Percepção e participação urbana
Marina Frúgoli TFG FAU USP
Corpos inconformes Percepção e participação urbana
Trabalho Final de Graduação Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Universidade de São Paulo
Marina Barbosa de Almeida Frúgoli Orientação: Prof. Dr. Guilherme Teixeira Wisnik
FAUUSP Julho 2017
Aos que se foram em 2017, mas antes deixaram o seu rastro de inspiração no mundo e em mim Zé Luís Vó Izeisa Vô Heitor Trisha Brown Vito Acconci
Ao Davi In memoriam
Agradecimentos Quero agradecer especialmente às pessoas sem as quais este TFG não existiria. Ao meu orientador Guilherme Wisnik, pela confiança que me fez crescer muito, à Marcella Arruda, que, com sua amizade e disposição, me acompanhou na descoberta corpo-sensível e à Myriam Lefkowitz, uma surpresa em meu caminho. Sou grata ao André Setti pela revisão do texto, à Renata Pante pela encadernação, à Jordana Lopes e à Tiê Higashi pelas trocas de ideias e referências. Este trabalho também só se fez possível graças ao apoio da CoLEA Cono Sur, do GFAU e do Federico Campodonico, para realizar as oficinas experimentais, além de todos os que participaram delas e dos artistas que me propiciaram as experiências aqui narradas. Agradeço também ao Sérgio Régis Martins, por me acompanhar desde o começo da graduação na descoberta das intersecções entre arte e arquitetura, e a ele e à Paola Berenstein, por aceitarem o convite para participar da banca. A todos os queridos amigos que a FAU me presenteou, mas principalmente Ana, Denise e Pirata, vocês fizeram todos esses anos de faculdade valerem a pena. À minha família: Heitor, Bia, Tiago, Mirelle, Cleisa, Gijão, Alice, Clara, Sofia e Kairin. Começou com o Do Aquário ao Mar, ou talvez muito antes, mas a partir daí veio a tomada de consciência. Depois vieram o Michel Faria e a Sofia Osório, e todos, através da dança e da yoga, me fizeram redescobrir a mim mesma. Também foi por causa da Sofia que, por acaso, conheci a Myriam, o que resultou nas vivências deste trabalho. Viva o acaso!
O espaço conforma o corpo
ou o corpo conforma o espaço?
Índice Resumo / Abstract
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Como o corpo percebe e participa do espaço?
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Escalas de deslocamento e percepção
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O turista e o viajante, o blasé e o errante
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Corpos inconformes
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Opacidade e névoa
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Sonoridade espacial, espacialidade sonora
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Perguntas inconclusivas
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Bibliografia
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Índice Exploração sensorial do espaço Cartografias Sensório-afetivas Walk, Hands, Eyes (São Paulo) (Rio de Janeiro) Oficina dos bichos Corpo-sensíveis: Errâncias com Marcella Outras experiências, anteriores e posteriores Passeios Coreográficos (promenades blanches) Volumen / (San Lorenzo) Paisagem sonora lisboeta A caixa torácica como microfone urbano Reflexões errantes pelo rio Pinheiros O percurso não tem destino
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Resumo Para além da hegemonia da visualidade e da racionalidade, as percepções sensoriais, emocionais e intuitivas do ser humano são elementos fundamentais da experiência corporal do espaço urbano. Através do estudo de práticas artísticas em linguagens variadas que dialogam e desafiam estas hegemonias, além de relatos de experimentos corporais urbanos feitos pela própria pesquisadora, este trabalho discute as potencialidades e limites da crítica ao espetáculo nos campos ampliados da arte e da arquitetura contemporâneas. Palavras-chave: percepção; participação; walkscape; campo ampliado; não-lugar.
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Abstract Beyond the visual and rational hegemony, human sensorial, emotional and intuitive perceptions are fundamental aspects of the bodily experience on an urban space. Through the study of several artistic practices that dialogue and challenge these hegemonies, in addition to descriptions of urban corporeal experiments made by the researcher herself, this research discusses both the potentialities and the limits of spectacle criticism in the expanded fields of contemporary art and architecture. Keywords: perception; participation; walkscape; expanded field; non-place.
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“Se a percepção não se altera, não há como emergirem outros hábitos, outras metáforas, outras realidades” Adriana Banana (2012: 39).
12 12 “A experiência de errar pela cidade pode ser uma ferramenta de apreensão da cidade, mas também, de ação urbana, ao possibilitar microrresistências dissensuais que podem atuar na desestabilização de partilhas hegemônicas e homogêneas do sensível” Paola Berenstein Jacques (2012b: 192)
Como o corpo percebe e participa do espaço? Esta pergunta é o ponto de partida para o desenvolvimento deste trabalho. Nela está implícita a relevância do corpo nas correlações entre percepção e participação. Considero essencial a abordagem da experiência do espaço no estudo da arquitetura1. Busca-se, aqui, explorar a temática a partir dos espaços urbanos, públicos ou de uso público, na tentativa de tratar da experiência coletiva que se tem da cidade contemporânea. Em termos gerais, este estudo busca valorizar os aspectos emocionais, sensoriais e intuitivos do ser humano, extremamente importantes para a apreensão do espaço e a fruição estética, sem, no entanto, rechaçar a esfera racional. O desafio está justamente em buscar a equalização entre consciente e inconsciente, e não a supressão da racionalidade, num processo de integração que pode promover uma transformação social por meio dos afetos. O desenvolvimento da cidade moderna a partir do século XIX veio acompanhado da criação do conceito de urbanismo enquanto disciplina do conhecimento e de uma crescente esterilização dos sentidos na experiência urbana. Desde então, a questão é enfrentada com o surgimento da figura do flâneur em Paris, aquele que encara os excessos da modernidade, como 1 Em especial a partir do ponto de vista da arquitetura enquanto construção simbólica do espaço e da arquitetura líquida, que se refere aos movimentos dos corpos e não à materialidade, conforme abordam Bernard Tchumi e Ignasi de Solá-Morales, em seus artigos da revista Anyhow (1977). Segundo eles, enquanto o espaço é estático, homogêneo e previsível, o movimento dos corpos é heterogêneo e imprevisível.
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Exploração sensorial do espaço Como o espaço me afeta e como eu o afeto? Que sensações podem me provocar lugares que já conheço ou desconheço? Sou capaz de treinar o olhar a ponto de ver algo familiar como se fosse inteiramente novo? Serão os meus sentimentos puramente individuais, ou se refletem em algum inconsciente coletivo? Quais são as (im)possibilidades de uma experiência estética transformadora do sujeito e da paisagem propiciadas pelas características físicas e simbólicas do lugar?
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Grande Saison DADA 1921
a velocidade e as multidões, com um misto de encantamento e repulsa. Posteriormente, ao longo do século XX, diversos artistas com variadas linguagens abordariam a experiência urbana através do caminhar enquanto prática estética, errâncias não previstas ou planejadas pelas estruturas de poder, sem a primazia do utilitarismo, do espetáculo ou do consumo. Estes percursos, ainda que nem sempre de forma consciente ou deliberada, se contrapõem à espetacularização urbana promovida não só por agentes imobiliários e planejadores urbanos, que atuam diretamente na conformação do território e normatizam a experiência urbana, como também reforçada por redes sociais e outros aplicativos virtuais que interferem no comportamento humano e na sua capacidade de apreensão de lugares físicos. Há que se levar em conta a onipresença de espaços virtuais no cotidiano contemporâneo e ponderar quais são suas consequências na percepção uso do espaço público. Tomo como marco inicial destas ações o ano de 1921, quando o grupo de artistas do movimento Dadá realizou a sua primeira experiência no espaço público, oferecendo uma excursão pelos lugares banais de Paris, no que o arquiteto 15 15
Em 2015, durante o meu intercâmbio na Amsterdam Academy of Achitecture, cursei uma disciplina chamada Landscape-Landart: Sensory Exploration of Space. As professoras Stephanie Lama e Maartje Nuy propuseram explorações sensoriais de ambientes urbanos variados (uma estação de trem, um parque e uma igreja) através da conscientização dos movimentos do próprio corpo e dos sentidos, utilizando artifícios como vendas nos olhos e tampão de ouvido, na perspectiva de que, quando um sentido é bloqueado, os outros se expandem, além de experimentos com o comportamento corporal das multidões. Visava-se coletar elementos sensoriais para serem ponto de partida do conceito de um projeto. Trazer a totalidade do corpo como elemento central para a percepção do espaço foi um caminho que encontrei para explorar os questionamentos que eu vinha me fazendo sobre modos de se relacionar com a cidade, e provavelmente o ponto de partida vivencial para o que viria a ser este TFG.
italiano Francesco Careri descreve como o primeiro ready-made urbano, elevando a tradição da flânerie a operação estética consciente. Segundo ele, a partir de então, “a ação de percorrer o espaço será utilizada como forma estética capaz de substituir a representação e, por isso, de atacar frontalmente o sistema da arte” (2016: 72). De fato, vemos no decorrer do século, chegando aos dias atuais, uma série de ações consistentes de artistas que tratam e produzem experiências do espaço banal, inconsciente, vago, do não-lugar, através da percepção e da participação, como nas deambulações surrealistas, nas derivas situacionistas, no Delirium Ambulatorium do Hélio Oiticica, nas land walks dos artistas norte-americanos dos anos 1970 e numa série de ações mais recentes nas quais é possível notar um movimento de retomada das ideias situacionistas, que se inicia a partir do anos 1990 e segue até os dias atuais. Reconheço a temática deste estudo e das minhas práticas como parte deste processo mais recente. É necessário olhar criticamente para a retomada das ideias situacionistas da forma como vem sendo feita atualmente e atuar com cautela, pois vivemos uma realidade urbana e social bastante distinta daquela dos anos 1960. Na medida em que as ações contemporâneas não carregam mais o mesmo horizonte revolucionário que se tinha no contexto da Guerra Fria, é preciso agarrar-se a motivações significativas para que não se caia em um discurso domesticado e superficial. Vale notar a variedade de formas de registro das ações efêmeras aqui estudadas, entre elas: literatura, fotografia, vídeo, cartografia, manual de instruções e outros. Tais registros adquirem graus de protagonismo distintos de acordo com a obra, desde aqueles que são meras consequências do ato, até os casos de ações que são feitas especialmente para a produção de um 16 16
registro (inclusive, às vezes apenas para que possa adquirir o valor de obra de arte vendável), passando por toda uma gama de relações entre o que é efêmero e o que “fica para a história”, dentre estes dois extremos. De modo geral, nota-se uma dissolução das fronteiras entre a arte e a arquitetura, numa abordagem transdisciplinar que envolve também a dança, a música e a literatura em seus campos ampliados. Aqui a ponte entre a arquitetura e a performance se faz através do conceito de promenade architecturale aplicado ao contexto urbano. A pesquisa se desenvolve paralelamente em duas frentes: relatos de vivencias pessoais (experiências, performances, oficinas e errâncias na cidade) e questões teóricas envolvendo trabalhos de artistas que abordam formas de percepção da cidade, não por ordem cronológica mas sim por eixos temáticos que vão se encadeando. A leitura deste trabalho também pode se dar de forma paralela, lidando com os dois pavimentos do caderno como elementos independentes, ou descobrindo-os simultaneamente. Olhando retrospectivamente, observo que o processo de pesquisa evidenciou na minha vida pessoal o caráter transformador da experiência multissensorial urbana, a ponto de, eu mesma, nos períodos de rotina intelectual, ignorando a existência e a potencialidade do corpo, duvidar daquilo que eu estava propondo. No decorrer deste ano, minha rotina oscilou entre vivências intensas e dias e dias seguidos sem sair de casa, sentada em uma cadeira, escrevendo. Nos períodos experimentais, com a sensibilidade à flor da pele, eu abraçava a ideia de que a experiência tem um poder transformador na sociedade e lidava com a dificuldade de estabelecer limites e filtros perceptivos, descobrindo que a prática da empatia ilimitada pode ser bastante 17 17
Cartografias Sensório-afetivas A partir do interesse em explorar as potencialidades do corpo perceptivo e da sua relação com o ambiente urbano, busquei uma oportunidade de propor um exercício que trouxesse à tona a percepção do espaço público e as suas formas de representação, não de caráter didático, mas sim experimental. Seria a minha primeira chance de me aproximar corporalmente e coletivamente do objeto de pesquisa. Na forma de oficina inserida na programação do XXIV Encontro Latino-americano de Estudantes de Arquitetura (ELEA) em Córdoba, Argentina, ocorrido em setembro de 2016, a atividade aconteceu durante três dias e contou com por volta de 70 participantes de diversas nacionalidades: Peru, Paraguai, Uruguai, Argentina, Chile e Brasil. Com um grupo tão heterogêneo, o que se tinha em comum era o fato da maioria estar visitando Córdoba pela primeira vez. Tendo em vista a tendência para uma atitude de turista que produz não-lugares, em que rapidamente se percorre um espaço, tiram-se fotos e logo segue-se para a próxima atração, propus uma atividade que instrumentalizasse os participantes para que pudessem criar relações de diálogo (e não de monólogo) multissensorial.
nociva emocionalmente. Já nos períodos intelectuais, a descrença e o niilismo tomavam conta de mim. Pensava: “realmente a sociedade está fadada ao controle absoluto; o espetáculo está presente em todos os âmbitos da nossa vida, e já não vejo rotas de fuga”. De tudo isso, seria difícil encontrar um equilíbrio estático na forma de texto conclusivo. Este se deu de maneira processual e dinâmica, na oscilação entre os dois extremos. Por mais que este trabalho busque argumentar com palavras, apenas aquele que está aberto a vivenciar a cidade poderá acessar o que aqui se defende.
18 18 Estava curiosa para ver qual seria a receptividade dos futuros arquitetos à experimentação do espaço a partir do corpo. Além da atividade perceptiva, foram produzidos mapas registrando o lugar físico e a experiência que se teve dele, exercitando, assim, a conscientização e a comunicação dos sentidos, sensações, sentimentos e intuições. Trazer à consciência aspectos vividos pelo corpo por vias não racionais pode ser relevante não apenas no nível individual, como forma de autoconhecimento. O compartilhamento das experiências evidenciou o seu caráter coletivo e seu potencial transformador. Explorando o território Córdoba tem um traçado urbano reticulado muito característico da colonização espanhola. A organização cartesiana do território torna inviável uma prática da deriva tal qual faziam os situacionistas em Paris nos anos 1960, dadas as impossibilidades de se perder em um tabuleiro geométrico não labiríntico. Atualmente é comum, eu diria epidêmico, ver arquitetos propondo derivas em cidade variadas, quase sempre no contexto de eventos institucionais ou acadêmicos, como era o caso aqui. Institucionaliza-se esta prática lúdica que tem mais força quando espontânea. Vale lembrar que nem todo espaço urbano é
Escalas de deslocamento e percepção No livro A Cidade Polifônica, sobre a comunicação urbana de São Paulo, o antropólogo italiano Massimo Canevacci discorre sobre três modos distintos de perceber a cidade a partir de diferentes situações: “a imobilidade doméstica, a hipervelocidade noturna, a lentidão do passeio solitário” (Canevacci, 2004:14). Francesco Careri também aborda estas modalidades de percepção, que variam de acordo com a forma de deslocar-se, discorrendo amplamente sobre as Walkscapes em seu livro homônimo, e citando brevemente as Stopscapes, sobre as quais acaba de lançar um livro, lamentavelmente tarde demais para ser incluído neste trabalho, visto que, por enquanto, está disponível apenas fora do Brasil. Seguindo esta lógica de nomenclatura, me permitirei denominar a percepção da paisagem através da hipervelocidade dos automóveis como Speedscape.
19 19 receptivo para uma deriva. Levando isso em conta, optei por explorar sensorialmente a escala da praça, pois seria possível percorrê-la de olhos fechados e, com isso, perder o senso de direção, e recorri a exercícios utilizados na dança para alcançar a consciência corporal. Não seria uma deriva, mas sim um jogo de percepção do espaço e de si mesmo. Em cada dia a oficina explorou uma praça pública com características bem distintas em relação ao uso e significado: Plaza Rivadavia (Alta Cordoba), Plaza San Martín (Centro) e Paseo del Buen Pastor (Nueva Cordoba). Em todos os lugares foram feitos exercícios semelhantes, que, porém, resultaram em mapas distintos, de acordo com cada praça. Para começar a oficina formou-se um círculo, e se notava pela expressão corporal que as pessoas não estavam muito abertas para a percepção e relação com o mundo externo. Braços cruzados, músculos rígidos, expressão facial de desconforto, olhar desconfiado. Como forma de trazer todos ao momento presente, esquecendo das preocupações ou dos pensamentos não relacionados ao aqui e agora, semelhante ao que se busca ao começar uma prática de yoga, busquei construir um ambiente introspectivo, pedindo para que todos fechassem os olhos e prestassem atenção ao próprio corpo: respiração, contato dos pés com o chão, da pele com o ar, ruídos externos e internos, sensações, cheiros, gostos. A partir daí, como se ligando a chavinha da conexão,
20 20 poderiam começar a perceber a si mesmos, o outro, o espaço entre eles, o entorno imediato e o ambiente como um todo. Com um primeiro exercício de deslocamentos, em que as pessoas andavam dentro de um pequeno espaço delimitado, aos poucos os participantes aderiram ao comportamento lúdico. Caminhando em todas as direções dentro dessa pequena massa de gente, iam sendo incitados a perceber o seu próprio corpo e como se relacionavam com os outros. Como reage o corpo quando encontra com o outro? Para onde eu olho? Os demais participantes são anônimos ou você lhes atribui personalidade? São indivíduos ou se sentem parte de um coletivo? O que muda quando se passa a olhar nos olhos de todos com quem cruzo? E quando cumprimento cada um? Qual o tamanho do campo de privacidade que rodeia o seu corpo no qual é incômodo quando alguém o invade?
