Espaços de resistência um olhar de gênero sobre os movimentos de moradia em São Paulo (1990-2012)
Marina Rago Moreira Orientadora: Vera Pallamin Trabalho Final de Graduação FAUUSP 2012
A casa é a morada. A morada abraça a história de cada um com uma ternura quieta e desassombrada. Ela é como um cais, oceânico e amoroso, que guarda os cheiros das travessias dos corações. A morada de cada homem esconde o que se desfaria no mundo de fora, silencia os ruídos incômodos do dia, desfigura os fantasmas dos pesadelos da noite. A morada de cada homem não encobre seu corpo, mas o torna invisível quando a dor o adormece. Sabe que a medida da vida é apenas um sopro sem asas. Como se poderia contar a história, se ela se veste da subjetividade travessa de cada pessoa, dificilmente cabe numa narrativa linear de que tanto gostam os positivistas? Aquilo que aparece como seu concreto é apenas uma sombra visível das subterrâneas fronteiras que se infiltram pelos seus espaços. Contar a história é sempre uma abertura para o diálogo. É impossível contá-la através de um monólogo. Por isso, estamos longe de qualquer aceitação de que as subjetividades estão dissociadas de uma história, por mais íntimas que sejam as suas revelações. Não se podem negar as margens e nem as fronteiras, como se elas fossem territórios neutros, sem nenhuma significação. Há um entrelaçamento inevitável entre a história que se vive e a história que se conta. Como então excluir, a subjetividade, território fundamental do embate entre tantos afetos que tecem a nossa existência ? O homem é metáfora de si mesmo, com diz, Octavio Paz, e sua morada sintetiza muitas metáforas escritas e imaginadas na construção dos seus tempos. Na história que se inventa está o inesperado e o inesgotável. A forma nunca é definitiva e conclusiva. É sempre um começo. A casa não tem uma única forma, nem tampouco uma única história.
A casa nossa de cada dia: Metáforas e Histórias da pós-modernidade, Tânia Mara Galil Fonseca.
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Índice 04 Agradecimentos 05 Introdução 10 12 17 19 24 28 33
1. Movimentos de moradia e relações de gênero Encontrando o gênero Encontrando a universidade Abertura política ou financeira? Os tetos vazios e os sem-teto Espaços feministas Do poder masculino
38 47 56 64 70
2. Mulheres em construção: o Mutirão Paulo Freire Cidade Tiradentes, um bairro-cidade Tijolo a tijolo, dinheiro a dinheiro Mulheres na obra Subjetivação e coletividade
75 87 94 100 102 108
3. A Ocupação São João Conflitos pelo Centro Um sarau periférico no Centro A Ocupação Reciclagem do edifício Mulher luta
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Considerações finais Fontes Bibliografia Anexo
Agradecimentos Gostaria de agradecer a todos que contribuíram para que se viabilizasse esse trabalho. Em primeiro lugar, a todas as mulheres que me concederam entrevistas, dividindo comigo suas histórias e confiando que eu as recontasse a partir do meu olhar. Agradeço a generosidade e apoio de Kaya Lazarini, Bia Tone e ao coletivo Usina como um todo pela atuação inspiradora. Elaine Campos, Nazaré Brasil, Ruivo Lopes, Fernando Knup, Neci “Vó” e Fernanda Mendes, agradeço pelas experiências e troca de idéias que me fazem refletir sobre outras formas possíveis de atuação política. À Vera Pallamin, que me orientou nesse trabalho, pela paciência e objetividade quando me faltava clareza. E às convidadas da banca: Ana Barone, Karina Leitão e Ângela Amaral, por toparem o debate. Aos amigos da FAU, muito queridos, na angústia e na alegria. Especialmente à Tânia, companheira de campo tão querida, e àqueles que ajudaram nessa fabricação: Bia, Mel, Hannah, Diego e João. Ao pessoal do Coletivo que se juntou no Gfau esse ano para discutir o Projeto Nova Luz, com quem me aproximei da Mauá, e espero que não esmaeça. Pelas conversas, Márcia Hirata. Aos amigos da Integra e os que saíram, com quem convivi e aprendi muito nesse último ano. Aos queridos de casa (e vizinhos), com quem compartilho as dificuldades e alegrias de morar junto. Ao meu pai, apoio e carinho presente. E à minha mãe, que sempre me traz novas possibilidades de olhar para o mundo. E, pela enorme paciência e alegria irremediável, ao Yuri. Eu não seria nem um triz de mim sem vocês...
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Introdução
1 Ver RUBINO, 2010; GONZAGA, 2011; SANTORO, 2008; GOUVEIA, 2008.
Desde pequena, estive imersa num ambiente de esquerda em que constantemente se falava de socialismo, anarquismo e, também, feminismo. Essa perspectiva, contudo, longe de ser inata, é uma construção pessoal subjetiva, que foi ganhando espaço em mim. Ao entrar na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, não pude deixar de sentir a falta de sensibilidade às questões permeadas pelo conceito de gênero, mas até o meio do curso não demonstrava uma forte preocupação com isso. Apesar de haver uma extensa bibliografia sobre o assunto em diversas áreas do conhecimento, na Arquitetura, somente em outros países encontra-se um debate mais amplo. Percebe-se que aqui há uma maior impermeabilidade à crítica feminista, mas que parece estar sendo dissolvida recentemente com pesquisas pontuais que dão visibilidade às arquitetas e às questões de gênero no planejamento urbano1. No quinto ano, encontrei na bibliografia da disciplina sobre Historiografia da Arquitetura, ministrada pelo prof. Dr. José T. C. Lira, referências sobre o debate de gênero. Percebi, então, que havia muitas produções sobre o tema e, aos poucos, fui descobrindo um amplo horizonte. No mesmo momento, em uma disciplina de Planejamento Urbano, discutíamos sobre os movimentos de moradia popular em que se notava a ampla atuação das mulheres. Uma coisa ia ficando clara sobre a escolha do tema: gostaria de contribuir com uma discussão de gênero, ainda silenciada dentro dessa escola.
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Fui conversar, então, com a arquiteta e militante feminista de longa data Terezinha Gonzaga, autora do livro recentemente publicado A cidade e a arquitetura também mulher – Planejamento urbano, projetos arquitetônicos e gênero (2011) na sede da União de Mulheres de São Paulo, à Rua Coração da Europa, no Bixiga. Trata-se de sua pesquisa de doutorado, em que relata um universos de experiências feministas em planos e projetos urbanos pouco conhecidas aqui. Surgiram várias possibilidades de pesquisas a partir do enfoque que buscava, qual seja, o de ativar a discussão das relações de gênero no âmbito desta faculdade. Entre estas, levantamos questões a respeito da feminização da profissão subseqüente à maior porcentagem feminina nos cursos de Arquitetura e Urbanismo; da produção das mulheres arquitetas, no passado e no presente no Brasil; do próprio ensino (das metodologias) de projeto visto a partir das relações de gênero; a crítica das mulheres ao desenho das habitações populares feitas pelo Estado, vindas da própria experiência ao habitar e conviver neste espaço, até as discussões em torno do direito urbanístico, o acesso à propriedade para a mulher, e o acesso à cidade, em relação à mobilidade urbana e violência. Foi o desejo de conhecer melhor os movimentos sociais urbanos que me fez seguir o caminho aqui percorrido. Durante toda a graduação, nas greves, no Gfau, no movimento estudantil, vivi a angústia de buscar alguma forma de militância política, mas não me identificava com os movimentos que me cercavam. Era esperado que me decepcionasse ao me aproximar dos movimentos que busquei ao longo desse ano, mas um dos maiores ganhos desse trabalho foi perceber meus preconceitos e a heterogeneidade presente nas lutas. Sobretudo, me dei conta de que os movimentos são formados por pessoas e não devemos cair na armadilha de pensá-los estaticamente. Apesar de muitas vezes percebermos o engessamento das estruturas de muitos grupos e sua institucionalização, os espaços gerados pelas pessoas que se unem pelo desejo de uma transformação social merecem ser valorizados num mundo por vezes tão sombrio e desesperançado como o que vivemos. Da confluência destes dois olhares, o que privilegia o gênero e o que se refere à luta promovida pelos movimentos sociais organizados, busquei refletir sobre os espaços de resistência construídos com muito esforço e inventividade e, especialmente, perguntei em que medida a enorme presença das mulheres afeta esse contexto. Em relação ao primeiro ponto, fui
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buscar um aprofundamento sobre o tema e encontrei um dos raros cursos especializados oferecidos na USP: Antropologia e Gênero, ministrado pela profª. Dra. Heloísa Buarque de Almeida. Ali discutimos o texto inaugural da conceituação de gênero da historiadora norte-americana Joan W. Scott. Segundo sua definição, o gênero designa a relação entre homens e mulheres, entendendo a diferença sexual como construção cultural e social e não como natureza biológica. Além do mais, Scott aponta para as relações de poder implícitas nas relações hierárquicas estabelecidas historicamente entre os gêneros. Outros autores relevantes nesse debate que contribuíram para formar uma perspectiva de leitura dessas relações foram Judith Butler (Problemas de gênero), Michel Foucault (História da Sexualidade I: A Vontade de Saber) e Thomas Laqueur (Inventando o Sexo: dos gregos a Freud), que problematizam a noção de gênero e suspendem as distinções entre sexo/natureza e gênero/cultura. Esta desnaturalização nos é fundamental para poder discutir as relações de gênero como construções culturais, portanto históricas e passíveis de transformação, e pensar na atuação das mulheres na luta por moradia no que diz respeito a correspondências e resistências aos padrões aceitos socialmente. O sociólogo alemão Georg Simmel também é uma referência nesse trabalho, especialmente com sua instigante reflexão de 1902 sobre a “Cultura Feminina”. Ele pergunta pelas contribuições criativas que o movimento das mulheres na Alemanha de sua época poderia trazer para a humanidade e pelas transformações positivas que poderia somar à sociedade como um todo. Em suas palavras: “O significado cultural objetivo deste último [o movimento das mulheres] só poderia ser o de que as mulheres preenchem por sua vez, certo número de vezes, as formas de existência e de prestação até então reservadas aos homens. A questão será, ao contrário: vão nascer de semelhante movimento produções inteiramente novas, qualitativamente distintas das precedentes e que não se limitem a multiplicar as antigas? O reino dos conteúdos de cultura será objetivamente ampliado com isso? Não se vai contentar com copiar, vai-se inventar? (…) verão nas respostas dadas o significado último do movimento das mulheres, movimento que influenciará o futuro de nossa espécie de maneira mais profunda do que a própria questão operária.” (SIMMEL, 1993: 69)
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A ideia de Simmel a respeito dos movimentos sociais também como produção cultural permite discutir o movimento de moradia como produção das mulheres participantes neste. Ele destaca, neste texto, o aporte da mulheres, criadas na esfera da vida privada, para a modificação da cultura objetiva masculina. Segundo o autor, as mulheres desempenham um papel maior nas tarefas associadas à reprodução social, como no serviço doméstico, e essas funções via de regra não produzem concretamente nenhum objeto, sendo um trabalho invisível, desvalorizado e não competitivo. No que poderíamos considerar uma perda, porém, Simmel vê um ponto positivo, pois entrando na esfera pública, as mulheres trariam formas de organizar a vida social e o trabalho mais sensíveis e humanizadas. Essa leitura ressoou de certo modo no texto de Pedro Arantes (2002), quando ele enfatiza que as mulheres se contraporiam à tendência de reprodução das relações capitalistas já que trazem da esfera doméstica uma experiência de cuidado com o outro e permeada de afetividade. O trabalho foi estruturado em três capítulos. No primeiro, intitulado “Movimentos de moradia e relações de gênero”, procuro fazer uma discussão mais ampla, interseccionando as lutas sociais urbanas com os temas da crítica feminista, apresentados por Tania Swain, Neuma Aguiar, Heleieth Saffioti, Elizabeth Souza-Lobo, entre outras. Comento brevemente as noções de patriarcado e patrimonialismo, entendendo que essas noções são muito mais complexas do que foi possível discutir no âmbito desse trabalho. Contudo, me pareceu pertinente referir-me a elas já que fazem parte de um importante debate sobre a natureza da sociedade brasileira e as configurações da dominação masculina e da violência de gênero. Para analisar espacialmente as questões que se delinearam, aproximei-me de duas experiências sociais: o Mutirão Paulo Freire (1999-2010) e a Ocupação São João (2010-). Esses dois movimentos representam diferentes formas de luta pela moradia na cidade de São Paulo. Assim, no segundo capítulo, “Mulheres em construção: o Mutirão Paulo Freire”, descrevo o processo de construção desse conjunto habitacional, desde o encontro do Movimento Sem-Terra Leste 1 com a assessoria técnica Usina - Centro de Trabalhos para o Ambiente Habitado, chegando a perceber os deslocamentos e transformações que se operam na subjetividade das mulheres. No terceiro, “A Ocupação São João”, apresento a dinâmica dos movimentos sem-teto no Centro de São Paulo e as disputas pelo direito à
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cidade, a partir do estudo de um foco de resistência privilegiado nesse contexto. Para tanto, utilizei como metodologia a realização de entrevistas com algumas participantes, o levantamento de documentos dos movimentos e da assessoria, além da visitação aos locais e participação em algumas atividades culturais e políticas. Vale diferenciar a forma da minha aproximação com esses dois grupos: no mutirão, contei com mais documentos e bibliografia, enquanto que na ocupação tive de produzir o arquivo, participando mais diretamente do cotidiano. Portanto, fiz mais entrevistas no segundo caso. Finalmente, observo que ter participado de uma experiência viva como essa última se reflete no trabalho e, de certo modo, o olhar sobre o mutirão se construiu muito mais pautado por outras interpretações do que pelo contato direto, como foi o caso da ocupação.
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Movimentos de moradia e relaçþes de gênero
A partir de meados dos anos 1970, ainda durante o governo autoritário da Ditadura Militar no Brasil (1964-1985), grupos da sociedade civil começaram a se (re)organizar, cada qual com suas reivindicações específicas (raça, gênero, sem-terra, sem-teto, transporte etc.) e todos com alguns pontos em comum, seja contra a censura, pela anistia e as liberdades políticas ou por uma constituinte livre e soberana. Esta rede de agentes sociais e políticos formou o cenário da chamada democratização brasileira. Assim, na década de 1980, esses movimentos construíram uma luta política organizada também pelo direito à moradia digna e pelo direito à cidade, avançando um debate que vinha se desenvolvendo desde os anos 1960 sobre a Reforma Urbana interrompido até então.
