre o texto e minhas experiências próprias para conseguir sintetizar os pensamentos e transmiti-los através de um livro-objeto ilustrado. Considero esse livro pronto, acabado. Sem essa certeza, não seria possível iniciar o próximo.

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CIDADE

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“Outro dia, caminhando pelo viaduto do chá, observava como tudo havia mudado em volta, ou quase tudo. O Teatro Municipal, repintado de cores vivas, ostentava sua qualidade de vestígio destacado do conjunto urbano. Nesse momento, descobri, sob meus pés, as pedras do calçamento, as mesmas que pisei na infância. Senti um grande conforto. Percebi com satisfação a relação familiar dos colegiais, dos namorados, dos vendedores ambulantes com as esculturas trágicas da ópera que habitam o jardim do teatro. Os dedos de bronze de um jovem reclinado numa coluna da escada, continuam sendo polidos pelas mãos que o tocam para conseguir ajuda em seus males de amor. As pedras resistiram e, em íntima comunhão com elas, os meninos brincando nos lances da escada, os mendigos nos desvãos, os namorados juntos às muretas, os bêbados no chão.” “O planejamento funcional combate esses recantos na preocupação contra os espaços inúteis, elimina as reentrâncias onde os párias se escondem do vento noturno, os batentes profundos das janelas dos ministérios onde os mendigos dormem.” (Ecléa Bosi, Memória e Sociedade, 2015)

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Lembranças Quando eu era miúda morava na casa da minha vó, mas só lembro mesmo é da minha escolinha que de “inha“ não tinha nada. Era enorme. Maior que toda a cidade, na minha opinião. Claro que sim! E tinha árvores gigantescas que davam cocos minúsculos que tinham gosto ruim, mas que a gente comia e gostava. Uma das árvores soltava seiva. Sabia lá eu o que era isso? Uma amiga me disse que era sangue. Daí morri de medo e a árvore ficou mais fascinante ainda. Ela tinha folhas baixas e os galhos tortos. Ficava ali na parte mais escura do “bosque” do quintal da escola. De repente, tudo isso ficou para trás e me mudei para uma cidade de muito sol que não tinha prédios, só casas, areia de praia e cheiro de sal. Muito vento. Mas todos os peixes, limões, baldes vermelhos, piscinas de areia, músicas de rebolado, morros labirínticos, cigarras e calangos foram parte de um mundo infantil que nem sei se é muito verdade porque é só meu sozinha. E esses dias descobri que as coisas só são verdades se mais alguém acredita nelas. Quando voltei para São Paulo, aos treze anos, já era adolescente e não prestava atenção em nada que estivesse muito longe do meu umbigo. De memória tenho músicas, roupas, pessoas, brincos e pães de queijo do colégio e do cursinho pré-

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-vestibular. Nada de cidade. Sinto que minha adolescência poderia ter acontecido em qualquer lugar. Depois disso, chega meu presente.

Essas memórias que tenho de quando eu era muito pequena são muito queridas. Delas, surgiu a vontade de estabelecer (ou reestabelecer) laços com a cidade onde elas aconteceram. Mas não é fácil trocar gentilezas com São Paulo. Todos os dias nos submetemos a uma série de violências visuais, auditivas, olfativas e morais ao sair de casa. Essas violências acontecem no espaço da cidade, mas não é a cidade que as provoca. Não devemos tirar a responsabilidade da própria sociedade pela situação em que se encontram os espaços públicos onde ela vive. A cidade não é um elemento vivo com vontades próprias, mas um meio pelo qual o comportamento social se extravasa, reafirmando ou possibilitando outros comportamentos sociais. Hoje, o comportamento social predominante é o individualismo. Como espaços públicos podem sobreviver em uma cultura do espaço privado? As minhas memórias me permitiram estabelecer uma relação de afeto com a cidade, me identifico com alguns espaços existentes e me sinto parte de um todo, mesmo que esse todo seja anônimo e amorfo, sem uma identidade clara ou assumida. Talvez a valorização da memória (individual ou coletiva) seja um caminho para a revalorização dos espaços públicos.

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É necessário cuidado para não tornar essas lembranças em um motivo para a privatização dos lugares. O compartilhamento de memórias pode ser responsável por demonstrar a importância dos espaços públicos da cidade e as diversas maneiras as quais eles podem ser usufruídos pela sociedade.

Vista da Galeria Metrópole na Av. São Luís.

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Introdução No capítulo anterior, tentei demonstrar como as pessoas supervalorizam a imagem que possuem e como isso leva ao egoísmo, caracterizando uma sociedade individualista. Nesse capítulo, procuro levantar questões que demonstram como esse individualismo modifica o espaço público, como esse espaço modificado pode servir de apoio ou incentivo para a perpetuação desse comportamento social e, também, investigo alguns aspectos que podem caminhar no sentido oposto, favorecendo a mudança de comportamento e valorização do coletivo. O mais importante é estabelecer algumas primeiras conexões entre o comportamento social e a configuração do espaço público, deixando aberto o convite a mim mesma para prosseguir com essa pesquisa em algum tempo a se definir no futuro.

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Grupinhos As metrópoles [...] diferem das cidades pequenas e dos subúrbios em aspectos fundamentais, e um deles é que as cidades grandes estão, por definição, cheias de desconhecidos. (JACOBS, p. 30)

Algumas vezes me surpreendo com o fato de conseguirmos viver em cidades gigantescas onde é impossível conhecer metade da população. Me surpreendo porque, quando não conhecemos as pessoas, não nos sentimos plenamente seguros na presença delas, somos vulneráveis a toda e qualquer ação que passe pela cabeça do outro. Esse medo e desconfiança são estimulados pela sociedade que vivemos, pelo modo como nos relacionamos uns com os outros e com nós mesmos.

