Re-design Jornal de Letras

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Oscar Niemeyer A morte do génio das curvas eternas Página 18 à 23

Ano XXXII Número1101 De 12 a 25 de Dezembro de 2012 Portugal (Cont.) €2,80 Quinzenário Diretor José Carlos de Vasconcelos

Jornal de Letras e Artes e Edeias

Último ato

As inéditas notas do diretor do Teatro de Alamada sobre Timão de Atenas, de Shakespeare, que estreia no dia 20

Evocação da vida e obra do encenador, com testemunhos de quem com ele trabalhou, por Maria Leonor Nunes * Textos de Filomena Oliveira / Miguel Real e Vitor Gonçalves

Sena e Ramos Rosa Cartas de poetas Páginas 21 à 23

Guimarães 2012 O que continua e o que fica da CEC Páginas 14 e 15

Página 12 a 16




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EDITORIAL Estreia de Há muitas razões

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bonita no Teatro Alberto Entre o ser e o parecer, uma peça do dramaturgo Neil LaBute para reflectir sobre as razões da beleza, das aparências e das ciências. Chama-se justamente Há muitas razões para uma pessoa querer ser bonita e estreia a 21, no Teatro Alberto, em Lisboa. A encenação é de Joao

Destaques

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para uma pessoa querer ser

Lourenço, que também assina a realização vídeo e a versão dramatúrgica com

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Vera San Payo de Lemos. A interpretação é de Ana

Destaques

Guiomar, Jorge Corrula, Sara Prata e Tomás Alves. Os cenários são de António Casimiro e os figurinos de Dino Alves. Está em cena de 4ª a sáb., às 21 e 30, dom. às 16, na Sala Azul.

José Carlos de Vasconcelos Duas Figuras Muitas vezes acontece isto no jornalismo: tem-se uma edição preparada, até com uma capa já feita, e os acontecimentos obrigam a mudá-la, de forma profunda. Mais habitual nos diários e na imprensa generalista, também acontece numa publicação como o JL. Antes de mais porque é “jornal”, com tudo que isso pressupõe e significa. E as razões da mudança podem ser felizes ou infelizes. Em geral são tristes, sobretudo a morte de alguém. Foi o que sucedeu agora, em ‘dose dupla’, com o desaparecimento de Joaquim Benite e Oscar Niemeyer. Niemeryer, um génio da arquitetura e uma grande figura humana – ainda por cima brasileiro, criador de uma cidade, “capital do futuro”, em que se fala português – e ele próprio neto de portugueses. Com uma extraordinária obra espalhada pelo mundo, plena de inventiva e fantástica beleza, dedicamoslhe ao longo dos anos, muitas matérias, de que destacamos os temas, que foram capas, publicados pouco depois de completar 90 anos (nº 714, de 25/2/1998) e quando chegou aos 100 (nº 970, de 5/12/2007). Neste último, sublinhava aqui a circunstância rara, com paralelo no nosso Manoel de Oliveira, de se festejar o seu centenário continuando ele em plena actividade criadora e profissional. Inclusive indo, com regularidade, ao seu atelier da Avenida Atlêntico, em Copacabana, frente ao mar e ao banco onde está agora, em pedra, o seu amigo Carlos Drummond de Andrade. Por aí andei, aliás, há poucas semanas, com a mágoa de já não lhe poder bater à porta e recordando a sua simpatia substantiva, sem exuberância ou derrame, em especial o encontro e a conversa (e o almoço…) que ‘contei’ naquela edição de 1998. Edição para a qual até teve a generosidade de escrever “Aos meus amigos de Portugal”, uma espécie de longa carta autobiográfica em que falava de si, do seu percurso e da sua obra. Seja como for, bem gostaríamos de neste JL falar mais do arquitecto que desenhou e edificou curvas eterna. Impossivel, por falta de espaço – até porque queríamos dar, como damos, o devido destaque a tudo que conseguiu fazer no teatro português, e em particular no Teatro de Almada, o Joaquim Benite – fazer inclusive um Festival Internacional que conquistou dimensão e prestágio europeus. Benite cuja morte prematura ocorreu em vésperas de estrear (no próximo dia 20) a sua ultima encenação, Timão de Atenas de William Shakespear.

Vencedores do cinema A Última Vez que vi Macau, a mais recente longa-metragem de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata, foi o filme vencedor da 16.ª edição do Festival Luso – Brasileiro de Santa Maria da Feira (que decorreu de 2 a 9 dezembro). Joao rui Guerra da Mata recebeu ainda o prémio de melhor curtametragem, com O Que Arde Cura. O certame, promovido pelo Cineclube da Feira, atribuiu os calardoes de melhor atriz à brasileira Cristiana Ubach, pelo seu desempenho de Boa Sorte, meu Amor, de Daniel Aragão, e de melhor ator a Joao rui Guerra da Mata, por A ultima Vez que vi Macau.


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Já estava previsto publicarmos uma matéria sobre a peça e a sua estreia, com uma conversa com o encenador, que infelizmente já não se pode realizar. E, como a vários títulos se impunha, a matéria passou a ser outra e muito mais larga. Permita-se-me uma nota pessoal. Conheci o Benite quando teria 20 e poucos anos, já jornalista, trabalhamos ambos no Diário de Lisboa, onde fiz critica de teatro e ‘conheci’ a sua paixão pelo teatro. Acompanhei depois o seu sonho/projeto, em Campolide, onde estive mais do que uma vez, mormente para dizer poemas. Se bem me recordo, o início da atividade do grupo, ou de levar à cena a primeira peça, teve alguns adiamentos, o que levou a haver quem desconfiasse da capacidade de realização do seu diretor. Pois essa capacidade foi-se impondo cada vez ‘melhor’, e a obra que o Benite deixa é mais relevantes das últimas décadas em Portugal.

“Niemeyer, um génio da arquitetura e uma grande figura humana; Benite, uma obra das mais relevantes do teatro em Portugal

PS Acabar com o Câmara Clara, que a Paula Moura Pinheiro faz tão bem, e é o melhor programa do género da televisão portuguesa. É uma vez mais negar o serviço público; e mostra a cegueira e/ou os interesses, em vários sentidos, de quem manda numa RTP a caminhar para o precipício…JL

O filme Sudoeste, do brasileiro Eduardo Nunes, foi outro dos grandes vencedores, arrecadando os palmarés do júri, da critica e do publico. Ainda na longa metragens em competição, Cama de Gato, de filipa Reis e João Miller Guerra, foi distinguido com o prémio revelação. Nas curtas, Filme para Poeta Cego, de Gustavo vinagre, foi o vencedor do prémio de revelação; A Mão que Afaga, de Gabriela Amaral Almeida, do prémio especial do júri, que atribuiu ainda duas menções honrosas: a sofia Dinger, por Lullaby, e a Maya Darin, por Versão Francesa, também distinguido com o prémio 2. O Facínora, de Paulo abreu, recebeu ainda o prémio dos cineclubes.

Fernando Lopes e filmes portugueses em livro Dicionário do Cinema Português 1895-1961 e Fernando Lopes, Um Rapaz de Lisboa, dois livros do crítico e estudioso de cinema Jorge Leitão Ramos. O primeiro, editado pela Caminho, é uma obra de referência, com entradas para todas as longas metragens e grande parte das médias e curtas dos primeiros 56 anos do cinema em Portugal. Podem encontrar-se não só os títulos dos filmes, como realizadores, atores e técnicos. Em Fernando Lopes, Um Rapaz de Lisboa, numa edição conjunta Sociedade Portuguesa de Autores e Imprensa Nacional Casa da Moeda, faz uma homenagem ao realizador falecido este ano. De forma sintética e fluida, Leitão Ramos percorre, por capítulos, a vida e a obra do autor de Belarmino, sempre com muitas imagens a acompanhar. É um olhar muito completo, passando pela infância, a criação da revista Cinéfilo, o Cinema Novo, o parêntesis televisivo, a sua curta experiência como ator e a filmografia completa, de Belarmino a Em Câmara Lenta. JL

Fado na INCM O musicólogo Rui Vieira Nery é o denominador comum da colecção que a Imprensa Nacional/Casa da Moeda dedica ao fado. De início são editados quatro volumes. Para uma História do Fado, o mais completo livro sobre o assunto alguma vez editado em Portugal, tem uma edição, revista e aumentada pelo autor. Para o público estrangeiro, saiu A History of Portuguese Fado, que não é apenas a tradução do anterior, mas antes uma adaptação, com o cuidado de explicar conceito, que muitas vezes subiste, de que o fado é de ‘direita’. ‘O Fado e o Ideal republicano’, ‘O fado e o Movimento Operário’ e ‘O fado e a Grande Guerra’. Finalmente, foi reeditado o clássico, de 1937, Ídolos do Fado,. Um dos mais importantes registos sobre o fado nos anos 30, que sai em edição fac-similada, com uma longa introdução explicativa do próprio Rui Vieira Nery. JL

No Córtex – Festival de Curtas-Metragens de Sintra (de 28 de novembro a 2 de dezembro), que este ano homenageou o realizador António campos, foram distinguidos os filmes Noite, de Flávio Pires, com o prémio de melhor curta nacional pelo júri; Nada Fazi, de Filipa Reis e João Miller Guerra, com o prémio do publico; e Blu, de Contantim Nicolae Tanase, eleita a melhor curta internacional pelo júri. Por lapso, não saíu no ultimo numero do JL a notícia, já escrita, dos palmarés do Cinanima e do Lisbon & Estoril Film Festival, pelo que agora os publicamos. No Cinanima, um dos mais importantes festivais europeus de cinema.

Entre os outros palmarés, destaca-se o António Gaio, para Outro homem Qualquer, de Luis Soares; de Raquel Felgueiras; e Filme Publicitário, A Energia na Terra chega para Todos, de José Miguel Ribeiro. No Lisbon & Estoril Film Festival, L’Intervallo, recebeu o prémio para o melhor filme. O Juri, composto por Alfred Brendel, e Sonia WiederAtherton, premiou Melvil Poupaud em Laurence Anyways, de Xavier Dolan, e Student e Djeca – Children of Sarajevo receberam ex-aequo do júri Joao Bénard da Costa. Winter, Go Away! Foi eleito o melhor primeira obra, e Rengaine, de Ranchid Djaidani, recebeu Cineuropa. JL


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EDWARD Y ANG NA CU

LTURGEST

Destaques

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O PORTO FESTIVAL DO LIVRO N

Histórias de Taipei é o título do ciclo dedicado ao cinema chines Edward Yang (1947-2007), a decorrer na Culturgest, em Lisboa, de 13 a 16 de Dezembro. O programa, comissário por Augusto M. Seabra, conta com os filmes In Our Time / Expectation (1982), Taipei Story (1985) a 13, às 21 e 20; The Terrorizers (1986), a 14, às 21 e 30; A Brighter Summer Day (1991), a 15, às 15; e Mahjong (1996), a 16, às 18 e 30. Yang “foi certamente o mais ‘ocidentalizado’ dos realizadores de Taiwan, mas foi também, como poucos outros, o cineasta de uma cidade, Taipei. E foi um dos grandes cineastas das últimas duas dácadas do século XX”, refere o comissário.

Ler é Mágico é o mote do Festival do Livro, a decorrer no edifício AXA, na Avenida dos Aliados, no Porto, de 14 a 16 de dezembro. Além de uma feira do livro e do artesanato, o certame, coorganizado pela Culture Print e a Câmara Municipal, inclui ciclos de cinema – dos quais se destaca a sessão de curtas ‘Tudo Isto é Fado’ (a 12, às 21 e 30) -, leituras de contos e de poesia, concertos, oficinas, peças de teatro, lançamentos de livros, e tertúlias. Entre outras, a tertúlia ‘Literatura, Política e Cidadania’, com António Veríssimo, Luís Isidro, Susana Campos, Carlos Vinagre, Bernardino Guimarães e Paulo Esperança.


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TEMPS D’IMAGES NO SÃO LUIZ CARTA AOS ATORES NO TEATRO DA POLITÉCNICA

Os Demonios, de Dostoeiévski, é o ponto de partida da nova criação da companhia Mala Voadora, que sobe ao palco do Teatro Municipal São Luiz, em Lisboa, de 13 a 16 de dezembro. Um espectáculo “em torno de uma Comunidade, sobre aquilo que é Comum, e evoca o contexto cultural em que surgiu o Comunismo”, Revelação tem direção de Jorge Andrade, interpretações de, entre outros, Anabela Almeida, Cláudia Gaiolas e Miguel Fragata, e cenografia de José Capela. A 13 e 14, o Jardim de Inverno da sala lisboeta acolhe outro espectáculo do Temps d’Images: a performance Tempus Fugit, de Sónia Baptista e Cláudia Varejão.

“Será preciso que um dia um ator entregue o seu corpo vivo à medicina, que seja aberto, que se saiba enfim o que acontece lá dentro, quando está a atuar. Que se saiba como é feito, o outro corpo. Porque o ator atua com um corpo que não o seu”. Eis um fragmento de Carta aos Atore, de Valère Novarina, uma reflexão sobre a arte do ator e o sentido do teatro, escrita em 1973, de que o encenador Jorge Silva Melo faz a leitura integral, a 20 e 21 de dezembro, às 19, no Teatro da Politécnica, em Lisboa. A sessão é de entrada livre mediante reservas.


Destaques

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do programa Câmara Clara Câmara Clara, o diário Cultural da autoria de Paula Moura Pinheiro, na RTP2, vai terminar no final do ano. O anúncio foi feito em comunicação pela jornalista que também é subdiretora daquele canal. Explicou que a decisão lhe havia sido comunicada, em junho deste ano, por Jorge Wemans, que na altura era diretor da RTP2. O programa era exibido, de segunda a sexta, num formato mais curto e, aos domingos, em formato longo. Contactado pelo JL, Paula Moura Pinheiro não quis prestar quaisquer declarações, remetendo para o comunicado, em que aforma: “Foi, para mim, um enorme privilégio trabalhar sobre as obras das muitas centenas de criadores, artistas e investigadores de que a Câmara Clara se ocupou ao longo dos últimos seis anos e meio”. E acrescenta: “Orgulho-me do serviço que prestámos. Um serviço que é uma das faces, em meu entender inegociável, do serviço público de televisão”. E mostra-se preocupada com o futuro do serviço público de televisão: “A questão, premente, é a de saber que meios, que espaço e que visibilidade reserva o serviço público de televisão à cobertura de uma das áreas nevrálgicas do desenvolvimento do país: a inovação nas artes e nas ideias e a conservação do nosso extenso e precioso património cultural-da literatura à arquitectura.” Entretanto, decorre uma petição pública de telespetadores pela manutenção do programa. Pode ler-se:”Mais do que um programa de divulgação cultural, mais do que uma agenda cultural ou de entretenimento, o programa Câmara Clara assumiu-se como um espaço de análise, debate e procura de convergências, colocando-nos a nós - retesamos nós, espetadores - perante nós mesmos, perante o outro, imersos no nosso universo de criação e inundados pelo universo criativo que herdamos, que partilhamos, em que nos movemos.” Juntamente com o Câmara Clara, também terminou o programa de divulgação musical Top Mais, apresentado por Francisco e Isabel Figueira. Era o programa mais antigo da televisão pública, a seguir ao Telejornal, com 20 anos de existência.


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BREVE ENCONTRO

Destaques

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Vasco Graça Moura

As humanidades, o fado e a arquitectura marcam forte presença na programação do CCB para 2013. São as grandes novidades numa em que se pretende inovar, sem perder de vista o que já foi feito. O JL falou com Vasco Graça Moura. JL: Quais foram as suas maiores preocupações a criar a grelha de programação de 2013 para o CCB? Vasco Graça Moura: A grelha não é apenas da minha responsabilidade, é um trabalho de grupo. Uma das preocupações é manter uma linha de continuidade. Há aspectos emblemáticos na actividade do CCB, que se devem manter, sobretudo na música, dança e teatro. Ao mesmo tempo, tentamos encontrar uma programação complementar, que mantenha uma linha consistente. Por exemplo, não só há uma temporada ligada à música, com vários tipos de repertório, como criamos um programa para jovens intérpretes, chamado “Bom Dia Música”. O fado parece ser mesmo uma das grandes apostas, com o ciclo “Há Fado no Cais”. É fruto de um protocolo com o Museu do Fado e a EGEAC. Além de concertos dados por grandes fadistas e alguns em princípio de carreira, temos um ciclo sobre a história do fado, coordenado por Rui Vieira Nery, e um outro, sobre a escrita de letras de fados, por Fernando Pinto do Amaral.