2 Miagusko comenta sobre este deslocamento de visibilidade das periferias para o Centro e sobre o não-reconhecimento deste lugar de luta popular pelo próprios movimentos de moradia e militantes de esquerda nos anos 1980 (Miagusko, 2012: cap. IV).
Neste momento, os movimentos ligados ao tema da moradia situavam-se, na maioria das vezes, nas periferias da cidade, que cresciam cada vez mais com auto-construção e monótonos conjuntos habitacionais. No Centro de São Paulo, contudo, havia também mobilização relativa ao direito de moradia, mas esta luta tinha menos definição e visibilidade2. Somente com o surgimento da Unificação das Lutas de Cortiço (ULC), em 1991, estes atores ganham maior reconhecimento e futuramente estariam no centro do debate urbano, na medida em que a publicização da luta política pelo direito à moradia desloca-se para a região central. Atualmente, existe um grande número de movimentos por moradia em vários estados, em nível nacional e com articulações entre estes muitas vezes. Alguns dos movimentos ou
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“guarda-chuvas” de movimentos têm vínculos com aquele momento histórico, mas também transformaram-se em muitos aspectos, considerando-se a própria reconfiguração das formas de dominação no neoliberalismo e das possibilidades de resistência social. Outros movimentos são mais recentes e apresentam estratégias de luta diferentes. Entre os mais antigos, percebe-se uma maior institucionalização e inserção no Estado, na medida em que participam do Conselho das Cidades, por exemplo, entre outros espaços conquistados ao longo de uma trajetória de luta (Maricato, 2011). De todo modo, conforme a própria centralização econômica e social, os movimentos urbanos ganharam força especialmente na cidade de São Paulo, e até hoje são uma referência para o resto do país. As décadas de 1960 e 1970 são marcadas pela alta migração da população brasileira rumo à cidade que se tornava cada vez mais populosa e extensa, rica e pobre. Para toda riqueza gerada aqui foi preciso gerar também a pobreza. Com precárias condições de trabalho e vida, inúmeros habitantes de São Paulo acabaram tendo que lutar para ser um habitante de fato, desde então e ainda hoje.
Encontrando o gênero Neste contexto, quase em meio às passeatas pelas “diretas já”, Maria das Graças Xavier, ou Graça, deixou as belas e também sofridas paisagens de Santa Cruz de Cabrália (BA) para aterrizar na Zona Leste de São Paulo. Em seu novo bairro, começou a participar dos grupos de jovens da Igreja Católica discutindo os problemas cotidianos encarados então. Esta história não é somente de Graça, que se tornaria uma liderança do movimento de moradia, mas das milhares de pessoas que deixaram suas terras em busca de um emprego pleno, que na maioria dos casos não passou de uma miragem. Sem perspectivas de conseguir comprar ou financiar sua própria casa, ela participou de mutirão na região Sudeste e ajudou a construir sua casa no Jardim Celeste I em 1992. Para Brant (apud ARANTES, 2002), a repressão aos sindicatos nos anos de chumbo estimulou, em alguma medida, o desejo do encontro fora dos espaços ligados ao trabalho para discutir os problemas do dia a dia: saneamento básico, educação, saúde, habitação etc. Nos espaços gerados pelos movimentos de bairro, havia uma ampla participação feminina, provavel-
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mente mais identificada com os problemas cotidianos do que os homens, que culturalmente não se encarregavam disso. Segundo Teles (1993), as mulheres que se organizaram em clubes de mães ou associações de bairro para reivindicar melhorias na vida cotidiana em relação ao custo de vida, aos baixos salários, à falta de creches, foram ameaçadas e vigiadas no governo militar. Frente a esta situação, puderam encontrar apoio de padres e freiras que concordavam politicamente com suas lutas, bem como de outras organizações de esquerda.
4 Entrevista com Cris e Rose, da Ass. Const. Comunitária Paulo Freire, em 20/10/2012.
Cabe destacar então, o papel das Comunidades Eclesiais de Base (CEB), no âmbito da Igreja Católica3. Segundo Alvarez, no Brasil havia mais de 80 mil CEBs espalhadas, principalmente, nas periferias dos centros urbanos até a década de 1980. Elas funcionavam em conjunto com milhares de outras organizações populares que já existiam. Os grupos discutiam assuntos do cotidiano e deram origem a outras articulações reivindicatórias. Muitos grupos de base dos movimentos de moradia começaram ali e, até hoje, às vezes ocupam o espaço das igrejas para sua organização4.
5 Ver o livro do escritor peruano que cunhou esta expressão: Gutiérrez, G. Teologia da Libertação. Perspectivas. São Paulo: Edições Loyola, 2000. E como maior referência no Brasil: Boff, L. e Boff, C. Como fazer Teologia da Libertação. Petrópolis: Editora Vozes, 2005.
Esta organização está associada à corrente esquerdista católica da Teologia da Libertação5 e fazia uso do equipamento eclesial sem que houvesse necessariamente um envolvimento religioso de todos os indivíduos. Tratava-se de um outro tipo de aproximação com aquele espaço, menos na chave do poder e da verdade, que do acolhimento e da solidariedade. Teve um papel importante no alcance da população local dos bairros periféricos especialmente.
3 Ver Ralph Della Cava, “A Igreja e a abertura, 1974-1985”. In: Stepan, A. (org). Democratizando o Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
No âmbito desta mobilização católica, atenta, porém, para a manutenção da hierarquia entre os gêneros, que se evidenciou com o incentivo aos “clubes de mães”, “(...) freqüentemente criados pelo novo clero militante, predominantemente masculino” (ALVAREZ, 1988: 325). As organizações de mulheres não necessariamente apresentavam uma crítica na perspectiva das relações de gênero e de dominação. Suas reivindicações, porém, podem ser muitas vezes atravessadas pela categoria do gênero como, por exemplo, o que Alvarez chama de “maternidade militante”, que proporcionou a mobilização para movimentos como o Movimento Feminino pela Anistia, o Movimento Custo de Vida e o Movimento de Luta por Creches nos anos de 1970 e 1980.
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Se, por um lado, argumenta-se que os clubes de mães e associações de bairro femininas geralmente não se incumbiam da tarefa de construir uma conscientização sobre a situação das mulheres em relação às categorias de raça e gênero na sociedade, sem dúvida fomentaram uma base pela qual estas puderam se articular politicamente. Para Teles (1993), foi através das organizações de esquerda e dos grupos paroquiais que as feministas se aproximaram dessas mulheres mais atuantes, não sem conflitos com o machismo dos próprios companheiros e companheiras. Assuntos polêmicos como o aborto, a sexualidade ou o lesbianismo tinham de ser tratados com cautela. Até a palavra estupro era tida como tabu, como afirma a militante feminista e ex-presa política Amelinha, ou Maria Amélia de Almeida Teles. “(...) havia dificuldades nessa tarefa; dirigentes políticos ou religiosos do bairro cercavam as feministas para impedi-las de falar sobre sexualidade, violência sexual e doméstica, aborto, enfim, tudo o que envolve mais de perto a condição feminina, a pretexto de que tais questões só ‘dividem o movimento operário’, enfraquecendo a luta conjunta pelas transformações sociais.”(TELES, 1993: 76)
Naquela época, discutir os problemas enfrentados especificamente pelas mulheres era considerado prejudicial à luta por dividir homens e mulheres, ignorando que esta questão diz respeito à relação entre estes, que privilegiam um sexo em detrimento do outro. Há certo estranhamento ao ler isso hoje, mas debater os problemas gerados pela hierarquia entre os gêneros era visto como algo que estimulava esta cisão entre os mesmos. E a isto chamavam de “sexismo”. Graça foi uma das militantes que se aproximou das questões feministas e passou a freqüentar a Casa Lilith, em São Caetano (SP); posteriormente envolveu-se com a SOF (Sempre Viva Organização Feminista), ambas fundadas no fim da década de 1980. Após discutir com esses grupos a questão da violência doméstica sob a ótica feminista, passa a estimular conversas com as mulheres do mutirão em trabalhava. Como relata, nada era explícito porque se tratava de uma situação delicada em que as mulheres têm dificuldades de se abrirem, muitas vezes com medo de represálias do agressor. Mas organizavam atividades em grupo com temas distantes ou desconhecidos para os homens para, aos poucos, iniciar a discussão e então
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elas começavam a se abrir. Neste período, já em começo dos anos 1990, Graça atuava na Setorial das Mulheres da CMP (Central de Movimentos Populares). Ela conta sobre a atuação junto a outras coordenadoras de um mutirão na Região Sudeste: “Durante os processos de mutirão, o que acontecia? as mulheres iam pra obra, trabalhavam na obra, participavam das reuniões, tudo isso, e na hora de mudar para as casas, o contrato vinha sempre em nome do homem, pelo próprio código civil.(...) Não importa se era a mulher que estava trabalhando, já vinha direto em nome do homem. E aí que nós percebemos, durante todo o processo da construção, que várias mulheres, era a maioria indo nas reuniões, era a grande maioria construindo as casas nos finais de semana e tipo sábado e domingo, geralmente as mulheres chegavam com marcas e sinal de violência: o olho roxo, o braço torcido, sempre sinal de violência. E a gente começava perguntando, a gente da coordenação, e as mulheres sempre arrumavam uma desculpa. Caiu, bateu o rosto não sei aonde, sempre tinham uma desculpa. Mas aí quando elas começaram a ganhar confiança, começaram a falar que os maridos nos finais de semana, os companheiros batiam nelas, justamente argumentando que elas não estavam indo para as obras pra trabalhar, que estavam indo procurar amante, marido, qualquer outra coisa, menos a casa. Percebendo isso, começamos, dentro do mutirão, alguns espaços para discutir só com as mulheres. Fazia reunião só com as mulheres. E a gente começou a pensar numas reuniões só com mulheres e a gente não dava nome muito... pra não chamar muita atenção. A gente começou assim tipo, vamos conhecer o corpo, a gente sempre dava uma camuflada no tema pra poder, prós maridos não acharem que a gente já ia ficar um bloco feminista e um milhão de coisas né, o pessoal sempre tem esse certo preconceito... Daí começamos a fazer algumas reuniões, aí um pacto de confiança entre as mulheres, porque como todo mundo se conhece, o que uma fala aqui, a outra já solta ali, então a gente fazia um pacto entre nós. O que falou aqui, ficou aqui. Saiu da porta todo mundo esquece o que ouviu da vida da outra, esquece tudo isso.” (Graça, entrevista concedida à autora em 12/05/2012)
Práticas feministas, aos poucos, puderam adentrar os espaços do movimento de moradia pelas próprias mulheres que transitavam entre os dois movimentos. Havia dificuldades neste trabalho, ainda não declarado. Como veremos no caso das ocupações, os relatos apontam um avanço na discussão
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sobre a violência doméstica, que é proibida no regulamento do movimento como regra de convivência para todos. Mas ainda nos anos 1970, conforme o regime autoritário prejudicava cada vez mais a economia doméstica, mais movimentavam-se as mulheres em busca de direitos e reivindicações concretas no espaço urbano: “Como ‘esposas, mães e educadoras’ da família e comunidade, as mulheres das classes trabalhadoras estão entre as mais significativamente afetadas pelo arrocho salarial, elevação do custo de vida, cortes na Previdência Social, na educação, etc. Foram as mulheres das classes populares que primeiro se rebelaram pelo ‘direito’ de alimentar suas famílias, de ter escolas para as crianças e uma vida decente. E foi a maternidade, como uma instituição social, e não um ‘instinto natural’, que motivou as mulheres a exigirem o paradeiro de seus filhos ‘desaparecidos’, disseminando assim o movimento dos direitos humanos no Brasil e em outras partes da América Latina.”(ALVAREZ, 1988: 324).
Duas questões são apontadas aqui pela autora, a primeira é o fato de que as mulheres pobres e negras estão no extremo das desigualdades sociais, são as mais pobres e exploradas em todos os graus e não deixaram de reivindicar seus direitos; e outra questão é justamente que o pavio da luta acende devido à situação em que se encontra esta mulher na sociedade, jamais por ser conseqüência de seu papel natural, ou por algo como uma essência feminina. Teles (1993) também reivindica o reconhecimento das mulheres na militância social e política. Trata-se de uma história vivida pela própria autora, ex-presa política, que se dedica à luta política pelo fim das desigualdades sociais e de gênero há anos e coordena a União de Mulheres do Município de São Paulo. Como relata, ainda em meio à ditadura, em 22 de junho de 1978, as mulheres do “Movimento do Custo de Vida” protestaram na praça da Sé recolhendo assinaturas pelo aumento dos salários. Naquele período, as manifestações de estudantes eram violentamente reprimidas e houve grande ousadia daquelas mulheres da periferia em se expressarem publicamente. Para além desse, outros movimentos urbanos surgiram, como o Movimento dos Moradores em Loteamentos Clandestinos, Movimento dos Mutuários do Banco Nacional de Habitação
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(BNH) e Movimento Unificado de Favelas (FERRO, UEMURA & KOHARA, 2012: 68). Maria Gloria Gohn distingue mais precisamente cinco frentes de lutas em torno da moradia, que surgiram na década seqüente, conforme as diferentes necessidades habitacionais, reivindicando: acesso à terra e à habitação, posse da terra, processos construtivos alternativos, dos inquilinos e dos proprietários pobres (apud HIRATA, 2004: 70). Ainda que emergissem como uma organização defensiva e fragmentária, como sugere Hirata (2004), a resistência ao regime autoritário surgiu pelas brechas então possíveis. As CEBs desempenharam um papel importante no período, ao promover um espaço que abrigasse as reivindicações dos movimentos e organizasse as bases especialmente nos bairros periféricos, e o apoio de outros movimentos como o estudantil, os partidos de esquerda e as entidades civis também se faziam presente.