Essa relação entre necessidade formal do encontro e o aspecto aleatório de seu conteúdo leva o usuário a se manter como que “na defesa” [...] sair à rua significa correr o risco de ser reconhecido, e por tanto, apontado com o dedo. (MAYOL, p. 46)

A certeza do encontro e a imprevisibilidade de quem iremos encontrar ao sair na rua, segundo Mayol, nos leva a manter uma postura de defesa por dois motivos: primeiro, pela exposição que sofremos com a possibilidade de encontrar algum conhecido que, automaticamente, tomará ciência do que estamos fazendo naquele momento; segundo, por encontrar diversos estranhos que farão julgamentos com base na nossa imagem. Esse é o fardo de uma pessoa pública: ser

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vista e, por consequência, julgada pela aparência. Ao sair na rua, temos que ser capazes de, repetidamente, defender quem somos e como somos, nossas ideias e preferências1. Um dos modos de se esquivar da responsabilidade que o ser público impõe (que é de defender a sí mesmo) é procurar apoio de outros que partilhem de algumas características, somando opiniões e argumentos sobre um mesmo assunto. Por exemplo, supomos que uma pessoa pinte o cabelo de azul. Ao sair na rua, essa pessoa enfrentará olhos julgadores de uma aparência que pode não ser aprovada por outras pessoas. Ao encontrar outro alguém com o cabelo azul ela se identificará e as duas pessoas poderão formar laços por encontrarem em si o conforto da compreensão e do apoio. Isso acontece com tudo que deixamos transparecer sobre nós na sociedade: desde a banda favorita, até a opinião política. A partir dessas associações de semelhança, criamos grupos de todos os tipos com o objetivo (consciente ou não) de apoiar determinados modos de pensar, certas maneiras de viver, certos jeitos de se vestir, certas músicas para se ouvir. O próprio exemplo do hipster, citado no capítulo anterior, entra como um desses grupos. A maioria deles, não se limitam apenas a união de pessoas por uma ideia em comum, mas a exclusão de outras que são estranhas a essas ideias. Se um determinado grupo possui uma opinião política, por exemplo, ele não só cria inúmeros argumentos e contra-argumentos de defesa como excluem, deliberadamente, a presença de pessoas com outras opiniões por meio de respostas 1 Se não fosse a decisão em não percorrer determinados assuntos, aqui caberia exemplificar como a defesa do eu na sociedade é mais ou menos difícil dependendo de quem seja esse eu. A partir dos preconceitos e da divisão de classes, pode ser muito complicada a afirmação de si mesmo dentro da sociedade em que vivemos.

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agressivas ou deslegitimando a opinião do outro que, por sua vez, se sente inibido e desestimulado a conviver com aquele grupo.

[...] quanto mais intimidade, menor é a sociabilidade. Pois este processo de fraternidade por exclusão dos “intrusos” nunca acaba, uma vez que a imagem coletiva desse “nós mesmos” nunca se solidifica. (SENNET, p. 325)

Sennett nos chama a atenção para o fato de que esses grupos podem ser infinitos, sendo paralelos ou constituindo grupos dentro de grupos. Ou seja, é possível se identificar com alguém por uma característica em comum, mas não se identificar com essa mesma pessoa quando existe uma divergência de pensamento em outro aspecto da vida. Isso leva a sociedade atual a se fechar em grupos cada vez menores de pessoas iguais, que pensam da mesma forma e que gostam das mesmas coisas. As pessoas se tornam cada vez mais intimistas e cada vez menos sociáveis, sempre evitando o confronto de opiniões, empobrecendo o poder e a aceitação de críticas e diminuindo o crescimento cultural da população.2

2 Nessa parte, é importante salientar que existe um interesse forte no desfavorecimento do desenvolvimento cultural de uma sociedade por parte do sistema econômico em que ela se encontra e, principalmente, por parte de uma elite com interesses individualistas.

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Espaço personalizado Como o comportamento individualista de uma sociedade e a divisão das pessoas em grupos cada vez mais íntimos e pessoais se reflete na morfologia da cidade? Como os espaços públicos se modificam a partir de uma lógica social individualista? A valorização do indivíduo em detrimento do coletivo se reflete na cidade a partir da desvalorização dos espaços públicos. A noção de coletivo está ligada à ideia de compartilhamento e o individualismo afasta essa ideia, estimulando o egoísmo e a intolerância. Assim, os espaços públicos - espaços de todos - só são valorizados quando de alguma maneira se configuram como espaços de poucos - personalizados. A personalização do espaço consiste na definição de um público frequentador e na exclusão de pessoas que não se encaixem nessa definição. Através da configuração do ambiente, um perfil de usuário é definido, e essa configuração somada ao comportamento dos próprios usuários provoca a exclusão de pessoas estranhas ao meio definido. Os lugares que as pessoas frequentam também fazem parte da exposição da personalidade. Por exemplo, ao sair para tomar um café, é possível escolher entre ir no “boteco da esquina” ou ir na Starbucks. Os dois lugares são completamente diferentes e possuem públicos diferentes. Escolher qual local ir significa também escolher à qual público pertencer e à quais pessoas se associar. O espaço passa a agregar valor à pessoa que o utiliza. Os espaços públicos não possuem uma capacidade de agregar valor às pessoas que o frequentam de maneira tão forte quanto os ambiente particulares

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ou intimistas que possuem uma clientela pré-determinada e que são concebidos já com um público alvo em mente. Os espaços públicos, teoricamente, são configurados para o uso de qualquer pessoa, sem exclusão. Ele possui um perfil de usuários mais assíduos, mas não exclui outras pessoas. Não é exclusivo. Por que alguém encontraria os amigos na praça, onde qualquer um pode ir e onde estarão a mercê de qualquer pessoa que passar por lá, se podem ir em um bar ou pior, em um shopping, onde a entrada é restrita? O planejamento urbano atual busca estimular o uso dos espaços públicos da cidade, mas muitos projetos visam o incentivo da sociabilidade e do encontro a partir da criação de espaços intimistas que provocam exatamente o comportamento oposto, como destaca Sennett.

[...] quando o planejamento de cidades procura melhorar a qualidade da vida tornando-a mais intimista, o próprio senso de humanidade do planejador cria a própria esterilidade que ele poderia estar querendo evitar. (SENNET, p. 380)

A Pracinha Oscar Freire e a Praça da Amaury são exemplos da tentativa de melhoria da qualidade de vida a partir da intimidade. Elas estão localizadas em áreas nobres da cidade e foram projetadas com o objetivo de promover o encontro entre as pessoas e a permanência no espaço público. O problema é: promovem o encontro entre quais pessoas? Esses locais não são acessíveis para toda a população e foram projetados com o objetivo de atender às necessidades de um público específico. Ou seja, os frequentadores foram previamente escolhidos pelos responsáveis pelo projeto e a sociabilidade acontece apenas entre eles. De que maneira isso acontece?

