Narrativas Urbanas - O manifesto dos passos

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narra tivas urba nas o manifesto dos passos

Aluna: Mariana Carvalho de Souza Orientador: Douglas Lopes de Souza JUN/2018



Dedico este trabalho a todos aqueles que estiveram ao meu lado e que me auxiliaram de alguma forma para a conclusão desta etapa. Aqueles que me apoiaram, escutaram, orientaram, acalmaram, ou simplesmente dividiram um cafézinho, das suas mais singelas maneiras contribuíram tanto para o produto deste caderno, quanto para o meu crescimento pessoal e profissional. Um obrigada especial aos meus pais, minha fonte de confiança e coragem, que me deram as melhores oportunidades pra chegar aqui; ao Douglas, por sempre me incentivar a sair da zona de conforto e ir além, pelas doses semanais de auto-estima; ao Lourenço, Lucas, Egídia, Renan e Vinícius por dividir comigo todas essas emoções e serem os melhores exemplos de companheirismo; e às minhas queridas Damas por fazer da nossa casinha um porto seguro.



“O caminhar, mesmo não sendo a construção física de um espaço, implica uma transformação do lugar e dos seus significados. A presença física do homem num espaço não mapeado – e o variar das percepções que daí ele recebe ao atravessá-lo – é uma forma de transformação da paisagem que, embora não deixe sinais tangíveis, modifica culturalmente o significado do espaço, e consequentemente, o espaço em si, transformando-o em lugar. O caminhar produz lugares. (...) o caminhar, uma ação que, simultaneamente, é ato perceptivo e ato criativo, que ao mesmo tempo é leitura e escrita do território.”

Francesco Careri


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SUMÁRIO INQUIETAÇÕES

cidade nômade

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A errância FLÂNEUR ato criativo ato perceptivo

caminhar nas cidades contemporâneas

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ESTUDOS DE CASO

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VIÇOSA

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PROPOSTA

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CENTRO:

ANÁLISE GERAL

ESTRUTURA PONTOS DE IMPLANTAÇÃO

INTERVENÇÕES

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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IN QUIE TA ÇÕES 8


O presente trabalho trata de uma reflexão acerca do espaço urbano e sua relação com os indivíduos que dele participam. As discussões seguintes surgiram de uma inquietação proveniente de uma série de percursos diários, onde tornava-me refém da falta de tempo, do ritmo acelerado e da superexposição a informações. Trajetórias exclusivamente funcionais, onde o principal objetivo era chegar ao destino, enquanto o processo intermediário era desprezado. O questionamento a partir daí foi de que forma seria possível quebrar esse ritmo e funcionalismo atrelado aos percursos cotidianos e enriquecer a percepção do espaço urbano. Trata-se não só de uma crítica aos processos urbanísticos que remodelam a cidade constantemente de forma impessoal e genérica, mas também à maneira como o atual sistema produz seres alienados em relação ao espaço que os rodeia. A reflexão tem como objetivo convidar todos os habitantes a se tornarem caminhantes artistas e desbravadores de suas próprias cidades e assim resgatar o lado poético do ato de caminhar através de intervenções que sugerem percursos experimentais, e que assim, aguçam uma maior percepção dos espaços da cidade.

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A line made by walking Richard Long/1967

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CIDADE NÔMADE

A HISTÓRIA DA ARQUITETURA NO CAMINHAR O caminhar como forma de expressão artística e ato estético foi uma discussão que teve início apenas nos últimos séculos, entretanto, o ato de atravessar o espaço como um processo simbólico de conquista do espaço é algo que vem desde o início da história da humanidade. Francisco Careri, em sua obra Walkscapes, com uma visão que desvia de uma ideia formal da arquitetura, traça uma relação que vai desde os nômades até artistas do século XX que utilizam do caminhar como prática estética. Com o intuito de entender as origens da arquitetura e assim do surgimento das cidades, o autor retoma os conceitos do binômio nômades-sedentários como as duas grandes famílias em que se subdividiu o gênero humano. Os primeiros, estariam relacionados ao pastoreio e às eternas errâncias pelo território, enquanto os últimos se fixaríam à terra ao praticarem a agricultura. Ao contrário da convicção comum, que defende a arquitetura como um invento sedentário, estritamente relacionada à construção física do espaço e como uma prática que surgiu da evolução dos pequenos vilarejos às grandes construções, Careri acredita que o nascimento da arquitetura está na verdade ligado ao nomadismo por meio da noção de percurso. O percurso, e mais especificamente as errâncias conduzidas pelo homem na paisagem paleolítica, dariam origem à percepção e a necessidade da construção simbólica do espaço. “Se num primeiro período os homens podem terse servido das pistas abertas na vegetação pelas migrações dos animais, é provável que a partir de uma certa época eles mesmos tenham começado a abrir novas pistas, a aprender a orientar-se com referências

geográficas e, por fim, a deixar na paisagem alguns sinais de reconhecimento mais estáveis. A história das origens da humanidade é uma história do caminhar, é uma história de migrações dos povos e de intercâmbios culturais e religiosos ocorridos ao longo de trajetos intercontinentais. É às incessantes caminhadas dos primeiros homens que habitaram a terra que se deve o início da lenta e complexa operação de apropriação e de mapeamento do território” Careri (p.44, 2002)

Seguindo a interpretação do autor acerca dos modos pré-históricos de habitar à Terra, a transumância nômade teria sido responsável pelas primeiras formas de demarcação do espaço e à noção de cartografia. A primeira transformação física da paisagem é representada pela figura do menir, que significa “pedra longa”, fincada verticalmente ao solo pelos povos nômades em locais estratégicos, seja para marcar um percurso ou para denotar lugares sagrados. Já a noção de cartografia partiria dos mapas mentais, uma capacidade desenvolvida pelos nômades ao construírem os próprios mapas a cada instante, dessa forma, sua geografia estava em continua mutação, modificava-se baseada no deslocar do observador. A lógica, portanto, de que a transformação do espaço teve origem no caminhar, permite entender a importância do percurso como processo anterior à arquitetura. O percurso, ou narração, seria um espaço imaterial responsável pela construção simbólica do espaço, levando assim à uma transformação cultural antes da transformação física. A errância, ou caminhar sem rumo, caracteriza-se então como forma de desbravar territórios, a perceber, entender, descrever para então representar o espaço.