E as artes visuais? A grande novidade, sobre a qual poderia falar melhor a Dalila Rodrigues, é a abertura de uma nova galeria dedicada preferencialmente a exposições de arquitectura. A primeira, que já está patente, é dedicada ao Nuno Portas. Seguem-se muito outras. Além das Artes, a programação de 2013 será rica em letras. Acrescentámos um ciclo dedicado às humanidades, no plano da Literatura, a História, o testro português. Há dias dedicados a Ruy Belo, António José Saraiva, António Lobo Antunes, Carlos Queiróz. Em 2014 seguir-se-ão outros nomes. Há também um ciclo dedicado à grande poesia brasileira do século XX, coordenado por Arnaldo Saraiva. Esperemos que a partir daqui se criem pistas de diálogo sobre estas temáticas. E mais alguma surpresa? Entre finais de 2013 e princípios de 2014, queremos consagrar uma iniciativa à necessidade de reabilitar as humanidades no ensino secundário e superior. Temos um documento de trabalho mágnifico, da autoria de Vitor Aguiar e Silva. Já contactamos todas as faculdades e departamentos de letras. Ainda não sabemos se o figurino será um encontro, um congresso ou um festival. Estamos em contacto também com o governo e é conhecida a importância da iniciativa. É possível despertar os espíritos e os interesses. Em geral, há uma predominância de produções portuguesas? Nós temos todo o interesse em promover a cultura portuguesa. Mas, por outro lado, como atravessamos uma fase de construção económica, é evidente que sai mais barato recrutar artistas portugueses. Por isso, vamos tentar transformar a nossa franqueza financeira numa força cultural. Teremos menos estrelas internacionais, mas tal não afectará a qualidade. JL MANUEL HALPERN

Papiano Carlos (1918-2012)

LeYa lança ‘Escrytos’

Estreou-se em 1942, com um livro de poemas, em 46 publicou outro, com capa de Júlio Pomar, e a partir daí deu a lume muitas outras obras, em particular dedicadas à infância e à juventude, sendo a mais conhecida A Menina Gotinha de Água, de 1963, que tem tido sucessivas edições. Comunista, lutou contra a ditadura, foi três vezes preso pela polícia política, colaborou em jornais e revistas - como a Vértice, a Seara Nova - e nos cadernos de poesia Notícias de Bloqueio, de que foi mesmo um dos diretores, com outros integrantes da chamada segunda geração neorrealista, como Egito Gonçalves, Luis Veiga Leitão e Daniel Filipe. Falamos de Papiniano Carlos, nascido em Moçambique mas desde cedo radicado no Porto, onde estudou Engenharia e Ciências Geofísicas, trabalhou e viveu até morrer, no passado dia 5, com 94 anos. Militante político e cultural, foi da direção do Teatro Experimental do Porto (TEP), E EM 2009 foi-lhe atribuída a Medalha de ouro da cidade. O seu último título, A Viagem de Alexandra, para crianças, ilustrado por Manuela Bacelar, saiu em 1989, e teve uma reedição em 2008.

O grupo editorial LeYa acaba de lançar Escrytos, uma plataforma que permite a qualquer um a autoplicação de livros e textos originais em formato digital, e a comercialização em lojas online de todo o mundo. A publicação é gratuita, sendo apenas necessário que o autor tenha o texto em formato Word e efetue o registo no sítio (www.escrytos.com). Em comunicado, a editora explica: “Esta plataforma vai ao encontro daquela que tem sido a sua estratégia no contexto da estimulação da criatividade editorial e até mesmo no da procura de novos talentos de língua portuguesa”. Na Escrytos, o autor tem acesso ao software de conversão do formato word em ePub, ou seja, num ebook, e pode criar a capa do livro, escolher imagens, cores, formatos, fontes gráficas, entre outros elementos, através de um programa próprio, bem como criar o código ISBN, obrigatório para todas as publicações. Terminado o processo de publicação e defenido, pelo autor, o preço do livro digital, o mesmo fica disponível em lojas online parceiras do projeto (Almedina, Amazon, Fnac.pt, Wook, Kobo, entre outras). A plataforma disponibiliza, ainda, um conjunto de serviços pagos, com a solicitação de um parecer editorial (uma avaliação prévia da qualidade dos textos, sobretudo de poesia e ficção), serviços de edição e revisão de texto, e de promoção (como a criação de press releases).


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Concerto Solidário Aurea, Deolinda e David Fonseca são alguns dos músicos que sobem ao palco do Teatro do Tivoli, em Lisboa, hoje, 12, às 21 e 30, para o concerto ‘ Live Freedom’. Promovido pela Amnistia Internacional, o espetáculo tem como objetivo chamar a atenção do público para os direitos humanos e para o trabalho desenvolvido pela organização, e conta ainda com a participação da equipa das manhãs da rádio Comercial: Pedro Ribeiro, Ricardo Araújo Pereira e Vasco Palmeirim. A receita dos bilhetes reverte a favor da Amnistia.

JL, erro técnico Na nossa última edição, devido a um erro técnico de paginação, na p.3, ao alto, onde deveria ter saído a notícia dos Festivais de Cinema Cortex (a que se reportava a imagem, que saiu, de um filme de António Campos) e LusoBrasileiro de Santa Maria da Feira, apareceu a notícia “O livro objeto de conversas em Lisboa”. Notícia repetida aliás, mais curta, na mesma página. Pelo facto pedimos desculpa aos nossos leitores.

Êxito de tabu em França Em cinco dias de exibição nas salas francesas, Tabu, de Miguel Gomes, fez mais de 27 mil espectadores, com sessões esgotadas no fim-de-semana, situando-se no 15º lugar. O filme está em exibição em 42 cidades, em Paris com seis cópias, somando-se o sucesso de bilheteira ao entusiasmo com que foi acolhido pela crítica. Vai estrear ainda na Alemanha, a 20, em 28 salas. Entretanto, Tabu integra a lista dos melhores filmes de 2012 (no segundo lugar) da revista inglesa Sight & Sound.

Conferência de Miguel Wandschneider O curador e programador da Culturgest Miguel Wandschneider apresenta amanhã, quinta-feira, 13, às 18,30h, a conferência Copo Meio cheio, copo meio vazio, na Sala Multiusos da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Universidade Nova de Lisboa. A comunicação, que irá focar a sua experiência pessoal no domínio da curadoria e da programação de exposições, abordando as questões da difusão e divulgação da arte contemporânea, integra-se no ciclo Mediações, uma iniciativa do Instituto de História de arte daquela faculdade.

MEMÓRIAS DO PORTUGAL FUTURO, lançamento da série documental com a presença de Mário Soares, a 14, às 19 e 30, no cinema São Jorge.

PESSOA E AUTOREFLEXIVIDADE,

colóquio internacional na Universidade de Évora, a 12 e 13 de dezembro. Com Paula Morão, Rosa Maria Martelo, Ida Alves, António Carlos Cortez, Fernando J.B. Martinho, Gastão Cruz, entre outros.

CONCERTO PARA JOSÉ SARAMAGO, por ocasião dos 90

anos do seu nascimento, hoje, quarta-feira, 12, às 18 e 30, no Salão Nobre do Instituto Superior de Psicologia Aplicada (R.do Jardim do Tabaco, 34). Interpretações de Ana Tomás (soprano), Tiago Oliveira (tenor), Duarte Martins (piano) e Philippe Marques (piano).

A FONTE DAS PALAVRAS, exposição de Maria João Worm, inaugura amanhã, quinta-feira, 13, às 18 e 30, na Casa das Histórias Paula Rego, em Cascais.

PINTURA E MÚSICA na poesia de Camilo Pessanha, encontro com a historiadora de arte e musicóloga Barbara Aniello, a 16, às 16, no espaço Prova de Artista, em Lisboa (R. Tomás Ribeiro, 115). Moderação de Maria Teresa Dias Furtado.

TITO PARIS -Alma de Artista, fotobiografia e documentário sobre o músico cabo-verdiano, que comemora 30 anos de carreira, lançada amanhã, quinta-feira, 13, no Salão Nobre da Câmara Municipal de Lisboa. A obra será também lançada em Cabo Verde, a 19 de dezembro, em São Vicente, na Academia Jotamont, e a 20, em Santiago, no Hotel Praia Mar.

POESIA DE SEGUNDA categoria, curtametragem de Luís Santo Vaz, exibida a 13, pelas 18 e 30, na Casa Fernando Pessoa.

OFICINAS DE NATAL para crianças dos 7 aos 12 anos, no Museu doo Oriente. Entre dias 17 e 21 e 26 e 28 de desembro. Cinema, poesia e exposições unem-se para uma quadra multicultural.

MOSTRIN, Mostra de Teattro para a Infância e Juventude, até 16 de

dezembro, no Auditório de Alfornelos (Praça José Afonso 15). Sessões sempre às 16.

POESIA E REVOLUÇÃO,

tema do último número da revista Relâmpago, lançado a 18, pelas 18 e 30, na Casa Fernando Pessoa. Apresentação de Fernando J.B. Martinho e Luís Quintais.

QUEM VIAJA PARA ALÉM da curva assume o risco de tocar a realidade, exposição que inaugura a 14, pelas 18, na Casa Museu Abel Salazar, em S. Mamede Infesta. INTERIORES: 100 anos de Arquitectura em Portugal, exposição que inaugura a 21 de dezembro, pelas 19 horas, no MUDE, Museu do Design e da Moda de Lisboa. Comissariado por Pedro Gadanho.


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O último ato Um dos nomes mais destacados do teatro português do século XX, que fundou e dirigiu a Companhia e o Festival de Teatro de Almada, morreu no passado dia 5.

Destaques

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Mas a 20, no Teatro Azul, estreia a sua última encenação: Timão de Atenas, de Shakespeare, pela primeira vez representado no nosso país. O JL evoca o encenador, com testemunhos de muitos que com ele trabalharam, revela as suas últimas notas, recolhidas pelo seu assistente, Rodrigo Francisco, que o irá substituir na direção, e antecipa o espetáculo. Publica ainda textos de Filomena Oliveira/Miguel Real e Vitor Gonçalves, bem como um poema de Yvette Centeno.

De quantas personagens fez a marcação em palco? Às vezes, acudia-lhe ao espírito da conversa uma ou outra “fala”, uma ou outra “deixa” de Brechet ou Shakespeare. Às vezes, subitamente declamava um pedaço de texto, recitado entre duas passas, o cigarro rápido entre os dedos, a voz enrouquecida pelo fumo, forte. Voz de comando. O teatro para ele era essencialmente literatura, como não se cansava de dizer. E nesse sentido, o encenador, tal como o ator, eram “intérpretes” do texto. Quantas cenas desenhou, gesto a gesto? Às vezes, movia-se repentino, hesitante sobre um calcanhar e entrava em cena, mordaz, a mordiscar um dichote, uma história do Pacheco ou do Cesariny. Em quantos atos dividiu a vida? O olhar de intenso fulgor, o riso arrastado, a língua afiada.Não poupava críticas, nem imprecações, ainda menos reivindicações para a sua causa. Não era homem de poucas falas nem de meias palavras.Representava o próprio teatro em qualquer palco. “Espero que os teatros saibam resistir, porque eles são, hoje, os refúgios da liberdade. Os teatros, na tradição ocidental, não seguem ‘pensamentos únicos’. São fóruns de reflexão e prazer estético, onde se discute sem limites a multiplicidade dimensional do ser humano, que não o esqueçamos é também social e política”, escrevia no Diário que fez para o JL de 4 de Maio de 2011, quando estava em cena a sua encenação de A Mãe, de Brecht. E acrescentava : “Um teatro vivo é um teatro que se inscreve numa comunidade, a tua e interage com ela. E cria , com o seu público e os seus colaboradores, o que poderemos chamar uma relação racional afetiva”. Não se limitava a fazer bons espetáculos, criava diálogos entre o apuro estético e o imperativo ético. Pensava o teatro. “Não é um emprego, é uma vocação”, disse em 2004, ao Correio da Manhã. “O teatro faz parte de mim”. Joaquim Benite (JB) era um “homem de teatro”, diz simplesmente Rogério de Carvalho, a quem, muitas vezes chamou para encenar. Eram, aliás, da mesma geração e Rogério de Carvalho chegou a integrar o Grupo de Campolide, como ator. “Acompanhei sempre o seu percurso e era realmente um grande dinamizador, formou gerações de atores e teve uma importância relevante na formação de um público de teatro em Portugal”. JB orgulhavase disso. Recordava como nos primeiros tempos em Almada chegava a ter um espetáculo com 17 atores em palco e cinco espetadores na plateia. Muitos anos, persistência e regularidade depois, a Companhia de Teatro de Almada (CTA) teria muitas salas cheias, uma média de 247 espetadores por sessão, no ano passado, como saliente Rodrigo Francisco, que agora será o seu diretor.

Recentemente, por exemplo, O Mercador de Veneza , com encenação de Ricardo Pais, contabilizou sete mil espetadores. “Um dos frutos mais promissores e importantes do trabalho de JB em Almada foi a formação desse público invulgar”, diz ainda. “E não só soube criá-lo, como mantê-lo, o que é ainda mais difícil. E é um público militante, participativo, que gosta de refletir sobre o que se vê e não procura apenas entretenimento. Esse foi o segredo de JB. Como nos dizia sempre: podemos fazer teatro de muitas maneiras, sem texto, sem encenadores, até sem atores, mas não sem público.”

PEDAGOGIA E INVESTIGAÇÃO Como encenador, acrescenta Rogério de Carvalho, “Benite deixou uma marca”. E sublinha: “Os seus espetáculos tinhas uma estética própria, uma visão social e política característica de todo o trabalho que realizava”. Era também um grande diretor de atores. Mais, diz ainda, Era um “homem pedagógico”. “A minha formação também passou por ele, não só pelo trabalho, mas pelas suas ideias que muitas vezes discutíamos”. A vertente pedagógica também é destacada pelo ator Luís Vicente, atualmente diretor da Companhia de Teatro do Algarve, que teve com o JB um relação de 3 décadas: “Com ele aprendi muito do que sei. Fazia parte da sua maneira de estar e de ser essa preocupação no modo como se relacionava sobretudo com os mais novos. Quem quisesse aprender tinha nele um mestre. Foi o caso de Vítor Gonçalves, que foi assistente de encenação de JB e diretoradjunto da CTA, durante 27 anos. Cháma-lhe justamente “mestre” e fala de uma certa natureza “socrática”, do gosto pela troca de ideias, pelas conversas madrugada dentro (ver texto, enviado de Moçambique, onde agora vive e trabalha). E Rodrigo Francisco,que foi assistente de JB desde 2006 e também diretor-adjunto da CTA, fala de uma relação quase “filial”. Ainda lhe é difícil falar no passado de JB, de que se considera um “discípulo” e “amigo”. “No teatro, as relações são muito semelhantes às de uma família, porque passamos horas juntos e criam-se ligações muito fortes. Por isso, havia uma relação de mestre aluno, mas também de um grande companheirismo”, lembra. “O que é de salientar é a capacidade que ele tinha de juntar pessoas dos mais diversos quadrantes. Isso é visível nas centenas de mensagens de pesar que chegaram ao teatro, vindas do mundo inteiro”.

Rodrigo Francisco passou, de resto, do conhecimento do palco à escrita dramatúrgica. Escreveu duas peças, Quarto minguante e Tuning, esta uma das últimas que JB encenou. E o dramaturgo e agora diretor do TMA, não deixa de salientar a “generosidade” deJB, acompanhando-o de perto na reescrita do texto para a cena. Por certo, conheceu bem a “impressionante capacidade de trabalho” de JB, destacada por Rogério de Carvalho. “Encenar é por si um trabalho duro e profundo, juntá-lo à direção de uma companhia e ainda um festival requer muita energia. Precisava de a ter para conseguir os resultados que obteve”, acentua. E Luís Vicente, por seu lado, alude à atitude quase “científica”, com que JB se dedicava à encenação, procedendo a permanente “investigação” ao nível da compreenssão do texto ou da psicologia das personagens”.


