Mobilidade e Brasília

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Ensaio Teórico

Tema

Características espaciais da mobilidade no urbanismo de Brasília.

Banca

Maria do Carmo de Lima Bezerra Giselle Chalub Martins Benny Schvarsberg

Brasília, 2015 Universidade de Brasília Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Marina Hald Madsen de Mendonça - 10/0017479


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Sumário

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Introdução

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Objetivos

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Metodologia

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Capítulo 1 A Revisão Bibliográfica: Mobilidade e Forma Urbana

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1.1 Mobilidade 1.2 Forma Urbana 1.3 A Relação: Mobilidade e Forma Urbana

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Capítulo 2 Brasília – O Urbanismo Modernista e as Características Espaciais da Mobilidade

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2.1 Urbanismo Modernista 2.2 Características Espaciais do Plano Piloto de Brasília 2.3 Considerações Sobre a Cidade Implantada e a Concepção Urbanística que a Norteou 2.4 Tombamento do Plano Piloto 2.5 Mobilidade Urbana no Plano Piloto

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Capítulo 3 As Intervenções Urbanas em Brasília e a Facilitação da Mobilidade

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3.1 Área de Intervenção 3.2 Possíveis Intervenções

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Conclusões e Recomendações

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Bibliografia

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Imagens

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Introdução Ao longo de minha graduação na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília, tive a oportunidade de ter contato com excelentes mestres na área de urbanismo e que em mim despertaram um olhar crítico e questionador. Entretanto, sempre havia morado, desde berço, no Plano Piloto de Brasília, nunca tendo portanto a oportunidade de saber como seria a vida em outro tipo de cidade com outra configuração urbana. Minha mente de urbanista em formação esteve sendo construída apenas na teoria dos diversos tipos de configurações urbanas sem vivenciá-las. Ao concluir meu nono período, tive a oportunidade de realizar um intercâmbio pelo programa Ciência sem Fronteiras para os Estados Unidos da América, onde morei por oito meses em uma pequena cidade em Ohio e três meses na cidade de Nova Iorque. Ao retornar a minha cidade natal, um novo olhar foi inevitável. Após 11 meses vivenciando diferentes tipologias de urbanismo, retorno à capital brasileira e, como que num flash, compreendo na prática o que tanto penei para aprender na teoria. Compreendi como diferentes configurações urbanas repercutem no dia a dia das funções urbanas e como as decisões projetuais do urbanismo podem trazer consequências às vidas dos habitantes das cidades, o que resultou na minha decisão de ampliar meus estudos e pesquisas nessa área. O tema a ser abordado em meu Ensaio Teórico portanto é relativo à mobilidade urbana, um tema que tem sido bastante estudado por pesquisadores mas ainda precisa ser relacionado mais enfaticamente à forma urbana e trabalhado de maneira concomitante à etapa de projeto urbano, não ficando como uma função que deve ser respondida apenas por um melhor sistema de transporte público. É importantíssimo que se entenda a relevância de se pensar a mobilidade urbana durante o processo de projeto tendo em vista que o traçado urbano e a definição de usos do solo podem influir consideravelmente na mobilidade. O termo mobilidade urbana surgiu recentemente e está em corrente discussão, entretanto o que é recorrente entre os diversos autores é a sua 4


interdependência em relação às questões de uso e ocupação do solo, ao planejamento de transportes e às distâncias percorridas entre origem e destino, seja relativo ao transporte de pessoas ou bens. Estudos mais atuais apresentam ainda a influência do desenho urbano na mobilidade das cidades e é exatamente nesse ponto que o presente Ensaio Teórico concentrará seu foco de estudo e entendimento.

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Objetivo Geral O objetivo geral do presente Ensaio Teórico é identificar as características espaciais que conferem mobilidade urbana e analisar como esses elementos comparecem no Plano Piloto de Brasília.

Objetivos Específicos 1 Estudar literatura referente ao tema mobilidade e suas relações com diferentes configurações espaciais de cidades (cidade dispersa e cidade compacta); 2 Identificar o conjunto de características espaciais que favorecem a mobilidade urbana; 3 Conhecer as bases conceituais da proposta urbanística de Brasília, suas características espaciais e o entendimento dado a mobilidade; 4 Analisar como comparecem no Plano Piloto de Brasília as características identificadas como facilitadoras da mobilidade urbana; 5 Identificar dentre as características espaciais relacionadas à mobilidade aquelas que podem ser incorporadas ao Plano Piloto de Brasília visando a melhoria da mobilidade.

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Metodologia 1 Elaboração de base conceitual acerca da forma urbana, das características da cidade compacta e da cidade dispersa e da mobilidade urbana. Esta primeira etapa irá contemplar os objetivos específicos nos quais se estudará a literatura referente ao tema mobilidade e suas relações com as diferentes configurações espaciais de cidades, bem como se identificará o conjunto de características facilitadoras da mobilidade às cidades; 2 Análise bibliográfica das bases conceituais da proposta urbanística de Brasília para levantamento de dados acerca de suas características espaciais levando-se em consideração as variáveis extraídas do referencial teórico; 3 Análise comparativa entre o que foi encontrado ao longo da elaboração da base conceitual e os elementos formadores do Plano Piloto para construção de um quadro comparativo de elementos configuracionais que estejam presentes no Plano Piloto e nas referências conceituais estudadas sobre mobilidade; 4 Estudo de caso de uma fração urbana de Brasília, duas unidades de vizinhança vizinhas (SQS 308, 307, 108, 107 e SQS 208, 207, 408 e 407), para verificação da aplicabilidade de elementos configuracionais facilitadores da mobilidade que estejam ausentes na proposta do Plano Piloto. O resultado será a relação de possibilidades de intervenções sob características configuracionais para promoção da mobilidade em atendimento à condição de cidade tombada.

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CAPÍTULO 1 A Revisão Bibliográfica: Mobilidade e Forma Urbana

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Caminhar pelas calçadas, andar de bicicleta pelas ruas e ciclovias, utilizar o mobiliário urbano, usufruir e participar do espaço público são exemplos de experiências de troca entre o homem e o espaço urbano que participam da construção da identidade de uma cidade e de seu povo. A distribuição dos usos e ocupações, bem como das vias de circulação acabam por influenciar na dinâmica das cidades e podem ser apresentadas de diversas formas. Existem, por exemplo, as cidades chamadas dispersas e as compactas, as cidades que são dominadas por automóveis e ainda as cidades nas quais as pessoas circulam facilmente a pé ou com o auxílio de uma ampla rede de transporte coletivo, como metrôs e ônibus. A cidade deve possibilitar o deslocamento dos seus usuários uma vez que é um ambiente construído e, para isso, é estruturada por vias de locomoção, tanto para pedestres, ciclistas, automóveis, como para outros meios, como os metrôs. Bundó e Ventós (2000), afirmam que o traçado das ruas constitui a própria imagem da cidade pois é nas ruas que a vida se manifesta e que as atividades públicas ocorrem. A malha viária adquire essa importância por ser responsável pela hierarquia que as vias possuem, as distâncias que as atividades adquirem bem como a construção de relações entre os edifícios e os lugares. Em outras palavras, as ruas, onde há movimento e vida, compõe a forma urbana, que está portanto intimamente ligada à mobilidade. Em relação à mobilidade urbana sustentável, pode-se afirmar que seu alcance depende da articulação de diversos fatores, entre eles aqueles relacionados ao transporte e à circulação, às atividades econômicas e sociais e também à configuração urbana de cada cidade. Tendo essa amplitude de variáveis e complexidade do assunto em mente, esse Ensaio Teórico propõe-se a focar na mobilidade relacionada à forma urbana, já que esses estudos são bastante atuais, relevantes e em menor quantidade.


1.1 Mobilidade Mobilidade, cujo conceito vem sendo consolidado no Brasil ao longo dos últimos anos, é um termo relativamente recente e suas definições retratam um tema complexo pois dialoga com questões como uso e ocupação do solo e traçado urbano. Trata-se portanto de uma ideia mais ampla que o conceito de transportes, que é mais vinculado ao transporte público, ou seja, está mais relacionado a itinerários, tarifas e sua gestão. De acordo com a Lei Federal de Mobilidade Urbana (Lei nº 12.587 de 2012), mobilidade urbana é a condição em que se realizam os deslocamentos de pessoas e cargas no espaço urbano. Desta forma, está ligada portanto à articulação e efetividade de políticas de transporte, circulação, acessibilidade, trânsito, desenvolvimento urbano, uso e ocupação do solo, dentre outros fatores, tanto no âmbito da cidade quanto no âmbito metropolitano. Tendo em vista a multiplicidade de políticas necessárias ao tratar da mobilidade em uma cidade, nota-se sua complexidade. A partir dos anos 2000, o conceito de mobilidade começa a ter mais importância no Brasil. Segundo Kneib (2014), o Ministério das Cidades começa então a discutir definições para o tema mobilidade: • 2004: mobilidade como o conjunto das necessidades do deslocamento (dimensões do espaço urbano e atividades nele realizadas) e de políticas de transporte, circulação, acessibilidade e trânsito • 2005: mobilidade como o resultado da interação dos fluxos de deslocamento de pessoas e bens no espaço urbano, sejam fluxos motorizados ou não • 2007: ocorre o surgimento do conceito de mobilidade urbana sustentável, que foi definida como o produto de políticas que priorizam os meios de transporte coletivos e não motorizados, favorecendo então uma melhor sustentabilidade ambiental, bem como a redução da segregação espacial e, portanto, contribuindo com a inclusão social Segundo Campos (2007), a mobilidade urbana sustentável possui dois enfoques principais. O primeiro se relaciona com a adequação da oferta de transporte ao contexto socioeconômico, proporcionando acesso 13