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a ERRÂNCIA o histórico da errância urbana como manifesto ao urbanismo moderno Atravessando períodos históricos, traçase um paralelo da pré-história com a contemporaneidade, entre o ato de caminhar como prática de transformação simbólica e estética - atrelada ao nomadismo- e da errância como forma de intervenção urbana. Essa relação serviu de alicerce para uma série de vanguardas artísticas no século XX além de debates acerca da temática do caminhar e sua relação entre corpo e cidade que perpetuam até hoje. Jacques e Jeudy, no livro Corpos e Cenários Urbanos: Territórios Urbanos e Políticas Culturais (2006), destacam a interessante relação de simultaneidade na qual se desenvolveu a história do urbanismo moderno e das vanguardas atreladas às errâncias urbanas do século XX. Os autores dividiram, a grosso modo, em três momentos distintos a história da urbanização moderna: 1. Modernização das cidades, de meados e final do século XIX até início do século XX; 2.As vanguardas modernas e o movimento moderno (Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna, CIAMs), dos anos 191020 até 1959 (fim dos CIAMs); 3.Modernismo do pós-guerra até os anos 1970. Quase que de forma simultânea a esses períodos da história do urbanismo moderno, ascendiam diferentes críticas relacionadas à cada período e que conformariam o histórico das errâncias urbanas, seriam elas:

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1.Período das flanêries, de meados e final do século XIX até início do século XX, que criticava a primeira modernização das cidades; 2.Período das deambulações, dos anos 191030, que fez parte das vanguardas modernas, mas também criticou algumas de suas ideias urbanísticas do início dos CIAMs; 3.Período das derivas, dos anos 1950-60, que criticou tanto os pressupostos básicos dos CIAMs quanto a sua vulgarização no pósguerra, o modernismo. Os errantes urbanos não vagam mais pelos campos abertos como os nômades, e sim pelas grandes cidades modernas, todavia, vão contra o controle total dos planos impostos a eles. Estes artistas, escritores e pensadores reproduziram através de textos e imagens produzidas nas práticas de andar pela cidade um olhar mais crítico em relação à apropriação dos espaços e ao urbanismo vigente na época.

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FLÂNEUR O APAIXONADO OBSERVADOR DA VIDA URBANA

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“Não poder orientar-se em uma cidade não significa grande coisa. Mas se perder em uma cidade como quem se perde em uma floresta requer toda uma educação.” Walter Benjamin

O primeiro desses períodos, o qual auxilia na fundamentação das correntes que se originaram nos períodos seguintes, foi aquele em que surgiu a ideia da flanância. Os termos relacionados à flânerie datam dos séculos XVI e XVII, e designavam a ideia de passear, vagabundear e muitas vezes podia ser vista de forma pejorativa como se o gastar tempo fosse uma conotação para preguiça. Contudo, foi no século XIX que o termo passou a ganhar uma rica significação, quando Walter Benjamin, baseando-se na obra do poeta francês Charles Baudelarie, descreve a figura do flâneur parisiense como a visão de um indivíduo moderno frente ao cenário urbano da época. Massagli (v.12, 2008) define o flâneur como o leitor da cidade, bem como de seus habitantes, através de cujas faces

tenta decifrar os sentidos da vida urbana. O personagem, que caminha pelo hábito, que perambula pelas ruas, quadras e galerias e perde-se propositalmente, transforma a cidade em um espaço para ser lido, um objeto de investigação. Assim, os olhos e a pernas formam a essência da flanância, que através das andanças pela cidade busca experiências – para então transformá-las em conhecimento. Ainda que não houvesse uma intenção artística na figura da personagem por estar mais atrelada à imagem de um observador passivo, que analisa sem sair do anonimato, o conceito de flanar retoma à ideia do nômade na modernidade, trazendo a ideia do caminhar sem rumo como experiência urbana de descobrimento.

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ato cria tivo

Já no período entre guerras, e classificado como segundo momento de críticas, os dadaístas e surrealistas atravessaram o campo da escultura e da pintura e trouxeram suas discussões para a prática do urbanismo, com deambulações aleatórias e excursões urbanas à lugares banais de Paris. Careri (2002) discorre sobre como estes artistas acreditavam que o caminhar era uma experiência onírica e surreal, uma espécie de escrita automática no espaço real, capaz de revelar as zonas inconscientes e o suprimido da cidade. E ainda que, é a primeira vez que a arte rejeita os lugares célebres da cidade para reconquistar o espaço urbano. Em um terceiro momento, entraram em cena os situacionistas, já no início dos anos 1950 e pós Segunda Guerra Mundial, quando as

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discussões se intensificaram ainda mais nos CIAMs com a necessidade de reconstrução rápida das cidades destruídas nos conflitos. Os situacionistas, representados por nomes como Guy Debord e Constant, defendiam a construção de novas situações no meio urbano e introduzíram a teoria da deriva, dentre outras inúmeras discussões. O termo deriva, no sentido de estar à deriva, sair à deriva, ou sair sem rumo pré-definido, tudo tem a ver com a ideia inicial levantada sobre a flâneurie e a errância. Segundo Careri, sair à deriva é um ato que produz novos territórios a ser explorados, novos espaços a ser habitados, novas rotas a ser percorridas.

É entender a cidade como um elemento lúdico e espontâneo, e de uma forma mais ativa que o antigo flâneur, manifestar contra o sistema econômico vigente. Estes artistas portanto, criticavam a maneira como os novos meios de produção e o processo da automação contribuíam para reduzir o tempo livre da sociedade. Por isto, o “jogo” da deriva e a construção de situações como a criação de aventuras e uma forma de utilizar do tempo livre como um tempo não utilitarista, e sim lúdico, ou seja, perder o tempo útil e transformá-lo em um tempo lúdico-construtivo.