Encontrando a Universidade Foram muito importantes também as iniciativas que surgiram nas universidades. Em 1980, o engenheiro Guilherme Coelho traz, como uma influente referência, notícias da produção coletiva de habitação popular uruguaia. Com filmagens de conjuntos prontos e de obras autogeridas, transporta seu registro da experiência com as cooperativas de ajuda mútua no Uruguai para o Brasil (BARAVELI, 2006). A rede de cooperativas e de assessorias técnicas é estruturada pela FUCVAM (Federación Uruguaya de Construcción de Viviendas por Ayuda-Mútua) e pelo CCU (Centro Cooperativo Uruguayo). Uma grande conquista deste sistema foi a propriedade coletiva da habitação. O fato de o morador não ser proprietário daquela casa especificamente amplia a dimensão da autogestão do mutirão propondo uma nova relação entre os mutirantes que não constroem juntos somente por um fim comum, mas que constroem a autogestão no dia a dia como um fim em si. Neste momento, Coelho se junta ao grupo de sem-tetos que conquista um terreno na Vila Nova Cachoerinha (São Paulo) para construir habitação por ajuda mútua. O engenheiro, porém, faleceu no meio do processo que acabou se desenrolando autoritariamente sem qualquer resquício de experiência
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autogestionária, financiado pela COHAB e com empreiteira. Todo o trabalho desenvolvido foi ignorado, como muitas vezes aconteceu nas tentativas de produzir habitação de qualidade para os setores subalternos. Afinal, essas iniciativas vão na contramão do raciocínio lucrativo das construtoras, o que pode ser muito perigoso para as mesmas. Algumas iniciativas nas universidades também tiveram um papel importante na qualificação da habitação e na pesquisa e experimentação das tecnologias de construção. Em 1977, Rodrigo Lefèvre cria o Curso Integrado de Projeto e Desenho Industrial na FAUUSP, propondo uma relação direta entre os técnicos e as comunidades que pudessem reproduzir suas invenções tecnológicas apropriadas à escala humana e não de massas como era proposto por outras correntes do Desenho Industrial. A discussão girava sobretudo em torno das formas da produção e das relações de dominação no trabalho. Os professores desta disciplina e estudantes estavam também envolvidos na formação do Partido dos Trabalhadores (PT). Este mesmo grupo, que incluía as arquitetas Ermínia Maricato e Mayumi Souza Lima (ARANTES, 2002) cuidaria das políticas urbana, de habitação e de obras públicas na primeira gestão petista do município de São Paulo, no caso, por uma mulher nordestina, Luiza Erundina, prefeita de 1989-1992.
6 O Laboratório era formado pelos seguintes professores: Joan Villá, Yves de Freitas, Antônio Carlos Sant’Anna, Mauro Bondi, Antônio Sérgio Bergamin, Jorge Caron, Carlos Roberto Monteiro de Andrade, Nabil Bonduki, Vitor Lotufo e João Marcos Lopes (Arantes, 2002). Ver também: Bonduki, Nabil. Construindo territórios da utopia. Dissertação de Mestrado, FAUUSP, 1992.
Pouco depois, em 1982, na Faculdade Belas-Artes de São Paulo, alguns professores criaram o Laboratório de Habitação6, com a intenção de prestar assessoria técnica às comunidades e discutir políticas públicas propriamente, inspirados pela cooperativa do Sindicato de Arquitetos de São Paulo e pelo cooperativismo uruguaio. Posteriormente outros laboratórios similares são criados na UNICAMP, por Joan Villà (ex-integrante do LabHab Belas-Artes), na FAU-Santos e na PUC-Campinas (ARANTES, 2002; BUSKO, 2012). Em síntese, havia uma movimentação nos meios intelectualizados em favor da democratização, conforme se percebia uma especificidade de atuação no caso da Arquitetura e do Urbanismo, bem como uma crítica ao modelo de desenvolvimento imposto, que não promovia políticas de inclusão e redução das disparidades econômicas. Por outro lado, havia a mobilização das classes populares que sofriam com os problemas do desenvolvimento urbano perversamente planejado de modo segregacionista e excludente. Mas as múltiplas organizações da sociedade civil entrecruzavam esses atores e a luta acabou se
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articulando pela especificidade das reivindicações, de modo ora mais ora menos politizado. No plano mais teórico, desde o começo dos anos 1970, os intelectuais latino-americanos se preocupavam com a constituição de modelos para compreender a urbanização no capitalismo periférico. No caso brasileiro especificamente, um marco na produção intelectual deste período foi a publicação de “São Paulo, 1975: crescimento e pobreza”, organizado por Paul Singer e Vinícius Caldeira Brant: “(...) sua publicação estava ligada à semente do que viria a ser a força dos movimentos sociais e principalmente os movimentos de moradia.” (HIRATA, 2004: 61).
Esse trabalho seminal do Cebrap ainda é referencial nos estudos urbanos, mas muito se avançou neste campo. O debate hoje mira a cidade mais como objeto do que como cenário das disputas, por exemplo, como é apresentado até então. E os próprios movimentos já podem fazer uma avaliação de como produziram, nestas últimas décadas, outros espaços que não deixam de compor a cidade, ainda que muitas vezes pareçam ilhas, ou melhor, oásis. Além desse trabalho, havia um debate semeado na universidade que tentava compreender as múltiplas transformações na cidade. Ainda na década de 1960, Maria Ruth Sampaio e Carlos Lemos tiveram um papel pioneiro na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP ao pesquisar a auto-construção nas periferias (ARANTES, 2002: 174) e, adiante, esta professora especialmente envolveu-se com os atores das mobilizações populares por moradia, que eram tema de sua pesquisa. Muitos outros professores e arquitetos também aproximaram-se, ao longo deste período, dos movimentos de moradia e, em 1987, realizaram o primeiro encontro para discutir esta atuação profissional (ARANTES, 2002: 183), que é uma questão debatida até os dias de hoje (BUSKO, 2012).
Abertura política ou financeira? A reação desses diversos grupo da sociedade expôs, por um lado, um potencial de mobilização social capaz de interferir na produção da cidade, mas também o descontentamento
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com um modelo extremamente espoliador vigente. Era constante o questionamento sobre o papel dos arquitetos-urbanistas nesse contexto. Uma nova cena se desenhava ao passo que o neoliberalismo se instalou e se infiltrou nos países do “terceiro mundo”. Compunham esse cenário: o desemprego estrutural, a terceirização como perda do referencial de classe, a concepção de ciência e tecnologia como forças produtivas, a privatização dos direitos civis (saúde, educação, habitação, cultura) (CHAUI apud HIRATA, 2004: 54). Segundo pesquisa do Centro Gaspar Garcia, estima-se que mais de 300 mil famílias teriam ocupado áreas pela capital na década de 1980, “de forma nem sempre organizada, com apoios da Pastoral da Moradia, setores da Universidade, parlamentares e Centros de Direitos Humanos, visando à organização dos movimentos” (FERRO, UEMURA & KOHARA, 2012: 68). Na conta de Bonduki (1996, apud ARANTES, 2002), entre os anos 1981 e 1984, ocorreram 61 ocupações de terras na cidade envolvendo cerca de 10 mil famílias. Mas, em 1987, após o fim do regime autoritário, haveria um aumento considerável nesses números. Cerca de 100 mil pessoas teriam ocupado 238 áreas na zona leste da capital (MIAGUSKO, 2012: 130). Independente do número exato, este panorama, ainda indeterminado pelas pesquisas, aponta a constituição de uma estratégia de ocupação dos terrenos ociosos como pressão aos poderes públicos e ao mesmo tempo, gerando um espaço de convívio, ainda que efêmero, que possibilitava a organização daquelas pessoas sem lugar na cidade, sem emprego formal, sem moradia adequada, sem ter acesso à saúde e à educação, sem reconhecimento pelo governo efetivamente. A organização, nomeação e visibilidade de suas lutas situava-os como atores na disputa urbana. Para indivíduos atomizados, desenraizados, desamparados e lançados na turbulência urbana, sem eira nem beira, ter experiências de compartilhamento intersubjetivo no coletivo significou atingir um novo patamar, tanto na produção de sua própria subjetividade quanto na constituição de relações e vínculos numa comunidade politizada. Estes novos sujeitos desestabilizavam as relações de poder: “O surgimento dos movimentos e o paralelo aparecimento de uma nova rede de relações de poder transformaram radicalmente
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a relação do Estado com a sociedade civil. Estes novos sujeitos têm como característica formadora a trajetória do privado para o público, o que transforma e constitui um novo sujeito político que, ao contrário do sujeito eleitor tradicional, busca participação, tem demandas específicas que se somam às gerais e provocam novas formas de relação de poder com o Estado.” (PINTO, 1992: 136)
A partir das ocupações que ocorriam, como uma forma de organizar os movimentos que brotavam de modo fragmentado, em 1987, formalizou-se a União dos Movimentos de Moradia de São Paulo. Este funciona como um “guarda-chuva” de associações, articulando diversos grupos de base de todas as regiões da capital e, hoje, também do ABC e da Baixada Santista. No plano nacional, no mesmo ano, o Movimento Nacional de Reforma Urbana envia a proposta de Emenda Popular de Reforma Urbana para a nova Constituinte Democrática.
7 Ver: Ronconi, Reginaldo. Habitações construídas com o gerenciamento dos usuários, com organização da força de trabalho em regime de mutirão. Dissertação de Mestrado, EESC-USP, São Carlos, 1995; e Bonduki, Nabil. Arquitetura e habitação social em São Paulo: 1989-1992. São Carlos: EESCUSP, 1993. 8 Ver: Sachs, Céline. São Paulo: políticas públicas e habitação popular. São Paulo: Edusp, 1999. apud Arantes, 2002.
Durante a gestão petista de Luiza Erundina (1989-92) foi implantado o programa FUNAPS-Comunitário7.Os diversos movimentos associados à UMM realizaram então mutirões junto a assessorias técnicas. Com este programa houve uma proliferação destas entidade profissionais transdisciplinares que atuavam em parceria com os movimentos sociais tanto na proposta arquitetônica na habitação social, do projeto à construção, como ao elaborar projetos de lei e programas habitacionais. Marca um momento distinto, em que, de modo geral, o Estado passaria a apoiar uma nova prática de mutirão, em que os atores se engajariam numa transformação subjetiva, numa construção ética coletiva. Diferentemente dos modelos de auto-construção incentivados durante o regime militar nos anos 19708. Os mesmos envolvidos nos laboratórios que buscavam soluções para o problema da habitação agora estavam também no papel de constituir políticas públicas ou atuando ao lado dos mutirantes. “A novidade era realizá-lo não mais como forma de autoprovisão com economia própria, mas com terra e financiamento estatais, reivindicando uma parcela do fundo público e a universalização do direito à moradia. Ao ser politizado pelo movimento social, assessorado por arquitetos independentes e realizado com recursos públicos, o mutirão irá superar sua condição de forma arcaica de cooperação, como se verá.”(Arantes, 2002: 170)
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Pensados como um lugar de democratização dos saberes e fazeres e de conscientização política, os mutirões foram realizados a partir da convergência dos movimentos populares por moradia e das assessorias técnicas formadas por arquitetos cuja postura profissional fazia deslocar o olhar da prancheta para as pessoas. A denominação “mutirão autogerido” serve para opor este processo aos mutirões incentivados pelo governo militar. O termo autogestão, contudo, não remonta às teorias anarquistas ou às experiências de organização libertária como na Comuna de Paris (1871) ou na Revolução Espanhola (1936-39). Para Arantes, a “autogestão plena” é impossível de ser realizada dentro do capitalismo, de modo que: “é possível apenas vislumbrar alguns momentos de uma nova organização social e da produção, situações latentes dentro das contradições próprias dos movimentos e das determinações históricas mais amplas.” A gestão de Erundina teve um papel muito importante em diversas áreas, mas especialmente naquela da política habitacional, com Ermínia Maricato como Secretária da Habitação e Nabil Bonduki na HABI (Superintendência de Habitação Popular), tendo entregue uma quantidade inédita de unidades habitacionais de interesse social e, principalmente, com qualidade e menor custo do que por empreiteira. Neste período foram iniciados mais de 100 projetos em mutirão autogerido, que produziram mais de 10 mil unidades habitacionais, urbanização de favelas e projetos de moradia popular digna na área central, como o Casarão Celso Garcia e o Madre de Deus (ambos realizados por mutirão). 9 Um histórico dos programas de mutirão e análise de caso do PPM de Covas é desenvolvido em: Barros, Mariana C. Autogestão na implementação de políticas habitacionais: o mutirão autogerido Brasilândia B23. Dissertação de Mestrado, EESC-USP, São Paulo, 2011.
No plano estadual, Fleury desenvolveu um programa de mutirão similar ao FUNAPS-Comunitário, feito no âmbito da HABI da prefeitura, por pressão da UMM-SP. Seu sucessor, Mário Covas deu seqüência com o Programa Paulista de Mutirões, mas com alterações que desviavam-se do caráter do programa anterior, passando a ser mais um instrumento urbanístico para promover o lucro das construtoras envolvidas9. Entre diversas irregularidades denunciadas, como gastos injustificáveis e contratação de determinadas construtoras para serviços que não seriam terceirizados, as obras realizadas chegaram a um custo final da moradia maior do que se fossem feitas por contrato com empreiteira. Em 2000, as contratações foram investigadas pelo Tribunal de Contas do Estado de São Paulo e o presidente da CDHU (Companhia de Desenvolvi-
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10 Compêndio de notícias em jornais e relatórios no site do Conselheiro do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, Antonio Roque Citadini: www.citadini.com.br, acessado em setembro de 2012.
mento Habitacional e Urbano do Estado) é obrigado a deixar o cargo a contragosto do próprio Covas, com quem mantinha velha amizade e de quem fora tesoureiro na campanha em 1994. Foi possível identificar ainda que algumas das empresas contratadas pertenciam a outros amigos e financiadores desta campanha10. A cada gestão, observamos mudanças drásticas nas posturas frente à política de mutirões. Das mais de dez mil unidades iniciadas na administração de Erundina “apenas 2 mil foram finalizadas ainda naquela gestão e 9 mil passaram para a administração seguinte. Com a eleição do candidato de ultra-direita Paulo Maluf (PPB), em 1992, todos os mutirões foram interrompidos e as obras, suspensas.” (ARANTES, 2002: 188). Os mutirões foram praticamente paralisados então, sendo retomados de fato somente com a gestão de Marta Suplicy, em 2001. Durante esse intervalo, o debate a cerca das vantagens e desvantagens do mutirão amplia-se e muitas assessorias deixaram de investir neste processo, resumidamente, por entender que se trata da duplicação da exploração do/as trabalhadore/ as. Além de ser inviável a aquisição ou aluguel de uma casa no mercado formal com os baixos salários com que a maioria da população sobrevive, a produção de uma moradia é fruto de um trabalho além de seu trabalho cotidiano, aos finais de semana geralmente, contando com apoio solidário dos vizinhos e amigos que também vivem a mesma situação. Além deste aspecto, o engessamento burocrático advindo de alguns governos impediu a fruição do processo de construção autogestionado e acarretou em um custo altíssimo relativo ao tempo de espera. Se por um lado isso evidenciou os interesses, produtivos ou repressivos, de cada gestão política atuante, também aponta uma fragilidade com a qual é preciso lidar. Até hoje os movimentos junto a algumas assessorias seguem construindo em mutirão por autogestão.