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Notas para uma encenação Começamos a trabalhar com os atores no dia 1 de outubro, embora o Joaquim viesse concebendo a encenação já há mais de um ano, durante o período que passou internado. Às vezes, nas visitas, perguntava-lhe: “ E o Timão?”, e ele mudava o olhar e revelava-me mais uma ideia: o chão branco, os figurinos escuros, a distribuição dos papeis - tudo no sentido de uma depuração absoluta do espetáculo, que fizesse revelar o jogo dos atores e, sobretudo, o texto. “Nada de Cadillacs”, dizia, sarcástico consigo mesmo, referindo-se á adaptação dramatúrgica que havia dirigido, em 2008, no Festival de Mérida. A ideia final, a da bancada como único elemento cenográfico, revelou-ma o Joaquim no início de setembro, na sua esplanada favorita da Ericeira, local que ele elegeu para trabalhar nas adaptação dramatúrgica da magnífica tradução que Yvette Centeno lhe oferecera. “Olha lá, este Shakespeare devia ter lá muitos atores na Companhia dele: isto é gente que nunca mais acaba! Corta os criados.” E cortámos, adaptámos, lemos, relemos e o resultado foi um conjunto de palavras “radiosas”, que os atores tomaram como suas logo desde os primeiros ensaios de leitura. Pelo que começámos a trabalhar com os atores - alguns jovens e outros, indefetíveis, com quem o Joaquim fez questão de voltar a trabalhar. O momento ficou registado por Catarina Neves, que realizou um documentário sobre o Joaquim e sobre todo o processo de criação da peça. Os atores mais velhos (e, mesmo mais velhos, a maior parte estreara-se profissionalmente com o Joaquim) sentiram que a forma de abordar o trabalho fora, desta vez, atípica. Desta vez preocupara-se em passar rapidamente da mesa para o palco, em deixar um esquema de marcações estabelecido, em ultimar pormenores, como se fôssemos estrear daí a uns dias: “Põe o Horta a fazer as árvores. Quero sombras refletidas, de árvores verdadeiras. Nada de vídeos”. E as árvores lá estão. E lá está a bancada. E lá está a mesa a descer do teto. O chão branco, a representação sóbria. Este é um espetáculo “sem truques”. É um espetáculo para atores e para um público que goste ver atores e de ouvir bons textos - sejam eles de Shakespeare e de Middleton, como parece que este Timão é: mas que sejam textos bons. As notas que se seguem são os apontamentos possíveis, tirados à pressa nos ensaios de leitura, nas alturas em que consegui vencer a vontade de deixar-me ficar simplesmente a ouvir o Joaquim, e a acompanhar a lucidez e a riqueza do seu discurso. JL. Rodrigo Francisco

DO TEMA E ESTRUTURA DA PEÇA Na primeira cena resume-se, na fala do Poeta, todo o enredo da peça: Timão, um homem rico e antigo chefe militar, um esbanjador, perde os amigos quando se vê desapossado dos seus bens. Timão de Atenas é uma peça formalmente singular, desequilibrada: “Shakespeare nunca escreveu uma peça que fosse simples”. (JB) O texto aborda a falsidade das relações humanas, a falsa lisonja (Timão diz “Devemos odiar a Humanidade”). O cetismo em relação à Humanidade é total: os homens serão sempre corruptos. Hoje em dia, no nosso País, 87% das pessoas não acreditam na Democracia, dada a corrupção dos políticos e dos seus ideais. A História tem-nos mostrado que um sistema democrático pode descambar num regime político prejudicial para o povo. A dimensão trágica e existencial é bastante forte: “A tragédia de Timão, que escolhe afastar-se da Humanidade para morrer sozinho, é a tragédia de cada um de nós”. (JB) “Não basta ajudar o fraco a que se erga, é preciso depois sustentá-lo também”: no início do século XVII Shakespeare utilizava um expressão que podia ser utilizada ipsis verbis para criticar o sistema liberal vigente hoje em dia.

“Em Shakespeare a complexidade dos textos não reside no enredo, mas na multiplicidade de significados. Não nos interessa a história, mas a forma como a história é contada”. (JB) A raiva interiorizada pode ser muito mais violenta do que a “gritaria”. Se um ator gritar na direção de um espetador, este é afetado emocionalmente por um ruído: não é a sua consciência crítica que está a ser abordada. A encenação não procurará uma linha psicológica: é a ação que determina o comportamento das personagens. A atualização dos textos clássicos pode ser perigosa: trata-se de textos atemporais, e atualizá-los implicaria muitas vezes amputar-lhes alguns dos seus significados mais preciosos”. (JB) A mistura de tragédia com comédia é um das marcas de Shakespeare, o que o levou a ser considerado, até ao Romantismo, como um desrespeitador das leis aristotélicas: curiosamente, são justamente a sua poesia e a sua desmesura que tornam as suas peças tão apetecíveis ao teatro moderno e contemporâneo. “Não basta querer representar. É preciso querer levar o teatro até às ultimas consequências - querer sempre superar-se a si mesmo. Não vale a pena querer ser ator: é preciso querer ser um grande ator: é preciso querer ser um grande ator”. (JB) O gesto do ator deve resultar de um movimento interior dele mesmo, com um significado, senão redunda no esbracejar, que já Hamlet criticava nos atores: “Por que é que agridem o ar? Ele fez-vos algum mal?”

DA DEIFICAÇÃO DO OURO Shakespeare introduz o tema do ouro como o fator de inversão de todos os valores e de toda a lógica. Numa época de disputas religiosas apoiadas no homocentrismo, Shakespeare volta a colocar o Homem num plano natural, ao nível dos animais - a propósito desta posição, veja-se a carta de Rousseau a Voltaire sobre o terramoto de Lisboa de 1755. Rosseau adota o ponto de vista de que até uma grande calamidade é necessária à transformação e à evolução da Natureza, ainda que isso constitua um revés para os humanos. O outro passou a ser o Deus das sociedades modernas. É alienante, porque tem a capacidade de transformar características do ser humano no seu oposto (o feio torna-se belo; o velho novo; o desonesto honesto, etc.). O ter destrói o ser. Em si mesmo, o ouro não vale nada: tem apenas o valor que a Humanidade convencionou atribuir-lhe. Timão demonstra isso claramente, quando na cena em que procura raízes só encontra ouro - e este não pode matar-lhe a fome. Karl Marx cita duas obras literárias no seu manuscrito sobre o dinheiro, de 1844: Timão de Atenas, de Shakespeare, e Fausto, de Goethe. O facto de o filósofo alemão citar justamente Shakespeare para ilustrar as características alienadoras de dinheiro para a Humanidade dá-nos a ideia da dimensão gigantesca da poesia de Shakespeare, que teve a coragem de fazer esta denúncia no seio da sociedade inglesa do início do século XVII, já com Jaime I no poder. “Vivemos numa sociedade que se encontra imersa num sistema financeiro que torna difícil, muitas vezes, pensar em temas como a alienação pelo dinheiro. Se refletirmos profundamente, o ouro em si mesmo não vale nada - é apenas uma convenção para facilitar trocas comerciais, tal como eram as bagas de cacau nas sociedades índias da América do Sul, antes da conquista espanhola”. (JB) “Toda a nossa vida pode ser enquadrada num sistema de trocas - até os afetos”. (JB) “Só numa sociedade muito diferente da atual se poderá substituir o valor atribuído ao dinheiro por outro tipo de valor: nomeadamente o valor artístico”. (JB)


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Destaques Destaques

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Um festival para o futuro

“Gosto de trabalhar as subtilezas, as obscuridades do ser humano. Trabalhar as coisas no seu sentido simbólico e poético”, disse a Joana Emídio Marques, do Diário de Notícias, a propósito dos seus 40 anos de carreira. “40 anos de corrida”, como escrevia na altura no Diário para o JL. Uma corrida de obstáculos, contra as dificuldades e falta de apoios oficiais ao teatro, pela dignificação da sua arte e da cultura. Foi o teatro que sempre o fez correr. E só a morte o poderia parar: no passado dia 5 de dezembro. Tinha 69 anos e a estreia absoluta de Timão de Atenas, de Shakespeare, marcada para dia 20. Porém, o pano nunca descerá para o encenador. Dos encenadores, costumava dizer, não rezará a História, com um desprendimento que talvez fosse mais mágoa do que alívio, apesar de ter dito numa entrevista ao DN, em 200o, “Os encenadores não têm posteridade. No futuro, pode haver uma referência nos livros a Luís Miguel Cintra, mas nunca vão saber como ele foi. Essa impossibilidade de posteridade traz-me felicidade. Não tenho de apanhar com séculos de julgamentos, só tenho de me confrontar com os atuais. Isso dá-me uma sensação de liberdade e impunidade”. Talvez se enganasse. O seu teatro continuará sempre em cena. Como revela Rodrigo Francisco ao JL, todos os anos será reposta uma das suas encenações no Teatro de Almada. Em 2014, em principio voltará à cena O Presidente, de Thomas Bernhard. “Algumas peças que marcaram a carreira do Joaquim fazem parte do património teatral português e vamos repô-las como tal como o Teatro Piccolo de Milão faz com as de Strehler. Essa vai ser uma das linhas da futura programação do TMA”, asserva. “Isso permitirá também rever algumas das melhores interpretações de Teresa Gafeira, uma grande atriz, que foi a sua companheira de uma vida”. A sua “escrita teatral” e a sua energia criadora não vão sair de cena. E é assim mesmo que Yvette Centeno o deseja ver celebrado: “Pela sua vida, pela sua obra e pela sua paixão do teatro, verdadeiramente um herói ajudado a subir ao Olimpo que merece” (ver poema junto).

“Tinha esse olhar de cientista na abordagem, mas não deixava de o fazer também pela trancedência, procurando uma explicação para a vida fora dos limites da racionalidade”, adianta. “E eram momentos de criação, de partilha perfeitamente galvanizadores e fisicamente muito esgotantes. Um ensaio cm JB, como um dia me disse, era um trabalho de investigação muito sério, feito com muito esforço e honesto estudo”. E não tinha tempo, nem pressa. Houve ensaios que começaram já noite dentro, mesmo de madrugada e não raramente principiavam com uns dedos de conversa no bar, sobre uma cena, uma personagem, e seguiam o fio da conversa até à sala, a que curiosamente chamava “laboratório”. “Era um encenador que gostava de perder tempo, de caminhar muito devagar, de conversar pelo caminho. Criava assim uma atmosfera criativa e o trabalho já ia meio feito para a sala de ensaios”, di< Rodrigo Francisco. Além do mais, JB, como frisa Rogério de Cravalho, foi também “um homem que formou à sua volta um coletivo capaz de sustentar o edifício que criou”. Gostava do teatro também pela sua natureza de trabalho colectivo. E sobre a sua equipa escrevia no referido Diário que fez para o JL: “Penso que aprendi, desde muito pequeno e muito pobre, a refrear o orgulho e a dominá-lo, como um luxo a que só se podem dar os bem-nascidos, ou os protegidos posteriores da roda da fortuna. O ego inflado não é sinal de inteligência. E é, de resto, uma das dificuldades com que nos defrontamos no teatro. Brecht dizia aos atores que, ao entrarem na sala dos ensaios, deviam deixar os egos pendurados, com os chapéus e os abafos, no bengaleiro. À noite, no Teatro da Trindade, cheio como um ovo, assisto à segunda parte de A Mãe, de Brecht. Recordo-me dos ensaios, dos atores, dos músicos, dos técnicos. E penso que é a sua luta constante contra o orgulho egoísta e individual que faz da equipa a que pertenço um caso especial da coesão”. Para Rogério de Carvalho, tudo está profundamente implicado: “Todo o seu trabalho foi sempre como o seu teatro: humano”. E terá sido isso que sempre o moveu, aproximar-se da natureza humana.

Um “milagre”, dizia JB ao JL em 2008, a propósito do Festival de Teatro de Almada (FTA), que então celebrava 25 anos. O prodígio era de sobrevivência sempre com orçamentos reduzidos de um festival, que começou numas “tábuas” improvisadas na Rua dos Tanoeiros, expandiu-se para muitos palcos nas duas margens do rio e conquistou um público fiel, quen enche salas e ruas. Os orçamentos são cada vez mais minguados, mas o público continua na casa dos 20 mil espectadores. Ano após ano, confessava na altura JB, interrogava-se como era possível que o FTA resistisse e continuasse sempre. Mas todos sabem a resposta: só foi possível criar um festival com a sua dimensão, apesar das limitações do país, porque um “trabalhador do teatro”, conforme gostava de se apresentar, como Benite o sonhou e levou para a frente, com a sua equipa. A programação da edição de 2013, em que se assinala o 30º aniversário do FTA, já está preparada. Como sempre, cruzar-se-ão espetáculos de grandes criadores internacionais e estreias portuguesas, nomes consagrados e jovens revelações. Essa foi desde o primeiro momento a aposta de JB. Ganha. “Procuramos procuramos que todos os espetáculos apresentados tenham um nível de qualidade estética fora do comum, não só em relação aos estrangeiros como aos portugueses”, dizia ao JL em 2007. E essa é uma herança para o futuro, como assevera Rodrigo Francisco, que vai assumir também a direção do FTA. “Vamos respeitar, assim sejamos capazes de o fazer, as linhas de trabalho de JB, ou seja, a seriedade, o rigor e a inspiração artística. E esperamos conseguir manter o alto nível a que habituou o seu público, tanto no teatro como no festival”, afirma. E ressalva: “Claro que JB é insubstituível. E não se pode substituir pessoas que são insubstituíveis”. Quanto a financiamentos, o FTA já tem garantidos para 2013 os de alguns organismos europeus, apoiantes habituais, outros conseguidos o ano passado. Mas em relação aos apoios da Secretaria de Estado da Cultura, tudo em aberto. Como acontece de quatro em quatro anos, vai candidatar-se ao subsídio da Direção Geral das Artes. O projeto será apresentado até 21. “Vai ser por certo um ano de crise, já a edição do ano passado o foi, mas mesmo assim, temos asseguradas grandes produções de importantes companhias europeias, como o Joaquim tinha vindo a fazer”, sustenta. ”E aguardaremos qual será o subsídio atribuído. A diretora das Artes terá anunciado que havia um teto máximo de 400 mil euros. Ora, a CTA e a FTA, já com os cortes de 38%, receberam juntamente, antes 425 mil euros. Nesse caso teria-mos então um corte de pelo menos 25 mil. É duro, mas julgo que vamos conseguir colmatá-lo a nível dos financiadores europeus”.


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Shakespeare em estreia absoluta

A Joaquim Benedite no seu Olimpo (in memoriam) Chora o Olimpo o valoroso herói: caiu junto aos portões da cidade de Atenas. Coronte não o deseja: não aceita as moedas, a sua luz mais forte ofuscaria a treva da memória... Diónisos vem buscá-lo com as suas bacantes: ele sobe triunfante com o Rei do cortejo... Vénus abre-lhe o colo de abraços generosos E Hermes cede-lhe as asas para poder voar... Zeus entrega a coroa de fogo reservada aos heróis: o Olimpo é o Reino de memória perpétua onde não há Carontes receosos... JL Yvette K. Centeno

ESCRITA POR ESCRITA Foi a 24 de abril de 1971 que JB se estreou como encenador, no Campolide Atlético Clube, com O avançado centro morreu ao amanhecer, do argentino Agustin Cuzzani. Do Grupo de Campolide, que fundou, faziam parte “gloriosos malucos” como José Martins, José Saraiva, Carlos Gonçalves, os irmãos Carlos Francisco e Pedro Artur, Nuno Amorim, Teresa Dias Coelho, que era a protagonista feminina dessa peça, Manuel Coelho, Teresa Gafeira ou Manuel João Gomes. Ao correr dos anos, encenaria cerca de uma centena de peças, de dramaturgos como Shakespeare, Brecht, Molière, Marivaux, Goldoni ou Beckett. Mas também de autores portugueses, tendo sido o primeiro a encernar um texto teatral de José Saramago. Também encenou ópera, nomeadamente a recente A Rainha Louca, de Alexandre Delgado. A sua inclinação teatral manifestou-se, no entento, ainda nos verdes anos. Fez clubes de teatro e experimentou ser ator amador. Mas como confessava, faltava-lhe a técnica e a disciplina. Também fez critica teatral. E um dia pensou que tinha que “sujar as mãos” e passar da escrita sobre teatro à escrita do teatro. Olho por olho, escrita por escrita. Escrever sempre foi aliás o seu empenho. Ero jovem e queria ser escritor. Fazia poemas e chegou a publica-los. A relação com a literatura vinha-lhe de um tio, Aleixo Macedo, um humanista, republicano, que fora seminarista e cultivava a leitura.

A escolha das peças que Joaquim Benite levava a cena sempre foi inspirada pelos sinais do tempo. Nada de acasos. “Os seus espectáculos eram feitos no tempo certo e com uma leitura própria”, salienta Rogério de Carvalho. E Luís Vicente não deixa de sublinhar: “A escolha de um texto para o Joaquim não era um ato leviano, nem se prendia com o facto de poder dar um bom espectáculo. Ele pagava um texto para reflectir sobre a contemporaneidade e era em torno desses problemas que sentimos dia-a-dia que montava as suas dramaturgias”. JB implicava-se social e politicamente em cada espectáculo, em cada ato, em cada gesto do seu teatro e da sua vida. Há muito que pensava encenar Timão de Atenas, de William Shakespear, uma peça nunca antes representada no nosso país. E este afigurou-se o tempo certo para o fazer. A estreia absoluta é dia 20, no Teatro Municipal de Almada, como tinha programado. Foi há três anos que desafiou Yvette Centeno a traduzir Timão de Atenas. Era antiga a cumplicidade teatral que os ligava. Vinha ainda dos tempos iniciais do Gropo de Campolide. “Não houve nada que eu não tivesse traduzido, nomeadamente Otelo”, garante a poetisa. Disse pois a JB que a tradução iria levar o seu tempo, era “sem prazo” porque só o poderia fazer à noite. Levou justamente um ano. Pesou também a complexidade do texto, em parte em verso. “Fiz várias revisões até me parecer que soava bem na boca dos atores, porque fiz verso livre, procurando o ritmo, a verdadeira pulsão do texto. Deu-me bastante trabalho. Quando lhe entreguei disse-lhe que era um prendinha, porque nunca poderia pagar o esforço dos meus olhos, quase todos os dias até ás quatro da manhã. Ele riu-se muito.” Depois de um prolongado afastamento dos palcos, por doença, JB tomou essa tradução e começou a trabalhar na encenação, que marcaria o seu regresso. Ainda começou os ensaios, arquitectou o “edifício” do espectáculo, fez as marcações dos atores. È o que imaginou que será visto no Teatro Azul. Como garante Rodrigo Francisco: “Nos últimos tempos, foi muito angustiante, porque ele começou a sentir que talvez não viesse até á estreia e chegou a dar-me exemplos de fontes onde eu deveria ir beber, quando ele já cá não estivesse. Apontou-me caminhos para o futuro para manter o seu projecto”. Foi isso mesmo que transmitiu aos atores, quando tomou em mãos a encenação. Timão de Atenas, como adianta Yvette Centeno ao JL, “tem uma dimensão social muito atual”.