Speedway Boulevard, Tucson, Arizona, December 7, 1976 Stephen Shore, 1976
Speedscapes “The in transit condition is becoming universal” Rem Koolhaas, Generic City (1994) Em alta velocidade, não há contato físico com o espaço. O excesso de estímulos visuais acompanhado de uma ausência nos demais sentidos (a não ser por ruídos de motores, geralmente ignorados), dado o conforto do interior do meio de transporte capsular (automóvel, trem, avião), estimula dissociações entre corpo e entorno, assim como uma separação entre a percepção visual e os outros sentidos, provocando a ideia de que a visão é o único sentido capaz de perceber o espaço e que o “resto” pode ser deixado em segundo plano. O entorno, visto por alguém que passa rapidamente e não participa dele, se transforma em um “não-lugar”, conceito cunhado pelo antropólogo francês Marc Augé em 1994, que identifica como decorrência do excesso de deslocamentos contemporâneos a perda do sentido relacional, histórico e identitário dos lugares. Sendo tais deslocamentos a realidade vigente da globalização, rodovias e aeroportos são “não21 21
Como varia o tamanho dele de acordo com as situações? O campo diminuiu quando a massa de gente deixou de ser “anônima”, ao cumprimentar-se? Esta dinâmica transformou um conjunto de pessoas desconhecidas em um grupo com alguma intimidade e disposto a outras atividades lúdicas, o que se notava pela expressão corporal: todos sorriam, tinham os braços relaxados e pareciam ansiar pela próxima proposta. O segundo exercício consistiu em montar duplas formadas por pessoas que não se conhecem, e percorrer a praça com uma das pessoas de olhos vendados, prestando atenção nos sentidos e nos sentimentos que o lugar te provoca. A pessoa vendada é que deve decidir aonde vai, enquanto a sua dupla cuida para que nenhum acidente aconteça, além de também exercitar a integração dos sentidos sem a privação da visão. Está implícita nesta dinâmica um exercício de confiança e entrega a uma pessoa desconhecida. Posteriormente (cenas do próximo capítulo) eu iria perceber que a venda pode ser um elemento invasivo. Oferecendo um contexto para a pessoa efetivamente entrar no jogo, que passa pela construção da confiança, o mero fechar os olhos é o suficiente, até inclusive para que se possa abri-lo quando se queira, caso sinta algum desconforto.
lugares” paradigmáticos e, ao lado de shopping-centers e outros elementos do espetáculo, presenças constantes na chamada “cidade genérica” (Koolhaas, 1998). A hegemonia da visualidade incentiva o processo de espetacularização e não participação na cidade, visto que a visão provoca um distanciamento entre indivíduo e espaço, como se este estivesse olhando-o de fora, não fazendo parte dele. O arquiteto finlandês Juhani Pallasmaa toca no cerne da questão: “A crescente hegemonia do olho parece ir em paralelo ao desenvolvimento da autoconsciência ocidental e a separação cada vez maior entre o eu e o mundo; a vista nos separa do mundo, enquanto que o resto dos sentidos nos une a ele” (2010: 25) 22 22 Pelo simples fato de fechar os olhos, os demais sentidos se expandem, fazendo com que uma praça que à primeira vista parece banal passe a ser um grande campo a ser explorado. Os participantes ficaram por uma hora percorrendo uma área de aproximadamente um hectare (devido ao traçado regular da cidade, as três praças têm tamanhos semelhantes) sem que houvesse, no entanto, a sensação de esgotamento ou apreensão total do território. Cartografando a experiência Um dos temas propostos pelos Situacionistas e muito apropriado hoje por ativistas da cidade na escala da pessoa é o mapeamento dos lugares do ponto de vista do pedestre, incluindo fatores vivenciais e subjetivos, o que se contrapõe a uma visão totalizante da cidade vista como em um “voo de pássaro”. O mapeamento coletivo pode ser visto como uma busca da forma de compartilhamento da experiência, para além do campo individual e subjetivo, expondo as percepções em comum, dando forma comunicativa à vivência coletiva do espaço. A partir do percurso perceptivo, propus que se produzisse um mapa da praça,
Every Building on Sunset Strip Ed Ruscha, 1966
O arquiteto metabolista japonês Kisho Kurokawa, em Capsular Declaration (1977), destaca o automóvel como uma cápsula paradigmática, na medida em que o fazemos ser extensão de nossas casas e nossos corpos, transformando-nos em cyborgs. Já o filósofo belga Lieven de Cauter, ao analisar a questão, percebe que vivemos, mais do que em qualquer outro tempo, encapsulados e isolados, com a falsa sensação de conexão e participação promovida pela rede da internet, pelos deslocamentos constantes e pela tecnologia de modo geral. No contexto urbano, a condição capsular é evidente. “Nós passamos uma exponencial quantidade de tempo dentro de cápsulas: em trens, metrôs, bondes, ônibus e, acima de tudo, carros e aviões”, nota de Cauter (2001: 77). Também Guilherme Wisnik percebe essa condição, ao afirmar que o transporte público passou a ser feito de “equipamentos que tendem a adquirir valor de uso, tornando-se lugares de estar, e não apenas instalações técnicas de locomoção” (2009: 20). Se, por um lado, perceber a paisagem a partir do automóvel tem as suas limitações quanto à multissensorialidade e à participação, a speedscape não deixa de ter uma relevante potencialidade estética. A arquitetura comercial, aliada ao 23 23
individual ou coletivamente, expressando não necessariamente as suas características físicas, ainda que estas pudessem aparecer, mas sim associando-as às suas experiências, sentidos, sentimentos e possíveis memórias ou livre associações que a praça propiciou para cada um. Numa descrição da sua percepção da praça, o lugar se confunde com a própria experiência que se tem dele, o que nos aproxima mais da forma como percebemos e guardamos os espaços na memória, como eles nos afetam. Em muitos registros mentais, não há uma separação clara entre sentimentos e a materialidade, já que os dois se influenciam mutuamente. É comum que alguns sentimentos que já estejamos carregando e nada têm a ver com um determinado lugar influenciem na forma como o percebemos. Estas características deveriam se expressar no registro gráfico. Sem especificar demasiadamente um método, cada pessoa encontrou a sua maneira de se expressar a partir dos materiais disponíveis, que em si remetem a uma vivência escolar da infância: papeis coloridos, canetas hidrográficas, lápis de cor e giz de cera. Feitos os mesmos exercícios nos três lugares, cada dia resultou em mapas completamente distintos.
espraiamento urbano (decorrente dos avanços da indústria automobilística) e às agências de publicidade, passou a ser cenográfica, antes um signo visual de rápida apreensão para ser vista de dentro de um automóvel do que uma forma no espaço, como bem notaram os arquitetos norte-americanos Robert Venturi, Denise Scott Brown e Steven Izenour em seu manifesto Aprendendo com Las Vegas (1972). O frenesi do rodoviarismo e a reciprocidade entre velocidade e arquitetura ignoram o lugar relacional da vida pedestre. No referido manifesto, os autores tomam como referência a speedscape do artista pop norte-americano Ed Ruscha. Every Building on Sunset Strip (1966) é um fotolivro semelhante a um plano-sequência do cinema, no qual uma série fotográfica retrata a paisagem urbana vista de dentro de um carro, uma longa linha horizontal cuja colagem de imagens remonta à percepção visual das fachadas com seus incontáveis e gritantes signos. Contudo, segundo a visão do crítico norte-americano Hal Foster, diferentemente do casal Venturi, Ruscha não busca uma exaltação de tal paisagem, mas em sua obra se destacam o “aspecto anódino” e a “ausência da interação social” (Foster, 2015: 26). A estrutura publicitária na escala urbana automobilística, com seus grandes cartazes, outdoors e letreiros luminosos, viria a ser apropriada pela artista conceitual norte-americana Jenny Holzer a partir dos anos 1980 como suporte para as suas frases provocativas, subvertendo o tipo de mensagem que costuma ser passado por estes meios de comunicação e provocando o estranhamento naqueles que começam então a prestar atenção ao seu entorno. Nos anos 1960, não só a Pop Art, com a sua abordagem imagética ambígua entre crítica e exaltação, mas também o minimalismo, viria a lidar com a paisagem em alta velocidade. No 24 24
mesmo ano do trabalho de Ruscha, o escultor e arquiteto norte-americano Tony Smith relata em uma entrevista sua experiência de dirigir em uma estrada inacabada de Nova Jersey: “Era uma noite escura e não havia luzes ou marcações de faixa, linhas, trilhos, ou qualquer coisa exceto a pavimentação se movendo através da paisagem plana margeada pelas montanhas à distância, mas pontuada por chaminés, torres, vapores e luzes coloridas. Este trajeto de carro foi para mim uma revelação. A estrada e uma grande parte da paisagem eram artificiais, mas não poderiam ser chamadas de obra de arte. Contudo, fez por mim mais do que qualquer obra de arte já tinha feito. No início eu não sabia o que era, mas seu efeito foi me libertar de muitas das visões que eu tinha sobre arte. Pareceu-me uma realidade que não tinha tido qualquer expressão em arte.” (Wagstaff, 1966) Tony Smith lida com a estrada inacabada como um ready-made urbano e descobre as potencialidades estéticas transformadoras que, segundo ele, nenhuma obra de arte tinha. Careri reconhece nesta vivência dois aspectos que viriam a ser desenvolvidos em seu trabalho posterior e de outros artistas dos grupos minimalistas e da Land Art: “a estrada como sinal na qual acontece o atravessamento; o próprio atravessamento como experiência, como atitude que se torna forma” (2016: 112), indicando a inclusão da dimensão temporal no trabalho escultórico site specific. No depoimento, quem se move é a pavimentação, e não o sujeito, colocando em questão a teoria de Newton de que o movimento só existe na relação entre dois corpos, cuja escolha do 25 25 1º dia: Plaza Rivadavia Pela própria característica desta praça, espaço verde em bairro residencial com uso local de lazer, a vivência teve um caráter introspectivo, sendo o lugar um respiro em relação ao excesso de informações da cidade, uma chance de entrar em contato com a natureza através da flora e da água. Ela também se revelou um espaço com potencialidade para enfrentar o anonimato da cidade por seu caráter de bairro, já que foi o único entre os três locais da oficina em que os participantes interagiram com transeuntes da cidade, buscando se olhar nos olhos e cumprimentar, com o ímpeto de criar uma relação mais próxima, fugindo do impessoal e do anonimato. Foi onde se deu de forma mais forte a conexão com o entorno, a sensação de que se faz parte dele, a reciprocidade entre afetar-se por ele e afetá-lo. Foi praticamente unanime a transformação da insegurança e do medo inicial, pela vulnerabilidade da situação de cegueira, em uma conexão e relação de confiança com o parceiro. Mais de uma pessoa contou como o percurso foi um flashback de sua infância. A situação lúdica, combinada a uma praça com muitos elementos que remetem a lugares familiares, se somou à atenção aos elementos sonoros, que criam relações quase
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Plaza de la Victoria Valparaiso, Chile
Plaza Yungay Santiago, Chile
Parque Bellavista Osorno, Chile
Plaza Mexico ViĂąa del Mar, Chile
Plaza Belgrano Jujuy, Argentina
Plaza Regocijo e Plaza de Armas Cusco, Peru
Plaza de Armas EncarnaciĂłn, Paraguai
Survival Series Jenny Holzer, 1983-85
ponto fixo é arbitrária. Perceber a paisagem em movimento com a sensação de ser o ponto estático é algo recorrente na experiência da speedscape, devido à ausência de esforços físicos e à velocidade acima da capacidade motora do corpo humano.
27 27 Mapa de livre-associações relacionando a proporção de áreas entre as praças
imediatas com a memória. Apesar de todos os participantes estarem pela primeira vez naquele lugar, a praça não parecia algo totalmente novo. Isso se dá pela presença de elementos que nos são familiares, como brinquedos infantis, estátua, fonte de água, mesas e bancos de concreto, coisas que estão dentro desta gramática de mobiliário urbano, que se assemelha muito entre todos estes países latinoamericanos (me atrevo a dizer que se assemelham em toda cidade atingida pela globalização ocidental). Apenas neste dia, devido ao grande número de relatos sobre o retorno à infância, pedi aos participantes que anotassem possíveis relações da Plaza Rivadavia com lugares conhecidos, na busca de entender o porquê da ausência de estranhamento e perceber quais foram os elementos familiares.
28 28 Composição de sensações, sentimentos e memórias, acompanhado de um sentimento de simbiose. Javier Calderón, Chile Simbiose com a natureza Sebastião Dias, Brasil Fluxograma de sensações, sentimentos e memórias. Livre associação com uma praça que lhe é familiar. Camila Ojeda, Peru
Autonautas de la Cosmopista Julio Cortázar e Carol Dunlop, 1983
Stopscapes Em oposição aos constantes deslocamentos, a estaticidade propicia que se esteja de corpo presente no espaço, levando a uma percepção multissensorial deste. Na posição de observador estático, pratica-se simultaneamente a proximidade e o distanciamento, podendo-se participar ativamente das situações urbanas ou simplesmente ser passivo como um espectador. O escritor francês Georges Perec, em 1974, se propôs a ficar por três dias seguidos na movimentada e monumental praça Saint-Sulpice, em Paris, instalando-se em bancos, tabacarias e cafés e tomando notas daquilo que lhe chamava a atenção, sejam ônibus, pessoas com roupas peculiares ou mudanças climáticas, tudo o que não costuma ser descrito, “o que acontece quando não acontece nada” (Perec, 1974: 9), sem buscar fazer uma classificação. Não são abordados os edifícios e monumentos. Caracterizado por Ricardo Luis Silva2 como flanêur preguiçoso, Perec alterna entre momentos em 2 Arquiteto que escreve a introdução da edição brasileira.
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que se percebe como parte do lugar (como quando encontra e interage com uma conhecida) e situações passivas, como se observasse e descrevesse o que percebe desde um ponto de vista externo a elas. O resultado de suas anotações, sem uma aparente interferência posterior nos escritos, foi o livro Tentativa de esgotamento de um local parisiense. Colocando-se como ponto fixo no espaço, o que lhe interessa são as mudanças, a vida urbana que passa por ele, em uma vã tentativa de esgotar tudo o que ali vê. Já o casal de escritores Julio Cortázar (argentino) e Carol Dunlop (norte-americana), mais ousados, se propuseram a fazer uma permanência prolongada na estrada, o espaço exclusivo da passagem e da hipervelocidade, indo na contramão da speedscape predominante do local. Motivados por “uma certa resistência da insolente pretensão da estrada de que só ela existia entre o ponto A e o B” (1983: 23), eles percorreram o trajeto Paris-Marselha, de 800km, durante um mês, dirigindo poucos minutos por dia e parando em todos os postos de parada do caminho, registrando as suas experiências neles com um misto de rigor científico e liberdade narrativa. O resultado é o livro Autonautas de la Cosmopista. No decorrer da experiência, todos os postos de parada se tornam um só. A tentativa absurda de vivenciar e criar condições de estranhar um nãolugar familiar e sem identidade é uma crítica cômica e lírica à aceitação da hipervelocidade como ordem vigente, uma ode não romantizada à pausa.
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Walkscape “O caminhar, mesmo não sendo a construção física de um espaço, implica uma transformação do lugar e dos seus significados. (...) O caminhar produz lugares” Francesco Careri, Walkscapes, (2016: 51) “A journey implies a destination, so many miles to be consumed, while a walk is its own measure, complete at every point along the way” Francis Alÿs Comentadas brevemente as escalas de velocidade e seus modos de perceber e se relacionar com o espaço, este trabalho pretende se deter nas decorrências da percepção promovida pela caminhada. Se vivemos a normativa do deslocamento incessante e capsular, para além da possibilidade da pausa, o ato de caminhar na cidade possibilita a participação, o que é em si transformador e cada vez menos previsto e desejado pelas estruturas de poder por seu caráter de difícil mapeamento e controle. O mero andar pelo espaço não é o suficiente para transpor uma cultura do espetáculo regida pela visualidade e pelo consumo imediato de um bombardeamento de imagens e informações. A caminhada enquanto transformadora do lugar exige uma atitude de abertura que envolve uma experiência multissensorial e participativa, trazendo à consciência os movimentos do corpo e a sua presença enquanto parte do lugar. 31 31 2º dia: Plaza San Martin O marco zero da cidade, com monumentos históricos e cartões postais, é frequentado por múltiplas camadas da população e tem intenso tráfego de pessoas nos dias de semana. Trata-se da praça mais movimentada da cidade. É o típico lugar em que se busca proteção do excesso de informações, desligando os canais da percepção estética numa postura blasé, aguçando unicamente o instinto de sobrevivência, que te protege contra um eventual assalto ou outros perigos urbanos. Além do uso intenso habitual, no dia da oficina estava acontecendo uma feira de livros montada dentro de tendas, o que dificultou ainda mais a circulação e leitura da praça como um todo. Ao se abrir para a experiência lúdica perceptiva, o sentimento predominante coletivo foi o do excesso avassalador, e daí veio a necessidade de alguns de categorizar os elementos percebidos quando fizeram seus mapas, como que dissecando o emaranhado de estímulos. O contato com os demais usuários da praça San Martin se deu numa ordem bastante diversa em relação ao dia anterior, não partindo da iniciativa dos participantes. A presença de um grupo de pessoas perambulando com vendas nos olhos chamou a atenção e gerou curiosidade, fazendo com que não só uma senhora e alguns
No momento atual, além das cápsulas de locomoção física, a tecnologia da comunicação desenvolveu um aparelho para acoplar aos nossos corpos de cyborg que se difundiu amplamente: o smartphone. Este objeto de bolso que nos permite chegar rapidamente a qualquer lugar do planeta media a relação entre a pessoa e o seu entorno, tendo o poder de desligar os canais perceptivos para o mundo externo, ao oferecer uma experiência audiovisual mais “atrativa” do que a cidade estéril feita para automóveis, e de filtrar a percepção do espaço através da captação de imagens e do instantâneo compartilhamento. No frenesi do compartilhamento da experiência na rede, como se isso fosse necessário para legitimá-la, esquece-se de viver o presente e experimentar o espaço através de todos os sentidos. Nos ambientes urbanos não projetados ou não monumentais, a anestesia dos sentidos é ainda maior. Como forma de se proteger do excesso de estímulos “incômodos” da cidade, é comum a adoção de uma postura blasé, colocando-se indiferente a tudo ao redor. A partir dos anos 1960, os campos ampliados da escultura e da arquitetura vêm convergindo para uma aproximação entre as disciplinas, como bem argumenta a crítica de arte Rosalind Krauss, em seu ensaio A escultura no campo ampliado (1979). Resumidamente, a escultura passou a lidar com o espaço, o tempo e o percurso, tornando o espectador parte da obra e consciente de seu corpo. Por outro lado, a arquitetura passou a substituir a forma pelo símbolo (Venturi, Brown e Izenour, 2003), buscando o imediatismo da comunicação visual em detrimento da experiência espacial e tectônica. Frente à esterilização da experiência espacial urbana, a extravagância de formas desenhadas por arquitetos do star system contemporâneo busca unir as qualidades dos 32 32 Mapa produzido coletivamente, compila o excesso de informações e estímulos. Resulta em experiência caótica, com elementos que se entrelaçam. Não há unidade, mas sim diversidade.
