sobre todas as coisas inúteis

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Marília Alves de Carvalho

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a escola e a proposta curricular para o ensino de Artes do Estado de São Paulo

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado junto ao Curso de Licenciatura em Artes Visuais da Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho”. Área de concentração: Arte e Educação. Orientadora: Profª. Drª. Rita Bredariolli

São Paulo 2011 2


Agradecimentos

Aos meus pais, Eliana e Paulo, pelos livros e marmitas, pela vida, pelos pôsteres na parede da sala, pelas idéias e ideais e à Luara, pelas dez mil manias e pelas dez mil e uma fantasias, pelos ouvidos sempre atentos, pela paciência, pela prontidão, cumplicidade e tudo. À Bel, Titi e Pedro (in memorian) por estarem incondicionalmente sempre aqui. À Rita, orientadora, por ter me aceito tão prontamente no meio do caminho e por toda disposição e atenção e à Rejane, pelas orientações iniciais e pela compreensão. Aos amigos de sempre Priscila Moura, Josiane Oliveira, Leandro Henrique, Michelly Rodrigues, Daniel Mingolelli, Leandro Mingolelli, Yule Barbosa. Ao José Gilberto, por me iniciar nos pensamentos de políticas públicas educacionais. Por todas as melhores coisas que aprendi e aprendo na universidade e que espero continuar aprendendo depois dela (com algumas especificidades extras entre parênteses), agradeço a: Fernando (pelo Bumpy), uiu (pelos silêncios), Nakamura (pelo Pirandello), Reitano (por tentar não me deixar bitolar com esse trabalho), Wawá (pelos contrastes), Verônica, Nozomi, Tamara, Cibele, Fiacadori, Julha, Rebeca, Yukie, Jac, Midori; Karina, Matsuhei, Vivi e Dani (pelo cânone do processo e do suco de maracujá com leite), Peve, Daniel, Mayara, Rachel, Rosana... À Mariana Benatti e Débora Rosa pelo material doado e emprestado e à Bárbara Ritcher por tê-lo encontrado e devolvido quando os perdi. Aos professores da EMIA Carlos Silva, Odino Pizzingrilli, Marcos Venceslau e Giselle Ramos. À Equipe do Curumim Sheila Szulc, Tereza Diório, Regina Santos e Mário Filhou. Às professoras e aos alunos do Moya, do Villalva e do Gebe. Ao Ricardo e toda gente da Escola da Ponte, às crianças da EMIA, às pessoas todas que encontrei no Previa, na EMEF Campus Salles e na Bienal. À banca examinadora, Rejane Coutinho, Carlos Silva e Enio de Freitas.

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[...] sei que dois e dois são quatro sei que a vida vale a pena mesmo que o pão seja caro e a liberdade pequena. (Ferreira Gullar)

ou

"É preciso sonhar, mas com a condição de crer em nosso sonho, de observar com atenção a vida real, de confrontar a observação com nosso sonho, de realizar escrupulosamente nossas fantasias. Sonhos, acredite neles." (V. Lênin)

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Sumário Introdução: das gavetas pra guardar o mundo

1. Sobre o currículo 1.1. Currículo e contexto 9 1.2. O currículo e as relações de poder 9 1.3. Essa metamorfose ambulante... 11

2. Sobre a apresentação da Proposta Curricular 2.1. Apresentando a Proposta Curricular 14 2.2. Escola comprometida com seu tempo? 16 2.3. Sobre as “competências como referencia” 18 2.4. Sobre “a articulação com o mundo do trabalho” 22 2.5. Quem não cola não sai da escola 25

3. A Proposta de Artes 3.1. Uma concepção para a área de artes 31 3.2. As gavetas para guardar a arte 35 3.3. A construção do mapa 37 3.4. Caderno do Professor, Caderno do Aluno 42

4. Veni et vidi 4.1. Enquanto isso, no Moya... 46 4.1.1. A tridimensionalidade e suas dimensões 50 4.2. Enquanto isso, no Gebe... 61 4.2.1. EJA – Pontos de fuga não sei pra onde 62 4.2.2. Ensino Médio 63 4.3. Enquanto isso, no Villalva... 65 4.3.1. Vem dançar 66 4.4 Conclusões parciais sobre a prática 68

5.

Conclusões inconclusas (ou considerações finais) 70

Referências 74

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Introdução: das gavetas pra guardar o mundo

Antes, cabe fazer algumas ressalvas para que as considerações aqui feitas não soem demasiado pretensiosas ou mesmo contraditórias e porque é sempre bom esclarecer de onde se fala e o que se leva em conta ao falar. Essas considerações têm como principal propósito indicar algumas leituras possíveis para o posicionamento do discurso curricular do Estado de São Paulo. Leituras essas feitas a partir dos olhos de uma cidadã de 24 anos, estudante de Artes Visuais numa Universidade Estadual, que pensa todo dia se formar como arte/educadora, que cursou todo o período correspondente à Educação Básica em escolas públicas, que aprendeu geometria e hinos nas aulas de arte da 5ª série, que nasceu e cresceu numa família militante política de esquerda, tudo isso em conjunto com todas as referências e contribuições de pessoas, autores, fatos e coisas que fazem parte da formação dessa que vos fala. Bom, primeiro preciso dizer que não pretendo ignorar a heterogeneidade e as especificidades das diversas formações sociais, assim como suas variações e ramificações e também as diferenças entre sistemas educacionais (público e privado) e discursos curriculares, nem “maniqueizar” determinadas concepções e posições adotadas ou criticadas pela Proposta Curricular do Estado de São Paulo1. Também não é propósito dessa pesquisa se ater a problematizações a cerca das definições de cidadania, trabalho, competências ou outros termos que possam surgir, como fatores isolados. Porém, me parece necessário situá-los, ainda que brevemente, dentro da PC para que, partindo primeiramente do discurso curricular no qual ela se apresenta e, depois, da realidade escolar em que é aplicada, tentar entender como influem no que se espera que se tornem e no que tem se tornado os jovens considerados em tal proposta e, mais especificamente, os jovens que pude observar em três das 5,3 mil escolas da rede estadual de São Paulo. Para contar como foi que cheguei até aqui, devo dizer que durante a graduação tive a oportunidade de fazer estágio em algumas escolas e instituições que me levaram a pensar na educação sob o viés da interdisciplinaridade. Passei o ano de 2009 freqüentando semanalmente a Escola Municipal de Iniciação Artística (EMIA), que, como o próprio nome indica, propõe iniciar crianças artisticamente, através de uma relação

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Daqui para frente, adotaremos a sigla PC ano nos referirmos a Proposta Curricular do Estado de São Paulo.


híbrida entre as linguagens artísticas. Dança e artes visuais e música e teatro, estava tudo ali acontecendo mais ou menos ao mesmo tempo dentro das aulas. No mesmo ano de 2009, também fiz estágio no Sesc Santana, onde por algum tempo integrei a equipe do Programa Curumim, um projeto socioeducativo que oferece, também para crianças, atividades diversas focadas principalmente na cidadania e no convívio com as diferenças. A equipe de instrutores do Curumim contava com pessoas de formações diversas: história, psicologia, educação física, biologia e artes. Em 2010, passei um semestre a estudar em Portugal e freqüentei a Escola da Ponte, escola de Ensino Básico localizada na Vila da Aves, famosa pelo seu projeto educativo que tem por base os princípios da solidariedade, a autonomia e a democracia. A Ponte também é muito conhecida como a escola que não tem paredes nem seriação, onde vários professores permanecem ao mesmo tempo na sala, todos a trabalhar em conjunto e muitas coisas acontecendo simultaneamente. A partir daí, entender a interdisciplinaridade tornou-se uma idéia fixa. Onde estava a tênue linha que dividia a justaposição e intersecção das coisas? Por que somos tão “disciplinados”, por que tudo é tão fragmentado na hora de aprender, mas quando olho para o mundo vejo tudo ao mesmo tempo agora? Não faz sentido deixar cada coisa “em seu quadrado”, separado em gavetinhas, como se uma fosse completamente alheia a outra. Estava mesmo pensando nessa história de gavetinhas quando iniciei, no segundo semestre de 2010, o estágio obrigatório de ensino formal na escola estadual onde estudei durante o Ensino Médio. Lá, entrei em contato com a PC que, de alguma forma, também contemplaria meu estudo sobre a interdisciplinaridade por abarcar todas as linguagens artísticas em seu material didático. Porém, aquelas aulas que eu era obrigada a assistir não faziam muito sentido. Aqueles Cadernos do Aluno (integrantes da PC), a relação dos alunos e da professora com eles e entre si também eram muito desconexas. E quando dei por mim, estava aqui. Mas não à toa. Estou aqui por que antes estive lá, novamente na escola onde passei três anos e que novamente não fazia sentido. Estou aqui por que estive na Ponte, na EMIA e no Curumim e lá vi caminhos diferentes para um mesmo mundo, tentativas de um mundo não necessariamente engavetado e fragmentado e ordenado por alguém que quis e pôde ordená-lo, sabe-se lá porque (ou imagina-se bem). E quando dei por mim, estava aqui optando por concluir minha graduação falando sobre a regra ao invés da exceção. Gosto da exceção, mas penso que bom seria se houvesse mais exceções do que regras. Gosto da exceção, mas escolhi enveredar pelo 7


caminho no qual identifico minha formação escolar, em gavetas, e tento (veja bem, tento...) entender porque a ‘regra’ é essa e não outra ou, ainda, porque é preciso haver uma ‘regra’, um modelo, um padrão. Não preciso dizer que as exceções a que me refiro também estão longe de ser ideais (e que sei bem que ideais não existirão, pois somos movidos por insatisfações), mas foram o bastante para que eu carregasse comigo novas perspectivas e parâmetros para olhar o mundo acreditando que, quiçá, pode ser diferente. A imagem da capa desse trabalho foi criada a partir de fragmentos do desenho de uma escultura de papel feito por Dayane, aluna da 5ª série da Escola Estadual Salvador Moya. Já a escolha do título diz respeito à ambigüidade contida na palavra rever que, por ser um palíndromo, já reforça a idéia de olhar outra vez e novamente - e com atenção -, além de poder ser homônima (ou falso Figura 1. Dayane, 5ª Série. Caderno do aluno, p.10.

cognato) do verbo francês rêver, que quer dizer sonhar, e ainda conter no seu

interior o sempre do inglês, ever. Poetizando todos esses sentidos embutidos em rever, fica a necessidade de sempre ver de novo nossa prática educativa e, tão importante quanto, de acreditar nela. Esse trabalho está divido em quatro partes, sendo que a primeira delas é destinada ao conceito de currículo; na segunda parte será apresentada a PC e os princípios que a fundamenta; a terceira é dedicada a PC de Arte e, na última parte, colocarei minhas anotações e observações feitas a partir da observação de aulas em três escolas estaduais de São Paulo. Por último, assumo a segunda pessoa do plural como via de regra daqui para frente, pois, naturalmente, nada do que está aqui escrito foi conseguido sozinho. Via de regra, porém não sem exceções, já que mesmo sabendo que não conseguirei e nem pretendo me ausentar em momento algum, reconheço que não encontrei outro modo para falar de tudo que vi e vivi sem me colocar como sujeito. Dito isso, podemos dar prosseguimento.

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I. Sobre o Currículo

Currículo e contexto

Pode ser que a primeira coisa que costuma vir à cabeça quando falamos em currículo esteja relacionada àquilo que é exigido quando pretendemos uma vaga de emprego: uma breve biografia, um resumo de suas atividades profissionais, formação, experiência. Obviamente não é esse currículo que nos interessa aqui, mas sim aquele que diz respeito, resumidamente, à sistematização de todo ensino e/ou aprendizado que acontece, ou deve acontecer, no âmbito escolar. Porém, uma observação à titulo de curiosidade pode trazer à luz um outro olhar para os empregos possíveis dessa palavra: sua origem vem do latim "curriculum", "pista de corrida", derivado do grego currere, em latim, correr. O uso da palavra currículo, com o sentido que empregamos atualmente, e o surgimento deste como um campo de estudo especializado é situado por Tomaz Tadeu da Silva, no livro Documentos de Identidade (2011), no cenário de institucionalização da educação de massa , mais precisamente em 1918 nos Estados Unidos, quando John Franklin Bobbit escreve o livro The Curriculum. Nesse livro, Bobbit busca responder, de forma bastante conservadora, à questões sobre as finalidades da educação de massas, na tentativa de equiparar o funcionamento da escola ao de uma empresa comercial ou industrial, colocando as ocupações profissionais da vida adulta como a principal finalidade da educação. Para alcançar essa finalidade, seria preciso definir quais as habilidades necessárias para que tais ocupações pudessem ser desenvolvidas. No Brasil, o movimento curricular dos anos 1980 procurou romper com essa lógica baseada em habilidades e competências que, entretanto, voltou, nos anos 1995 a fundamentar o discurso curricular, com as chamadas Diretrizes Curriculares, nas quais a proposta em questão se apoia.

O currículo e as relações de poder

No livro Currículo como fetiche, Silva (2010), expõe várias concepções sobre currículo, dentro de perspectivas tradicionais e/ou conservadoras. Segundo ele, essas 9


concepções geralmente tomam o conhecimento e a cultura como estáveis e inflexíveis, inserindo também o currículo dentro desse pensamento fixo acerca do significado das coisas do mundo. Recheado de verdades imutáveis, o currículo se firma como um discurso isento de qualquer tipo de contestação. Silva considera o currículo como representação, isto é, um sistema de significação no qual estão envolvidos significantes e significados. As conexões entre o significante (no caso, o currículo) e seu significado são estabelecidas através de convenções sociais, o que implicaria em dizer também que os significados atribuídos ao currículo foram e são socialmente construídos dentro dos parâmetros estabelecidos por determinados grupos sociais. Tais parâmetros, entretanto, são indissociáveis das relações de poder que são, por sua vez, indissociáveis das práticas de significação. Isto quer dizer que, embora o currículo se apresente como existência autônoma, ele é uma forma de representação cujo significado é conferido por meio de discursos hegemônicos. Nas palavras de Alice Casimiro Lopes e Elisabet Macedo , o currículo “tanto é produto das relações de poder e identidades sociais, quanto seu determinante”2, já que, segundo Silva, “quem fala pelo outro controla as formas de falar do outro” . [sic] A respeito das relações de poder intrínsecas ao currículo e às formas discursivas adotadas por ele, Silva ainda diz que Conceber o currículo como representação implica vê-lo, simultaneamente, inseparavelmente, como poética e como política. Seus efeitos de poder são inteiramente dependentes de seus efeitos estéticos; inversamente, seus efeitos estéticos só fazem sentido no interior de uma economia afetiva movimentada pela 3 obtenção de efeitos de poder.

Observando os posicionamentos adotados pelos discursos curriculares atuais com relação à concepção de trabalho e de competências sugeridas, percebemos que os significados privilegiados por eles muitas vezes dizem respeito, de forma implícita, à lógica do consumo e do capital, à competitividade, ao mercado, ao reprodutivismo, à economia, ao corporativismo, já que são esses princípios fundamentais que regem a nossa sociedade. Tais significados ficam mais evidentes quando observamos a influência que órgãos e instituições internacionais, como o Banco Mundial, a ONU ou a Unesco, operam sobre as orientações educacionais e curriculares no mundo, principalmente em países em desenvolvimento, como é o caso do Brasil. 2 3

LOPES, A. C., MACEDO, E. (Org). Currículo: debates contemporâneos. São Paulo: Cortez, 2005, p. 28. TADEU, T. Currículo como fetiche. Belo Horizonte: Autência, 2010, p. 67.

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A dissertação de Muceniecks (2009) indica que desde a década de 1990 o Banco Mundial tem visto a educação como peça chave para promover o crescimento econômico e reduzir a pobreza e, portanto, vem se preocupando em definir políticas educativas e diretrizes aos países em desenvolvimento que contam com créditos e financiamento para projetos no setor. Em 1995, o documento Prioridades e estratégias para a educação – estudo setorial do Banco Mundial estabelece algumas medidas que priorizam, entre outros fatores, o aumento do acesso à educação básica, a qualidade, a equidade, partindo, porém, da perspectiva de que o investimento em capital humano deve acompanhar as exigências das mudanças na economia e no mercado de trabalho, enfatizando os resultados do ensino e recomendando a elaboração de normas e avaliações definidas por viés econômicos e numéricos. Lançadas em 2007, as metas do Plano Estadual de Educação4 elaboradas pelo Governo do Estado de São Paulo deveriam ser alcançadas até 2010 e, entre outras demandas, previam a alfabetização plena de todos os alunos de 8 anos, a redução de reprovação da 8ª série e do Ensino Médio pela metade e o aumento de 10% nos índices de desempenho dos ensinos fundamental e médio nas avaliações nacionais e estaduais. Segundo consta no site da Secretária Estadual da Educação (SEE), a PC em questão foi elaborada a partir dessas metas educacionais estabelecidas pelo governo estadual, de acordo com os resultados de avaliações de nível nacional como o SAEB (atual Prova Brasil) e o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio). São esses alguns pontos que podemos identificar como comuns entre as políticas públicas educacionais e as orientações educacionais de organismos internacionais como Banco Mundial que, a começar pelo fato de ser um banco, reforçam os princípios neoliberais.

Essa metamorfose ambulante

Tomaz Tadeu da Silva expõe algumas concepções de fetichismo, evidenciando nelas os valores atribuídos a determinadas coisas que extrapolam o valor das próprias coisas. Destaca aqui a noção freudiana de fetiche sexual que se concentra em algo material para desviar-se da castração materna, substituindo aquilo que “é” por aquilo em que se prefere acreditar. Essa ambiguidade entre a realidade e sua negação, essa indecisão no ato de conhecer, é apontada por Silva, sob a perspectiva da crítica cultural, como uma forma mais atraente de conhecer do que “ter aquela velha opinião formada 4

Secretaria da Educação. Plano Estadual de Educação, 2007. Disponível em: <http://www.saopaulo.sp.gov.br/spnoticias/lenoticia.php?id=87027>.

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sobre tudo”, como já dizia Raul Seixas. A denúncia do fetichismo, a desfetichização, está justamente em reconhecer a supervalorização, o poder exagerado atribuído aos objetos de fetiche. Desfetichizar, portanto, consiste em “fazer com que o fetichista [...] volte a reconhecer o fetiche como criação sua”, o que não significa dizer que este deixará de existir, “mas permite que se o veja pelo que realmente é: uma criação humana, social”5 .

Para situar o currículo dentro do contexto do fetichismo, Silva afirma que O currículo é um fetiche. O currículo é um fetiche, antes de mais nada, para os ‘nativos’: alunos, professores, teóricos educacionais. Nesse culto ‘nativo’ do fetiche, o currículo – o conhecimento, a informação, os “fatos” – é uma coisa que se possui, que se carrega, que se transmite, que se transfere, que se adquire. O currículo é uma lista de tópicos, de temas, de autores. O currículo é uma grade. O currículo é um guia.O currículo está num livro, o currículo é um livro. O currículo é, enfim, uma coisa. Na cultura “nativa”, o currículo é matéria inerte, inanimada, paralisada, a que se atribui, entretanto, poderes extraordinários, transcendentais, mágicos. Os poderes do fetiche “currículo vêm do sobrenatural, do incógnito, do sobre-humano, do além. E operam maravilhas, milagres, prodígios. De posse do fetiche – o conhecimento corporificado no currículo – os “nativos” se sentem seguros, assegurados, protegidos contra a incerteza, a indeterminação e a ansiedade do ato de conhecer. O fetiche do currículo conforta e protege. O currículo enfeitiça. O 6 currículo é um amuleto .