Temos diante de nós a diferença entre o momento do sucesso e a tragédia da queda. È uma atualidade trágica, a desgraça do herói, que é como quem diz a de um país em sofrimento, num mundo em crise. E tem tudo a ver com a consciência e a crise de valores que estamos a viver”. Literariamente, o mais interessante para a profª e tradutora é o “modo como Shkespeare trata a loucura de Timão, comparável á de Rei Lear”. “No final, Timão vai para uma gruta e é trágica essa cena pela loucura em que cai o que foi o mais importante e valoroso guerreiro do seu tempo”, diz. E se “Lear enlouquece por culpa própria, porque se enganou em relação ao amor das filhas, Timão enganou-se sobre a fidelidade de quem é subserviente”. Desde o primeiro momento em que pensou fazer a peça, JB convidou Luís Vicente para ser Timão. E ao correr do tempo, diz o ator, foi desenvolvendo “complicidades” com o olhar de Shkespeare sobre o tema central: o dinheiro. “ È a questão do valor do dinheiro, a importância que se dá ao ouro que está em causa. Porque razão o dinheiro é tão decisivo na relação entre as pessoas? Joaquim refletia muito sobre isso e propunha-nos que também o fizéssemos. Ele fez uma pesquisa exaustiva e fomos confrontados com o pensamento de vários filósofos, nomeadamente com Marx, porque ele era um marxista”. Timão é a terceira personagem Shakeperiana que Luís Vicente protagoniza numa encenação de Benite. Todas elas foram uma “aprendizagem muito gratificante”. Timão implica algumas dificuldades, como ressalva, pela própria natureza do texto e por apresentar algumas irregularidades do ponto de vista psicológico da personagem. “A propósito de Otelo, o Joaquim falou de Shakespeare. È uma expressão feliz julgo que se aplica a Timão”, afirma. È um espetáculo que JB orientou para uma “reflexão sobre os tempos que correm”, segundo o ator, mas feito com uma “grande depuração”. “ Tanto cenográfica, como ao nível dos figurinos e dos comportamentos ou da gestualidade, como em nenhum outro”, adianta. A depuração foi, de resto, o caminho que seguiu na sua arte de encenar como reconhece Rodrigo Francisco. Curioso é que, observa, “dispondo de um dos maiores palcos do pais, um teatro com condições uniccas, que lhe permitia utilizar recursos técnicos raros, JB tenha assim mesmo enveredo pela simplicidade, por “cenografias mais depuradas, pequenos apontamentos cénicos carregados de sentido, procurando cada vez mais o texto”. Timão de Atenas conta com cenografia de Jean-Guy Lecat, figurinos de Sónia Benite e interpretação de Paulo Matos, Teresa Gafeira, Ivo Alexandre, Marques D’Arede, Alberto Quaresma e André Gomes, entre outros. Em Janeiro, a nove retumará a sua carreira no Teatro de Almada, até 3 de Fevereiro. JL

Com ele, Jb cresceu, depois da morte dos seus pais, quando andava pelos seis anos, a mãe de tuberculose com 38 anos, o pai de ataque cardíaco, com 64 anos. Não foi, aliás, feliz a infância de JB e pouco gostava de recordar esses tempos duros e dolorosos, em que andava descalço pelos campos de Mem Martins, a pedir esmolas e sopas de leite com os irmãos. É que, apesar da família paterna ter o seu quê de aristocracia algarvia, o pai, António Macedo e Brito, que foi empresário de teatro de revista, era considerado a “ovelha ranhosa”, e a mãe, que era pobre e sonhara ser corista, era mal vista, como esposa ilegítima pelos familiares mais abastados. O pai caiu em desgraça e a custo conseguia sustentar os filhos. Foram os contes de reis que rendeu um espetáculo de homenagem, que João Villlaret lhe promoveu no Coliseu, que valeram a JB as primeiras botas. Não admira que desse tempo gostasse apenas de recordar as mimosas pelos caminhos palmilhados. E a obstinada decisão de usar o nome da mãe, como “provocação e irreverência”. Estudou no Liceu Passos Manuel e a família paterna predestinou-o à contabilidade. Mas as suas contas foram outras. Aos 17 anos, começou a trabalhar na Enciclopédia Luso-Brasileira, então dirigida por António Sérgio. Afonso Cautela levou-o depois para o República, onde começou a sua carreira de jornalista, que tivera os primeiros arroubos no Notícias de Amadora. Passaria a seguir pelo Diário de Lisboa, por O Século e já no final dos anos 80, depois de um longo interregno, por O diário.

Mal tinha chegado ao República, quando um dia o chefe de redação, Artur Inês, descobrindo o seu apelido paterno, o desafiou a puxar dos pergaminhos e começou a fazer crítica. É que logo na primeira crónica, desancou um espetáculo de Laura Alves e o teatro burguês. O chefe de redação, encolarizado, rasgou o “linguado” em dois. Faz outro, ordenou. E advertiu que naquele jornal não se dizia mal da Sr.ª D. Laura Alves. JB gostava de contar essa história e ria sempre, vaidoso. Era, aliás, um bem-disposto contador de histórias. E tinha-as para contar, porque o encenador era também uma verdadeira personagem. JB encontrava, de resto, parecenças entre o jornalismo e o teatro, o primeiro pela mise en page, o segundo pela mise en scéne. “Depois têm em comum o caráter efémero: o jornalismo refaz-se todos os dias e o teatro também”, dizia ao DN. E juntava por outro lado: “O teatro é ação. Quase todos os grandes dramaturgos geriram teatros, como Brecht, Moliére. Não há esse artista que está desligado da sociedade. O teatro é a forma de escrever que está relacionada com a acção”. E quando lhe perguntaram por que não escrever via teatro, respondeu: “Não tenho tempo de vida para fazer todas as peças de que gosto. Por outro lado, sei que posso dizer coisas através da voz dos outros. Porque é que havia de colocar uma voz que é inevitavelmente mais medíocre ao pé destes homens? Ser escritor não é mais importante que ser encenador, ou ser jornalista. O importante é ser feliz”.


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Um Mestre de Gerações

Destaques

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12 de dezembro a 25 de dezembro de 2012

Filomena Oliveira e Miguel Real Joaquim Benite foi não só um dos grandes encenadores portugueses e europeus e um dos mais empenhados e mais lúcidos “ trabalhadores do teatro” ( como se auto-classificava) da segunda metade do século XX, como a sua visão no teatro se integrava num explicito projecto cultural para Portugal, alimentado por quatro veios nervosos, que, cruzados e unificados na criação da Companhia de Teatro de Almada (CTA) e do Festival de Teatro de Almada, lhe desenharam uma vida de luta, de resistência e de esperança, ora extinta fisicamente mas espiritoalmente. Em primeiro lugar, uma conceção cosmopolita e internacionalista da arte da representação, recusando nacionalismos ideológicos ou sectarismos políticos, fazendo a Companhia participar nos grandes movimentos teatrais europeus, tanto na criação de espetáculos quanto na receção deste fossem europeus, mediterrânicos, africanos ou da América Latina. Não só por Joaquim Benite mas sobretudo também por ele, passou grande parte da internacionalização do teatro português a partir da década de 1980. A estratégia de internacionalização da CTA, concretiza poderosamente na criação e realização anual do Festival de Teatro de Almada, foi absolutamente singular no espaço cultural português e devia merecer um detalhadíssimo estudo de caso, próprio de uma tese de doutoramento. Não se tratou de ir ao estrangeiro de apresentar espetáculos ou de receber estes em Portugal. Diferentemente, cada peça recebida constituía objeto de estudo de modo a preencher uma lacuna ou uma atualização no processo formativo português ligado à arte do teatro. Em segundo lugar, um apurado conhecimento estético do teatro. Poucos encenadores portugueses possuíram porventura o conhecimento pormenorizado a historia do teatro que Joaquim Benite possuía, a correntes dramatúrgicas, os fundamentos filosóficos das diferentes opções de encenação, as matrizes da caracterização de personagens, o leque de opções na construção de diálogos, as harmonias entre luz, música e palavra.

Verdadeiramente, de peças clássicas encenadas realisticamente a peças modernistas encenados vanguardistamente, nenhum grande texto de teatro, reflexo de uma vibrante corrente cultural, esteve ausente dos palcos dirigidos por Joaquim Benite; nenhum grande autor teatral europeu da Grécia clássica ao pós – modernismo francês e inglês, esteve ausente do reportaria da CTA – e tanto encenou Corneille e Racine, Goldoni e Shakespeare, quanto Brecht e Thomas Bernardt, bem como autores portugueses, como por exemplo, Almeida Garrett, José Saramago, Virgílio Martinho e Rodrigo Francisco. Em terceiro lugar, a sua aposta na descentralização cultural. Não foi a única, como evidenciam o CENDREV, em Évora o teatro da Serra do Montemuro ou o Bando, em Palmela, entre outros. Mas é indubitavelmente – a de maior projeção nacional e internacional, tendo ajudado vigorosamente a colocar no mapa cultural português e europeu uma cidade sem historia dos subúrbios lisboetas como Almada. Vasta pensarmos na Amadora, no Cacem, em Loures, Oeiras ou em Setúbal para de imediato percebermos, culturalmente falando, Benite e os seu companheiros injetaram um pujante acrescento cultural, tornando-se, de certo modo, o rosto cultural da cidade para efeitos exterior. Justifica-se, assim, que o município retribuísse o prestigio acrescido que a Companhia trouxera para a cidade atribuindo-lhe a direção do “Teatro Azul”, atualmente um dos melhores teatros europeus e uma bela peça de arte arquitetónica. Finalmente, em quarto lugar, a busca e a conquista de uma ampla base popular para a sua companhia e para o seu Festival. Quem frequenta as suas instalações (as antigas e as atuais) sabe que nas cadeiras de Almada se misturam o intelectual mais bairoaltino com o trabalhador mais tradicional, irmanados no objetivo de aliar o prazer estético com o empenhamento cívico do cidadão. Uns privilegiarão mais esta última vertente, outras aquela, mas todos encontravam no repertório da CTA e do Festival motivo suficiente tanto para o prazer dos sentidos quanto para a reflexão interventiva.

Espera Um pouco Vitor Gonçalves Ainda não me conhecia quando o conheci. Tinha 17 anos e não sabia que iria fazer, deste homem, a razão da minha busca. A sua paixão contagiou-me e tornou-se tão minha que já as não sabia separar. Em noctívagos solilóquios instruiu-me e ensinou-me a ver. O que lhe devo? Tudo. Que falta me faz? Toda. O que mais me assalta a memoria? A sua pertinácia. “A única razão porque uns fazem teatro e outros não é porque, os que o fazem, nunca desistirão de o fazer. A que espécie pertences tu?” Durante 27 anos zanguei-me com a sua teimosia todas as noites, só para descobrir, manha rompida, que era ele que tinha razão. Esmagava-me quando eu me deborcava por sob a minha vaidade: confortava-me quando me escondia dos meus fracassos. Não sei se somos aquilo em que nos tornamos ou se nos tornamos naquilo que somos, nunca o percebi. Mas o Joaquim era aquilo que eu queria ser: a tenacidade feita corpo, a convicção feita verbo. Uma barragem contra a maré de estupidez e de ignorância que tantas vezes ameaçou submergirnos e que, não fora a sua energia apocalíptica, teria vingado. Acreditava inabalavelmente na bondade intrínseca do ser humano: em quase três décadas não me lembro que alguma vez tenha despedido alguém só porque na alma, assumia que os fracassos dos que com ele colaboravam eram, antes demais, os seus. Nunca se cansava de ensinar, - os atores, os assistentes, os técnicos, a senhora do bar, as senhoras da limpeza, os vagabundos, o tipo que encontrava na rua por acaso, os ardinas, os varredores, e a mim também.

“Nenhum grande texto de teatro, reflexo de um vibrante corrente cultural, esteve ausente dos palcos dirigidos por Joaquim Benite Esta foi a base do segredo de Joaquim Benite – a não separação entre a representação ( o teatro) e a vida real, social, politica, económica ou, noutras palavras na aliança inextrincável entre o deleite estético e empenhamento cultural. Transformar uma peça num motivo cultural significa vincular o teatro ás suas raízes sociais mais fundas, integrando-o, como lição para o presente histórico, no movimento social de que se originou e foi expressão. Caro Joaquim, Não nos víamos á um ano. Não voltaremos a encontrar-nos. Lamentamos. Nós é que perdemos a lição de um Mestre, habitualmente enquanto jantávamos ou no convívio a seguir ás estreias. JL

Era profundamente socrático na sua pedagogia. Às vezes – a minutos da estreia – era capaz de – como se o tempo também parasse para o escutar – divagar em rodopiantes e alarmantes considerações sobre assuntos que – para os encantos que se fazem surdos ao conhecimento – pareciam pura perda de tempo. Conversava, conversava, e voltava a conversar e, quando parecia que nada tinha acontecido a cena resolvia-se o dinheiro aparecia as estratégias de defesas estavam montadas. “È isto a morte” – dizia-me então – “È assim mesmo, não deve ser difícil. È quando já não posso prenunciar nem mais uma palavra, fazer um só gesto, jogar num jogo quando o meu corpo exige estender-se e os meus olhos se fecham que, só então, quero repousar. Não gosto que um dia passe sem que me encontre exausto.” È o meu interno Mestre. O Luís Vicente e eu, por razoes diferentes, e momentos distintos, um dia separamo-nos – só fisicamente – dele, mas, ainda hoje, quando em privado a ele nos referimos, é assim que o tratámos: - “o nosso Mestre”. Mas... Já basta de verborreicos panegíricos! Joaquim é simples: não podes desaparecer assim. Não vale a pena lembrar-te a obra, nem auspiciar-lhe este ou aquele futuro, não tenho forças para palavras de conveniência. Joaquim, agora a Teresa já não te pode valer, nem eu, nem o Rodrigo. E como lamentámos. Choro. Ligo o teu numero e nada. Porque não atendes? Senão respondes que faço agora? Desde que parti que procura perceber porquê. È sempre em ti que penso em cada êxito ou derrota que enfrentei depois. Haverá Verdi no teu enterro amanhã? Sempre que me pedias. “No meu funeral tens que por esta música...” e a cantarolavas com voz rouca eu ria-me e afugentava a realidade trágica que esta madruga me revelou. Mas não importa. Cria a cena, barafusta o que for necessário e não saias daí. Nós, os que te amamos estamos a caminho. JL


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Tinha no desenho a sua linguagem e na curva a sua assinatura, espalhada por centenas de obras únicas e inconfundíveis, em numerosos países. Construiu Brasília e morreu a 5 de Dezembro, no rio de Janeiro, a dez dias de cumprir 105 anos. Além de um genial arquiteto, que recebeu os mais importantes prémios, incluindo o Pritzker, em 1988, desapareceu um homem generoso e empenhado na luta contra as injustiças. O JL, que lhe dedicou nemerosas matérias (ler comentário de JCV na p.3), recorda-o aqui através das suas próprias palavras e das de outros artistas e arquitetos, algumas delas publicadas nestas colunas


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“Meu nome deveria ser Óscar Ribeiro de Almeida de Niemeyer Soares. Ribeiro e Soares, de Portugal; Almeida, árabe, e Niemeyer, alemão. Sem contar algum sangue negro ou índio que, como se sabe, faz parte de toda a família brasileira. Uma mistura de raças que me faz bem integrado na mestiçagem de meu povo.