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ato PER CEPTI VO CONCEITOS DE PAISAGEM URBANA E IMAGINABILIDADE Ao defender o ato de caminhar como uma forma de conquistar o espaço urbano através da apreensão e compreensão da paisagem urbana, torna-se importante entender de que forma os aspectos físicos e sociais interferem na percepção dessa paisagem. Ou seja, de quais maneiras tanto a composição estética quanto as apropriações que ocorrem no espaço o tornam mais convidativo ou não. Nas últimas décadas diversos autores estudaram sobre o conceito de paisagem e da percepção, como Gordon Cullen em sua obra Paisagem Urbana e Kevin Lynch, em A Imagem da Cidade. 18


Lynch (1997) considera que a imagem criada pelo indivíduo é um conjunto de sensações experimentadas ao observar e viver em determinado ambiente, ou seja, que as imagens são um resultado direto das relações entre o indivíduo e o meio. Dessa forma, a percepção que se tem sobre um espaço é individual e seletiva e está atrelada às características individuais, aos conhecimentos, experiências e memória do observador e participante. Uma imagem única não representa a imagem de toda a cidade, entretanto, o autor conclui que há um certo padrão nas percepções mentais de grupos com características semelhantes, ou seja, particularidades como histórico sociocultural, gênero, cor e opção sexual influenciam na percepção que se tem sobre o espaço. Para Lynch, “parece haver uma imagem pública de qualquer cidade que é a sobreposição de muitas imagens individuais”. Não é o escopo deste trabalho identificar uma única imagem sobre a cidade, mas entender de que forma essa percepção do ambiente habitado influencia na relação e na identificação que se tem com a cidade em que se vive, bem como a ampliação que ocorre desta percepção ao caminhar pelo meio urbano. Lynch, ainda em a Imagem da Cidade, introduz o conceito da imaginabilidade ou legibilidade e utiliza dele como sustentação para seus estudos seguintes. A imaginabilidade seria a qualidade, de um objeto físico, que lhe proporciona uma alta probabilidade de evocar uma imagem forte em qualquer observador dado. Segundo o autor (1997), “Uma cidade altamente “imaginável” pareceria distinta, digna de nota, convidaria o olho e ouvido a uma atenção e participação maiores. O domínio sensorial de tal espaço não seria apenas simplificado, mas igualmente ampliado e aprofundado. Uma cidade assim seria apreendida, com o passar do tempo, como um modelo de alta continuidade com muitas partes distintivas claramente interligadas.” 19


Deste modo, quanto mais “identificável” for uma rua, quadra, ou bairro, maior o seu teor de imaginabilidade e maior a apreensão sensorial que o indivíduo tem destes. A teoria de Kevin Lynch possui uma forte conexão com o que na filosofia se refere à fenomenologia da percepção. Para o filósofo francês Maurice Merleau-Ponty (1945), a percepção é o ato pelo qual a consciência apreende um dado objeto, utilizando as sensações como instrumento. Todavia, desviando-se do caminho tradicional traçado pelos filósofos da época, Merleau-Ponty não acreditava que o sentido da percepção está presente somente no objeto estudado, nem no indivíduo observador, e sim da relação que se estabelece entre eles. A partir das análises sobre as características da cidade que lhes confere identidade, Lynch as classifica em cinco elementos: caminhos (1), limites (2), bairro (3), pontos nodais (4) e marcos (5). Os caminhos são representados pelas vias de circulação podendo ser ruas, alamedas, linhas de trânsito, canais ou ferrovias; os limites são elementos não entendidos como vias pelo observador, ou seja, são representados como fronteiras entre duas fases, ou quebras de continuidade, como praias, margens de rios, muros ou paredes; os bairros são regiões médias ou grandes reconhecíveis por apresentarem características comuns que os identificam, não necessariamente representam os limites administrativos da cidade; os pontos nodais são lugares estratégicos que atuam como nós por atraírem muitas pessoas e servirem como referencial, são eles locais de interrupção de transporte, cruzamento ou convergência de vias; e por último, os marcos são pontos referenciais assim como os pontos nodais, porem são caracterizamse mais como um objeto físico do que eu espaço, como os edifícios, sinais de trânsito, 20

ou mesmo montanhas, a característica interessante ressaltada sobre eles por parte do autor é que estes são geralmente utilizados como indicadores de identidade e parecem tornar-se mais confiáveis à medida que um trajeto vai ficando mais conhecido. Os cinco elementos definidos por Lynch executam o papel de condicionantes físicos da vista, contudo, o mais relevante para esta discussão é o primeiro deles, relacionado aos caminhos. O próprio autor destaca os caminhos como os elementos mais citados pelos entrevistados –em sua pesquisa – como elementos estruturadores da percepção ambiental. Seria ao longo deles que, à medida que o indivíduo se locomove, os outros elementos ambientais se organizam e se relacionam. De acordo com o autor, as características que mais palpitavam a atenção do caminhante observador eram a concentração de usos específicos (como uma via majoritariamente comercial), detalhes de arborização, fachadas com distinções especiais (ou a ausência delas, como fachadas cegas e muros), os obstáculos ao tráfego (como a quantidade de sinais de trânsito ao longo de um percurso), ou mesmo as visadas (o que podia ser visto daquela via específica). Outra propriedade seria sua qualidade direcional, que representa a capacidade de se imaginar o trajeto em escala, ou seja, quando se é possível prever a origem e o destino, é conferido um sentido de direção ao caminho e ele pode até se tornar mais convidativo. Explica-se portanto, o porquê de se considerar o caminhar como um ato perceptivo. Como afirma Merleau-Ponty, a experiência perceptiva é também uma experiência corporal. Através das diferentes reações corporais que se formam pelo ato de percorrer a cidade e o entendimento