Caberia, então, ao crítico educacional, desfetichizar o currículo, o que equivale a reconhecê-lo também como sua própria criação. Silva sugere, porém, que ao invés desfetichiza-lo, olhássemos para o currículo, enquanto fetiche, com simpatia e não somente como produto acabado e absoluto, para que pudéssemos nos reconhecer como produtores ativos de nossos fetiches curriculares. Nessa medida, encarar o currículo como fetiche seria ir de encontro ao divórcio crescente entre o social, o cultural, o subjetivo e o científico, natural e objetivo, admitindo uma postura ambígua (como a do fetichista freudiano) na tentativa de evitar aquela esquizofrenia intelectual, usando o termo de Hilton Japiassu, que fragmenta o saber e isenta algumas formas e áreas de conhecimento de qualquer tipo de contestação enquanto relativiza outras. Tal postura ambígua confronta e questiona tanto os “fatos” nos quais se baseia a pedagogia tradicional, como os “fetiches” construídos social e culturalmente, os quais a teoria crítica do currículo busca desconstruir. Paradoxalmente, o saber e o não-saber, o 5 6

TADEU, T., Currículo como fetiche. Belo Horizonte: Autência, 2010, p. 96-7. Idem, Ibdem, p. 101.

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legítimo e o não-legítimo, o autêntico e o não-autentico passam a ser intrínsecos ao currículo, questionando, inclusive, a hipótese da autonomia do sujeito, já que “ver o currículo como fetiche (...) significa supor uma relação muito mais complicada não apenas entre o sujeito e as coisas, mas, sobretudo, entre o sujeito e as coisas que ele cria – entre o sujeito e seus fetiches.” 7.

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Idem, Ibdem, p. 107.

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II. Sobre a apresentação da Proposta Curricular do Estado de São Paulo

Apresentando a Proposta Curricular

Destinada ao Ensino Fundamental – Ciclo II e ao Ensino Médio, como parte do programa São Paulo Faz Escola da SEE, a PC foi implantada em 2008. Segundo Maria Helena Guimarães de Castro, então Secretária da Educação do Estado, a criação de uma base curricular comum para toda a rede de ensino veio da necessidade de “definir um foco”8 para o sistema educacional de São Paulo, uma vez que a autonomia conferida às escolas pela LDB (Lei de Diretrizes e Bases) para que definissem seus próprios projetos pedagógicos não tinha sido considerada eficaz. Nesse capítulo teceremos considerações gerais sobre a apresentação feita no documento da PC e sobre os princípios orientadores nos quais se pauta todo o documento, que organiza por tópicos os desafios com os quais se mostra comprometido. Primeiro, dedica-se a tecer considerações sobre Uma educação à altura dos desafios contemporâneos e, a seguir explora o que chama de “princípios para um currículo comprometido com seu tempo”, onde expõe principalmente uma noção mais ampla de currículo e enfatiza as competências e as relações com o mundo do trabalho. No item “Uma educação à altura dos desafios contemporâneos” a PC mostra o que considera como base para formar indivíduos capazes de exercer sua cidadania nas dimensões sociais e produtivas, de forma responsável e a nível mundial. A PC atribui à educação o compromisso de assegurar o desenvolvimento pessoal, entendido como, entra outras coisas, a construção de valores de pertencimento e responsabilidade que incluem o processo de formação de identidade, a autonomia e liberdade no pensar e agir e o reconhecimento do outro e da diversidade. A educação precisa estar a serviço desse desenvolvimento, que coincide com a construção da identidade, da autonomia e da liberdade. Não há liberdade sem possibilidade de escolhas. Elas pressupõem um quadro de referências, um repertório que só pode ser garantido se houver acesso a um amplo conhecimento, dado por uma educação geral, articuladora, que transite entre o local e o mundial. Esse tipo de educação constrói, de forma cooperativa e solidária, uma síntese dos saberes produzidos pela humanidade, ao longo de sua história e de sua geografia, e

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SÃO PAULO (Estado). Secretaria da Educação. Proposta Curricular do Estado de São Paulo: Arte / Coord. Inês Maria Fini. São Paulo: SEE, 2008, p.5.

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dos saberes locais. Tal síntese é uma das condições para o indivíduo acessar o conhecimento necessário ao exercício da cidadania em dimensão mundial.

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À parte a parte não muito clara e as redundâncias, precisamos destacar algumas outras dúvidas e questões que surgiram dessa leitura. Primeiro, ao falar em “síntese dos saberes da humanidade”, embora se refira a uma construção “cooperativa e solidária”, é necessário perguntar a quem foi, é ou será outorgado o direito de sintetizar esses saberes, e pensar o que significaria, sob essa perspectiva, ser um cidadão em dimensão mundial. Além disso, é preciso perguntar quais os significados que “ser cidadão” carrega, no que implica universalizar a cidadania e no que difere, e porque diferir, essa cidadania em dimensão mundial da cidadania simplesmente. Segundo Tomas Tadeu da Silva, as concepções tradicionais de currículo supõem que exista um consenso em torno do conhecimento que deve ser ensinado nas escolas. Consequentemente, desse consenso também se deduz outro consenso sobre o que é esperado em relação aos indivíduos que se formarão dentro desse sistema curricular, sobre quem se deseja que eles se tornem. Ao se falar na necessidade de haver um repertório ou um quadro de referências que viabilize a liberdade de escolhas que deve ser garantida pelo desenvolvimento pessoal, pode se estar, contraditoriamente, adequando ou limitando as escolhas de acordo com as possibilidades já demarcadas por uma sociedade que está “naturalmente” dada, restringindo outras possibilidades que a extrapolem. Isso porque, antes, já haveria sido desenhado um consenso no que diz respeito à cidadania e a modos adequados de ser e de agir dentro do mundo, tal qual ele é, isentando-o de possíveis transformações (ou desejo de transformações) mais profundas passíveis de alterá-lo em sua estrutura. No decorrer da apresentação da PC são também apontados alguns “Princípios para um currículo comprometido com seu tempo”. Neles fala-se em “uma escola que também aprende”, definindo-a como um órgão que aprende a ensinar [sic]. Esse princípio concentra-se em colocar a “equipe gestora” da escola como formadora dos professores, assim como estes formam seus alunos, envolvendo a escola e o docente como aprendizes 10, ao invés de dar a eles o papel de detentores de conhecimento e informação, pois precisa reconhecer que os jovens e crianças a quem a PC é dedicada pertencem a uma geração da qual é impossível desvincular o relacionamento em rede e a inserção no mundo da tecnologia em diversos âmbitos de suas vidas, principalmente na velocidade da troca e busca de informações. 9

Idem, Ibdem, p. 11. Idem, Ibdem, p. 19.

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Entretanto, ao ler esse subtítulo “uma escola que também aprende”, é sugestivo supor que essa relação de aprendizado da escola não se limita somente ao contexto inscrito “entre os muros da escola”. Talvez seja o item seguinte, “O currículo como espaço de cultura”, que nos aponte para a direção de uma conexão mais clara entre a escola e o mundo, o currículo e a vida, pois propõe a articulação entre cultura e conhecimento. Tal articulação nega a visão de atividades extraclasse como extracurriculares, considerando que “todas as atividades da escola são curriculares, ou não serão justificáveis no contexto escolar” 11. Ainda assim, essa visão ampliada de currículo parece se restringir ao contexto escolar, o que não implica, necessariamente, em entender também o inverso, isto é, a cultura como espaço de currículo. Concordando com essa perspectiva e baseando-se nos Estudos Culturais, Silva entende que [...] tanto a educação quanto a cultura em geral estão envolvidas em processos de transformação da identidade e da subjetividade. Agora a equiparação esta completa: através dessa perspectiva , ao mesmo tempo que a cultura em geral é vista como uma pedagogia, a pedagogia é vista como uma forma cultural: o cultural torna-se pedagógico e a pedagogia torna-se cultural. É dessa perspectiva que os processos escolares se tornam comparáveis aos processos de sistemas culturais extraescolares, como os programas de televisão ou as exposições de museus, por 12 exemplo, para citar duas instâncias praticamente “opostas”.

Escola comprometida com seu tempo?

Organizado por Maria Inês Fini, o material distribuído a todos os alunos e professores da rede estadual está dividido bimestralmente por disciplinas e separado em Caderno do Aluno e Caderno do Professor, nos quais constam as orientações de conteúdos e competências a serem desenvolvidos durante todo o ano letivo. Apesar do conceito expandido de currículo exposto na PC, o conteúdo dos cadernos tanto do Professor quanto do Aluno, é o mesmo desde sua implantação, com algumas pequenas alterações de imagens e diagramação. De acordo com informações obtidas no site oficial da SEE de São Paulo, a elaboração da PC foi feita a partir do envio de relatos de professores, coordenadores e diretores sobre experiências positivas de aprendizagem dentro da rede pública de ensino.

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Idem, Ibdem, p. 13. Tadeu, T. Documentos de identidade, Belo Horizonte, Autêntica, 2011, p. 139.

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No entanto, as críticas dirigidas a tal proposta, como uma publicação de 2009 feita pela Apeoesp13 (Sindicato dos professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo) e de alguns professores da rede que foram indagados, apontam para a direção oposta, indicando que a participação da comunidade educativa foi insuficiente, por não ter havido abertura para um debate no qual o corpo docente pudesse ter autoria e autonomia dentro do papel fundamental que exerce no processo educacional. Ao contrário, foram consultados especialistas em educação e nas respectivas áreas de conhecimento, a quem coube desenhar, do alto de suas distâncias com a realidade escolar, o que deveria ser aprendido, em termos de conteúdos e competências, por todos os alunos do Estado de São Paulo, caracterizando tanto a elaboração quanto a implantação da PC como uma postura impositiva. Diante desses dados, percebemos a distância que existe entre o discurso da PC e a prática. No seu interior, o aprendizado conferido à escola parece restrito, por estar associado a um currículo fechado que, por ser fechado, possui pouca flexibilidade para acompanhar de forma sincrônica a dinâmica da vida dos jovens, suas rápidas mudanças, seus problemas e conflitos constantemente atualizados, ao mesmo tempo em que se mantém distante da realidade do professor. Encontramos como resposta dos jovens a este modelo estático de currículo, por exemplo, sites e inclusive algumas comunidades na rede social Orkut criados com o intuito de compartilhar as respostas do chamado Caderno do Aluno, ou nas palavras dos próprios organizadores de um dos sites: “como nós, alunos, não poderíamos ser deixados para trás, criaram um site pra que ouve-se um troca de informações, ou melhor dizendo, de respostas do Caderno do Aluno 2010 para todas as matérias e todos os volumes.” 14

[sic] Observamos, portanto, que há certa incongruência entre “uma escola que também

aprende”, mas que ao mesmo tempo caminha paralela à vida virtual de compartilhamentos e conexões em rede sem vincular-se a ela, permanecendo desligada da necessidade de atualização constante, dos feeds de notícias dos quais os jovens alimentam-se, muitas vezes de forma superficial e não nutritiva. Ajustar a realidade escolar que conhecemos a um currículo fechado pode ser, então, uma tarefa não somente árdua, como contraditória, pois pode manter a escola numa posição aquém da realidade em que está inserida, limitando a revisão constante 13

APEOESP - Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo. Proposta Curricular do Estado: uma análise crítica. Disponível em: <http://apeoespsub.org.br/especiais/revista_planejamento_2009.pdf> 14 Blog Caderno do aluno. Disponível em <http://blog-cadernodoaluno.blogspot.com/p/apostilas.html> [conteúdo editado pelo responsável pelo blog]

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necessária a todo processo educativo e dando margem para que seja facilmente ultrapassada por aqueles que acompanham as mudanças do seu tempo. Sobre as competências como referência

Fundamentada na LDB 9394/96, que dá ao Estado a incumbência de estabelecer competências e diretrizes para a Educação Básica de um modo geral, pretendendo garantir uma "formação básica comum", a PC de São Paulo está centrada em competências e habilidades. Como mais um dos princípios para um "currículo comprometido com seu tempo", o currículo referido em competências justifica-se na dificuldade em definir conteúdos unificados num país tão extenso e diverso como o Brasil, apontando para a opção de indicar o que é necessário que todos os alunos tenham aprendido ao final do processo escolar, considerando que: [...] a escola deverá ser tão diversa quanto são os pontos de partida das crianças que recebe. Assim, será possível garantir igualdade de oportunidades, diversidade de tratamento e unidade de resultados. Quando os pontos de partida são diferentes, é preciso tratar diferentemente os desiguais para garantir a todos uma base 15 comum .

Uma das competências priorizadas pela PC é a da leitura e escrita, que contempla não somente a linguagem verbal, mas também os diversos sistemas simbólicos presentes em nossa sociedade, como a publicidade, os meios de comunicação, o design, os códigos visuais e sonoros. Articuladas à competência leitora e escritora, a PC adota outras competências para aprender, formuladas a partir da matriz de competências do Enem Exame Nacional do Ensino Médio. De forma sintética, são elas: dominar linguagens, compreender fenômenos, enfrentar situações problema, construir argumentação, elaborar proposta. Encontra também respaldo na LDB, que no primeiro parágrafo de seu Art.° 36 estabelece algumas competências que o educando deverá demonstrar ao final do ensino médio, como: domínio dos princípios científicos e tecnológicos que presidem a produção moderna; conhecimento das formas contemporâneas de linguagem e domínio dos conhecimentos de Filosofia e de Sociologia necessários ao exercício da cidadania. Ao pensar nas crianças e jovens que a PC se propõe a formar, com o propósito de que se tornem “adultos preparados para exercer suas responsabilidades (trabalho,

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SÃO PAULO (Estado), Secretaria da Educação, op. cit., p. 15.

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família, autonomia) e para atuar numa sociedade que muito precisa deles” 16, podemos retomar a idéia, presente nos escritos de Tomas Tadeu da Silva, de que o currículo constrói o sujeito de que fala e aos quais fala. A partir disso, torna-se também preciso, de precisar e de precisão, recolocar questões como: o que se espera que tal sujeito aprenda? A que será útil tal aprendizado? O que se quer que eles sejam ou se tornem? Cabe aqui refletir sobre quais são essas competências incentivadas pela PC e se elas são mesmo universais, se são, a despeito das diferenças de classe e das condições materiais de vida, adequadas a todos os alunos aos quais pretende assegurar essas mesmas oportunidades. Outra questão que deve ser destacada é se tais oportunidades são também as mesmas proporcionadas aos alunos das redes de ensino particulares ou se a igualdade pretendida permanece no âmbito dos “desiguais”. O perfil de cidadão autônomo, (parcip)ativo, responsável, flexível e com habilidades para resolver problemas parece hoje ser mesmo “adequado” a todos os indivíduos, independente das diferenças sociais, culturais e materiais. Para nós seria inconcebível, por exemplo, questionar a importância da competência leitora e escritora. Entretanto, o entendimento desse perfil como o natural a ser alcançado por todos também pode ser visto como uma forma de, usando termo do filósofo húngaro István Mészaros, “internalizálo” através dos mecanismos de reprodução da ordem econômica. Tal termo, empregado no livro A Educação para além do Capital17, é usado para designar a forma através da qual o capital se vale da educação para legitimar e inculcar valores dominantes dentro da sociedade. Esse sujeito, indivíduo, educando, pessoa humana, cidadão, possuidor de tais características, ou melhor, de tais competências e habilidades, é, como aponta Silva, convenientemente compatível tanto com o sujeito incutido no discurso neoliberal quanto com o tipo de “eu” construído pela pedagogia construtivista. A partir daí podemos supor quais estão sendo, serão ou pretendem ser as identidades individuais e sociais produzidas por meio dos discursos curriculares e a que elas se ajustam. Outras considerações necessárias sobre as competências dizem respeito à contradição com a forma de avaliação através de provas como o Provão e o Saresp (Sistema de Avaliação do Rendimento Escolar do Estado de São Paulo), pois avaliar cidadania, autonomia e outros aspectos subjetivos e cognitivos, que aparentemente são priorizados na PC, por meio de provas objetivas parece um tanto incompatível. E mais, esse sistema acaba por incumbir os professores de preparar os alunos para tais provas, 16 17

Idem, Ibdem, p. 13. MÉSZAROS, István. A educação para além do capita. São Paulo: Boitempo, 2008.

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direta ou indiretamente responsabilizado aqueles pelo sucesso ou fracasso destes, através de critérios meritocráticos de remuneração. As competências são caracterizadas pela PC do Estado de São Paulo como “modos de ser, raciocinar e interagir”, de onde se pode pressupor que há alguns modos de ser, raciocinar e interagir preestabelecidos (construtivista? neoliberal?), que devem ser aprendidos e apreendidos pelos jovens para que estejam aptos a exercer suas responsabilidades e ocupar seu lugar dentro da sociedade que “muito precisa deles”. Dessa forma, valorizar o desenvolvimento de competências não seria, novamente usando palavras de Silva, supor que existe uma ”essência subjetiva que foi alterada e que precisa ser restaurada” 18? Segundo Tomas Tadeu da Silva, diferente da teoria crítica, que se fundamenta numa economia política do poder, a teoria pós-critica baseia-se em formas textuais e discursivas de análise, enfatizando que a dinâmica de poder envolve também relações de gênero, etnia, raça e sexualidade, não se limitando apenas à classes sociais. Sob essa perspectiva, Silva questiona o discurso das teorias críticas educacionais que defendem a libertação e a emancipação do sujeito através do conhecimento pois, de acordo com ela, a subjetividade é considerada intrinsecamente social e, conseqüentemente, não se poderia falar em um ser autônomo ou no desenvolvimento do pensamento autônomo. Com base em Foucault, Silva defende que não exista uma situação de não-poder. Ao invés disso, o que há é uma disputa constante entre posições e relações de poder, da qual geralmente resulta a dominação das classes capazes de se impor principalmente através da força econômica e que, conseqüentemente, possuem a hegemonia cultural que acaba por se naturalizar dentro do senso comum da sociedade. Nesse sentido, vale a pena voltar à questão da igualdade de oportunidades pretendida para os “desiguais” na rede estadual, levando em conta o sistema privado de ensino. Sobre as diferenças entre o ensino público e privado, Silva diz que As escolas privadas não são mais eficientes que as escolas públicas por causa de alguma qualidade inerente e transcendental da natureza da iniciativa privada (o contrário valendo para a administração publica), mas porque um grupo privilegiado em termos de poder e recursos pode financiar privadamente uma forma privada de educação (sem esquecer a vantagem de capital cultural inicial – de novo resultante de relações sociais de poder – de seus/suas filhos/filhas, em cima do qual 19 trabalham as escolas privadas).