11 Ferro, Sérgio. “A casa popular” (1969), publicado pelo Gfau em 1972 e republicado como “A produção da Casa no Brasil”, 2005; MARICATO, Ermínia. “Auto-construção, arquitetura possível”, In: A produção capitalista da casa (e da cidade) no Brasil industrial. São Paulo: Ômega, 1979. 12 Artigo publicado na revista Estudos CEBRAP (2), 1972.
Muitos pesquisadores se empenharam em discutir a questão da auto construção na década de 197011. Em 1972, Francisco de Oliveira já discutia a questão em termos do trabalho não-pago, dado que aumentava a taxa de exploração da força de trabalho, em A economia brasileira: crítica à razão dualista12. Mais de trinta anos depois, em 2004, em conferência no seminário de pesquisa “Políticas Habitacionais, Produção de Moradia por Mutirão e Processos Autogestionários: Balanço
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13 Realizado na FAUUSP, em outubro de 2004. A organização do ciclo de debates coube à Usina - Centro de Trabalho para o Ambiente Habitado, ao Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic) e ao Núcleo de Apoio à Pesquisa, Produção e Linguagem do Ambiente Construído (NAP-PLAC). Foi publicada como artigo em Novos Estudos CEBRAP (74), 2006. Sobre este debate ver também OYOLA, 2011.
Crítico de Experiências em São Paulo, Belo Horizonte e Fortaleza”, apresenta uma crítica à política de mutirão13 que, de certa forma, colocou-se como divisor de águas obtendo respostas que rebatiam seus argumentos, bem como adeptos de suas posições. Este debate, contudo, diz respeito não somente à política de mutirão, mas aos movimentos de moradia como um todo a meu ver. A discussão da casa estritamente como mercadoria, discutindo seu valor de troca, perde a riqueza das nuances da construção social e subjetiva de seu valor de uso. Um dos argumentos é de que seria inviável pensar o mutirão como política pública generalizada. Mas sob a ótica dos sujeitos envolvidos e das transformações implicadas no processo, trata-se de uma visão da transformação social urbana qualitativamente e não quantitativamente. O processo do mutirão prova não somente que a população pode administrar melhor as verbas investidas na construção, mas que é possível construir casas e apartamentos a custos inferiores com uma maior qualidade. O mutirão não precisa ser um fim, mas um caminho para conquistar uma nova política de habitação.
Os tetos vazios e os sem-teto O sonho da casa própria, no senso comum, tem uma carga simbólica muito forte que se refere à segurança, ao acolhimento no mundo, um espaço subjetivo, um desejo de enraizamento, que dizem respeito ao seu valor de uso. Porém, nas falas dos sem-teto fica claro outro aspecto que é a casa própria como valor agregado ao trabalhador, que assim pode trabalhar e sobreviver sem ter que gastar seu baixíssimo salário no aluguel. A “crise econômica” constante e o desemprego estrutural que atingem incisivamente o Brasil e os países periféricos geram uma situação em que uma enorme população não pode arcar com o custo habitacional. Por esta perspectiva, a conquista de moradias sem que se altere este quadro não resolve a questão. Todavia, quando analisamos os embates em torno das políticas habitacionais, sabe-se que além da exploração dos trabalhadores que se contorcem para morar na cidade, a habitação social não está fora da lógica imobiliária do lucro. Desta forma, a principal dificuldade na produção de moradias adequadas para famílias com renda de 0 a 3 salários mínimos esbarra com a falta de interesse e
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vontade política do Estado de fazer frente ao mercado, de modo que muitas vezes seus agentes se confundem. Mesmo com o subsídio do Programa Minha Casa Minha Vida, pouquíssimo tem sido destinado a essa camada, sob a justificativa de que não se pode competir lucrativamente. Como aponta Maricato (2011), trata-se de um dos impasses da política urbana no Brasil. Não podemos perder de vista que os movimentos sem-teto e sem-terra são uma resposta ao problema da habitação no Brasil, que, por sua vez, está ligado ao problema da desigualdade social e da concentração de renda. “Prova disso é que nos últimos dez anos, apesar do crescimento econômico médio de 3,6% ao ano (IBGE, 2000- 2010), a população nas favelas cresceu 75%, enquanto a população brasileira apenas 12,3% (IBGE, 2010).” (FERRO, UEMURA & KOHARA, 2012: 4). Do mesmo modo, o desequilíbrio nas relações de gênero segue problemático, já que são as mulheres as mais afetadas pelo problema. Além desta questão, cabe lembrar que o conceito de moradia digna não se reduz a um espaço cercado por paredes e coberto por um teto, mas que implica na localização onde se situa, para que haja possibilidades de trabalho, saúde, educação e cultura, bem como na segurança da posse, com a documentação do imóvel como garantia legal.
14 “Em 2007, conforme dados do IBGE e da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD), no Brasil havia mais de 15 milhões de domicílios inadequados, sendo 10,5 milhões por carência de infraestrutura, 1,8 milhão por inadequação fundiária, 1,5 milhão por adensamento excessivo, 929 mil por falta de banheiro e 545 mil por cobertura inadequada.” FERRO, UEMURA & KOHARA, 2012.
Além de cerca de 8% da população brasileira viver em domicílios inadequados14, há um déficit quantificado em mais de 6 milhões de moradias, sendo que a maioria destas famílias possuem renda até três salários mínimos. Enquanto isso, o Censo IBGE 2010 quantifica 6,07 milhões de domicílios vazios (FERRO, UEMURA & KOHARA, 2012). No Estado de São Paulo, são 1,12 milhão de domicílios vagos (IBGE). E, de acordo com o Censo 2010, são 1,127 milhão de famílias paulistas que não têm lugar para morar ou que vivem de forma precária. Contudo, basta perceber a valorização da propriedade como direito e lei soberana na sociedade brasileira nos infinitos episódios de nossa história, para que paire um ar desesperançoso em relação à simples resolução matemática da questão. Entre 2001 e 2004, com o lançamento do Programa Morar no Centro pela Prefeitura de São Paulo, foi necessário encontrar terrenos vazios e prédios adequados para reformas. Para tanto, criou-se o GTAI (Grupo Técnico de Análise de Imóveis), que montou um cadastro e analisou vários terrenos e imóveis,
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com a colaboração dos movimentos populares urbanos (SILVA; SIGOLO, 2007: 15). Ao longo das décadas de oitenta e noventa, ocorre uma significativa evasão populacional e queda da atividade econômica na região central de São Paulo. Segundo Amaral, enquanto a população urbana crescia 22,52% no município, no Centro declinava em 30,35%; já nos bairros periféricos, a população aumentava significativamente, como na Cidade Tiradentes, onde a população cresceu em 2114,98%, Parelheiros, 2231,21%, e Anhangüera, 619,66% (AMARAL, 2002: 86). No final dos 1990, movimentos de moradores de cortiços especialmente começaram a ocupar edifícios abandonados na região central, após o deslocamento do centro financeiro, que deixou o centro histórico com vazios ociosos. A disputa por moradia popular no centro da cidade ganhou uma dimensão mais combativa do que nos bairros periféricos uma vez que se deparou, de modo dramático, com as forças da especulação imobiliária. Miagusko (2012) aponta a greve dos petroleiros em 1995 como marco deste novo contexto. Primeiro conflito do movimento sindical com o governo de FHC devido ao desrespeito de um acordo para o aumento de salários firmado no ano anterior com o presidente então Itamar Franco. Um dos significados apontados pelo autor é que “sua derrota abriu espaço para as reformas de cunho privatizante, flexibilização de direitos sociais e privatização de empresas estatais nos ramos das telecomunicações, da mineração, da navegação de cabotagem, da eletricidade, do setor financeiro, dentre outros”. Interessa-me destacar este desencadeamento, na medida em que situa a emergência dos recentes movimentos urbanos nomeados sem-teto. Como um braço urbano do Movimento dos Sem-Terra, em 1997, forma-se o Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto. “A assimilação da nomeação sem-teto já aponta a década como de retração das políticas públicas, perda de direitos ou sua flexibilização, adoção de parâmetros do mercado como medida, privatização etc. O contexto de aparecimento desses movimentos é o final dos anos 1990, marcado pelo encolhimento da cena pública, em que ação dos movimentos sociais passa a ser questionada, nos termos de sua legitimidade e legalidade. / A forma mais visível de
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aparecimento político desses movimentos de sem-teto foi a ocupação. A própria nomeação é um litígio constitutivo: a terminologia ‘ocupação’ é parte de uma disputa simbólica desses movimentos pela nomeação da ação, em contraposição ao termo ‘invasão’, confrontando os limites da propriedade privada e dos espaços em que a política aparece.” (MIAGUSKO, 2012: 85-86)
Desta forma, o movimento já nasce sob suspeita, criminalizado pelo poder público. Na definição gramatical do dicionário para a palavra invasão, ação tida como violenta, há um item classificado como “regionalismo” que a define assim: “(Regionalismo: Brasil) terreno, área ilegalmente ocupada por moradias populares” (HOUAISS). Já em relação ao termo ocupação, entende-se tratar-se de apropriação sem violência, preencher ou ocupar espaço vazio. A partir da implementação do Estatuto das Cidades (2001), passa a valer a Função Social da Propriedade, atrelada ao Plano Diretor de cada município. Assim começa a disputa jurídica entre o direito individual de propriedade e o direito social à moradia. Diversas ocupações de imóveis ociosos são realizadas a partir de então, e o foco desta atuação dos movimentos recai sobre o Centro. Miagusko (2012) questiona as razões desse deslocamento discursivo e geográfico dos movimentos de moradia da periferia para os movimentos de sem-teto do Centro. Associa a visibilidade da Região Central na última década ao interesse dos poderes públicos investindo em intervenções urbanas, ao enfoque da mídia sobre o Centro como o lugar onde emergem os problemas sociais, ao aumento das pesquisas sobre a região. Da mesma forma, os movimentos sociais publicizam sua atuação nesse lugar, ocupando edifícios para morar ou como estratégia de pressão política. Ele recorre a Foucault para destacar as relações de saber-poder que se apropriam do Centro, citando que este autor “se refere a uma ‘vontade de saber’ ao assinalar essa operação do conhecimento em esquadrinhar, observar, classificar e mensurar determinado objeto, criando um campo autônomo à própria experiência” (MIAGUSKO, 2012: 175n) Segundo sua análise, esse campo de conflitos que concentra múltiplos atores é logo alterado pela velocidade das transformações, passando a ser percebido tanto como um local de pobreza pelos proprietários, que almejam revitalizá-lo, visando
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a lucros significativos, quanto pelos movimentos sociais que passam a considerá-lo como lugar de lutas e reivindicações.
Espaços feministas Nesse mesmo momento, outro movimento ganhava crescente espaço na cidade: o feminismo mostrava suas conquistas. Ainda na gestão de Erundina, em 1989, foi criada a Coordenadoria Especial da Mulher, órgão municipal responsável por propor, elaborar e acompanhar o desenvolvimento de políticas públicas dirigidas às mulheres (GODINHO; SILVEIRA, 2004). A partir deste órgão, criou-se a Comissão de Mulher e Espaço Urbano, no ano seguinte, que visava participar da construção do plano diretor (GONZAGA, 2011). Esta iniciativa obteve uma atuação muito reduzida porém, com dificuldades de crescimento interno à própria administração e também por falta de experiência dos envolvidos. Gonzaga nota que “o movimento feminista não tinha acúmulo na discussão sobre o tema” (GONZAGA, 2011: 39). A coordenadoria contudo permaneceu ativa durante esta gestão, realizando serviço de atendimento às mulheres para os casos de violência de gênero entre outras ações. Na gestões seguintes, de Paulo Maluf (1993-1996) e Celso Pitta (19972000), o órgão ficou praticamente inativo. A Casa Eliane de Grammont, aberta em 1990, representou um lugar de resistência, mantendo o atendimento às mulheres vítimas de violência, apesar da falta de suporte, contando com o apoio de seu grupo de funcionárias (GODINHO; SILVEIRA, 2004: 57). Na gestão posterior de Marta Suplicy (2001-2004), retomam-se os trabalhos estruturados ali. Segundo Alvarez: O processo gradual de ‘redemocratização’ tanto reforçou quanto foi fortalecido por um processo igualmente gradual que eu chamo de politização do gênero – um processo pelo qual as questões anteriormente consideradas ‘privada’ ou ‘pessoais’ são levantadas como questões políticas, para serem colocadas pelos partidos políticos e pelo Estado.” (ALVAREZ, 1988: 316)
A questão da violência doméstica, por exemplo, ganha uma dimensão política que culminou, entre outras conquistas, na Lei Maria da Penha em 2006. Esta lei, nº11.340, busca coibir as prá-
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ticas da violência doméstica; resulta da luta empreendida pela farmacêutica Maria da Penha ao longo de 20 anos, desde que foi baleada por seu marido, um professor universitário. Mesmo criada nesse ano, tem gerado muitas insatisfações especialmente entre as feministas e as vítimas desse tipo de violência. Outra conquista em relação ao tema foi a garantia de 5% das unidades realizadas pelo Programa de Arrendamento Residencial (PAR) em São Paulo destinadas a mulheres vítimas de violência doméstica, indicadas pela Coordenadoria junto à Casa Eliane de Grammont, desde 2004 (SERPA; ARIENTE, 2004). Em paralelo, o movimento feminista também ganhava corpo no país. “As entidades feministas também proliferaram no Brasil desde os meados dos anos 70, e atualmente (1985) há cerca de cem grupos feministas concentrados nos principais centros urbanos brasileiros” (ALVAREZ, 1988: 326). Diversas organizações feministas foram fundadas, como a SOF (Sempre Viva Organização Feminista), a União de Mulheres de São Paulo, entre outras. Explorar as interseções entre essas organizações pode esclarecer este panorama, em que movimentos com pautas distintas podem se articular e influir uns nos outros. Kowarick, em Escritos Urbanos (2000), lembra também que os movimentos feministas e étnicos foram subestimados e colocados em segundo plano, ao lado da mobilização acerca do trabalho e da moradia (apud HIRATA, 2004: 61). Há hoje dentro da própria UMM-SP, a Secretaria da Mulheres e a nível nacional também, na UNMP (União Nacional de Moradia Popular). Quem coordena estas duas secretarias é Maria das Graças Xavier, hoje com 46 anos. Celi Pinto comenta sobre a diferenciação do movimento feminista e o de moradia nos seguintes termos: “Enquanto movimentos reivindicatórios se constituem ao redor de uma exclusão específica, sem-terra, sem-teto etc., o movimento feminista constitui-se em torno de uma condição de exclusão dispersa e, ao mesmo tempo, onipresente no sentido de perpassar todas as posicionalidades do sujeito em sua vida cotidiana. O movimento feminista organiza-se por lutar contra uma condição: não é a luta por políticas públicas, por revisões de códigos de direito ou mesmo por creches, delegacias etc. que constituem o movimento, mas a luta contra uma condição dada historicamente pela desigualdade nas relações de gênero, que se
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expressam ao nível público e ao nível privado, ao nível da razão e do afeto, do trabalho e do prazer, da obrigação e do desejo.”(PINTO, 1992: 132)
Enquanto o movimento feminista luta não apenas por conquistas sociais e políticas públicas, mas também por espaços subjetivos e para formar novas subjetividades femininas, contra a imposição de uma identidade da mulher-mãe-dona-de-casa, os movimentos sem-terra ou sem-teto lutam por uma carência material, um lugar físico no mundo. Quanto mais o direito à moradia se estende ao direito à cidade, deixa de se restringir a conquista de um domicílio, mas visa à criação de cidades igualitárias que comportem modos de existência mais humanizados, voltadas para a qualidade de vida das pessoas em oposição ao mercado imobiliário que vê a casa puramente em seu valor de troca. Se tomarmos o patrimonialismo e o patriarcado como elementos fundantes da sociedade brasileira, estas lutas podem e às vezes de fato se constituem contra estes dois elementos de modo a convergir.