aos bens e serviços com eficiência e equitativamente por meio de ações sobre o uso e a ocupação do solo e pela gestão dos transportes. O segundo tem a ver com a qualidade ambiental, ou seja, está intimamente relacionado às tecnologias de transporte que devem promover uma melhor fluidez do tráfego e aumentar a segurança urbana. Além dessas considerações, Campos cita também algumas estratégias para promoção da mobilidade sustentável, como: • Desenvolvimento urbano orientado ao transporte • Incentivo aos deslocamentos de curta distância • Restrições ao uso do automóvel • Implantação de sistemas de controle de tráfego e velocidade • Oferta adequada e integração do transporte público • Adensamento na proximidade de corredores e estações de transporte público • Investimento em transporte público que utilize energia limpa • Melhoria do conforto urbano, como calçadas adequadas, ciclovias, travessias seguras, iluminação e arborização de vias Essas estratégias envolvem questões relacionadas ao planejamento de transporte e, com muito menor ênfase, algumas estratégias de planejamento urbano. Desta forma, o tema mobilidade mostra-se complexo porque mesmo especialistas tendem vê-la de forma compartimentada. Estudos mais atuais começam a correlacionar o tema mobilidade a outros fatores, como a forma urbana, mostrando que estudos como o de Campos são relevantes mas precisam ser complementados. De acordo com Rogers (2001), as principais patologias relacionadas à mobilidade que podem surgir nas cidades são os congestionamentos, os conflitos entre os diferentes meios de transporte, que, assim como a eliminação de áreas verdes para a ampliação de vias ou criação de estacionamentos, podem causar também a redução da segurança e conforto para pedestres, bem como o aumento do número de acidentes de trânsito e dos níveis de poluição sonora e do ar. Essas patologias acabam por comprometer a qualidade ambiental urbana, como o conforto e a acessibilidade, gerando conse14


quências negativas à mobilidade e, consequentemente, à qualidade de vida da população. Essa é outra vertente, a qual associa o tema a questões ambientais que certamente são relevantes mas que ainda não abarcam todo o conceito. Além do que já foi anteriormente citado, Gentil (2015) afirma o desenho urbano, que é elemento estruturador da forma urbana, constituir também um fator condicionante dos padrões de mobilidade urbana em diferentes escalas. Por exemplo, em relação à microescala, ou seja, a escala das superquadras e unidades de vizinhança do Plano Piloto, a qualidade do espaço urbano tem grandes influências na escolha por transportes não-motorizados. Espaços cuja malha viária, que é um elemento da forma urbana, ofereça uma melhor acessibilidade e que os deslocamentos aconteçam de forma eficiente, acabam por proporcionar uma melhor mobilidade. Segundo Gentil, ainda há pouca menção sobre como a forma urbana pode influenciar na questão da mobilidade de uma cidade. Em outras palavras, ainda há certa falta compreensão de como os elementos da forma urbana articulados aos de transporte e circulação podem melhorar os deslocamentos em uma cidade e potencializar a mobilidade urbana sustentável.

1.2 Forma Urbana De acordo com Gentil (2015), a forma urbana pode ser definida por três fatores principais. Primeiro, pela sua configuração por meio da malha viária. Segundo, por meio de aspectos quantitativos, como taxa de ocupação, índice de aproveitamento, gabaritos e densidade, que são ferramentas de controle dos atributos físicos de uma cidade. E por último, mas não menos importante, pelos aspectos de organização funcional, como uso e ocupação do solo. Para se planejar uma cidade com uma boa mobilidade urbana, faz-se necessário estudar esses conjuntos de elementos que devem ser orientados pelas leis de zoneamento nos planos diretores dos municípios e que irão ajudar a moldar a forma da cidade. Afirma também o tecido urbano ser componente elementar da forma urbana e importante na análise morfológica já 15


que é a partir do desenho da malha viária, na cidade existente ou projetada, que são estabelecidos os limites dos quarteirões e edifícios, assim como é responsável por conectar as diversas partes da cidade. O tecido urbano para Panerai (2006) é constituído pela superposição de três conjuntos: as vias, os parcelamentos de terra e as edificações. A esses três conjuntos, Rego e Meneguetti (2011) acrescentam os espaços livres entre ruas e quadras, ou seja, parques, praças e monumentos. Para esses autores, a forma urbana é o produto das relações estabelecidas pelo homem entre a forma edificada, a forma dos espaços de permanência e a circulação, que é articulada pela malha viária. Segundo Lamas (1999), a forma urbana é um organismo que não depende apenas das condições históricas, políticas e socioeconômicas em que a sociedade cria o espaço e o habita, depende também do projetista, que tem suas teorias e seus posicionamentos culturais e estéticos estabelecidos. Define a forma urbana como a organização dos elementos morfológicos constituintes e definidores do espaço urbano, tanto relativos à organização funcional (como uso e ocupação do solo) e quantitativa (densidades, fluxos, dimensões, coeficientes volumétricos) quanto aos aspectos qualitativos (conforto e comodidade dos espaços urbanos) e figurativos (comunicação estética). Estudar a relação entre forma e mobilidade urbana é importante pois, como destaca Costa (2007), o crescimento e a organização dos espaços urbanos foram sendo condicionados pelo progresso tecnológico no setor de transportes ao longo do tempo. Em outras palavras, a compreensão acerca das mudanças e das novas formas que as cidades foram adquirindo está intimamente ligada às alterações nos processos de deslocamento das pessoas e, consequentemente, à mobilidade. Para identificar a relação entre forma e mobilidade urbana, com o intuito de potencializá-las, é importante estudar as diferentes características que os arranjos espaciais vêm adquirido ao longo do tempo nas cidades. O grau de compactação urbana tem sido um 16


dos aspectos mais estudados pelos especialistas e existem muitas pesquisas que procuram relacionar conceitos e características das cidades compactas e dispersas com a potencialização da mobilidade. 1.2.1 Cidade Compacta O surgimento de diferentes formas urbanas é resultado de um processo de urbanização que provocou o crescimento das cidades em diferentes contextos. De acordo com Costa (2007), na década de oitenta começam a ser estabelecidas as relações entre a morfologia urbana e o consumo energético e por isso surgem as generalização dos termos que designam as cidades como compactas ou dispersas. Segundo Rogers (2001), a “cidade densa” seria o reflexo reinventado e reinterpretado de uma cidade auto-sustentável. As cidades industriais do século XIX sofriam com superpopulação, pobreza e insalubridade e por isso os modelos de cidade compacta foram tão rejeitados no século seguinte. Devido a essas patologias, pensadores como Howard (1898) e Abercrombie (1949) propuseram a diminuição do número de habitantes por ambientes com menor densidade e maior quantidade de áreas verdes e então surgiram as cidades-jardim e as new towns. Entretanto Rogers afirma que no século XXI o modelo de cidade densa não precisa mais ser visto como prejudicial à saúde pública: o lixo industrial está desaparecendo das cidades do mundo desenvolvido, há a geração de energia e transporte público limpos assim como as tecnologias de tratamento de esgoto e lixo avançam. Tendo esses fatos em vista, pode-se reconsiderar as vantagens da proximidade social que a cidade compacta promovia. Outros autores também acreditam que a cidade compacta tem suas vantagens. Por exemplo, segundo Gentil (2015), é provavelmente a morfologia mais eficaz em termos de gastos energéticos, sustentabilidade, socioeconômicos e ambientais por oferecer melhores oportunidades de deslocamento. Em outras palavras, a forma urbana mais densa possui atributos que acabam por induzir a diminuição das distâncias, favorecendo os deslocamentos por meio das caminhadas 17


ou por meios de transportes alternativos, como a bicicleta. As densidades mais altas, assim como o uso misto do solo, também tendem a viabilizar um transporte público com maior eficiência e menores custos e, consequentemente, uma forma de mobilidade mais sustentável. Para Rueda (2002), a cidade compacta é aquela que é densa e pode ser percorrida a pé, ou seja, que possui características mediterrâneas, sendo assim a cidade do pedestre e não do automóvel. Para esse autor, a compacidade e a diversidade são muito importantes para as trocas, diminuindo dessa forma o gasto de energia, o tempo e o próprio solo. De acordo com Neuman (2005), as características de uma cidade compacta incluem: • Alta densidade, tanto residencial como de trabalho • Diversidade de uso e ocupação do solo • Desenvolvimento contínuo • Sistema de transporte multimodal • Alto grau de acessibilidade • Alto grau de conectividade (interligação de ruas, calçadas e ciclovias) que incentive a população a circular no meio urbano por meios de transporte não motorizados De maneira muito semelhante, para Leite e Awad (2012), a cidade compacta é um exemplo de forma urbana que promove com qualidade altas densidades, adequando o uso misto do solo urbano, misturando assim diversas funções urbanas. Assim como para o DPP (2011), Departamento de Prospectiva e Planejamento e Relações Internacionais de Portugal, que acrescentam à densidade, multifuncionalidade e diversidade, a continuidade como um fator importante. Segundo Rogers e Gumuchdjan (2001), as características da forma urbana compacta parecem induzir as cidades a um desenvolvimento que poupa o meio ambiente e acaba por promover formas de mobilidade mais sustentáveis. Os argumentos que favorecem a forma compacta das cidades em relação à promoção da mobilidade urbana segundo Gentil (2015) são: • Menor consumo de área construída para uma mesma quantidade de pessoas 18


• Proteção dos recursos naturais • Maior economia das redes de infraestrutura • Redução das distâncias entre origem e destino, como residência e trabalho, bem como do número de viagens e tempo • Maior número de serviços em um menor perímetro • Maior eficácia do transporte público • Estímulo a deslocamentos alternativos à utilização do carro • Redução dos fenômenos de segregação e exclusão social • Aumento de vida do espaço público Entretanto essa autora não deixa de citar também os pontos negativos da conformação compacta das cidades: • Maior a densidade, mais elevados se tornam os custos de construção e os riscos à saúde • Possível ocorrência do aumento de congestionamento no caso de densidades muito altas e mal planejamento viário • Condições precárias de áreas centrais que não correspondam a padrões de conforto • Diminuição das áreas verdes • Não comprovação da economia na oferta dos serviços públicos associados à compactação das cidades • Utilização do carro estar ligada a diversos fatores, como a preferência pessoal • Proximidade e tempo ser apenas um dos fatores para escolha do trajeto, que depende de preferências pessoais Ainda segundo levantamento bibliográfico feito por Gentil (2015), algumas variáveis que caracterizam a forma urbana compacta são recorrentes em diversos trabalhos. O seguinte quadro resume as características, que podem influenciar na mobilidade urbana, destacadas por cada autor.