“edifícios-pato”3 a promenades multissensoriais. Pautadas por efeitos especiais ilusórios, levam ao encantamento do espectador, que, porém, nunca se sentirá como parte da obra, na medida em que não incentivam a participação, dando continuidade e ainda mais força aos efeitos do espetáculo. Hal Foster nota que na arquitetura do star system “a tectônica é transformada também na criação de imagens pop” (2015: 30), cujo caso mais emblemático é a obra de Santiago Calatrava, mas também a de Renzo Piano, quando ele utiliza a “peça” (componente recorrente em sua obra) como elemento tátil e tectônico no edifício, porém nem sempre funcional (a transparência tectônica pregada pelos modernistas) ou alinhado ao programa, funcionando mais como pele ou decoração, levando à fetichização e decorrente distanciamento entre arquitetura e público. O crítico nota, ainda, que o lugar primordial de arquiteturas como as de Rem Koolhaas ou Frank 3 Conceito de Venturi, Scott-Brow e Izenour para descrever edifícios cuja própria forma é um símbolo que expressa a sua função mercadológica, diferentemente do galpão decorado, onde o símbolo encontra-se em um grande e luminoso letreiro, acompanhado por um pequeno e simples edifício funcional.
33 33 outros transeuntes abordassem uma dupla para descobrir do que se tratava aquele comportamento não usual, como também um canal televisivo que gravava um programa ao vivo justo naquele momento nos entrevistou. Agir ludicamente no espaço público gera um estranhamento imediato. Os ruídos dos carros e ônibus eram tão intensos que dificultaram a conversa do grupo para compartilhar os mapas. Na impossibilidade de explorar o espaço através dos sons, muitas pessoas recorreram ao tato, inclusive buscando perceber a passagem de uma construção para a outra nos limites da praça (todas são geminadas) apenas com as mãos, como se tentando ler o espaço formal dissociado do seu contexto, ignorando a presença das pessoas. Ao contrário do primeiro dia, não se falou sobre conexão ou natureza, apesar desta praça conter elementos semelhantes à Rivadavia, como árvores e uma fonte.
34 34 Representação da insegurança de se estar de olhos vendados em um espaço público compartilhado, gerando um isolamento.
Ao fim da experiência, eles relatam que o sentimento de segurança os fizeram parte de um coletivo Milena Derpich Momardes e Raúl Olguín Valenzuela, Chile
na página ao lado: Mapa de como ficam registrados na memória os significados atribuídos aos espaços percorridos, enquanto o hachurado é o desconhecido. Por ter circulado apenas no espaço externo, o registro com frases das áreas construidas são elucubrações deliberadas. Na memória, escalas distintas (do tecido urbano à quadra) compartilham a mesma planta e corte. Esteban Fuentes, Chile
Aprendendo com Las Vegas Robert Venturi, Denise Scott Brown e Steven Izenour, 1972
Gehry não é a sua localização física, mas sim a mídia (2015: 34), onde a primazia é da imagem. Tal arquitetura espetacular, que chega inclusive à escala urbana, tem sido percebida, ou melhor, consumida, através de fotografias que rapidamente circulam nas redes sociais. Condizente com a escala do automóvel, como já notado nas speedscapes, a paisagem urbana é produzida para ser apreendida como um conjunto de símbolos de rápida leitura e assimilação, não sobrando muito espaço para a experiência e expressão do corpo humano não motorizado. Como alternativa à predominância das relações mediadas pelo consumo, parto da hipótese de que o próprio corpo tem recursos com potencialidade de transformar deslocamentos urbanos em percursos estéticos que lhe trazem de volta à esfera da participação. Para superar a primazia da imagem, é preciso valorizar os demais sentidos na percepção espacial. Na busca de não transformar objetos capsulares em inimigos da participação, vale lembrar que o smartphone não produz em si uma anestesia dos sentidos, mas sim o faz pela forma como é diariamente utilizado. Ele também é um 35 35
36 36
Na página ao lado, Sede CCTV, Pequim, China. OMA (Rem Koolhaas), 2012 Nesta página: Cidade das Artes e das Ciências, Valência, Espanha. Santiago Calatrava, 1998
37 37 3º dia: Paseo del Buen Pastor Este centro cultural que mistura construções históricas e contemporâneas é rodeado por uma praça com uma grande Fuente de Aguas Danzantes, cujo espetáculo noturno de águas, músicas e luzes é referência na cidade. O edifício principal foi uma antiga prisão feminina, cuja revitalização esterilizadora buscou apagar a memória de resistência à ditadura ali presente. Esta praça, antítese das duas primeiras, representa o urbanismo neoliberal contemporâneo, e foi escolhida para experimentar a relação do corpo com este tipo de espaço público espetacular. Com elementos visuais tão marcantes, como seria percebido um percurso privado de visão? O elemento principal que permeia a maioria dos mapas desta praça é a fragmentação e os impedimentos de circulação. De olhos fechados, o efeito espetacular da praça se esvai, e o sentimento de não acolhimento do corpo predomina. Apesar de ter a maior fonte dentre as três praças visitadas, esta era a única que impedia o corpo de tocar a água. Devido à complexidade das conformações espaciais e das variações de nível, esta foi a única praça em que não se produziram plantas arquitetônicas com vista “voo de
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Walk With Me Strijbos & van Rijswijk, 2011-17
instrumento com potencialidades estéticas de percepção do espaço. O projeto Walk With Me é um aplicativo georreferenciado, no qual os artistas holandeses Rijswijk and Strijbos inserem composições musicais site specific, criando walkscapes sonoros que variam de acordo com o seu deslocamento pelo território abrangido, resultando em músicas únicas, que dialogam com o espaço e promovem o percurso estético topográfico. Esta experiência, porém, ao retomar a percepção multissensorial, não necessariamente incentiva a participação. “Com o pretexto de nos ativar, algumas obras até tendem a nos subjugar, pois quanto mais optam por efeitos especiais, menos nos envolvem como espectadores ativos” (Foster, 2015: 13). Numa sociedade em que o GPS substituiu o mapa em papel, fazer uma deriva em uma cidade usando o mapa de outro lugar já não tem o mesmo significado que tinha nos anos 1960, quando Guy Debord conta de um amigo que “percorreu a região de Hartz, na Alemanha, usando um mapa da cidade de Londres e seguindo-lhe cegamente todas as indicações” (IS, 2003). Apesar de proporcionar uma perda de localização e novas percepções do espaço, descobrindo simultaneamente 39 39
Percurso desconexo marcado por momentos de tensão, em que posteriormente se chega a um espaço harmônico (espiral amarela) quando se entra na igreja. Neste mapa é impossível separar o ambiente físico e o psicológico. Diógenes Teixeira, Brasil
pássaro”. Apesar de, à primeira vista, não dar sinais para tanto, visto que não há bloqueios visuais, mas sim de circulação, uma leitura espacial através da caminhada resultou num exercício complexo e labiríntico. Com estímulos sensoriais mínimos, a ausência da visão fez deste um labirinto desinteressante. Buscando maiores estímulos sensoriais, propus que fizemos também o percurso dentro da Igreja Sagrado Coração, vizinha ao centro cultural. Muitos relatos comentaram sobre o contraste entre o espaço externo, barulhento, iluminado, movimentado e fragmentado, e o interno, silencioso, escuro, centralizado, coeso e acolhedor.
40 40 Representação dos movimentos corporais e psicológicos: falta de unidade. Gustavo Adolfo Ríos
na página ao lado: Barreiras impedem a circulação fluida; Sentimento do percurso desviando de obstáculos. Não há sinais de acolhimento. Mathias Lopes, Mathias Gimenez, Rafael Soárez e Nicolas Pisano, Uruguai
Pokémon Go, 2016
na Hartz física uma Londres imaginária, este método de deriva soa tão anacrônico quanto sair a passeio com uma tartaruga, como fazia o flâneur Charles Baudelaire no século XIX pelas galerias de Paris, buscando uma outra temporalidade urbana em afronta à velocidade moderna. Um grupo de artistas norte-americanos, acreditando na potência da deriva, desenvolveu um aplicativo para smartphone em 2012 chamado Drift, um jogo com instruções que te ajudam a se perder em sua própria cidade. Sendo genérico, pode ser aplicado a qualquer lugar, pois nenhuma instrução se refere a uma localidade específica, tratando todas as cidades do mundo de forma genérica. Com o pressuposto de que o bairro explorado tenha uma vida comunitária expressiva no espaço público, ele acaba se restringindo a lugares específicos em que há espaço para a vida pedestre. Não à toa, não teve grande adesão do público. Poderia mesmo uma cápsula de bolso ser o instrumento de uma relação mais corpórea e participativa com o espaço público? Outro jogo de aparelho celular, este sim com muito sucesso em 2016, mas que agora já caiu no esquecimento, interferiu de fato no comportamento das massas, convidando 41 41
o público a perambular pela cidade e descobrir lugares nunca antes visitados. O Pokémon Go fez com que pessoas circulassem pelas ruas (inclusive em São Paulo, onde o espaço público é para muitos sinônimo de perigo) sem que fosse por um motivo de ir de um ponto A até B, mas sim pelo deslocamento em si, caçando os monstrinhos espalhados pelo território da realidade virtual. Andar pela cidade como um jogo: a ideia soa situacionista, não fosse pelo fato de que esta experiência urbana é toda mediada por um aparelho que não apenas rouba a atenção dada ao espaço real e fornece um mapa para que você nunca se perca, como rastreia todos os seus deslocamentos, assim como armazena os seus dados de câmera e microfone enquanto o aplicativo está ligado. A venda destes dados para empresas de publicidade são a fonte de renda dos desenvolvedores do jogo, convertendo-o em um instrumento de controle disfarçado de diversão.
42 42 Quatro amigos paraguaios decidiram representar a experiência através de um desenho cego da praça como uma metáfora do percurso, valorizando o processo (tanto de percepção quanto de feitura do mapa) mais do que do resultado. Matias Herrera, Paraguai
olhos e brinca com diferentes tipos de visões; - ferramentas de improvisação para ler e brincar com o meio ambiente urbano.
SP Préprograma Casa do Povo, Rua Três Rios, 252
A o icina resulta em ações realizadas nos dias 22 e 23 de outubro, às 14h, 16 e 18h, na Casa do Povo.
SP
Inscrições: info@casadopovo.org.br Lotação máxima: 35 pessoas.
Baseada na prática de andar tal como desenvolvida no projeto Walk, Hands, Eyes (a city) [Andar, mãos, olhos (uma cidade)], e focada na relação entre percepção e imaginação, Myriam Le kowitz propõe uma o icina de dois dias que se desdobra nas ferramentas utilizadas nas caminhadas que realiza: - um trabalho no tocar para tecer relações em dois; - um trabalho no olhar que desenvolve a mobilidade dos olhos e brinca com diferentes tipos de visões; - ferramentas de improvisação para ler e brincar com o meio ambiente urbano. A o icina resulta em ações realizadas nos dias 22 e 23 de outubro, às 14h, 16 e 18h, na Casa do Povo.
21.10 sex
22.10 sáb
O icina Walk, Hands, Eyes (São Paulo) [Andar, mãos, olhos (São Paulo)] com Myriam Le kowitz em colaboração com Bruno Levorin, Felipe Stocco, Isabella Gonçalves e Júlia Rocha
20h O interrogatório de uma mulher com Teatro O icina e Dora Garcia Uma mulher é sempre suspeita. A descrição heteropatriarcal
Outros corpos Casa do Povo, Rua Três Rios, 252
21.10 sex
20 e 21.10 qui e sex
11h – 17h
Abertura Teatro O icina, Rua Jaceguai, 520
20h O interrogatório de uma mulher com Teatro O icina e Dora Garcia Uma mulher é sempre suspeita. A descrição heteropatriarcal da mulher como vítima não signi ica que ela não seja culpada. Ela é uma vítima culpada. Ela não pode escapar do exame constante desde o dia em que nasceu. Ela é responsável por tudo e de tudo. Pode-se dizer que a vida de uma mulher é um interrogatório initas permanente. Entre as in perguntas feitas a uma mulher, a principal continua a de Freud: O que é que a mulher quer? Este interrogatório paradigmático de todos nós, e por todos nós, acontece icina. por 4 horas no Teatro O
Ocupamos nosso espaço. Paramos de bater os saltos. Alguém inicia. TERMINA.” (MEXA)
14h / 16h / 18h Walk, Hands, Eyes (São Paulo) [Andar, mãos, olhos (São Paulo)] com Myriam Le kowitz em colaboração com Bruno Levorin, Felipe Stocco, Isabella Gonçalves e Júlia Rocha Pré-requisito: sapatos confortáveis. “É uma experiência silenciosa mas se qualquer coisa te incomoda, não hesite em me avisar. Enquanto isso, vou lhe pedir para fechar os seus olhos.” Depois dessa curta declaração, um casal, formado por um guia de olhos abertos e de um espectador de olhos fechados, começa a andar. Durante a caminhada, o guia escolhe pontos focais e aponta o corpo do espectador para a direção certa para que ele ou ela possa o perceber na hora em que diz “abra seus olhos”. O tempo de abertura dos olhos corresponde ao tempo de abertura do obturador da câmera: su iciente para que “a imagem seja fotografada”. “Abra… feche” serão as únicas palavras pronunciadas durante a caminhada.