do porquê se seguir por percurso, e não outro, cria-se uma identidade, e assim, uma imaginabilidade, acerca do espaço. Essas percepções sequenciais conformariam o que Gordon Cullen, em Paisagem Urbana (1993), nomeia como visão serial, um método de análise que funciona de forma a aguçar a consciência da paisagem urbana pelo ato de atenção tanto ao espaço urbano quanto às próprias emoções dos indivíduos. Há de se ressaltar, no entanto, que os estudos de Lynch e Cullen apresentam um enfoque especificamente no quesito visual quando se trata de paisagem urbana. Entende-se que que a imagem formada a partir do olhar é de grande relevância, mas deve-se considerar também os outros sentidos corporais com o intuito de uma percepção mais completa. Como confirma Jacques (2006, p.119), “A cidade habitada precisa ser tateada, assim como esta possui sons, cheiros e gostos próprios, que vão compor, com o olhar, a complexidade da experiência urbana”. Desfruta-se do discurso dos situacionistas para desviar-se da ideia passiva que se forma ao analisar a imagem somente no quesito visual, e defende-se que esta percepção do espaço provém muito mais de um sujeito não só observador, mas também agente e participante que acrescenta suas próprias vivências na imagem que se forma da cidade.

Croquis de visão serial. Gordon Cullen, Paisagem Urbana (1961)

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CAMI NHAR NAS CIDADES CONTEmPO RÂNEAS

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“Na verdade, a globalização faz também redescobrir a corporeidade. O mundo da fluidez, a vertigem da velocidade, a freqüência dos deslocamentos e a banalidade do movimento e das alusões a lugares e a coisas distantes, revelam, por contraste, no ser humano, o corpo como uma certeza materialmente sensível, diante de um universo difícil de apreender. “ MILTON SANTOS

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A questão do caminhar passa a ter um novo sentido quando inserida no contexto das cidades contemporâneas. Com o avanço da pós-modernidade, novas problemáticas se intensificaram no meio urbano, como o processo de globalização e a criação de espaços cada vez mais homogeneizados e funcionais. A velocidade dos deslocamentos, da comunicação e das ações se acelerou, e como consequência a relação de tempo entre corpo físico x corpo da cidade tornou-se mais efêmera. Essa fugacidade temporal pode ser exemplificada nas multidões perpassando pelas vias em um cooper diário, majoritariamente funcional, onde não há espaço para passos lentos. Caminhar por contemplação, errar pela cidade, tornou-se quase um ato de resistência. Jacques (2008), embasada nos estudos dos situacionistas, levanta como crítica a espetacularização das cidades como causa do empobrecimento da experiência urbana. De acordo a arquiteta, as cidades-espetáculo caracterizamse pela junção de duas correntes antagônicas, que, todavia, produzem resultados semelhantes. A primeira, mais conservadora, preconiza a petrificação de centros históricos levando a um certo tipo de museificação urbana. Enquanto a segunda, neo-modernista, associa-se às grandes escalas dos centros urbanos, que seriam as cidades genéricas. Ambas operam na espetacularização das cidades, uma vez que resultam em práticas voltadas ao turismo nos centros históricos e a construção de condomínios residenciais em áreas de expansão periférica, dando lugar à especulação imobiliária. Nessa lógica, a cidade tornase um cenário, e a “imagem única” que

tenta se criar a partir dela, através das intervenções urbanísticas e as ditas revitalizações, torna-se semelhante à tantas outras, frutos da globalização. Como consequência, a autora aponta para o paradoxo: quanto mais espetaculares forem as intervenções urbanas menor será a participação da população nesse processo. À essa redução da ação urbana, relaciona-se uma perda de corporeidade, ou seja, a cidade quando um simples cenário funciona como um “espaço desencarnado”, sem corpo. Em contrapartida, quando ela é praticada, e apropriada, cria-se uma relação entre o corpo do cidadão e o “corpo urbano”. A partir daí, vê-se a necessidade de induzir essas experiências corporais, as errâncias, como forma de vivenciar e apreender o espaço. Essas errâncias seriam uma maneira de descobrir os espaços vazios e esquecidos da cidade, mas plenos de pontecial. Solá-Morales (1995) acredita que os espaços vazios representam a ausência de utilização, mas também a esperança, o espaço do possível. Segundo o autor, “o indefinido, o incerto também é a ausência de limites, uma sensação quase oceânica a espera da mobilidade e da errância”. Estreitar essa relação corporal e sensorial com o meio urbano é uma forma de manifesto contra uma posição passiva na cidade. Carece o que Helio Oticica considerava como o “poetizar urbano”, que seria relembrar, diante de todas essas preocupações funcionais e formais, do grande potencial poético presente nas cidades, e mais precisamente, das experiências resultantes da relação entre o corpo físico e o corpo da cidade. 25


parc de la villette PROJETO: BERNARD TSCHUMI / ANO 1987 / LOCAL: PARIS O projeto vencedor de um concurso internacional para revitalizar áreas abandonadas e pouco desenvolvidas do Mercado de Carnes, em Paris, se configura como um novo modelo de parque urbano para o século XXI. Desviando-se de uma lógica convencional de parque, o projeto de Tschumi visa um espaço para a cultura, onde o natural e o artificial se mesclam em um constante estado de reconfiguração e descoberta. O espaço foi imaginado como um local de atividade e interação, tendo a liberdade funcional como aspecto principal nas escolhas projetuais. Marcado pelo conceito

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de desconstrutivismo, o programa foi dividido em três partes: as linhas (caminhos), os pontos (folies) e as superfícies (espaços verdes abertos). O grande aspecto deste projeto a ser considerado foi fato de ter sido concebido como um espaço a ser definido pelo usuário, aberto a interpretação e que assim, transforma o indivíduo num agente ativo ao poder participar e se apropriar do espaço da maneira como desejar. A percepção do caminhante sobre o parque se altera a medida em que percorre os percursos e fica sujeito a novas sensações ao se deparar com as folies e os jardins temáticos.