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x Densidade alta Uso misto/ x Multifuncionalidade Continuidade (redução de vazios) Características do desenho urbano (conectividade/acessibilidade)

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Tabela 1 – Cidade Compacta

1.2.2 Cidade Dispersa O desenvolvimento da cidade dispersa, segundo Rogers e Gumuchdijan (2001), é resultado de um processo histórico que envolveu a evolução de novas tecnologias em transporte e em resposta à insalubridade das cidades industriais do século XIX, causada principalmente pela superpopulação e infraestrutura inadequada. A cidade dispersa tem suas origens conceituais no modernismo e, por isso, prima pela setorização das funções. Essa característica somada à malha urbana espraiada acaba por criar a necessidade do uso de transporte motorizado para o deslocamento de pessoas e bens. Esse tipo de urbanização, de acordo com Ewing (1997), decorre da expansão das cidades que causa o crescimento da mancha urbana com vazios intermediários e baixas densidades. Essa expansão além dos limites das cidades nos países ainda em desenvolvimento recebem suporte pelas redes de transporte e, à medida que se afastam do centro urbano, contam com cada vez menos serviços e espaços públicos de qualidade e, portanto, o carro acaba sendo o modal priorizado. O urbansprawl, modelo de urbanização dispersa segundo a literatura internacional, trata-se de um 20

Cervero e Kockelman (1997) Rogers e Gumuchdjian (2001)

Características

Rueda (2002) Jacobs (2009) Neuman (2005) Leite e Awad (2012) Jenks e Burgess (2000) DPP (2011) Jabareen (2006) Newman e Kenworthy (1989)

Autores

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Alves (2011)

Costa (2007)

Densidade baixa Zoneamento rígido (uso singular do solo) Grandes espaços vazios (desenvolvimento descontínuo e linear) Expansão urbana

Gomes (2009)

Características

Silva e Romero (2011)

Autores

Ewing (1997)

fenômeno ocorrente em escala mundial sob ritmos e caminhos desiguais e, por isso, vem sendo estudado sob diferentes abordagens. Entretanto, de modo geral, esse modelo conduz a uma nova realidade espacial que evidencia formas urbanas baseadas em padrões difusos de urbanização com densidades declinantes, como retrata Mancini (2008). De maneira semelhante ao quadro resumo apresentado no item anterior, Gentil (2015) elabora também quadro a seguir resumindo características citadas recorrentemente por alguns autores em relação à cidade dispersa.

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Tabela 2 – Cidade Dispersa

De acordo com Silva (2008), diversos são os problemas que podem ser desencadeados a partir de uma urbanização expansiva, entre eles: • Congestionamentos • Elevação do consumo energético e, consequentemente, aumento da poluição • Elevação dos custos da infraestrutura devido a baixas densidades e usos monofuncionais e setorizados • Segregação socioeconômica e aumento da exclusão social Em outras palavras, a forma urbana dispersa acaba por impor um deslocamento em grandes distâncias e condiciona a segregação social e a separação da população. Segundo Ojima (2007), “se uma região possui dispersão urbana maior, a necessidade de des21


locamentos e meios de transporte também é maior” e, por isso, acaba por gerar um aumento do consumo energético trazendo prejuízos ambientais e econômicos. Claro que também há pontos positivos na formação dispersa das cidades, como a possibilidade de um maior contato com a natureza em meio urbano e também em termos estéticos. Entretanto, não se pode deixar de ressaltar que, por via de regra, acaba por promover pouca interação social e, caso não seja muito bem trabalhada e planejada, pode trazer diversos prejuízos à mobilidade urbana em decorrência das grandes distâncias geradas por esse tipo de conformação. Em função disso, esse trabalho apóia-se na hipótese de a compacidade mais elevada possuir atributos que podem auxiliar na promoção da mobilidade relacionada ao transporte individual.

1.3 A Relação: Mobilidade e Forma Urbana Como citado anteriormente, o tema mobilidade urbana tem sido bastante estudado nas últimas décadas por diversos autores, entretanto apenas alguns pesquisadores realizam um estudo mais aprofundado correlacionando forma urbana à mobilidade. As relações entre transporte e forma urbana começam a ser mais enfáticas ao acontecerem discussões sobre as cidades que possuem densidades urbanas mais elevadas acabarem barateando os custos de infraestrutura e promovendoo desenvolvimento sustentável, bem como melhores condições para a vida urbana. De acordo com Gentil (2015), apenas alguns trabalhos e pesquisas tentaram explicar a relação entre forma e mobilidade, como é o caso de Cervero e Kockelman (1997). Esses autores destacam os 3Ds, ou seja, três dimensões das cidades que podem influenciar nos deslocamentos: a densidade, a diversidade e o design, em outras palavras, o desenho urbano. Testam essa proposição examinando como os 3Ds afetam a taxa de viagem (com foco na matriz origem/destino). Para os criadores dos 3Ds, o meio construído da cidade se dá em função da densidade de ocupação, da diversidade de usos e do desenho proposto pelo urbanista. 22


Bem como os autores anteriormente citados, no artigo Land Use Mix and Daily Mobility: The Case of Bordeaux, Pouyanne (2005) descreve que a relação entre forma e mobilidade tem a ver também com aspectos quantitativos da forma, como a densidade, e a diversidade do uso e ocupação do solo. A ideia central é de que a mistura de usos promove a aproximação entre a origem e o destino das viagens, produzindo assim impactos positivos sobre a mobilidade urbana. No início dos anos 90, segundo Sepe e Gomes (2008), a Comissão Europeia realizou a edição do Livro Verde do Ambiente Urbano, que apresentou o modelo de cidade compacta como proposta para implementação das políticas públicas nas cidades europeias. A redução da impermeabilização dos solos e das distâncias a serem percorridas associada à oferta de transporte ecológico e a contenção do crescimento urbano horizontal procurando minimizar os efeitos da urbanização em áreas ainda não urbanas são as principais propostas contidas no livro. As vantagens das cidades que possuem forma urbana compacta, segundo Newman & Kenworthy (1989) e Burton (2000), têm sido debatidas no campo do planejamento urbano e transportes. Entretanto segundo Fernandes, Maia e Ferraz (2008), os estudos que relacionam forma urbana e mobilidade ainda são muito poucos, bem como pode-se concluir que ainda não há um consenso entre os pesquisadores no debate acerca da forma ideal, o que pode ser considerado positivo. Caso houvesse a determinação de uma forma urbana ideal, o pensamento, a criatividade e a dúvida seriam aniquilados e o projeto urbanístico seria reduzido a uma mera cópia de um padrão considerado ideal por uns. Como defende Crane (1999), a realidade das cidades se dá de maneira muito mais complexa e conta com uma série de características para ter sua forma julgada ideal apenas por ser caracterizada como cidade compacta ou dispersa. Apesar disso, crê que mudanças no desenho urbano articuladas ao uso do solo podem reduzir o uso do carro e evitar o espraiamento urbano. Gentil (2015) propõe uma sistematização que visa auxiliar urbanistas e planejadores urbanos a me23


lhor explorar alguns parâmetros urbanísticos que podem facilitar a mobilidade. A tabela abaixo resume como determinadas características físicas da forma urbana compacta podem influenciar nos padrões de mobilidade sustentável. Fatores relacionados à forma urbana compacta

Influência na Mobilidade Urbana Sustentável

Densidade

A densidade é influenciada pelos índices urbanísticos (taxa de ocupação, índices de aproveitamento, gabarito). Criar uma diversidade urbana de tipologia de habitações, diferentes densidades, tamanhos diferentes de terrenos públicos ou privados implicaria em menor segregação espacial e poderia também influenciar a mobilidade urbana porque é um atributo condicionador da densidade. O aumento da densidade pode auxiliar na redução das viagens por veículo se planejado junto com a oferta de transporte público e uso misto do solo. Baixa densidade impacta de forma negativa a mobilidade urbana.

Características do uso do solo urbano (uso misto, multifuncionalidade/uso singular)

Promover o uso misto e maior proximidade entre as diversas atividades pode reduzir a necessidade do automóvel e facilitar na construção de uma rede de transporte mais eficiente e integrada. Uso singular ou zoneamento rígido pode gerar mais deslocamentos no tecido urbano, impactando de maneira negativa na mobilidade urbana.

Continuidade

Tendência à limitação do processo de expansão urbana. Crescimento próximo ao centro. Preenchimento dos espaços vazios, requalificação dos espaços degradados. A expansão das cidades é um fator que gera mais viagens de automóvel.

Características do desenho urbano/ (conectividade/acessibilidade)

As características do desenho urbano podem auxiliar na redução de viagens de automóvel, principalmente se o mesmo permitir articulação com o serviço de transporte público por meio de melhor conectividade e acessibilidade entre ruas, calçadas e ciclovias. Dependendo da concepção do desenho urbano, pode-se atribuir em determinadas áreas urbanas uma maior ou menor utilização para os transportes não-motorizados ou transporte público, reduzindo a dependência do automóvel.

Tabela 3 – Forma Urbana x Mobilidade

Brasília, por ter origens no urbanismo modernista, possui uma variação de características peculiares 24


e apresenta uma gama de desafios em termos da mobilidade urbana, principalmente para aqueles que não possuem meio de transporte individual motorizado, em outras palavras, os pedestres ou ciclistas. Nos próximos capítulos, serão apresentadas as características do urbanismo modernista de Brasília e será feita uma confrontação com as variáveis que possuem potencial de facilitar a mobilidade urbana apresentadas por Gentil (2015).

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CAPÍTULO 2 Brasília – O Urbansimo Modernista e as Características Espaciais da Mobilidade A partir do entendimento das características consideradas facilitadoras da mobilidade urbana, será analisada uma fração urbana para verificar como as mesmas comparecem e quais intervenções poderiam ser propostas para a potencialização da mobilidade por meio de alterações na forma urbana. Com o intuito de caracterizar o objeto de estudo, o Plano Piloto de Brasília, serão tratadas das premissas do urbanismo modernista abordando os aspectos que foram objeto de tombamento pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e pela UNESCO.