15 Assessora do Programa Nacional Direito à Cidade da Ong FASE – Solidariedade e Educação, Secretária Executiva do Fórum Nacional de Reforma Urbana.
Regina F. C. Ferreira15, ao explicar a Plataforma Feminista da Reforma Urbana, aponta que, culturalmente, cabe às mulheres as tarefas consideradas da esfera da reprodução: manutenção da casa, alimentação, cuidar dos filhos. De modo que seriam as mais afetadas pelos problemas referentes à moradia precária, como água, energia, lixo, esgoto. E também com a falta de equipamentos públicos, como posto de saúde, escolas, creches, sem as quais as mães não podem trabalhar fora. Fala ainda do problema da carência de infra-estrutura urbana, como “falta de pavimentação de ruas, de iluminação pública, de praças, áreas e opções de lazer para ela e a família”. Se, em parte, é inegável a associação das mulheres às atividades reprodutivas na sociedade, acabando por arcar com os prejuízos citados, há nesse discurso o pressuposto da ligação entre as mulheres e essas responsabilidades que lhe são exclusivamente atribuídas. Santoro, em outro texto sobre gênero e o debate urbano apresenta essa percepção: “Parte dessa opção por lazer também está relacionada com as dificuldades de transporte, passam horas no translado de casa para o trabalho, do trabalho para a casa e têm pouco tempo para o lazer. Os homens também são afetados pelos problemas de transporte e têm perdido muito de seu tempo para o lazer. E se ambos são afetados pelas agruras urbanas, o que diferencia é o peso da
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responsabilidade cotidiana que a mulher tem a mais sobre a vida doméstica.” (SANTORO, 2008: 7)
Talvez a discussão pudesse vislumbrar uma situação em que essa preocupações não coubessem exclusivamente às mulheres, desnaturalizando esse discurso. A falta de opção de lazer para a mulher e toda sua família ressalta a noção de que é um problema para todos, inclusive de sociabilidade numa comunidade. O problema a meu ver é que o lazer da família se constitua como uma preocupação que cabe exclusivamente à mulher. Por que ela deve lutar por isso como se fosse sua questão exclusiva? Para além da esfera da reprodução, diz-se que cada vez mais a mulher integra o mercado de trabalho, mas esta discussão é antiga também. Em diversos momentos históricos, houve maior participação feminina no mercado de trabalho conforme a relação oferta/demanda. As mulheres, como se sabe, dispõem de sua mão-de-obra a custos mais baixos que os homens devido à desvalorização social de seu trabalho ainda hoje. Além de receber menos pelo mesmo trabalho, são vítimas mais freqüentes de assédio moral, muitas vezes banalizado, do que os homens, em casa, no trabalho e ainda no transporte. Existem estatísticas a respeito, mas sabemos que há uma dificuldade em denunciar estes ocorridos devido a fatores como o medo de represálias, a decisão de sair de casa (no caso da violência doméstica), o sentimento de humilhação e muitas vezes as mulheres que denunciam acabam tendo que enfrentar e se desgastar comprovando a violência sofrida aos próprios agentes que deveriam protegê-las. Lembramos que a Lei Maria da Penha foi aprovada somente em 2006 e ainda tem complicações em sua aplicabilidade, como já disse. O próprio conceito de violência de gênero foi introduzido com muito custo na sociedade brasileira a partir dos anos de 1990, tendo sido muito importante o trabalho das feministas de várias associações, a exemplo da União de Mulheres de São Paulo e da SOS Corpo do Recife. No caso do transporte, vale relembrar as iniciativas polêmicas de vagões exclusivos nas horas de pico, que foram implantados em São Paulo, em 1995, e no Rio de Janeiro, em 2006. No caso paulistano, os usuários não respeitaram a exclusividade
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do vagão feminino e a CPTM abandonou o projeto. As divergências giram em torno do argumento de que assim se confirma o problema e não se resolveria a questão. Podemos fazer uma analogia com as cotas para negros nas universidades. Não se trata de uma medida que resolva o problema do racismo na nossa sociedade, mas se pensarmos de modo imediato em como resolver o problema de que as estatísticas de negros na universidade em relação às porcentagens demográficas, é uma resposta pragmática. Do mesmo modo, como resolver o problema cotidiano de assédio físico que enfrentam as mulheres com os trens lotados? A solução poderia ser aumentar o número de trens dizem uns, diminuindo a superlotação que acaba incidindo na facilidade do assédio, ou aumentando o número de seguranças nos trens, ou um posto em possam ser feitas as denúncias. Neste caso são soluções não muito difíceis de se executar. Ao contrário do problema da desigualdade racial nas universidades, que exige uma melhoria significativa na educação pública e um combate efetivo e contundente contra o racismo que, assim como o machismo não é claramente assumido e denunciado. A luta por creches e outros equipamentos urbanos fez parte da produção de urbanidade na periferia. Mas as mulheres que reivindicavam esses benefícios visavam a facilitar seu trabalho fora de casa e buscavam lugar que acolhesse e educasse os seus filhos. Se não existissem postos de saúde, seria ela a levar a criança a uma unidade mais distante. Assim, demandavam infra-estrutura básica, serviços públicos, iluminação, transportes, além da preocupação com o lazer. Para Gouveia, também atuante nos movimentos sociais e discutindo a questão urbana, a desigualdade de gênero não somente atravessa os processos de produção e reprodução das cidades, mas estrutura os mesmos: “(...) na medida em que se atuamos apenas no plano das desigualdades de acesso estaremos trabalhando os impactos da estrutura na vida das mulheres – o que é importante, mas não o suficiente – enquanto que ao assumirmos as desigualdades de gênero como estruturadoras e dinamizadoras das cidades estaremos enfrentando a questão do poder e conseqüentemente dos privilégios que os homens têm com a conservação desta estrutura” (Gouveia, 2005).
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Do poder masculino
16 Aliás, seria necessária uma outra ou nova palavra aqui, pois o deslocamento de conceitos que não condizem com uma época não está relacionado ao simples fato de “sujeito” e “objeto” serem contemporâneos ou não, visto que os viajantes viviam no mesmo tempo que os indígenas, mas seu vocabulário moldava interpretações de uma realidade que não podia bem ser compreendida com rígidas lentes vindas de outras terras, inseridas em outros modos de vida.
De qualquer modo, tratam-se de mudanças exigidas a uma sociedade que cultiva tal comportamento ou mentalidade há cinco século... mas assim como estas formas não são imutáveis, podemos relembrar aqui outras formas que foram sutilmente eliminadas nas nossas próprias terras. No sagaz ensaio sobre historiografia e relações de gênero, Swain retoma os textos originais dos cronistas e viajantes, a partir dos quais foram feitas versões de histórias do Brasil colonial, e comenta sobre os historiadores homens que se eximem da perspectiva de gênero. Sua leitura confere nitidez às distorções geradas ao interpretar diversos textos de época. Anacronicamente16, diversos intelectuais acabam por impor pressupostos e pré-conceitos que preenchem lacunas não claras a respeito da própria descrição, já enviesada, dos viajantes. Nas palavras de Swain: “A releitura das fontes utilizadas nas narrativas históricas bem como a crítica à historiografia são imprescindíveis para que surjam as múltiplas realidades, os agenciamentos sociais plurais, que ficaram ocultos no fazer histórico tradicional. O que a história não diz não existiu, pois o sistema de interpretações que decide sobre aquilo que é relevante para a análise histórica fica oculto nas dobras das narrativas.” (SWAIN, 2008: 29)
Sendo assim, há de se explicitar a “incontornável mediação discursiva das fontes e de suas condições de possibilidade” que não podem mais do que simplesmente representar o passado segundo os modelos ao seu alcance. Segundo a historiadora feminista: “Neste sentido, o fazer dos historiadores, em sociedades patriarcais, exclui da memória social a diversidade possível das relações sociais, em que sexo e sexualidade não seriam determinantes nem de identidade, nem de exclusões. Elimina também a possibilidade de sociedades não-binárias, não fixadas em uma dicotomia incontornável de gênero, ou ainda de sociedades em que o feminino tenha tido uma importância inaceitável aos produtores de história.” (SWAIN, 2008, 29)
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17 Ver: PETER, S. (org.). Modern Women: Women at The Museum of Modern Art. New York, MoMA, 2010; RENDELL, PENNER & BORDEN (ed.). Gender space architecture: an interdisciplinary introduction. Londres, Routledge, 2000.
Para falar de exemplos mais recentes de disputa por autoria, podemos citar as arquitetas e designers eclipsadas pelos grandes mestres da Arquitetura como Charllotte Perriand, Lilly Reich, Aino Aalto, Marion Mahony Griffin, Denise Scott Brown, entre outras cujos trabalhos atualmente ganharam um maior reconhecimento e cuja (não-)história é problematizada por pesquisas acadêmicas17. Os exemplos referem-se a mulheres americanas ou européias, mas sem dúvida devem existir casos mais próximos. A própria Carmen Portinho, primeira engenheira formada no Brasil e feminista ligada ao movimento sufragista no Rio de Janeiro tem pouquíssimos estudos dedicados a sua atuação, geralmente lembrada à sombra do arquiteto moderno Affonso Eduardo Reidy (NOBRE, 1999). Conforme Swain (2008) retoma as descrições dos primeiros encontros com populações indígenas que viviam aqui, fica nítido como as relações de gênero nessas culturas eram heterogêneas e muito distintas das nossas. Ao ler as impressões de viajantes europeus a respeito dos povos indígenas, aponta para o modo como suas visões interpretavam a realidade a partir do que a autora chama de “condições de imaginação” ou aos olhos da cultura da época, com os conceitos e preconceitos que compunham seus arcabouços interpretativos. “Gandavo e outros cronistas mostram uma sociedade indígena complexa, em tons que variam do espanto à repulsa ou ao deslumbramento, e buscam captar sua ordem a partir de seus próprios parâmetros. São eles, entretanto, pródigos em detalhes sobre a produção, a vida quotidiana, as festas, as artes, as predominâncias, as divisões de trabalho e as condições de sobrevivência.(...) Gandavo explica a liberdade no relacionamento entre mulheres e homens e sobretudo comenta, com espanto, a possibilidade entre os indígenas de escolher seu sexo social, independente do biológico” (SWAIN, 2008: 41)
A sagacidade de seu trabalho está justamente em contrapor os textos interpretados e suas interpretações, que lemos e tomamos muitas vezes como verdades sobre as culturas indígenas e desmistifica a velha história do “sempre foi assim, o homem domina a mulher”, nas mesmas terras que habitamos hoje, pisamos em culturas soterradas em que não necessariamente os homens e mulheres estavam segregados espacialmente.
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Neuma Aguiar faz um balanço acerca do conceito de patriarcado no pensamento social brasileiro. Em oposição a interpretações que vêm a dissolução do modelo patriarcal com a urbanização da sociedade e o surgimento da família burguesa (Sergio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Oliveira Vianna, Joaquim Nabuco, entre outros), aponta uma corrente que identifica mais continuidades que rupturas com o modo patriarcal rural no cenário urbano. “Porém, entre a desorganização da família estendida e o predomínio da família nuclear encontra-se ampla gama de experiências. A prepotência do pai-de-família vai dando lugar à função econômica de provedor. Saffioti mais recentemente aponta para um grande conjunto de contribuições na literatura feminista internacional que retoma a relação entre capitalismo e patriarcado, quando reafirma sua visão, tal como a defendida por Florestan Fernandes, que existe uma simbiose entre patriarcado, racismo e capitalismo (Saffioti, 1992: 194-195).” (AGUIAR, 2000)
18 Ver Gonzaga, 2011; e Lima, Denise F. A. A política de titularidade residencial feminina no contexto da política pública habitacional. Dissertação de Mestrado em Políticas Públicas e Sociedade – Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza, 2012.
Os processos de industrialização e urbanização resultam, para Saffioti (1992), num aumento das desigualdades sociais entre homens e mulheres. Chama atenção para a ordem da família burguesa: a sobreposição da propriedade privada, o casamento monogâmico e o direito paterno. A estrutura da esfera privada, onde estará confinada a mulher. Apesar de comumente pensarmos na casa como espaço da mulher, o chefe-de-família será o homem na tradição, quadro que agora começa a transformar-se. A luta pela titularidade do imóvel em nome da mulher18, antes proibida, também faz parte dessas mudanças do século XXI. Há um amplo debate sobre o uso do conceito de patriarcalismo tanto internacional quanto nacionalmente. Aguiar (2000) situa Safiotti na escola de Florestan Fernandes, que utiliza a teoria do patriarcado combinada com a de classes sociais para analisar o desenvolvimento do capitalismo no Brasil. Contudo, eles trazem o conceito a partir de um enfoque histórico em que o patriarcado antecede o capitalismo e se transforma em certos aspectos.
19 Ver também Scott, 1993.
Internacionalmente, a polêmica acerca da significação do conceito refere-se mais ao seu uso não historicizado, como sinônimo de relações de poder entre homens e mulheres19.