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A ARQUITECTURA? VALE REPETIR. O importante é a vida, os amigos, este mundo injusto que devíamos mudar. O resto… Vivemos num regime capitalista, e seus governantes, por mais progressistas que sejam, nada de essencial nos oferecem. Representam essa sociedade de classes, de ricos e pobres, de sem-terra, de sem-tecto, que só a revolução pode modigicar. PARA SE SER UM BOM ARQUITECTO é preciso fazer o que se gosta e não ter medo de errar, não olhar para a crítica. EU ACHO QUE OS PROJECTOS QUE FIZ NA EUROPA são os melhores, o acabamento foi melhor. Eu fiquei com aquela preocupação de mostrar o progresso do país não apenas no campo da arquitectura mas também no campo da engenharia. As obras são mais amplas, os vãos são maiores. Mas o projecto que eu mais gosto é esse que fiz para o Memorial da América Latina. Pela liberdade que o tema me dava. Vou-te contar uma coisa que você vai ficar espantado. Fiz o projecto em cinco minutos. Eu estava no hotel, fiz uma perspectiva, como quem estava vendo uma coisa que estava surgindo. UMA VEZ ESCREVI UNS CONTOS, mas achei que estavam uma merda e joguei fora. Mas um dia vou escrever, sabe porquê? Porque eu gosto de escrever. Quando não tenho ninguém para esperar, eu escrevo, qualquer besteira. Gosto de ver uma prosa limpa, correcta. ENORME PLASTICIDADE da linguagem arquitectónica, possível devido a uma perfeita simbiose formal entre um invólucro muito livre e imaginativo. MINHA ARQUITETURA NÃO ACEITA COMPROMISSOS, visa a beleza e a intervenção, sem cair em pequenos detalhes, atuando, isso sim, nas próprias estruturas, nas quais se insere e se exibe desde o primeiro traço.

Poema da curva Não é o ângulo reto que me atrai Nem a linha reta, dura, inflexível, criada pelo homem. O que me atrai é a curva livre e sensual, A curva que encontro nas montanhas Do meu país, seus rios, Nas ondas do mar, No corpo da mulher perferida. De curvas é feito todo o universo, O universo curvo de Einstein.

MINHA ARQUTETURA PREFERIDA: bela, leve, variada, criativa, criando surpresa. TUDO COMEÇOU quando iniciei os estudos da Pampulha desprezando deliberadamente o ângulo reto tão louvado e a arquitetura racionalista feita de régua e esquadro, para penetrar corajosamente nesse mundo de curvas e retas que o concreto oferece. O MEU ESCRITÓRIO FOI SEMPRE DE MUITA BOMÉMI A, mas que não prejudicavam o trabalho. A gente era jovem. Às vezes fechávamos o escritório e fazíamos uma semana de arte e brincávamos um pouco. AH, BRASÍLIA, COMO LUTÁMOS PARA TE REALIZAR! Como me espanto lembrado que foste em quatro anos apenas, respeitando as nuances do plano - piloto do Lúcio Costa, com tuas ruas, praças, prédios de apartamentos e palácios! Mas quantas alegrias e angústias tu nos deste! NUNCA ACREDITEI NA VIDA ETERNA. Sempre vi a pessoa humana frágil e desprotegida nesse caminho inevitável para a morte. O importante é dizer não aos que insistem em nos oprimir, incendiar o mundo, ricos e medíocres de mais para compreendê-lo. SEMPRE DEFENDI a importância que tem para qualquer arquiteto ou artista plástico uma boa experiência no desenho figurativo. Mesmo se na sua profissão não tiverem interesse ou necessidade de desenhar uma figura humana, naquela prática lhe dará a habilidade manual do desenho à mão livre. NUNCA OLHO PARA TRÁS nunca me critiquei pelas faltas cometidas. Sou filho da natureza, um pequeno e humilde ser nela inserido para ela transfiro – em parte, pelo menos – minha qualidades e defeitos. DUAS COISAS GUARDO COM SATISFAÇÃO. Uma é esse desinteresse pelo dinheiro, que mantive por toda a vida; a outra, minha vontade de ajudar as pessoas, ser-lhes útil. A VIDA É ASSIM: TEMOS DE SEPARAR AS COISAS. É chorar chorar e rir a vida inteira. Aproveitar os momentos de tranquilidade e brincar um pouco. E os outros é aguentar. A vida é um sopro.

NINGUÉM IMAGINA quantas vezes trabalho graciosamente, como fico longos períodos colaborando sem nada receber; como divido com meus amigos os projetos que elaboro, convidando-os para participar comigo. BRASIL... Muitas vezes me senti jacobino ao defender meu pais no exterior. Ao recusar as criticas, não raro justas, feitas muitas vezes num tom amigo e conselheiro. Mas, não sei porquê nunca as tolerei. Lembro-me um dia, em paris, da minha resolta quando alguém começou a criticar o Brasil, as despesas imensas que eram feitas, as obras gigantescas que surgiram, quando a situação, diziam, exigia politica mais económica e realista. E não me contive, ponderando que tudo isso era natural – uma espécie de moléstia infantil, inevitável nos países em vias de desenvolvimento. E explicava que o Brasil era um continente. Um país jovem, que tudo justifica.

A MONUMENTALIDADE nunca me atemorizou quando um tema mais forte a justificava. Afinal, o que ficou da arquitetura foram as obras monumentais, as que marcam o tempo e a evolução da técnica. As que , justas ou não sob o ponto de visita social, ainda nos comovem. É a beleza a se impor na sensibilidade do homem. SEMPRE QUE VIAJO, olhar para as nuvens é a minha distração perdileta, curioso, procurando decifrálas como se estivesse em busca de uma boa e esperada mensagem. COMO TODOS OS ARQUITETOS da minha geração tive grande influência da obra de Le Corbusier, que pela nossa arquitetura, por sua vez, se entusiasmou. Encontrar os amigos, esquecer um pouco nossas angústias, rir, mesmo sem muita razão para isso, é um velho um velho hábito.

TODOS TEMOS DENTRO DE NÓS UM SER OCULTO, que nos leva para um lado ou para outro. E o meu gosta dessas ACHO QUE TUDO VAI DESAPARECER. O tempo cósmico coisas, de mulher, de se divertir, de chorar, de se preocupa é curto. Já me perguntaram : não lhe dá prazer saber que mais tarde vamos passear ver o seu trabalho? Mais tarde a com a vida, é um sujeito complicado. gente desapareceu também. É a evolução da natureza. Tudo PREFIRO A LINGUAGEM SIMPLES, do quotidiano. “A nasce, acaba, o tempo que isso vai perdurar é relativo. literatura engrandece quando se aproxima da linguagem QUANDO ME PEDEM UM PRÉDIO oral”, disse Morávia numa das suas entrevistas. Mas se os livros de conteúdo social me entusiasmavam, outros, que nada disso oferecem, também me atraíam. Era a pureza literária a dispensar outros predicados, embora, juntos, pudessem, sem dúvida, enriquecer ainda mais. Como a beleza se impõe!


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OS PROJECTOS PARA PORTUGAL E EM CURSO A primeira pedra nunca foi colocada, nem há certezas enquanto só financiamento, sobretudo neste período de grandes constrangimentos orçamentais. E esse parece ser o destino das obras do arquiteto brasileiro para Portugal. “Um facto que lamento profundamente”, afinal ao JL Amândia Silva, lembrando o adiamento da construção da sede da Fundação Luso Brasileira, na Quinta dos Alfinetes. “Foi um projeto que Niemeyer ofereceu a Lisboa e que sempre esperou que viesse um dia a ser construído”, acrescenta. As obras chegaram a começar, construíram-se as fundações e o primeiro andar, nos terrenos cedidos pela câmara, mas o projeto acabou por ser suspenso. Várias entidades que se comprometerem com o financiamento acabaram por recuar.

Sem meios para concluir obra, a Fundação Luso Brasileira devolveu o terreno a câmara Municipal de Lisboa e liquidou as dívidas junto dos fornecedores. A hipótese de voltar a avançar com a obra, que chegou a ser equacionada como sede da Comunidade de Países de Língua Oficial portuguesa, poderá estar a cima da mesa. Amândio Silva chegou a reunirse com o anterior Governo, mas a actual conjuntura não favorece a obra. Várias entidades que se comprometerem com o financiamento acabaram por recuar. No Brasil, estão em curso três, o Memorial Encontro das Águas, em Manaus, e a Igreja Adventista do Sétimo Dia, em Belém do Pará, e a Universidade da Iguaçu, no Paraná. Em África, tem a Biblioteca de Zeralda, na periferia da capital da Argélia, e em França, o edifício de boas vindas do Chateau Lacoste. JL

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No seu atelier, no grande ecrã de cores florescente, onde nos últimos anos trabalhava por causa dos problemas de visão, Óscar Niemeyer ainda reviu, a poucas semanas da sua morte, o projeto que concebeu para o Museu da Arte Contemporânea de Ponta Delgada, adianta ao JL Amândio Silva, ex-secretário – geral da Fundação Luso Brasileira. A contrastar com as cores fortes do ecrã, o risco do arquiteto que reinventou, com a sua arquitetura, a alma moderna brasileira. Três salas de exposições espalhada por um edifício com duas cúpulas. A uni-la uma via deponal onde poderá também ser criado um auditório. Este é um dos tês projetos que Óscar Niemeyer fez para Portugal mas que ainda não foram concretizados. A inauguração da obra chegou a estar prevista para este ano, antes das eleições legislativas, mas não passou de boa vontade.

Cinco obras emblemáticas Da esp.ª para a dir.: Museu Nacional Honestino Guimarães, em Brasília; Centro Niemeyer, em Espanha; Museu de Arte Comtemporânea, em Niterói;


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Auditório de Ibirapuera, em São Paulo; Museu Oscar Niemeyer, em Curitiba

Um homem militante “Oscar Niemeyer teve uma vida muito bonita. Foi o maior artistas do seu tempo e um homem maior que a sua arte. CHICO BUARQUE Trata-se de ser fiel a princípios. E não a tácticas, estratégias de ordem política ou conquista de poder. Não tem nada que ver com isso. Simplesmente trata-se de princípios e não se pode renunciar a eles. O Oscar Niemeyer não renunciou eu eu não o felicito por isso,nem lhe agradeço porque simplesmente é uma expressão da sua própria humanidade. Eu creio que é uma pessoa que está em paz consigo mesmo. E estar em paz consigo mesmo não é fácil. Porque vivemos num mundo de contradições, de tensões, no fundo vivemos num temporal e manter o rumo no meio desse temporal, com ventos que sopram de todos os lados, isso Oscar conseguiu. JOSÉ SARAMAGO A arquitectura de Niemeyer respira naturalidade e intemporalidade , superando as noções estereotipadas de tradição e de modernidade. A construção faz a Natureza. ÁLVARO SIZA VIEIRA

Oscar é um homem militante, engajado na luta pela igualdade social, pela transformação da sociedade, mas enquanto arquitecto quando faz os seus projectos o que ele quer dar às pessoas é beleza, alegria da forma bela, porque sabe da importância e maravilha da beleza. Ele diz que quer que as pessoas se espantem. FERREIRA GULLAR Personagem solitária do seu percurso de corredor de fundo, difícil de fazer escola pela constante imprevisibilidade dos gestos, sobrevive ao barulho da arquitectura contemporânea recente que deles, gestos, abusa até à náusea. Há gestos e gestos: uns ficam, a maioria «dissolve-se no ar» ou seja, no tempo. NUNO PORTAS Percebemos que homem extraordinário, que grande intuição tem para conseguir captar o essencial da sua arquitectura num desenho tão rápido. Porque consegue chegar muito depressa à síntese e de uma forma muito consistente. MANUEL GRAÇA DIAS

A sua capacidade de antecipar a modernidade em cada momento é o que mais me surpreende. Uma alma tão consistente merece um corpo de o acompanhe. ALCINHO SOUTINHO Num continente em parte desconstruído e em parte não construído pode conceber-se outra opção que não seja a de tentar construir? É este optimismo que Niemeyer se sente no direito de transmitir aos povos condenados a cem anos de solidão – de que terão, por fim e para sempre, uma segunda oportunidade sobre a terra, como obra maior a exibir uma dignidade arquitectural irrecusável, criativa, diferente, livre do passado distante. ALEXANDRE ALVES COSTA A arquitectura é uma arte pública e os «objectivos» desenhados por Oscat Niemeyer são exemplos paradigmáticos, com traço inconfundível, sempre com selo de origem. Felizmente continua a haver lugar para «objectos» exepcionais. MANUEL SALGADO


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O diálogo transatlântico através de Carlos Fuentes

Carlos Fuentes era um homem de encantador convívio e múltiplos talentos – romancista, contista, ensaísta, diplomata. Era, ademais, um homem elegante, inclusive no trajar – o que surpreendeu José Saramago que afinal concluiu que somar exigência crítica com gravata bem escolhida não era coisa pequena (JL, 30 de Maio de 2012). Tinha o dom de gentes e sabia ser um agregador. Exerceu superiormente esta dimensão de agregador no âmbito do Foro, dimensão relevante para uma instituição como a nossa que reúne, e esta é de várias tribos – a dos empresários, a dos políticos, a dos intelectuais, a de personalidade dos meios de comunicação.

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Celso Lafer *

A capacidade de lidar com a diversidade de várias tribos do nosso Foro e exercer a função de agregador teve a sua correspondência na diversidade das direções e escrituras que sempre foram um signo de vitalidade da obra de Carlos Fuentes (CF), como apontou com discernimento Octávio Paz em Solo a dos voces. Assim, respondeu ao estímulo de promover a diversidade inerente ao dialogo transatlântico no âmbito do nosso Foro da mesma maneira que na sua obra respondeu aos múltiplos estímulos do seu “eu” literário.

No âmbito de múltiplas direções do percurso de CF vou cingir-me ao seu papel no diálogo transatlântico. Vou explorar o tema, tendo como foco a sua dimensão de intelectual público, que foi uma faceta importante da sua personalidade literária – como foi a de Octavio Paz e é a Mario Vargas Llosa. O tema intelectual público diz respeito à relação entre os intelectuais e o poder, ou seja, aos nexos ente política e cultura – para falar com Bobbio, autor do grande livro II dubbio e la scelta – Intellecttuali e potere nella società contemporanea (1993). Nas democracias modernas e pluralistas o poder ideológico – que é o que se exerce sobre as mentes através da produção e transmissão de ideias – é fragmentado. É um poder exercido pela palavra e pela sua difusão de impacta os comportamentos. A política contemporânea em sociedades complexas requer este tipo de poder que está ao alcance dos intelectuais. Refiro-me tanto àqueles intelectuais que têm o domínio dos conhecimentos técnicos necessários para equacionar a relação meios-fins, como é o caso dos economistas, dos juristas, dos educadores, dos engenheiros, dos especialistas em meios de comunicação, quanto àqueles intelectuais que propiciam, para a sociedade e para o poder – em exercício ou potencial – principais gerais, valores, sentido de direção. Fuentes, como intelectual público, preocupou-se e ocupouse de princípios/valores/sentido de direção. Exerceu a tarefa intelectual de agitar ideias, suscitar problemas (Bobbio, p 127) no âmbito mais amplo do espaço público. Um destes espaços que ele ajudou a criar foi o Foro. No âmbito do Foro, exerceu esta tarefa de intelectual público, como diria Bobbio, com espírito laico, vale dizer que o espirito critico que se opõe ao dogmático (Bobbio, p.130) – o que significa que este espirito laico pode ser exercido a partir de distintas posturas.

O seu ponto de partida de criador literário e grande narrador foi instigado pelo desafio de entender o México (os cinco sóis de um país que não tem começo mas tem origem – Os cinco soles de México, pp. 7-9) e lidar com os caminhos e descaminhos da Revolução Mexicana (por exemplo: La Muerte de Artemio Cruz, Los años com Laura Diaz). Entretanto, a sua ficção e a sua ensaística não se circunscrevem aos estímulos da criação dada pela circunstância mexicana do seu eu literário e intelectual. Para voltar a Octavio Paz: “en CF, por ejemplo, coexisten varias voces y cada una de esas voces, cada uno de esos dialectos, es igualmente sujo: como determinar que es mexicano y que es lo extraño en esa pluralidade? Lo mexicano es el choque a la confluencia de todas esas voces…” (Entrevista a Rita Guilbert – Obras Completas – Miscelânea III, p. 421). Na confluência destas múltiplas vozes, tem um papel relevante a voz da literatura em língua espanhola, mas também a voz da língua portuguesa da literatura brasileira. Por essa razão, é um agudo e sensível estudioso e dos grandes romances latino-americanos – e não posso, como brasileiro, deixar de destacar o arguto apreciador de Machado Assis, Machado de La Mancha, que considerava como o único romancista americano do século XIX.