15h00 Performando relações Graziela Kunsch
, aula com
Como ocorre em muitos de seus projetos, a artista irá reagir
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O turista e o viajante, o blasé e o errante No que se refere a possíveis modos de se relacionar com o espaço, trato aqui das figuras do turista em terras distantes, alinhada com a postura blasé de anestesia dos sentidos no ambiente cotidiano, contrapondo-se às práticas do viajante e do errante. São definições baseadas em exemplos típicos, já que, na vida prática, uma pessoa transita entre estes modos de agir. No filme O Céu que nos Protege (1990), do italiano Bernardo Bertolucci, baseado no romance homônimo do norte-americano Paul Bowles, uma das protagonistas trata de distinguir o turista do viajante no que diz respeito ao apego ao lar: enquanto o primeiro chega ao seu destino já pensando em quando vai voltar para casa, o segundo pode ser que nunca volte. Na trama, o casal de viajantes norte-americanos que vai ao Saara está aberto a se relacionar com o desconhecido, vindo à tona o choque cultural e o decorrente estranhamento de ambas as partes. Ainda que as relações estabelecidas com os moradores locais seja assimétrica e às vezes conflituosa, reflexo da própria geopolítica do momento pós II Guerra em que se passa a história, o que o casal busca vai além do consumo que trata uma cultura exótica como um souvenir para se levar para casa, eles buscam uma experiência legítima e transformadora. Em contraponto, o filme Playtime (1967), de Jacques Tati, é um cômico e caótico retrato do turismo na era da globalização e da mecanização. Em uma Paris totalmente transformada pelo urbanismo modernista à la Ville Radieuse, cujos edifícios envidraçados padronizados remetem à arquitetura do Estilo Internacional (misto de Le Corbusier e Mies van 45 45
Walk, Hands, Eyes (São Paulo) Eu estava na Casa do Povo por acaso, para o lançamento do livro de uma amiga. Quase sem ter informações sobre a performance Walk, Hands, Eyes (São Paulo), que aconteceria no horário em que eu estava lá pelas ruas do Bom Retiro, fui participar com atitude aberta ao novo e ao desconhecido. Esta postura vem, mais uma vez, dos ensinamentos da yoga, prática que tem transformado a minha relação comigo mesma, com os outros e com o espaço. Busco viver o momento presente, pois ele é tudo o que existe, já que o passado e o futuro são apenas pensamentos. Antes de julgar e se proteger contra algum tipo de incômodo vindo de uma novidade, tento receber, aceitar e perceber as sensações causadas, os efeitos no corpo. Fui apresentada pela Myriam Lefkowitz (artista francesa idealizadora do projeto) àquela que seria a minha guia. Ela me disse que queria uma experiência silenciosa e me pediu para fechar os olhos. Foi uma entrega: deixar que outra pessoa seja a minha visão, que me cuide, me leve e me mostre o espaço à sua maneira. Sendo silenciosa, toda a comunicação entre a dupla se deu através do toque. 45
Frame do filme O Céu que nos Protege Bernardo Bertolucci, 1990
Frame do filme Playtime Jacques Tati, 1967
46 46 Ao fechar os olhos, naturalmente a atenção volta-se para dentro do corpo, e os demais sentidos se expandem. A cegueira não é total, porque um pouco de luz atravessa a pálpebra, trazendo à percepção a variação de luminosidade, que se torna marcante. Ao caminhar, o primeiro desafio foi buscar o equilíbrio. Qualquer pequeno desnível no piso passou a ser muito relevante. Tomei consciência do que eu escutava: sons reconhecíveis (pássaros, carros, conversas) e irreconhecíveis (seriam máquinas? Ou o vento?). Senti a necessidade de criar categorias mentais para o que ouvia, como se dessa forma eu garantisse algum tipo de controle sobre a situação. A desorientação foi instantânea. Comecei a me perguntar de que lado estariam as construções e os automóveis. Estarei cruzando uma rua? Ou estou numa praça? Para além da posição geográfica no tecido urbano, perdi o senso de localização na escala da rua, não sabia de que lado estava a calçada. E mais: ao perder a referência da linha do horizonte, já não sabia como posicionar a minha cabeça, que subia e descia buscando a posição mais confortável para o pescoço, inquieto. Além de lidar com todos os estímulos do espaço público, tive que lidar com a perda dos parâmetros mais básicos do meu corpo, como a minha própria postura. Nada mais era óbvio. A quebra do automatismo pela perda de um dos sentidos é desestabilizadora,
der Rohe), a experiência da viagem é estandardizada e pautada pelo consumo. O sentimento de estranhamento é substituído pelo de reconhecimento, como se o turista viajasse para validar as suas expectativas do que já se fala sobre o local. O filme vai fundo na crítica ao Estilo Internacional modernista, que padroniza e mecaniza os comportamentos humanos ao redor do mundo. Em uma das cenas, vemos uma agência de turismo com pôsteres na parede. Eles estampam os diversos destinos, todos com o seu grande edifício modernista espelhado, e as variações consistem em detalhes típicos de cada cultura expostos nas bordas da imagem, com ares caricaturais. Ressalto aqui a continuidade do Estilo Internacional ao que Hal Foster chama de Estilo Global da arquitetura neomoderna, quanto a uma padronização no modo de produção da arquitetura cujo resultado é espetacular. Diferentemente dos projetos modernistas que se fazem sobre tábulas rasas, apagando pré-existências tanto físicas como culturais, “a referência local aparece com frequência na arquitetura global precisamente como um souvenir da velha cultura, uma lembrança remota, um signo mítico” (Foster, 2015: 87). Apesar de não ser uma arquitetura padronizada enquanto forma, ela se repete enquanto símbolo cultural chamativo e reproduz formas de comportamento. É nesta alusão às referências locais que se encontra o chamariz do turismo, que se viabiliza com a domesticação das diferenças culturais, evitando assim o incômodo sentimento do estranhamento. Nas palavras do arquiteto e historiador argentino Adrián Gorelik, trata-se da “busca de originalidade arquitetônica como espetáculo urbano (...) até o esvaziamento total de significado” (2006: 5). A aliança do genérico com signos de localidade domesticados é um instrumento para produzir relações pautadas pelo consumo. A homogeneização da experiência e do comportamento é retratada nas fotografias 47 47 mas basta passar um tempo para se acostumar com a cegueira momentânea, e aos poucos esta nova condição tende a se tornar cômoda e quase automática. Para que não se encontre esta acomodação, o guia transforma o olho do perceptor em uma câmera fotográfica. Quando comecei a me acostumar com a privação da visão, paramos de andar por um momento. Minha cabeça foi posicionada para cima. - Abra os olhos... feche. Vi por um instante um céu nublado de um cinza ofuscante e um emaranhado de fios de eletricidade. Voltamos a caminhar, mas eu já não estava mais no escuro, porque essa imagem perdurou, marcada na retina e na memória. Ao longo do percurso, fui me deparando com outros flashes em momentos espaçados: um busto de bronze em tamanho real de frente a mim, me encarando; uma carta de baralho, Ás de copas, caída na calçada aos meus pés, em meio às folhas secas; mamões apodrecendo, empilhados em uma mureta; dois moradores de rua, um homem e uma mulher, sentados no chão, me olhando com curiosidade; uma escada azul mal iluminada; uma rachadura em um muro branco quase
48 48 colado em meu rosto. Estes frames instantâneos ficaram muito mais guardados em minha memória do que qualquer outra coisa que vi nas três semanas posteriores à experiência. É natural que o excesso de informação do mundo contemporâneo gere o esquecimento. Em contraponto, as poucas imagens selecionadas, seguidas por um longo momento de cegueira em que aquele ponto focal fica primeiro gravado na retina pelo efeito de afterimage, e depois pensa-se nele pela ausência de outros estímulos visuais, resultou em um registro muito mais consistente na memória. Num certo momento, o cheiro de urina me fez imaginar que eu estivesse embaixo de um viaduto, embora não houvesse outros indícios para tal, nem uma mudança na ressonância dos sons ou uma variação da quantidade de luz que chegava aos meus olhos, atravessando as pálpebras. Me vem à consciência o preconceito que tenho em relação a alguns lugares da cidade. Começo a duvidar de mim mesma. Até que ponto essas livre-associações me ajudam a saber onde estou? A imaginação passa a ser mais interessante que a própria realidade e me faz entender mais sobre mim mesma, como me sinto em relação a determinados espaços. Por que fico tentando saber onde estou? Talvez seja mais interessante ingressar neste mundo imaginário produzido a partir de
Cuba Tourism Martin Parr, 2017
do britânico Martin Parr de diferentes pontos turísticos ao redor do mundo. Nelas, se evidencia o já abordado frenesi do compartilhamento que retira das pessoas a vivência multissensorial do presente, sendo também uma forma de negação da “presentidade”, conceito defendido pelo artista norte-americano Robert Morris, ou daquilo que o arquiteto suíço Peter Zumthor (2009) chama de “a magia do real”, o que não é possível de se captar imageticamente e que só se vivencia no momento presente. A espetacularização – presente não apenas nas grandes arquiteturas globais de pontos turísticos, mas de modo geral generalizada nas metrópoles, com todos os seus elementos que desincentivam a participação e produzem não-lugares – alinha a atitude do turista com a postura blasé, daquele que em seu cotidiano se reserva, é insensível e indiferente frente à hostilidade e rapidez modernas e não se relaciona com a sua própria cidade e seus habitantes por vias sensoriais e afetivas. Esta personalidade, conceito cunhado pelo sociólogo alemão Georg Simmel no início do século XX, provém de uma “analogia à indiferença produzida pela economia monetária” (Frúgoli Jr., 2007:15). Segundo ele: 49 49
alguns elementos da realidade. Estou convicta de que entramos em um ambiente fechado. Subimos um degrau e senti a textura de um tapete, desses de borracha para limpar o pé. Logo a paisagem sonora mudou, o excesso de informações do ambiente externo foi substituído pela predominância do silencio, acompanhada de um leve ruído de motor, algo que poderia vir de uma geladeira ou ar condicionado. A cada passo, lento, a luminosidade diminuía e a temperatura aumentava. Tenho angústia do calor, claustrofobia. A imagem que me foi mostrada deste local era uma escada azul mal cuidada e escura, o que me confirmava que eu estava em um ambiente fechado (do que não havia dúvidas), mas não me dava nenhuma dica do que seria aquele lugar. O imaginei como um boteco vazio e pouco iluminado, e que estaríamos desviando das mesas de madeira revestidas com fórmica branca, tão típicas de bar. Voltando em direção à luz e ao frio, ouvi uma voz masculina: “o que vocês estão fazendo? Da próxima vez tem que pedir permissão antes de entrar”. Ele tinha um sotaque estrangeiro, que, pelo contexto do Bom Retiro, imaginei que seria de um coreano, dono do recinto. Esta foi a única situação sobre a qual conversei com a guia após o fim da experiência, na busca de um esclarecimento, e, para a minha total surpresa, fui informada de que tínhamos entrado em um mercado.
“Talvez não haja nenhum fenômeno anímico que seja reservado de modo tão incondicional à cidade grande como o caráter blasé. (…) A incapacidade, que assim se origina, de reagir aos novos estímulos com uma energia que lhes seja adequada é precisamente aquele caráter blasé, que na verdade se vê em todo filho da cidade grande (Simmel, 2005: 581). (...) ...nesse fenômeno peculiar de adaptação que é o caráter blasé, em que os nervos descobrem a sua derradeira possibilidade de se acomodar aos conteúdos e à forma da vida na cidade grande renunciando a reagir a ela — a autoconservação de certas naturezas, sob o preço de desvalorizar todo o mundo objetivo, o que, no final das contas, degrada irremediavelmente a própria personalidade em um sentimento de igual depreciação” (Simmel, 2005: 582). A mistura entre os âmbitos cívicos e comerciais, como notaram Venturi et al. (2003) em Las Vegas, é levada a um novo patamar na confusão entre o público e o privado em cidades como, por exemplo, São Paulo. A postura blasé, que pode ser alinhada à predominância da percepção visual em detrimento dos demais sentidos e da atitude consumista, faz com que geralmente se lide com os espaços urbanos sob a lógica monetária, e não à toa vemos hoje novos avanços neoliberais na política do país; elas são causa e efeito – ao menos em parte – do esvaziamento das relações produzidas pelo urbanismo do espetáculo. 50 50 Caminhando de olhos fechados e os demais sentidos abertos, senti como se eu fosse o ponto de referência fixo no mundo, e era a paisagem que se movia à minha volta, como se estivesse andando em uma esteira rolante, um mundo rolante. Este percurso de uma hora reverbera em mim até hoje. Não sou capaz de andar na rua sem relembrar desta experiência. Caminhar já não é uma ação automática. Conhecendo as potencialidades do meu corpo, busco a expansão da percepção através de todos os sentidos, mesmo sem fechar os olhos, e vem à tona a consciência do que acontece em cada músculo e osso enquanto ando. Perceber é imaginar: existe uma correlação instantânea entre estes dois verbos.
Em contraponto, vemos hoje o ressurgimento massivo de práticas que reivindicam o uso do espaço público, retomando a escala da pessoa na cidade e articulando a esfera política à experiência corporal e lúdica. Desde o urbanismo tático à gestão compartilhada e às derivas neossituacionistas, espaços como o Minhocão, o Largo da Batata e o Parque Augusta são palcos paulistanos desta empreitada, além de outros como a Praia da Estação em Belo Horizonte e o movimento Ocupe Estelita no Recife, para citar apenas alguns exemplos nacionais. As diversas metodologias de mapeamento coletivo que flertam com as cartografias afetivas (psicogeografia) e visam a apropriação e participação da população na transformação do território também fazem parte deste ressurgimento. Adrián Gorelik (2006), ao enfocar cidades latinoamericanas, identifica nos anos 1980 a união dos conceitos da flânerie com teorias do espaço público como o berço da retomada, nos anos 1990, das ideias situacionistas que haviam então caído no esquecimento, e que hoje são exaltadas. É uma moda teórica que, enquanto tal, não tem exatamente uma coerência, dado que o otimismo de tais ações não condizia 51 51 Marina Frugoli <marinafrugoli@gmail.com>
Workshop at Rio Marina Barbosa de Almeida Frugoli <marinafrugoli@gmail.com> Para: myriamlefkowitz2@gmail.com
23 de outubro de 2016 20:24
Hi Myriam, It was very nice to meet you, thank you a lot for our conversation, now I have lots of things to think about, to change some preconceptions I had. I'm writing you because you asked me to remember you about the possibility of me taking the workshop at Rio. I understand if it is not possible, but I am up to go there if I can. We keep in touch! Kind regards, Marina
Myriam Lefkowitz <myriamlefkowitz2@gmail.com> Para: Marina Barbosa de Almeida Frugoli <marinafrugoli@gmail.com>
24 de outubro de 2016 08:36
Marina Frugoli <marinafrugoli@gmail.com>
Workshop at Rio Marina Barbosa de Almeida Frugoli <marinafrugoli@gmail.com> Para: myriamlefkowitz2@gmail.com
23 de outubro de 2016 20:24
Hi Myriam, It was very nice to meet you, thank you a lot for our conversation, now I have lots of things to think about, to change some preconceptions I had. I'm writing you because you asked me to remember you about the possibility of me taking the workshop at Rio. I understand if it is not possible, but I am up to go there if I can. We keep in touch!
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Kind regards, Marina
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Myriam Lefkowitz <myriamlefkowitz2@gmail.com> Para: Marina Barbosa de Almeida Frugoli <marinafrugoli@gmail.com>
24 de outubro de 2016 08:36
Hey Marina, It was very nice to meet you as well! I just wrote to the person organising the workshop in Rio to know if you can join. As soon as I get an answer, I'll get back to you. I hope it will be super soon so that you can organise yourself with the flight and all. My flight is at noon so I might write before or after when I land in Rio. Can you wait until the afternoon to know or is it too late ? Hope to see you in Rio! Best Myriam [Texto das mensagens anteriores oculto]
-Myriam Lefkowitz
Myriam Lefkowitz <myriamlefkowitz2@gmail.com> Para: Marina Barbosa de Almeida Frugoli <marinafrugoli@gmail.com>
24 de outubro de 2016 09:12
Para: myriamlefkowitz2@gmail.com Hi Myriam, It was very nice meetFlanantes you, thank you a lot com for our conversation,teórico now I have lots of things to thinkolhar about,para to change Frame dotofilme o pessimismo do período. É preciso some preconceptions I had. Murilo Romão, 2016 os Situacionistas em seu contexto histórico e geográfico, não
como referência absoluta aplicável a qualquer contexto, e I I'm writing you because you asked me to remember you about the possibility of me taking the workshop at Rio. understand if it is not possible, but I am up tobuscar go there if I can. ideias mais coerentes com as cidades do século XXI. We keep in touch! Kind regards, Marina
Alguns acadêmicos atuais são otimistas quanto à potência transformadora de experiências corporais não planejadas no espaço urbano e buscam respaldo, exaltação e inspiração em grupos errantes e nômades marginalizados socialmente. É o que faz Francesco Careri ao trabalhar com
Myriam Lefkowitz <myriamlefkowitz2@gmail.com> 24 debrasileira outubro dee2016 08:36 ciganos, e Paola Berenstein Jacques (arquiteta Para: Marina Barbosa de Almeida Frugoli <marinafrugoli@gmail.com>
professora da UFBA) ao elogiar a vagabundagem nômade. Hey Marina, O recém lançado filme Situacionistas (2017), do skatista paulistano Murilo Romão, faz uma colagem de citações de Guy It was very nice to meet you as well! Debord e Constant Nieuwenhuys com cenas de prática de skate I just wrote to the person organising the workshop in Rio to know can join. As soon as I get an answer, I'll get em Paris, São Pauloif eyou outras cidades brasileiras, evidenciando back to you. I hope it will be super soon so that you can organise yourself with the flight and all. a relação direta, crítica e potente entre a materialidade da My flight is at noon so I might write before orcidade after when land innesta Rio. Can youalém wait das until decorrentes the afternoon tensões to know or e o Icorpo ação, e is it too late ? conflitos de uso de espaços públicos com suas demarcações territoriais, no embate entre o formal e o informal. A ideia Hope to see you in Rio! Best situacionista da cidade enquanto labirinto a ser decifrado Myriam através da experiência corpórea tem sido associada também a [Texto das mensagens anteriores oculto]
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-Myriam Lefkowitz
Myriam Lefkowitz <myriamlefkowitz2@gmail.com> Para: Marina Barbosa de Almeida Frugoli <marinafrugoli@gmail.com>
53 24 de outubro de 2016 09:12
Come! Come! The only thing is that you have to cover the cost of your trip and stay in Rio since there is no money for the participants. Is that ok? I'll send you the precise info but just to know already it is from 9:30 to 1:30 in Maré from Tuesday to Thursday, in the art center/dance school. I need to find the precise adress. We can share a taxi from Gloria where I'll be staying to Maré in the morning if you want. There are two days of public walks (like what happened in SP) on the 28th and the 29th. The idea would be that the workshop allows you to guide people during those two days but let's see how it goes first. Best best! Myriam
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Homeless vehicle project Krzysztof Wodiczko, 1988
praticantes de parkour e pichadores, na medida em que estes ressignificam espaços, dando-lhes usos lúdicos, não planejados, críticos e, consequentemente, conflituosos, conferindo vida ao caráter público dos lugares. Estes personagens errantes são o oposto do blasé, pois vão contra os automatismos do cotidiano e têm experiências corpóreas, multissensoriais e conscientes na cidade. Tampouco podem ser comparados àqueles que fazem uma viagem ou um passeio, já que seus atos subvertem a complementaridade funcional entre trabalho e lazer. O artista polonês Krzysztof Wodiczko, como parte do conjunto de intervenções presentes na quarta edição da série Arte/Cidade em São Paulo (2002), desenvolveu (com convicções situacionistas) carrinhos para serem usados por catadores de material reciclável. À margem do sistema, estes errantes urbanos são vistos pelo neossituacionista como personagens paradigmáticos devido à sua experiência urbana nômade, como “agentes da transformação” (Gorelik, 2006: 9). Para Gorelik, com efeito, este trabalho é descontextualizado em relação à realidade latino-americana, apenas replicando as carroças já existentes com um design mais desenvolvido, trazendo 55 55
(Rio de Janeiro) Após a experiência de olhos fechados pelo Bom Retiro, tive uma conversa com a artista que resultou, surpreendentemente, na minha ida ao Rio de Janeiro no dia seguinte para fazer uma oficina durante três dias e estar do outro lado da performance. Esta conversa me fez abandonar uma certa obsessão que tinha em relação a mapeamento das experiências: primeiro, eu precisava aprender a me abrir para vivenciá-las plenamente. Assim como o significado arquetípico da carta de tarô Le Pendu, o que a performance de Myriam propunha e eu então abraçava para o meu momento de vida, aquele não era um momento de ação, mas de plena percepção. Era preciso escutar tudo o que o espaço e aquelas experiências tinham a me dizer antes de propor alguma coisa. Viver as perguntas antes de buscar respostas. Era preciso desvencilhar-me “daquela velha opinião formada sobre tudo”, parafraseando Raul Seixas. Passando para a condição de guia, tive mais clareza sobre o fato de que este modo de caminhar evidencia, para cada um, como é a sua própria relação com o espaço público. Fatores como o medo e o preconceito, mas também o lúdico e a curiosidade tendem a se acentuar de acordo com o que cada pessoa vive em seu dia a dia, além de
56 56 explicitarem internamente as livre associações entre percepção e imaginação. Myriam começa a sua oficina chamando a atenção para as correlações entre o que vemos e as reações do nosso corpo, passando pela memória: “Você se lembra de algo que viu hoje de manhã? Algo te chamou a atenção? Onde estavam as suas mãos neste momento? Você relaciona esta imagem com algum cheiro ou som? E com alguma outra imagem? Se não, pode relacionar agora? Onde estão as suas mãos agora?” A partir daí, se desenvolvem exercícios de consciência corporal, não do corpo expressivo, mas antes de tudo perceptivo. Busca-se experimentar as variações sutis de ambiente (do interno ao externo, do ruidoso ao silencioso, do sol, do vento) e as possibilidades de enquadramento da imagem (perto, longe, estática, em movimento, para cima, para baixo, para os lados), conscientizando sobre a relevância da visão periférica.