18

Tadeu, T. Documentos de identidade, Belo Horizonte, Autêntica, 2011, p. 150. GENTILLI, P.; TADEU, T. (Org). Neoliberalismo, qualidade total e educação: visões críticas. Petrópolis: Editora Vozes, 1994, p. 20. 19

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O ensino por competências é defendido, tanto pela PC quanto pelo PCN (Parâmetros Curriculares Nacionais) do Ensino Médio, como uma forma de garantir a democratização da escola e do acesso à educação. No entanto, perguntamos em que consiste esse tratamento diverso, já que o próprio material didático oferecido é exatamente o mesmo em toda a rede estadual de ensino, independente das diversidades e desigualdades. Sendo também as mesmas as competências e habilidades pretendidas para todo tipo de gente em todo tipo de circunstâncias (dentro do estado de São Paulo), ainda a despeito das diversidades e desigualdades. Outra dúvida levantada é se, de fato, é possível garantir igualdade de oportunidades, seja através da unificação de conteúdos ou de competências, levando em conta o pressuposto de que as desigualdades envolvem outros fatores sociais anteriores à escola. Luiz Antonio Cunha, no livro Educação e Desenvolvimento Social no Brasil, afirma que é comum “a atribuição à educação do papel de instrumento e correção das desigualdades injustas produzidas pela ordem econômica, encarada, entretanto, como não sendo intrinsecamente injusta ou, então, não sujeita à críticas"20. As críticas que Cunha dirige a tal papel atribuído à educação foram feitas visando o sistema educacional brasileiro da década de setenta, porém as que ainda cabem no contexto de hoje (lembrando da diversidade do atendimento oferecido pela rede estadual de ensino no Estado de São Paulo) dizem respeito à desigualdade do sistema educacional, principalmente no que se refere à qualidade de ensino; as condições materiais de vida dos educandos como resultado do tipo de vida que cada grupo social leva, no que diz respeito à alimentação e ao desenvolvimento psicofisiológico, entre outras coisas, e que deverão influir no desenvolvimento mais ou menos “adequado” das competências que se espera; a valorização de comportamentos e de uma gramática de classe que não corresponde à classe trabalhadora, como trataremos mais adiante. Além de pretender a equalização de oportunidades e resultados, a PC também destaca a qualidade da educação como peça fundamental para evitar a exclusão através da falta de acesso a bens materiais ou culturais. No entanto, depositar na escola a expectativa de evitar, diminuir ou erradicar os fatores sociais como a exclusão e a desigualdade é, segundo Cunha, dissimular e sustentar a ordem econômica que os produz. A esse respeito, Silva argumenta que:

20

CUNHA, L.A, Educação e desenvolvimento social no Brasil,. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977, p. 55.

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Quando questões de igualdade/desigualdade e justiça/injustiça se traduzem em questões de qualidade/falta de qualidade quem sofre não são aqueles que já tem suficiente qualidade, mas precisamente aqueles que não a têm e que vêem em reduzidas suas chances de obtê-la, pelo predomínio de um discurso que tende a obscurecer o fato de que a sua falta de qualidade se deve ao excesso de qualidade 21 dos outros.

Não basta somente atentar mais uma vez para o emprego dos léxicos na intenção de identificar o que aqui é entendido por qualidade, pois, em discurso, as qualidades costumam ser mesmo qualitativas e as leituras, como tem sido até o momento, tendenciosas. E fazer isso talvez tornasse o texto mais repetitivo e cansativo. Mas ainda que não seja isso, ainda que a escola seja capaz de igualar as oportunidades e unificar os resultados, ainda que a qualidade pregada esteja regada das melhores intenções, ainda que todos esses apontamentos sejam vazios e supérfluos, a observação da prática no cotidiano escolar, de um modo geral, não condiz com o discurso. E é por isso que dizer o que se entende parece no mínimo, válido.

Sobre a “articulação com o mundo trabalho”

Embora, como consta na LDB 9394/96, essa PC valorize também, além da preparação básica para o trabalho, aspectos para a formação do educando enquanto pessoa humana, como a autonomia, construção de identidade e liberdade, fica evidente a ênfase dada à vida profissional e ao vínculo com o mundo do trabalho. O sexto, último e mais extenso dos itens dos “Princípios para um currículo comprometido com seu tempo”22 é exclusivamente dedicado à articulação com o mundo do trabalho, no qual se reforça a prioridade deste, enquanto produção de bens, serviços e riquezas, como a “prática humana mais importante para conectar os conteúdos do currículo com a realidade”. Para falar dessa articulação com o trabalho, vale antes voltar à página 10 da apresentação da PC, onde fala-se da valorização de aspectos afetivos e cognitivos como diferencial, em contrapartida a um diploma de nível superior, já banalizado. Apesar de não relacionar diretamente esse diferencial à vida profissional, sabemos que é nesse âmbito que tais aspectos podem ser somados a um diploma de nível superior para ser um diferencial e não somente uma diferença, já que as mudanças atuais no mundo do 21 22

GENTILLI, P.; TADEU, T. (Org). op. cit., p. 22. SÃO PAULO (Estado), Secretaria da Educação. op. cit., p. 12.

22


trabalho exigem menos conhecimentos e habilidades específicos do que tais competências diferenciadas, como as citadas e também já batidas pelo uso, capacidades de resolver problemas, trabalhar em grupo, continuar aprendendo, agir de modo cooperativo, que inclusive são também valorizadas por organizações internacionais como o Banco Mundial. Ao falar sobre a construção de identidade cultural ou social no que tange às relações de poder, Silva diz que “a identidade só faz sentido numa cadeia discursiva de diferenças: aquilo que ‘é’ é inteiramente dependente daquilo que ‘não é’”. Partindo desse ponto de vista, a aposta no diferencial afetivo e cognitivo não estaria centrada somente na formação de identidades pró-ativas, solidárias e curiosas, mas também competitivas e corporativistas. Assim, de acordo com a lógica do capital, um indivíduo deverá desenvolver competências capazes de destacá-lo em relação a outros que, assim como ele, tenham um diploma de nível superior, para que seu diferencial se diferencie mais que o diferencial do outro. Na parte Uma metamorfose ambulante (p. 11) desse trabalho, foi mencionada a possibilidade de assumir uma postura fetichista em relação ao currículo, como foi abordado por Tomas Tadeu da Silva, a fim de problematizar a forma naturalizada com que os discursos curriculares chegam até nós, os fatos dados como fardos que, sem perceber, carregamos. Portanto, tentando adotar então uma postura próxima a essa, faz-se necessário pensar qual a concepção de trabalho empregada e o que dela pode ser depreendido. Seria mesmo o trabalho o vínculo mais importante entre a escola e a realidade ou tendemos a concordar com isso porque assim está dado, é um fato e pronto, acabou? Conectar a escola e os conteúdos curriculares com a realidade significa dizer que a escola está separada da realidade? De acordo com a PC, o valor do trabalho (...) incide em toda a vida escolar: desde a valorização dos trabalhadores da escola e da família, até o respeito aos trabalhadores da comunidade, o conhecimento do trabalho como produtor da riqueza e o reconhecimento de que um dos fundamentos da desigualdade social é a remuneração injusta do trabalho. A valorização do trabalho é também uma crítica ao bacharelismo ilustrado, que por muito tempo 23 predominou nas escolas voltadas para as classes sociais privilegiadas.

Ao criticar o “bacharelismo ilustrado” dirigido às classes sociais privilegiadas e abraçar a valorização do trabalho como forma de combatê-lo, esquece-se de que não por isso ele deixará de existir, ou ainda que, não por isso, os valores e significados 23

Idem, Ibdem, p. 23.

23


construídos nos discursos curriculares e educacionais das classes privilegiadas tenham deixado de ser diferenciados. Em consonância com o que escreve Silva sobre a crítica da escola capitalista feita pelos sociólogos franceses Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron, essa perspectiva poderia ser vista como uma forma de reforçar a reprodução social que acontece através do domínio simbólico. Segundo eles, a cultura dominante é garantida como tal através da força econômica da classe a que pertence e que a (re) afirma como A cultura, estabelecendo códigos culturais naturalizados e encarados como “oficiais”. Esses códigos são, muitas vezes, os mesmos empregados nos discursos curriculares/ culturais /pedagógicos/ midiáticos oficiais, que se firmam como valores predominantes dentro da sociedade. Dessa forma, as crianças das classes dominadas que não pertencem a essa cultura e não conseguem decifrar tais códigos, ao mesmo tempo em que não reconhecem seus códigos como válidos, acabam por ficar/continuar à deriva, garantindo a reprodução cultural e consequentemente, social. O vínculo que a PC estabelece com o trabalho não se limita a relacionar os conhecimentos específicos das disciplinas à suas aplicações práticas na vida profissional, mas também em entender o valor do trabalho enquanto atividade humana e como produtor da riqueza (parênteses inevitável: da riqueza. artigo definido. o que significaria dizer que existe uma riqueza determinada, específica? ou melhor: que o trabalho produz somente um tipo de riqueza?), destaca também o "reconhecimento de que um dos fundamentos da desigualdade social é a remuneração injusta do trabalho "24. Entretanto, apoiar-se na remuneração injusta como um dos principais fatores (principais por ser o digno de ser citado) que fundamentam a desigualdade social seria como afirmar que remunerar justamente tornaria a sociedade menos desigual, omitindo o fato de que, dessa forma, os donos dos meios de produção, os detentores do capital, continuariam a ser donos dos meios de produção e a deter o capital, enquanto a classe trabalhadora continuaria a vender sua força de trabalho, só que por um preço um pouco mais digno. Ou menos indigno. Mais uma vez vemos apontar na direção do "deixa estar", quando àqueles que estão onde estão fica reservado o mesmíssimo lugar onde estão, de forma perversa e internalizada como se, de fato, não pudesse haver nenhuma alternativa à organização da sociedade. Não significa dizer que um currículo coerente ao contexto da escola pública deveria propor uma luta armada de classes, uma greve geral de todos os setores ou de

24

Idem, Ibdem, p. 23.

24


alguma maneira infiltrar uma outra ideologia que não a dominante, mas a dominada. Seria sim poder deixar em aberto outras possíveis leituras além daquelas impregnadas pelos valores de quem escreve e tornar passível e acessível ao sujeito a percepção de que o fator que determina a desigualdade não é (somente?) a remuneração desproporcional, que o impede de consumir o tênis da moda ou o celular da última geração. Uma vez (cons)ciente disso, ele (o sujeito) poderia escolher permanecer onde está, fazer uma greve geral, uma luta armada ou nenhuma das anteriores, já que a ele também deveria ser delegada a opção que está fora do script.

Quem não cola não sai da escola

[...] Os pais e professores desses passarinhos devem ensinar-lhes muitas coisas: a discernir um homem de uma sombra, as sementes e frutas, os pássaros amigos e inimigos, os gatos – ah! principalmente os gatos… Mas essa instrução parece que é toda prática e silenciosa, quase sigilosa: uma espécie de iniciação. Quanto a ensino oral, parece que é mesmo só: "Bem-te-vi! Bem-te-vi", que uns dizem com voz rouca, outros com voz suave, e os garotinhos ainda meio hesitantes, sem fôlego para três sílabas. Antigamente era assim. Agora, porém, as coisas têm mudado. Certa vez, quando pai ou professor ensinava com a mais pura dicção: "Bem-te-vi!" – o aluno, preguiçoso, relapso ou turbulento, respondeu apenas: "Te-vi!". Grande escândalo. Uma pausa, na verde escola aérea. "Bem-te-vi! Bem-te-vi!", tornou o instrutor, com uma animação que se ia tornando furiosa. Mas os maus exemplos são logo seguidos. E a classe toda achou graça naquela falta de respeito, naquela moda nova, naquela invenção maluca e foi um coro de "Te-vi! Te-vi! Te-vi!", que deixou o próprio eco muito desconfiado. Essa revolução durou algum tempo. A passarinhada vadia pulava de leste para oeste a zombar dos mais velhos. "Bem-te-vi!", diziam estes, severos e puristas, tentando chamá-los à razão. "Te-vi! Te-vi!", gritavam os outros, galhofeiros, revoltosos, endoidecidos. Passou-se o tempo necessário ao aparecimento de uma nova geração. E então foi sensacional! Os passarinhos mais recentes ouviam aquele fraseado clássico dos avós: "Bem-te-vi! Bem-te-vi!" – e deviam achar aquilo uma língua morta: o latim e o sânscrito lá deles. Depois, ouviam a abreviatura dos pais: "Te-vi! Te-vi!". Mas acharam muito comprido ainda. (Que trambolho, a família!) E passaram a

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responder, por muito favor, "Vi! Vi!" Muito mais econômico. Afinal, pelos ares não voam mais anjos e sim aviões a jacto... "Bem-te-vi!", exclamam os anciãos, com sua dignidade ofendida. "Te-vi!", respondem os filhos revoltosos. E os netos, meio chochos: "Vi!Vi!" Quanto aos bisnetos, vamos ver o que acontecerá. Talvez os professores mudem de método. Talvez mude o ministro. Talvez os tempos sejam outros, e a passarinhada volte a ser normal, ou deixe de falar, só de pirraça, ou invente – quem sabe? – uma expressão genial. E também pode ser que não haja mais bem-te-vis.25

Os tempos de hoje são tempos em que as formas de se relacionar e também as relações entre as pessoas são completamente diferentes das de duas, ou até mesmo uma, décadas atrás. Os bem-te-vis de hoje já não cantam como os de antigamente. E um dos principais fatores que contribuem com essa mudança é a internet e a conexão de pessoas, acontecimentos, coisas, fatos, idéias através de uma extensa e complexa rede virtual. Mais recente e evidente ainda, tem sido o uso dessa rede como forma de colaboração peer-to-peer, ou seja, diretamente de um ponto a outro e sem a necessidade de intermediários, que tem mudado (ou tornado imprescindível mudar) a forma de encarar e partilhar o conhecimento. A internet torna-se cada vez mais colaborativa e menos institucionalizada, fazendo com que mídias sociais tais como Orkut, Myspace, Facebook, Youtube e Twitter sejam formas cada vez mais comuns de conexão entre as pessoas, construindo novas maneiras de se relacionar. Da mesma forma, o compartilhamento de informação e de conhecimento também caminha na direção de se tornar mais colaborativo e descentralizado, a exemplo da Wikipedia, a “enciclopédia livre”, na qual os usuários contribuem anônima e espontaneamente para formação de verbetes; a divulgação de aulas e palestras no Youtube e tutoriais e discussões em fóruns, assim como esses dois primeiros parágrafos desse capítulo, que foi escrito em colaboração com outras pessoas. Como já foi mencionado, no meio de toda essa rede há uma porção de sites e comunidades no Orkut criados por alunos da rede estadual com o objetivo de compartilhar as respostas dos Cadernos do Aluno que, vale a pena frisar, são os mesmos

25

MEIRELES, C. Escola de bem-te-vi. In: O que se diz e o que se entende. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1980, p. 95-7.

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para todo o Estado de São Paulo e com pequenas alterações de um ano para o outro desde que foram adotados. Tais sites e comunidades são organizados por séries, disciplinas e volumes, e os membros contribuem publicando suas respostas e o principal, segundo consta em uma das comunidades: “a comunidade é para todos se ajudarem! Não adianta ficar só pedindo pedindo e pedindo! Poste respostas também!!”. Seriam mesmo novos tempos, uma nova expressão genial ou seria pirraça dos netos dos bem-te-vis? Destinada aos alunos do Ensino Médio, a maior das comunidades desse gênero no Orkut possui 353.822 membros registrados, o que equivaleria a 8% do total de quatro milhões de alunos da rede pública estadual. Em outra comunidade26, com mais de 110 mil membros, foi feita uma sondagem [figura 2] para saber a opinião sobre os Cadernos do Aluno: em primeiro lugar, com 12. 858 votos, 29% do total, ficou a opção “uma bosta” e em segundo, com 22%, a alternativa “Fuck You”, sendo que a minoria, equivalente a 4% do total de membros, escolheu a opção “me ajuda muito”.

Figura 2. Sondagem "O que acha do 'Caderno do Aluno' ?" na comunidade Caderno do Aluno - respostas, no Orkut.

Esses dados superficiais já podem ser o bastante para questionar o quão comprometida essa escola está com o seu tempo e o quanto esse modelo fechado de currículo abre lacunas ao próprio tipo de aprendizado a que se propõe, pois, por mais que defenda “o trabalho colaborativo para a formação de uma ‘comunidade aprendente27” , ignora a potencia articuladora dos jovens e impõe a eles uma estrutura estática e préestabelecida que está cada vez mais distante da urgência e da dinâmica da vida social em rede que constroem do lado de fora da sala de aula. 26 27

Orkut: Caderno do Aluno –respostas. Disponível em: <http://www.orkut.com.br/Main#Community?cmm=1855286>. SÃO PAULO (Estado), Secretaria da Educação, Op. Cit., p. 12.

27


A este respeito, Imanol Aguirre acrescenta que: [...] em nosso entorno também existe o que Kincheloe e Steinberg (1997) denominam de “pedagogia cultural”. Quer dizer, todo um conjunto de conteúdos formativos que não são administrados pelas vias tradicionais da educação formal, mas sim pelos meios de comunicação de massa, basicamente. Ainda que estes conteúdos não sejam sempre evidentes e cheguem, por isso, a constituir um verdadeiro “currículo oculto”, é o que, no final das contas, está realmente formando, em nossos jovens, valores éticos e estéticos. Uma evidência disso é que, a escola e a vida, configuram, para o imaginário juvenil, dois âmbitos, absolutamente, 28 distantes, que se dão as costas mutuamente.

A distância entre escola e vida acaba por desperdiçar aspectos que poderiam ser muito mais construtivos no que diz respeito à formação dos jovens de um modo geral. Considerar sob um viés pedagógico as novas tecnologias, a conexão de pessoas através das redes digitais e o caráter colaborativo que vem crescendo junto disso tudo, não é tratar simplesmente de informação e entretenimento, mas, sobretudo de formas de conhecimento que contribuem de maneira decisiva no comportamento, relacionamentos e posicionamentos das pessoas. É entender a ‘irreverência’ gramatical das novas gerações de bem-te-vis e tentar dialogar com ela. Evidentemente, considerar pedagogicamente o “ciberespaço” como fonte de conexão e produção de conhecimento não significa abrir mão dos outros espaços que não sejam “cibers”. Até porque, sabemos que muitos espaços e pessoas não fazem parte dessa rede, o que torna mais emergente a necessidade de diversificar, ao invés de padronizar, o processo de ensino/aprendizagem escolar. Ainda acompanhando o pensamento de Aguirre, entretanto, percebemos que a escola, tal como conhecemos hoje fundamentada na fragmentação disciplinar, não parece ser o cenário mais propício para que consiga assumir definitivamente sua própria perda do monopólio sobre o conhecimento, informação e experiências. Segundo Pierre Lévy, referência internacional nos estudos da cibercultura, do virtual e da inteligência coletiva, O saber-fluxo, o saber-transação de conhecimento, as novas tecnologias da inteligência individual e coletiva estão modificando profundamente os dados do problema da educação e da formação. O que deve ser aprendido não pode mais ser planejado, nem precisamente definido de maneira antecipada. Os percursos e os perfis de competência são, todos eles, singulares e está cada vez menos possível canalizar-se em programas ou currículos que sejam válidos para todo o mundo. Devemos construir novos modelos do espaço dos conhecimentos. A uma

28

AGUIRRE, I.. Imaginando um futuro para a Educação Artística.

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representação em escalas lineares e paralelas, em pirâmides estruturadas por «níveis», organizadas pela noção de pré-requisitos e convergindo até saberes «superiores», tornou-se necessário doravante preferir a imagem de espaços de conhecimentos emergentes, abertos, contínuos, em fluxos, não-lineares, que se reorganizam conforme os objetivos ou contextos e nos quais cada um ocupa uma 29 posição singular e evolutiva.