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O primeiro verbete de En esto creo intitula-se América Ibérica. Para os propósitos desta minha intervenção, pondero que não se trata apenas de um caso alfabético. Carlos acreditava na América Ibérica porque via o Atlântico não como um abismo mas sim como uma ponte dos vários encontros dos quais resultamos. Estes encontros são uma expressão das varias vozes que, como mencionei citando Octavio Paz, caracterizam a pluralidade da sua escrita. É por isso que a sua crença na América Ibérica é tão profunda e explicativa da sua militante dedicação ao Foro Iberoamerica e ao diálogo transatlântico que constitui a sua razão de ser. Neste diálogo CF empenhou-se em incluir Portugal e o Brasil que são a outra face do mundo ibérico, - a da cultura e da política lusitana e brasileira, que se expressam em português e têm, com a que se expressa em espanhol. Por obra da História e da Geografia a herança de um compartilhado repertório de significados. Carlos Fuentes Acreditava na América Ibérica porque via o Atlântico não como um abismo mas sim como uma ponte dos vários encontros dos quais resultamos obviamente, no meio do livro- “no meio do caminho está a pedra” – como diria Carlos Drummound de Andrade – a pedra dos cinco sóis – situa-se o verbete México, que é o ponto de partida para a sua reflexão sobre a América Ibérica. O México é, para ele, o retrato de uma criação que nunca descansa porque ainda não concluiu a sua tarefa. É como a literatura, para António Cândido, uma actividade sem sossego. Também o diálogo transatlântico é uma actividade sem sossego.

Entre os muitos verbetes de En esto creo, deixo de lado o que dizem respeito ao mundo da vida ou à cultura no sentido amplo. Vou fazer referência apenas a alguns que são relevantes para perceber o sentido da direção de natureza política, subjacente ao modo como, concebia o diálogo transatlântico, destaco os verbetes: (i) Esquerda- na qual aponta que a globalização permite à esquerda chamar a atenção sobre a dicotomia crescente entre o espaço económico e observa que se o capitalismo propõe as razões da economia do consenso político, para concluir que, no meio-termo entre ambos, a esquerda é o espaço político no qual os mais fracos da sociedade. (ii) Globalização – como tema do final do século XX que se prolonga no século XXI e que, com o Deu Jano, tem duas faces – que vem levando a união de Creso – o dinheiro e o Hedonismo – o prazer. Esta união permite que os vícios da aldeia global façam surgir os vícios da aldeia local – os tribalismos, os nacionalismos redutores e Chauvinistas, a xenofobia, os preconceitos raciais e culturais. Neste contexto nega a política do avestruz que esconde a cabeça na areia, e a do touro que destrói tudo na loja de louças, e evoca, como caminho, globalizar a solidariedade tal como proposto por Fernando Henrique Cardoso no memorável discurso pronunciado em 30 de outubro de 2001, que tive o privilégio de ouvir, acompanhando-o como seu chanceler (cf. Palavra do Presidente 14, 2001, pp. 499-505).

O sentido de direção do diálogo transatlântico que CF, com sucesso, empenhou-se em imprimir ao Foro, está intimamente ligado à sua conceção de intelectual público. Neste sentido, um livro modelar desta sua conceção é o seu livro En esto creo, de 2002, publicado no Brasil em 2006 pela Rocco, com o título Este é o meu credo. O título em espanhol é mais revelador. Permite evocar a distinção que Ortega y Gasset elaborou entre crenças e ideias.”Las ideas se tienen, en las creencias se está”. Aponta Ortega que crenças não são ideias que temos, mas sim ideias do que somos. As crenças em que estamos nos sustentam e são o fundo a partir do qual pensamos as ideias que resultam da nossa actividade intelectual. As ideias, complementa Ortega, necessitam de crítica como o pulmão de oxigénio e se afirmam apoiando-se em outras ideias que, radicadas em nossas crenças, nos permitem enfrentar o mar de dúvidas que nos envolvem (cf. Ortegay Gasset, Ideas y Creencias, Madrid, Alianza Edit., 1986, pp. 23-38). En esto creo é um livro da maturidade de CF. É uma decantação do seu percurso intelectual público. O livro é constituído por pequenos verbetes que são a elaborada expressão das ideias que resultam das suas crenças. Estes verbetes são entradas, também na aceção históricogeográfica brasileira, ou seja, vias de acesso – caminhos mas também fronteiras – para o entendimento de problemas do continente das nossas preocupações. Está alfabeticamente organizado de A a Z. Estes verbetes lidam com os temas que dizem respeito às muitas circunstancias que cercaram não só o “eu” de CF, mas cercam o nosso contemporâneo.

É claro que CF, a partir do eu da sua circunstância, não deixa de examinar os vários paradoxos da Revolução Mexicana para concluir que a Revolução, no século XXI, como um novo início, que não se confunde nem com a revolta nem com a rebeldia, requer pluralizar o mundo e valorizar dialogicamente as diferenças étnicas, políticas, religiosas, sexuais e culturais. Daí o significado do verbete xenofobia, no qual destaca a importância do ato fraternal num mundo globalizado rodeado de abismos. O verbete está permeado pela sua convicção de que as culturas perecem no isolamento e prosperam na comunicação. Daí o alcance do diálogo transatlântico, no qual se empenhou. Concluo lembrando que, no verbete Sociedade Civil, CF destaca a sua importância, reflete sobre o terceiro setor e sobre as várias modalidades da sua articulação e presença. Lembra que o terceiro setor tem um pé na sociedade e outro nas instituições e pode enriquecer as instituições públicas e privadas e abrir horizontes em um mundo em transformação. O Foro Iberoamerica e o diálogo transatlântico como um terceiro setor sui generis vem cumprindo estas funções inspirados pelo saber com sabor que é como podemos definir a sabedoria de um grande intelectual público como foi Carlos Fuentes, que animou e vivificou a nossas atividades desde o seu momento inaugural.

* Celso Lafer é prof. catedrático de Filosofia do Direito da Universidade de São Paulo (USP) e tem uma vasta obra em vários domínios, incluindo o da Ciência Política. Entre muitos outros cargos, foi embaixador do Brasil na ONU, ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio e, duas vezes, ministro das Relações Exteriores. É membro da Academia Brasileira de Letras. Este texto tem com base a sua intervenção no recente XIII Foro Iberoamérica, em Cartagena de Indias. Recorde-se que Carlos Fuentes, que também integrava o Foro, morreu em 15 de maio último, tendolhe o JL dedicado várias matérias na sua edição de 30 de maio, que Lafer cita. JL


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A Paixão das ideias

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Guilherme d’Oliveira Martins

A leitura do tempo tem sempre magia e permite-nos partir daí para a perceção da vida. Ao acabar de publicar O Ano XX, Lisboa 1946 – Estudo de Factos Socioculturais: Dois homens, uma só obra (Imprensa Nacional – Casa da Moeda), José-Augusto França prossegue uma obra multifacetada, incansável e minuciosa, onde se têm incluído estudos de tempo, que nos permitem compreender os acontecimentos emblemáticos de determinados períodos, partindo daí para o entendimento do país e do mundo, uma vez que a história sociocultural permite chegarmos à visão de conjunto, sobretudo, quando o cicerone é referência da história da arte europeia e mundial, como afirmou a diretora – geral da UNESCO, Irina Bokova, na bonita mensagem que enviou no dia em que o mestre perfez a bonita (e jovial, diga-se abono da verdade) idade de nove décadas. Lembramo-nos de Os Anos Vinte em Portugal (1992), Lisboa, 1898 (1998), Lisboetas no Século XX – Anos 20, 40 e 60 (2005) e O Ano X – Lisboa 1936 (2010), e esses antecedentes constituíram preciosos meios para a compreensão histórica de anos significativos. Desta vez, deparamo-nos no pórtico da obra com uma homenagem, merecida e significativa, a um primeiro companheiro desses anos, um jornalista, ficcionista e etnólogo que em 1946 (um ano depois de Calenga) escreveu A Maravilhosa Viagem dos Exploradores Portugueses, sendo obrigado a deixar na gaveta um romance de denúncia anticolonialista, Terra Morta. Falo de Fernando Castro Soromenho (1910 – 1968), exemplo de intelectual e resistente, analista lúcido da emancipação africana. O Ano XX é um ano chave da chamada “Revolução Nacional”, o ultimo a ser assinalado desse modo, já de fugida, ressoando a ironia imperial. É o ano a seguir ao fim da guerra e por isso parece ser de um certo alívio, apesar de todas as esperanças frustradas.

Onde a noite se acaba... E, quase surpreendentemente, ouve-se a voz de Oliveira Salazar a dizer: “Quando um país encontra, como Portugal, uma linha conveniente de pensamento e de ação política, assente em segura experiência, é desassisado trocá-la, dando atenção ás vozes, aliás, dissonantes, que se erguem das ruinas e das divisões da Europa a apregoar sistemas salvadores”. Mas, no essencial, isso serve para concluir: “Não desejamos sair, pretendemos ficar”. Porém, num tom de certo humor, o inefável Borda d’Água, fazendo o juízo do ano, entre o conselho para plantar couves e orégãos e a indicação do tempo que faria, diz: “Estão todos a olhar uns para os outros como quem diz: Que vai sair disto tudo? E a resposta ninguém atina com ela”. De facto, a obra procura, à distância do tempo, responder à questão em 15 capítulos, organizados com critério e minúcia. Começa com os ecos do fim da terrível guerra e com a revista Time a apresentar Salazar como o decano dos ditadores (uma maça apodrecida e uma pergunta” Até que ponto em Portugal o melhor é mau”…). Armindo Monteiro regressara de Londres sob a suspeita de excessiva anglofilia (1943), mas agora havia que elogiar, sem alardes, a vitória aliada.

De facto, havia leves esperanças, velhos republicanos como José Domingues dos Santos esperam que os ventos novos sejam propícios e regressam. Realizam-se eleições (novembro de 1945), mas a continuidade prevalece. O ano de 46 é charneira em que os Aliados hesitam quanto à questão ibérica, por proximidade excessiva da Guerra Civil espanhola e por receio de mudanças bruscas. As prometidas “eleições tão livres, como na livre Inglaterra” tornam-se uma miragem. Francisco Valença, no Sempre Fixe, lembra ambiguamente para o ato eleitoral, o carneiro com batatas, comparado com as batatas a três escudos o quilo. O certo é que Salazar quis ficar, recusando a saída. O director Reuters, Douglas Brown, é expulso por simpatias oposicionistas, como a revista Time passou a estar proibida… É o tempo da criação do MUD, Movimento de Unidade Democrática, criado em 8 de outubro de 1845, ilegalizado em 1948, e José – Augusto França (JAF), com conhecimento de causa, fala-nos do processo das assinaturas e das intimidações, apresentadas por Marcelo Caetano ao contrário do que realmente aconteceu. A lista dos mais prestigiados intelectuais, que participam ativamente, é significativa: António Sérgio, Ferreira de Castro, João de Barros, Lopes Graça, Ramada Curto, Aquilino Ribeiro, Vieira de Almeida, Palma Carlos, Joaquim de Carvalho, Azeredo Perdigão, Vitorino Nemésio, José Régio, Casais Monteiro, António Pedro, Hernâni Cidade. Mas, naturalmente, a “situação” acena com o “período comunista”. E o autor, tem absoluta razão ao dizer que então, para Salazar, era fundamental criar um “inimigo”, sobretudo com a guerra terminada. O presidente do Conselho, em 23 de fevereiro de 1946, fala de “ideias falsas e palavras vãs” e é muito crítico, especialmente para as Nações Unidas, para a reconstrução e para o processo de Nuremberga – estando em causa episódios, complacências e cumplicidades bem próximos. O tema do Império Colonial vem à baila, com a lembrança da tradição republicana do velho “ultimatum” inglês. Uma das curiosíssimas chaves da reflexão de JAF está no episódio que intitula significativamente como “Os Garotos”. O que estava em causa era a perceção por Salazar do crescente sentido crítico que ia minando a base do regime, em especial relativamente aos mais jovens, que tomavam consciência da abertura e da modernização. Depois das eleições ganhas inevitavelmente pela União Nacional, o líder quis ouvir os colaboradores. Afinal, o país legal “não se imbuíra dos princípios ideológicos e morais com que o Estado Novo pretendia definir-se”.


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Ecologia Viriato Soromenho Marques Alterações climáticas fora de controle

A política tornou-se numa máquina de cegueira colectiva.

A 18ª sessão dos países que subscrevem a Convenção das Nações Unidas para as Alterações Climáticas (UNFCCC, na sigla inglesa) terminou sem resultados sequer mediocremente satisfatórios (se é que tal expressão seria legítima…). Em 2009, na 15ª edição da referida conferência, as esperanças eram altas. A União Europeia ainda aparecia dominada por um propósito de querer fazer a diferença em prol de um combate efetivo às alterações climáticas. Na altura, apesar da crise económica, a União ainda não estava devorada pela fúria fratricida em torno das “dívidas soberanas”. Nos EUA. Um presidente Obama. Recém-empossado, Prémio Nobel da Paz, enchia o mundo de esperança numa nova política de responsabilidade ambiental dos EUA, depois de oito anos de autismo de George W. Bush. Depois, foi o fracasso. O desapontamento. A manifestação da mais completa irresponsabilidade. O que se passou em Doha foi o dobre de finados na esperança de que o Protocolo de Quioto, cujo prazo de validade irá expirar em 31 de dezembro próximo, pudesse ser substituído sem deixar um ruidoso vazio. Infelizmente, é isso mesmo que vai suceder. Apesar de todos os relatórios científicos apontarem para um agravamento da situação climática ao longo deste século. É neste momento realista pensar que a temperatura mundial poderá estar 4º C mais quente, por volta de 2100. A política tornou-se numa máquina de cegueira colectiva. Uma arma de destruição maciça. Mas a geração que deixou esta ignomínia ser possível não vai ter uma velhice tranquila. Num mundo devastado pelas alterações climáticas, a guerra de gerações, a perseguição aos mais idosos, acusados de irresponsabilidade para com as gerações que ainda não haviam nascido, será um dos temas culturais e securitários mais recorrentes. Não há crimes perfeitos. JL


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Onze livros, por exemplo

Destaques // Ideias

// de dezembro 12 de adezembro a 25 de de dezembro 12 25 de dezembro 2012 de 2012

Como nas letras, também aqui reunimos alguns livros acabados de publicar e a que ainda não tínhamos registado, sem prejuízo de a eles voltar. Livros que, como muitos outros que ao longo do ano assinalamos, poderão ser bons presentes nesta quadra Sendo, para este efeito, a ordem dos fatores arbitrária, começamos por dois livros sobre a História contemporânea portuguesa e que têm o ditador, Salazar, como “personagem central”.

Biografia também como não podia deixar de ser, sobretudo, mas não só, política, é a de Marcelo Rebelo de Sousa, da autoria, como é lógico, não de um historiador mas de um jornalista, Vítor Matos (Ed. A Esfera dos Livros, 712pp, 25 euros). Marcelo, 64 anos (feitos hoje, 12 de dezembro!), está aí, ativíssimo, como comentador político e político disfarçado ou sob as vestes de comentador, potencial candidato a Belém, etc., etc. Prof. de Direito e em certos períodos mais ou menos jornalista, sempre muito bem informado, talentoso, com enorme capacidade de trabalho, frenético, amigo dos amigos e intriguista, sabedor e imaturo, desde muito novo tem um percurso singular na vida, em especial na política do país (o pai foi ministro de Marcelo Caetano, seu padrinho).

O primeiro não é o típico livro de investigação, divulgação ou análise: dá-nos 41 anos de História(s) do Estado Novo (As palavras. Os factos) de uma forma original. Assim, entre 1933, quando se “institucionalizou” a ditadura, com a “aprovação” da Constituição, e em 1974, quando ela foi derrubada, a 25 de Abril, temos, ano a ano, os eventos mais importantes ou significativos de cada ano, sobretudo através ou a partir das palavras dos protagonistas, dos quais de fazem pequenas biografias, e entre os quais avulta, até 1968, Salazar. Há também uma breve referência ao que ocorre no mundo, transcrições ou excertos de documentos, regulamentos, iconografia, etc. Uma leitura, pois, muito interessante e ilustrativa de toda uma época, a desta obra de Marcelo Teixeira, licenciado em História, escritor e ex director da Oficina do Livro (Ed. Parsifal, 352 pp., 17,90 euros). O segundo é um dos mais reputados especialistas dessa época, historiador e prof. Da Universidade Nova de Lisboa, Fernando Rosas, e intitula-se Salazar e o Poder – a arte de saber durar (Ed. Tinta da China, 368 pp., 17 euros). Trata-se de um ensaio “sobre o processo de tomada do poder pela frente política liderada por ele”, que o autor escreveu, como sublinha, para “tentar perceber as razões da durabilidade do regime salazarista, a mais longa ditadura da Europa no século XX”. E os mecanismos que o permitiram, foram, segundo Rosas, o apoio da oligarquia e a composição dos interesses dominantes, o corporativismo, o papel das forças armadas e da Igreja Católica, a violência preventiva e repressiva, a apetência totalitária e o ‘homem novo’ salazarista.