Pimp my carroça Mundano, 2010
um dado meramente funcional e esvaziado de crítica, muito diferente do carrinho que o mesmo artista desenvolveu como unidade de moradia móvel para moradores de rua de Nova York em 1988, que neste contexto soa como provocação, como obra de arte conceitual. Outro trabalho artístico com catadores urbanos é o Pimp My Carroça, um movimento de empoderamento e visibilidade que está no limiar entre a arte-ativismo e o assistencialismo. Iniciado em 2007 pelo grafiteiro paulista Mundano, o projeto coloca artistas para “tunar” as carroças usadas na coleta de material reciclável. Mesmo não estando imbuído exatamente das mesmas convicções teóricas de Wodiczko, por ser um trabalho processual, local e participativo, acaba sendo mais efetivo na promoção da visibilidade da figura do catador enquanto indivíduo com voz na cidade e como um nômade decisivo no processo de transformação urbana, não apenas no quesito da gestão de resíduos, como também na perspectiva de Careri de que a caminhada reinventa o lugar. Há desde os anos 1980 uma onda crescente de arte pública comprometida com a comunidade local, cuja apropriação do mercado é uma economia cultural de 57 57
Numa prática vivencial, aprende-se a guiar, propiciar a imaginação partindo daquilo que não é mostrado e reeditar as formas da cidade a partir da percepção. Se, por um lado, o convite ao percurso desperta algo que soa tão obvio, já que não há nada, nenhum artifício para além do próprio corpo, por outro lado parece uma ficção. Não seria a realidade uma ficção, e essa ficção a realidade verdadeira? Quando fui guiada, indaguei-me qual seria o critério de seleção das imagens que me eram mostradas, e obtive a resposta durante a oficina. Foram propostos exercícios nos quais buscássemos elementos na paisagem que complementariam a percepção do espectador, algo visual que não fosse percebido pelos demais sentidos. Por exemplo, se estamos em uma avenida movimentada, os sons dos automóveis já indicarão a presença deles, e seria redundante mostrar carros ou uma visão panorâmica que trouxesse de volta o senso de localização, mas talvez seja interessante mostrar um buraco no piso, algum elemento construtivo, ou uma flor saindo do asfalto. Essa busca pelo sutil e inusitado transforma-se quase em um jogo de caça ao tesouro para o guia, que, além da visão, também deve estar atento aos demais sentidos, para se conectar com a experiência daquele que é guiado. Durante os três dias de oficina, dentro e nos arredores imediatos do Centro
exportação de artistas4 com práticas site specific. Equivalente à arquitetura global que clama por uma identidade, o business artístico propicia ações pontuais que se pretendem alinhadas com características locais, mas um tanto quanto genéricas ou pouco comprometidas efetivamente com o contexto. É caso do trabalho de Wodiczko em São Paulo, que se pretende horizontal mas resulta hierárquico devido à fetichização (logo, distanciamento) do trabalho artístico. A crítica norte-americana Lucy Lippard (2001), ao analisar a questão, reconhece que “uma arte comprometida com o lugar deve formar parte de um processo mais amplo”, caso contrário não será efetiva. Nesta lógica, Gorelik critica o artista espanhol Antoni Muntadas de modo semelhante, ao afirmar que ele faz “manifestos de pretendido impacto político local mas cujo único impacto político se verifica globalmente, nos catálogos da sua obra e nos textos críticos que a descrevem” (2006: 9). Vemos aqui outro caso de uma obra site specific (agora não arquitetônico) cujo lugar primordial de existência é a mídia.
4 A resposta do mercado à arte efêmera, ao happening, é a transformação do próprio artista em mercadoria exportável, como se vê na disseminação econômica das residências artísticas.
58 58 de Artes da Maré, decidimos coletivamente que não faríamos a experiência guiada pela favela do entorno. Enquanto que o grande galpão do centro de artes e a rua imediatamente em frente a ele, na entrada da Maré, eram o suficiente para fazer aquilo que se propunha na oficina, mais voltada ao reconhecimento dos efeitos do espaço no corpo, para uma caminhada guiada com uma hora de duração aquele perímetro era limitado. O grupo de guias, que contava inclusive com moradores da região, considerou imprudente a ideia de circular livremente na favela buscando uma prática estética sensorial. Para tanto, como a própria Myriam reconheceu, seria necessário um trabalho a longo prazo de aproximação entre a artista, os guias e a comunidade. Caso contrário, seria uma prática invasiva, desconectada com o contexto do lugar e, inclusive, perigosa. Ainda assim, a programação do evento Performando Oposições no Rio contava com a performance também no Colégio Estadual Monteiro de Carvalho, no bairro de Santa Tereza, a partir de uma parceria do movimento estudantil com o Capacete, um programa internacional de residências artísticas de pesquisa, que fez parte da organização do evento. Este colégio está inserido na onda de ocupações estudantis secundaristas no Rio de Janeiro, que começou em abril de 2016. Em Santa Tereza, tínhamos uma situação específica de público e lugar bem
Corpos inconformes Na passagem das décadas de 1960 para 1970, uma série de artistas de Nova York viram a cidade como campo de investigações artísticas, explorando possibilidades sensoriais e corporais em experiências efêmeras, happenings e performances, em ações vivenciais que transformam a percepção e incitam a participação. Vito Acconci criava regras de um jogo para andar pela cidade e fazia registros audiovisuais desses percursos. Em Following Piece (1969), todo dia durante um mês ele escolheu aleatoriamente um pedestre na rua e o perseguiu até que este entrasse em um ambiente privado. A perseguição, registrada em vídeo, poderia durar apenas alguns minutos ou várias horas, entregue à aleatoriedade e ao acaso. É possível relacionar este ato às deambulações narradas pelos surrealistas André Breton (no livro Nadja, de 1928) e Philippe Soupault (em As últimas noites de Paris, do mesmo ano), que perseguiram figuras errantes e narraram, em um embaralhamento surrealista entre realidade e imaginação, o modo como a cidade se confundia com a própria pessoa perseguida. Acconci, ao seguir figuras comuns, não errantes, descobre outra percepção do espaço, com estética que remete à prática de um detetive investigativo, esbarrando nos limites entre o público e o privado. Segundo o artista: “Uma visão da paisagem deve ser substituída por uma visão para a paisagem, e através da paisagem. A paisagem, ao invés de ser um objeto para os olhos, torna-se um objeto para o corpo; ao invés de um objeto para a visão, é um objeto de toque – um objeto de inserção do corpo na paisagem. Ao invés de receptor passivo da visão, a paisagem torna59 59 distinta daquela de São Paulo (um centro cultural com espectadores que frequentam e estão habituados com o universo da arte contemporânea). Trata-se de um bairro com topografia bastante acentuada, formado basicamente por uma única rua sinuosa, comprida, com algumas poucas bifurcações, o que impõe um percurso de vai e vem, sendo quase impossível perder-se. Se a variação horizontal é pouca, a vertical pôde ser ricamente explorada: entradas das casas por escadas, subida para o acesso à escola, diferenças de nível e andares dentro da mesma. Sabíamos que seria um confronto entre o guia de olhos abertos, que estava naquele ambiente pela primeira vez, e o espectador de olhos fechados, o aluno da escola muito familiarizado com aquele espaço. Quem de fato é o guia? Encontrei uma grande dificuldade destes alunos em se entregarem. A faixa etária, entre 14 e 18 anos, fase da vida ligada à autoafirmação de maturidade e independência, se somou à pressão social, por estarem sendo observados pelos amigos, e não apenas meros desconhecidos na rua. Com um menino apenas descemos a rampa de entrada da escola. Eu ainda estava preocupada em começar a construir uma relação de confiança com ele através do toque, para que ele pudesse se sentir à vontade de olhos fechados, e nem sequer tinha escolhido algum enquadramento para ele ver, quando decidiu que aquela experiência já tinha sido
Following Piece Vito Acconci, 1969
60 60 suficiente e decidiu terminá-la, evidentemente incomodado. A caminhada não deve ter durado mais do que cinco minutos. Já com uma menina, bastante ativa no movimento estudantil da escola, fizemos todo o percurso durante uma hora, mas claramente ela estava espiando, buscando sempre saber onde estava. Ela não queria perder o controle da situação e fazia questão de me dizer que sabia onde estava e aonde devíamos ir, buscando inverter nossos papeis. Era difícil para ela aceitar a situação silenciosa. Em meras elucubrações, penso que isso pode ter a ver com o fato de ela não querer se colocar em um papel de dependente justamente na fase da vida em que se está saindo da infância e se autoafirmando enquanto independente dos pais, ou por não haver espaço para as incertezas propostas nesta experiência em sua vida de atuação política afirmativa. Do que podemos chamar de experiência fracassada enquanto guia, levo o aprendizado sobre a dificuldade de se criarem elementos que realmente dialoguem com públicos tão diversos e a força para seguir tentando. Ainda que acredite no caráter transformador desta performance, posto que eu mesma o vivenciei, talvez uma transformação mais significativa da sociedade a partir da experiência do lugar só aconteça mesmo com uma revolução da vida cotidiana.
se um agente ativo em movimento” (Vito Acconti apud Zonno, 2006: 64) Nesta sua declaração, vemos a busca da ativação da percepção como forma de ativação do próprio sujeito, mas também da paisagem enquanto sujeito. A dançarina e coreógrafa Trisha Brown desenvolveu no mesmo período e também em Nova York algumas performances significativas sobre a relação entre corpo e cidade, e a alteração nas formas de percepção. Em Man Walking Down the Side of a Building (1970), viase literalmente um homem em posição horizontal caminhando na lateral de uma fachada de um edifício, com auxílio de equipamentos semelhantes aos de escalada. “A paisagem urbana, uma constante no trabalho de Trisha, bem como os equipamentos necessários para que as peças aconteçam – nada disso tem função decorativa na sua criação” (Banana, 2012: 39). Estes são usados de modo que passam a ser extensões do corpo, não em um sentido de prótese, mas e sim de codefinição: o corpo define a cidade e a cidade define o corpo. Em uma lógica da não representação alinhada ao minimalismo, trata-se de “uma pessoa embebida na circunstância de lidar com peso e gravidade, um dançarino executando uma tarefa sem pretender ser entendido fora dela, por exemplo, como sendo um anjo ou um personagem qualquer” (Banana, 2012: 34). Uma performance que lida com o momento presente, com aquilo que se é, e não aludindo a uma realidade paralela, se alinha com a busca de não espetacularização da experiência contida no cerne deste trabalho. Mesmo com dançarinos pendurados, as peças coreografadas por Trisha não são acrobáticas e nem buscam efeitos ilusionistas espetaculares, mas sim alterações de percepção da própria realidade. É 61 61
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Na página ao lado: Man Walking Down the Side of a Building Trisha Brown, 1970 Nesta página: Roof Piece Trisha Brown, 1971
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Este não é o momento de agir, é o momento de observar a partir de um outro ponto de vista, de perder o controle da situação para permitir a possibilidade de que algo aconteça, substituir a proposição pela percepção.
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Body Configurations Valie Export, 1972-76
sobre esta obra que a dançarina brasileira Adriana Banana faz um argumento que serve para todos os trabalhos aqui estudados, usado na epígrafe desta pesquisa: “se a percepção não se altera, não há como emergirem outros hábitos, outras metáforas, outras realidades” (2012: 39). O uso de elementos variáveis e não habituais que desestabilizam a percepção no espaço urbano é recorrente nas coreografias de Trisha Brown, também presentes em Roof Piece (1971) através de um posicionamento inusitado, no qual o mero fato de se ter que olhar para cima para poder ver a dança que acontece nas coberturas de vários edifícios cria uma nova relação entre dançarino e público, entre sujeito e cidade. As formas geométricas e rígidas da arquitetura do cotidiano condicionam, limitam e enrijecem os movimentos corporais. A artista austríaca Valie Export fez uma série fotográfica entre 1972 e 76 na qual mimetiza dobras, quinas, curvas e formas geométricas do espaço público de Viena, como que tentando se fundir com o ambiente construído. Fazendo posições incômodas e forçosas, contrastando o corpo curvilíneo com a rigidez da pedra, do concreto e do metal de uma cidade que não foi feita para o corpo (em especial o corpo feminino), 65 65
Por mais incômoda que seja a experiência de São Paulo, respirar fundo o cheiro do rio Pinheiros, escutar a sinfonia de britadeiras e automóveis e tentar deitar numa rampa anti-mendigo me trazem a sensação de pertencimento ao lugar, o que me dá um imenso prazer.
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Frame de Temporary Occupations Alex Villar, 2001
Body Configurations denuncia e critica o tratamento da mulher enquanto objeto que se dobra, desdobra e retorce para se enquadrar nas normas sociais. De caráter mais lúdico do que denunciatório, o artista brasileiro Alex Villar fez uma série de vídeos registrando as suas tentativas absurdas de encaixar o seu corpo em pequenos lugares de Nova York, como frestas entre lotes, espaços entre o corrimãos, cercas que nada protegem, grades que não o impedem de entrar. Em um destes vídeos, Temporary Occupations (2001), correndo pela cidade, ele inclui estes pequenos espaços urbanos inconscientes no seu trajeto, se desdobrando corporalmente para ocupá-los temporariamente e logo seguir seu caminho. Enquanto Gordon Matta-Clark, na década de 1970, registrava a imaterialidade da lógica imobiliária ao colecionar escrituras de terrenos completamente absurdos, minúsculos, sem fronteiras visíveis ou mesmo inexistentes5, nos anos 2000 Alex Villar revela frestas nonsense 5 Propriedades Reais: Bens Fictícios. Um trabalho conceitual que foge à lógica experiencial que se busca abordar nesta pesquisa. Sobre esta obra, ver BUENAVENTURA, Julia. Propriedades sem bens: dos lotes de Gordon Matta-Clark às manifestações de Félix González-Torres. São
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Oficina dos bichos Dando continuidade às minhas experiências fracassadas – o que seria o fracasso em uma proposta que não tem um objetivo produtivo deliberado? Não há dúvidas de que aprendi muito neste processo – propus uma oficina de consciência corporal e percepção espacial para a recepção de calouros na FAU, na semana dos bichos. Pensei em vários lugares da cidade que poderiam ter elementos interessantes a serem explorados, mas terminei realizando-a no próprio gramado da FAU por motivos práticos, para viabilizar a sua realização. O espaço escolhido, obviamente, foi determinante na experiência. Cidade Universitária, protótipo do urbanismo modernista baseado no uso do automóvel e na setorização. Vastos gramados, vastas e largas avenidas, vastos estacionamentos sem grandes variações de topografia, incontáveis ruas que vão até o horizonte, tudo homogêneo. Fiz uma proposta semelhante às minhas vivências anteriores, misturando aspectos da primeira oficina que ofereci em Córdoba com exercícios que aprendi com a Myriam. Ao formarem duplas para um guiar o outro, que ficará de olhos fechados, os participantes – poucos, uma turma de cinco corajosos que se aventuraram nesta oficina
68 68 esquisita em meio a uma programação intensa de atividades oferecidas por coletivos bem estruturados – encontraram uma grande dificuldade em fazer um caminho em que se perdesse o senso de localização, já que não havia elementos espaciais para a criação de percursos labirínticos. Enquanto guia, para mim não foi fácil encontrar pontos de vista parciais e sutis, que não dessem uma Gestalt do espaço. Aqui a visão é sempre ampla, profunda. Paradoxalmente, é recorrente encontrar com pessoas perdidas dentro do campus, pedindo informação. A USP é o encontro do campo de visão amplo com a difícil leitura e compreensão do território. Sem grandes variações de estímulos sensoriais, e menos ainda os “olhos das ruas”, tal qual proposto por Jane Jacobs, a experiência foi de interioridade, levando-se mais a atenção ao corpo, menos ao espaço. Apesar de haver bastante gente espalhada pelo entorno, essa massa homogênea de universitários (sejam alunos, professores ou funcionários, aqueles iguais a nós) não convida ao exercício de alteridade. O encontro urbano com o outro se dá apenas em lugares efetivamente públicos. A setorização por funções e a destruição do uso da rua pelo pedestre propostos pelo urbanismo moderno reduzem ao mínimo estes encontros de alteridade. Enquanto a minha busca era por ambientes urbanos com muitas camadas de
Esperiência nº 3 Flávio de Carvalho, 1956
desafiando a aparente incompatibilidade da rigidez do projeto urbano com a maleabilidade do corpo humano através da subversão, em práticas semelhantes ao parkour, mas com embasamento conceitual que lhe confere o título de artista. O corpo que não quer ser moldado pelas normas sociais e formas urbanas se revela e rebela nas experiências do multiartista brasileiro Flávio de Carvalho, considerado precursor do happening, conceito que viria a ser desenvolvido apenas nos anos 1960. Inserido no universo modernista paulistano e dialogando também com os surrealistas europeus, Flávio fez errâncias por São Paulo que tinham como horizonte devorar antropofagicamente a multidão. Sua Experiência nº 26 (1931), consistiu em andar na contramão de uma procissão vestindo um chapéu, o que era considerado uma afronta, com objetivo de fazer um estudo “psicoetnográfico” do comportamento das massas e resultou em um livro narrativo e analítico desta ação. O momento em que a multidão da procissão se volta contra ele Paulo: Tese de Doutorado, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, 2014. 6 Não existem registros oficiais da experiência nº1, que o próprio Flávio considerou fracassada e preferiu não divulgar nada a respeito.