2.1 Urbanismo Modernista

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A intensificação do processo de urbanização ao longo do século XIX no plano internacional provocou diversos problemas da circulação urbana que levou ao desenvolvimento de uma série de proposições de como organizar as cidades. Essas soluções levaram à criação de instrumentos como o zoneamento de uso exclusivo e segmentação das funções, dentre elas o próprio sistema viário e de transportes. Essas características fazem-se presentes no que se denominou urbanismo modernista. A segmentação das funções proposta pelo urbanismo modernista tende a gerar deslocamentos pendulares. De acordo com Ficher (2010), o uso do solo e a distribuição de atividades no espaço urbano foi uma temática típica nos fins do século XIX a meados do século XX, tendo destaque o instrumento do zoneamento. Resultado do esforço de controlar as atividades em diferentes áreas da cidade por meio de regulamentações que determinam os usos permitidos nas edificações, o zoneamento extremo acaba dando lugar à setorização – definição estrita da localização de determinados usos, orientação essa facilmente percebida capital brasileira. A especialização de vias de tráfego e concomi-


tante busca da separação entre pedestres e veículos foi uma preocupação crescente na resolução da circulação no interior da cidade. A introdução de grandes infraestruturas de caráter rodoviário foi sendo incorporada já no segundo quarto do século XX, rompendo com a coesão e continuidade do tecido urbano tradicional. Ao longo do século XX, na tradição das obras de Haussmann para Paris (1854-58 e 1858-68), a demolição e reconstrução de extensas parcelas urbanas, tendo como precedente o surgimento da ferrovia, será ferramenta constante no trato de cidades de maior porte, segundo Ficher. O recurso ao urban renewal, com foi batizada essa modalidade de intervenção nas cidades, associado à tentativa de revalorizar bairros degradados de grandes cidades e/ou à reorganização do sistema viário, foi intensificado quando da reconstrução de cidades europeias no segundo pós-guerra. Esse urbanismo, denominado por Ficher, rodoviarista, acaba dando atenção, por muitas vezes, desmedida à circulação de veículos motorizados e assim pode acabar pecando pelas altas velocidades que possibilita em situações urbanas e pelo emprego de soluções eminentemente rodoviárias, que são adequadas a estradas de rodagem e não a cidades. As estradas-parque, geralmente realizadas em conjunto com obras de urban renewal e que têm como principal recurso vias expressas associadas a trevos e viadutos, foram implementadas em Berlim e Nova Iorque na década de 1920. A partir da década de 1950, na grande maioria dos estudos de intervenção urbana, as soluções rodoviaristas estão presentes de maneira exagerada, como afirmado por Ficher, e ocupando áreas cada vez mais extensas, como por exemplo os projetos metabolistas de Kenzo Tange para a ampliação de Tóquio (1960) e para a reconstrução de Skopje (1965). Já na década de 1970, foi aflorada uma oposição mais incisiva a este paradigma quando do embargo do petróleo pela Organização dos Países Produtores de Petróleo. O rodoviarismo suscita, além do aspecto energético, críticas técnicas quanto a sua efetividade que são bem sintetizadas na definição gaiata de highway apresentada por Ficher como sendo o caminho mais rápido para chegar a um congestionamento. 29


Esses conceitos referentes ao trato do sistema viário e de transportes vai se refletir nos fundamentos da corrente urbanística do modernismo, que, por sua vez, incorpora outros elementos referentes ao avanço tecnológico, como o desenvolvimento da tecnologia do concreto armado. De uma forma simplificada pode-se dizer que zoneamento de funções exclusivas, sistema viário como uma função própria e uso das possibilidades do concreto armado caracterizam esse movimento que encontra em Brasília sua aplicação ao longo da segunda metade do século XX. Importantes proposições modernistas, como a Ville Contemporaine (1922), de Le Corbusier, e o estudo de Lucio Costa para a Cidade Universitária do Rio de Janeiro (1937), contam com regularidade, simetria e emprego de edificações isoladas. Isso demonstra que apesar dos ideais de ruptura com a tradição e de renovação de repertórios formais, a monumentalidade expressa com os recursos acadêmicos continuou em vigor e não perdeu sua relevância no contexto do Movimento Moderno. Essa distribuição mais rarefeita associada a soluções rodoviaristas acaba por dar fim à prática do parcelamento do solo em lotes com divisas definidas, resultando quase sempre em áreas desagregadas e de baixa urbanidade. De acordo com Ficher, a cidade convencional vai desaparecendo e sendo substituída por vazios de orientação e significado que contam com graves problemas de acessibilidade. Além disso, também afirma que as edificações isoladas não representavam exatamente uma novidade, já que no passado o isolamento no contexto urbano fazia-se presente, embora quase sempre ligado a uma arquitetura de caráter monumental e/ou excepcional. Outras características desse tipo de urbanismo são apresentadas por Choay (1992), que destaca dois pontos importantes para formação da cidade modernista. Primeiramente, a preocupação com a higiene e, por isso, “o espaço do modelo progressista é amplamente aberto, rompido por vazios e verdes” (p. 8). Em segundo lugar, há a organização do espaço urbano, sendo esse “traçado conforme uma análise das funções humanas” (p. 9) e, como consequência dessa análise, o habitat, o trabalho, a cultura e o lazer são instalados 30


em locais distintos. Esses dois princípios citados por Choay e também discorridos por Ficher podem claramente ser observados em Brasília. O paradigma desse urbanismo modernista começa a perder sua legitimidade no plano internacional no início da década de 1960, quando passa a ser objeto de uma nova análise pela crítica urbana. No Brasil entretanto, irá perdurar por mais alguns anos e no caso de Brasília, que se torna um grande símbolo desse modelo, isso se perpetua seja pela cultura ou pelo tombamento da cidade.

2.2 Características Espaciais do Plano Piloto de Brasília A ideia da transferência da capital do Brasil para o interior de seu território remonta ao período colonial mas se concretiza apenas na presidência de Juscelino Kubitschek. Definida a área onde se localizaria a nova capital, é realizado um concurso público de urbanismo para o plano urbanístico em 1956. O vencedor, dentre os vinte e seis participantes, foi o arquiteto Lucio Costa. Segundo Ficher (2010), seu projeto sofreu influências do repertório corbusiano e seria uma versão “beaux-arts” de cidade linear associada a soluções rodoviaristas e à forte setorização de usos. Como repertório, cita a Ville Contemporaine (1922) e a Ville Radieuse (1930-35). À esquerda, primeiros traços de

Lucio Costa para o Plano Piloto de Brasília. No Relatório, escreve: “Nasceu do gesto primário de quem assinala um lugar ou dele toma posse: dois eixos cruzando-se em ângulo reto, ou seja, o próprio sinal da cruz”.

Figura 1 – Croqui do Plano Piloto

Mais a frente um pouco no Relatório, Lucio fala sobre o carro, demonstrando que na década de 1950 a mobilidade realmente não era um ponto de preocupação: “Não se deve esquecer que o automóvel, hoje em dia, deixou de ser o inimigo inconciliável do homem, domesticou-se, já faz, por assim dizer, parte da família”.

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No Plano Piloto de Brasília, Lucio Costa utilizou o tradicional recurso de empregar dois eixos ortogonais para organizar as principais funções urbanas. As atividades foram hierarquizadas e distribuídas nesses eixos, sendo distinguidas entre aquelas de caráter mais cotidiano, ao longo do Eixo Rodoviário-Residencial, e as de caráter monumental e simbólico, no Eixo Monumental. A dimensão cívica é a feição essencial de uma cidade-capital, por isso os atributos característicos da monumentalidade foram levados em consideração. O recurso à composição monumental, como o emprego de eixos reguladores, simetria, ordenação geométrica, isolamento das partes, disposição regrada de volumes e marcação de pontos focais com edifícios imponentes e obras de arte segundo uma relação de cheios e vazios que se diferencia do tecido trivial do restante da cidade, torna-se uma solução pragmática por excelência, segundo Ficher (2010). Portanto, a verdadeira novidade no Plano Piloto de Lucio Costa é a ruptura dos limites do quarteirão tradicional, que geralmente é constituído por edificações geminadas, dando lugar às superquadras. De acordo com Ficher e Leitão (2010), as superquadras passaram por diversos momentos de indefinição com relação a distribuição, quantidade, endereçamento, configuração interna e uso do solo. As quatro principais razões citadas para as modificações são: sugestões do júri, vicissitudes do processo de transferência, diálogo com planos de infraestrutura e interpretação do plano. No texto A infância do Plano Piloto: Brasília, 1957-1964, realizam uma ampla análise em relação ao desenvolvimento das plantas do Plano Piloto entre os anos 1957 e 1964. A seguir, apresenta-se uma síntese dessa extensa pesquisa com intuito de auxiliar na compreensão de como Brasília foi sendo concretizada. Em relação à distribuição das superquadras, no plano inicial estas estão simetricamente dispostas em relação ao Eixo Monumental em três faixas de quadras: duas a oeste do Eixo Rodoviário-Residencial, ora denominadas 100 e 300, e uma a leste, ora denominada 200. Posteriormente acrescentou-se uma faixa a leste, ora denominada 400, com superquadras duplas e de 32


planta retangular, que partilhariam um mesmo acesso viário. O advento das novas faixas de quadras (400 e, a também adicionada ao plano original, 700) alterou a configuração predominantemente linear das asas, criando novos fluxos transversais de trânsito não previstos e, segundo Ficher e Leitão, incompatíveis com o dimensionamento e geometria das vias de acesso local às quadras. Previamente ao deslocamento de todo o conjunto urbano a leste, tanto na Asa Sul como na Asa Norte, as faixas 100 e 300 contavam com dezessete superquadras e as 200, com quinze, totalizando assim 49 superquadras por asa e 98 no total. O Eixo Rodoviário-Residencial acabou tornando-se mais curto e curvado em decorrência do deslocamento do conjunto urbano. Desta forma, as faixas 100 e 300 passam a contar com apenas quinze quadras cada, bem como a 200, que permaneceu com o mesmo número. A nova faixa 400 foi inclusa também contado com quinze quadras, totalizando assim 60 superquadras por asa e 120 no total. Ainda de acordo com Ficher e Leitão (2010), a cidade prefigurada no risco de Lucio Costa não comportaria 500 mil habitantes: pelo menos em seu relatório, Costa não menciona a população máxima de projeto, nem mesmo apresenta estimativas demográficas. Desta forma, foi somente após o aumento das áreas habitacionais que se atingiu, no papel, um número próximo àquele estabelecido pela Novacap (MÓDULO, nº 8, p.12). De acordo com Costa e Lima (1985), os projetos das superquadras tiveram por base um dos croquis do Plano Piloto de Brasília. O projeto de implantação das Superquadras em geral foi feito pela Divisão de Arquitetura, sob orientação de Oscar Niemeyer, que projetou os primeiros blocos, e de acordo com a diretriz sugerida no croquis do plano-piloto. (COSTA; LIMA, 1985, p. 73) Entretanto há certas divergências entre o padrão de fato seguido na realização da grande maioria das superquadras e esse croqui. Por exemplo, o dese33


nho de Lucio Costa indica quinze blocos residenciais (COSTA; LIMA, 1985, p. 114), enquanto as superquadrasdas faixas 100, 200 e 300 apresentam a adoção de apenas onze blocos como um efetivo “gabarito”, segundo Ficher e Leitão (2010). Entretanto a opção pela heterogeneidade na configuração interna de cada superquadra é evidente no texto de Lucio Costa: Dentro destas ‘super-quadras’ os blocos residenciais podem dispor-se da maneira mais variada, obedecendo porém a dois princípios gerais: gabarito máximo uniforme, talvez seis pavimentos e pilotis, e separação do tráfego de veículos do trânsito de pedestres, mormente o acesso à escola primária e às comodidades existentes no interior de cada quadra. (COSTA, 1991, p. 28)