Talvez não exatamente na prática, mas, nos âmbitos curriculares e escolares o discurso freireano, que vê o aluno (ou melhor, educando) como um sujeito ativo no processo educacional, já está amplamente incorporado. A questão principal talvez não seja mais apenas deslocar o foco do ensino para o da aprendizagem, mas também não escamotear a inadequação do mundo, no qual esse sujeito vive, entre os perímetros dos muros da escola ou, ainda, a adequação demasiado justa a um sistema que sujeita o sujeito a ser “sujeito ativo” num âmbito restrito já anteriormente definido, no qual sua ”atividade” obedece algumas condições e limitações, sistema para o qual aparentemente inexistem escolhas ou alternativas. Ao mesmo tempo em que reconhece que a escola não é mais fonte exclusiva de “saber”, a PC parece não abrir totalmente mão de alguma responsabilidade que justifique a escola como imprescindível para a vida em sociedade. As novas tecnologias da informação produziram uma mudança na produção, na organização, no acesso e na disseminação do conhecimento. A escola hoje já não é mais a única detentora da informação e do conhecimento, mas cabe a ela preparar seu aluno para viver em uma sociedade em que a informação é disseminada em 30 grande velocidade.

Pensando que a escola está dentro da sociedade e faz parte dela, ou que ao menos deveria fazer, já não se estaria assumindo essa distância entre a escola e a tal sociedade ao tomar para si essa função de preparar alguém para viver nela (sociedade) ? Será mesmo que cabe a escola preparar o aluno para viver em uma sociedade “assim ou assada”? E mesmo que caiba, estará ela preparando o aluno para exercer qual papel dentro dessa sociedade, se ela própria (a escola) se mantém tão descolada de toda essa grande velocidade a que se refere? Não basta perceber a escassa presença que tem a escola na construção do imaginário, dos desejos e fantasias dos jovens que forma. Não é suficiente certificar a obsolescência da escola atual, para enfrentar o desafio de conectar os currículos escolar e cultural. Faz-se imprescindível uma mudança de imaginários, relativa à

29 30

LÉVY, Piérrre. Cibercultura. São Paulo: 34, 1999, p. 158. SÃO PAULO (Estado), Secretaria da Educação, Op. Cit., p. 19.

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distribuição disciplinar dos saberes e, com respeito às noções básicas que os 31 consolidam [...] “

Pois é. Novamente com Aguirre, concordamos que apontar as deficiências e enxergá-las como ineficientes, não é o suficiente. Como seria possível ter a inteligência coletiva e a capacidade organizacional e colaborativa dos jovens na rede digital, que vêem esse material curricular da rede estadual como “uma bosta”, na construção e na partilha de algo realmente coletivo onde pudessem ser de fato sujeitos e não apenas mais um sujeito oculto por um sistema maior? E fica a pergunta, a espera de resposta: o que fazer, então, com a rede?

31

AGUIRRE, I. Imaginando um futuro para a Educação Artística.

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III. A Proposta Curricular de Artes

A PC para a disciplina de Artes, assinada por Geraldo Suziganm, Gisa Picosque, Mirian Celeste e Sayonara Pereira, foi estruturada dentro de um pensamento cartográfico que traz o mapeamento de alguns territórios da arte, a partir dos quais estabelece conexões. Antes de entrar no mapa e nos territórios, entretanto,expõe um pouco sobre a concepção de arte e sobre o ensino da arte que adota. E é disso que trataremos no item a seguir.

Uma concepção para a área de arte

Em pouco mais de duas páginas, a PC de Arte esboça o entendimento que adota sobre arte, reforçando em vários momentos a importância da arte e da aproximação com ela. Para tornar clara a leitura feita do posicionamento da PC sobre a arte, elegemos alguns fragmentos do texto para ser comentado e, principalmente, indagando. Para perceber a força poética que uma obra de arte oferece, mantendo uma relação íntima entre a obra e nós, há que se inserir a arte na teia de nossos interesses culturais. (...) Mas para que a arte venha a ser um interesse cultural de crianças, de jovens, de adultos e idosos, é preciso pensar em processos educativos 32 que ofereçam modos de aproximação com a arte e suas linguagens artísticas.

Essa insistência em fazer da arte um interesse cultural comum suscita primeiro questionar de qual arte se fala e por que é mesmo necessário que todos se interessem por ela. Sobre o trecho supracitado, significa dizer que se a arte não estiver inserida nos nossos interesses culturais, não seremos capazes de perceber a “força poética” de uma obra? A obra tem necessariamente uma força poética que cabe a nós a tarefa de percebê-la, reconhecê-la? Sabemos bem que ainda há fronteiras a serem superadas para que diante de uma obra contemporânea de qualquer linguagem artística, aquela insistente e desconcertante pergunta “Isso é arte?”ou a afirmação “Isso eu também faço” e suas variantes, seja

32

SÃO PAULO (Estado). Secretaria da Educação. Proposta Curricular do Estado de São Paulo: Arte / Coord. Inês Maria Fini. São Paulo: SEE, 2008, p. 42.

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substituída por longas conversas sobre arte (...) .

“Ainda há fronteiras” quer dizer que chegará um dia em que essas fronteiras deverão deixar de existir? Seria supor que a arte contemporânea é imprescindível para todos ou que deve ser passível de ser discutida por toda gente? A pergunta “isso é arte?” não exclui a discussão. Pelo contrário, pode justamente precedê-la. Deveria então não haver mais contestação sobre o que é arte? Ou é necessário que todo mundo rompa a barreira inicial do “leigo” e esteja apto a conversar sobre arte tendo ultrapassado essa etapa de questionar se é ou não é arte? E o que pensar quando se é tomado pelo assombro diante da notícia veiculada pela mídia acerca da ação de cinco jovens entre 15 e 18 anos que invadem o Museu de Orsay, em Paris, e praticam um ataque contra o quadro “A Ponte de Argenteuil”, do pintor francês Claude Monet, danificando a obra de 1874 com um rasgo de 10 centímetros? Ou, o que conhecem ou sabem sobre a arte enquanto patrimônio cultural os jovens que praticam atos de vandalismo em prédios históricos brasileiro, por exemplo? Reagimos, sempre, com grande indignação frente a atos de vandalismo; porém, quais processos educativos são desencadeados nas escolas para que os bens materiais e imateriais da cultura produzam em crianças e jovens o 34 sentimento de pertencimento?

Saber arte enquanto patrimônio cultural é estar sempre de acordo com ela? A escola deve trabalhar para cultivar nas crianças e jovens o sentimento de pertencimento com relação aos bens materiais e imateriais da cultura independente de se eles de fato pertencem ou se sentem pertencendo a esses bens? Não que isso justifique o vandalismo, mas tão assombroso quanto uma ataque a uma tela de Monet é não indagar o que leva jovens entre 15 e 18 anos danificarem uma obra de 1874 ou de onde vem o valor das coisas. Ou pressupõe-se também que, assim como a “força poética”, o valor da obra antecede a própria obra, é inerente a ela? Já paramos para pensar no por que se pratica atos de vandalismo em prédios públicos, mas ao mesmo tempo não se “atropela” grafite nem pichação de outros? Andando pelo centro histórico de São Paulo, por exemplo, quem tem esse sentimento de pertencimento com relação ao Teatro Municipal, a Caixa Cultural, ao Centro cultural Banco do Brasil? E embora sejam todos espaços públicos, a quem pertencem de fato? [...] Como provocar o encontro com a arte no espaço escolar? Com quais campos da arte se faz um pensamento curricular para a área, tal qual a partitura de uma

33 34

Idem, Ibdem, p. 42. Idem, Ibdem, p. 42.

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música nova? Com quais signos se faz processos educativos que impulsionem a 35 aprendizagem da arte como invenção?

A arte com a qual se quer provocar o encontro no espaço escolar é a arte como invenção? E o que se entende por aprender a arte como invenção? Mas invenção de quê e pra quê? Em alguns momentos esse texto parece um tanto vago ou somos nós que lutamos para querer entender dele mais do que ele se pretende. Por que aprender a arte como invenção? É verdade que nele não há nada que restrinja a possibilidade da aprendizagem da arte ser outra coisa além disso, mas se essas possibilidades existem, estão omissas. O que vemos aqui é a importância na aproximação e na valorização da arte e o destaque para sua aprendizagem como invenção. Embora conste na bibliografia autores que tratam de outros aspectos atualmente tidos como pertinentes ao estudo da arte, como Fernando Hernández, para quem a cultura visual “exercer um papel de ponte como campo de saberes que permitem conectar e relacionar para compreender e aprender para transferir o universo visual de fora da escola com o aprendizado para decodificá-lo, reinterpretá-lo e transformá-lo na escola” 36 esses outros aspectos do ensino da arte não transparecem ao longo do documento da disciplina de artes. Seguindo mais uma vez o pensamento de Imanol Aguirre, mais do que invenção, pensar arte através da educação é encará-la como um feito cultural que não está isolado do contexto em que é produzida: No sentido de reimaginar as artes visuais e sua presença na educação está crescendo uma nova perspectiva educativa que, diferente dos modelos anteriores, não concebe a arte como saber normativizado, nem como expressão interior, nem 37 como linguagem, mas sim como um feico cultural..

Os conteúdos e conceitos apresentados na PC de Artes estão listados em tópicos para cada bimestre de cada série a partir da 5ª série do Ensino Fundamental até a 2ª série do Ensino Médio, e tratam muito pouco de um imaginário cultural mais abrangente, 35

Idem, Ibdem, p. 43. HERNÁNDEZ, F. La necessidad de repensar la educación de las artes visuales y su fundamentación en los estudios de cultura visual. 2001. Disponível em: <http://www.prof2000.pt/users/marca/profdartes/hernandez.htm>. Tradução livre de: “ejerce un papel de puente como campo de saberes que permite conectar y relacionar para comprender y aprender para transferir el universo visual de fuera de la escuela con el aprendizaje de estrategias para descodificarlo, reinterpretarlo y transformarlo en la escuela” 37 Aguirre, I, Modelos formativos en educación artística: Imaginando nuevas presencias para las artes en educación., Bogotá julio de 2006. Tradução livre de: “En esta línea de reimaginar las artes y su presencia en educación está creciendo una novedosa perspectiva educativa que, a diferencia de los modelos anteriores, no concibe el arte como saber nornativizado, ni como expresión interior, ni como lenguaje, sino como hecho cultural” 36

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enfatizando principalmente questões relativas à forma, à materialidade, à singularidade do modo de produção das linguagens artísticas, a “saberes estéticos e culturais”. Trataremos mais adiante de como tais conteúdos são abordados nos Cadernos do Professor e do Aluno, mas já daqui podemos observar uma inclinação para temas e formas de abordá-los que mais dizem respeito à “alta cultura” do que a formas populares da cultura que não são necessariamente legitimadas. Essa inclinação se identifica com o que Ana Mae chama de abordagem aditiva, entendida como “a atitude de apenas adicionar à cultura dominante alguns tópicos relativos a outras culturas.38”. Claro que os conteúdos se tangenciam e pretendem ser mais ou menos flexíveis, mas já estão previamente organizados e, aparentemente, dão pouco espaço para reflexões acerca da multiculturalidade, da cultura visual e da cultura popular, embora valorize todas as novidades técnicas, temáticas, espaciais, processuais abraçadas pela arte contemporânea. Para as 5ªs séries, por exemplo, os temas dos quatro bimestres estão assim definidos: a tridimensionalidade nas linguagens artísticas; o espaço no território das linguagens artísticas; a luz como suporte, ferramenta e matéria na arte; a arte na cidade e o Patrimônio Cultural. Para cada um desses temas segue uma lista extensa de conteúdos e conceitos a serem tratados, passando por ready-made, site specific, instalação, dança moderna e contemporânea, re-harmonização tonal, propagação tonal, a dimensão artística da luz, cenografia, e por aí a fora... No 4º bimestre aparecem tópicos relacionados à cultura visual na cidade, paisagens sonoras da cidade, manifestações tradicionais e populares em dança, teatro de rua, apresentações musicais na cidade. Sabendo que o tema desse ultimo bimestre é justamente aquele que diz respeito à arte da cidade e ao Patrimônio Cultural, vale perguntar se tais tópicos devem ser inseridos no currículo apenas como um capítulo especial ou a título de curiosidade, como “patrimônio” que deve ser preservado mas que muitas vezes carrega o sentido de algo estático, intocável e exótico dentro da cultura. Depois, essas palavras só se aproximam novamente dos conteúdos do 1º bimestre da 1ª série do Ensino Médio, cujo tema é Cidade, cultura e práticas culturais, onde novamente se trata de patrimônio cultural, intervenções urbanas, danças populares, artes circenses, músicos de rua... E então não se fala mais nisso. Ainda há, na 7ª série, uma passagem por capoeira e hip-hop e na 6ª série em publicidade e moda. Mas será que basta tratar de maneira tão pontual e isolada aquilo

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BARBOSA, A. M. Tópicos utópicos. Belo Horizonte: C/ARTE, 1998, p. 93.

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que está geralmente mais próximo da vida da maioria das pessoas e, certamente, dos alunos? Por que priorizar o estudo da luz, por exemplo? Por que as coisas não podem estar mais organicamente fazendo parte da mesma coisa? Por que essa distância entre os temas bimestrais, que não se esforçam para dialogarem ou tecerem algum fio condutor comum? Sobre o entendimento do ensino e aprendizagem na área de artes, a PC primeiramente faz uma breve contextualização da história do ensino da arte no Brasil. Identifica nos “conteúdos muito amplos, objetivos generalistas e na falta de uma política nacional menos genérica em relação à formação específica do profissional que ministra a disciplina de Arte”39 uma das grande dificuldade dos governos e, por isso, considera ousada a iniciativa de mapear os conteúdo e conceitos de arte. De todos esses documentos permanecem de modo geral os objetivos e conteúdos. A diferença da tarefa, entretanto, é compor de modo inventivo conteúdos/conceitos para a criação de aulas no tempo possível dos bimestres, tendo os pés na realidade da sala de aula, sua quantidade de alunos, o tempo-duração-aula, as dificuldades 40 de recursos materiais e físicos.

Retomando o que foi dito no capítulo 2, lembramos que o processo de elaboração da PC e de todos os documentos que dela fazem parte não contou efetivamente com a participação dos professores, que são quem realmente tem “os pés na realidade da sala de aula”. A partir daí fica mais fácil compreender o descompasso entre “tempo possível dos bimestres”, do “tempo-duração-aula” e das outras dificuldades apontadas e a realidade escolar, observadas no próximo capítulo.

As gavetas para guardar a arte

A polivalência e a articulação entre as linguagens artísticas sempre foram uma dificuldade dentro dos currículos de arte. Espera-se que todas as modalidades artísticas tenham espaço ao longo da vida escolar enquanto no Ensino Superior a tendência é especializar-se cada vez mais, a exemplo da quase extinção dos cursos de Educação Artística em substituição às Licenciaturas especificas. Os Parâmetros Curriculares Nacionais deixam a cargo dos professores e da equipe de educadores responsáveis pelo projeto curricular, dosar as modalidades artísticas levando em conta o conhecimento prévio dos alunos. Entretanto, não é preciso nenhum 39 40

SÃO PAULO (Estado), Secretaria da Educação, Op. Cit., p. 45. Idem, Ibdem, p. 45.

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dado muito oficial para saber que a maioria dos professores tem sua formação na área de artes plásticas/visuais, o que geralmente deixa as outras linguagens artísticas deficientes. A PC para a disciplina de Artes foi elaborada visando uma alternativa para solucionar essas dificuldades relacionadas à formação dos professores. Como pensamento curricular em Arte, às avessas de uma estrutura de organização de conteúdos seqüenciais para artes visuais, música, teatro e dança, imaginamos a possibilidade de pensar essas áreas de estudo por meio da composição de um mapa que possuísse a capacidade de criar um encontro entre as diferentes 41 modalidades artísticas por diversos ângulos de visão.

Em todas as séries e bimestres há o que recebeu o nome de “Situação de aprendizagem”, que “no contexto de cada uma das modalidades artísticas (artes visuais, musica, dança, e teatro), problematizam conceitos e conteúdos o conceito ou o aspecto da Arte do ponto de vista dos territórios abordados” 42, sempre com foco no conceito estudado em relação com as linguagens. O documento deixa claro que o professor trabalhará os conceitos e conteúdos com ênfase na linguagem artística de sua formação e incorporará as demais linguagens como uma ampliação dos conteúdos. Ao mesmo tempo, nos Cadernos tanto do professor quanto do aluno há as “situações de aprendizagem” de todas as linguagens, organizadas de maneira tal que, numa leitura descolada do texto curricular da Proposta, pode favorecer outro tipo de entendimento, como a necessidade de segui-las linearmente. Nessa direção, este Caderno oferece potencialidades a ser escolhidas pelo professor para provocar encontros entre a arte e seus aprendizes. Encontros que estarão submetidos á sua formação, aos momentos em sala de aula e às variações de repertorio dos aprendizes e que podem vir a ser ampliados nas diferentes 43 linguagens artísticas .

Na prática, o que acontece é que a muitos dos professores de artes não se sentem aptos a trabalhar as outras linguagens que não sejam a sua de formação, mas entende que deve fazê-lo mesmo assim. Outros passam o bimestre inteiro (ou mais que isso) e também o ano inteiro em uma única linguagem. É verdade que a Proposta de Artes não se propõe a interdisciplinaridade em si, mas sim a encontrar pontos em comum que tangenciem as linguagens artísticas. Esses pontos, entretanto, embora sejam pontos de encontro, mantém as artes em paralelo. 41

Caderno do Professor – 6ª série, volume 2, SEE-SP, 2009, p. 8. Idem, Ibdem, p. 9. 43 Idem, Ibdem, p. 10. 42

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Silvio Gallo faz uma crítica à interdisciplinaridade que “ressente-se de que na disciplinarização cai-se numa fragmentação, e busca recuperar a unidade perdida44”. E, de fato, falando em multiplicidades e numa educação rizomática, é contraditório levantar a bandeira da unidade novamente. Ainda assim, a PC de Arte da SEE promove encontros muito rasos entre as linguagens artísticas, mantendo cada uma em sua “gavetinha”, justamente nos tempos em que a Arte Contemporânea tende a borrar as barreiras existentes entre elas.

A construção do mapa

A concepção do pensamento curricular em arte da Proposta Curricular do estado de São Paulo foi inspirada na obra de Gilles Deleuze, a partir da qual se propõe “ir além de metodologias de ensino ou de listagem de conteúdos45”, compondo através de uma “cartografia da arte” o que chama de territórios, isto é, o mapeamento de possibilidades que oferecem diferentes direções para o estudo da arte. Conceitos como os de cartografia e rizoma são emprestados de Deleuze & Guatarri para compor tal pensamento curricular em arte e, para compreender como são aplicados dentro desse pensamento, os discutiremos a seguir brevemente através de autores estudiosos do pensamento deleuziano e de tais conceitos. Primeiro, para falar de cartografia, trazemos Sandra Benedetti que, em sua tese de doutorado, diz que Cartografar, para Deleuze & Guatarri, é um procedimento de registro e análise que consiste em separar as linhas do desejo – linhas instituintes moleculares – das linhas que preservam a ordem instituída. Identificar nós de estrangulamento feitos de linhas mortíferas – que atuam precipitando a vida e os ânimos para a estagnação e o esgotamento – e eventuais linhas de fuga (para a vida). A cartografia para uma das linhas da geografia contemporânea é uma espécie de discurso gráfico. A leitura de mapas, antes de ser uma leitura técnica de decalques naturais, sociais e culturais, é leitura de diagramas, formas de ver o mundo, social, cultural e 46 historicamente construídas (GIRARDI, 2001).