LINHAS representam os percursos do parque e foram pensados para três rotas com temáticas diferentes: o caminho nortesul é marcado pela longa extensão e a presença de uma cobertura ondulada; o lesteoeste é mais instrospectivo e de contemplação ao rio; o último, orgânico, se desenrola como um rolo de filme, e como no cinema, o visitante passa de cena em cena experimentando diferentes jardins e diferentes sensações.

PONTOS chamados de folies, são as estruturas vermelhas na maioria das vezes sem uma função pré-determinada. São caminhos, rampas e escadas projetadas para que o usuário as explore de acordo com sua necessidade e assim estimulam a imaginação. Estes edifícios pontuais esão centros de um programa flexível, informal, efêmero e cambiante.

SUPERFÍCIES são formadas pelos grandes espaços verdes destinados ao lazer e descanso, onde acontecem diversos eventos culturais. Os diferentes jardins que compõem a camada de superfícies são os responsáveis pela variedade na paisagem ao longo dos percursos. 27


VALPO AFECTIVO PROJETO: DERIVELAB / LOCAL: valparaíso

O DeriveLAB é de um grupo chileno multidisciplinar que tem que como objetivo repensar as novas formas de viver na cidade. Tendo como metodologia de projeto a deriva, o grupo realizou um projeto para o Cerro Cordillera, em Valparaíso, que visa potencializar as características da região bem como solucionar alguns problemas levantados pela população. O Valpo Afectivo se configura como um projeto de micro intervenções, de baixo custo e caráter reversível, ligadas por trajetos temáticas e pensadas em um plano que abrange toda a área. O projeto, na criação de

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um mapa afetivo, busca rotas escondidas, desconectadas, obscurecidas para contemplá-las, conectá-las e iluminá-las. Estas rotas são traçadas a partir de pontos de interesse da cidade, que tenham uma representatividade para quem vive ali, e em locais potenciais ao longo desses percursos são definidos pontos de atuação, onde são inseridas as estruturas de intervenção que servem como portais e também como marcos referenciais. De acordo com cada temática dos trajetos os portais se adaptam para diferentes diretrizes.


PORTAL GUIA

PORTAL JOGO

o portal guia serve como indicador de que o caminhante está passando por uma rota específica, ele pode conter alguma instrução funcionando como ponto de informação.

o portal jogo tem como objetivo se instalar de forma a recuperar áreas abandonadas com potencial para se tornarem espaços públicos

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0,8

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PORTAL iluminado

PORTAL DO ENLACE

o portal iluminado responde à uma carência na iluminação nas zonas mais altas da cidade, oferece um espaço de permanência e maior segurança

o portal do enlace foi pensado como uma infraestrutura para transporte público, proposto para locas com dificuldade de acesso

Os portais são uma forma de apropriar espaços excluídos e esquecidos ao liga-los com pontos de interesse na cidade. Assim, promovem a integração de diferentes atores urbanos e reproduzem novos focos de interesse social, cultural e artístico. O que se destaca nesse projeto é a característica de se pensar na cidade desde uma escala global, através dos percursos que conectam os pontos mais afastados e costuram a cidade, até a escala local capaz de gerar um impacto mais concreto na ressignificação de áreas negligenciadas. 29


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COTA 10

PROJETO: grua arquitetos/ ano 2015 / LOCAL: RIO DE JANEIRO O projeto cota 10, vencedor do ganhador do Prêmio de Arquitetura Instituto Tomie Ohtake em 2015 fez parte da mostra de ocupação artística “Permanências e destruições”, que ocupou diversos pontos o Rio de Janeiro entre os meses de janeiro e fevereiro de 2015. A intervenção temporária teve como objetivo promover uma reflexão acerca da demolição do elevado da perimetral e da requalificação dos espaços gerados pela sua ausência. Através da construção de uma estrutura que conduz o usuário a uma altura de 10 metros acima do nível do solo altura da extinta bandeja do perimetral - na Praça XV, no centro da cidade. “Experimenta-se a praça de forma inédita,

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descortina-se a Baía de Guanabara por trás da estação das barcas, as copas das árvores se alinham com o horizonte, o ir e vir dos transeuntes se torna distante. onde antes havia uma pesada infraestrutura agora há o vazio, o vento. O corpo pode demorar-se onde um dia passou veloz.” (GRUA ARQUITETOS, 2015) Assim, transferindo o ponto de vista do observador para outro nível, cria-se uma nova percepção sobre o espaço. O COTA 10 teve a durabilidade de uma semana, incluindo o tempo de montagem e desmontagem, e por isso, foi escolhida uma estrutura tubular em aço (andaimes) levando em consideração


o menor custo para a instalação e a facilidade de montagem. O sistema de andaimes caracteriza-se como uma opção interessante para intervenções temporárias por se tratar de uma estrutura já reutilizada de outras construções, podendo, assim, ser reaproveitada novamente após a desmontagem da intervenção. LEGENDA: 1. Projeto COTA 10 2. Estação das barcas 3. Baía de Guanabara 4. Praça XV 5. Paço Imperial 6. Centro da cidade 7. Traçado do antigo elevado perimetral

IMplantação do projeto 33


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VIÇOSA

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O objeto de estudo deste trabalho é a cidade de Viçosa, localizada na Zona da Mata mineira. A cidade configura-se hoje como um polo educacional pela presença de três instituições de ensino superior e uma grande variedade de cursos preparatórios, tornandose, assim, referência nacional e atraindo estudantes, professores e servidores de todo o país. Esta característica lhe confere um diferencial entre os municípios da região por oferecer uma maior dinâmica e diversidade cultural para a cidade, considerando que há uma troca de saberes e experiências de pessoas de diferentes regiões, faixa etária e classe social. Viçosa apresenta uma população de cerca de 77 mil habitantes, contabilizada no Censo IBGE 2016, entretanto, o fluxo migratório constante define um outro tipo de população, considerada “flutuante” e estimada em 20 mil habitantes. Convém ressaltar que como esta parcela não é considerada pelo Censo, os recursos destinados a serviços como saúde, segurança, cultura e lazer, ignoram esse acréscimo de quase 30% dos habitantes para cálculo da quantia. Apesar de sua população somar um número pequeno comparado às grandes metrópoles do Brasil, Viçosa passou por um processo acelerado de urbanização que tem resultado na concentração desta população em um centro altamente adensado e verticalizado. A Universidade Federal de Viçosa (UFV), criada em 1922 como Escola Superior de Agricultura e Veterinária e federalizada em 1969, funciona como uma forte condicionante na urbanização do município. Localizada na região central de Viçosa, a disputa por