69 69 estímulos e complexidade, nos quais alguém mergulha multissensorialmente e descobre a si mesmo e ao outro em meio a este maremoto, deparei-me com a mais pura calmaria. Neste contexto, o campus da USP quase pode ser comparado ao cubo branco do espaço expositivo ou à caixa preta do espaço cênico. Aquele que se pretende neutro, mas que, sabemos, carrega uma forte carga ideológica. Neste pretenso espaço imparcial, o que restou aos calouros foi o deparar-se consigo mesmos, não em um diálogo com o outro, mas com o vazio esterilizado.
violentamente gera no artista uma nova forma de percepção da realidade: “Percebia mais psiquicamente que visualmente; tinha a impressão de possuir por todo o corpo milhares de detectores que me mostravam com minúcia o que se passava. O sobrado das janelas, o amarelo sujo dos prédios, o escuro da população vinha e sumia à medida que me ausentava rapidamente; estava ciente da existência do berreiro mas não ouvia o som; meu pensamento só se ocupava do caleidoscópio veloz, do que via e sumia” (Flavio de Carvalho apud Jacques, 2012a: 105) Deliberadamente provocativo, sua experiência rendeu uma prisão (na verdade a polícia o defendeu contra o ataque da multidão), e notícias de jornal a seu respeito. O estrondo e o choque emocional da sociedade brasileira foi ainda maior na sua Experiência nº3 (1956), quando ele desfilou pelas ruas do centro de São Paulo exibindo o seu New Look: saia de pregas, blusa de mangas bufantes, meia arrastão, chapéu de nylon e sandália de couro. Ele desenvolveu esta vestimenta para o homem dos trópicos considerando ser alternativa mais apropriada do que o terno e a gravata, de herança colonial e incompatíveis com o clima tropical. Sempre preocupado com as formatações sociais do corpo, publicou em sua coluna de jornal: “é a moda do traje que mais forte influência tem sobre o homem, porque é aquilo que está mais perto do seu corpo e o seu corpo continua sempre sendo a parte do mundo que mais interessa ao homem” (Flávio de Carvalho apud Jacques, 2004). Paola Berenstein Jacques (2012a) traça uma linhagem artística brasileira da importância 70 70
da questão corporal na experiência estética urbana que passa pela importância da vestimenta, começando com o New Look de Flávio de Carvalho e tendo continuidade nos Parangolés de Hélio Oiticica a partir de 1964. O artista carioca, assim como as suas colegas Lygia Pape e Lygia Clark, desenvolveu os seus trabalhos nas mais variadas linguagens como experiências, provocando a dissolução das fronteiras entre arte e vida. Ele perambulava pelo Rio de Janeiro como se fosse um grande labirinto, no que chamava de Delirium Ambulatorium, que em muito se assimilava às derivas. “Situacionistas e tropicalistas tinham em comum a questão da participação contra o espetáculo, sobretudo Debord e Oiticica: o primeiro propunha a transformação dos espectadores em vivenciadores, e o segundo em participadores” (Jacques, 2012a: 206). Outros artistas continuam criando novos nomes para propor a mesma coisa. É o caso do paulistano Rubens Mano quando afirma transformar o seu público em perceptor. Ao travar relações estreitas com a comunidade da favela da Mangueira, Oiticica buscou reproduzir o estado de espírito do morro em seus Penetráveis e Parangolés, não através da representação, mas sim da incorporação. Ainda segundo Jacques, o Parangolé conseguiu abranger as várias dimensões presentes nos diversos trabalhos do Oiticica: dança (samba), arquitetura (sendo o traje um abrigo mínimo, pode ser considerado arquitetura no seu campo ampliado) e participação comunitária, já que o espectador passa a ser parte ativa da obra, construindo assim um senso de coletividade. Os Penetráveis são obras físicas no espaço que também propõem uma experiência ativa do espectador, dando novas funções ao museu com espaços de vivência que vão além da mera contemplação. 71 71
Corpo-sensíveis: errâncias com Marcella Em parceria com a minha amiga Marcella Arruda, arquiteta, entusiasta e estudiosa das relações entre o corpo e a cidade, realizamos ao longo do ano experiências cidade afora e subjetividade adentro. Através de práticas performáticas site specific, buscamos explorar as potencialidades do próprio corpo na sua relação inicialmente perceptiva e, logo, participativa com a cidade. Fizemos percursos sensoriais cegos alternadamente guiados por diferentes partes de São Paulo, partindo da técnica de Walk, Hands, Eyes (a city), mas extrapolando as regras do jogo propostas pela Myriam, na medida em que, com o decorrer dos nossos encontros, a pessoa guiada aos poucos foi se tornando agente ativo e atuante, para além de preceptor passivo. Por se tratar essencialmente de uma experiência cega, optei por não registrá-la em vídeo ou fotografia, mas apenas textualmente. A presença de uma câmera no espaço público funciona para legitimar e amenizar o possível estranhamento do público com uma atitude inusitada que se dá sem aviso prévio. Dos muitos percursos realizados, reúno aqui apenas alguns fragmentos de vivências, daquilo que foi possível traduzir em palavras.
72 72 De volta ao Bom Retiro, o desconhecido Partir de um lugar na cidade em que eu nunca havia estado, uma rua qualquer que em nada me remetia ao Bom Retiro, me levou a uma nova relação com a experiência guiada – a suspensão total da tentativa de se localizar. Ainda que conscientemente a decisão seja de perder-se, sempre há um impulso involuntário de reconhecer o espaço em que se está, buscar adquirir algum controle da situação. Ao fim da experiência, me surpreendi ao perceber que eu estava em um território conhecido: o havia vivenciado como algo legitimamente novo. O caminhão que passa, esse gigante ruído que se aproxima e distancia e faz o chão vibrar. Oscilação complementar entre caminhar e ficar parada.
Bom Retiro 31 de março de 2017 Depois do almoço
Uso do Parangolé Faça Você Mesmo – concebido por Hélio Oiticica em 1979 – no CrossFAU, atividade da semana de recepção dos calouros da FAU USP, 2010.
Saindo da esfera dionisíaca e entrando no campo da sobriedade, o escultor norte-americano Richard Serra também faz composições espaciais que propõem experiências e pressupõem um participante ativo, com estética e procedimentos distintos. Posicionando chapas metálicas nos espaços mais diversos, de interiores de museus a praças públicas e paisagens ermas, o artista diz focar na “experiência vivenciada através das obras” (Richard Serra apud Zonno, 2006: 60), e não na composição espacial perspectivada para ser observada de um ponto de vista específico. Enquanto Oiticica, ainda que com concessões ambíguas, faz uma provocação explícita ao museu, Serra se insere dentro da lógica deste. Apesar de seus espaços terem efeitos acústicos interessantes, fui reprimida por seguranças do Museu Guggenheim de Bilbao por experimentar sons vocais e suas ressonâncias dentro do trabalho The Matter of Time (19942005). Se o museu é o lugar pacificado do sagrado silêncio, só no espaço público que a obra de Serra adquire uma força crítica mais consistente, onde há a liberdade de se relacionar corporalmente com os espaços criados sem normas tão rígidas de conduta, inclusive podendo causar verdadeiros incômodos 73 73
Enquanto caminho, o fluxo de pensamentos corre livremente, associando estímulos externos a ideias outras, percebendo simultaneamente aquilo que vem de fora e de dentro, os movimentos do meu próprio corpo. Ao parar, a percepção interna é temporariamente suspensa, é o momento absoluto de perceber o que passa ao meu redor, um estado de alerta. Parada, sinto a presença de algo pequeno à minha frente vindo em minha direção. Seria um cachorrinho? Escuto o som de suas patinhas batendo no chão. Ao cruzar por mim, esses sons passam por ambos os lados do meu corpo. Seriam então vários? Mas e o dono? Não percebi ninguém passar, e eles teriam que estar sem coleira... Ou não seriam cachorros? Talvez apenas folhas secas no chão. Nunca saberei. Três imagens: Momento um: subo um degrau e piso temporariamente em algo fofo, que imagino ser um pé. Escuto uma televisão. A imagem em primeiro plano é a de um chão de cimento avermelhado com um capacho (ufa, não era um pé), enquanto a visão periférica indica que se trata de uma loja, não sei do que, mas com jeito de popular e familiar. Adjetivos fundamentados puramente na impressão imediata que me causou aquele
74 74 espaço, logo os relaciono com mais palavras como apropriação, improviso, identidade. Indícios de gente, de lugar com vida. Momento dois: uma rampa de concreto aparente toda envidraçada sobe aos meus olhos. Ao contrário da primeira lojinha, aqui é o reino institucional, do controle. Não há ninguém no meu campo de visão, estamos na sombra e faz frio. Momento três: acredito estar na calçada quando abro os olhos por um instante e me vejo dentro do arquétipo do terreno baldio. Chão de terra e muro que já foi parede de uma casa, em ruínas, com uma parte branca e outra com tijolos aparentes, e alguma vegetação nascendo dele. Aqui tampouco vejo gente, mas há rastros de que aqui houve vida. De uma trialética, dialética em que, além da tese e da antítese, há um terceiro elemento antagônico aos dois primeiros, nasce a síntese desta vivência.
Tilted Arc Richard Serra, 1981
e polêmicas, como foi o caso que resultou na retirada de Tilted Arc (1981) da praça para a qual foi feita em Nova York, consequentemente destruindo o seu caráter site specific e, logo, a própria obra. Suas esculturas convidam a percursos e orientações espaciais diversas. Em uma coluna de jornal sobre o comportamento das formigas, o filósofo João Cortese nos dá uma chave sobre a percepção espacial humana: “A orientação espacial de animais – inclusive a dos humanos, segundo alguns – pode ser classificada em dois tipos principais. O primeiro são as representações coletivas, que remetem àquilo que pode ser considerado um superorganismo.” (Cortese, 2017) No caso humano, esta se dá com o uso de elementos simbólicos (naturais e artificiais) que determinam marcas visuais na paisagem na constituição do território. E prossegue:
75 75 Estação Sumaré e arredores 6 de março de 2017 17:00
A cidade como instrumento musical1 Ingredientes: 1 pessoa de olhos abertos para ser guia instigador; 1 pessoa de olhos fechados e ouvidos abertos; 2 baquetas de bateria, uma para cada pessoa; 1 cidade. Modo de preparo: Esta será uma experiência muda, porém não silenciosa. Acrescente todos os ingredientes à cidade e explore o ritmo e a sonoridade de seus elementos, materiais e conformações espaciais. Adicione sons corporais a gosto. 1 Inspirada em Samples (Francis Alys, Londres, 2004),
Ear to the Ground (David van Tieghem, Nova York, 1979) e Walk, Hands, Eyes (a city) (Myriam Lefkowitz, 2015)
“O segundo tipo de orientação vem das representações individuais do espaço. No caso das formigas, dois grupos de teorias rivalizam para explicá-las. O primeiro grupo crê que a orientação das formigas é “vetorial”, sendo guardada por uma sequência de movimentações. Digamos que você deixou seu carro em um grande estacionamento – provavelmente você não se lembra exatamente “onde” está o veículo quando pensa diretamente sobre isso, mas sabe fazer o caminho de volta invertendo a rota percorrida anteriormente – andar até o fundo, virar à direita depois de uma coluna, à esquerda depois do elevador, no caminho inverso da sua ida. O segundo grupo de teóricos acredita que a representação espacial de uma formiga é “absoluta”, no sentido que ela teria um mapa – e que caso jogada para outra posição, ela poderia se reorientar (pense no seu aplicativo de trânsito voltando à ativa depois de dez minutos sem sinal GPS).” (Cortese, 2017) Independentemente de qual explicação é válida para as formigas, vale reconhecer que estas duas formas de cognição existem no comportamento humano. Enquanto que espaços com uma Gestalt mais definida geram representações “absolutas”, apreensões e mapas mentais do todo, obras cinestésico-temporais7 como as de Serra são compreendidas como sequências de 7 Cinestesia (percepção de movimento, peso, resistência e posição do corpo) é diferente de Sinestesia
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movimentos, “vetoriais”, guardadas na memória corporal, sem que se tenha de imediato uma apreensão do todo. A partir de percepções parciais, constata-se a impossibilidade de recompor uma visão de conjunto coerente, dado bastante planejado pelo artista, indo contra a geometria euclidiana, tal qual utilizada pela arte clássica ocidental, com suas perspectivas de compreensão instantânea ligadas às ideias de controle racional do mundo. Não à toa, ele se preocupa bastante com a representação de sua obra através da fotografia, selecionando minunciosamente os fotógrafos que ele permite fazê-las, já que quando estas criam uma imagem gestáltico das suas esculturas não representam a vivencia física que se tem delas. As esculturas são feitas para serem “vistas com os pés”, vivenciadas presencialmente, não havendo substituto imagético que represente aquelas experiências. Pallasmaa identifica que a teoria e a crítica da arquitetura quase sempre analisam a percepção e a experiência espacial através da Gestalt da percepção visual, uma arquitetura de imagens visuais tridimensionais chamativas e memoráveis, sem base existencial. “Essa informação de “tudo ao mesmo tempo” gerada pela Gestalt não é relevante e provavelmente é antitética com relação à natureza comportamental e temporal da experiência espacial” (Morris, 2006: 414). A união das dimensões espaciais e temporais, que na arte moderna tinha adquirido ares formalistas, como na pintura cubista, tomou a forma da experiência na escultura a partir da década de 1960. O artista Robert Morris, ao perceber que “certos espaços aglutinam mais o tempo do que as imagens” (2006: 412), desenvolveu o conceito de presentidade (presentness), (associação entre diferentes planos sensoriais. Exemplo: uma cor que remete a um cheiro)
77 77 Centro Cultural São Paulo 16 de maio de 2017 15:30
Formalização das nossas práticas com a criação do coletivo Corpo-sensíveis Ação do recém-criado coletivo no Seminário Internacional Onde estão as mulheres arquitetas?, realizado no Centro Cultural São Paulo, em maio de 2017. Roteiro: Andar livremente pelo espaço. Preencher os vazios. Olhar nos olhos de quem passa. Andar mais rápido. Mais rápido! Correr. Continuar preenchendo os vazios e olhando nos olhos. Parar abruptamente. Fechar os olhos.
78 78 Respirar. Soltar os joelhos. Sentir a oscilação do peso entre os pés. Sentir os vetores de movimento que o corpo pede. Amplificar. Exacerbar. Junto com o movimento, deixar a voz sair. Ir silenciando o movimento, mas manter a voz, como se ela desse corpo ao movimento. Deixar o corpo responder a esse som. Ainda é o mesmo movimento? Silenciar o som. Silenciar o corpo.
Naked City Guy Debord, 1957
defendendo a inseparabilidade da experiência do espaço físico daquela de um presente continuamente imediato. Uma obra espacial que tem a presentidade como dimensão primordial “existe para nós na extensão temporal exigida para que a vejamos” (2006: 410). Tais conceitos, materializados na obra de Serra, podem também ser aplicados a espaços urbanos. Em ruas medievais estreitas, tortuosas e labirínticas, na Paris antes das reformas de Haussmann ou até mesmo em diversas áreas com alta densidade e taxa de ocupação do solo de São Paulo, reina a presentidade e a orientação “vetorial”, enquanto que no urbanismo modernista, tal qual proposto pela Carta de Atenas e realizado em Brasília, a Gestalt é predominante, favorecendo um ambiente com um panóptico, marcado pelo controle, com sua orientação “absoluta” representada por um mapa em que se vê a cidade através do “voo de pássaro”. Tendo em vista que na perspectiva participativa tais mapas não representam a experiência do pedestre e servem como instrumentos de controle, os Situacionistas desenvolveram a prática da psicogeografia na busca de formas de representação da suas experiências labirínticas urbanas, 79 79
“O caminhar, uma ação que, simultaneamente, é ato perceptivo e ato criativo, que ao mesmo tempo é leitura e escrita do território” Francesco Careri, Walkscapes (2006: 51)
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This Way Brouwn Stanley Brouwn, 1961
levando mais em conta os afetos do que efetivamente aspectos formais do espaço. O artista holandês-surinamês Stanley Brouwn, na obra intitulada This way Brounw (1961), coletou mapas vetoriais de diversas cidades do mundo ao pedir para transeuntes escolhidos ao acaso que desenhassem numa folha em branco indicações de como se chegar a determinados lugares. As anotações só são compreensíveis na situação em que foram realizadas, na maioria dos casos não é possível consultá-las fora de contexto de modo que indiquem de fato um determinado trajeto que se possa reproduzir. O tema da cartografia que registra a experiência urbana tangencia mas transborda a temática abordada neste trabalho, sendo possível se fazer toda uma pesquisa apenas voltada a esta questão. Buscando explorações urbanas como “meio para inferir do território categorias estéticas e filosóficas com as quais confrontar-se” (Careri, 2016:142), o artista norte-americano Robert Smithson começou em 1965 a percorrer a região de Passaic, sua cidade natal na região de Nova Jersey, descobrindo uma paisagem industrial periférica que define como entrópica 81 81
Outras experiências, anteriores e posteriores Parque das Ruínas, Rio de Janeiro 9 de dezembro de 2015 16:00 Cartografias do Corpo, Som, Espaço Parceria entre os coletivos Do Aquário ao Mar e Ocupa PL para o festival “Emergências” Através da improvisação na dança do corpo em oscilação entre contrastes, desenvolve-se a percepção e a expressão do espaço ao redor: peso e leveza, barulho e silêncio, pressa e calmaria, ruína e floresta.