De História é também, afinal, Melo Antunes – Uma Biografia Política, da igualmente prof.ª daquela universidade e investigadora, que se tem dedicado com especial atenção ao estudo (de vários aspetos) do 25 de Abril (Ed. Âncora, XXpp., 29 euros). Melo Antunes (MA), figura central do MFA, da descolonização, do período revolucionário, do “grupo dos nove”, da institucionalização da democracia na sequência do 25 de Novembro, foi, como salienta a autora, não só “um militar de carreira, mas muito mais: um grande intelectual, um ideólogo, um doutrinador – há quem lhe chame o intelectual fardado”. Rezola teve acesso a documentação inédita e, em seu juízo, “o papel do MA no processo revolucionário ganha novas cores com os dados agora descobertos e com a documentação disponibilizada na Torre do Tombo”. Quanto á dimensão humana e intelectual do principal autor do programa do MFA fala muito bem o prefácio do seu amigo António Lobo Antunes.

Biografia também como não podia deixar de ser, sobretudo, mas não só, política, é a de Marcelo rebelo de Sousa, da autoria, como é lógico, não de um historiador mas de um jornalista, Vítor Matos (Ed. A Esfera dos Livros, 712pp, 25 euros). Marcelo, 64 anos (feitos hoje, 12 de dezembro!), está aí, ativíssimo, como comentador político e político disfarçado ou sob as vestes de comentador, potencial candidato a Belém, etc., etc. Prof. de Direito e em certos períodos mais ou menos jornalista, sempre muito bem informado, talentoso, com enorme capacidade de trabalho, frenético, amigo dos amigos e intriguista, sabedor e imaturo, desde muito novo tem um percurso singular na vida, em especial na política do país (o pai foi ministro de Marcelo Caetano, seu padrinho). Vítor Matos fez um bom trabalho e dá, por vezes até com grande soma de pormenores, inclusive familiares, esse percurso. A biografia, esclarece o autor, além de 80 outras entrevistas, teve toda a colaboração do biografado, através de dezenas de horas de conversa, mas não lhe foi ‘submetido’ para leitura prévia. Mudando de área, para a Filosofia, chega às livrarias uma entrevista de João Maurício Brás a Onésimo Teotónio Almeida, que é em simultâneo um diálogo entre os dois, como aliás o criativo título indica: Utopias em dói menor – Conversas transatlânticas com Onésimo (Ed. Gradiva, 320 pp, 14,50 euros). Decerto mais conhecido como escritor, cronista e contador de histórias, Onésimo é um universitário, doutorado em Filosofia numa das mais prestigiadas escolas dos EUA, a Brown, em Providence, na qual é prof. nessa área, em particular de Ética (Brás doutorou-se na Nova de Lisboa). E tem uma obra filosófica, aliás em boa parte ainda não reunida em volume(s), como desse livro se vê, até agora talvez apenas devidamente valorizada no substancial volume de Miguel Real sobre a Filosofia em Portugal editado pela IN/CM. Pois estas muito interessantes “conversas” – às quais em breve o JL voltará - têm também o mérito de a divulgar e comentar, de chamar a atenção para ela, graças a JMB, que a conhece muito bem; e graças, claro, ao próprio Onésimo, à sua clareza e à forma como fala das coisas mais complexas da forma mais simples possível, sem ‘arrogância’, sem jargão e sem querer mostrar erudição… Prefácio de Carlos Fiolhais e posfácio de José Eduardo Franco.


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Três livros mais, muito diferentes, em (quase) tudo: 1) Vencer o medo – Ideias para Portugal, de Manuel Carvalho da Silva (Temas e Debates, 220 pp, 15,50 euros). São seis textos do até há pouco, e durante muitos anos, secretário-geral da maior central sindical portuguesa, a CGTP, que entretanto se doutorou em Sociologia e coordena o CES em Lisboa. Textos de intervenções, em várias circunstâncias, e designadamente naquela qualidade, sobre a situação social e política portuguesa, problemas e desafios, em particular no mundo do trabalho e do sindicalismo, contra a inevitabilidade das atuais políticas, apresentando e defendendo novas alternativas;

Enfim, para que não se diga que só falamos de livros e autores portugueses, duas notas finais sobre dois books a merecerem também mais larga referência. Um, muito polémico, do filósofo francês Michel Onfray, que, tendo ‘acreditado’ e deixado de acreditar, considera a psicanálise uma espécie de alucinação coletiva, apresentando-nos o seu criador como uma figura a vários títulos pouco recomendável ou mesmo condenável: intitula-se Anti-Freud (“e se lhe dissessem que Freud é uma fraude?”) e tem um equilibrado prefácio de J.L. Pio de Abreu, o qual salienta que Onfray “também matou o Deus que existia em Freud, permitido que, finalmente, o possamos ler sem atavismos religiosos” (Ed. Objectiva, 648 pp., 29 euros). O segundo, A Era Secular, um minucioso longo trabalho de investigação e análise (mais de 800 páginas compactas, em corpo pequeno) sobre a secularização do mundo, em que o autor, Charles Taylor, um filósofo canadiano de 81 anos, pretende “definir e delinear” a mudança que nos leva de “uma sociedade em que é virtualmente impossível não acreditar em Deus a uma sociedade em que a fé, mesmo para o mais sólido dos crentes, é uma possibilidade entre outras”. (Ed. Instituto Piaget, 820 pp., 57,24 euros)JL

E, até porque estamos no Natal, referência a um livro que tem como título uma pergunta de certa forma surpreendente: Quem foi quem é Jesus Cristo?. A ela respondem, sob vários ângulos, da sua “biografia impossível” a Jesus e as mulheres, de Jesus e o dinheiro a Jesus e a Igreja, dez autores. A saber: Anselmo Borges, Xabier Pikasa, Antonio Pinero, Juan A. Estrada, J. Ignacio Gonçalez – Faus, Isabel Allegro de Magalhães, Juan José Tamayo e André Torres Queiruga. A coordenação é de A. Borges – teólogo e docente da Un. de Coimbra, autor de uma assinalável obra neste domínio – que assina o texto introdutório, “De Jesus a Jesus Cristo” (Ed. Gradiva, 312 pp., 15 euros). Três livros mais, muito diferentes, em (quase) tudo: 1) Vencer o medo – Ideias para Portugal, de Manuel Carvalho da Silva (Temas e Debates, 220 pp, 15,50 euros). São seis textos do até há pouco, e durante muitos anos, secretáriogeral da maior central sindical portuguesa, a CGTP, que entretanto se doutorou em Sociologia e coordena o CES em Lisboa. Textos de intervenções, obre a situação social e política portuguesa, problemas e desafios, em particular no mundo do trabalho e do sindicalismo, contra a inevitabilidade das atuais 3) Julgamento – Uma narrativa políticas, apresentando e crítica da Justiça, por Laborinho defendendo novas alternativas; Lúcio (D. Quixote, 536 pp., 24,90 euros), é um misto de memórias/ histórias do autor, em especial como figura destacada daquele sector (desde delegado do MP e magistrado, na segunda metade da década de 60, a conselheiro, director do Centro de Estudos Judiciários e ministro da Justiça), e de um largo conjunto de opiniões, um ensaio, sobre esse sector da Justiça. E como o autor o conhece muito bem, sabe da matéria, escreve (como fala) com elegância e humor, a obra, a que voltaremos, recomenda-se ( ler nota de Jorge Listopad na pag.39).

2) Nos bastidores dos telejornais – RTP 1, SIC e TVI, da autoria de Adelino Gomes, um dos mais justamente conceituados jornalistas portugueses, com larga experiência de rádio, televisão e imprensa escrita, e que entretanto se doutorou em Sociologia nesta área, em que é agora investigador. Trata-se de um trabalho muito completo, sério e rigoroso, realizado entre 2007 e 2010 a partir do estudo dos jornais das 20, os de maior audiência, das três televisões generalistas portuguesas. Trabalho revelador, à altura de Adelino Gomes, e que interessa não só à gente dos media como a outros públicos que queiram estar bem informados (Ed. Tinta da China, 432 pp., 15,90 euros);




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AutoBiografia Imaginária Valter Hugo Mãe

Destaques Debate-Papo

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12de dedezembro dezembroaa25 25de dedezembro dezembrode de2012 2012 12

Boris Bucan A neve trancou Zagred. O tram deixou de passar. As poucas pessoas na rua iam de botas agressivas assentando passos nervosos no chão. Um homem abria um carreiro na neve quando percebeu o meu nariz no ar, procurando. Perguntou-me se buscava Boris Bucan, eu respondi que sim. Indicou-me uma passagem discreta. Uma última porta a dar para o pátio onde o temporal, na hora certa, veio todo cair sobre mim. Foi apenas então que percebi porque me haviam dito para cuidar do calçado, da cabeça, das orelhas, das pernas, do nariz, da alma mais imediata, da força de vontade. Fiquei, subitamente, branco de cima a baixo. Molhadamente branco e gelado. Toquei à campainha. Sacudi-me, imitando com incompetência o meu cão depois do banho. A porta estava aberta, entrei. As telas brancas, quadradas, grandes, disseram-me que estava certo. Estava no atelier do grande Boris Bucan. Era suposto chegar acompanhado mas, talvez por ingenuidade, fui o único a persistir neve fora. Fiquei, naturalmente, mais tímido. Mas a timidez nunca me roubaria a oportunidade. E queria muito estar ali, entrar ali. Ver, gulosamente de perto, como é o grande artista e ao que se parece o seu lugar. Recebeu-me simpaticamente, indicando-me a sala mais quente, iluminada, onde as telas para uma exposição em 2013 se acumulam. A sua esposa, Inga, ajudou-me com o inglês e o croata. Era minha intenção dizer que queria sobretudo chegar perto, ter esse privilégio da proximidade e auscultar, como me é costume, a intensidade de alguém cujo trabalho me impressiona. Percebi que Boris Bucán é como os seus quadros. Robusto, de olhar cirúrgico , retirando-nos gorduras. Retira-nos as gorduras aos gestos, às palavras, às intenções.

É direto. Achei muito coerente com o seu trabalho de depuração das formas. Uma depuração pelo lado sensual, permissivo, prazeroso da arte, mas indubitavelmente uma depuração. Porque sempre reduz cada representação ao seu mínimo. É um caçador do elementar, da brevidade. Como se pesquisasse o modo mais breve de mostrar algo. Diria que reduz cada coisa à mais estilizada e imediata representação possível. A realidade torna-se irónica, mais irónica, o olhar é sempre humorístico e desarmante. Inusitado. Senti-me nu. Molhado, ainda, e nu. Sem dúvida que é isso que mais me fascina no seu trabalho. A capacidade de deixar apenas a dimensão mais bela e improvável de cada coisa representada. Estamos sempre no território da surpresa, da insinuação, da profunda originalidade. Faz-me lembrar, a cada quadro, a genial capacidade de criar logótipos, de criar símbolos, a iconografia. Algo de uma força comunicacional poderosa. Cada imagem contém, em potência, o discurso absoluto. Explica. Faz ver tudo na sua esplendorosa elementaridade, simplicidade, improbabilidade. Pedi a Inga que nos fizesse um retrato, que ficou meio torto e desfocado. De todo o modo, aparecemos, bem esticados, em frente a uma das telas. Aparecemos bem, quero dizer. Pensei que a neve me entrava costas adentro, ainda caindo em pingas cruéis pela camisa. O casaco de malha dava-me, contudo, um ar confortável para todas as ilusões. Agradeci. Trouxe os catálogos que me ofereceu como folhas de ouro. Escondi-os na mochila para que ficassem protegidos. Sim. Do calçado, da cabeça, das orelhas, das pernas, do nariz, da alma mais imediata, da força de vontade. Os catálogos, acontecesse o que acontecesse, tinham de sobreviver o regresso ao hotel, regresso a Portugal.

“Retirando-nos gorduras aos gestos, às palavras, às intenções Quase nos acende uma luz no coração, é verdade, mas para andar não é uma ideia boa. Tropecei no caminho, mesmo que com os sapatos de herói das neves que comprei na loja à entrada do hotel, e fiquei de joelhos por um segundo. Comecei a rir-me. À minha frente, uma senhora levava um enorme cão se atreve a olhar para mim. Veio cheirar-me. A senhora disselhe qualquer coisa. O bicho parecia sorrir. Era simpático. Levantei-me. Fiz o resto do caminho com o cão a controlar-me. Ia virando o rosto para trás a ver se eu tinha mais ataques estranhos. Acho que percebeu que eu vinha de conhecer o Boris Bucan e que, com nevão ou sem nevão, o mundo não estava para me impedir tal aventura. Os bichos sentem estas urgências. Fui comer a um italiano e pus-me a alongar as vistas nos catálogos como quem vê paisagens. Os quadros gráficos não são planos. Têm diversos sentidos, comportam-se como emaranhado de coisas longe e perto que importa descobrir ou apensa intuir. Quando me apercebi de que o tram voltou a passar, duvidei se não era um objeto de traçar uma linha na tela branca de neve. Quase vi os escritos de Bucan na rua, ali mesmo na realidade toda. Talvez a dizerem: instrumento de cordas. Orquestra Sinfónica de Zagreb. Nenhuma orquestra no mundo tem melhor património plástico do que esta. Nenhuma foi mais inteligente. Podem bem fazer espetáculos em que se paga para ver o cartaz e não o concerto. Com Boris Bucan essa inversão do protagonismo é um risco. Um risco bom. Depois de seco, nenhuma constipação me pegou. Lembrei-me do que se dizia antigamente. Que a constipação apanha-nos sobretudo pela tristeza. E eu estava contente de mais.


Primeiros Passos para a Hibernação

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Jorge Listopad QUARTETO DE ALEXANDRIA

O Homem do Leme Manuel Halpern Em fim o mundo O mundo não vai acabar a 21 de dezembro de 2012, nem em nenhum outro dia de 2012”, assegura o governo americano, no seu site oficial. Eles devem saber do que estão a falar, porque têm bombas suficientes para acabar com este mundo e o outro. Quanto a 2013, isso logo se vê. O governo americano para já não arriscar qualquer palpite. Essa ausência de informação sobre o estado de saúde do mundo no próximo ano é, no mínimo, inquietante. Talvez eles estejam à espera do reveillon para nos dar a notícia: “Lamentamos informar os habitantes da Terra que o planeta vai explodir em meados de março, por favor mantenham a calma”. Mas pelo menos até ao final do mês estamos safos, o que já não é nada mau. Parte-se do princípio que, nesta matéria, os americanos sabem mais que os Maias. E este último fizeram a profecia há um milhar de anos só para semear a confusão nos povos do futuro (atenção, não confundir o povo Maia com a astróloga Maya). Contudo, os profetas Maias enganaram-se num ponto fulcral: estavam convencidos Mitt Romney ia ganhar as eleições americanas. Com Barack Obama tudo fica um pouco mais tranquilo. Nós por cá, no meio desta crise, estamos demasiado ocupados em (sobre) viver o dia a dia, para nos preocuparmos com assuntos de tal envergadura. Primeiro o dinheiro para o bife, depois as grandes questões do universo. Porque sem dinheiro para o bife não há cosmos que resista. Mas isto dos bifes é como os mundos: ou há moralidade ou comem todos. Bum!

O Coelhinho Jorge Listopad O coelhinho irrompeu no meu quarto, de saco às costas. Não lhe perguntei nada, apenas o olhei com surpresa. Foi ele que começou: - Vou emigrar. - Pois bem, para onde? - Para a Grécia!

Quem alguma vez passou em Alexandria, não só que nunca se esquece mas ainda se lembra do romance de Lawrence Durrell (1912-1990), ou melhor: dos quatro livros do romance sobre Alexandria. E ao contrário, quem leu a obra-prima do escritor inglês, vai lembrar-se da cidade onde nunca esteve e que está à sua espera. Uma vez escrevi um conto que se passava nessa cidade, que tinha visitado pouco antes. No seu conteúdo havia um misto de estranheza e de paixão. Amanhã vou procurá-lo. Porém, agora tenho outro agradável dever: abrir a edição de O Quarteto de Alexandria publicado pela D. Quixote, quatro romances num único livro. Justine, Balthazar, Mountolive e Clea, talvez que este último esteja estilisticamente mais afastado desse já clássico romance inglês. Para completar a informação: este megalivro tem mais de 900 páginas e pesa muito, mas uma vez diante dele esquecemos o peso mecânico da existência. Como se pode verificar, adoro este livro e não só a partir da edição hodierna. Ao lado do nosso mundo criou um outro mundo completo. Felizes daqueles que podem dar os primeiros passos de hibernação com O Quarteto ao seu lado. O inverno será leve. Que bom é por vezes podermos depender do eloquente silêncio de alguém outro.