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Pracinha Oscar Freire: localizada em um região nobre da cidade, projetada pelo Instituto Mobilidade Verde com participacão dos frequentadores da rua, feita “sob medida”. Fonte: Instituto Mobilidade Verde.

Praça da Amaury: projetada pelo arquiteto Isay Weinfeld, a praça possui um portão e segurança particular. Fonte: isayweinfeld.com.

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A Praça da Amaury não é pública, pertence a um empresário que administra um café no local. Apesar de ficar a maior parte do tempo aberta, ela possui portões e é fechada a noite e seguranças particulares vigiam o local. Um espaço como esse, beira a distinção entre público e privado. Mas o fato é que esses espaços são particulares e desenhados com o objetivo de servir ao estabelecimento comercial que possuem, sendo que o funcionamento de um espaço público seria exatamente o inverso: o comércio serviria às necessidades do espaço e das pessoas que o frequentam. No caso da Pracinha Oscar freire, o objetivo é descrito pelos próprios responsáveis pelo projeto: criar um espaço de vivência para a hora do almoço das pessoas que trabalham na região. Assim, uma pequena rua foi fechada para a passagem de carros e transformada em uma praça com a presença de foodtrucks. Essa iniciativa pode ter acontecido com o objetivo de tornar o espaço da cidade mais agradável, porém apenas os interesses de um determinado público foram levados em consideração. Foodtrucks geralmente são uma alternativa cara de alimentação, mas nem todas as pessoas que trabalham próximo à região da Av. Faria Lima possuem um poder aquisitivo alto. Principalmente se pensarmos nos empregos desvalorizados pela sociedade, como faxineiros, entregadores, etc. Isso torna a Pracinha menos convidativa para esse público. Além disso, a presença de frequentadores seletos e a falta de incentivo para participação de outras pessoas faz com que estas últimas se sintam desestimuladas a permanecer em um local a que claramente “não pertencem”. A produção desses espaços públicos intimistas faz com que a tentativa de produzir um espaço de sociabilidade volte-se contra si mesmo, produzindo mais um local de distinção social.

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A desvalorização dos espaços públicos leva à carência de locais que permitam os encontros com pessoas diferentes e diminui a sociabilidade e o desenvolvimento cultural da população. A cidade, que costuma ser um motivo de união entre as pessoas de uma sociedade, acaba se transformando em um motivo de divisão, reforçando a existência de pequenos grupos sociais e estimulando os espaços íntimos e pesonalizados.

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Identidade Os espaços exclusivos e excludentes de São Paulo e a precarização dos espaços públicos dificultam o relacionamento entre as pessoas e a cidade. Como nos envolver com um ambiente que está a todo momento nos expulsando dele próprio? Como podemos recriar vínculos com a cidade, retomarmos o sentido de coletivo e de público e tornar esses espaços prazerosos? Podemos começar buscando o significado mais elementar do que é uma cidade:

Uma cidade é um assentamento humano na qual estranhos irão provavelmente se encontrar. Para que essa definição seja verdadeira, o assentamento deve ter uma população numerosa, heterogênea; a concentração populacional deve ser um tanto densa, as trocas comerciais entre a população devem fazer com que essa massa densa e díspar interaja. (SENNET, p.58)

De acordo com Sennett, o encontro e a interação entre as pessoas está no cerne da cidade. Jacobs especifica essa definição determinando como essas interações devem ser:

[...] se os contatos interessantes, proveitosos e significativos entre os habitantes das cidades se limitassem à conveniência na vida privada, a cidade não teria serventia. (JACOBS, p. 59)

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Os encontros que ocorrem na cidade devem ser, de acordo com Jacobs, interessantes, proveitosos e significativos para as pessoas. Como vimos anteriormente, em uma sociedade individualista os encontros e interações são cada vez mais limitados à grupos e lugares restritos, fora do ambiente público, excluindo a cidade do cotidiano das pessoas. Conversamos todos os dias sobre o trabalho, os estudos, os bares e festas, o médico... mas raramente as ruas e espaços públicos da cidade são lembrados e quando são assunto de conversa é por algum motivo negativo, como o aumento de moradores de rua, a agressividade de um motorista ou o tempo de espera no ponto de ônibus. Os espaços públicos da cidade são o meio pelo qual nosso cotidiano se torna possível, no entanto, esses espaços são desvalorizados e esquecidos perante os espaços íntimos. Isso leva à desvalorização do próprio cotidiano: o caminho até o mercado, por exemplo, é feito apenas por obrigação, de maneira automática e o mais rápido possível. Em alguns momentos, esse comportamento pode ser necessário, mas na maioria das vezes estamos tentando apenas nos desviar da cidade e dos males que os espaços públicos carregam consigo. Para recriar os laços entre as pessoas e a cidade em que vivem, é preciso dar valor para esses momentos cotidianos e, no lugar de se desviar dos problemas existentes, percebê-los, deixando a indignação provocada por eles estimular a vontade de mudança e a união das pessoas. Como explica Jacobs:

Aparentemente despretensioso, despropositados e aleatórios, os contatos nas ruas constituem a pequena mudança a partir da qual pode florescer a vida pública exuberante da cidade. (JACOBS, p. 78)

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A confiança na rua forma-se com o tempo a partir de inúmeros pequenos contatos públicos nas calçadas [...] grande parte desses contatos é absolutamente trivial, mas a soma de tudo não é nem um pouco trivial. [...] resulta na compreensão da identidade pública das pessoas, uma rede de respeito e confiança mútuos e um apoio eventual na dificuldade pessoal ou de vizinhança. A inexistência dessa confiança é um desastre para a rua. Seu cultivo não pode ser institucionalizado. E, acima de tudo, ela implica não comprometimento pessoal. (JACOBS, p. 50)