uma porção do solo nas proximidades da Universidade desde a sua criação causou e vem causando uma intensa especulação imobiliária. Este processo teve como consequência um centro urbano desordenado, onde a alta densidade demográfica somada à verticalização em vias estreitas configurou um ambiente caótico, em contraste com a UFV que se caracteriza como uma grande malha verde inserida na cidade. A construção acelerada de edifícios residenciais – destinados à população que migrava para a cidade- ignorou encostas, marcos históricos como a linha do trem, e principalmente o rio, que teve grande parte de sua extensão canalizada. Além dos problemas estruturais, a priorização dos espaços privados em detrimento de espaços públicos tem como fruto uma escassez de áreas destinadas ao lazer, descanso, e interação social, e consequentemente à qualidade de vida. Os terrenos vazios, esquecidos em meio a este processo, sofrem hoje da especulação imobiliária, quando poderiam tornar-se espaços públicos. O surgimento de outras instituições de ensino (como a Univiçosa e Esuv) e o crescimento econômico da região influenciou nos novos eixos de expansão, como o eixo dos bairros Santo Antônio, João Braz e Silvestre, onde há a oportunidade de construção de novas moradias e consequentemente comércios e serviços. Enquanto isso, o centro da cidade e cerne de maior imaginabilidade da cidade, enfrenta problemas de difícil solução e demanda novos tipos de discussão acerca da apropriação de um espaço tão adensado.

MAPA DE VIÇOSA E SEUS BAIRROS

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VIÇOSA

LOCALIZAÇÃO EM MINAS GERAIS

0

200

400

600m

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centro Como explicitado anteriormente, o centro de Viçosa configura-se como a porção mais adensada e problemática da cidade, e também, como a que apresenta a maior diversidade de usos, fluxo de pedestres e automóveis. Assim, a região central é um atrativo tanto para os habitantes dela, quanto para residentes de bairros e municípios adjacentes, que cruzam as vias principais diariamente com destino ao trabalho, aos estudos, compras entre outras diversas atividades.

perimentam no cotidiano que os atualizam. São as apropriações e improvisações que legitimam ou não aquilo que foi projetado, ou seja, são essas experiências do espaço pelos habitantes, passantes ou errantes que reinventam esses espaços no seu cotidiano” Jacques (2008)

Com o objetivo de induzir às errâncias de modo a contemplar e experimentar a cidade, viu-se a necessidade de primeiro entender de maneira geral como alguns pontos funcionam sob a perspectiva do pedestre, no Estes trajetos diários, entretanto, configuram quesito da paisagem urbana e de qual tipo percursos extremamente funcionalistas com de sensação os espaços públicos do centro poucas oportunidades de pausas, visto a cainduzem nesse caminhante. rência de espaços públicos de permanência na cidade. Caminhar pelo centro de Viçosa Primeiramente, foram levantadas as vias de tornou-se um ato nada convidativo, e quase maior fluxo de pessoas, onde a circulação claustrofóbico em meio a seus edifícios de 10 rápida é vista como prioridade e portanto pavimentos em vias de 7 metros de largura e a sensação de movimento e velocidade; os trânsito intenso. Diante disso, vê-se a necespontos de benefício restaurador, ou seja, sidade de novas discussões e articulações espaços para descanso, relaxamento psisobre as formas de apropriar os espaços de cológico e contemplação, atrelados tanto a uma maneira mais afetiva, onde haja uma locais abertos onde seja possível uma sepapreocupação com o corpo do indivíduo que ração do ritmo intenso tanto em áreas com se insere nesse ambiente conturbado. Devia presença de natureza; os pontos de interado à escassez de espaços disponíveis nesse ção social, onde há reunião de grupos, poncentro consolidado entende-se que essas tos de encontro e interação e vida social; e os articulações devem se atentar a formas fleelementos da cidade de maior imaginabilixíveis e adaptáveis, que atendam os mais dade coletiva, isto é, os elementos que mais variados usos. É nessa mescla de possibilifuncionam como ponto de referência e mais dades que cria-se a oportunidade de uma ciindentificáveis do centro de Viçosa. Em um dade vivida e experimentada, onde há espaço segundo momento, e mais detalhado, então, para novas percepções e uma relação maior destaca-se as áreas de interesse onde seja entre corpo do indivíduo e o corpo da cidade. possível aplicar as teorias acerca do errante urbano e assim fazer propostas que permi“Os urbanistas indicam usos possíveis para o tam novas sensações na cidade. espaço projetado, mas são aqueles que o ex41


concentração dos maiores fluxos em pontos nodais e vias arteriais

fluxos direcionados aos limites da UFV

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ANÁLISE geral

A partir dos mapas levantados tenta-se compreender a relação entre os principais espaços do centro da cidade quando se trata das vias mais movimentadas e dos elementos de benefício restaurador, interação social e imaginabilidade presentes nelas. Observa-se em primeiro lugar que as vias de maior fluxo da cidade são aquelas direcionadas à entrada da Universidade, entendendo a Avenida Ph Rolfs como o principal elo entre a UFV e o resto da cidade. Essas ruas de fluxo intenso, entretando, nem sempre são aquelas dotadas de mais espaço para o caminhar, como é o exemplo do Calçadão e Calçadinho, vias de intenso comércio, ainda que funcionem apenas para pedestres, possuem uma largura pequena para a quantidade de pessoas que passam por ali diariamente e são limites de um extenso quarteirão.

são escassos e por isso muitas vezes eles estão atrelados à presença de bares e outros tipos de comércio que promovam a reunião de grupos, como por exemplo no encontro entre a Avenida Santa Rita e a Rua Padre Serafim.