Em relação ao comércio varejista das superquadras, Lucio Costa afirma que as lojas disporiam-se em renque com vitrines e passeio coberto na face fronteira às cintas arborizadas e privativas dos pedestres, estando o estacionamento alocado na face oposta e contígua às vias de acesso motorizado. Embora o conjunto de lojas constituísse um corpo só, previa-se travessas para ligação de uma face a outra, estando as lojas geminadas duas a duas. Desde logo instalados, os primeiros comércios locais da Asa Sul tiveram suas fachadas voltadas para as vias previstas como de serviço e as lojas foram agrupadas em blocos de oito ou nove unidades. Já em 1964, os comércios locais da Asa Norte são implementados com uma configuração bastante distinta na tentativa de estabelecer a relação entre comércio e superquadra pretendida por Costa. Os blocos quadrados, isolados uns dos outros e circundados por uma galeria coberta permitem a existência de lojas voltadas para as quatro fachadas. Um dado que chama a atenção na pesquisa de Ficher e Leitão (2010) é a baixíssima quantidade de projetos de paisagismo. Das 308 plantas estudadas, apenas cinco se enquadraram nesta categoria. Por se tratar de uma cidade com tamanha proporção de espaços não edificados, era de se imaginar que se atribuiria maior 34


atenção e cuidado às áreas verdes. É apenas depois da inauguração da cidade que se vê a necessidade de um melhor tratamento ao espaço público. Até então, a maior parte dos projetos das superquadras contavam somente com a distribuição dos blocos, ficando esquecidos jardins, calçadas, estacionamentos, mobiliário urbano e, muitas vezes, nem mesmo o arruamento havia sido lançado. A análise do acervo que restou das plantas urbanísticas do Plano Piloto de Brasília realizada por Ficher e Leitão (2010) revela a impossibilidade de se fixar um momento determinado no qual o detalhamento pudesse ser considerado concluído ou fechado. Ao contrário do que os defensores mais fundamentalistas acreditam, Brasília não é tão somente o Plano Piloto de Brasília desenvolvido por Lucio Costa. Contrariando o que pensam, os dados corroboram a hipótese de que o projeto esteve em permanente revisão e adequação, contando com um desenvolvimento gradativo, mas sem perder a referência imediata do plano original. Carpintero (1998) sugere que as alterações foram introduzidas imediatamente após o concurso. Entretanto, devido à discreta participação de Lucio Costa no processo, observa-se a partir das plantas estudadas que foram aceitas alterações de peso, mas seus impactos no conjunto urbano não foram devidamente considerados e traduzidos em ajustes nos desenhos. Esse fato deve-se à fidelidade, considerada por Ficher e Leitão (2010) como muitas vezes excessiva, às características do esboço original. Essa questão torna-se ainda mais evidente com o depoimento de Costa e Lima (1985): Apesar dessas primeiras alterações serem todas justificáveis, houve uma postura ambígua na forma de abordá-las: as modificações em si foram assumidas, mas as implicações viárias correspondentes não o foram; assim, a fidelidade ao risco original, sem se dar conta, deixou escapar um dos aspectos mais importantes da intenção que o gerou – a objetividade e o bom senso. (COSTA; LIMA, 1985, p. 31)

De acordo com avaliação, de 1967, do próprio 35


Lucio Costa, o desvio mais grave em relação a sua concepção foi a impossibilidade de realização daquilo que nela havia de mais utópico: “reunir em cada uma destas áreas de vizinhança as várias categorias econômicas que constituem, no regime vigente a sociedade a fim de evitar a estratificação da cidade em bairros ricos e bairros pobres” (COSTA, 1995, p. 302). Atribui o insucesso à oposição entre o “falso realismo da mentalidade imobiliária” e a “abstração utópica, (…) como se a sociedade atual já fosse sem classes” (COSTA; LIMA, 1985). O fato é que o Relatório do Plano Piloto continha ainda outras recomendações que não receberam a devida atenção. Por exemplo, pontos primordiais como os esquipamentos de paisagismo que deveriam consolidar a “unidade de vizinhança” não foram transpostos para projetos específicos. Essa fração urbana denominada unidade devizinhança é composta pelo conjunto de quatro superquadras e deveria contar com jardim de infância, escola, clube, cinema, posto de saúde, igreja, sem a necessidade do uso do carro. Entretanto, à excessão da unidade de vizinhança mais antiga do Plano Piloto, SQS 308, 108, 307, 107, a ideia de suprir as necessidades básicas sem contar com o uso do automóvel não vingou. A partir dessa retrospectiva do processo de implantação do Plano Piloto, verifica-se que elementos básicos responsáveis por compor o espaço urbano não foram desenvolvidos com o propósito de constituir e agregar atividades e pessoas nas áreas públicas. Isso pode ser observado pelo tratamento dado à trama viária e suas articulações com o transporte urbano, dimensões e disposições de estacionamentos, bem como pela estruturação de calçadas, jardins e espaços de convívio e até mesmo pela relação entre os edifícios e as vias com desníveis intransponíveis. Por fim, tudo ficou por conta do residual à implantação das edificações. Entendendo que mobilidade não é um fator exclusivo da existência de sistemas de transporte, esses elementos citados possuem impacto considerável na estrutura da cidade, como visto nas referências teóricas apresentadas no tópico inicial do presente ensaio, e merecem, portanto, receber devida atenção. 36


2.3 Considerações Sobre a Cidade Implantada e a Concepção Urbanística que a Norteou As grandes áreas vazias e verdes e a organização do espaço urbano de acordo com as funções citadas por Choay (1992) como características do urbanismo moderno estão bastante presentes no projeto de Lucio Costa e podem ser notada nas quatro famosas escalas do Plano Piloto, citadas na Portaria nº 314 do IPHAN: bucólica, gregária, residencial e monumental. Outro fato que é bastante notável na capital brasileira e também explicitado por Choay no livro O Urbanismo é de os edifícios serem “protótipos definidos”. Brasília tem sido objeto de estudo para alguns pesquisadores, como Gehl (2013), que enfatizam a necessidade de compreender o urbanismo modernista e as consequências desse modelo sobre o modo de vida de seus habitantes. No livro Cidade Para Pessoas, Gehl destaca: A cidade é uma catástrofe ao nível dos olhos, a escala que os urbanistas ignoram. Os espaços urbanos são muito grandes e amorfos, as ruas muito largas, e as calçadas e passagens muito longas e retas. As grandes áreas verdes são atravessadas por caminhos abertos pela passagem das pessoas, mostrando como os habitantes protestaram, com os pés, contra o rígido plano formal da cidade. (GEHL, 2013, p. 196-197) A escala a qual Gehl se refere na passagem é a escala humana, por ele considerada a escala da cidade percebida e experienciada a 5 km/h, ou seja, com espaços pequenos, placas pequenas, muitos detalhes e pessoas próximas, o que acaba contribuindo para uma experiência sensorial rica e intensa. Como o autor diz, essa experiência pode ser considerada falha em boa parte do Plano Piloto devido às grandes distâncias a serem percorridas estarem cercadas pelo vazio urbano sem determinação de uso ou por longas fachadas cegas, o que cria a sensação de insegurança para quem por ali transita pela falta dos “olhos da rua”, segundo Jacobs (1961).

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Outro fato a ser levado em consideração no plano de uma cidade é como se dará seu crescimento natural e gradativo. A ampliação das cidades se dá por um processo de extensão do tecido urbano existente, por meio da criação de subúrbios ou de cidades-satélites. Cabe ressaltar que, no caso do Plano Piloto de Brasília, verifica-se que o mesmo foi concebido como uma figura fechada com contorno nitidamente delineado e cujo desenho não deveria, em condições ideais, ser alterado. O surgimento de um sistema de cidades-satélites no Distrito Federal foi inevitável e data já do período de construção da nova Capital. E assim foi tanto pela regularização de aglomerações espontâneas e acampamentos de obras, quanto por iniciativas oficiais, como o Cruzeiro (1957), cujo projeto é atribuído ao próprio Lucio Costa, que foi iniciada a expansão de Brasília. Hilberseimer (1927) expõe a ideia de cidade-satélite de maneira relevante: Separando completamente os bairros de habitações dos centros de trabalho, tratou-se de realizar zonas residenciais de condições ótimas. (…) Esta separação ou dissolução da grande cidade em zonas de trabalho e zonas de residência leva, como conseqüência, à formação do sistema satélite. Ao redor do núcleo da grande cidade, a Cidade central, que no futuro será somente cidade do trabalho, encontram-se situados, circularmente e a distâncias suficientes, bairros residenciais fechados em si mesmos, cidades-satélites de população limitada, cuja distância pode ser considerável, com todos os modernos meios de circulação e um sistema adequadamente traçado de trens rápidos. Ainda que possuam independência local, tais bairros residenciais são membros de um corpo comum, permanecem estreitamente unidos ao núcleo central, constituem com ele uma unidade econômica e técnico-administrativa. Os habitantes das cidades satélites têm seu lugar de trabalho na vaidade central. (apud FICHER, 2009, p. 99-100) Essa concepção de um conjunto de cidades espalhadas no território e conectadas por rodovias foi 38


implantada no Distrito Federal, por sua vez, sem uma proposição de um plano de transporte público. Desta forma, o atendimento aos fluxos fica a depender da iniciativa espontânea de empresas de ônibus. Portanto, seja no plano intra-urbano de Brasília, seja na lógica de expansão da cidade por núcleos espalhados sem um plano de transporte público de massa, verifica-se mais uma vez a conjunção de elementos contrários à concepção de uma estrutura urbana que favoreça a mobilidade urbana.

2.4 Tombamento do Plano Piloto No ano de 1987, a UNESCO declarou o conjunto arquitetônico e urbanístico de Brasília patrimônio da humanidade, entretanto foi apenas em outubro de 1989 que foi desenvolvida a Lei nº 47 dispondo sobre o tombamento em nível nacional. O equilíbrio entre as escalas monumental, gregária, residencial e bucólica forma a estruturação espacial de Brasília e orienta os mecanismos de salvaguarda do patrimônio histórico brasiliense.

Nessa figura fica clara a segregação dos usos e atividades no Plano Piloto de Brasília.

Monumental Residencial Gregária Bucólica Figura 2 – Escalas do Plano Piloto

A Portaria nº 314 do IPHAN é o documento em atual vigência, desde outubro de 1992, relativo ao tombamento de Brasília e será com base em seus artigos que esse trabalho discorrerá sobre as possibilidades de intervenções no Plano Piloto intentando a melhoria da mobilidade. Logo no Art. 1º é definida a área abrangida pelo tombamento, sendo esta delimitada a leste pela orla

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do Lago Paranoá, a oeste pela Estrada Parque Indústria e Abastecimento (EPIA), ao sul pelo córrego Vicente Pires e ao norte pelo córrego Bananal.