Jane Jacobs, em seu livro Morte e vida das grandes cidades (1960), desenvolve uma crítica ao urbanismo produzido até a época e defende a necessidade de uso e vivência das ruas e espaços públicos das cidades. Nesse trecho, Jacobs se refere à vizinhança e ao bairro, mas para que a união de pessoas que moram em uma mesma rua não se torne mais um grupo exclusivo na cidade, é preciso que as pessoas estejam dispostas a defender interesses não somente ligados à rua onde mora ou ao bairro, mas a todos os espaços públicos, em suas devidas proporções. Com isso não quero dizer que uma pessoa que mora em Itaquera deva participar das discussões sobre uma rua no Grajaú, mas ela deve se manter informada e interessada em ações locais que possuem impacto em toda a cidade e ainda procurar entender as necessidades manifestadas por outras pessoas de outros bairros, caso os interesses se confrontem. Um exemplo importante é a atual discussão sobre o destino do Elevado Costa e Silva, o Minhocão. Inaugurado em 1970, a obra que foi apresentada como solução (hoje muito questionada) para o trânsito intenso na região, provocou a decadência de vias importantes da cidade, a Av. São João e a Av. General Olímpio da Silveira, além de provocar a deterioração dos edifícios e comércios.

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Hoje, com a aprovacão do novo Plano Diretor Estratégico da Cidade, iniciou-se um processo de desativação do Minhocão que rendeu (e ainda rende) diversas discussões sobre seu destino. Para os passantes, pessoas de outros locais que frequentam o Minhocão aos fins de semana nos horários em que ele se encontra aberto apenas para pedestres, a necessidade da permanência do espaço do Elevado como parque e local de manifestações artísticas e culturais é indiscutível, mas os moradores do local, que vem a muito tempo lutando pela melhoria da qualidade de vida nas avenidas e pela salubridade dos apartamentos situados de frente para o Minhocão, defendem a demolição completa da obra. Para que seja possível chegar em uma conclusão que atenda às necessidades de lazer e recreação da população como um todo e que, ao mesmo tempo, revalorize as avenidas e traga qualidade de vida para os moradores que possuem suas janelas a apenas cinco metros de distância da estrutura monstruosa, é preciso que exista diálogo e um sentimento de solidariedade e compartilhamento entre os dois lados interessados.

O princípio fundamental de uma vida urbana próspera: as pessoas devem assumir um pouquinho de responsabilidade pública pelas outras, mesmo que não tenham relações com elas. (JACOBS, p. 90)

Como resume Jacobs, não é necessário possuir uma relação direta com as pessoas para que exista um sentimento de comunidade e responsabilidade de cada indivíduo perante todos os outros. Essa é a principal característica que foi banida da sociedade atual pela valorização do indivíduo e pela formação de grupos que promovem apenas o favorecimento próprio.

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A cidade deveria ser mestra nesse modo de agir, o fórum no qual se torna significativo unir-se a outras pessoas sem a compulsão de conhece-las enquanto pessoas. (SENNETT, p. 414)

A cidade não deveria ser apenas um limite espacial, mas a união de pessoas que se identificam entre si. Por isso, é extremamente necessária a existência de uma identidade coletiva além da identidade individual.

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Memória Nesse caderno, discutimos as relações entre as pessoas no espaço público; pensamos como essas relações alteram a cidade, desvalorizando-a; e descobrimos que é preciso reconectar as pessoas com a cidade, estabelecer uma identificação entre o indivíduo e o espaço. A identidade de uma pessoa ou de um grupo depende das memórias que carregam consigo. As experiências vividas, guardadas em forma de lembranças compõem a bagagem de vivências que interferem decisivamente na identidade de cada um. Chegamos até aqui para encontrar a seguinte questão: a memória pode ser um meio de estabelecer o vínculo, tão raro hoje em dia, entre as pessoas e a cidade1? De acordo com Jacobs2, são necessárias várias doses de pequenas vivências cotidianas para criar confiança no espaço da cidade e nas pessoas que o habitam. Dessa maneira, tornamos familiar o ambiente em que vivemos e, mesmo que nos mudemos ou que o ambiente mude, a morfologia antiga do ambiente ficará na nossa memória. Dessa forma, podemos dizer que a memória que as pessoas guardam de um lugar cria entre os dois uma relação afetiva de identificação.

[...] um mundo social que possui uma riqueza e uma diversidade que não conhecemos pode chegar-nos pela memória dos velhos. Momentos

1 Nesse caso, e nos próximos a se seguir, o termo “cidade” não se refere apenas ao espaço, mas também à comunidade que o ocupa. Então, nesse caso, a pergunta completa trataria do desenvolvimento de um vínculo entre as pessoas e a cidade (espaço) e entre as pessoas e elas mesmas (comunidade). 2

Ver “A confiança na rua forma-se com o tempo [...]” na página 89

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desse mundo perdido podem ser compreendidos por quem não os viveu e até humanizar o presente. (BOSI, p. 82)

O livro de Ecléa Bosi, Memória e Sociedade: Lembranças de Velhos (2015), traz alguns testemunhos sobre a vida e os costumes de pessoas mais velhas e trata da importância que a memória exerce sobre a vida particular e social das pessoas. O livro mostra que é a partir da memória que construímos uma relação afetiva com o meio em que vivemos, como demonstra esse trecho retirado de um dos depoimentos contidos no livro:

[...] com quinze anos eu trabalhei na rua General Osório com madame Vasques... quem sabe se haverá algum descendente que vai lembrar e também falar sobre ela, que estimou muito. Aí eu já ganhava um pouco mais. Depois essa oficina mudou para a Rua Marquês de Itu. Eu ia de lá do Bom Retiro, subia a José Paulino, passava na estação... sempre a pé. Ou vinha pela Alameda Cleveland, atravessava o Coracão de Jesus, passava alí no Largo General Osório, onde tinha uma casa muito antiga, onde minha mãe trabalhava, de d. Nicota Aranha. Ia a pé até a rua Marquês de Itu, lá na Vila Buarque, perto da Santa Casa, era longe! (D. Alice in BOSI, p.106)

O processo de criação de um vínculo de identidade entre a população e a cidade em que ela vive através da memória é lento. É preciso criar mecanismos que valorizem a preservação da memória e incentivar o uso do espaço público para que essas memórias sejam criadas.