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A Tour of the Monuments of Passaic Robert Smithson, 1967
(certamente um não-lugar, antes da criação de tal conceito), na qual ele decide ironicamente denominar como monumentos os elementos industriais que ali encontrou. No seu artigo Monuments of Passaic (1967), Smithson convida o público para que percorra a região, onde não se encontraria nenhuma interferência do artista no espaço, se não o próprio readymade urbano daquilo já existente, o que nos remete ao tour Dadá dos anos 1920. Através da obra – que é simultaneamente um percurso, um lugar, um convite e registros em forma de artigo, fotografias e mapas –, Robert Smithson vê em Passaic a possibilidade da apreciação estética em paisagens sem precedentes históricos, promovendo uma ressignificação do território através da experiência. Sem a transformação semântica do não-lugar em monumento como fez Smithson, o coletivo Stalker – do qual Francesco Careri fez parte – também buscou a apreciação estética do não-lugar, dos vazios urbanos, do caos da cidade arquipélago, promovendo a ressignificação do espaço sem nenhuma interferência física a não ser através da própria presença do grupo, ao fazer um percurso pela periferia de Roma, identificando-a como o verdadeiro lugar da 83 83
Praça Roosevelt 15 de outubro de 2015 16:00 The World’s Biggest Eye Contact Experiment: São Paulo Promover o compartilhamento de um minuto de contato visual entre desconhecidos. Faixa por Marina Frúgoli e Marcella Arruda
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Stalker através dos Territórios Atuais Stalker, 1995
transformação espacial, enquanto o centro da cidade estaria, por assim dizer, congelado. Stalker através dos Territórios Atuais (1995) foi, dessa forma, um percurso a pé durante cinco dias que circundou toda a cidade de Roma através de 60km da sua periferia. Careri, em palestra de 2014, sugere que esta prática, a transurbância, pode ser feita em diversas cidade através de uma caminhada “estrábica”: com um olho no objetivo de se chegar a determinado lugar, e o outro com atenção às possibilidades do desviar-se. Em São Paulo – cidade que, dado o ritmo ininterrupto de construções e demolições, enquanto se constrói já se assemelha a uma ruína, como que em decadência sem ter passado por um algum auge, conforme constatou o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss na década de 1950 (Lévi-Strauss, 1996) – a ausência de memória, de futuro e de identidade não está restrita às áreas periféricas. Vive-se um constante refazer do presente, o que resulta em um potencial para ressignificações espaciais e simbólicas múltiplas.
85 85 Praça Victor Civita 19 de maio de 2017 10:00 Workshop Narrativas Corporais Urbanas promovido pelo coletivo Pragurbana. Composições corporais que se relacionam com o espaço circundante como moldura.
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Opacidade e névoa Me inspirando na frase de Francesco Careri, “quem perde tempo ganha espaço”, digo que quem perde a visão ganha o resto do corpo. Usar o artifício de diminuir a capacidade visual temporariamente como forma de ampliar os outros sentidos é algo recorrente na arte contemporânea em instalações e performances, tanto em propostas voltadas à participação quanto ao espetáculo. Quase sempre prevalece o embaralhamento entre realidade e imaginação. Uma das maneiras de se induzir a cegueira sem te forçar a fechar os olhos é o uso do recurso artificial da fumaça, como é o caso do Seu Caminho Sentido do artista dinamarquês Olafur Eliasson, realizado no Sesc Pompéia em 2011. Tive a oportunidade de visitar esta instalação. Trata-se de um ambiente fechado por paredes opacas e preenchido por uma névoa. Quando se entra a escuridão é total, vaga-se sem rumo até perceber a existência de uma luz, e então vai-se em direção a ela. Quanto mais se aproxima, mais ela se intensifica, até ficar insuportável de tão forte, causando uma cegueira branca. Seria assim a experiência dos personagens do Ensaio Sobre a Cegueira8? A total escuridão seria mais reconfortante que esta semi-visão, com apenas uma sutil percepção de claro e escuro e poucos metros de abrangência, vendo apenas silhuetas sem identidade nem cor. Recorre-se ao tato e à audição na tentativa de se localizar, de escanear o espaço e o próprio corpo, algo semelhante ao que Agnaldo Farias escreve sobre a instalação Blind Light do artista britânico Antony Gormley, também uma câmara 8 Livro de José Saramago escrito em 1995.
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Passeios Coreográficos (promenades blanches) Seguindo a recomendação do meu irmão, fui participar – aqui o termo ver ou assistir seria inapropriado – dos Passeios Coreográficos, de Alain Michard, presentes na programação do SESC Consolação, em abril de 2017. Performado e vivenciado pelo público, o passeio consiste em uma experiência guiada dois a dois, na qual um da dupla coloca óculos de superfície fosca, e posteriormente invertem-se os papéis. Com esta nova percepção visual provocada pelos óculos, a cor ressalta, vibra, brilha, e as fronteiras se dissolvem. Nesta dissolução dos limites, o mundo perde a solidez, mas não é nem sequer líquido, é gasoso (já dizia Marshall Berman: “na modernidade, tudo que é sólido se desmancha no ar”). É preciso apelar ao toque com as mãos para voltar a sentir a consistência dos objetos, para se aliviar desta insustentável leveza. Caso contrário, sinto que tudo se esvai. A opacidade é diferente da cegueira. A visão existe, mas é distorcida. Logo, não há um desequilíbrio corporal, mas ainda assim ocorre um aguçamento dos sentidos. O olfato, normalmente ignorado por mim mesmo em situações em que ele chama a atenção de muita gente, ganhou aqui um papel destacado. Que fascínio esta piscina com todos os
(neste caso com paredes de vidro) preenchida com uma fumaça que te cega: “uma coreografia nova, uma dança desconjuntada produzida pela simples tentativa de saber se, não obstante esse ataque às suas fronteiras, você ainda está” (2012: 62). Recorre-se também ao recurso do berro, a reação automática de muitas crianças que estavam ali, como se para confirmar a própria existência. Na solidão compulsória, é aflitivo o pensamento de que de repente pode-se esbarrar em alguém, sem que se perceba. Se eu não vejo ninguém, ninguém me vê. Posso então fazer o que quiser? Será assim depois da vida, um eterno flanar sem rumo entre a escuridão e a luz, sem espaço, sem ninguém, e ainda assim reconfortante? Apesar da insegurança causada pela momentânea cegueira, há a sensação de segurança de se estar em um ambiente controlado, de que nada verdadeiramente nocivo irá te machucar. O piso é liso e plano, sem armadilhas, e não há estímulos sonoros. Há também o conforto de saber que os outros não estão te vendo nesta situação vulnerável, porém libertadora, que pode te levar a fazer movimentos fora do habitual, tudo o que te der vontade, esta estranha coreografia de que trata Agnaldo, não só se apalpar, como efetivamente dançar ou o que mais se quiser. A única armadilha são outros visitantes. O pavilhão Blur building, projetado pelos arquitetos Elizabeth Diller (polonesa) e Ricardo Scofidio (norte-americano), é um pier de estrutura leve, no qual a água do lago sob o qual ele repousa é borrifada, formando uma névoa úmida que limita a visão. Uma variedade de estímulos sonoros e luminosos é espalhada pelo espaço. Feito para a Expo 2002 na Suíça, ainda que a escritora britânica Jane Rendell (apud Wisnik, 2012) o tenha considerado como instância 88 88 seus azuis e cheiros de cloro! Definitivamente entrei na névoa. Tenho feito tantas experiências cegas pela cidade que não vou gastar energia tendo vergonha, imaginando quem pode estar me vendo nesta situação vulnerável. É melhor aproveitar ao máximo o que ela tem a oferecer, afinal, não é todo dia que se tem acesso a óculos como esse. Entramos todos em uma casa de máquinas, o sei pela escuridão e pelo ruído de motor dominando o ambiente. Tudo está escuro, mas há pequenos pontos coloridos de luz, mágicos, gritantes, quero tocá-los! Fomos então a uma sala toda escura, já não tenho mais as cores para me divertir. Lentamente, um portão se abre para cima, revelando a luz da rua e a silhueta esfumaçada da pessoa à minha frente. Estarei em uma nave espacial de ficção científica? O efeito é definitivamente cinematográfico. Este filtro da visão transforma tudo em fantástico, me convida a um universo sem fronteiras entre o real e o imaginário. Sinto-me corporalmente dentro de um filme, não apenas vejo e escuto coisas incríveis, mas também sinto o seu cheiro e as toco com os meus pés. Não é a névoa branca que me cega, até acho engraçado que a performance se chame promenade blanche. É uma névoa vibrante e colorida. Como me diverti por estar usando a minha calça amarela! Quando não havia nenhum elemento chamativo, eu
89 89 voltava a olhar para ela e era o suficiente, não me faltava nada. Seguimos explorando ambientes variados, externos e internos. Transições entre calçadas e restaurantes, livrarias, farmácias... Com forte cheiro de tinta na entrada, entramos numa loja de arco-íris! A sequência de cores nas prateleiras passando e passando por mim era deslumbrante. Intriguei-me com a presença de tantos carrinhos e de uma geladeira... A princípio eu estava convencida de que era uma loja de tintas, mas na verdade este lugar deveria ser um supermercado. Pouco importa o que realmente é, afinal, dificilmente será mais interessante do que aquilo que imagino. Em uma biblioteca infantil, os livros especialmente coloridos me atraem, quero ler todos. Descobrimos um em braile, mas o fascínio da visão é tão predominante que o tato, neste momento, não me atrai. Acostumei-me ao estado gasoso do mundo. Olhar através de um vidro vira um jogo de adivinhação: será uma vitrine com uma escultura dentro? Colocar-se com uma postura aberta a qualquer estímulo potencializa a beleza da surpresa. Entramos numa sala de ensaio de um coral, justo no momento em que este solfejava em cânone com dois grupos de vozes, um masculino e um feminino. Em uma situação do cotidiano, o canto poderia ter passado batido. No momento de suspensão de qualquer preocupação ou compromisso, estas vozes passaram a ser tudo o que existe,
90 90 me envolvendo completamente. Em um parque com pavimentação circular, fizemos uma grande roda. Nos retraímos e expandimos, para então todos deitarem e admirarem o céu. Está nublado, com algumas nuvens bem, bem escuras. Mas é estranho, o tempo passa e elas não se mexem. Seriam árvores? Não importa, prefiro imaginar nuvens bem negras, que, por sorte, estão só na minha cabeça e, assim, não chovem. É uma relação a dois, mas também coletiva, já que uma dupla segue os passos da outra em fila indiana, e há momentos em que todo o grupo faz movimentos simultâneos, como na grande roda, ou correr todos ao mesmo tempo em direção a uma parede amarela, ou descer uma rampa de costas. Comunicar-se através do toque, para alguém que nunca tenha feito algum exercício deste tipo, é um grande desafio. Sinto a ansiedade do meu guia. Ele não confia no que faz e hesita a cada passo, quer apontar e descrever tudo o que eu vejo, enquanto eu peço para ele relaxar e ficar quieto, que a experiência tem que falar por si só, e não me interessa saber da realidade destes objetos que se apresentam a mim fantasiosamente. Com o tempo, ele fica quieto, mas não menos inseguro. Quando passa
Blur Building Diller Scofidio + Renfro, 2002 p. 86-87 Foto da autora p. 88-89 Blind Light Antony Gormley, 2007
crítica dentro de um evento desta modalidade, na medida em que não apresenta uma forma imagética de apropriação imediata e convida o visitante a um percurso, vejo no excesso de elementos utilizados na obra indícios do uso espetacular que se dá nesta diminuição da visão. Os espectadores recebem capas de chuva tecnológicas que emitem cores diferentes e incentivam a interação entre os usuários, indicando a compatibilidade de personalidade entre eles baseado em um formulário respondido previamente à entrada no pavilhão. Não só a localização como o próprio caráter de cada usuário é monitorado por um software. É uma ótima metáfora dos instrumentos de controle da contemporaneidade, não mais baseados em panópticos visuais (pelo contrário, mascarados em labirintos), mas em pequenos chips que carregamos conosco conscientemente. Aqui, a interação mediada pela tecnologia substitui a participação e as relações humanas que poderiam se dar de maneira espontânea, não fosse o excesso de efeitos especiais. Seria mesmo difícil imaginar uma obra que se pretende épica conseguisse ser efetivamente contra o espetáculo. Na mesma onda da visão turva e branca, mas saindo do 91 91
a ser guiado, a sua ansiedade cresce ainda mais. Ele não tinha percebido o quanto se perdia de nitidez, me guiou acreditando que eu via tudo igual a ele. Podem ser meras especulações, mas sinto que ele está na dúvida se quer aproveitar a vivência, ou se quer que tudo acabe logo, para voltar ao confortável (aparente) controle sobre si. Eu não queria que acabasse nunca. Ah, as cores...
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Passeios Coreogrรกficos (Promenades Blanches) Alain Michard
93 93 ร gora da FADA-UNA San Lorenzo, Paraguai
campo das instalações espaciais, temos a obra Visor (2001), do artista paulistano Rubens Mano. Trata-se de um objeto bem simples, no formato de um tapa-olho, destes que são distribuídos dentro do avião, mas em vez de cegar, é feito de um pvc incolor translúcido e texturizado que borra a visão e abafa a nitidez, dissolvendo todos os limites entre os objetos, como se fosse uma miopia em grau extremamente elevado, inumano. Produzido em quantidade e distribuído para cada visitante da exposição poder levar para a casa, é um elemento de distorção da percepção aberto a usos múltiplos, dando lugar à criatividade daquele que o recebe para perceber novas realidades, reconstruindo a sua relação com o espaço. Um óculos muito semelhante a este, feito de um plástico mais rígido, mas com os mesmos resultados visuais, é usado pelo coreógrafo e artista francês Alain Michard em seus Passeios Coreográficos (promenades blanches). Trata-se de um percurso guiado que já aconteceu em diversas cidades, inclusive em São Paulo (2017), no SESC Consolação e seus arredores, feito em parceria com a coreógrafa brasileira Elisabete Finger. Já tendo participado previamente da performance Walk, Hands, Eyes (a city), da também francesa Myriam Lefkowitz, não pude deixar de ter uma experiência comparativa em relação às duas performances. Sendo assim, tratarei primeiro desta para depois voltar ao Passeio Coreográfico, fazendo do andamento textual um reflexo do meu processo de reflexão e vivência . Em Walk, Hands, Eyes (a city), a artista Myriam Lefkowitz usa o próprio corpo como potência, apenas pedindo para você fechar os olhos, não recorre a nenhum artifício que não seja a corporeidade e a cidade que o rodeia. Sem metáforas, dialoga diretamente com o cotidiano urbano de uma pessoa. 94 94
O resultado desta performance é uma caminhada silenciosa de uma hora pela cidade, uma imersão na relação entre pessoa e o seu entorno através do andar e do sentir, colocando a visão como aspecto secundário, aparecendo apenas em ocasiões pontuais como quebra de ritmo. É um método que trata o corpo como uma ferramenta perceptiva. A experiência é vivenciada em dupla e lida com a imprevisibilidade e o improviso, já que é totalmente determinada pelo contexto urbano no qual é realizada, sem nenhuma determinação prévia. Myriam propõe um modo de se relacionar com a cidade que parte da experiência do percurso e se expande para outros aspectos da vida. Trata-se de uma mudança de paradigma: da intenção para a atenção. Se a percepção quando se está de olhos abertos se concentra principalmente na cabeça em direção a aquilo que se vê, de olhos fechados ela se expande para todo o corpo e em todas as direções, neste caso inclusive ao guia, como se ele fosse uma extensão sua, transformando a dupla em um ser único. Assim como as deambulações surrealistas da década de 1920 buscavam entrar em contato com o inconsciente da cidade, este modo de caminhar evoca o inconsciente do corpo. Segundo a psicóloga junguiana Judith Harris (2004), nos relacionamos com as nossas costas da mesma maneira que com o inconsciente. As costas simbolizam aquilo que não vemos, e não é à toa que são recorrentes as dores nesta região em grande parte da população. Ela diz que é possível criar uma ponte para o inconsciente a partir da percepção desta parte do corpo. Nesta experiência cega, os sentidos e as partes do corpo perdem a sua hierarquia, frente e costas, consciente e inconsciente passam a ter igual relevância. Sem o recurso da névoa, ao trazer a experiência da cegueira para o espaço público, os perigos, o medo e a vergonha de estar sendo observado se potencializam. Como nota Francesco 95 95 Campus da Universidad Nacional de Asunción San Lorenzo, Paraguai 3 de junho de 2017 Anoitecer
Volumen / (San Lorenzo) Numa ida ao Paraguai para participar de um congresso, pude reencontrar o Fernando Cañete, estudante de arquitetura da Universidad Nacional de Asunción, que eu havia conhecido em Córdoba, no ELEA. Tivemos então a chance de intercambiar vivencialmente as nossas práticas artísticas, com questionamentos semelhantes, sobre as quais anteriormente havíamos apenas conversado a respeito. Volumen é uma performance de autoteatro desenvolvida por ele especificamente para o edifício e o entorno da faculdade de arquitetura (FADA-UNA, no município de San Lorenzo). Trata-se de uma experiência individual, solitária, em meio à multidão de estudantes. Um teatro em que o próprio e único espectador é também aquele que atua. As instruções são claras: “não fale com
Careri em uma palestra (2014), a situação de constante alerta contra um possível perigo traz de volta a consciência ao todo do corpo, nos lembrando de que habitamos um corpo e não uma cabeça. O efeito de Walk, Hands, Eyes (a city) é a conexão, o inverso da solidão. A sensação de segurança se dará (ou não) na construção de confiança entre espectador e guia. É como se os dois corpos se fundissem, se um fosse a extensão do outro, ligados apenas por um toque suave na pele. O Passeio Coreográfico de Alain Michard se difere da proposta da Myriam Lefkowitz logo de cara pelos seguintes aspectos: trata-se de uma experiência coletiva, formada por um conjunto de duplas que alternadamente se guiam, que une aspectos do improviso com situações predeterminadas (ações coreografadas que se relacionam com características específicas de determinados espaços) e tem a visão, ainda que distorcida, como elemento predominante. Fazendo do espectador o ator das ações, a consciência do pertencimento a uma coletividade é ativada em diversas situações. O artifício dos óculos foscos elimina qualquer percepção de nitidez ou fronteira e causa fascínio, tudo o que se vê são manchas, as cores vibrantes e as fontes luminosas são especialmente atrativas. A relação entre guia e guiado também se desenvolve silenciosamente, apenas através do tato. Enquanto a construção de confiança em Walk, Hands, Eyes (a city) se fundamenta no fato do guia ter tido uma preparação para sê-lo, sendo alguém sensível para com o que o guiado estiver sentindo e se comunicando através de um toque leve e sutil na pele, no Passeio Coreográfico, assim como na minha primeira oficina Cartografias Sensório-Afetivas (embora neste caso a comunicação tenha sido mais sonora do que tátil), esta confiança entre 96 96 ninguém”. Para além do próprio espaço como suporte da obra, a vivência conta com uma gravação de áudio com fone de ouvido, que irá te conduzir pelos lugares, dizendo o que deve ser feito ou percebido, um livro e um lápis, que são carregados por aquele que a vivencia. Provocadora e introspectiva, a experiência estimula a percepção da arquitetura enquanto linguagem, da influência que a conformação espacial tem sobre os significados e as relações humanas, e também desperta a multissensorialidade do corpo, chamando a atenção aos sons dos passos, das vozes, dos ventos ao seu redor e às sutis vibrações de um pilar através da audição e do tato. Será a arquitetura realmente muda? Nos moldes de Walk, Hands, Eyes (a city), me coloquei na condição de guia do Fernando, um estudante dentro do campus de sua universidade, local no qual eu apenas havia percorrido brevemente. Mais uma vez, vivi a tensão da inversão da condição entre guia e guiado. Como mostrar um espaço para alguém que já tão bem o conhece? Serei capaz de provocar a desorientação espacial? Fernando encontra-se em estado de total entrega. Sinto que terei a sua confiança para explorar lugares inusitados, transpor a fronteira do que lhe é familiar.
desconhecidos se constrói a partir de instruções simples na base da reciprocidade, na medida em que se sabe que haverá uma troca de funções. O toque leve é substituído por um toque denso, os braços se agarram. O guia não é mais uma extensão da sua pele, mas sim amuleto do qual você depende para sobreviver. O espaço público, a dimensão participativa e o convite a novas formas de percepção do cotidiano são os elementos chave destas duas experiências.