Mapa 1 – Área Tombada

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O Art. 2º descreve que a manutenção do Plano Piloto de Brasília será assegurada por meio da preservação das características essenciais das quatro escalas citadas anteriormente (monumental, residencial, gregária e bucólica), pelas quais a concepção urbana da cidade é traduzida. Para a manutenção da escala residencial, que proporciona “uma nova maneira de viver, própria de Brasília”, são dispostas no Art 4º uma série de características relativas às superquadras, tanto na Asa Sul quanto na Asa Norte, a serem preservadas: • Todas as superquadras contarão com um cinturão de 20 metros de largura com densa arborização por todo o seu perímetro e devem possuir um único acesso viário para meios de transporte motorizados • Os edifícios residenciais das superquadras numeradas


sequencialmente de 102 a 116, de 202 a 216 e de 302 a 316 terão seis pavimentos e das numeradas de 402 a 416, três pavimentos, sendo todos edificados sobre piso térreo em pilotis, livre de quaisquer construções que não se destinem a acessos e portarias • A taxa máxima de ocupação para a totalidade das unidades de habitação conjuntas é de 15% da área do terreno compreendido pelo perímetro externo da faixa verde anteriormente citada • Serão permitidas pequenas edificações de uso comunitário com o máximo de um pavimento • As entrequadras destinam-se a edificações para atividades de uso comum e âmbito adequado às atividades de vizinhança próximas, como ensino, esporte, recreação e atividades culturais e religiosas • Os comércios locais da Asa Sul deveram sempre ser edificados na situação em se encontravam naquela data – outubro de 1992 Segundo o Art. 5º, o Eixo Rodoviário-Residencial deverá ter suas características originais respeitadas, mantendo-se o caráter rodoviário que lhe é inerente. O sistema viário que serve às superquadras deverá manter os acessos existentes e as interrupções nas vias L1 e W1 conforme se verifica na Asa Sul, devendo o mesmo ser obedecido na Asa Norte. A escala bucólica, tratada no Art. 8º, deverá ser preservada por conferir a Brasília o caráter de cidade-parque. Esta escala está configurada, segundo o documento em corrente debate, em todas as áreas livres, contíguas a terrenos já edificados ou institucionalmente previstas para edificação e destinadas à preservação paisagística e ao lazer. Este documento que rege o tombamento do plano urbanístico de Brasília é motivo de discórdia e debate entre diversos urbanistas. Dentre eles, Ficher (1998) afirma o Plano Piloto estar duramente protegido por uma legislação restritiva, que impõe uma setorização alheia à vida real, impedindo assim o desenvolvimento de tipologias mais adequadas às necessidades de seus habitantes. Há de se concordar que as características mais singulares de Brasília devem ser preservadas, afinal de contas é uma cidade com estética e carga histórica únicas. Entretanto sabe-se também que, com o desenvol-

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vimento da capital e consequente surgimento de necessidades contemporâneas, o Plano Piloto enfrenta nos dias atuais múltiplas adversidades, em sua grande parte, relacionadas à mobilidade. Com o intuito de estudar possibilidades que facilitem a mobilidade respeitando o tombamento e preservando as características singulares de Brasília, no próximo tópico serão identificados os elementos que são passíveis de alterações em conformidade com o que foi identificado nas referências teóricas sobre o tema.

2.5 Mobilidade Urbana no Plano Piloto As considerações sobre os fundamentos do urbanismo modernista, as origens projetuais do Plano Piloto e o entendimento do objeto do tombamento de Brasília tem por intenção identificar como os elementos facilitadores da mobilidade urbana anteriormente listados encontram-se presentes características espaciais do Plano Piloto. A crítica mais recorrente ao modelo de urbanismo modernista adotado no Plano Piloto de Brasília é justamente em relação à mobilidade. Ficher (1998) reúne de maneira sintética e crítica as características que acabam por dificultar a mobilidade na capital brasileira no seguinte parágrafo:

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É este último [Plano Piloto] o patrimônio da humanidade. De um só golpe retórico, ao mesmo tempo que se refaz a realidade, conta-se uma falsa história – a do sucesso do urbanismo modernista para o desenho de cidades, o qual teria criado no ‘árido’ planalto central um oásis urbano, graças à sabedoria de suas proposições: a cidade linear disposta em jardins (a custos altíssimos para o bolso do contribuinte), a preponderância do sistema viário sobre a rua tradicional (que cobra seu preço em vidas humanas, na cidade com o mais alto índice de acidentes de trânsito com vítimas fatais do país), a indefinição entre espaço público e privado (que permite aos especuladores o completo descaso para com o mínimo previsto em qualquer código de obras, como soleiras, calçadas e guias), o apogeu do edifí-


cio isolado (acarretando o aumento desnecessário das distâncias urbanas e, conseqüentemente, do custo da infraestrutura e dos transportes coletivos) e por fim, mas não menos, a definitiva monumentalização da arquitetura cotidiana, tornada escultura para gáudio dos arquitetos formalistas. (FICHER, 1998, p. 1-2) A partir de tal citação percebe-se que apesar de o urbanismo modernista ter surgido para sanar, dentre outras questões, as disfunções urbanas geradas pelo trânsito caótico, acabou por propiciar outras problemáticas que dificultam a vida na cidade contemporânea, dentre elas a mobilidade. A dependência crônica aos meios de transporte motorizados é um dos fatores mais relevantes e merecedores de atenção quando se trata do tema mobilidade. Gentil (2015) sintetizou em quatro fatores as características mais influentes na melhoria da mobilidade urbana. São eles a densidade, as características do uso do solo, a continuidade e as características do desenho urbano. Com base na pesquisa bibliográfica acerca do urbanismo modernista e do Plano Piloto apresentadas no decorrer do presente capítulo, é possível afirmar que há predominância das baixas densidades na área analisada. Esse fato vai de encontro ao primeiro ponto definido por Gentil (2015) quando considera que “o aumento da densidade pode auxiliar na redução das viagens por veículo se planejado junto com a oferta de transporte público e uso misto do solo”, tratando, portanto, o aumento da densidade como característica facilitadora da mobilidade urbana. Outra característica relevante do Plano Piloto é a condição predominante da segregação das funções, que resulta na pequena quantidade de áreas com uso misto. Gentil (2015) conclui que a promoção do uso misto e uma maior proximidade entre as diversas atividades pode reduzir a necessidade do uso do automóvel no deslocamento e também facilitar o desenvolvimento de uma rede de transporte mais eficiente e integrada. Desta forma, o zoneamento rígido que comparece no Plano Piloto, propicia o aumento das distâncias entre atividades e, consequente, o aumento dos deslocamen-

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tos, impactando negativamente a mobilidade urbana. De acordo com Gentil (2015), a continuidade também é uma característica facilitadora da mobilidade urbana. Essa apresenta-se bastante rarefeita no Plano Piloto, uma vez que seu centro é permeado por espaços vazios responsáveis pela monumentalidade do espaço cívico. A escala bucólica, entendida como a área verde espraiada por todo o tecido urbano, encontra-se tombada, impedindo portanto qualquer possibilidade de adensamento das áreas não edificadas sem previsão de uso, criando assim a necessidade do crescimento além dos limites cidade. As características relativas à conectividade e acessibilidade, intrínsecas ao desenho urbano, não foram formalmente projetadas na escala humana, definida por Gehl (2013), como apresentado na análise das plantas do Plano Piloto de Brasília por Ficher e Leitão (2010), acarretando portanto em dificuldades principalmente aos não portadores de automóvel, pedestres e ciclistas. A dificuldade de transporte por meios alternativos ao carro é reclamação recorrente entre os moradores e transeuntes do Plano Piloto. Entretanto, essas características não foram explicitadas ainda em documento legal como tombadas e, portanto, merecem atenção especial por serem passíveis de alterações e com potencial facilitador da promoção da mobilidade urbana. Como forma de sintetizar o que até então foi apresentado, elaborou-se um quadro resumo (página seguinte) comparando os elementos e características apresentados por Gentil (2015) como facilitadores da mobilidade e como esses elementos apresentam-se no Plano Piloto. Com o objetivo de verificar as possibilidades de intervenção no Plano Piloto de Brasília para agregar características físicas que possam facilitar a mobilidade urbana, respeitando as condições do tombamento previstas na Portaria nº 314 do IPHAN, serão estudadas duas unidades de vizinhança, dentre elas uma considerada modelo por ser a que mais se assemelha e agrega características do projeto original.

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Tabela 4 – Facilitadores da Mobilidade x Plano Piloto

Desenho urbano (conectividade/acessibilidade)

A concepção do desenho urbano pode influir em uma maior ou menor utilização dos transportes não-motorizados ou transporte público, reduzindo a dependência do automóvel, desde que sejam trabalhadas adequadamente a conectividade e acessibilidade entre ruas, calçadas e ciclovias.

Escala bucólica tombada (Portaria nº 314) para a manutenção do caráter de cidade-parque.

Preenchimento dos espaços vazios, requalificação dos espaços degradados.

Características passíveis de intervenções com potenciais facilitadores da promoção da mobilidade urbana, uma vez que não entram em documentação de tombamento.

Pedestres e ciclistas prejudicados.

As características relativas à conectividade e acessibilidade, intrínsecas ao desenho urbano, parecem não ter sido formalmente projetadas na escala humana, definida por Gehl (2013).

Desenvolvimento de cidades-satélite.

Tombamento (Portaria nº 314) das quatro escalas (monumental, residencial, gregária e bucólica) dificultando a promoção ao uso misto do solo.

Segregação das funções em setores, resultando na pequena quantidade de áreas com uso misto e consequente deslocamentos pendulares.

Crescimento próximo ao centro.

Uso e ocupação do solo

Continuidade

A promoção do uso misto e maior proximidade entre as diversas atividades pode reduzir a necessidade do automóvel e facilitar na construção de uma rede de transporte mais eficiente e integrada.

Taxa de ocupação residencial máxima (Portaria nº 314): 15% da área da superquadra.

Gabarito máximo (Portaria nº 314): seis pavimentos nas 300, 100 e 200 e três, nas 400.

Desenho urbano com contornos bem definido, de maneira que não possibilita o crescimento da cidade como extensão de sua malha.

O aumento da densidade poderia auxiliar na redução das viagens por veículo se planejado junto com a oferta de transporte público e uso misto do solo.

Densidade

Baixas densidades.