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Segundo livro O objetivo do segundo livro é convidar as pessoas a questionarem o próprio comportamento perante os espaços públicos de maneira lúdica. Assim, a partir dos questionamentos apresentados anteriormente nesse mesmo capítulo e da minha própria experiência na cidade, defini seis questionamentos e seis lugares presentes em um caminho no centro de São Paulo.

»»   O CAMINHO O ponto de partida desse trabalho foi a minha experiência ao caminhar todos os dias pelo centro da cidade, indo da minha casa para o estágio. Esse caminhar cotidiano me proporcionou experiências inusitadas e uma aproximação maior com a cidade. Não faria sentido escolher um outro caminho para fazer parte da composição desse livro. De Santa Cecília até o Vale do Anhangabaú, o trajeto possuía inicialmente sete pontos que são importantes para mim, dentro do contexto da memória cotidiana. O primeiro ponto fica na Rua Imaculada Conceição, onde moro. Como esse lugar se caracteriza como um espaço íntimo de bairro, diferente dos outros locais escolhidos para o percurso, não fazia sentido utilizá-lo no livro final, portanto foi deixado de fora. Assim, totalizaram-se seis pontos utilizados para o percurso escolhido. Esses pontos se apresentam em cruzamentos de ruas onde eu precisava esperar o tráfego passar para atravessar. Esse tempo de espera me permitiu olhar em volta por mais tempo e isso possibilitou, posteriormente, o surgimento de algumas questões sobre a relação das pessoas com os espaços.

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Legenda: Rua Imaculada Conceição Rua Frederico Abranches Av. General Olímpio da Silveira Rua do Arouche Praça da República Av. São João Vale do Anhangabaú

»»   AS QUESTÕES Voltei a cada um dos pontos do caminho para relembrar as questões que me apareceram ao passar por eles cotidianamente. As memórias existentes não foram esquecidas e ao visitar novamente os lugares, foram elas que me refrescaram os pensamentos sobre o espaço público. O livro de Jacobs também foi importante para determinar esses questionamentos. No livro, a autora levanta diversas questões sobre o planejamento

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urbano e o uso dos espaços públicos que serviram como base para a organização dos meus próprios pensamentos. A seguir, os temas gerais a que cada um dos locais pertence : 1- Perceber o espaço cotidiano; 2- Entender os diferentes pontos de vista sobre um mesmo espaço; 3- Olhar as pessoas; 4- Entender a diversidade de uso; 5- Permanecer em espaços públicos; 6- Valorizar a memória cotidiana. As histórias sobre cada um desses locais se encontram no próximo capítulo, assim como as questões levantadas por cada um deles.

»»   O FORMATO Já definido pelo primeiro livro, o formato utilizado foi o sanfonado, com as dimensões 14 x 14 cm, acompanhando a largura deste caderno. O livro consiste na criação de ilustrações de cenários urbanos onde fosse possível separar as pessoas dos espaços, permitindo observar o local vazio e cheio. A intenção era poder comparar as duas situações e mostrar como os espaços e as pessoas são inerentes uns aos outros e como perdem sentido ao se separarem. Depois de algumas pesquisas sobre formatos possíveis para livros sanfonados1, escolhi utilizar o acetato para a construção de “bolsos” onde poderiam ser colocadas fichas, também transparentes, contendo as imagens das pessoas que se encaixariam no cenário já impresso no corpo do livro.

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Muitas das pesquisas de formato foram feitas no site: https://br.pinterest.com.

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Duas principais ideias para que o livro permitisse a montagem de cenas. A primeira, foi o uso de um bolso vazado que funcionaria como moldura e apoio para as fichas. A segunda, a costura de um acetato com uma abertura para o encaixe das fichas, como visto nos desenhos a seguir. Ao lado, algumas referências de formatos de livros. O primeiro, apesar de não ser sanfonado, trouxe a ideia do uso de bolsos para o encaixe das fichas. O segundo é um livro sanfonado e também ilustra pessoas e lugares. Porém, a forma como é feito não permite nem a plena inserção das pessoas na paisagem, nem a completa separação.

Segunda ideia

Primeira ideia

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PortfĂłlio de Nathan Hintz com bolsos para projetos. Fonte: http://br.pinterest.com

Livro de artista, autor nĂŁo identificado Fonte: http://br.pinterest.com

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Para que o livro ficasse harmonioso e o formato sanfonado fizesse sentido, as ilustrações de cada página deveriam formar uma única imagem contínua (como no exemplo abaixo). Porém, os desenhos feitos de cada local não cumpriam essa demanda e seria necessário refazer todas as ilustrações, estudando os ângulos de visão e as proporções de cada um para que, por exemplo, as esquinas de ruas coincidissem com a dobra do livro.

Livro sanfonado com cenário contínuo, as esquinas coincidem com as dobras do papel. Fonte: http://br.pinterest.com

Por uma questão de tempo, optei por utilizar os desenhos já prontos e, para compensar a falta de diálogos nas conexões entre eles, resolvi transformá-los em fichas a serem colocadas nos “bolsos” do livro, assim como seria com as imagens das pessoas. Essa decisão foi muito interessante porque criou mais dois espaços: o próprio corpo do livro, onde antes estariam as ilustrações dos lugares, e o verso das fichas. A presença desses espaços possibilitou adicionar ao corpo do livro os questionamentos sobre o espaço público para que fossem relacionados aos pensamentos nos versos das fichas, transformando o livro em um jogo.

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Esquema de sobreposiçþes e montagem do livro.

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»»   A LINGUAGEM Inicialmente, considerei mudar a técnica usada nos desenho deixando de lado a caneta hidrocor e utilizando aquarela, mas a mudança não fez sentido. Primeiro pela demora que os desenhos teriam em ficar prontos, segundo por interromper um dos aspectos da linguagem que une os dois livros e este caderno.