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Elizabeth Souza-Lobo porém opõe-se ao uso do termo no Brasil argumentando que este pode ser entendido como estrutura universal, não tendo se transformado historicamente e, portanto, imutável. Para compreender as relações entre homens e mulheres como construções dinâmicas aos longo da história, esta autora prefere o uso do conceito de gênero, ao invés de patriarcado. Hartmann (1981 apud AGUIAR, 2000) faz uma leitura do patriarcado em ‘parceria’ com o capitalismo, mas vê nisso uma fragilidade porque haveria uma tendência a sobrevalorizar o aspecto econômico das relações. Aponta então o caráter da dominação masculina pelo trabalho feminino não remunerado exercido no âmbito doméstico que reflete a incorporação da subsistência familiar no salário dos homens, mantendo-o mais elevado que o das mulheres. Já para Silvia Walby (1990), a divisão entre a casa e o trabalho remunerado produzida pelo capitalismo gera uma relação de dependência para as mulheres, assim aponta para uma nova modalidade de patriarcado. Outras autoras, rejeitaram o conceito de gênero em favor do patriarcado. Mas mais recentemente há teorias que parecem ter superado este debate, abarcando os dois conceitos sem conflitos. No Brasil, para Aguiar, em acordo com Safiotti, “Cabe portanto analisar como o patriarcado agrário e escravista se transforma, resultando em novas formas de dominação patriarcal ante a presença de um capitalismo privado, em sua forma econômica clássica, sob a dominância estatal.” (AGUIAR, 2000: 323). E esta leitura feminista, contrariando Holanda, Freyre, bem como Weber, entende que o desenvolvimento do capitalismo intensifica as relações de dominação patriarcais. Para Jeni Vaitsman (1994, apud AGUIAR, 2000), que analisa o contexto brasileiro, a família burguesa é tida como patriarcal uma vez que o pai-provedor se responsabiliza pelo trabalho e a mãe-dona-de-casa cuida das tarefas domésticas, numa cisão das esferas pública e privada. O chefe-de-família é elemento estruturador da família burguesa, que desanda em sua ausência. Uma nova modalidade de patriarcalismo explicaria, portanto, um aspecto das relações de gênero na modernização brasileira: “A concepção de uma família patriarcal burguesa, portanto, permite explicar porque o desenvolvimento capitalista e a industrialização geram iniqüidades de gênero. Transforma-
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ções sociais em ampla escala, incluindo-se nestas o processo de urbanização, têm sido apontadas como responsáveis pela criação de novos conceitos de intimidade e de esfera doméstica. Todavia, a divisão sexual também é recurso de sustentação de hierarquia no contexto privado.” (AGUIAR, 2000: 326)
Nas conversas com as mulheres participantes do movimentos de moradia, em vários casos, foram trazidos novos reconhecimentos do que seria uma família. É curioso notar que as demandas desses movimentos são nomeadas como famílias, mesmo que seja uma pessoa homossexual solteira. Dessa forma, as pessoas que participam ali representadas por este símbolo, percebem que existem outros modos possíveis de se estruturar na casa, rompendo com o modelo da familia nuclear. Em Do Cabaré ao Lar, Margareth Rago apresenta um retrato da gradual transformação que, desde fins do século XIX, através de diversos dispositivos de saber e poder, impôs um novo modelo de unidade familiar e um novo modelo de Mulher. Uma imagem simbólica constitui uma nova representação da esposa-mãe-dona-de-casa, a quem cabe especialmente vigiar sua prole e seu provedor, cuidar da moral da família e servir. Mas aponta que, simultaneamente, sua presença na cidade é solicitada tanto para as trocas da vida social, como para o trabalho, em decorrência do crescimento da indústria e do comércio. “A invasão do cenário urbano pelas mulheres, no entanto, não traduz um abrandamento das exigências morais, como atenta a permanência de antigos tabus como o da virgindade. Ao contrário, quanto mais ela escapa da esfera privada da vida doméstica, tanto mais a sociedade burguesa lança sobre seus ombros o anátema do pecado, o sentimento de culpa diante do abandono do lar, dos filhos carentes, do marido extenuado pelas longas horas de trabalho. (…) Vários procedimentos estratégicos masculinos, acordos tácitos, segredos não confessados tentam impedir sua livre circulação nos espaços públicos ou a assimilação de práticas que o imaginário burguês situou nas fronteiras entre a liberdade e interdição.”(RAGO: 1985: 63)
Olhando para a formação histórica desses modelos, podemos aprender que é possível desfazê-los.
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Mulheres em construção o Mutirão Paulo Freire
Sou mulher Não venha me dizer como se faz um prédio quem é você para me dizer o que é construção? A minha vida do teu lado sempre foi um tédio um pedaço de engano, uma desilusão sou mulher de briga, de fibra, de viga, de raça da lenha da vida eu faço fumaça e sei o que esse mundo quer Tiarajú Pablo D’Andrea
Era uma vez uma mulher que via um futuro grandioso para cada homem que a tocava. Um dia ela se tocou Alice Ruiz
20 O MST Leste 1 abrange os seguintes bairros: São Mateus, Sapopemba, Vila Prudente, Mooca, Aricanduva e Cidade Tiradentes. 21 Essa assessoria tem dois projetos em andamento atualmente no bairro Cidade Tiradentes: José Maria Amaral e Florestan Fernandes.
22 Ver Capítulo 1 desse trabalho. 23 Ver www.usinactah.org.br. 24 O tema da autogestão aparece historicamente nas discussões e experiências do movimento operário europeu no século XIX em luta contra a organização capitalista do trabalho e é formulada teoricamente desde Fourier, Proudhon, Marx e Bakunin, entre outros. Ver Guérin, D. O Anarquismo, da doutrina à ação. Rio de Janeiro: Germinal, 1968; e Thompson, E. P. A formação da classe operária na Inglaterra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
O Movimento Sem-Terra Leste 120 começa a se formar nos anos de 1980 e será um dos afiliados à União de Movimentos por Moradia, tendo atuado no processo de elaboração do programa FUNAPS Comunitário (Percassi, 2008: 35). É associado também à CMP e à UNMP a nível nacional, e segundo Rose, ex-coordenadora da Associação Paulo Freire e atual coordenadora de um projeto social do MST Leste 1, é composto por dezessete grupos de base da região. Os principais apoiadores são as comunidades da Igreja Católica da Região Episcopal Belém e entidades populares dessa área e tem parceria com a organização não governamental Habitat para a Humanidade, bem como com as assessorias técnicas, como a Grão, a Integra, a Usina e a Ambiente Arquitetura21. Em 1990, nesse mesmo contexto, alguns professores que haviam participado do LabHab da Belas Artes e da UNICAMP22, que tinham atuação junto aos movimentos de moradia desde os anos de 1980, fundaram a Usina - Centro de Trabalhos para o Ambiente Habitado. A iniciativa de formar essa sociedade sem fins lucrativos veio da vontade de viabilizar uma atuação profissional junto a esses movimentos, sem que tivessem de estabelecer vínculos institucionais ou com o governo, com o intuito de resguardar a autonomia no trabalho. Autodenomina-se “coletivo de arquitetura autogestionário” e visa à “construção de experiências territoriais de outra ordem”23, isto é, em que a população mobilizada possa apropriar-se do processo construtivo do território e em que os investimentos públicos não sirvam à especulação imobiliária, mas sim à concretização de uma cidade organizada de modo mais igualitário24. Seus
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integrantes, atuais e já afastados, são formados em Arquitetura e Urbanismo majoritariamente, mas também em Direito, Ciências Sociais, Serviço Social, Artes Plástica, entre outras áreas, alinhando-se a partir de uma visão crítica ao capitalismo e ao neoliberalismo. O coletivo da Usina, desde sua formação, há mais de 20 anos, teve uma grande rotatividade e diversos colaboradores. Este fato deve-se principalmente às dificuldades de uma prática profissional aliada à militância política (BUSKO, 2012). A alternância entre governos de tendências antagônicas a nível municipal especialmente, fez com que se prolongassem ou interrompessem projetos em curso, atrasando liberações de verba anteriormente aprovadas. Os trâmites burocráticos em todas as gestões pós 1982 foram problemáticos em relação aos projetos de mutirão. De certa forma, o desafio de sustentar-se como entidade profissional esbarrou e continua a esbarrar, muitas vezes, nos combates inerentes ao próprio projeto constitutivo da associação, que visa a uma atuação anti-capitalista, por assim dizer, contrariando a lógica do sistema capitalista em que vivemos. Como seria possível, então, abrir espaços diferenciados que escapassem dessa lógica? No limite, acredito que não seja possível e eles também reconhecem esse impasse, porém, há uma busca por uma transformação social mais profunda, que leva a investir no trabalho coletivo, “politizado” e formador construído no mutirão. Maria Rosa Lombardi (2011), em pesquisa realizada sobre as relações de trabalho e de gênero na Usina, aponta a identificação pelos próprios associados de dois momentos geracionais, que teriam marcado uma reestruturação interna, implicando também em mudanças referentes à proporção de homens e mulheres na esferas decisórias. Segundo ela, “Os entrevistados consideram que, até 2010, passaram pela USINA duas gerações e duas gestões. A primeira, capitaneada pelos três arquitetos do sexo masculino que fundaram a USINA, estendeu-se de 1990 até 2004, durante a qual a coordenação do negócio, incluindo a escolha de movimentos parceiros e a orientação política, foi exercida diretamente pelos fundadores. Em 2004, o último fundador afastou-se do cotidiano, a coordenação foi assumida por jovens arquitetos e arquitetas que se integraram à USINA no tempo de estudante, como estagiários e, depois, se tornaram associados. Atualmente, há coordenadores de
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ambos os sexos e a coordenação geral está a cargo de um arquiteto.” (LOMBARDI, 2008: 30)
Essa reestruturação buscou uma maior coerência com os princípios cooperativistas. Seus principais dados diferenciais foram o estabelecimento de regras mais claras a respeito do horário de trabalho: ficou acordado um máximo de 20h semanais de dedicação, para que fosse possível que cada um se dedicasse a outra atividade remunerada, a não existência de contratados, somente associados – a limpeza tendo sido a única exceção a essa regra –, a “diluição autoral, os projetos da Usina são compartilhados com os movimentos” (LOMBARDI, 2008: 39), nas palavras do coordenador geral atual, e também um fator atribuído como condicionante da autogestão, que é a realização de projetos que contem exclusivamente com recursos públicos.
25 Em texto elaborado por integrantes da Usina e da Associação Paulo Freire (Tone et al, 2011), outros profissionais são citados como colaboradores ao longo do andamento do projeto do mutirão: João Marcos Lopes, Wagner Germano, Joana Barros, Edson Miagusko, Guilherme Petrella, Renata Moreira, Tais Tsukumo, Eder Camargo, Eduardo Costa, Débora Costa, Melina Rangel, Tiaraju Pablo, Paula Constante, Irani Braga Ramos, Flavio Ramos, Mario Braga, José Prado Neto. Nas atas consta também o nome da técnica social Maria José Oliveira.
O projeto do Mutirão Paulo Freire teve início em 1999 e se encerrou somente em 2010. Os primeiros envolvidos nesse projeto fizeram parte da primeira geração da Usina e os arquitetos Pedro Arantes (coordenador geral), Beatriz Tone, Heloisa Rezende e a cientista social Jade Percassi, que acompanharam seu desenvolvimento na maior parte do tempo, tiveram importante papel nessa fase de transformação, compondo a segunda geração25. Os três arquitetos mencionados entraram na Usina ainda durante a graduação e se formaram entre 2000 e 2002. As obras do mutirão começaram no fim do 2002. Em 2004, o último dos três fundadores, que estava ainda no dia a dia da assessoria, se afasta. Este pode ser considerado um momento de reafirmação dos valores políticos, sociais e éticos que agregam o coletivo, especialmente em relação à ideia de autogestão. A Associação de Construção Comunitária Paulo Freire, ligada ao MST Leste 1, se formou portanto no penúltimo ano da gestão de Celso Pitta (PP), e assinou o primeiro contrato para a construção de habitação social por mutirão em autogestão com a Prefeitura de São Paulo, desde a gestão petista de Erundina, com recursos da COHAB. O terreno conseguido, contudo, situava-se numa enorme área reservada a outros projetos de habitação social chamada de Conjunto Inácio Monteiro, na extrema periferia da cidade. Havia um projeto já pronto nos padrões do programa Cingapura, prédios em “H” com unidades de 43 m, que foi rejeitado pelo grupo.
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imagem 1 Terreno do mutirão Paulo Freire. Acervo usina ctah
26 Evaniza Rodrigues é militante de longa data nos movimentos por moradia, foi coordenadora da União Nacional por Moradia Popular e, atualmente, é consultora da presidência da Caixa Econômica Federal. 27 Segundo informação contida no livro de atas do Mutirão Paulo Freire no acervo documental da Usina.