Como aparecem no Plano Piloto

Tendência à limitação do processo de expansão urbana por se tratar de um fator que gera maior número de viagens de automóvel.

Como facilitadores da mobilidade

Características


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CAPÍTULO 3 As Intervenções Urbanas em Brasília e a Facilitação da Mobilidade 3.1 Área de Intervenção Para o estudo de caso, escolheu-se uma fração urbana do Plano Piloto de Brasília que abrange duas unidades de vizinhança na Asa Sul (SQS 308, 307, 108, 107 e SQS 208, 207, 408 e 407). O objeto de estudo inclui também as vias entre as unidades de vizinhança (Eixos L e W, mais conhecidos como “Eixinhos”, e Eixo Rodoviário de Brasília, “Eixão”) e suas conexões. A escolha por essa área se deu por diversos fatores, entre os quais pode-se ressaltar: • Essas unidades estão localizadas na área mais antiga da cidade, a área residencial que foi primeiro construída e, talvez por isso, a unidade de vizinhança das super-

Mapa 2 – Situação

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No Mapa 3, está representada a área do recorte urbano em análise, composto por duas unidades de vizinhança separadas por um dos eixos viários estruturantes do Plano Piloto de Brasília. Mapa 3 – Objeto de Estudo

quadras SQS 308, 307, 108, e 107 é a que mais se aproxima do plano de Lucio Costa, uma vez que conta com todos os serviços previstos que dispensassem o uso do carro, tais quais jardim de infância, escola, clube, cinema, igreja • Entendimento que a mobilidade se constitui numa característica do espaço urbano essencial à formação de uma unidade de vizinhança conforme a concepção de Lucio Costa • Importância do estudo em relação a outra dificuldade encontrada no Plano Piloto: a mobilidade inter-unidade de vizinhança no sentido leste-oeste devido a presença de um dos eixos estruturantes da cidade • Vivência pessoal desta que escreve ao longo de mais de 20 anos como moradora da quadra SQS 407 Como ponto de partida para a análise do recorte urbanístico de Brasília relacionando-o à mobilidade, foi considerado importante estudar os mapas esquemáticos das distâncias percorridas por pedestres a 5km/h para raios de caminhas lineares que levassem cinco e dez minutos. Mesmo sabendo que tais tempos 49


não são verdadeiros devido a presença de diferentes obstáculos no caminho, esse estudo se faz relevante no sentido de estudar visualmente as médias das distâncias e do tempo percorrido por pedestres.

No Mapa 4 (canto superior esquerdo), é representado o raio para percursos de 5min a 5km/h (velocidade média de um pedestre) a partir do Eixão. No mapa 5 (canto superior direito), é representado o raio para percursos de 5min a 5km/h a partir da entrequadra 407/408 sul.

No Mapa 6 (canto inferior esquerdo), é representado o raio para percursos de 10min a 5km/h (a partir do Eixão. No mapa 7 (canto inferior direito), é representado o raio para percursos de 10min a 5km/h a partir da SQS 108. Mapas 4, 5, 6, 7 – Distâncias percorridas em 5 e 10min a 5km/h

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O primeiro ponto a ser analisado na referida área é a questão da densidade. No esquema 3D, representou-se volumetricamente as edificações com suas respectivas alturas e dimensões. Visualmente pode-se perceber a baixa densidade desse recorte por meio das diminutas alturas das edificações e grande quantidade de espaços vazios, características essas que se reproduzem de maneira similar ao longo das duas asas residenciais do Plano Piloto. Com intuito de reafirmar a condição de baixa densidade, esta foi calculada para a superquadra 108. Esta conta com 11 edifícios residenciais, dentre os quais seis (A, B, C, D, I e K) com 48 apartamentos cada e cinco (E, F, G, H e J) com 36 apartamentos, totalizando 468 unidades habitacionais. De acordo com o censo demográfico do IBGE de 2010, a quantidade de moradores por unidade habitacional é de 3,2, o que, para base de cálcu-


Residencial Comercial Institucional/Serviços Figura 3 – Densidade e Usos

lo médio, dá um total de 1498 moradores nessa superquadra. Considerando-se que as dimensões externas da superquadra, ou seja, contabilizando o cinturão verde de 20m, são de 280 x 280m, a área total é de 7,84ha. O resultado da relação de pessoas pela área é de 191hab/ha, valor esse que corresponde à densidade urbana bruta do recorte em análise. Muitos estudos tentam encontrar a densidade ideal para cidades levando-se em conta diversos fatores como custo e qualidade da infraestrutura, condições sanitárias, entre outros. De acordo com estudos realizados pelo Banco do Trabalhador da Venezuela (Banco Obrero), os custos da infraestrutura urbana em função da densidade se comportam como uma parábola, cujo ponto de otimização ficaria em torno dos 1000 hab/ha (FERRARI, 1979). SegunMapa 8 – SQS 108 51


do Rodrigues (1986), a ONU recomenda 450hab/ha, enquanto a Associação Americana de Saúde Pública estipula 680hab/ha como ideal, valores estes que são todos bem distintos da densidade calculada para a SQS 108. Na mesma perspectiva esquemática, foram representadas as edificações com seus respectivos usos por meio das cores, o que permite identificar a forte setorização e a falta de uso misto nas superquadras. Como pode ser observado na imagem, o uso residencial é predominante, mesmo contendo algumas manchas comerciais setorizadas nas extremidades das quadras e alguns serviços, como escolas, igrejas, biblioteca, correios, entre outros, na tentativa de consolidar o ideal de unidade de vizinhança. A grande predominância do uso residencial também acaba por trazer prejuízos à mobilidade no que diz respeito a aumentar as distâncias entre residência e trabalho, o que acaba gerando a necessidade do uso de automóveis nesses deslocamentos cotidianos. Para analisar a continuidade da área em questão, elaborou-se um mapa de cheios e vazios. Por meio

Por meio do mapa de cheios e vazios do objeto de estudo, pode-se perceber que as edificações não definem caminhos nem espaços, bem como não há uma continuidade visual.

Cheios (em estudo) Cheios (entorno) Vazios Mapa 9 – Cheios e Vazios

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da observação desse mapa é possível notar o excesso de espaços vazios, que se apresentam sem uso determinado, nas superquadras sul do Plano Piloto e também a falta de organização e distinção de caminhos e espaços de permanência. De acordo com Gehl (2013), essas características contribuem para que os caminhos se tornem menos interessantes e mais longos, o que também acaba por afetar negativamente a mobilidade. O desenho urbano de Brasília é bastante distinto dos projetos das cidades tradicionais que contam com quarteirões e ruas que se cruzam. Lucio Costa propôs a desconstrução do quarteirão e o transformou em uma superquadra, ao mesmo tempo que desconstruiu também a rua. Como pode ser observado no mapa viário apresentado, a lógica viária é bastante peculiar e as conexões leste-oeste são feitas por vias coletoras, já as conexões norte-sul são bastante generosas e feitas em vias arteriais e de trânsito rápido, o que, de acordo com Holanda (2013), acaba por separar Brasília em duas, “Brasília Ocidental” e “Brasília Oriental”. Essa estrutura acaba por dificultar a mobilidade inter-unidade de vizinha no sentido leste-oeste.

No Mapa 10 pode-se perceber a fraca continuidade e conectividade viária e a disparidade entre as conexões leste-oeste e norte-sul. Trânsito rápido Arterial Coletora Local Mapa 10 – Hierarquia Viária

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Como solução para os pedestres, Lucio Costa propôs passagens subterrâneas, evitando assim semáforos ou faixas de pedestres no Eixo Rodoviário de Brasília, ou “Eixão” para os íntimos. O que a princípio parece uma solução bastante segura, na realidade acaba por supervalorizar o automóvel e criar travessias longas e desinteressantes aos transeuntes, sem falar na sensação de falta de segurança e outros desagrados relacionados à falta de salubridade, cuidados e acessibilidade.

Pode ser observado na Foto 1 a falta de acessibilidade das passagens subterrâneas que não conta com elevador ou mesmo rampas de acesso com inclinações próprias para carrinhos-de-bebês ou cadeira-de-rodas. Foto 1 – Entrada da Passagem Subterrânea (SQS 207)

A Foto 2 mostra a falta de iluminação e salubridade das passagens subterrâneas. A passagem representada na foto (SQS 207/107) apresenta-se suja e pichada, o que demonstra falta de manutenção por parte do governo e falta de cuidados por parte da população. Foto 2 – Passagem Subterrânea (SQS 207/107)

Recentemente Brasília passou por uma intensificação na construção da infraestrutura cicloviária, sendo hoje a cidade brasileira com a maior extensão de ciclovias que ultrapassa os 400km lineares, de acordo com o Governo do Distrito Federal (2015). O que em números parece ser bastante promissor à mobilidade 54


na verdade acaba por ser mais um fator que representa quantidade em vez da qualidade. As ciclovias “construídas” muitas vezes são calçadas maquiadas de ciclovia ou até mesmo acostamentos pintados. Analisando-se o mapa, é perceptível que não há uma estrutura conectiva lógica que incentive o uso da bicicleta e ligue os distintos pontos de Brasília relacionados às distâncias alcançadas por esse modal, por exemplo conexões inter-unidade de vizinhança no sentido leste-oeste e articulações com o transporte público.

Na Mapa 11, é absolutamente perceptível a falta de planejamento que preveja a articulação entre o transporte público e as ciclovias e até mesmo entre as próprias ciclovias, que no presente momento não formam uma rede. Ciclovia Ponto de ônibus Estação de metrô Mapa 11 – Malha Cicloviária (2015)

Outro ponto importante de se ressaltar relacionado ao desenho urbano é a conformação das calçadas do Plano Piloto. É simples o entendimento de calçadas serem dispostas no perímetro das ruas no caso de quarteirões tradicionais, entretanto na proposta do Plano Piloto tanto o quarteirão quanto as ruas foram desconstruídas. Apesar disso e de os edifícios residenciais terem sido elevados criando-se em suas projeções áreas de circulação pública, as calçadas da área em análise se mostraram bastante tradicionais, estando 55


dispostas de acordo com o contorno das vias e não de acordo com os caminhos naturalmente percorridos pelos pedestres. O fato de as calçadas e ciclovias da fração urbana em estudo não possuírem um planejamento de conectividade e articulação correspondentes às distâncias e caminhos percorridos por esses meios alternativos acaba por dificultar a mobilidade sustentável. Somando-se a essa questão, é relevante se ressaltar a má qualidade não apenas do planejamento mas também da manutenção e acessibilidade das calçadas e ciclovias, o que também é um fator que acaba por condicionar escolha por meios de transporte automobilísticos particulares.