Loja de azulejos antigos na Rua Baronesa de Itu

A intenção final foi fazer os desenhos dos lugares da mesma forma como foram feitos os desenhos das pessoas: o traço feito no local e a pintura feita posteriormente em casa. As dificuldades encontradas em permanecer na rua o tempo necessário para os desenhos dos espaços serem concluídos, no entando, impediu que o traço fosse feito por inteiro no local. O fator principal para isso foi a insegurança. Apesar de estar acostumada aos locais, desenhar requer uma atenção que não se consegue compartilhar com o que está ao redor. Em alguns locais, como o

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Largo Santa Cecília e o cruzamento no Minhocão, consegui chegar mais perto de terminar o desenho no próprio local, mas não aconteceu o mesmo com os outros locais, principalmente no Vale do Anhangabaú. Confesso que foi angustiante para mim produzir um TFG que pretende entender as relações das pessoas com o espaço público e estimular o uso desses lugares e não conseguir permanecer sozinha tranquilamente na calçada em frente ao Largo do Arouche ou à Praça da República. Por outro lado, não acho que tentei com a insistência que poderia e pretendo repetir essa tentativa em uma próxima oportunidade. A solução encontrada para este problema foi esboçar o desenho rapidamente no local para captar o ponto de vista e as ideias de proporção, continuando posteriormente os detalhes a partir de uma foto.

Encontrar a linguagem para o mapa foi um pequeno desafio. Acredito que foi preciso brigar um pouco com a minha formação em arquitetura. As primeiras tentativas de desenhar um mapa foram inteiramente técnicas. Busquei no site do Mapa Digital da Cidade2, da Prefeitura de São Paulo, as imagens que construíam o caminho na cidade. Ao começar a montar as imagens e explorar as possibilidades, percebi que essa representação era incabível e não estabelecia nenhum diálogo com o trabalho. O desenho, definitivamente deveria ser feito à mão livre e não a partir de programas como Autocad e Illustrator. Explorei algumas formas de representação das quadras e ruas, porém nenhuma delas era suficiente para garantir um diálogo entre a minha memória e os espaços.

2 http://geosampa.prefeitura.sp.gov.br/

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A solução veio quando entendi que a representação, nesse caso, não precisava ser fiel à realidade porque, afinal, não representava a realidade em si, mas uma experiência íntima que eu procurava compartilhar. A partir da libertação da representação técnica, comecei a desenhar à mão livre o trajeto que realizei por tantas vezes e o desenho surgiu de uma só vez.

Teste do mapa 01: Imagem produzida a partir do programa AutoCad.

Teste do mapa 02: Tentativa de estilizar as quadras e demarcar o percurso.

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Teste do mapa 03: Uso de caneta hidrocor para representação das quadras. Os nomes das ruas seriam um modo de demarcar o percurso.

Teste do mapa 04: Mais ilustrativo, mistura cores e texturas, com setas indicando o percurso.

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»»   ACABAMENTOS A solução encontrada para criar os “bolsos” no livro, foi a costura à mão. A linha escolhida foi a 100% algodão por ser resistente, opaca e não encerada. Como essa linha é comercializada apenas na cor branca, o fio foi tingido com chá preto para que ficasse mais próxima do tom do papel pólem e marfim, utilizados no livro. Foram necessários alguns testes até encontrar a melhor maneira de costurar. A melhor opção foi fazer uma costura contínua na base do livro e juntar as transparências apenas com nós simples na parte superior. A primeira tentativa para unir o acetato ao livro foi utilizar uma folha única dobrada exatamente como o livro. Mas o acetato não possui a mesma maleabilidade que o papel color plus, o que dificultava a abertura do livro. Assim, foram utilizadas para o livro final folhas soltas de acetato.

Acima: linha tingida com chá e original, respectivamente.

Acima: dificuldade ao abrir o livro produzido com acetato dobrado.

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O primeiro livro possuia um número ímpar de páginas para que as capas ficassem em lados opostos. O segundo livro, ao contrário, precisava que as capas ficassem no mesmo lado, assim o lado com menos páginas comportaria bem o mapa enquanto o outro lado teria espaço para todos os seis locais do percurso, como mostrado abaixo.

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As fichas possuem dois tipos: as transparências, com o desenho das pessoas, e as de papel marfim, com as ilustrações dos lugares. Ao imprimir o teste das duas fichas, percebi que a transparência causava uma confusão em relação à qual seria o lado certo que encaixaria na ficha marfim. A alternativa encontrada para solucionar este problema foi o desenho das letras D e E (lados direito e esquerdo) no canto superior da ficha transparente. Por último, a aba de emenda do livro precisou ficar voltada para o lado das fichas, caso contrário, atrapalharia a leitura do mapa que se encontra no verso. Como o lado das fichas não possui desenhos contínuos impressos, a presença da aba não atrapalhou a leitura do livro. Esses dois casos podem ser observados na figura abaixo e, a seguir, as fotos do livro final.

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Invรณlucro produzido como o do primeiro livro, com papel color plus e craft. Dentro, o livro e o envelope com as fichas.

Capa do livro em papel roller encapado com papel pรณlen 90g.

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»»   CONSIDERAÇÕES FINAIS Apesar de alguns aspectos não saírem como esperado, o resultado final do livro ficou interessante e considero que funcione como um estudo para uma versão final. Os pontos que considero necessários serem revisto são: a continuidade das ilustrações dos lugares e a formulação das questões. Foi um pouco complicado elaborar as questões e criar uma relação entre as imagens, as experiências locais e os pensamentos sobre o uso do espaço público. Seria necessário mais tempo e talvez mais algumas leituras que fundamentassem de maneira mais concreta as questões elaboradas. Por fim, mesmo com os pontos destacados acima, a experiência com o processo de criação de um livro lúdico foi muito produtiva, rendendo muitos testes e experimentações.

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PERCURSO Ao seguir o mesmo caminho cotidianamente para o trabalho no centro de São Paulo, eu passava por alguns lugares que, com o passar do tempo, provocaram em mim alguns questionamentos sobre o meu comportamento no espaço público. Hoje, é raro eu fazer esse mesmo caminho e o cotidiano que vivi quando ia todos os dias ao centro ficou como lembrança. Essas lembranças se somaram a outras que, juntas, me permitem fazer parte de São Paulo e são responsáveis pelo meu apreço pelos espaços públicos da cidade, mesmo aqueles que não possuo nenhuma lembrança. Ainda.