Por se tratar de um centro relativamente pequeno, a região apresenta muitos pontos de imaginabilidade coletiva, o que a torna mais facilmente idenficável. Suas vias principais tornam-se pontos de referência bem como a presença de elementos vinculados à memoria social, como a Igreja Santa Rita de Cássia, o Balaústre e a Estaçãozinha, a linha do trem e colégios como o Edmundo Lins e o Nossa Senhora do Carmo. Foram marcados no mapa também locais como o Posto Caçula, que apesar de se tratar de um estabelecimento privado funcionam como meio identificador, uma vez que o Ao analisar os espaços de benefício posto é ponto de encontro para inúmeros restaurador percebe-se que a maior eventos. parte destes, quando não se encontra no campus da UFV, é representada É possível atentar também a regiões pelas praças, todavia, são poucas e mal que apesar de possuírem um potencial distribuídas. O canteiro da Avenida Santa para ser um espaço de relaxamento e Rita e a arborização do balaústre também separação do ritmo intenso da cidade, na se destacam como uns dos poucos prática, estas não funcionam como tal, pontos verdes da cidade. Os pontos de interação social em Viçosa 46


como é o exemplo da Praça Dr. Cristovao Lopes de Carvalho, localizada no fim da rita. Trata-se de um espaço aberto e público mas onde não ocorre interação social e nem funciona como um ponto de imaginário coletivo. Ressalta-se também que as vias de fluxo mais intenso são limites de longos quarteirões, como é o caso da Milton Bandeira e da Avenida Ph Rolfs, o que dificulta o escoamento destes fluxos para vias menores e concentra na principal, além de ter como consequência poucas oportunidades para pausa nos percursos. Pelo contraste entre lotes preenchidos e vazios, observa-se também uma disponibilidade de terrenos vagos na cidade com potencial para se tornarem espaços públicos, em muitos pontos localizados de forma a quase cortar quarteirões, tornando-se assim uma opção para a questão dos longos quarteirões com fluxos intensos. Esses vazios, no entanto, são marcados em sua maioria em muitos casos por estacionamentos, que poderiam dar lugar a novas áreas de lazer na cidade. Dessa forma, pode-se apontar espaços esquecidos na cidade, não só configurados por terrenos vagos, mas também por praças já consolidadas e os poucos espaços onde se pode ver o rio.

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PROPOSTA Tendo em vista toda a fundamentação teórica exposta neste trabalho acerca da errância como forma de experimentar o espaço vivido e estreitar as relações entre o indivíduo e a cidade, bem como a análise dos espaços urbanos da cidade de Viçosa e suas sensações, tem-se como proposta uma série de intervenções efêmeras no centro da cidade com o objetivo de trazer à tona a questão da percepção do espaço atrelada ao caminhar na cidade e construir assim novas situações no meio urbano. Estas intervenções de caráter urbano e artístico buscam resgatar o lado poético, criativo e perceptivo que existe na errância assim como convidar os habitantes a se tornarem desbravadores de Viçosa, caminhantes dispostos a quebrar o ritmo acelerado do dia-adia para experimentar a cidade de uma

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nova maneira. Michel Certeau dizia que “os passos tecem lugares, moldam espaços, esboçam discursos sobre a cidade” comparando assim, o caminhar pela cidade com o ato de falar, isto é, o caminhar como uma enunciação. espaço caminhado seria o espaço narrado, portanto estar à deriva pela cidade seria um modo de produzir narrativas urbanas. Para criar essas condicionantes do errante urbano, essa proposta tem como embasamento as três características mais recorrentes nas experiências de errar pela cidade, definidas por Paola Berenstein Jacques, em Corpografias Urbanas (2008). Ou seja, as intervenções propostas buscam resgatar as três propriedades que configurariam o errante, que são elas: a capacidade de desorientação (perder-se), a lentidão, e a corporeidade.


PERDER-SE O “perder-se” caracteriza-se como o processo que vai da orientação, passa pela desorientação, até a reorientação. O interesse do errante, segundo Jacques (2008), estaria exatamente no segundo momento destes, uma vez que este estado efêmero de desorientação espacial é quando todos os outros sentidos, além da visão, se aguçam permitindo uma outra percepção sensorial. Quando estamos perdidos, ficamos atentos aos detalhes, aos sons, cheiros e ao nosso próprio corpo. Em vista disso, a primeira proposta busca causar essa ideia de desorientação no caminhante como forma de atentar a essa nova percepção sensorial criada pelo ato de se perder bem como levar a atenção para espaços vazios e/ou não apropriados da cidade. O objetivo é posicionar a intervenção de forma a criar novos trajetos entre dois pontos direcionando o passante para um novo caminho, onde poderá descobrir essas novas sensações na cidade. A efemeridade da intervenção é importante para criar a real sensação de desorientação.

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LENTIDÃO A lentidão é a característica que está mais atrelada à uma forma de resistência à aceleração contemporânea. Também pode ser entendida como uma consequência do ato de se perder, uma vez que quando se está perdido, o corpo passa automaticamente para um movimento do tipo lento, em busca de outras referências espaço-temporais. O errante, portanto, realiza um movimento do tipo lento, e é um lento consciente e voluntário que se nega a entrar no ritmo rápido da cidade contemporânea. As intervenções relacionadas a questão da lentidão tem como objetivo oferecer uma opção paralela de caminho nos locais mais movimentados da cidade, ou seja, onde a questão da velocidade é mais evidente. Pretende-se causar essa lentidão ao trabalhar espaços de permanência e contemplação nos percursos, para que assim, a intervenção funcione como um benefício restaurador em meio a uma via caótica. Entende-se que em muitos momentos as qualidades relativas às intervenções do “perder-se” e da “lentidão” podem se sobrepor, uma vez que suas características estão intimamente relacionadas.