Na Foto 3, é mostrada a falta de planejamento e artuculação cicloviária quando a ciclovia simplesmente acaba na grama em um trecho da SQS 207, sem qualquer tipo de sinalização. Foto 3 – Ciclovia (SQS 207)

Na Foto 4, observa-se que a ciclovia da SQS 208 invade a calçada e dela toma posse, ficando os pedestres obrigados a caminhar ou na grama ou na ciclovia. É preciso entender que ciclovias e calçadas são dois sistemas distintos e não devem dividir um mesmo espaço por até mesmo questão de segurança. Foto 4 – Calçada/Ciclovia (SQS 208)

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3.2 Possíveis Intervenções Devido a condição de cidade tombada, as intervenções que podem ser propostas para adicionar elementos facilitadores da mobilidade no Plano Piloto só podem ocorrer significativamente em uma das características estudadas, o desenho urbano. Mesmo sabendo-se que a densidade do Plano Piloto está aquém de seu potencial, o tombamento protege modificações nesse quesito tanto por determinar taxa de ocupação máxima nas residenciais como por determinar as alturas máximas dos edifícios na região em estudo, protegendo assim o skyline da cidade. Devido ao tombamento das quatro escalas que definem os principais usos de cada área da cidade, o recorte em análise deve permanecer com o caráter residencial que lhe é inerente. Com isso, a proposta da inclusão de usos mistos nesta área acaba por torna-se insustentável. Estando portanto maiores intervenções no uso e ocupação do solo fora da gama de possibilidades. Com relação à continuidade, observa-se a grande quantidade de espaços vazios com potencial para serem preenchidos por diversos usos, entretanto isso poderia afetar a característica de cidade-parque que à Brasília é inerente. Para evitar essa descaracterização, a Portaria nº 314 do IPHAN protege a escala bucólica e, portanto, as áreas verdes presentes no objeto de estudo. Os princípios modernistas poderiam estar presentes no projeto do Plano Piloto de forma que algumas de suas características fossem facilitadoras da mobilidade. Por exemplo, os edifícios residenciais poderiam estar dispostos de maneira que definissem melhor os espaços e criassem uma sensação de continuidade, o que ocorre em poucos lugares do Plano Piloto. Desta forma o percurso poderia ser mais bem compreendido, mais interessante e as distâncias pareceriam menores para os pedestres. As características às quais o tombamento mais dá liberdade de intervenção são portanto àquelas ligadas ao desenho urbano. Levando-se em conta a atual estruturação das calçadas e ciclovias analisadas 57


no recorte urbano em estudo, é de se entender que a escolha primordial pelo meio de locomoção não seja a caminhada ou a bicicleta, tampouco o transporte público, uma vez que os caminhos que levam aos pontos de ônibus e estações de metrô são precários em diversos aspectos. A melhoria na conectividade e articulação da malha cicloviária é um ponto chave no incentivo ao uso da bicicleta no Plano Piloto. Conforme apresentado anteriormente, percebe-se que a execução das ciclovias na área em análise ainda não foi concluída e por isso intervir nessa infraestrutura parece ser bastante paupável. Para uma melhor articulação cicloviária, o planejamento das ciclovias deveria prever fluxos não somente longitudinais, como é recorrente no Plano Piloto, mas também transversais, de modo que conectassem os dois lados de Brasília. Importante também seria estruturar uma melhor conexão entre os pontos de transporte público e melhor articulação entre modais complementares, como a bicicleta e o metrô. Com relação às calçadas é importante refletir sobre a flexibilidade dos caminhos percorridos à pé e tirar proveito de os edifícios residenciais do trecho em estudo serem elevados, permitindo portanto circulação praticamente livre de obstáculos físicos pela cidade. Os caminhos percorridos por pedestres tomam uma forma muito mais orgânica do que como foram tratados no Plano Piloto, justamente por essa gama de possibilidades de passagem. Além de se repensar a estruturação dos caminhos e conexões entre calçadas de acordo com a escala do pedestre, é importantíssimo ressaltar que a acessibilidade e a qualidade da infraestrutura são pontos cruciais na escolha pela circulação sem a dependência de automóveis. Desta forma percebe-se a importância do planejamento urbano e da ação de políticas de manutenção das áreas públicas por parte do governo. Intervenções no desenho urbano talvez pareçam não ser suficientes para uma eficaz facilitação da mobilidade, entretanto não se pode deixar essa característica de lado apenas por ser considerada insuficiente se trabalhada isoladamente. A realidade é que há 58


muitas pessoas que não possuem alternativa na escolha do meio de transporte e precisam utilizar calçadas e ciclovias para se locomoverem. A melhoria do desenho urbano e da articulação entre calçadas, ciclovias e outros modais alternativos ao carro podem facilitar a mobilidade e incentivar consideravelmente esses fluxos, tanto àqueles que não possuem possibilidade de escolha quanto àqueles que simplesmente ainda não tenham se sentido convidados a usufruir da rua. Por fim, tendo em conta os quatro elementos da forma urbana facilitadores da mobilidade – densidade, uso e ocupação, continuidade e desenho urbano –, verifica-se que nas condições de Brasília se pode intervir apenas na conectividade e continuidade dos espaços no plano bidimensional, organizando caminhos de pedestres mais bem articulados aos acessos às edificações e estacionamentos e, principalmente, aos pontos de ônibus. A criação de caminhos cicloviários que vençam distâncias inter-unidade de vizinhança conectados aos diversos sistemas de transportes com pontos de estacionamento para bicicletas também é de suma importância quando o assunto é a facilitação da mobilidade. Por meio do estudo de fluxos, observou-se a falta de conectividade entre os diversos modais. Percebeu-se que as ciclovias existentes não foram planejadas para promover uma articulação entre os diversos sistemas, nem mesmo promover a melhoria da conectividade leste-oeste. Propõe-se a construção de ciclovias que conectem a estação de metrô da 108 sul às superquadras, bem como aos pontos de ônibus, promovendo assim uma melhor articulação entre os sistemas e os diferentes modais. Ciclovia Ponto de ônibus Estação de metrô Mapa 12 – Estudo de Fluxos

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O mapa apresentado é composto por um estudo sobre a articulação entre os meios de transporte públicos por meio de uma malha cicloviária pensada a partir da infraestrutura de transportes já existente. Tendo em mente que os eixos rodoviários não possuem semáforos ou faixa de pedestre e que estes, assim como os ciclistas, deveriam realizar a travessia pelas passagens subterrâneas, considerou-se bastante relevantes os fluxos a essas duas passagens presentes na área em estudo, uma vez que há o intuito de conectar e facilitar a mobilidade entre as duas unidades de vizinhança. É muito importante ressaltar também que em uma dessas passagens encontra-se a entrada para o metrô, portanto o fluxo de ciclistas e pedestres para esse ponto é ainda mais elevado e o planejamento da malha cicloviária deve levar isso em conta. O estudo de fluxos é essencial para um efetivo planejamento que vise melhorar a conectividade e continuidade entre os diversos sistemas, facilitando assim a mobilidade. É também de suma importância que haja manutenção constante da infraestrutura, garantindo acessibilidade e mobiliários urbanos de qualidade, como bicicletários, sinalização e iluminação. Uma vez que as grandes transformações estão fora de questão para o Plano Piloto, que as pequenas sejam efetivas e contribuam para uma melhor mobilidade.

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Conclusões e Recomendações De acordo com o que foi abordado ao longo de toda a pesquisa e execução deste Ensaio Teórico, pode-se concluir que efetivamente não se deve pensar a mobilidade urbana como ligada somente ao planejamento de transportes. Há uma série de outros fatores que podem ser considerados facilitadores da mobilidade urbana e merecem especial atenção, por exemplo aqueles que são relacionados à forma urbana. Por não haver um consenso acerca da forma urbana ideal, pode-se concluir que tanto cidades dispersas quanto cidades compactas, por exemplo, podem possuir características que facilitem ou não a mobilidade, que é uma questão bastante complexa. Desta forma, a experimentação das diversas tipologias urbanas é válida e cada caso deve ser estudado de acordo com suas particularidades, não havendo portanto um padrão ideal a ser seguido. Brasília é um exemplo de cidade na qual podem ser notadas diversas características peculiares que acabam por dificultar a mobilidade e, portanto, cria-se uma dependência do uso de automóveis nos deslocamentos. Entretanto, essa cidade, na condição de patrimônio da humanidade, merece estudos e experimentações que proponham melhores articulações entre os diversos sistemas, facilitando assim a mobilidade. Ao se estudar o Plano Piloto de Brasília, pode ser observado que, apesar do tombamento da cidade, há possibilidades de intervenção que poderiam propiciar condições facilitadoras ao uso de meios de transporte alternativos ao carro ao mesmo tempo que respeitassem sua condição de patrimônio da humanidade. Tendo isso em vista, é relevante ressaltar que o tombamento não deve servir como uma ferramenta de justificativa para deficiências do planejamento urbano e administrações relapsas, mas sim como uma ferramenta de orientação à própria salvaguarda.

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Imagens CAPAS Principal Capítulos FIGURAS p. 31 1 p. 39 2 p. 53

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TABELAS p. 20 1 p. 22 2 p. 24 3 p. 45 4 MAPAS p. 40 1 p. 48 2 p. 49 3 p. 50 4 p. 50 5 p. 50

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FOTOS p. 54 1

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Marina Madsen Marina Madsen Croqui do Plano Piloto – Lucio Costa Escalas do Plano Piloto – Urbanistas por Brasília + edição Densidade e Usos – Marina Madsen Cidade Compacta – Caroline Gentil Cidade Dispersa – Caroline Gentil Forma Urbana x Mobilidade – Caroline Gentil Facilitadores da Mobilidade x Plano Piloto – Marina Madsen Área Tombada – G. Earth + edição Situação – G. Earth + edição Objeto de Estudo – Google Earth + edição Distância em 5min (Eixão) – G. Earth + edição Distância em 5min (SQS 407/408) – G. Earth + edição Distância em 10min (Eixão) – G. Earth + edição Distância em 10min (SQS 108) – G. Earth + edição SQS 108 – Marina Madsen Cheios e Vazios – Marina Madsen Hierarquia Viária – Marina Madsen Malha Cicloviária (2015) – Marina Madsen Estudo de Fluxos – Marina Madsen Entrada da Passagem Subterrânea (SQS 207) – Marina Madsen Passagem Subterrânea (SQS 207/107) – Marina Madsen Ciclovia (SQS 207) – Marina Madsen Calçada/Ciclovia (SQS 208) – Marina Madsen



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