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Largo Santa Cecília Por muito tempo, passei todos os dias pelo largo como se ele fosse um obstáculo até chegar ao metrô. Está quase sempre muito cheio de passantes, vendedores ambulantes e moradores de rua. A igreja é bastante visitada e organiza várias quermesses. Um dia, voltando para casa em um domingo de tarde, me deparei com uma quermesse muito grande, várias barraquinhas de comida, muitas crianças e pessoas que estavam lá apenas pelo passeio. Foi quando percebi que existem mesinhas de xadrez, alguns velhos estavam lá em grupos, jogando damas com tampinhas de garrafa pet. Essa foi a primeira vez que prestei atenção no Largo. Percebi o quão gostoso ele poderia ser e o quanto a minha atitude de passar por ele como que por um obstáculo nada ajudava para a diversidade de usos do lugar. Além da quermesse, quase toda sexta-feira, uma roda de samba se reúne do outro lado da igreja, junto aos bares. Algumas vezes, também aparece a bateria da escola de samba do bairro. Quantas coisas não vemos quando não estamos presentes no lugar por onde passamos cotidianamente.

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Nós percebemos os lugares por onde passamos cotidianamente?

Passei por ali inúmeras vezes até perceber as mesinhas de xadrez. Quantas coisas será que perdi?

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Minhocão Polêmico. Por muito tempo, achei que o minhocão deveria ser demolido. Por inteiro! Apesar de morar muito próximo, não freqüento muito os fins de semana de minhocão-parque. Mas as vezes que eu fui, adorei! É uma sensação gostosa andar por entre os edifícios com o sol da tarde, olhar as pessoas vendendo bugigangas, andando de bicicleta, assistir filmes projetados em empenas e comprar pipoca ou açaí de ambulantes simpáticos. Mas essa é a realidade apenas para quem vai ao minhocão no fim de semana de minocão-parque, quando é fechado para os carros. A minha relação cotidiana com ele é muito diferente, porque não estou lá em cima recebendo o sol, mas embaixo, recebendo goteiras, barulhos, sombras e um grande bloqueio visual. Todas as vezes que passo por ele, imagino como seria a visão do espaço sem aquele muro suspenso. Anseio pela nostálgica lembrança da presença do minhocão ao atravessar a Av. Amaral Gurgel, de Santa Cecília para o Arouche, onde considero um dos limites entre o bairro em que moro e a “cidade”.

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O que desejamos para os lugares onde passamos na cidade leva em conta o cotidiano dos

O lazer de outros no

moradores?

fim de semana na parte de cima vem em detrimento do nosso cotidiano na parte de baixo.

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Arouche Foi com o passar do tempo que deixei de ter medo de passar pelo Arouche. Sempre olhava de canto de olho a Rua Aurora, com vontade de ir até lá ver o que tinha, mas, ao invés disso, seguia reto com receio de sair da multidão. A mesma coisa acontecia com o próprio largo, na Rua Vitória. São ruas muito antigas de um bairro antes boêmio. Acho que por isso, eu criei uma certa fantasia na minha cabeça sobre a região, era uma vontade enorme de ter a familiaridade necessária para andar pelas ruas sem olhos na nuca. Quando comecei o TFG passei por lá várias vezes. Sentei na praça, conversei com pessoas. Quando nós conhecemos as pessoas de um bairro ou de uma rua, nos sentimos mais seguros e bem vindos. Entendemos o que é estranho e o que é cotidiano. Não criei a familiaridade que eu queria, seria um pouco forçado da minha parte, uma vez que nem moro, trabalho ou estudo ali, mas não me importei. É bom ocupar a realidade com um pouco de imaginação.

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NĂłs percebemos as pessoas pelas quais passamos cotidianamente?

Nessa pracinha, os edifĂ­cios olham as pessoas muito mais do que as prĂłprias pessoas se olham.

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Praça da República Uma vez, estava indo da FAU para o trabalho na hora do almoço. Estava com muita fome e, quando passei em frente à Praça da República, vi algumas barraquinhas de comidas. Era uma feira temporária, só 3 dias. Algumas pessoas puxaram papo enquanto eu comia um pastel e tomava uma garapa. Fiquei pensando como seria gostoso ter uma feirinha regular ali, onde as pessoas podem comer fazendo companhia umas para as outras e se encontrarem regularmente uma vez por semana. A Praça podia se encher entre 12h e 14h. As pessoas almoçam e depois descansam mais alguns minutos, ao sol ou à sombra, antes de voltarem para o trabalho. Podia ter até algumas apresentações de teatro de rua. - Isso nunca vai acontecer. Disse o homem com quem eu conversava. - Essa praça é suja e fedida, só vim aqui porque estou com pressa. A moça, que também estava na conversa, discordou: - Ah, eu achei a idéia legal, podiam usar metade da Praça pra construir uma praça de alimentação de verdade, um espaço novo, arrumado! Podia até ter umas lojinhas também.

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Comer, dançar, brincar, descansar. Quantos usos um espaço aberto pode ter?

Nós valorizamos a diversidade de uso dos espaços?

Ao ouvir aquilo, fiquei sem saber se expressava minha opinião ou se agradecia o fato da moça ter sugerido a destruição de apenas metade da Praça da República.

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Largo do Paissandu Terminei meu pudim sentada junto de todos os fregueses no balcão do Ita. O dono do restaurante na Rua do Boticário, já bem velho, ofereceu mais um copo de mate e rabiscou a conta na mesa. Ao sair do restaurante e cruzar o Largo do Paissandu, percebi que restavam ainda alguns minutos de almoço e fui sentar nos decks de madeira montados recentemente pela prefeitura. Agora dava para ficar no Largo. Me surpreendo com o quanto o Largo do Paissandu é utilizado pelas pessoas. Desde brincar de gol a gol na parede da igreja, até ler tranqüilamente nos decks de madeira. Está quase sempre enfeitado com bandeirinhas ou luzes. Muitas noites, o Largo vira palco de feiras gastronômicas ou shows de música afro. De sexta-feira, a música que sobe até o décimo quarto andar da Galeria Olido, convida a todos do trabalho a sair para a rua. Algumas pessoas não gostam muito. O resto tenta esconder a tentação. Uma vez, um dos colegas de trabalho (que não gostava da música) reclamou dos decks de madeira da prefeitura: “mais um lugar para mendigos dormirem”, dizia ele. “por que, no lugar, não fizeram uma pequena quadra para as crianças poderem jogar bola em um lugar apropriado?”. Mas, pra mim, as crianças já tinham, por si só, escolhido um lugar apropriado e, naquele momento após o almoço, os decks me deixavam assistir a brincadeira sentada à sombra.