Dessa forma, pensar um currículo de artes através de uma cartografia seria definir algumas “formas de ver o mundo”, tendo a arte como ponto de partida e identificando alguns ”nós de estrangulamento” tidos atualmente como primordiais ao contexto escolar. Na PC da disciplina de arte, esse mapeamento se dá através de alguns territórios 44

GALLO, S. Deleuze e a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2005, p. 81. SÃO PAULO (Estado), Secretaria da Educação, Op. Cit., p. 45. 46 BENEDETTI, S. C. G.. Entre a educação e o plano de pensamento de Deleuze & Guattari: uma vida... 2007, p. 18. 45

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da arte, onde se situam os temas bimestrais a serem estudados em cada uma das séries, de acordo com as particularidades de cada uma das modalidades artísticas. Tais territórios que orientam todo o processo educativo estabelecidos por esse mapeamento são: linguagens artísticas, processo de criação, materialidade, forma-conteúdo, mediação cultural e saberes estéticos e culturais; esses territórios deverão levar em conta a articulação do que é referido na Proposta como “eixos metodológicos”: o fazer artístico, a reflexão e a fruição estética ou, em outras palavras (não ditas), a Abordagem Triangular, sistematizada por Ana Mae Barbosa no final da década de 1980 e início do anos 1990, quando é divulgada através do livro A imagem no ensino da arte. O mapa dos territórios da arte foi elaborado à maneira de um rizoma, que seria uma forma sem um eixo central que, ao contrário da metáfora arbórea, não possui uma hierarquização e tampouco se fecha em determinado modelo ou ligações préestabelecidas, estando sempre aberto a novas e múltiplas ligações e conexões em diferentes direções. Segundo Silvio Gallo A metáfora do rizoma subverte a ordem da metáfora arbórea, tomando como imagem aquele tipo de caule radiciforme de alguns vegetais, formado por uma miríade de pequenas raízes emaranhadas em meio a pequenos bulbos armazenatícios, colocando em questão a relação intrínseca entre as varias áreas do saber, representadas cada uma delas pelas inúmeras linhas fibrosas de um rizoma, que se entrelaçam e se engalfinham formando um conjunto complexo no qual os elementos remetem necessariamente uns aos outros e mesmo para fora do próprio 47 conjunto .

Tendo em mente a imagem de rizomas, seria possível mover-se dentro do mapa dos territórios da arte [figura 3] em qualquer direção e estabelecer qualquer conexão entre territórios. Colocando o mapa dos territórios diante dos conceitos iniciais nos quais ele se inspirou percebemos que há uma distância considerável entre um e outro. Por mais que esse mapeamento se proponha aberto e passível de articular diferentes campos e saberes, o que vemos é uma estrutura fixa com pontos determinados e conexões préestabelecidas. Uma mapa de possibilidades previstas, que dificulta o percorrer por caminhos não desenhados por ele. Os oito territórios citados já vem prontos, assim como os temas bimestrais para cada uma das series desde a 5ª serie do Ensino Fundamental à 3ª serie do Ensino Médio. Para cada tema, já estão prescritos os tópicos relativos a ele, “listagem de conteúdos”, assim como as habilidades e competências esperadas.

47

GALLO, Silvio, op. cit, p. 76.

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O que está em questão aqui não é ferir os conceitos deleuzianos, mas novamente podar a autonomia dos professores, fechando as possibilidades ao tentar ampliá-las. Ainda que se diga que os conteúdos da Proposta Curricular sejam orientações e sugestões, a forma como está organizado, como foi instituído, como são cobrados os resultados, tudo isso dá brechas para que não seja entendido como uma simples sugestão.

Figura 3. Mapa dos territórios da Arte, criado por Mirian Celeste e Gisa

Outro aspecto importante a ser questionado seria a escolha feita para a elaboração da gestalt visual de tal mapa. Na introdução do caderno do professor há, anterior à explicações sobre esse processo, algumas perguntas relativas a ele: Nesse movimento de dimensão cartográfica, como desenhar um mapa, criando um espaço para esses territórios? Qual forma encontrar que faça mais visível a complexidade deste pensamento curricular movido por territórios da arte? Como traçar um desenho sem núcleo central, que possa mostrar que o mapa dos territórios oferece múltiplas entradas e direções moveis, com linhas variadas que podem se encontrar com outras linhas, fazendo conexões múltiplas e arranjamentos 48 heterogêneos?

Já no texto curricular, vem uma explicação concisa:

48

Caderno do Professor – 6ª série, volume 2, SEE-SP, 2009, p. 8.

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A invenção desta gestalt visual para o mapa tem sua invenção no curso da linha da obra Estudo para superfície e linha, da artista Iole de Freitas [figura 2]. Na obra, superfícies de policarbonato e linhas tubulares se retesam ou se descomprimem em generosos arqueamentos, o que nos leva à sensação de uma arquitetura mole, em que o curso da linha nos põe em movimento, a bailar no espaço em superfícies múltiplas. Por proximidade, o curso da linha nos faz imaginar caminhos, veredas 49 nos territórios da arte.

Figura 4. Iole de Freitas. Estudo para superfície e linha. Instalação no Centro Cultural Banco do Brasil (Rio de Janeiro, RJ).

Figura 5. Esboço de linhas para o Mapa dos territórios da Arte.

Para começar, temos uma escolha totalmente arbitrária ou que, ao menos não apresenta nenhuma justificativa aparente para que seja essa e não outra obra ou imagem o ponto de partida para a “invenção” da configuração do mapa dos territórios da arte. Depois, a leitura dela é feita a partir da fotografia de um dentre infinitos ângulos possíveis de uma obra que é tridimensional, espacial, a qual poucos conhecerão como um todo. Assim, como é possível afirmar categoricamente as experiências sensoriais que uma obra pode nos proporcionar sem te-la visto de fato e desconhecendo todas, exceto uma, das suas possibilidades? Por que pressupor que a leitura feita por alguém caberá aos outros que virão a ler, que se repetirão sensações, que todos bailarão “no espaço em superfícies múltiplas”, que a todos a obra fará imaginar? Por que atribuir a segunda pessoal do plural a uma leitura que é pessoal (ou de um grupo de pessoas), como se fosse ponto pacífico o acordo comum diante dela? Talvez não seja esse ponto relativo à concepção do mapa dos territórios o mais grandioso. Muito provavelmente se não fosse essa, seria outra imagem, outra obra, já que, para construir um mapa ou o que quer que seja, é preciso sair de algum lugar, partir de algum ponto. Porém, não assumir esse lugar de onde se parte já diz muito sobre o

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SÃO PAULO (Estado), Secretaria da Educação, op. cit., p. 51.

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posicionamento daqueles a quem foi dada a palavra e de toda a “hierarquia” que os precede. Indica, por exemplo, que não reconhece o lugar de partida como aquele onde de fato começa a caminhada a qual o documento se destina, a sala de aula. Foram definidos territórios a partir de uma obra escolhida e interpretada por um alguém; foram definidos temas situados dentro dos mapas, elaborados roteiros de aulas, definidas imagens e perguntas para os alunos e, para os professores, indicações de como trabalhá-las. Para todos os alunos. Para todos os professores. Sem que nem um, nem outro interferissem ou pudessem dizer de onde vem e para onde gostariam de ir. Talvez os limites dos caminhos encontrados nesse discurso curricular possam mesmo ser justificados na extensão da rede publica estadual e na dificuldade que deve ser administrar tantas escolas, pessoas e vontades de caminhar em direções distintas. Pensando em como articular um currículo transversal e rizomático, encerramos esse item com uma reflexão de Gallo, que a esse respeito argumenta que Em primeiro lugar, seria necessário deixar de lado qualquer pretensão cientifica da pedagogia. Como seria possível controlar, prever, quantificar os diferentes cortes transversais no mapa dos saberes? (...) Em segundo lugar, seria necessário deixar de lado qualquer pretensão massificante da pedagogia. O processo seria necessariamente singular, voltado par a formação de uma subjetividade autônoma, completamente distinta daquela resultante do processo de subjetivação de massa que hoje vemos como resultante das diferentes pedagogias em exercício. Em terceiro lugar, seria necessário abandonar a pretensão ao uno, de compreender o real como uma unidade multifacetada. (...) Pensar a educação e um currículo nãodsciplinares, articulados em torno de um paradigma transversal e rizomático do conhecimento soa hoje como uma utopia. Nossa escola é de tal maneira disciplinar que nos parece impossível pensar um currículo tão caótico, anárquico e singular. Mas já houve momentos na historia da humanidade em que parecia loucura lançarse aos mares, em busca de terra firme para além do continente europeu, ou então 50 se lançar no espaço, almejando a Lua e as estrelas...

Caderno do Professor, Caderno do Aluno

Os Cadernos do professor tomados como base para essa pesquisa são referentes aos anos de 2008 e 2009. Mas já podemos adiantar que de lá pra cá pouca coisa mudou, com exceção de algumas imagens, diagramação e a ordenação das coisas. Para explorar um pouco mais a abordagem dos conteúdos empregada nos cadernos do professor e do aluno adotamos principalmente o volumes 1 (1º bimestre) da 5ª e 6ª série do Ensino Fundamental. 50

GALLO, Silvio, op. cit., p. 81.

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Nas primeiras páginas do Caderno do Professor há sempre uma introdução sobre o pensamento curricular em artes e a concepção do mapa dos territórios, seguido de uma explicação sobre o tema do bimestre com uma imagem do mapa dos territórios destacando os conhecimentos priorizados relativos ao tema e ainda uma relação das competências e habilidades que deverão ser desenvolvidas ao longo daquele bimestre. Comum a todos os volumes/séries há ainda as notas sobre metodologias e estratégias a serem adotadas e sobre a avaliação. Na 5ª série, o tema para o volume 1 dos cadernos é tridimensionalidade, que no mapeamento está situado entre os territórios de forma-conteúdo e linguagens artísticas e indica como competências e habilidades possíveis estabelecer diferenciações entre o espaço bi e tridimensional; reconhecer e interpretar a linguagem tridimensional em produções artísticas; operar na tridimensionalidade na criação de idéias na linguagem da arte e distinguir a linguagem tridimensional produzida pelo gesto artístico das ofertas que são difundidas pela cultura cotidiana. De início, há uma “proposição para sondagem”, que visa conhecer o que os alunos já sabem sobre tridimensionalidade através da leitura de algumas imagens relativas às linguagens artísticas: Franz Weissman, cenários para peça de Molière, Cia. Terpsí de Dança, uma partitura de Celso Viáfora. O texto dessa proposição é feito basicamente de perguntas para orientar a ação do professor dentro dessa investigação. No caderno do aluno, esse momento recebe o nome de “Apreciação” e tem algumas perguntas para orientar a conversa em sala, que coincidem em partes com aquelas mesmas perguntas do Caderno do Professor, só que mais concisas. Seguidas da apreciação, há as situações de aprendizagem que colocam em foco o tema dentro de cada uma das linguagens artísticas. Todas as proposições feitas nas situações de aprendizagem tem uma previsão de tempo de duração. O texto é escrito ora na primeira pessoa do plural, mesclando alguns conselhos, como em “para dar continuidade, na próxima aula (sempre relembrando a anterior), podemos propor o desenho de uma de suas esculturas para transformar algo tridimensional em bidimensional.”, ora recorre ao imperativo “para finalizar, retorne aos subtemas pesquisados corporalmente (...)”. As atividades propostas nas situações de dança e teatro, por exemplo, aparecem como sugestões e possibilidades, mas possuem um passo-a-passo claramente definido e imperativo, enquanto no caderno do aluno há um espaço destinado para anotações e registros dessas atividades apenas ‘sugeridas’ no caderno do professor. Na “ação expressiva” de teatro, por exemplo, propõe-se duas ‘possibilidades’ de jogos teatrais: Que 42


horas são? e Caminhada com atitude. No caderno do aluno, encontra-se a seguinte orientação: “Você vai participar de dois jogos teatrais. E também vai assistir seus amigos jogarem. No espaço abaixo, anote suas observações dos jogos a que vai assistir51”. E então, logo abaixo tem o nome dos dois jogos teatrais mencionados no Caderno do Professor, com espaços em branco para as anotações. O mesmo acontece na situação de dança. Pergunta: se são apenas sugestões, por que colocar de maneira tão definitiva o que os alunos deverão fazer? Claro que, teoricamente, estar escrito o nome dos jogos no caderno do aluno não impede o professor de mudar a proposta, de adaptar o jogo, de não fazê-lo. Mas inevitavelmente está lá. Os territórios já estão demarcados; os conteúdos, as perguntas, as habilidades e competências, orientações para a gestão da sala de aula, para a avaliação e a recuperação, sugestões de métodos e estratégias de trabalho nas aulas, experimentações, projetos coletivos, atividades extraclasse, estudos interdisciplinares. Tudo isso já está lá, pronto. Desta forma, o professor perde toda autonomia dentro do processo pedagógico, fica preso a uma estrutura imóvel construída pelo lado de fora, de cima para baixo. Sobre os cadernos dos alunos, tem como ponto positivo a presença considerável de bastantes imagens, coloridas e diversas. Mirian Celeste Martins, uma das pessoas responsáveis pela elaboração do documento curricular de arte, realizou uma pesquisa com amostragens de Cadernos de Alunos de vários municípios do Estado, que serve aqui como contraponto àquelas realizadas no Orkut. Segundo essa pesquisa, quando foram indagados sobre a proposta do caderno que mais gostaram, a maioria dos alunos respondeu “apreciação.” Durante a pesquisa, quando ouvimos os alunos, observamos que eles tinham uma idéia do que era arte e de como eles podem conhecê-la, mas as imagens do Caderno do Aluno quebrou de certa forma tais idéias. Neste sentido, há uma espécie de confronto ou desconforto. Mas, ao mesmo tempo, existe uma nova possibilidade de olhar de uma forma aberta e curiosa. A forma como os professores tinham de apresentar a arte era também um desconforto, como o currículo de Arte explora conceitos em uma organização não-temporal, não-linear, assim, provocando diálogos com seu foco em conceitos e não mais através do tempo e do espaço, como 52 obra de arte tem sido tradicionalmente transmitido na escola . 51

Caderno do Aluno – 5ª série, volume , SEE-SP, 2011, p. 19. MARTINS, M. C., Contemporary art in public schools of são paulo/brazil: disclosing the research into cultural mediation upon the didatic material “student notebook, Budapest, 2011, p. 7. Tradução livre de: “During the research, when we heard students’ voices, we noted they had an idea of what art was and how they could know it, but the images in the Student Notebook broke such ideas in a certain way. In this sense, there is a kind of confronting or discomfort. 52

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No entanto, o mesmo caderno do Aluno destina para anotações áreas em branco muito reduzidas. Fora isso, parece um guia didático desses que repetem o tempo todo as mesmas fórmulas de funcionamento, como modelos já prontos para adaptar os conteúdos. Todo mundo que já passou pela escola sabe como é enfadonho o ano inteiro olhar o mesmo livro, com as mesmas cores, as ilustrações de cabeçalho que acompanham a hora da lição de casa, o clipes que segura o momento “o que ficou da conversa?”, o pincel sujo de tinta para “ação expressiva”... Muitas das perguntas colocadas nas situações de aprendizagem e de apreciação parecem já ter uma previsão ou um direcionamento de reposta para que seja possível continuar seguindo o caminho que se iniciou, não deixando brechas para improvisos. Por exemplo, no volume 1 do Caderno do Aluno da 6ª série há algumas imagens do espetáculo de dança Samwaad – Rua do encontro, da Companhia Ivaldo Bertazzo. Primeiro: o vídeo está disponível no YouTube, onde há vários comentários com reclamações de pessoas dizendo que tiveram que “ver esse vídeo chato pra ganhar nota porque a professora mandou”. Dsepois, já supondo que os alunos assistiram ao espetáculo, segue perguntas como “os bailarinos fazem um desenho com o corpo no espaço? Em quais momentos?”, “como as pessoas estão vestidas?”, “existem diferenças nos figurinos usados pelas meninas e pelos meninos?”. Essas perguntas já indicam o lugar aonde se quer chegar, já entregam logo de cara a idéia do desenho do corpo no espaço, não dão o tempo para a percepção de cada um, já querem logo diferenciar os figurinos de “meninos” e “meninas” sem antes se aventurar por onde andariam as diferenças sem gênero, sem generalizações. Talvez (e muito provavelmente, talvez...) sejam implicâncias fortuitas e pessoais de quem se dispôs e se propôs a apontar brechas num sistema fechado como esse. Mas ainda que seja implicância, essas perguntas feitas dessa forma incomodam. Incomodam porque já estão ali impressas e fixas, porque parecem querer ouvir que ”sim, os bailarinos fazem um desenho com o corpo” ou “sim, as meninas vestem saia e usam rosa, os meninos macacões”, porque destina um espaço menor que uma mão para que essas respostas sejam escritas e esquece que talvez alguém tenha uma letra grande ou que poderia querer dizer mais do que isso.

But, at the same time, there is a new possibility of looking in an open and curious way. The way teachers had to present art was also a discomfort, as the Art curriculum explored concepts in a non-timing organization, non-linear as well, provoking dialogues with its focus on concepts and no more through time and space, as artwork has been traditionally broadcasted in school.”

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IV. Veni et vidi “O todo sem a parte não é todo, A parte sem o todo não é parte, Mas se a parte o faz todo, sendo parte, Não se diga, que é parte, sendo todo.” (Gregório de Matos)

Nesse ponto cheguei àquela exceção com relação à segunda pessoa do plural da qual falei no início, em que tratarei das experiências que tive nas três escolas estaduais que escolhi para estagiar. Reconheço que, para me referir ao que vi e vivi, não saberia me disfarçar em outro pronome e fazer de conta que não estou aqui. Primeiro, devo confessar que, por questões de mobilidade e tempo (é, a vida e o transporte público não estão fáceis pra ninguém...), as três dentre as 5,3 mil escolas da rede pública estadual, nas quais pude acompanhar as aulas de arte por algum tempo, estão localizadas na zona sul da cidade de São Paulo, nas mediações do bairro Jabaquara, onde moro. Como já foi dito, essas três escolas representam uma amostra ínfima diante do todo numeroso, diverso e complexo que compõe a rede estadual. Portanto, sei que por mais diferenças tais escolas possuam com relação a aspectos qualitativos e entre outras coisas, elas estão inseridas num contexto muito parecido, não tão periférico, não tão carente ou violento quanto outros. Mas também sei que nivelar por baixo, comparado aspectos negativos com outros piores, não faz dessas escolas, escolas melhores. Obviamente não é possível tomar o todo pela parte, o que faz desse estudo e dos relatos que se seguirão, apenas um recorte. O recorte também diz respeito ao fato de que nos três casos acompanhei o processo das aulas durante um período relativamente curto, que não corresponde a todo o ano letivo. Ainda assim, mesmo sabendo ser pouco, acredito que o pouco é também alguma coisa e, embora, não me seja possível ver e falar sobre o todo, posso falar do que vejo. E o que vejo, se visto como parte de um todo, já não é tão pouco. Às escolas!

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Enquanto isso, no Moya...