KEERSMAEKER

Enquanto Anne Teresa de Keersmaeker abandou Lisboa para hibernar algures noutro território de sua escolha, posso apenas lembrar o espetáculo em três “volumes” realizado no Teatro Camões, coreografado para os bailarinos da Companhia Nacional de Bailado (CNB), ao que saiba a única além da sua para quem a coreógrafa belga trabalhou. A primeira coreografia dessa trilogia foi o Preludio à sesta de um fauno com toda a sua famosa história desde Debussy a Nijinsky. Claro, Anne Teresa não brinca com a sua inspiração: foi bem diferente, inclusive no início a homenagem sem som feita ao bailarino russo que criou pela primeira vez o bailado e que levantou tanta celeuma em Paris, aquando da visita dos Ballets Russos àquela cidade. O que evidenciou maior diferença foi a caracterização do fauno, não como ser solitário e melancólico numa shakespeariana floresta de fadas, mas um delírio de presença mútua algo animalesca, e onde a diferença entre o homem e a mulher é reduzida ao mínimo, andrógina. A segunda peça, Grosse Fugue, segundo Beethoven, apesar de 20 anos volvidos sobre a sua criação, deu ocasião aos bailarinos da CNB, acompanhados pela Orquestra Metropolitana de Lisboa, com dois violinistas, uma viola e um violoncelo. Talvez tenha sido o terceiro ballet da noite a convencer aqueles que ainda não o estavam sobre a maestria da coreógrafa: Noite Transfigurada de Arnold Schonberg é uma das grandes partituras do compositor, aqui ainda com um pé na música antes de si próprio como criador de novas formas e a música trabalha com harmonias. Ess rotura interna da peça musical foi justamente recriada num cenário de sombras e de claro-escuro a exprimir, na tensão da composição, algo pertencendo aos primeiros anos do expressionismo. Noite Transfigurada, nesse sentido, é exemplar da maestria estilística de ATKM.

O JULGAMENTO

Agora vamos pôr os pés na terra manontroppo: fala de Laborim Lúcio, autor de O Julgamento – Uma Narrativa Crítica da Justiça (D. Quixote). Homem de exatidão, de rigor de palavra, sentido de humor, que nas mais de cinco centenas de páginas reaprecia a matéria de que é feita a justiça; quer a justiça em si, quer a justiça como instituição, quer a filosofia de estarmos no mundo. Fui ao lançamento do livro do autor, que me dá a honra de ser seu amigo, na livraria Buchholz. Nem cheguei nada atrasado, mas já não havia lugares; então, num cantinho, ouvi e depois aplaudi comme il faut o discurso de Jorge Sampaio, e o do fazedor do livro, esperando que através da instituição ambos reconhecem o meu aplauso invisível. O livro já está em minha casa à espera da dedicatória e só nessa altura vou ler todas as páginas por inteiro, estando neste momento apenas a folhear alguns capítulos. De uma vez por todas quero afirma publicamente que gosto de Álvaro Laborim Lúcio e não desfazendo sempre pensei que seria um bom Presidente da República: figura, verbo, seriedade, autocrítica em forma de humor ou dialeticamente ao contrário, tudo possui; mas visto que as coisas são como são, não acalento muitas esperanças.

FIM DE HIBERNAÇÃO

É fácil dizer a palavra hibernação. Mas seja-me permitido constatar que a natureza como recusa essa secular ordem dos animais e, talvez devido a uma qualquer alteração climatérica, tenha a casa cheia de formigas muito ocupadas, sem parecerem conhecer as ordens antigas. Nada está certo. JL


Destaques Debate-Papo

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Proprietária/Editora: Medipress Sociedade Jornalística e Editorial, Lda. NPC 501 919 023 Rua Calvet de Magalhães, nº 242, - 2770 – 022 Paço de Arcos Tel: 214 544 000 Fax: 214 435 319 email: ipublishing@impresa.pt Gerência: Francisco Pinto Balsemão, Francisco Maria Balsemão, Pedro Norton, Paulo de Saldanha, José Freire, Luís Marques, José Carlos Lourenço, Francisco Pedro Balsemão, Raul Carvalho das Neves Composição do Capital da Entidade Proprietária: Capital Social € 74.748,90; Impresa Publishing, SA – 100% Publisher: Pedro Camacho Diretor: José Carlos de Vasconcelos Diretor de Arte: Vasco Ferreira Redatores e Colaboradores Permanentes: Maria Leonor Nunes, Manuel Halpern, Luís Ricardo Duarte, Francisca Cunha Rêgo, Carolinha Freitas, António Carlos Cortez, Carlos Reis, Daniel Tércio, Eduardo Lourenço, Eugénio Lisboa, Fernando Guimarães, Guilherme d’Oliveira Martins, Gonçalo M. Tavares, Helder Macedo, Helena Simões, Jacinto Rego de Almeida, João Medina, João Ramalho Santos, João Santos, Jorge Listopad, José-Augusto França, José Luís Peixoto, Lídia Jorge, Manuela Paraíso, Maria João Fernandes, Maria Alzira Seixo, Maria Augusta Gonçalves, Miguel Real, Ondjaki, Onésimo Teotónio de Almeida, Pires Laranjeira, Rocha de Sousa, Urbano Tavares Rodrigues, Valter Hugo Mãe e Viriato Soromenho-Marques Outros Colaboradores: Agripina Vieira, Alexandre Pastor, Álvaro Manuel Machado, André Pinto, António Ramos Rosa, António Cândido Franco, Boaventura Sousa Santos, Carlos Vaz Marques, Cláudia Galhós, Cristina Robalo Cordeiro, Gastão Cruz, Inês Pedrosa, João Abel Manta, João Caraça, José Manuel Canavarro, João de Melo, João Ribeiro, Joaquim Francisco Coelho, José Manuel Mendes, José Sasportes, Lauro Moreira, Leonor Xavier, Luísa Lobão Moniz, Manuel Alegre, Maria do Carmo Vieira, Maria Emília Brederode Santos, Maria Fernanda Abreu, Maria José Rau, Miguel Carvalho, Marina Tavares Dias, Mário Avelar, Mário Cláudio, Mário de Carvalho, Mário Soares, Marcello Duarte Mathias, Nuno Júdice, Óscar Lopes, Ricardo Araújo Pereira, Rui Mário Gonçalves, Silvina Pereira, Teolinda Gersão e Vasco Graça Moura

Paulo Castilho Uma segunda vida Paulo Castilho, 67, escritor, diplomata, foi diretor-geral das Comunidades Portuguesas e embaixador de Portugal na Suécia, no Conselho da Europa e na Irlanda. Estreou-se como ficcionista, em 1983, com O outro lado do espelho, a que se seguiu Fora de Horas, distinguido com os três principais prémios nacionais, e Letra e Música, entre outros. Domínio Público, o seu último livro, aca.ba de receber o Prémio Fernando Namora

Paginação: Marina Mota Secretária: Teresa Rodrigues Centro de Documentação: Gesco, SA Redação, Administração e Serviços Comerciais: Rua Calvet de Magalhães, nº242, 2770-022 Paço de Arcos Tel: 214 698 000 Fax:214 698 500 – email: jl@ impresa.pt. Delegação Norte: Rua Conselheiro Csta Braga nº 502 – 4450-102 Matosinhos – Tel: 22 043 7001 Publicidade: Tel: 214 698 751 Fax: 214 698 516 (Lisboa) Tel: 228 347 530 Fax: 228 347 558 (Porto) Pedro Fernandes (Diretor Comercial) pedrofernandes@sic.pt; Maria João Costa (Diretora Coordenadora) mjcosta@impresa.pt; Carlos Varão (Diretor), Luís Barata (contacto), Miguel Diniz (contacto), Elisabete Anacleto (Gestora Publicidade) eanacleto@impresa.pt; Ana Lúcia Moreira (Coordenadora de Materiais) alucia@impresa.pt. Delegação Norte: Ângela Almeida (Diretora Coordenadora) aalmeida@impresa.pt, Margarida Vasconcelos (Gestora de Contas) mvasconcelos@impresa.pt, Miguel Aroso maroso@impresa.pt (contactos); Ilda Ribeiro (Assistente e Coordenadora de Materiais) jmribeiro@impresa.pt Publicidade Online: publicidadeonline@impresa.pt Tel.: 214 698 970 Marketing: Mónica Balsemão (Diretora), Ana Paula Baltazar (Gestora de Produto) Multimédia: João Pedro Galveias (Diretor) joaogalveias@sic.pt Produção: Manuel Parreira (Diretor), Manuel Fernandes (Diretor Adjunto), Pedro Guilhermino e Carlos Morais (Produtores) Circulação e Assinaturas: Pedro M. Fernandes (Diretor), José Pinheiro (Circulação), Helena Matoso (Atendimento ao Assinante); Atendimento ao Ponto de Venda: pontodevenda.ip@impresa.pt Tel.: 707 200 350, 21 469 8801 (todos os dias úteis, das 9h às 19h) – Fax: 214 698 501 email: apoio.cliente.ip@impresa.pt Aceda a www.assineja.pt Envio de Pedidos: Medipress – Sociedade Jornalística e Editorial Lda. Remessa livre 1120-2771-960 Paço de Arcos Impressão: Lis Gráfica, Casal de Sta. Leopoldina – 2745 Queluz de Baixo Distribuição: VASP-MLP, Media Logistics Park, Quinta do Grajal – Venda Seca, 2739-511 Agualva – Cacém – Tel: 214 337 000 Vendas: contactcenter@vasp.pt Tel: 808 206 545 Fax: 808 206 133 Tiragem: 10 500 exemplares Registo na ERC com o nº 107 766 – Depóstito Legal nº 11 745/86 Interdita a reprodução, mesmo parcial, de textos, fotografias ou ilustrações sob quaisquer meios, e para quaisquer fins, inclusive comerciais “A Medipress não é responsável pelo conteúdo dos anúncios nem pela exatidão das características e propriedades dos produtos e/ou bens anunciados. A respetiva veracidade e conformidade com a realidade, são da integral e exclusiva responsabilidade dos anunciantes e agências ou empresas publicitárias”.

Outubro Chegámos cedo a Vila Nova de Foz Côa e andámos às voltas pela cidade sem encontrarmos o Centro Cultural. Mas no meio das andanças acabámos por dar com a antiga casa da minha avó, no Largo da Igreja, onde em miúdo, com o meu irmão, incitados pelos primos mais velhos, estivemos clandestinamente pisando uvas no lagar do vinho – com o consequente castigo quando os pais notaram que as nossas pernas se tinham tingido de roxo. Hoje no sítio do lagar estão escritórios. Muita coisa mudou. A vila passou a cidade, já não desligam o gerador de eletricidade às dez da noite, a Avenida é finalmente uma verdadeira avenida, no Pavilhão de Exposições e Feiras decorre o Festival do Vinho do Douro Superior, a Câmara Municipal tem um Centro Cultural. Centenário. Fez 100 anos que o meu pai aqui nasceu. Em maio e junho a Hemeroteca Municipal de Lisboa tinha organizado uma pequena exposição a propósito do centenário do nascimento de Guilherme de Castilho. Aproveitando documentação da Hemeroteca, a Câmara Municipal de Foz Côa organizou no Centro Cultural uma exposição mais ampla, com manuscritos, livros, artigos, correspondência, fotografias, começando nos anos 30 nos tempos da Presença em Coimbra e cobrindo depois a vida literária de Guilherme de Castilho até aos anos 80. Durante as últimas semanas estive em contacto quase diário com as pessoas ligadas à exposição para dar a minha ajuda, facultando documentação que está comigo. E também fotografias velhas, perdidas em álbuns ou amontoadas em envelopes, no geral muito pequenas e já bastante desvanecidas: graças aos Photoshop transformei-me em restaurador, digitalizando imagens de Régio, Casais Monteiro, Gaspar Simões, Saúl Dias/ Júlio, Ruben A, etc. A abertura da exposição foi feita com uma cerimónia simples, como o meu pai teria gostado. Num país que vive como se não tivesse um passado, foi bom saber que em Foz Côa existe um município e um grupo de pessoas, com entusiasmo e amor pelas Letras, que quiseram recordar quem veio antes. À noite o jantar foi num restaurante, em família, várias gerações.


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Novembro

Destaques

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12 de dezembro a 25 de dezembro de 2012

Novembro Por volta das nove telefonou o Vasco Graça Moura para me dizer que tinha sido atribuído o Prémio Fernando Namora pelo romance Domínio Público. Fiquei naturalmente muito satisfeito, tanto mais que andava desconsolado – e até um pouco intrigado – com a “carreira” discreta que o Domínio Público até agora teve, não obstante críticas muito boas, para além de referências positivas no universo que me é menos familiar dos blogues. Intrigado porque o livro conta uma história atual, que me parece ter muito a ver com o país que hoje somos. A história decorre em 2009 e 2010 e as vias e os dramas das personagens estão no livro muito ligados às circunstâncias bastante angustiantes em que Portugal e os portugueses viviam já na época dos PECs do Eng. Sócrates e em vésperas de nos cair em cima a simpática Troika. O Domínio Público lida também com questões da cultura e da língua portuguesa. O património cultural do nosso país, que nasceu quase há 900 anos, está em grande medida votado ao esquecimento e ao desinteresse generalizado, sobretudo quando se trata de literatura. O próprio Namora, alguém o lê? Tirando o Eça, alguém lê os escritores do passado? E o Pessoa está transformado em “calebrity”, uma espécie de Paris Hilton das letras lusas, famoso, festejado, mas pouco lido. Quanto à língua, vivemos na regra do desleixo e do vale tudo – incluindo o acordo ortográfico, que entre muitas outras calamidades, faz tábua rasa da origem latina da nossa língua. Mais um fenómeno de aculturação. É irónico que tenhamos agora de ir a outras línguas, como por exemplo o inglês, que é essencialmente germânico, para encontrar muitas das raízes latinas que deitamos fora nas nossas palavras. Por tudo isto, deu-me grande satisfação o facto de o júri do prémio ter expressamente salientado o modo como no meu livro utilizo a língua

Novembro

Acabei de ler o primeiro volume das Passions Intellectuelles, em que a Elisabeth Banditer escreve longamente sobre o século das luzes em França. Este volume é dedicado sobretudo às Academias (Letras e Ciências) e à Enciclopédia. É fascinante constatar que é no século XVIII que nasce o mundo em que ainda hoje vivemos. Também fascinante o papel que as mulheres (em muitos casas aristocráticos) desempenham no movimento das luzes. Mas com a revolução (da burguesia), a partir de 1790 as mulheres desaparecem da vida pública durante mais de um século. Antes de passar aos outros dois volumes de Badinter vou ler Le Règne des Femmes 1715-1793, de Jean Haechler. É uma pena que atualmente em Portugal sem despreze o francês e já quase ninguém o fale ou leia. Foi e é a língua de uma grande cultura, ainda hoje com um movimento editorial de um enorme vigor em muitas áreas superiores ao inglês. Agora corremos atrás da língua inglesa e de tudo o que tenhas um ar de Inglaterra ou de América sem nos darmos conta de quanto no encontramos longe da mente anglo-saxónica. Não os compreendemos plenamente e eles não nos compreendem a nós e, na verdade, tendem a tratar-nos com alguma condescendência. Os Franceses não são certamente perfeitos, mas são mais “a nossa gente”.

Absolutamente nada para nos distrair. Horas e mais horas de leitura interrupta. Depois, até ao terraço para o pôr-do-sol que nesta época não é tão glorioso como no verão, mas mesmo assim. Às oito e meia estávamos no Lumumba para o ensopado de borrego seguido de bolo rançoso, sem esquecer azeitonar, queijo curado cortado em fatias fininhas e tinto da Adega Cooperativa de Monsaraz. Passeio pela terra para fingir que assim fazemos a digestão e depois regresso a casa. Trouxe o computador, mas hoje vou fazer gazeta ao e-mail e, em vez disso, fico com o belíssimo livro do Ben Almeida Faria O Murmúrio do Mundo.

Novembro

Uma última ida ao terraço para um pôr-do-sol de despedida. Felizmente estamos virados para o lado de Reguengos e Évora e nao temos que padecer a vista do Alqueva. Dizem que é o maior lago artificial da Europa. Gostamos sempre muito de ser os maiores de qualquer coisa. Mas a verdade é que o Alqueva, visto lá de cima, de Monsaraz, não parece um lago. Parece um charco. Parece que choveu demais e a água ainda não teve tempo de ser absorvida pela terra. Além disso, tremo ao pensas nas monstruosidades que à pala do turismo vão ser perpetradas naquele pobre recanto do Alentejo. Temos vocação para fazer cimento e estragar paisagens, o que no turismo é o mesmo que matar a galinha dos ovos de ouro.

Novembro Programa da RTP Ler+, Ler Melhor. Estiveram esta tarde cá em casa a filmar, para uma entrevista de 5 minutos. Começaram por me pedir que fizesse um breve resumo do livro. Sempre a pergunta a que me é mais difícil responder de forma minimamente satisfatória. Como hei de resumir em um minuto um história que demorei 400 páginas a contar? Apesar dos temas sérios em que toca, muita gente me disse que o Domínio Público é divertido de ler, com diálogos vivos e algum humor. Não sei se consegui transmitir esta ideia na entrevista. O livro, entretanto, voltou a aparecer nas livrarias, agora com um pequeno autocolante alusivo ao prémio. Ter direito a uma segunda vida é um luxo. Vamos ver como se porta.


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