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Nós ficamos em locais públicos abertos no meio da cidade?

Às vezes, queremos ficar em um lugar onde não tem onde ficar.

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Vale do Anhangabaú - Um litrão e dois copos? - Isso! O moço se virou e foi buscar o pedido. Éramos eu e uma amiga, às duas horas da tarde, pedindo uma cerveja para comemorar meu primeiro dia de trabalho. Sentadas em um bar de esquina no Vale do Anhangabaú, ficamos conversando sobre todas as coisas. Ela trabalhava no Martinelli, do outro lado do Vale, e poderíamos nos encontrar por ali muitas vezes. Em algum momento da conversa, me dei conta de que por morar no Centro, conhecia suas ruas como um mapa, mas não aproveitava quase nada dele. O que me faltava era viver esse mapa e torná-lo espaços com histórias minhas. Nunca olhei para as ruas, os edifícios, as praças, o comércio, as pessoas, como sendo parte de quem eu sou. Aquele dia foi a primeira vez. As pessoas vivem na cidade. Elas se recolhem para dormir, para trabalhar, mas a vida está nos espaços onde encontramos outras pessoas, sem distinção. Espaços que nos permitem viver o inesperado. A cerveja acabou quando o sol já estava baixo. Nos despedimos. - Agora estamos muito próximas. - A um vale de distância, eu diria.

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Quais lugares da cidade guardam histórias suas?

A cidade é parte das histórias das pessoas.

- Então até amanhã! - Até!

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CONCLUSÕES

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Descobertas Quando comecei o Trabalho Final de Graduação não imaginava que conseguiria chegar em um resultado com essa complexidade. Me angustiava com a exigência teórica que eu mesma me impunha e não conseguia vislumbrar uma saída que não fosse muito simples, em um formato usual e conhecido, sem uma leitura lúdica. Sei que um livro simples pode ser, na verdade, muito complexo de se conceber, mas pela minha pobre experiência na produção de livros e na criação de narrativas, não esperava que conseguisse produzir um objeto tão fora da minha zona de conforto. Quando a linguagem que dominava era a linguagem arquitetônica, me deparei com um universo de possibilidades de comunicação muito mais criativo e instigante para mim. Lamento não ter aproveitado as matérias optativas do curso de Design na FAU, mas comemoro a minha decisão de abraçar esse mundo no TFG. A linguagem do livro como objeto foi nova para mim, mas foi consciente da novidade que mergulhei nesse trabalho. O que se mostrou novo e muito complicado sem que eu tivesse a consciência que assim seria, foi o escrever. Não me condeno por ter escolhido narrar o processo desse TFG em primeira pessoa e manter uma linguagem simples. Acho que essa é a escrita que conversa com os produtos finais. Mas a dificuldade em escrever, mesmo nesse modo mais próximo à conversa, foi enorme, mas também foi importante para a descoberta da minha forma de comunicação e onde ela pode ser melhorada. As questões discutidas nesse trabalho, sobre a relação entre o comportamento das pessoas na sociedade e os espaços públicos, sempre foram presen-

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tes para mim, mesmo sem saber, e descobrí-las agora define um caminho a ser seguido adiante. Uma oportunidade de incluir diversos subtemas necessários e que não foram abordados nesse trabalho ou de continuar com o que já foi discutido e aprofundar o estudo que aqui aparece apenas pincelado. Por fim, comemoro a descoberta de novas possibilidades de comunicação, de um modo próprio de narrar, ilustrar e de conduzir o processo criativo e também a descoberta de um tema inerente a mim mesma.

Mercadinho na Rua Imaculada Conceição

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Caminhando O aspecto mais importante deste trabalho para mim é a possibilidade de sequência. Este TFG foi concluído, mas as oportunidades de continuidade são grandes e abrem um leque de caminhos que podem ser seguidos a partir deste fim. Para marcar esse cenário, ampliei as ilustrações dos lugares e os deixarei à mostra no dia da apresentação para a banca, convidando os passantes a desenhar pessoas utilizando os espaços públicos propostos. Essa ação resume o caráter lúdico do trabalho e abre possibilidades para a sequência de outras atividades no futuro.

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Bibliografia Principal »»   BOSI, Eclea. Memória e sociedade: lembranças de velhos. Ed. 18a.São Paulo: Companhia das Letras, 2015. »»   JACOBS, Jane. Morte e vida das grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes, 2007. »»   MAYOL, Pierre. Morar, in: CERTEAU, Michel; GIARD, Luce; MAYOL, Pierre. A invenção do cotidiano 2 morar, cozinhar. Ed. 8. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008. »»   SENNETT, Richard. O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. Ed. 2a. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

Complementar »»   LEÓN, Ângela. Guia fantástico de São Paulo. São Paulo: Produção independente, 2015. »»   POE, Edgar Allan. O homem da multidão. Ed trilingue. Editora Paraula. Florianópolis, 1993. »»   ROMANI, Elizabeth. Design do livro-objeto infantil. 2011. Dissertação (mestrado em design e arquitetura) Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, São Paulo. »»   RUSSO, Juliana. São Paulo infinita. São Paulo: Gustavo Gili, 2015.

Outros »»   ALMEIDA, Guilherme de. Pela cidade. São Paulo: Martins Fontes,

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2004 »»   MOLES, Osvaldo. Recado de uma garoa usada: flagrantes de São Paulo e crônicas sem itinerários. São Paulo: Garoa Livros, 2014. »»   STEINBERG, Saul. Reflexos e sombras. São Paulo: Instituto Moreira Sales, 2011.

Sites »»   Depoimentos de memórias afetivas na cidade de São Paulo. Disponível em: <www.mapasafetivos.com.br>. Acesso em 11 de novembro de 2016.

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Pessoas na cidade Trabalho Final de Graduação Mariana Campos Demuth 2016 Fonte: Aleo Papel: pólen 90 g/m2

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