De março a maio de 2011, freqüentei semanalmente as aulas de arte das quintas séries da Escola Estadual Salvador Moya. A quinta série porque foi a professora dessas turmas quem melhor me recebeu, enquanto as outras professoras de artes pareciam não simpatizar muito com a idéia de ter alguém assistindo e, querendo ou não, analisando suas aulas. O Moya porque, como já disse, é perto de casa. Não foi somente lá que senti certo constrangimento por sair “cheirando à leite” do mundinho acadêmico, da pequena bolha que é a universidade, e entrar na sala dos professores, ouvindo-os quase que unanimemente dizer coisas como: “Mas você é muito nova! Ainda dá tempo de desistir...”, “Tem certeza de que é isso que você quer pra sua vida?”, “Você pode trabalhar em museu também, não pode?”. Como resposta eu sorria e na maioria das vezes não sentia muita disposição para continuar a conversa. Eu já sabia onde ela iria chegar. Entendo os motivos e talvez as boas intenções ao tentarem me alertar. Mas convenhamos, não é nada acalentador ouvir esse tipo de conselho quando se pretende se iniciar numa profissão. Ou numa ilusão, que seja. O ambiente da escola não era tão diferente do que eu já estava habituada pelas escolas em que estudei e as que já pude conhecer, mas com algumas diferenças e pequenos ajustes e adaptações, como as portas das salas de aula, por exemplo, que, de uns tempos pra cá, está super na moda não terem nada que se assemelha a uma maçaneta. Ao invés disso, o professor possui uma espécie de trinco que lhe confere exclusividade ao ato de abrir e fechá-las, permanecendo trancado todo o tempo de duração das aulas com cerca de quarenta alunos, à maneira de um cárcere. É, cárcere mesmo. Ao menos foi assim que a professora V.53 me definiu aquilo e, de fato, a analogia fazia bastante sentido. Comecei a assistir essas aulas das quintas séries durante o que, teoricamente, seria o final do primeiro bimestre e o início do segundo e, portanto, também teoricamente e de acordo com a Proposta Curricular, início do segundo volume dos Cadernos do Professor e do Aluno. No entanto, essa troca do material didático só veio a acontecer no final do mês de maio, não somente na disciplina de artes mas também, como pude perceber, em todas as outras. Quando pedi a opinião da professora V. sobre os cadernos e a Proposta Curricular, não só de Artes, mas de um modo geral, ela me deu como ponto positivo o fato de que a

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Os nomes serão abreviados para preservar a profissionalidade.

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proposta serve como um norteador no caso de alunos que mudam de escola, pois antes, na ausência de uma proposta unificada, eles corriam o risco de ver matérias repetidas enquanto deixariam de ter outras. Achei curioso ser esse um argumento apresentado na própria Proposta Curricular e fiquei na dúvida se essa opinião dela seria uma constatação ou um convencimento. Os pontos negativos apresentados por ela eram a dificuldade que o professor de artes tem para desenvolver as atividades de todas as linguagens presentes no caderno, pois tem sua formação em apenas uma linguagem; e os textos dos Cadernos do Aluno, que são poucos e geralmente bem curtos, muitas das vezes apenas enunciados, mas muito difíceis para os alunos, sendo que, frequentemente, ela se via obrigada a “traduzir” o que estava escrito. Ela também se queixava da quantidade de conteúdo para o pouco tempo que dispunham em sala. Até porque, o tempo de duração das aulas era mesmo bem menos do que os 50 minutos destinados a elas. E o tempo dos alunos gerirem e digerirem tudo aquilo que lhes é oferecido é bem mais que um bimestre. O tempo da chamada, da disputa por atenção de todos os lados, o tempo de enfrentamento e insubordinação dos alunos, a luta constante que se trava entre eles e a professora, que tenta convencê-los a todo custo de que aquilo tudo será importante para eles “mais pra frente, quando forem procurar um emprego...”, mesmo sem saber se ela própria estava convencida disso ou se era mais uma tática pra vencer por alguns instantes a disputa, enquanto eles pareciam desconhecer qualquer razão que os faziam/faz estar ali todos os dias. Não foram poucas as vezes que vi a professora V. sair rouca e desalentada da sala. Ela me pedia desculpas por sua aparente descompostura e se justificava dizendo que não sabia muito mais o que fazer. A voz, mais do que um instrumento de trabalho, é uma arma. Não deve ter tido um dia em que estive lá que não me assustei quando soava o sinal para as trocas de aula ou pro intervalo. Todos aqueles seres trancafiados dentro de uma sala sob a guarda do professor detentor da chave para o mundo de fora, todos aqueles hormônios dos 11, 12, 13 anos contidos nos corpos presos às carteiras, todo aquele não sei quê canalizado e disperso, sabe-se lá pra quê. As portas se abriam e era como se abrisse as portas do purgatório, do umbral, ou seja lá que outro nome pode se dar a isso. Eram feras sendo provisoriamente libertas, era o ambiente mais terrivelmente ruidoso em que já estive, onde todo mundo gritava, mas ninguém dizia absolutamente nada. Ao menos nada inteligível. Enquanto andava pelos corredores, sob olhares curiosos, me esforçava imensamente para lembrar como era e como eu era quando estava ali, do lado de lá. E na minha lembrança não era tão assustador. Mas na minha 47


lembrança eu via com olhos dali e não de cá. Logo no final da minha estadia lá, a escola deu início aos cadernos do segundo bimestre. O tema para o segundo volume dos cadernos de Arte da 5ª série era O espaço no território das linguagens artísticas e na primeira página havia uma proposta prática, uma “Ação expressiva”, que indicava ao aluno um espaço destinado ao esboço do trabalho que seria anteriormente feito no espaço da sala de aula. Diante dessa proposta, a professora explicou aos alunos que nem tudo que estava no caderno era viável de ser feito e que muita coisa se perdia por questões de espaço, de material, porque eles (alunos) não colaboravam. E que por isso “a gente vai fingir que fez”. Primeiro achei admirável a postura dela em jogar limpo com os alunos, falando sobre a inviabilidade daquilo que era proposto pelo material didático. Mas... Por que não? Inviável por quê? Quais questões de espaço? Aliás, não era mesmo o espaço o tema proposto? Discutir a ausência dele já não seria uma forma mais próxima de abordá-lo? Por que isso está no livro, mas não tem material para ser realizado? E, principalmente, pra quê e por quê fingir uma coisa que não está acontecendo? Fingir pra quem? Daí já começa aquela lógica ilógica de fingir que faz, o aluno finge que aprende, em instâncias mais altas fingimos que vai tudo bem, obrigado. Também chamou-me muito a atenção o posicionamento da professora com relação à importância do estudo e de freqüentar a escola. Principalmente porque o discurso dela coincidia em muitos pontos com aquela lógica competitiva do capital que destaquei no início. Recordo-me de um dia em especial em que ela chamava a atenção de um garoto por sua caligrafia sofrível, dizia ela que “mais pra frente, se você for fazer um teste para ser mecânico ou coisa assim, você pode ficar para trás se ninguém entender sua letra...”. A primeira coisa que destaco aqui é o ficar para trás. Você ficará pra trás porque alguém passará na sua frente, alguém passará na sua frente porque tem a letra melhor do que a sua, logo, você precisa melhorar sua letra para ser a pessoa que passa na frente e, consequentemente, deixar alguém para trás. Sei que esses silogismos acabam por ser redundantes, mas recorro a eles para tentar desdobrar o que está sendo dito na frase da professora. Lembrando que a Proposta Curricular propõe igualdade de oportunidade a todos através da unificação de competências, volto a perguntar quem está incluso nesse todos. Ao supor determinado tipo de trabalho ao aluno, o de mecânico, a professora também está contribuindo com essa diferenciação entre o todos a quem são oferecidas as mesmas oportunidades. Não é pra desmerecer o trabalho de um mecânico ou estabelecer uma escala hierárquica de importância entre as ocupações profissionais. A questão é reconhecer que 48


fazemos parte de um sistema que, de uma forma geral, valoriza muito mais o esforço intelectual, já há muito tempo apartado do corpo, enquanto o trabalho ‘manual’ tem seu valor diminuído. Isso, sem esquecer-se de levar em conta que a palavra valor aqui está diretamente ligada ao valor econômico. Portanto, ao designar a função de mecânico como uma possível para o aluno de caligrafia sofrível (ou, para ser mais severa: o máximo onde ele conseguirá chegar se for capaz de melhorá-la), ela está implicitamente reforçando essa divisão de valores atribuídos ao intelectual, ao “bacharelismo ilustrado”, que não diz respeito a indivíduos que mal sabem escrever, e às demais ocupações, essas sim oferecidas à grande massa de todos da escola pública, quiçá com pequenas exceções. Não há aqui nenhuma novidade: para o menino da letra ilegível os códigos dominantes continuarão sendo ininteligíveis e aqueles aptos a lê-los passarão correndo a sua frente, manterão tais códigos, produzirão outros e assim ad infinitum. Mais adiante, para explicar o tridimensional, a professora falava dos pontos de vista, sobre como as coisas podem ser diferentes dependendo de onde a gente vê e, pra isso, deu o seguinte exemplo: “uma pessoa observa uma briga. Havia uma árvore na frente dela que a fez pensar que um tinha dado a primeira bofetada quando na verdade tinha sido o outro.” Disso, concluiu que “a verdade é uma só (...). Com o tempo a arte vai fazer vocês começarem a ver as coisas como elas são na realidade.” Ouvindo isso, me revirei na cadeira e pensei, sei lá, no Paulo Freire, no Pequeno Príncipe, na minha avó, no sol das quatro que batia na janela e minha vontade de dizer “Gente, a verdade verdadeira é que não é bem assim.”, já sentindo o tom impositivo da multiplicidade contemporânea que certamente não fez parte da formação daquela professora, mas que impregna a minha e me traz o Pirandello que acabo de ler, dizendo que [...] Houvesse fora de nós, externa a vocês e a mim, uma senhora realidade minha e uma senhora realidade sua, digo, em si mesma, igual e imutável! Mas não há. Há em mim e para mim uma realidade minha, aquela que eu me dou; e uma realidade sua e de vocês, para vocês, aquela que vocês se dão – as quais nunca serão as mesmas, nem para vocês nem para mim. E agora? Agora, meus amigos, é preciso nos consolarmos com isto: que a minha realidade não é mais verdadeira que a sua, e que tanto a minha quanto 54 a sua duram só um momento.

Busco na literatura de Pirandello e toda gente para tentar me confortar e confrontar com a minha realidade, aquela na qual me formo e construo, mas que é uma em um milhão... Para de novo perguntar afirmando... são muitas as verdades, não são? 54

PIRANDELLO, L., Um, nenhum, cem mil. São Paulo: Cosac & Naif, 2010, p. 55-6.

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A tridimensionalidade e suas dimensões

O tema dos cadernos de arte do primeiro bimestre para as quintas séries é A tridimensionalidade nas linguagens artísticas, que tem como meta a “diferenciação entre o espaço bi e tridimensional, espaço e volume e suas conexões com as formas do espaço teatral, o corpo em movimento e o som no espaço55”. O material inicia com algumas questões propostas para conversa em sala de aula a partir da apreciação de imagens referentes às quatro linguagens artísticas em relação ao tridimensional. Em seguida, os alunos deveriam registrar em seus cadernos O que ficou da conversa proposta a partir dessas imagens. Não cheguei a tempo de ver como a conversa aconteceu, mas pude perceber o que ficou dela. Todos anotaram em seus cadernos uma resposta coletiva escrita na lousa pela professora, que de forma bem genérica dizia: “falamos sobre a tridimensionalidade no teatro, na escultura e também na fotografia”. Alguns alunos escreveram suas repostas e, embora definissem o tridimensional como “altura, largura e profundidade”, sentia que poucos tinham realmente compreendido o que significava isso. Ainda mais por detalhes aparentemente pequenos, mas que se repetiam com freqüência, como escrever tridimenCional mesmo quando copiavam da lousa ou do próprio caderno. Pude digitalizar os cadernos com as respostas de alguns alunos e escolhi entre eles algumas para colocar aqui como exemplo. Observei como a escrita é, na maioria dos casos, uma dificuldade. A professora V. via aqui um ponto positivo nos cadernos, que é justamente o incentivo à prática constante da escrita, a prioridade para competência da leitura e da escrita. Reconheço também esse ponto, mas, ao mesmo tempo, tenho dúvidas sobre o que eles estão escrevendo, se está fazendo sentido, se estão de fato dizendo alguma coisa ou simplesmente copiando as letras, caçando frases ditas pelo professor que depois ‘vista’ sua colagem dadaísta de palavras sem procurar a compreensão, sua e do aluno, sobre o que foi escrito. A partir das respostas escritas pelos alunos é possível imaginar alguns lugares por onde essa conversa sobre tridimensionalidade passou. A resposta dada pela aluna Steffany [figura 6] parece um caso daqueles de colagens dadaístas ao mesmo tempo em que dá pra perceber que ela teve que, em algum momento, estar ali para responder. Dá para imaginar o porquê do “congelado” e onde ela estava indo com a idéia de “imagem 55

SÃO PAULO (Estado). Secretaria da Educação. Proposta Curricular do Estado de São Paulo: Arte / Coord. Inês Maria Fini. São Paulo: SEE, 2008, p. 53.

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verdadeira”, mas sem ter participado da conversa não é possível ter certeza se ela organizou palavras usadas pela professora e atribuiu a elas seu significado particular ou se realmente tentou articular a compreensão que teve do tridimensional com sua pouca intimidade com a escrita. Da mesma forma que o aluno Jonathan [figura 7], que elaborou uma resposta clara e objetiva, pode também não ter entendido de fato o que escreveu.

Figura 6. Steffany, 5ª série Caderno do aluno, p. 8

Figura 7. Jonathan, 5ª série Caderno do Aluno, p. 8.

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Figura 8. Stefhanie, 5ª série, Caderno do Aluno, p. 8

Digo isso porque a ultima atividade do tema tridimensionalidade era um caçapalavras e um liga pontos (ligar conceitos às palavras “tridimensional” e “bidimensional”), que a professora pediu que fosse feita e entregue. Alguns me pediram ajuda e percebi logo que o que eles chamavam de ajuda era, na verdade, as respostas. Como meu bom senso e minha formação sempre me advertem, me neguei a dar as respostas e tentei explicar a diferença entre bi e tridimensional, usando exemplos concretos como uma folha de papel e a carteira. Quando pensava que estava tudo bem, eles diziam "então escultura é bi, né?"... E a cada esforço que fazia me sentia mais derrotada por notar duas coisas: a minha ingênua pretensão de fazê-los entender o que trabalharam o bimestre inteiro sem saber o que era, e o interesse deles mais em entregar a resposta correta do que em entendê-la. Não sei precisar se eram as mesmas crianças das respostas supracitadas, mas aqui me permito generalizar um pouco mais já que não vi comportamentos radicalmente diferentes desses ou respostas e escritas que me fizessem crer na eficácia da sua prática constante dessa forma. Escrever, escrever por escrever, copiar o desenho das letras e o sentido delas. De que adianta se, ao final, ainda havia a dúvida preliminar? Como pode ter sido o aproveitamento dentro do que era proposto se terminaram o bimestre ainda sem conseguir diferenciar o bi e o tridimensional? Vale trazer uma citação de Sandra Benedetti, que usa da noção deleuziana de que para haver aprendizado é necessário haver um encontro com aquilo que força a pensar, 52


para afirmar que [...] não se aprende na reprodução. Na reprodução, o que se aprende é reproduzir, seguir o modelo. Não se aprende quando já se sabe, previamente, o que deverá ser ensinado, no caso do professor, e o que deve ser aprendido (no caso do professore e aluno). Assim é que se mata a experiência, em seu sentido mais rigoroso. Não se 56 experimenta, se reproduz.

O visto da professora naquelas páginas é como um atestado para o que foi escrito sem ter sido questionado ou discutido depois. Por que congelado? Qual imagem é verdadeira? ... Ainda assim, volto à questão do tempo e da dinâmica na sala de aula para aliviar um pouco a barra do professor: como seria possível dar atenção às respostas de 35, 40 alunos, fazer chamada, cuidar para que eles não se matem nem destruam (mais) o espaço físico e tantas outras coisas? Muitas vezes a saída é mesmo deixar que as esculturas sejam flores e carros... [figura 8] Um caso, que “seria cômico se não fosse trágico”, aconteceu em uma das salas na qual, por indisciplina da turma, a professora resolveu passar um texto na lousa, justificando-se pra mim dizendo que tem sempre que ter essas “cartas na manga” guardadas. O texto era uma minibiografia do artista plástico Franz Weissman, que está no caderno dos professores. Ela “sabia” que os alunos não tinham condições de compreender “concretismo”, “construtivismo”, “Grupo Frente”. Ainda assim, tentou esclarecer um pouco perguntando a eles o que vinha a cabeça quando ouviam a palavra “concretismo”. Alguns falaram em concreto, parede, muro, ao que ela respondeu que era isso, algo “concreto mesmo” e pronto. Tomo de empréstimo uma frase que certa vez ouvi o Profº José Pacheco, um dos fundadores da Escola da Ponte, dizer: será que eles que tem dificuldade de aprendizagem ou seremos nós que temos dificuldade de “ensinagem”? Não acho que eles sejam incapazes de entender qualquer coisa, mas também não sei porque precisam entender o Concretismo ou tanta “concretude” assim caída de pára-quedas sobre a cabeça, enquanto o mais concreto da vida deles passa desatento. Entre as atividades dos cadernos, a professora intercalava algumas outras propostas que não estavam necessariamente ligadas àquelas, como o desenho das iniciais do próprio nome na primeira folha do caderno e um jogo de tabuleiro sobre a dengue (você esqueceu de tirar a água dos pneus: volte três casas!), na altura da semana de combate à dengue. Numa outra ocasião, foi proposto fazer o desenho de uma mala, imaginando-a e fazendo com ela uma composição, colocando-a na cena/lugar/cenário 56

BENEDETTI, S. C. G., op. cit., p.105.

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que quisessem. Depois, deveriam fazer, na ultima folha do caderno, um rascunho de um texto sobre a mala, que deveria ser escrito à caneta sobre o desenho. Para exemplificar, a professora citou a ilustração e a publicidade, como imagens que se relacionam com texto. Acho natural que, nessa hora, netos de Ana Mae como eu, sintam falta de imagens e leituras e outras coisas a mais que poderiam enriquecer a proposta. Não entendi o porquê da mala entre Franz Weissman e concretismos e acho que teria sido ótimo conversar sobre a publicidade com eles. Ainda mais que, entre os breves textos que eles escreveram, muitos contavam histórias de viagem para a Disney. Quando indaguei alguns com por que Disney? Não sabiam responder além de “deve ser legal” ou “tenho vontade de ir pra lá”. Aliás, a própria Proposta Curricular, quando fala na prioridade para competência da leitura e escrita, não se restringe ao código verbal, mas refere-se também a todos esses códigos e linguagens presentes na nossa sociedade, como a publicidade e o design. Por mais que tenha se passado mais de um bimestre trabalhando o primeiro volume dos cadernos, as atividades se concentraram na Situação de Aprendizagem 1 – Artes Visuais, que é a formação da professora V. Tal situação de aprendizagem tinha como base a obra Grande Flor Tropical, de Franz Weissman. Num primeiro momento era proposto que se estudasse a passagem do bi para o tridimensional usando uma folha de papel e em seguida, que fizesse o caminho inverso, desenhando a escultura construída com a folha. Com exceção de uma das salas, todas fizeram, ao invés disso, um desenho da foto da escultura de Franz Weissman. A questão não é, obviamente, ter fugido da proposta dada pelo caderno, mas fugir para um caminho redundante, que é passar o bi para o bi e permanecer ali.

Figura 9. Jonas, 5ª série. Caderno do aluno, p. 9.

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Figura 10. Maria Clara, 5ª série, Caderno do aluno, p. 9.

Figura 12. Beatriz, 5ª série, Caderno do aluno, p.