97 97 Eu queria mesmo era tê-lo guiado no meio da cidade, mas as condições nos favoreceram para que fizéssemos a experiência ali mesmo, no campus. Mais uma vez no espaço modernista, setorizado, com uma única função. Pelo menos aqui não reina a amplitude e a Gestalt. O projeto levou em conta a escala do pedestre. Era sábado à noite, e a universidade estava vazia. Éramos as únicas pessoas percorrendo um deserto escuro. Sinfonia noturna: o canto polifônico das cigarras, o vento nas árvores, o pisar de nossos pés nas montanhas de folha seca, a queda de água em um minúsculo córrego. A cada descoberta de uma nova fonte sonora, dela nos aproximamos e nela nos detemos, para apreciá-la. A mente é capaz de reconhecer e classificar aquilo que escuta, mas também pode ressignificar os estímulos sensoriais em imaginações fantásticas. Andando em zigue-zague, em espiral, indeterminadamente, chegamos à portaria do campus. Lá fora, a cidade hostil nos espera. Não são necessários mais do que dez passos para sentir o contraste entre o dentro e o fora. Melhor do que caminhar é parar e observar (às cegas): a sinfonia chega ao clímax, motores automobilísticos em êxtase disputam por atenção enquanto geram um vento forte, que estapeia o nosso rosto. E ali ficamos, dando a cara ao tapa.
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Sonoridade espacial, espacialidade sonora Na busca de compreender a percepção coletiva do espaço urbano, a sonoridade aparece como um elemento fundamental. O sentido da visão promove experiências individuais na medida em que, mesmo quando há muitas pessoas em uma mesma situação, cada uma pode focar a vista em um aspecto específico do que se passa, com a possibilidade de ver algo que outra pessoa não veja, ainda que esteja também ali presente. Já a audição, pelo contrário, promove uma experiência coletiva. Imaginemos a situação de um show. Cada um terá um ângulo de visão diferente do palco, variando entre estar perto ou longe, à direita ou à esquerda. Mas essencialmente, todos os presentes escutarão a mesma música. Na antropologia urbana contemporânea tem se refletido a respeito da “marginalização da sonoridade enquanto ingrediente cultural de pertinência social” (Carlos Fortuna apud Mendonça, 2009: 142), buscando-se incluir no léxico das ciências sociais “a polifonia e a polirritmia, os ruídos e os silêncios da vida social” (Mendonça, 2009: 143). A antropóloga Luciana Mendonça defende, portanto, a integração da audição aos demais sentidos na prática etnográfica da exploração do cotidiano urbano, na direção de uma experiência multissensorial para a maior aproximação com o objeto de estudo, a cidade. Trata-se do reconhecimento dos sons como marcas sociais, tanto locais, manifestados através de músicas típicas ou mesmo em um determinado ritmo ou sotaque na fala, quanto globais, como nos ruídos de automóveis, nos toques de celular ou na paisagem sonora típica de um aeroporto. Em se tratando de paisagens sonoras, caracterizam um lugar não apenas a presença de 99 99 Bairro Alto Lisboa, Portugal 19 de julho de 2011 14:00
Paisagem sonora lisboeta Voltando no tempo para reflexões que tive nos primeiros anos da faculdade: quando visitei Lisboa, em 2011, no meu segundo ano de faculdade, participei de um workshop de arte sonora, como parte da programação da residência da Radio Zero, no Atelier Real. Percorremos o Bairro Alto com um gravador, buscando registrar sons que nos chamassem a atenção, para, posteriormente, fazer uma composição a partir deles. Foi uma experiência estética da cidade bastante reveladora. Até então, não tinha me dado conta do quanto faz diferença a presença do automóvel na paisagem sonora. Enquanto que em São Paulo este ruído é quase onipresente, no centro de Lisboa há muitas ruas residenciais de pedestre, pouco movimentadas, o que resulta em um grande contraste sonoro em relação às ruas que passam carros e permite a
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Forty Part Motet Janet Cardiff, 2001
pessoas ou de determinados elementos produtores de ruídos, como também ecos e ressonâncias. Em uma rua, estes variam de acordo com os materiais construtivos e com a sua largura. Numa crítica ao urbanismo moderno, Pallasmaa reconhece que “os espaços amplos e abertos das cidades contemporâneas não devolvem o som. Já não somos capazes de captar o volume acústico dos espaços. Nossos ouvidos foram cegados” (2010: 33). Além das transformações urbanas que modificaram a forma de percepção sonora dos espaços, com cada vez menos ressonâncias e mais ruídos de motores automotivos, o desenvolvimento da indústria fonográfica também provocou uma dissociação perceptiva entre sonoridade e espaço. Basta imaginar que, antes do advento da gravação e reprodução sonoras (popularizadas apenas no final do século XIX), a música era uma experiência que se dava sempre ao vivo, acompanhada necessariamente de um espaço na qual era apresentada. Fosse uma sala de concertos, um anfiteatro, uma taberna ou a própria rua, as características acústicas do lugar onde a música se realizava se inseriam como parte da própria obra. Com a gravação sonora, convencionalmente emitida por apenas 101 101
percepção de elementos urbanos como fontes sonoras das mais diversas. Sem nunca ter ouvido falar sobre John Cage, foi a primeira vez que reconheci ruídos como elementos musicais. Esta experiência, somada à minha forte relação com a música, que tive ao longo da vida, me trouxe à consciência a importância da paisagem sonora na percepção urbana, e concluí que este fator deveria ter tanto valor quanto a imagem no exercício de projeto. Ver que no ensino e na prática da arquitetura a acústica urbana é tratada apenas como uma questão de controle de níveis de ruído em dB é decepcionante. É como se a fruição estética sonora fosse reservada apenas ao momento em que se ouve música, e não a quando se percorre um espaço.
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Sonic Pavillion Doug Aitken, 2009
duas fontes em estéreo (L e R), nos acostumamos com músicas bidimensionais, ao ponto de as considerarmos como a única realidade possível. Com indiferença ao lugar onde a música será reproduzida (pode ser na rua, na sala da sua casa ou no fone de ouvido), diremos sempre se tratar da mesma música. Na experiência perceptiva do cotidiano, os âmbitos sonoros e espaciais estão completamente dissociados. O próprio cinema, com a tecnologia sonora estéreo em 5.1, buscou espacializar a experiência sonora para produzir uma sensação de maior realismo. Este recurso ficou restrito ao universo cinematográfico, tendo sido pouco aproveitado na produção musical mais recente. Aos poucos, artistas buscam trabalhar a espacialidade sonora, como em Forty Part Motet (2001), onde a artista canadense Janet Cardiff espacializa o canto de um coral em 40 autofalantes distribuídos em um pavilhão de Inhotim, em que cada um reproduz o som de apenas uma voz, sendo possível perceber o conjunto da obra e as particularidades individuais de cada cantor. Também em Inhotim, o artista norte-americano Doug Aitken explora a sonoridade espacial em seu Sonic Pavillion (2009), no qual busca captar o som das vibrações produzidas 103 103
A caixa torácica como microfone urbano O som se propaga não apenas pelo ar, mas também tudo o que é sólido ao nosso redor vibra junto com cada barulho que escutamos. Conforme aprendi com o prof. Dr. Mario Ramiro na disciplina Prática de Escultura II, ministrada na ECA, o microfone de contato é um aparelho simples, que, ao invés de captar os sons do ar através de uma membrana que vibra, é feito de uma cápsula de piezo, que produz sinais elétricos em resposta a estímulos mecânicos, captando a vibração apenas quando entra em contato com materiais sólidos. Com ferramentas simples é possível construir o seu próprio microfone. A partir de exercícios propostos pela Myriam Lefkowitz que compreendem a caixa torácica como uma caixa acústica com grande capacidade de reverberação,
104 104 surgiu a ideia de acoplar o microfone de contato a esta parte do corpo durante as minhas errâncias por São Paulo e registrar o áudio em um gravador, buscando estender a capacidade auditiva para além dos tímpanos e tomar consciência de como os ruídos urbanos afetam o corpo, fazendo-o vibrar como um todo. Montagem do microfone de contato: Materiais: cápsula de piezo, cabo de som mono, plug P10 e fita isolante. Ferramentas: ferro de solda, fio de solda para eletrônica, alicate de corte, chave de fenda, estilete e fita crepe.
Frames de Ear to the Ground David Van Tiegham, 1979
pela terra com microfones instalados a 200 metros de profundidade no solo. Os sons, que reverberam neste profundo furo, são amplificados dentro do pavilhão, cujo vidro da fachada interfere na percepção visual da relação entre espaço interno e externo através da variação entre transparência e opacidade que ocorre na medida em que o público se desloca pelo espaço. As duas obras aqui citadas apenas exemplificam a relação entre som e espaço, não abrangendo o âmbito participativo que se busca alcançar neste estudo. O compositor norte-americano John Cage foi crucial para uma mudança de paradigma na música do século XX, promovendo a transferência da discussão entre consonância e dissonância para a inclusão do ruído no conjunto de sons daquilo que reconhecemos como música. Para tanto, dentre uma série de atitudes nas suas composições, trabalhou na transformação de objetos do cotidiano em instrumentos musicais, de pentes de cabelo a espécies de cactos (como na composição Child of Tree, de 1975, em que faz percussão com plantas), muitas vezes utilizando microfones de contato para uma captação direta da vibração de cada material. Tendo sido quebrado tal paradigma, o percussionista norte105 105
Reflexões errantes pelo rio Pinheiros De volta a São Paulo, percorrendo este ambiente inóspito, faço um esforço em me perguntar: como eu me sinto aqui? Na escola me contaram que aqui havia sido, um dia, um rio de verdade, com usos de lazer e transporte hidroviário, um rio vivo. O meu avô me confirma isso quando conta as suas vivências daqui. Mas hoje é uma via de transporte expresso. Existe sentimento para o não-lugar? Se existir, ele passa a ser um lugar? A sensação é de vazio. O rio se transformou em mera paisagem em movimento, feia e fedida. Não encontro maneiras de parar para perceber os seus detalhes ou sentir as suas nuances, buscar por algum sinal de vida menos hostil. Ainda que haja gente que o faça, andar a pé aqui é viver a possibilidade de ser atropelado física e simbolicamente pelo excesso de estímulos incômodos ao meu redor. Há tantas barreiras físicas que a minha possibilidade de deslocamento é unidirecional, linear. Como fazer uma deriva nesta enorme linha reta em que é impossível se perder? Perco-me apenas em meus próprios pensamentos. Vejo vidas dentro dos carros e trens. Talvez eu deva entrar numa dessas cápsulas
americano David van Tieghem performou e registrou em vídeo Ear to the Ground (1979), uma peça na qual ele, munido de um par de baquetas, explora o ritmo e a sonoridade dos diversos elementos urbanos das ruas de Nova York. Muros, calçadas, placas, lixeiras, moedas, postes, cabines telefônicas, semáforos, bueiros, encanamentos, gradis, caixas de correio, vitrines, portas, garrafas... Tudo é transformado improvisadamente em instrumento musical, como forma de apropriação e ressignificação do espaço público, no que para mim soa como um convite para se fazer o mesmo9. Sem pretensamente definir-se enquanto música, em Samples II (2004), o artista belga Francis Alÿs percorreu as ruas de Londres também munido de baquetas e registrando o seu trajeto em vídeo. Em vez de se imbuir do papel de performer musical, age como um errante urbano, com o sutil ato de deixar que a baqueta espontaneamente, mas com intencionalidade, bata nos postes e grades na medida em que caminha. Sem ser explicitamente uma crítica direcionada, sendo aberto a múltiplas interpretações, o seu ato dá voz à presença visível e sensível corporalmente da grande quantidade de grades no espaço público londrino como elemento de controle.
9 Vale lembrar que sou baterista e tendo a interpretar qualquer percussão como um convite.
106 106 coletivas se eu quiser me relacionar com pessoas. Mesmo no trem, onde o excesso de gente e falta de espaço oferecem um caloroso contato físico, vejo um povo anestesiado, sobrevivendo, cada um em sua bolha, sem contato humano. No não-lugar, negam-se todos os tipos de relação. Fugir para o mundo virtual do smartphone, onde tudo aparenta ser relacional e participativo, parece uma opção confortável. A acomodação sensorial é a forma inconsciente do corpo de se proteger do sofrimento de todos os estímulos incômodos que estão ali. Reina a anestesia, o mergulho individual em seus próprios pensamentos e preocupações. Viver o aqui e o agora, aberta para sentir o que quer que o mundo me ofereça, é uma opção sofrida. Neste não-lugar hostil, viver dói. Se este é o preço para não estar anestesiada, estou disposta a pagá-lo.
Perguntas inconclusivas A busca de um estranhamento daquilo que nos é familiar nos faz retomar às ideias situacionistas. Sem o mesmo horizonte revolucionário que assinalava os anos 1960, uma análise marxista poderia a princípio julgar como mero esteticismo superficial grande parte das ações contemporâneas nesta direção. Com exceção daquelas completamente esvaziadas de um sentido participativo ou com uma fragilidade que resulta numa fácil apropriação pelo espetáculo, vejo estas práticas estéticas urbanas como parte de uma rede mais ampla, múltipla e espraiada de iniciativas, em geral horizontais, que combatem a passividade da sociedade do espetáculo e se relacionam de maneira ambígua e complexa com o mercado de arte e os ativismos políticos, tendo como horizonte a participação10 e a construção do espaço comum, para além das dicotomias entre público e privado. São práticas dissensuais que, de modo geral, não têm um objetivo único e direcionado, mas que atuam como partículas catalizadoras e transformadoras da percepção e, logo, das relações interpessoais e daquelas travadas entre a pessoa e a cidade, que aos poucos passam a ser menos passivas e mais participativas. O desafio é encontrar o equilíbrio sutil, complexo e inclusive ambíguo entre uma total passividade anestesiada e uma percepção multissensorial que se pretende ilimitada. Como se 10 A participação sobretudo como oposição ao espetáculo, conforme argumenta Guy Debord em
seu livro clássico e referencial A Sociedade do Espetáculo, publicado pela primeira vez em 1967. 107 107
O percurso não tem destino Em um percurso errático, o que está em jogo não são os pontos de partida e de chegada, mas tudo que está entre eles. Este caderno nada mais é do que um registro de um processo que começou bem antes de agosto de 2016, quando oficialmente iniciei a pesquisa para o Trabalho Final de Graduação, e seguirá depois dele, tomando rumos imprevisíveis. Do que surgiu como uma avidez por perceber mais e mais a cidade ao meu redor, levo a descoberta das potencialidades perceptivas, participativas e imaginativas do corpo - e da cidade.
abrir para um exercício de empatia sem ser engolido pelo maremoto de todo-o-sentimento-domundo? A criação de determinados filtros e barreiras perceptivos é essencial para a sobrevivência no cotidiano urbano. Mas quando eles são excessivos, geram uma experiência amortecida. Tratase efetivamente de uma equação delicada. Com base nas formas de percepção que levam à participação às suas máximas consequências, seria possível que, numa metrópole com as dimensões de São Paulo, todo e qualquer citadino fosse sujeito ativo na cidade? Esta escala de cidade que faz cada um se sentir anônimo e pequeno esvazia completamente a possibilidade da participação? Até que ponto as ações moleculares feitas por pequenos grupos em brechas urbanas são capazes de abalar as grandes estruturas da sociedade?
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Percebo, logo, participo.
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Participo, logo, percebo.
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117 117 Referência das imagens: Térreo p. 11 Foto por Federico Campodonico p. 80 e 81 Fotos por Gabriel Vasconcelos p. 82 e 83 Fotos por Marcelo Venzon p. 84 e 85 Fotos por Henrique de Paula As demais são de autoria própria