No primeiro encontro com todos, Evaniza26 apresentou aos mutirantes presentes a Usina como responsável pela assessoria técnica, com quem acabariam convivendo por 11 anos, a partir dali até a conclusão das obras. Valdir, coordenador da Leste 1 no período, explicava que a assessoria poderia trazer o desenho dos edifícios pronto, mas que essa não era a proposta do movimento. Eles exigiam no mínimo seis meses de participação para que todos aprendessem o funcionamento do movimento e da obra em mutirão27. Esse alinhamento de visões permitiu o trabalho conjunto. Mesmo sendo um terreno distante do Centro da cidade, numa área muito escassa em infraestrutura e equipamentos públicos de qualquer tipo, a liberação do terreno demorou a vir e, em 2000, os futuros moradores junto à assessoria decidiram ocupar aquele lugar a eles destinado. Construíram juntos e com recursos próprios um barracão para abrigar as reuniões, e para que permanecesse alguém para fazer a vigília do terreno. Em 1999, nas primeiras reuniões entre associação e assessoria, já começavam então a discutir o projeto das habitações. De onde vieram as pessoas? Como viviam? Que importância tinha cada cômodo na casa? Aos poucos se aproximavam dos desejos de cada um. O processo de discussão do projeto ocupa um espaço de enorme importância na metodologia da Usina a partir de então, por entenderem-no politicamente como “um aspecto fundamental na desalienação do trabalho e no alargamento da luta popular para exercer a capacidade de imaginar seus espaços de vida, suas tecnologias e territórios.”(TONE et al., 2011: 12) Podemos também relacionar essa escolha de coletivização autoral como uma postura político-ideológica que rejeita o modelo do gênio da tradição artística moderna, sempre associado ao masculino. Se se pode afirmar que se trata aqui de uma postura crítica do universo patriarcal, vale notar que Lombardi problematiza a carência de maior sensibilização às questões da hierarquia nas relações
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de gênero dentro do ambiente de trabalho da assessoria: “A autoridade que emana da opção coletiva de exercer uma arquitetura politicamente militante seria suficientemente forte e envolvente para amortecer, debilitar outros níveis de conscientização e questionamentos possíveis, como, por exemplo, as configurações das relações de gênero no cotidiano de trabalho. Além do mais, como bem coloca Sílvia, ‘entre os colegas é muito mais velado. No meio acadêmico é feio ser machista’”. (Lombardi, 2008: 46)
Na pesquisa de Lombardi, a autora nota que, muitas vezes, as questões burocráticas ficavam a cargo das mulheres, que acabavam cuidando da retaguarda, dos bastidores. Os associados também apontaram a questão da desigualdade nas relações entre os gêneros nos ambientes privilegiadamente masculinos, tanto da arquitetura, como da construção civil. Neste último, percebe-se mais evidentemente o machismo impregnado na nossa cultura. Já no meio intelectual e acadêmico, ele pode ser mais velado. O coordenador geral da segunda geração concordou que há distinção entre homens e mulheres em relação às tarefas realizadas na produção de arquitetura, o que estaria na base de certos comportamentos de alguns arquitetos que passaram pela Usina. Da mesma forma, há uma formação impregnada com um pensamento sexista, que afeta a maioria dos arquitetos e arquitetas, mas a partir da percepção e discussão dessas questões, aos poucos, dada situação se transforma. O simples fato de os arquitetos estarem refletindo sobre a divisão sexual do trabalho, os critérios da remuneração, enfim, a organização do trabalho diariamente já aponta uma mudança crítica de postura. Em paralelo, a inserção do debate sobre os espaços da casa nos processos participativos conduzidos provoca uma discussão de gênero, espaço rico para refletir coletivamente sobre os sentidos atribuídos a esses espaços e suas representações no imaginário comum. Em texto sobre a experiência dos integrantes da Usina na Comuna Urbana Dom Helder Câmara (MST) em Jandira (SP), Hirao, Lazarini e Arantes afirmam, “Na assembléia animada em que cada um expõe o que foi debatido em seu grupo, é comum que surjam vaias e aplausos, sobretudo em afirmações polêmicas que evidenciam as diferenças de gênero, o peso do trabalho doméstico
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e da opressão sofrida pela mulher. Os homens não têm vergonha, por exemplo, de afirmar que sobre a cozinha e a lavanderia ‘é a mulherada que tem que opinar’, pois eles não teriam nada a dizer sobre isso – o que é seguido por uma vaia indignada das mulheres. Algumas delas, nas semanas seguintes vêm comentar que deixaram os maridos lavando roupa e cozinhando para verem como deve ser a casa nova.” (HIRAO, LAZARINI e ARANTES, 2010: 9)
A meu ver, mesmo que não tenha se mostrado efetiva a sensibilização dos profissionais às questões das desigualdades de gênero, podemos perceber essa redefinição de prioridades da Usina como uma renegociação dos valores masculinos em favor dos femininos. Pode-se afirmar que há um reconhecimento maior dos trabalhos antes desempenhados invisivelmente pelas mulheres na maioria das vezes, como a administração, tarefas burocráticas e, especialmente, a questão do compartilhamento da autoria. No projeto participativo, por um lado, há a intenção de que todos envolvidos no trabalho saibam o que estão fazendo. Por outro, há uma escuta e estímulo dos espaços imaginados, mesmo que haja limites para aquela obra especificamente; constitui-se um momento particular na vida dos futuros moradores, de discussão coletiva sobre os espaços a serem construídos e passam a lidar com as dificuldades da construção sempre com o apoio dos arquitetos, que buscaram soluções elaboradas para realizar conciliar o desejo daquele grupo. Os mutirantes também puderam aprender a técnica e chegar a um projeto entre o ideal e o possível, com qualidade elevada em relação ao que se considera habitação social, com um ganho no sentido da valorização própria pelos mesmos. E, sem dúvida, o investimento que a assessoria faz nesse processo não se limita ao aspecto técnico do trabalho do arquiteto, considerando-se uma afinidade ideológica no envolvimento com o movimento para iniciar essa parceria. O aprendizado do processo é, portanto, político e a inventividade do projeto também serve para desmistificar a inacessibilidade da técnica. Os entraves são de outra natureza: social, política, principalmente, e, em certa medida, econômica. A equipe da assessoria busca transpor, em certa medida, as barreiras do acesso às tecnologias. O uso da estrutura metálica no Mutirão Paulo Freire teve de ser esmiuçadamente justificado para a COHAB. Trata-se de uma tecnologia construtiva não muito usada em edifícios residenciais e que se apresenta como
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ousadia por parte dos arquitetos, frente a uma tradição elitista de projetos de habitação social. Esses projetos só são aceitos socialmente apesar da péssima qualidade porque há um déficit habitacional enorme no país. Deste modo, fazer um projeto com soluções mais diferenciadas em prol de uma qualidade maior para uma população carente se constitui como um desafio. Significa mostrar que é possível fazer algo com considerável qualidade espacial e técnica mesmo com poucos recursos para a população. O nome do mutirão é dado pelo movimento e a assessoria se identifica com a referência. Um dos inspiradores de sua ação é o arquiteto Rodrigo Lefèvre, que já indicava a analogia entre a pedagogia freireana e o processo de aprendizado no trabalho coletivo e democrático no canteiro, como afirma o coletivo Usina na descrição do projeto,
28 Texto de apresentação do projeto retirado do site da assessoria www.usinactah.org.br, acessado em 11/05/2012.
“Tal como na pedagogia de Paulo Freire - em que a alfabetização é apenas o motivo para a tomada de consciência da realidade - a construção das habitações não é o fim em si, mas o ponto de partida para um processo pedagógico de libertação.” (Usina CTAH28)
Como o projeto será usado e vivido pelos próprios mutirantes, a discussão sobre o mesmo ocorre num ambiente em que prevalece o interesse na qualidade de vida que haverá ali, e não no lucro que poderia ser obtido. A assessoria, por sua vez, tem a intenção de fazer uma habitação digna pois deseja contrapor-se ao modelo executado pelo Estado, e que possa contribuir para a crítica da péssima qualidade das habitações, supostamente tida como única possibilidade exeqüível com baixos orçamentos. Nas palavras da assessoria e da coordenação do movimento: “o momento de projeto é o de desmercantilização do processo, pois instaura ali o fundamento do uso e da qualidade, ao invés da troca e da quantidade” (Tone et al, 2008: 12). Sabemos que o mercado informal foge de qualquer controle; assim, se alguém quiser vender o apartamento, como já ocorreu em dois anos de ocupação, a negociação será independente dos condicionantes formais, mas acredito que a qualidade da moradia e o vínculo com a história da construção influencia nessa decisão. Seria preciso um estudo pós-ocupação futuro para avaliar essa questão. O que posso afirmar é somente
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em relação à qualidade a que se chegou em comparação com os apartamentos desvalorizados pela falta de cuidado feitos para a população de baixa renda. Isso é um ganho importante porque a pessoa vê que também merece coisas boas e cria-se um parâmetro de exigência. “Eu aprendi muito. Às vezes a gente passa em frente de uma obra, vê a pessoa ali trabalhando, se esforçando, mas não está vivendo e sentindo aquilo. Depois um dia você entra num prédio pronto, sem ter sentido as coisas acontecerem. Quando eu entrei aqui, era só um terreno. A gente fez tudo, desde a fundação, os prédios foram levantando, hoje eu olho e acho isso tudo muito bonito.” (Dora, entrevista concedida a Jade Percassi. PERCASSI, 2008: 173)
Outro ponto vai no sentido da construção do lugar e da relação com o território. As 100 famílias que construíram o Conjunto Paulo Freire – das quais aproximadamente 50 estiveram desde o começo – quase todas migrantes nordestinas, que não se identificam com a nova cidade agressiva às mesmas, puderam construir laços e vínculos com o lugar que também se transformou muito durante esses onze anos de luta. A seguir, destaco uma questão da qual não podemos nos furtar: a localização desfavorecida desse conjunto habitacional na cidade.
Cidade Tiradentes, um bairro-cidade “Agora que a gente aceita que é Cidade Tiradentes aqui.” (Cris, entrevista concedida à autora em 20/10/2012)
Para chegar ao Mutirão Paulo Freire, saindo da estação de metrô Corinthians-Itaquera, toma-se o micro-ônibus sentido Barro Branco até o ponto na esquina da Rua Inácio Monteiro com a Av Dr. Guilherme de Abreu Sodré. Por essa avenida, caminha-se por uma das bordas do Conjunto Habitacional Prestes Maia. O conjunto de casas foi inaugurado em 1975, quando as ruas ainda nem asfalto tinham. Este foi o primeiro de muitos conjuntos que formaram a Cidade Tiradentes. Na década seguinte, foram entregues mais de 40 mil unidades habitacionais pela COHAB somente nesse distrito, o que representa quase um terço da produção dessa Companhia
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em toda sua história29. Atualmente, a CDHU tem produzido novos conjuntos habitacionais na região, especificamente nas bordas o distrito (PETRELLA, 2009).
29 Entre 1980-89 foram entregues 42.379 unidades em 14 conjuntos habitacionais de diversas tipologias pela COHAB na Cidade Tiradentes, em uma área total de 1166,8 hectares (OTERO, 2009: 159). A nível de comparação, o distrito tem 1500 hectares em sua totalidade, ocupando aproximadamente 1% do município de São Paulo (Sempla/DIPRO).
O território antes composto da enorme gleba da Fazenda Santa Etelvina, além de chácaras menores, áreas de mata nativa e olarias artesanais, passou por uma transformação radical, tornando-se o maior complexo de conjuntos habitacionais da América Latina. Situado a cerca de 35km do centro da cidade, foi planejado nos moldes de uma cidade-dormitório, carecendo de empregos e equipamentos públicos no local, bem como de transporte. As poucos, foram chegando os serviços básicos e alguns equipamentos para atender a população que, em grande parte, veio de bairros mais centrais, pelo sonho de ter a sua casa própria e não ter mais de se preocupar com a questão da moradia a cada mês.
30 Município em Dados. Fonte: IBGE. Elaboração: Sempla/DIPRO.
Dessa forma, houve uma explosão demográfica na área. Se, em 1980, a população do distrito Cidade Tiradentes era de pouco mais de 8 mil habitantes, em 2000 esse número passava de 190 mil (Sempla/DIPRO). Em 2010, a contagem já é de 211.501 habitantes (Censo, 2010). No movimento oposto dos bairros centrais, a densidade deste distrito cresceu assombrosamente, passando de 6 habitantes por hectare para 127, entre os anos de 1980 e 2000; enquanto os valores médios do município de São Paulo marcam uma variação pequena, de 56 para 69 (pop/ha) nos respectivos anos30. Esse planejamento irresponsável, sem prever toda a infraestrutura necessária para que se pudesse viver ali com qualidade, foi a forma mais barata de se fazer um bairro que abrigasse as populações mais pobres da cidade, abrindo espaço para obras públicas e empreendimentos imobiliários na áreas urbanizadas e distanciando-a da população mais rica. Podemos comparar esse caso com a o bairro Cidade de Deus, no Rio de Janeiro. É muito oneroso criar infra-estrutura num território quase rural, isso foi (e ainda vem) sendo feito muito aos poucos, com muita reivindicação dos moradores que, desde que chegaram ali, organizam-se para que aqueles bairros virem cidade de fato. “Se de um lado, em termos de macroacessibilidade metropolitana, os moradores enfrentam o problema das
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Taxa de Crescimento Populacional
Taxa de Crescimento Populacional
1980/1991
1991/2000
Distritos do Município de São Paulo
Distritos do Município de São Paulo
PERUS
PERUS TREMEMBÉ
ANHANGUERA BRASILÂNDIA
JARAGUÁ
VILA MEDEIROS LIMÃO
LAPA
ALTO DE PINHEIROS
JAGUARÉ
BUTANTÃ
RAPOSO TAVARES
MORUMBI
VILA SÔNIA
VILA GUILHERME
REPÚBLICA SÉ CONSOLAÇÃO
PINHEIROS
VILA MARIANA ITAIM BIBI
MOEMA
VILA MATILDE
IPIRANGA
VILA FORMOSA
ÁGUA RASA
CIDADE TIRADENTES SÃO MATEUS
SAÚDE
ALTO DE PINHEIROS
SACOMÃ
RAPOSO TAVARES
JARDIM SÃO LUIS
CAMPO GRANDE
REPÚBLICA SÉ CONSOLAÇÃO
PINHEIROS
MOEMA
VILA MATILDE
ARTUR ALVIM
CARRÃO MOÓCA
IPIRANGA
SÃO MIGUEL
VILA FORMOSA
ÁGUA RASA
GUAIANASES
CIDADE LÍDER ARICANDUVA
JOSÉ BONIFÁCIO PARQUE DO CARMO CIDADE TIRADENTES
SÃO LUCAS
VILA PRUDENTE
SÃO MATEUS SAÚDE
ITAIM PAULISTA
LAJEADO
ITAQUERA
IGUATEMI
SAPOPEMBA CAMPO BELO
VILA CURUÇÁ
PENHA
TATUAPÉ
BRÁS
BELA CAMBUCI JARDIM VISTA LIBERDADE PAULISTA VILA MARIANA
ITAIM BIBI
PONTE RASA
VILA MARIA
PARI BELÉM
JARDIM HELENA
VILA JACUÍ
SACOMÃ
SÃO RAFAEL
CURSINO
SANTO AMARO JABAQUARA
CAPÃO REDONDO
CIDADE ADEMAR
JARDIM SÃO LUIS
SOCORRO
CAMPO GRANDE
CIDADE ADEMAR
SOCORRO
PEDREIRA
PEDREIRA
CIDADE DUTRA
JARDIM ÂNGELA
VILA GUILHERME
ERMELINO MATARAZZO
CANGAÍBA
SANTANA
BOM RETIRO SANTA CECÍLIA
PERDIZES
JABAQUARA CAPÃO REDONDO
CASA VERDE
BARRA FUNDA
VILA ANDRADE
CAMPO LIMPO
SANTO AMARO
MORUMBI
VILA SÔNIA
IGUATEMI
SÃO RAFAEL
CURSINO
BUTANTÃ
RIO PEQUENO
PARQUE DO CARMO
SÃO LUCAS
VILA PRUDENTE
LAPA
JAGUARÉ JOSÉ BONIFÁCIO
ARICANDUVA
VILA MEDEIROS
VILA LEOPOLDINA
LAJEADO
TUCURUVI
FREGUESIA DO Ó
JAGUARA
GUAIANASES
CIDADE LÍDER
SAPOPEMBA CAMPO BELO
ITAIM PAULISTA
JAÇANÃ MANDAQUI
PIRITUBA
LIMÃO VILA CURUÇÁ
ITAQUERA
ARTUR ALVIM
CARRÃO MOÓCA
SÃO MIGUEL
SÃO DOMINGOS
PENHA
TATUAPÉ
BRÁS
BELA CAMBUCI JARDIM VISTA LIBERDADE PAULISTA
VILA JACUÍ
PONTE RASA
VILA MARIA
PARI BELÉM
JARDIM HELENA
ERMELINO MATARAZZO
CANGAÍBA
SANTANA
BOM RETIRO SANTA CECÍLIA
PERDIZES
VILA ANDRADE
CAMPO LIMPO
CASA VERDE
BARRA FUNDA
VILA LEOPOLDINA
RIO PEQUENO
TUCURUVI
FREGUESIA DO Ó
JAGUARA
CACHOEIRINHA
JAÇANÃ MANDAQUI
PIRITUBA
BRASILÂNDIA
JARAGUÁ CACHOEIRINHA
SÃO DOMINGOS
TREMEMBÉ
ANHANGUERA
CIDADE DUTRA
JARDIM ÂNGELA
GRAJAÚ
GRAJAÚ
Distrito Subprefeitura
PARELHEIROS
Distrito Subprefeitura
PARELHEIROS
Taxa Anual de Crescimento (%)
Taxa Anual de Crescimento (%)
De -3.,5 a 0,00 (40 distritos) De 0,01 a 2,00 (23 distritos) De 2,01 a 5,00 (26 distritos) De 5,01 a 13,38 (07 distritos)
MARSILAC
0
6
12 Quilômetros
-3,95 a 0,00 (53 distritos) 0,01 a 2,00 (22 distritos) 2,01 a 5,00 (14 distritos) 18
Fonte: IBGE - Censos Demográficos, 1980/1991; Secretaria Municipal de Planejamento – Sempla/ Depto. de Estatística e Produção de Informação – Dipro.