Figura 4. Steffany, 5ª série, Caderno do aluno, p. 9.

Figura 13. Jonathan, 5ª série, Caderno do aluno, p. 9

Pelos desenhos, dá para ter uma idéia de como os alunos estava percebendo da bi e da tridimensinalidade. A professora indicava a todos eles que pintassem o chão e o céu, como estava na foto, “porque a escultura não pode estar assim boiando no meio da folha”. O desenho do menino Jonas [figura 9] parece indicar uma visão totalmente bidimensional, inclusive pelo emprego das cores do céu e do chão, recomendadas pela professora. E é um desenho muito legal, mas, como todos os outros, mereceu breves comentários sobre a composição, o uso da folhas, o preenchimento do fundo. Ninguém parou para olhar o do coleguinha, ninguém teve muitas dúvidas ou conversou sobre elas.

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Figura 5. Franz Weissaman. Grande flor tropical, 1989. Escultura. Chapa de aço SAC-50 e tinta poliuterânica, 7,0 x 6,8 x 6,5 m. Praça Cívica, Memorial da América Latina, SP. (Caderno do Aluno, 5ª série, p. 14)

Figura 6. idem, ibdem. (Caderno do Aluno, 5ª série, p. 15)

Tento imaginar quão abstrata pode ser uma escultura já abstrata de Franz Weissman para aquelas crianças. Parece óbvio a relação que as duas fotos apresentadas no Caderno do Aluno [figuras 14 e 15] tem entre si: são ângulos diferentes de uma mesma coisa. A coisa é A Grande Flor Tropical. Parece óbvio. Mas óbvio pra quem? Pra mim, que já a conheço? Onde está a flor? As coisas podem não ter uma forma reconhecível? Como duas coisas tão diferentes podem ser a mesma? E a verdade, que é uma só, como fica? Como assim? 56


Pode ser que agora eu esteja subestimando a capacidade de aprendizagem dos alunos, talvez esteja... Mas o que tento é me colocar no lugar de quem pode nunca antes ter visto uma escultura abstrata.. Lembro sempre de uma frase da Clarice Lispector que cito de cabeça sem a certeza de que era assim mesmo, mas que para mim faz sentido que seja: só reconhece um ovo quem já viu um ovo antes. E por isso não consigo olhar pra essas fotos como se não as conhecesse. Mas e pras crianças da 5ª série que não a conheciam e que talvez nem soubessem que existe arte abstrata? Como essas duas imagens possibilitam o acesso à obra e ao entendimento do conceito de tridimensionalidade proposto? Sentia que faltava convicção da parte deles para acreditar que aquilo era uma coisa só. Apegavam-se a elementos mais passíveis de reconhecimento, como a paisagem ao fundo. Mas a paisagem ao fundo não é a mesma. O céu é mais azul em uma do que na outra, o chão daquela é maior do que nessa... Não, não fazia sentido. E precisava fazer? Não vou entrar agora no mérito da questão de porque chegar a esses conceitos, pois sei que me perderia... Mas então por que chegar a esses conceitos através de Franz Weissman? E se, pra começar, ao invés de Franz Weissman aproveitássemos o mundo Disney (afinal, não era para lá que eles queriam ir?), os games, o cinema 3D e todas essas coisas que preenchem a vida deles de tridimensionalidade? Qual a diferença entre um boneco do Ben 10 e o desenho do Ben 10? Ou da Figura 7. boneco Ben 10.

Hello Kitty, do Pokemón, da Barbie? Qual a diferença entre Ben 10 e Franz Weissman? [figura 16]

A contradição aparece no próprio texto do Caderno do Professor com relação à prática proposta pelo mesmo caderno: Não há como negar que crianças e jovens dos tempos atuais convivem cada vem mais com imagens que tendem a perder a bidimensionalidade em proveito da tridimensionalidade, potencializado novas modalidades perceptivas, novos hábitos de percepção. Por outro lado, no contexto escolar, é o inverso que acontece; a bidimensionalidade domina a cena em sala de aula, com a presença marcante de 57 obras de suporte bidimensional e o uso constante da folha de papel sulfite.

Pois se já se reconhece essa tendência a tridimensionalizar a vida, por que não 57

Caderno do Professor – 5ª série, volume 1, SEE-SP, 2009, p. 10.

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partir do que já há de tridimensional nela? No Caderno do Professor são sintetizadas as competências e habilidades possíveis no estudo do conceito proposto para o bimestre. E uma delas, bastante curiosa, diz o seguinte: “distinguir a linguagem tridimensional produzida pelo gesto artístico das ofertas que são difundidas pela cultura cotidiana58”. Não estou certa de ter entendido bem esse enunciado, mas a interpretação que faço dele (que é, pois, uma das possíveis) talvez seja uma porta de entrada para tentativa de responder a pergunta feita logo acima: Qual a diferença entre Ben 10 e Franz Weissman? Desenvolver a competência de distinguir a linguagem tridimensional produzida por Franz Weissman (o gesto artístico) das ofertas difundidas pelo Ben 10 (cultura cotidiana) sem, no entanto, falar sobre o Ben 10. Proporcionar a distinção, colocar cada coisa em seu devido lugar, sobrepujando umas a outras. Seria isso? Não estou ignorando que são, sim, coisas distintas, produzidas, muitas vezes, com finalidades diferentes e de formas diferentes. O que quero chamar atenção é para o lugar que essas coisas e a distinção feita entre elas ocupam. É isso que é o currículo. Uma escolha, várias escolhas, feitas por alguém que tem o poder de escolher. Ao professor, enfatiza-se a distinção enquanto ele, que talvez acredite haver uma só verdade, vê sua autonomia tolhida e sua prática permeada por caminhos já traçados em territórios muito bem definidos. Ao aluno, Franz Weissman. Tenho receio de que seja implicância exagerada, a minha. Tudo bem, Franz Weissman. Franz Weissman é legal e não estou defendendo que pessoas sejam privadas de conhecê-lo por “não fazer sentido” logo de cara. O problema não é ser isso. É ser só isso. Não? Sob a égide do uno, a ‘Cultura’ só poderia sair do singular para tornar-se duas, numa relação assimétrica: a boa cultura e a falta dela. Sendo única, nobre e universal, só poderia ter se tornado modelo a ser almejado por todas as sociedade. Daí os termos que atravessaram o tempo – alta cultura e baixa cultura – até quase a segunda metade do século XX. Não que tenham sido varridos dos discursos mais atuais. Apenas comparecem com outras roupagens. O sentido proveniente dessa binarização permanece o mesmo, alimentado pelo e alimentando o pensamento pedagógico

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No caderno do aluno, a Situação de Aprendizagem de Artes Visuais prossegue com 58 59

Idem, Ibdem, p. 11. BENEDETTI, S. C. G., op. cit., p110.

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duas folhas em branco para dar continuidade a “investigação” com uma “encomenda” do professor. A professora V. orientou que fizessem um desenho de uma escultura numa praça.

Figura 8. Everton, 5ª Série, Caderno do Aluno, p. 10.

Figura 9. Beatriz, 5ª Série, Caderno do Aluno, p. 10.

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Figura 18. Stefhanie, 5ª Série, Caderno do Aluno, p. 10.

Para não ser muito repetitiva vou dizer apenas que, mesmo A Grande Flor Tropical estando ali, no chão, as esculturas feitas pelas crianças possuem um pedestal. E tem um quê romantizado, corações e chafarizes, que talvez seja normal da idade, talvez seja normal da “disneyzação” da vida. E de onde vem tudo isso? Quando um menino fez em seu caderno o desenho de um garoto matando um pássaro com uma arma, foi duramente recriminado pela professora, tendo que apagar e refazer. Mas que lugar cada uma dessas coisas ocupam na vida dessas crianças e que lugar ocupam na escola? Por fim, a Situação de Aprendizagem de Artes Visuais encerrava com a questão “O que faz um plano bidimensional virar tridimensional?”, sobre a qual a aluna Dayane, uma das poucas a responder, escreveu:

Figura 19. Dayane, 5ª Série, Caderno do Alnuo, p. 16.

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A pergunta “O que faz um plano bidimensional virar tridimensional?” é praticamente uma pergunta retórica. Mas Dayane consegue subverter a retórica, não responde o que já se espera dela. E o que aconteceu entre todas as mediações que existiram, desde a concepção de currículo e do próprio currículo até Dayane, para que a fotografia se tornasse capaz de fazer “a bi virar tri”, enquanto o objetivo era apenas acrescentar uma dimensão mais profunda, a profundidade? Está certo que é uma resposta (im)possível, entre outras milhares distribuídas por toda a rede estadual, para uma pergunta retórica que já contava antecipadamente com uma resposta e que, por isso mesmo, sinalizava o objetivo e os resultados claramente pretendidos. Por alguma razão, Dayane não alcançou esses objetivos. Dayane é uma. Mas faz parte do todo. E o todo sem a parte não é todo. Enquanto isso fica novamente o eco sem resposta: Você aprendeu?

Enquanto isso, no Gebe...

Nos meses de maio e junho de 2011, freqüentei as terças à noite, na Escola Estadual Ângelo Mendes, popularmente conhecida como Gebe, Gebão para os íntimos, as aulas da professora F. As aulas eram distribuídas entre uma turma de 1º e uma de 2º ano do Ensino Médio e duas turmas de EJA (Educação de Jovens e Adultos). Se o ambiente do Moya me parecia assustador e opressor pelos trincos nas portas, pelo aprisionamento, pelo barulho, aqui o cenário era completamente outro. Sempre soube da fama do Gebe: de fim de semana a galera se reúne lá para assistir a final do campeonato, faz churrasco, joga bola na quadra. Mas isso não significa exatamente dizer que as portas estão sempre abertas e que todo mundo é bem vindo, o acesso é os muros dos fundos e a turma, a da bocada mesmo (boca de fumo, quero dizer). O clima é tenso e, no período noturno, cada um faz sua lei. As salas estão sempre abertas, as janelas quebradas, quase não há carteiras e cadeiras, algumas vezes nem o professor tem onde sentar e precisa buscar na sala ao lado uma cadeira emprestada. Com exceção das turmas da EJA, que suponho estarem lá por opção, as salas são geralmente vazias e pelos corredores alguns jovens jogam dominó e fumam cigarro ou maconha. Os ânimos na sala dos professores não poderiam ser piores. Hora de ir para sala era como se arrastar à linha de frente do combate, na certeza de que não voltará com vida. Porém, dificilmente há atritos. Cada um deve respeitar o espaço do outro e existe até certa harmonia silenciosa. Professor não encrenca com aluno, aluno deixa o professor 61


fingir que está ensinando alguma coisa pra meia dúzia de gato pingado e pronto. Devagar e sempre. Apesar de ter sido um período de aproximadamente dois meses, foram poucas terças-feiras em que estive lá assistindo aulas, pois qualquer chuva já era motivo para não aparecer ninguém na escola. Portanto tenho poucos registros e, por alguns conflitos com a professora que queria se aproveitar do meu interesse pelos cadernos para me fazer corrigi-los, também não consegui digitalizar cadernos de alunos, como fiz com as 5ªs séries.

EJA - Pontos de fuga pra não sei onde

Todas as aulas que vi a professora F. dar às duas turmas de EJA foram sobre perspectiva. Curiosamente, o tema do primeiro volume do caderno do 1° termo (equivalente ao 1º ano do Ensino Médio) da EJA era tridimensionalidade, norteado pela pergunta “O que faz um plano bidimensional virar tridimensional?”. Antes de entrarmos em sala, a professora me mostrou vários livros bem antigos que ela usava muito mais como referência do que os Cadernos do Professor. Na primeira aula ela passou na lousa o texto seguinte exatamente como está transcrito, resumido de alguns dos livros:

Perspectiva É a arte de representar uma superfície plana os objetos, conforme eles se apresentam aos nossos olhos e na sua forma real. Perspectiva é, portanto, a arte que nos ensina a representar um objeto visto de um ponto de determinado do espaço: o ponto de vista.

A explicação foi tão abstrata e desconexa quanto era o texto. Depois, seguiram-se uma série de exercícios de cubos com um, dois pontos de fuga vistos de cima e de baixo. Lembrei que aprendi isso com a professora Betinha e fiz todos aqueles desenhos que eles faziam. Juro que foi só nessa hora que percebi uma coisa simples, mas com uma carga de significado muito grande para mim: o ponto de vista. Traçando a perspectiva para cima da linha do horizonte e mudando a posição do caderno, ela estará para baixo. As mesmas linhas, o mesmo desenho, dois pontos de vista virando o caderno. Os alunos da EJA, muitos já bem mais velhos do que eu, faziam tudo com muito esmero. Não sei se eles sabiam o que era aquilo que faziam, já que professora apenas leu a definição e desenhou na lousa os pontos de fuga. Podia ser só linhas, podia ser um 62


monte de formas, podia ser nada. E se soubessem o que era, qual a utilidade teria, daquela forma, na vida deles? Jefferson, vendedor de roupa no Brás, me perguntou “qual o significado disso?” e então passei um bom tempo tentando explicar e também tentando entender qual o significado tinha... Quando a professora F. me pediu para ficar sozinha com a sala ajudando quem tivesse dificuldades, me senti novamente rendida: assim como as crianças da quinta série, eles queriam que eu resolvesse para eles, que eu pegasse a régua e o lápis e desenhasse. E eu me neguei, enquanto eles contra argumentavam dizendo que a F. fazia, qual era o problema eu fazer também? O problema é que eu não sou a F. E não consigo entender como as coisas podem chegar a esse nível de acomodação de todos os lados... Na verdade entendo como, não entendo porque. E aquele meu pequeno esforço para que eles aprendessem por si mesmo, que duraria um breve instante de ausência da professora, faria diferença? E faria diferença saber fazer por si mesmo um cubo e uma esquina com dois pontos de fuga, pra quê?

Ensino Médio

Para falar a verdade, o que tenho a dizer é principalmente sobre o 1º ano do Ensino Médio, já que a aula do 2º ano era a última e, por isso, durava apenas 15 minutos e depois todos iam embora, às vezes com um visto no caderno, às vezes com alguma pesquisa para a próxima semana. Trabalharam o dia inteiro, né, estão cansados... A professora F. pedia muitas pesquisas para serem entregues a longos, porém flexíveis, prazos, aquela velha história de “amanha é o último dia”. O tema das pesquisas era tirado dos cadernos de arte, como as danças e festas populares e o circo, presentes no primeiro volume dos cadernos do 1° ano, e deveri am ser entregues escritos à mão, pois para ela “o importante é que eles escrevam, mesmo que esteja errado” e assim também se certificava de que eles não estariam copiando tudo da internet e garantia que “pelo menos assim eles estão lendo alguma coisa”. Esse pelo menos, mesmo que que me intrigam. Eu sei, alguma coisa é melhor que nada. Sei que é importante que leiam e escrevam, mas novamente, a meu ver não é isso que eles estão fazendo. Será que a divergência está no entendimento do que é saber ler e escrever? Seria possível e como poderia ser tentar pelo mais? O tema proposto para o volume 1 do 1º ano do Ensino Médio é Patrimônio Cultural e a cidade, que dentro do mapa dos territórios da arte prioriza os conceitos de processo 63


de criação, o patrimônio cultural e mediação cultural. Em uma aula a vi conduzir uma atividade de Apreciação com duas imagens do espetáculo Stapafúrdyo do Circo Roda Brasil, relativas á Situação de Aprendizagem de Teatro. As questões referentes às imagens eram: O que chama a atenção nas imagens? A legenda diz “Circo Roda Brasil”. O que esse nome lhe sugere? Para você, são imagens de um circo tradicional ou contemporâneo? Qual seria a diferença?, e cada um deveria responder individualmente em seu caderno. A maioria das respostas eram repetições dos enunciados: chamou a atenção / contemporâneo / tradicional / roupas de circo. Quando Skarleth perguntou à professora qual a diferença entre tradicional e contemporâneo, F. respondeu para toda a sala, explicando as perguntas uma a uma: “o que se pode pensar com o nome do grupo Roda Brasil? Que eles saem pelo país todo, ficam num lugar só... ?”... A maioria dos alunos nunca tinha ido a um circo e ela então pediu que pensassem em como era ou seria um circo e eles descreveram um circo “tradicional” (lona, palhaço, leão...) “isso é um...?“ e Carolina responde: “circo!’. Estava certa, era um circo. Mas o que a professora queria ouvir é que era um circo tradicional. E o circo contemporâneo, o que era então? Deu exemplo dos doutores da alegria, os homens sombras que imitam pessoas na rua.... “contemporâneo é quando tem contato com o publico, que vai pra rua, que vai para lugares diferentes”. Não sempre, não necessariamente. Vejo pelo menos dois lados: as perguntas, tanto as do caderno quanto as da professora (que, segundo a Proposta Curricular, deveriam ampliar e instigar as primeiras), fechadas e a espera de uma resposta específica, e as respostas dos alunos que, mesmo com tudo de bandeja, passam longe de onde se espera que cheguem. Em outra ocasião, deveriam comparar fotos de dois palhaços diferentes e caracterizá-los, dizer o que a maquiagem realça, o porquê do nariz, e mesmo assim eles escreviam várias coisas e pouquíssimas vezes respondiam a questão. È impressionante e assustador como, numa média de 15, 16 anos, os alunos escrevem muito mal, tem dificuldade para articular as idéias, não ultrapassam a barreira entre o “saber escrever’ e o “escrever” mesmo estando, muitos deles, há três anos em contato com essa Proposta Curricular que prioriza a competência da leitura e da escrita. Um dia, conversando com algumas alunas, uma delas me disse que “esses livros (os Cadernos) são muito difíceis porque não tem texto, só perguntas. Aí não dá pra responder. Se tem texto eu leio umas vinte vezes e aí entendo.” Entender livros com texto, quando eu estava no colégio, era achar a resposta cuja pergunta estava na sua ordem inversa e copiar o parágrafo inteiro. E estamos entendidos. 64


Enquanto isso, no Villalva...

De setembro a novembro de 2010 fiz meu primeiro estágio de observação de ensino formal e, para isso, escolhi a Escola Estadual Dr. Carlos Augusto Villalva de Freitas Jr., ou apenas Villalva, onde estudei o Ensino Médio, com a professora de artes que outrora me deu aula. Aquela escola antes era mais leve, quando era amarela e não cinza, quando do portão ainda se podia ver a rua e quando ainda não tinha aderido à moda aos trincos nas portas das salas. Ainda assim, ela é, de longe, a mais aprazível das três. Mas não sei discernir se é por ter árvores, se é por conhecer os professores e funcionários, se é pela relação afetiva que minha memória tem daquele ambiente. Não faz muito tempo era eu ali, sentada naquela carteira, olhando a professora daquele ângulo. Era eu quem torcia o nariz quando ela vinha com alguma proposta milaborante? Era eu quem escrevia poeminhas e desenhava corações na mesa? Aquela menina no canto, que arrumava e em seguida desarrumava suas coisas para tornar a arrumar, pra ver se o tempo corria, se o sinal tocava, se algo surpreendente acontecia, era eu? Reencontrei duas das melhores professoras que tive nos tempos de escola: a professora Vera, de biologia, e a professora Arlete, de química, que até hoje sabe minha ficha completa, incluindo o ano e a turma em que me formei. Vera me contou sobre sua dificuldade em se adaptar a Proposta Curricular, pois acha que muitos conteúdos importantes acabam sendo tratados de maneira superficial e rápida, e que a ordem das matérias muitas vezes não é coerente, e me falava também sobre e desvalorização do professor da rede estadual; a professora Arlete também se incomodava por ter que ajustar o tempo da sua aula a outro formato, mas encarava isso de uma maneira um pouco mais natural e já aceite. Já a professora de artes, S., não se sentia de fato podada pelos cadernos, embora concordasse que havia muito conteúdo para pouco tempo e embora ela acrescentasse, a esses conteúdos, muitos outros. Ela sabia que os devia seguir, pois todo o conteúdo curricular colocado ali seria cobrado de alguma forma no Provão, no Enem e outras instâncias desse gênero, porém aproveitava os temas e propostas e adaptava-os a seu modo. É bem verdade que essas professoras já tinham esquemas de aulas que eu sabia ser o mesmo há algum tempo. Por isso, não sei dizer até que ponto há certa inflexibilidade da parte do professor para sair de sua zona de conforto e tentar uma nova maneira de fazer o que sempre fez e até onde sua autonomia e manejo das aulas estão 65


sendo entendidas por eles como restrição dentro da Proposta Curricular.