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CORPOREIDADE De acordo com Jacques (2008), a questão da corporeidade sendo caracterizada como a relação corporal entre corpo e cidade, é a que mostra de forma mais clara e crítica, o cotidiano contemporâneo cada vez mais desencarnado. A corporeidade se daria através da incorporação, ou seja, da própria ação do corpo errante no espaço urbano, seria uma forma de memória urbana iscrita no corpo. Em razão disso, entendese que a corporeidade não pode ser mapeada visto que se trata de uma propriedade individual e que ela se desenvolve como uma consequência dos outros conceitos, a partir do momento que há a presença do corpo experimentando novas percepções. Essa corporeidade experimentada seria a maneira como o público se apropriaria das estruturas e as reações de cada pessoa ao permitir ser levada por uma nova noção de desorientação e lentidão no meio urbano.

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ESTRUTURA experimentações de possíveis utilizações Para a representação formal das intervenções foi considerada uma estrutura que pudesse se tornar um osganismo nômade pelo meio urbano. Tendo como inspiração os aindaimes, a composição de barras de aço é leve, permeável, flexível e facilmente montável e desmontável, podendo assim se reconfigurar nas mais variadas posições na cidade. Com adição de painéis de madeira e painéis gradeados é possível transformá-la num percurso, como uma escadaria ou passarela, e também em pontos de pausa como espaços de permanência, contemplação e interação social. Assim, pretende-se lançar um novo olhar sobre os espaços da cidade sob uma ótica errante e assim, ressignificá-los, criando uma nova ideia de imaginabilidade sobre estes.

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possíveis pontos de implantação 1 CALÇADÃO

_via com fluxo intenso de pedestres _pouca oportunidade de relaxamento e contemplação _ponto de imaginabilidade coletiva _interação social acontece em menor escala, como em mesinhas de lanchonetes _ligação com a praça Silviano Brandão e praça do Rosário _opção para se trabalhar o conceito da lentidão

3 AVENIDA CASTELO BRANCO

_via com fluxo mais intenso de pedestres até o ponto da Milton Bandeira _fluxo intenso de automóveis devido à conexão com bairro Santo Antônio e saída da cidade _presença da rodoviária, shopping Chequer e Bahamas _oportunidade de trabalhar o conceito da lentidão

3 AVENIDA PH ROLFS

_via com fluxo muito intenso de pedestres e automóveis _ligação com a UFV _pouca oportunidade de benefício restaurador _alta imaginabilidade coletiva _calçadas estreitas _oportunidade de trabalhar o conceito da lentidão

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2 ligação ph rolfs - milton

bandeira

_ambas as vias apresentam fluxo intenso _ligação com a praça do Rosário, shopping Chequer e Bahamas _presença do rio São Bartolomeu _terreno vazio que já apresenta uma estrutura de fundação existente _oportunidade para criar um novo caminho e aliviar os fluxos das vias, trabalhando tanto o conceito do perder-se quanto lentidão

4 LIGAÇÃO padre serafim -

PH ROLFS

_ligação entre a praça Dr .Cristóvão Lopes de Carvalho com terreno vazio na PH Rolfs _fluxo intenso de pedestres na PH Rolfs e moderado na Av. Santa Rita _oportunidade de escoar fluxos e trabalhar tanto na praça quanto no terreno vazio _oportunidade de criar benefício restaurador e um novo caminho, e assim trabalhar o conceito do perder-se e da lentidão

4 LIGAÇÃO santa rita- fran-

cisco machado

_fluxo moderado de pedestres em ambas as vias _presença de dois terrenos vazios _presença do rio São Bartolomeu _oportunidade de trabalhar principalmente o conceito do perder-se


INTERVENÇÃO III

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INTERVENÇÃO II

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INTERVENÇÃO I

PONTOS ESCOLHIDOS

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INTERVENÇÃO I O ponto escolhido para a primeira proposta é o percurso da Avenda Ph Rolfs. Por se tratar de uma das avenidas mais movimentadas da cidade, o objetivo desta intervenção é oferecer uma opção de pausa em uma área onde a velocidade prevalece. Tendo como conceito predominante a lentidão, uma espécie de ponte que liga as duas calçadas da avenida propõe um caminho paralelo à multidão, onde os passos sejam lentos e haja uma nova percepção sobre aquele espaço ao elevar a perspectiva do pedestre para outro nível na rua. O ambiente criado na parte de cima sugere permanência e contemplação.

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intervenção II Para a segunda proposta optou-se por criar uma nova conexão entre a praça Dr. Cristovão Lopes de Carvalho (localizada entre a Avenida Santa Rita e rua Padre Serafim) e um lote vazio na Avenida Ph Rolfs que hoje funciona como um estacionamento. Entendendo ambos os espaços como potenciais na cidade, tanto pela localização quanto pela possibilidade de usos, a conexão visa levar o caminhante à desorientação ao passar pela nova escadaria presente no terreno, que chega até a praça por meio de uma passarela. Dessa forma, pretende-se levar a atenção para esses locais e incentivar a apropriação destes.

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intervenção III O ponto escolhido para alocar a intervenção é o vazio compreendido entre a Avenida Ph Rolfs, a Avenida Castelo Branco e a Rua Milton Bandeira. Em meio a todo o movimento das avenidas, esquece-se de áreas com grande potencial na cidade. Esta intervenção tem como objetivo ligar os percursos da Avenida Ph Rolfs com a rua Milton Bandeira por meio de uma passarela, que atravesse o quarteirão e traga novos pontos de visada, como o rio São Bartolomeu. Assim, cria-se uma nova opção de percurso e auxilia no escoamento dos fluxos. A desorientação, ao passar por um novo trajeto, tem como objetivo que o errante urbano perceba o movimento da água do rio, o frescor da vegetação, os edifícios vistos de uma nova perspectiva, e quaisquer outros elementos que lhe chame atenção, abrindo assim, espaços para novas relações e novas histórias.

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