Vem dançar...

A professora S. faz muitas coisas ao mesmo tempo, é muito ativa e dedicada. Ela segue os cadernos bem mais que as anteriores e não vê problemas em abordar as outras linguagens, mesmo sendo formada em Artes Plásticas, pois vê tais propostas como experimentações. Paralelamente, sugere outros projetos e propostas e referencias e técnicas e idéias. Vendo tudo acontecer de fora, as propostas me parecem um pouco desconexas, mas talvez isso não seja exatamente um problema. Os alunos do 2º ano do Ensino Médio, por exemplo, fizeram uma atividade sobre jingles e desenvolveram jingles para produtos “invendáveis”, em seguida viram um pouco de animação, fizeram um flip book, assistiram a um vídeo sobre os artistas Carlos Farjado e o Nuno Ramos para preparar a visita para a 29ª Bienal de Arte de São Paulo, fizeram um exercício de poesia concreta, experimentaram monotipia, viram dança e curadoria, improvisação e fotografia. Algumas aulas foram dedicadas para assistir ao filme Vem dançar, dirigido por Liz Friedlander, que conta a historia de um professor de dança de salão que vai dar aula para alunos de uma rede de ensino falida e se confronta com o hip hop e a resistência dos alunos. O filme estava entre alguns outros numa lista de filmes sobre dança, que fazia parte da Situação de Aprendizagem de dança. Entendi que esse material audiovisual e outros complementares deveriam ser fornecidos junto com os cadernos e todo material da Proposta Curricular. No entanto, nem todas as escolas tiveram acesso a eles, como foi o caso do Villalva, onde a professora S.comprou o DVD do filme que queria exibir aos alunos. O filme propiciava uma discussão interessante sobre a “alta cultura” e a “baixa cultura” mas, entretanto, a conversa que se seguia orientada pelos cadernos do aluno e professor indicavam um caminho para a organização e curadoria de uma mostra de dança. Depois de tê-lo assistido, no entanto, as turmas do 2° ano da professora S. emendaram logo com alguma outra atividade que, se não me engano, era a monotipia e não me lembro de ter havido algum desdobramento com relação ao filme, à dança, ao hip hop, nem mesmo à curadoria e à mostra de dança ou qualquer outra coisa do tipo. O trabalho com fotografia consistia em registrar com a câmera três aspectos/ lugares/elementos bons e três ruins da cidade de São Paulo. As fotos deveriam ser impressas e fariam parte de uma exposição que estava sendo organizada em parceria 66


com as professoras de matemática e a de história e, por isso, era chamado de interdisciplinar. A queixa maior dos alunos era a de que tudo isso saia muito caro a eles, diziam “ela pensa que a gente é fábrica de papel caro”. Quando soube que o tema da exposição, que contaria também com algumas intervenções teatrais e musicais, era a cidade de São Paulo, tive um pouco de medo. Lembrei que estudei com a S. no ano de aniversario dos 450 anos de São Paulo e, na altura, tudo o que fazíamos e falávamos, estava relacionado a isso. Pensei ter parado no tempo, ou que São Paulo tinha adquirido uma nova data festiva no segundo semestre ou que é sempre uma boa oportunidade para falar da nossa cidade ou que era uma simples coincidência. E não consegui descobrir qual alternativa era a mais válida. A professora de história era responsável por realizar, junto com os alunos, uma pesquisa histórica sobre a cidade de São Paulo, enquanto a de matemática fazia umas esculturas com sólidos geométricos que serviriam de decoração. Eu, como estagiária, dava apoio moral e braçal na construção das paredes que organizariam a exposição. Em muitas aulas, talvez na maior parte delas, fiquei numa sala separada com alguns pares de alunos pintando e juntando caixas de leite com durex para construir as tais paredes. Para a S. era um ”adianto” muito grande, pois ela estava sempre correndo e sempre muito atarefada. Para mim, era muito chato. Mas foi um momento em que pude me aproximar um pouco mais de alguns alunos, ouvi-los e entender mais da dinâmica das aulas de artes que aconteciam ali e que eu nunca sabia como se dava. Percebi que todas aquelas atividades que a professora S. realizava simultaneamente, embora tivessem boas intenções, todas partiam dela e continuavam com ela. Ela trazia a idéia e os alunos a executavam sem saber exatamente no que daria aquilo tudo no final. Isso ficou bem evidente no caso dessa exposição de fotografia, em que tanto os alunos como eu não tínhamos uma idéia clara do que estávamos fazendo com aquelas caixas de leite e aquelas fotos. Para chegar a algo próximo do resultado que ela havia imaginado, cada um fazia sua parte sem, no entanto, se envolver de fato ou entender o todo. Era exatamente como acontecia quando fui aluna dela: as coisas todas se concentravam nela, ela dava o tom e nós dançávamos arbitrariamente ao som da sua musica. E me deixou um pouco triste ver tanta coisa acontecer naquela escola, ver tanto ânimo em comparação aos dois casos anteriores e ainda “inventar” defeitos. Sei que o ser humano tende à insatisfação, mas fazendo um paralelo com a Proposta Curricular, me parece mesmo difícil, por mais que haja boas intenções e propostas pertinentes, tentar amarrar as pessoas dentro de alguns territórios com alguns caminhos pré-estabelecidos 67


para se caminhar e alguns lugares comuns aonde toda gente deverá chegar sem saber ao certo onde está indo.

Conclusões parciais sobre a prática

Depois de todos esses dias de pura tensão e adrenalina, olho para trás e me pergunto se poderia ter sido, de repente, uma má escolha minha para as escolas em que fiz estágio. Mas não me importaria muito se fossem esses os únicos três casos à parte da rede estadual, pois continuam a fazer parte do todo. Na verdade, acho que todas as 5,3 mil escolas são, cada uma, um caso à parte, assim como os 4 milhões de alunos que estudam nelas e, por isso, merecem todos serem tratados como tal. É verdade que esse monte de número impressiona, mas mais difícil deveria ser aceita-los apenas como números e resultados para melhorar nossa colocação em algum ranking... Mas para que esse tratamento possa ser diverso, não seria o suficiente reformas curriculares restritas ao âmbito da educação básica. Sobre a prática dos professores Aguirre nos ajuda a compreender que O modo como os professores aprendem é o mesmo com que ensinam. Este inevitável isomorfismo da formação mostra-se fatal para as aspirações dos governantes a novas e melhores práticas escolares. Se os professores são formados em métodos passivos, poder-se-á esperar que desenvolvam métodos activos com os seus alunos?60

Não se trata, entretanto, de então padronizar o Ensino Superior. Mas, pelos exemplos relatados, percebemos o quanto os professores ainda estão agarrados as suas “formulas de sucesso” em sala de aula e pouco abertos ou dispostos a novidades. Somado isso ao agravante da desmotivação evidente pelas péssimas condições de trabalho e remuneração, temos um quadro não muito promissor para a educação pública e para aplicação de uma PC que se pretende dinâmica, mas mais contribui com a inércia docente. Vale ainda retomar aqueles princípios iniciais da escola que também aprende, prioridade para leitura e escrita, escola comprometida com seu tempo, a relação com o trabalho e perceber como eles tem se dado na prática. A escola continua reproduzindo e reforçando a noção de que a educação constitui degraus para subir na vida. Sobre isso, Ivan Ilich escreve no livro Sociedade Sem escolas: 60

AGUIRRE, Imanol. Imaginando um futuro para a Educação Artística

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[...] uma nova lógica entra em jogo: quanto mais longa a escolaridade, melhores os resultados; ou, então, a graduação leva ao sucesso. O aluno é, desse modo, “escolarizado” a confundir ensino com aprendizagem, obtenção de graus com educação, diploma com competência, fluência no falar com a capacidade de dizer algo novo. Sua imaginação é “escolarizada” a aceitar serviço em vez de valor. Identifica erroneamente cuidar da saúde com tratamento médico, melhoria da vida comunitária com assistência social, segurança com proteção policial, segurança nacional com aparato militar, trabalho produtivo com concorrência desleal. Saúde, aprendizagem, dignidade, independência e faculdade criativa são definidas como sendo um pouquinho mais que o produto das instituições que dizem servir a estes fins; e sua promoção está em conceder maiores recursos para a administração de hospitais, escolas e outras instituições semelhantes.61

Retomando também aquelas perguntas iniciais sobre o que se quer que sejam ou se tornem e no que tem se tornado esses alunos, vemos que as “oportunidades” a eles oferecidas não vão muito além do que a perspectiva de algum emprego que pague as contas da casa. Lógico que, vivendo no mundo que vivemos, não seria possível ignorar essa faceta que é a principal preocupação dos jovens ao concluírem o Ensino Básico. Pensar a educação como algo mais que um degrau pode parecer um tanto pretensioso e demasiado distante da nossa realidade, onde desde outubro se começa a comemorar o Natal. Ainda assim, podemos imaginar uma escola que não seja um cárcere, que não seja um ambiente opressor, que seja aberta não ao tráfico mas à comunidade, à sociedade. Será possível? Será possível fazer com que a escola deixe de ser um ambiente onde todos fingem e fazem de conta para continuar tudo como está, por mais que mudem os tempos e as vontades? Mais que um degrau, a escola poderia ser mais um lugar onde poderíamos ser atravessados e tocados por algo. Ou, nas palavras de Jorge Larrosa, ter experiências. Mas não aquela experiência contida no curriculum, mas a experiência como [...] a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mias devagar, olhar mais devagar, e escutar mias devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos utros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e 62 espaço.

61 62

ILICH, I. Sociedades sem escolas, Petrópolis: Vozes, 1985, p.16. BONDÍA, J. L., Notas sobre a experiência e o saber de experiência, p. 24.

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V. Conclusões inconclusas

[...] Estou preso à vida e olho meus companheiros. Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças. Entre eles, considero a enorme realidade. O presente é tão grande, não nos afastemos. Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.63 (Carlos Drummond de Andrade)

Esqueci de alertar para o fato de que precisaria da primeira pessoa do singular também aqui nas considerações finais. Pois cá estou. Ao terminar de escrever esse trabalho tive a sensação de alívio por ter dado conta e chegado ao “fim” mesmo que apesar de um “zilhão” de coisas. Ao mesmo tempo, tive a impressão de incompleto, de inconcluso, de insatisfação e já digo porque. Claro, incompleto sempre será, pois sempre haverá mais o que se dizer sobre todas as coisas. Mas a insatisfação se deve principalmente ao fato de apontar tantas brechas e ambigüidades num sistema ao qual me oponho e ao mesmo tempo saber que desconstruir e derrubar é muito pouco se nada tiver para colocar no lugar. Motivada pela incoerência detectada no ensino publico estadual, dediquei-me a identificar onde estão essas brechas e entender mais a fundo porque me oponho, porque tanto incomodam, de onde vem as incoerências que vejo. Embora estar do lado de fora permita uma distância às vezes necessária para ver com a calma e sem o contágio direto da rotina e das boas intenções, reconheço que falar daqui de fora é sempre muito menos complicado e doloroso; quando não se tem nenhum dos pés dentro da realidade que se critica, é muito mais cômodo criticá-la. Apesar dessa insatisfação, quero crer que reconhecer aquilo que a meu ver não funciona dentro de um sistema educacional já seria uma pequena forma de perceber aquilo em que acredito. As coisas estão sempre relacionadas, seja por concordância, seja por oposição. Há na Proposta Curricular do Governo do Estado de São Paulo um grande esforço no sentido de problematizar a arte, romper com a cronologia que a amarra, dialogar com o 63

Andrade, C. D, Mãos Dadas, disponível em: <http://memoriaviva.com.br/drummond/poema019.htm>

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contemporâneo que é, afinal, mais próximo e mais vivo para as gerações do agora, incentivar o fazer artístico, a ampliação e valorização de repertório, a leitura de imagens... È um passo na tentativa de sistematizar o ensino, de organizá-lo, “definir um foco”, equiparar oportunidades. Tenho sempre dúvidas, mas talvez sejam boas intenções para renovar o ensino e favorecer tudo isso a que se refere tal Proposta Curricular. Porém, acredito que seja aqui onde mora a minha maior descrença com relação a esse sistema educacional: é possível tratar a todos como se fossem um só? Para não falar apenas em descrenças – e agora é a hora de fazer mesmo o contrário disso -, repito: creio muito mais numa educação que considere as diferenças não apenas em discurso e que não apenas as considere, mas que também as tenha como ponto de partida, que as evidencie e as problematize. Uma educação que não esteja pronta, no sentido de acabada, mas que esteja pronta a se dobrar, a mudar de direção, a se moldar a cada espaço e contexto com o qual se deparar, criar novos caminhos ao invés de trilhar sempre os mesmos que já se sabe onde vai dar. Assim, me valendo do conceito de Umberto Eco empregado às artes, o currículo poderia ser visto como uma “obra aberta”, isto é, algo passível de diversas interpretações porque não se fecha, não se limita, porque depende de quem olha e de onde olha.Seria, retomando Tomaz Tadeu da Silva, “nos reconhecermos como produtores ativos de nossos fetiches curriculares”. Essa abertura por todos os lados dentro do sistema educacional é o que me parece mais urgente. Entretanto, o que vejo de mais utópico talvez dispense currículos, talvez dispense a escola tal como a concebemos hoje. Agora sim eu sei que pode estar muito fora do alcance, mas como disse Gallo “já houve momentos na historia da humanidade em que parecia loucura (...) se lançar no espaço, almejando a Lua e as estrelas...”. Talvez pareça que estou a "procurar pelo em ovo" ao ficar esmiuçando prolixamente esse documento curricular. E talvez esteja mesmo. Mas o que tento ver e entender aqui é que discursos e propostas curriculares talvez sejam uma parte superficial e pequena dos problemas educacionais e sociais com os quais convivemos. De toda essa dimensão macro da economia, da política, das políticas educacionais, da educação, o que chega à realidade ao mesmo tempo tão micro e central da sala de aula, é uma conseqüência de todo o resto. Contra essa "conseqüência", acaba que o professor é quem tem que lutar quase sempre sozinho, como se assim fosse possível solucionar ou 71


amenizar ou escamotear a causa. E então por isso, se faz necessário sempre pensar, repensar e rever os nossos processos e práticas educativas. Devo dizer que a minha verdade agora, olhando ao meu redor, é que não acredito (muito) na instituição Escola e, antes que isso pareça demasiadamente pessimista, devo dizer também que acredito mais em pessoas. O tempo todo aprendemos, o tempo todo nos relacionamos e aprendemos com elas e me parece que, considerando uma vida inteira, esse aprendizado se dá muito mais fora da escola do que dentro dela. Mas o tipo de conhecimento adquirido fora da escola, ou fora da sala de aula, quase sempre não corresponde àquele prezado pelo sistema econômico que nos rege e, talvez, esteja aí a idéia utópica e a distância de cogitar uma sociedade sem escola, já que ela está aparentemente ligada a uma mudança de valores que diz respeito à ordem econômica. Já na reta final desse trabalho, descobri esse livro que ainda não tive a oportunidade de ler inteiro, mas que até agora serviu para reforçar o sentimento que tenho tido com relação à escola e as formas pessoais de conhecer e aprender. O livro, de Ivan Ilich, chama-se Sociedade sem escolas e, num dado momento, sugere que “a mais radical alternativa para a escola seria uma rede ou um sistema de serviços que desse a cada homem a mesma oportunidade de partilhar seus interesses com outros motivados pelos mesmos interesses64”. Pode ser que não seja a mais radical, pode ser que não... Mas ao ouvir falar em rede, partilha, partindo do interesse de cada homem, tenho uma sensação de dèjà vu, de já ter visto isso antes, disso me parecer tão contemporâneo e de... por que não? Seria possível que cada homem construísse seu conhecimento, estruturasse sua aprendizagem a partir daquilo que o move ao invés daquilo que move alguém alheio a si? Seria possível essa construção ser menos institucionalizada, menos centralizada e mais coletiva, mas colaborativa, mais orgânica, mais rizomática? O que faltaria, o que sobraria? Soa mesmo um tanto utópico, mas, nessa madrugada que me sentei para escrever essa conclusão, postei no facebook um pequeno trecho do mesmo livro de Ilich, e ganhei uma hora de discussão com amigos que o “curtiram” e se interessaram pelo assunto, e de onde saiu o título desse trabalho. Evidentemente não estou apontando o facebook como solução nem alternativa para nenhum problema, que fique claro. Mas é curioso ver como a rede e a partilha existem, como o interesse atrai e motiva, como, por exemplo, as

64

ILICH, I., op. cit., p. 34.

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discussões recentes sobre a ação da Polícia Militar dentro da Universidade de São Paulo tem sido debatidas e divulgadas, como mobilizações tem acontecido, ainda que de formas isoladas... Evidentemente, não é possível nos contentarmos apenas com relações virtuais ou reduzir os acontecimentos e conhecimentos a elas. Porém, tampouco é possível agora ignorá-las, uma vez que elas existem e ganham cada vez mais força enquanto, talvez também por isso, a escola se enfraquece e luta para tentar se sustentar sobre políticas publicas rígidas. Por fim, com todo meu desalento diante da realidade não só da escola pública, como também das políticas públicas educacionais e das políticas todas, quero contar o que também acabo de saber nessa mesma madrugada, via facebook, por uma outra amiga: fui convocada pela Prefeitura da Cidade de São Paulo para ser PROFESSORA DE ARTE já

no próximo ano. Confesso e assumo o quanto isso me assusta, o quanto já de

saída tenho medo de me tornar tudo isso que “condeno” e de que a realidade sucumba minhas pequenas utopias, da hostilidade alheia que julga essa opção como falta de opção... Por outro lado, reconheço que guardar as utopias nas gavetas junto com a geometria e os hinos nacionais, de nada vale. E reconheço que depois de olhar tanto tempo de fora, eis que chega a hora de me entorpecer pela “rotina e pelas boas intenções”, ver como é estar do lado de dentro, como é encarar minha descrença sem deixar de acreditar nas pessoas. Pronta pra isso acho que nunca estarei, então não há porque não ser agora. Certa vez ouvi o escritor espanhol Eduardo Galeano dizer numa entrevista: a utopia é aquilo que nos faz continuar caminhando... E acho que é por isso que continuo aqui, sem conclusões. Estou presa à vida e olho meus companheiros com quem posso discutir sobre uma sociedade sem escolas numa madrugada chuvosa e que, não só por isso, me fazem alimentar grandes esperanças. Olho para eles, olho ao redor e penso: continuaremos caminhando. E vamos de mãos dadas.

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Referências

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