imagens 2 e 3 Mapas do município de São Paulo: crescimento populacional (198090; 1991-2000. Sempla/Dipro
5,01 a 13,38 (07 distritos)
MARSILAC
0
6
12 Quilômetros
18
Fonte: IBGE - Censos Demográficos, 1991/2000; Secretaria Municipal de Planejamento – Sempla/ Depto. de Estatística e Produção de Informação – Dipro.
grandes distâncias e do isolamento geográfico, quanto à dinâmica da microacessibilidade interna ao distrito são evidentes dificuldades semelhantes, devido à implantação dos distintos conjuntos como unidades isoladas e desconexas entre si, separadas por grandes vazios sem nenhuma urbanidade. Esses fatos tornam-se especialmente relevantes num contexto como o de Cidade Tiradentes que apresentava, segundo a Pesquisa Origem Destino 1997, a maior proporção de viagens a pé em São Paulo, representando 55% do total de viagens dos moradores.” (OTERO, 2009: 159)
No mapa (imagem 5) elaborado pela Usina para o Plano de Ação Habitacional e Urbano de Cidade Tiradentes – Bairro Legal (Apud PETRELLA, 2009: 141), podemos perceber claramente como as habitações foram construídas de modo esparso, numa lógica perversa de desenvolvimento que estimula a ocupação dos vazios entre as áreas urbanizadas e valoriza essas áreas por já ter algum grau de urbanidade no entorno. Informalmente também se foram ocupando as lacunas deixadas entre os empreendimentos da COHAB. A tipologia predominante na região é de edifícios laminares baixos, de quatro pavimentos, representando 70,2% das unidades produzidas pela Companhia, distribuídas em catorze
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conjuntos que em muitos casos nomeiam os novos bairros. Há ainda o padrão das casas-embrião (24%) e lotes urbanizados (5,8%) (OTERO, 2009: 158).
imagem 4 Distribuição de empregos no município de São Paulo. Município em dados - Sempla/Dipro.
31 “Moro na Tiradentes”, 54’ (vídeo), 2007. Dirigido por Henri Gervaiseau e Claudia Mesquita. O documentário foi realizado com apoio da FAPESP em parte e através do Centro de Estudos da Metrópole (CEM), elaborado a partir de uma pesquisa etnográfica sobre o bairro feita por Tiaraju P. D’Andrea. Claudia Mesquita dirigiu também o documentário “5 mulheres de Paraisópolis”, 2005, que retrata a vida nessa enorme favela paulistana por uma perspectiva feminina e aponta para a problemática da feminização da pobreza, questão que também aparece em parte no filme que dirigiu com Gervaiseau.
“Embora houvesse uma organização institucional, dotação orçamentária e recursos financeiros fixos para essa produção, formando as condições para a sua política de provisão de habitação, a forma de sua implantação não seguiu um planejamento territorial. Os Conjuntos em Cidade Tiradentes são realizados numa sucessão desordenada, tanto no tempo quanto no espaço, produzindo um espaço fragmentado e descontínuo, decorrente do processo irregular de aquisição de terras pelo poder público. Os impactos ambientais são altíssimos. Tanto no que diz respeito às levas de trabalhadores que, do dia para a noite, passam a ocupar esse espaço homogêneo, quanto à sua forma e localização de produção, que contribuiu para danos ecológicos e territoriais de grandes proporções.” (PETRELLA, 2009: 139)
Como apontou Petrella, há um forte impacto com a ocupação de um contingente enorme que subitamente compõe um novo território. E podemos pensar sobre esse impacto tanto no ambiente com em relação às pessoas. As relações entre vizinhos, entre cada um e sua nova casa, com o bairro. Todos esse processos em andamento são recentes e frágeis, demandando tempo para que se consolidem. A problemática sempre presente, ao se discutir o momento pós-ocupação em habitações sociais, sobre a evasão da população, além de seu caráter econômico, pode ser pensada por esse viés das relações de pertencimento. Henri Arraes Gervaiseau dirigiu, ao longo de seis anos de filmagens, o documentário “Entretempos” (98’, cor, 2001), que retrata os dilemas do processo de construção do Mutirão Paulo Freire, recentemente exibido na 36ª Mostra Internacional de Cinema. Antes desse projeto, realizou outro filme sobre o distrito em que se insere o mutirão. Em entrevistas sobre o documentário Moro na Tiradentes31, Gervaiseau comenta sobre a imagem que é construída sobre o lugar e que é abordada no filme, conforme os moradores apontam os preconceitos os que cercam:
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Renda familiar em salários mínimos na Cidade Tiradentes até 2 36% de 2 a 3 29% de 3 a 5 21% de 5 a 10 8% de 10 a 20 1% de 20 a 50 1% Mais de 50 0% tabela 1 fonte: site da Subprefeitura Cidade Tiradentes.
Neste contexto, o bairro de Cidade Tiradentes configura, como bem salientou Gilberto Stam, ao mesmo tempo uma exceção e um enigma. Exceção porque é um bairro quase que totalmente planejado, no inîcio, pelo poder público; e enigma porque é uma das áreas menos conhecidas de São Paulo, apesar do estigma que, erroneamente, a caracteriza como uma das mais violentas da periferia. (GERVAISEAU, 2009)
Os mutirantes da Associação de Construção Comunitária Paulo Freire também tiveram de lidar com esse estigma e muitas famílias que participavam do movimento não quiseram ir morar ali, como relatam alguns moradores na pesquisa de Jade Percassi (2008). Na fala citada no começo desse texto, Cris aponta para uma face do preconceito sofrido em relação ao seu novo endereço. Ela e seu marido foram caseiros do
imagem 5 Mapa expansão da mancha urbana: distrito de Cidade Tiradentes. Elaboração Usina CTAH/ Fonte: COHAB - HABI - RESOLO. Retirado de Petrella, 2009.
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terreno antes mesmo de começar a obra. Desde 1999, o movimento aguardava a liberação do terreno por parte da Prefeitura, com quem haviam assinado convênio. Em 2000, já tinham feito as primeiras discussões sobre o projeto e se cansaram de esperar; ocuparam o espaço e construíram uma edificação de madeira com verba dos próprios mutirantes. As assembléias passaram a ocorrer ali e decidiram que seria importante que alguém habitasse o local para proteger e demarcar o local. O Conjunto Inácio Monteiro delimita uma enorme área que contorna as primeiras casas do Conjunto Prestes Maia e engloba, entre outras edificações habitacionais, o CEU Inácio Monteiro e os terrenos que foram destinados aos mutirões Paulo Freire e Unidos Venceremos. O Conjunto foi feito para relocar famílias removidas por conta de obras públicas. Rose comenta que chama o bairro de Prestes Maia. Não coincidentemente, trata-se da primeira ocupação do bairro nos moldes do que é hoje. Um nome que, pelo tempo, tem algum traço de história e se afirma num território com nomeações recentes e administrativas. Em conversa com Rose e Cris, ambas ex-coordenadoras da Associação de Construção Comunitária Paulo Freire, mutirantes e moradoras, elas comentam sobre suas relações com o entorno. O primeiro ponto que levantam é a questão do preço da terra que se valorizou, e agora estão tendo problemas com a COHAB para firmar o financiamento dos imóveis que construíram. Parece irônico, mas depois de 11 anos de luta, finalmente em seus apartamentos e com muito orgulho disso, elas contam que ainda não são proprietárias de fato e que precisam lutar para atingir essa etapa. Por enquanto todos pagam água e luz, mas as prestações estão sendo negociadas. Rose observa que inicialmente o valor seria de R$500,00 por família; agora falavam de R$5.000,00. Ambas entendem que o que está sendo cobrado nesse reajuste são as melhorias da região, mas, considerando todo o período que construíram o projeto, o valor deveria ser baseado no momento em que começaram as obras. O atraso da construção ainda teve como principal agravante os entraves e calotes dos mesmos órgãos do poder público, que agora exigem uma correção nos valores. “É, nós vamos pagar tudo né, porque quando nós viemos pra cá não tinha nada, mas agora... nós vamos pagar o CEU, vamos pagar a Creche, vamos pagar o asfalto que não tinha...” (Cris, entrevista concedida à autora em 20/10/2012)
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imagem 6 Vista aérea do mutirão Paulo Freire, CEU Inácio Monteiro e Conjunto Prestes Maia. Foto de satélite, Google, 2011.
“O diretor lá, cara de pau, ele ainda vem com a justificativa dele, ‘não, mas agora tem melhorias lá’. Aí quase que nós falamos: mas a melhoria quem é que levou? Nós. Porque quando nós chegamos aqui, sinceramente, (…) teve gente que desistiu, lugar horrível, aqui era uma gleba cheia de mato assim, não tinha CEU, e aí, como estava, nós assinamos convênio como R$500,00 cada um, aí vai morar ali naquele fim de mundo. Só tinha uma padaria e um mercadinho. O mercadinho nem copo descartável tinha. A padaria... nós vínhamos pra cá pra trabalhar, daí queria tomar um café, não tinha. Aí começamos a trazer garrafa térmica nossa com café. Até que o pessoal do bairro começou a conhecer a gente, conversamos, a padaria começou a fazer almoço, a padaria deu um salto...” (Rose, entrevista concedida à autora em 20/10/2012)
Rose se exalta indignada com a postura da COHAB. Em seus argumentos, percebe-se que o desenvolvimento do bairro foi vivido pelos mutirantes ao longo do tempo, e que há alguma relação com o entorno, mas não se pode afirmar que eles motivaram o crescimento, somente que fazem parte deste. Mas o fato de terem assinado anteriormente o convênio com dado valor, isso sim, seria material para se discutir a carência de ética na postura da Companhia, em desconsiderar que a ocupação do terreno começou com o trabalho deles, muito antes da entrega dos apartamentos. Descendo a Rua Barão Barroso do Amazonas, onde se situam os Conjuntos Paulo Freire e Unidos Venceremos, chega-se a uma área residencial informal. Cris observou que a ocupação
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imagem 7 Vista aérea do terreno dos mutirões Paulo Freire e Unidos Venceremos. À direita está o Conjunto Prestes Maia. Foto de satélite, Google, 2001.
32 O Programa de Canalização de Córregos, Implantação de Viário e Recuperação Ambiental e Social de Fundos de Vale (Procav) é um programa iniciado na gestão de Jânio Quadros. Incorpora financiamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e da Prefeitura Municipal de São Paulo. Em relação aos aspectos habitacionais do programa, realiza a transferência de famílias que habitam margens de córregos para novos edifícios. Após a remoção, as áreas de fundo de vale passam por recuperação e adequação ou construção de viário. O projeto habitacionl segue o modelo do projeto Cingapura.
irregular cresceu no entorno e acredita que a população que vendeu seus apartamentos dos prédios vizinhos, realizados pelo Procav32 passou a viver ali. Segundo ela, provavelmente eram pessoas que moravam em favelas em outra áreas mais centrais (ou menos periféricas) e conseguiram vaga naquele lugar. Sendo assim, teriam vendido os apartamentos e reconstituído uma favela no entorno próximo. Como moradora desde o começo do projeto, Cris pôde avaliar as transformações na ocupação. Relembrando o período em que se mudou para o local, descreve uma paisagem pouco ocupada, de difícil acesso e carente de serviços. Contudo, avalia que tinha uma boa relação com os moradores e depois que “começou a crescer essa favela do jeito que cresceu”, mudou a população. Em seu discurso aparecem algumas imagens conflitantes. Fala ainda do preconceito que existe em relação ao mutirão. Ela e Rose contam sobre um incidente no CEU em que a diretora as chamou para uma conversa e insinuou que alguém da Ass. Paulo Freire seria culpado pelo roubo de um sifão que ocorreu ali. Apesar desse caso, havia um acordo com a instituição e os mutirantes desenvolveram várias atividades com as crianças ali durante as obras. Cris continua na militância pela moradia e organiza um grupo de base na Igreja, que fica na avenida paralela à rua do mutirão. Além de seu grupo existem outras associações não vinculadas com o MST Leste 1. Ao perguntar sobre uma possível organização da população que teria se deslocado dos prédios vizinhos para formar a favela próxima, ela destacou a situação atual do movimento no local:
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“Então, a gente montou um grupo de base aqui exatamente por conta disso, a gente montou um grupo aqui na Igreja que a gente que ajuda a coordenar. Exatamente por essa mudança, mas aí não é todo mundo que tem essa... porque eles já tiveram até uma oportunidade se você pensar, eles vieram pros apartamentos [do Procav], mas não... (…) Eles vieram de várias favelas diferentes. O problema é que tiraram eles de lá, de onde eles moravam há muito tempo, e trouxeram eles aqui, bem longe de onde eles estavam.” (Cris, entrevista concedida à autora em 20/10/2012)
O novo grupo de base, segundo Cris, conta mais com a participação de filhos dos mutirantes. Ainda vê um maior número de mulheres participando, mas acredita que os rapazes que viram suas mães e pais lutarem tenham tido uma formação diferente. O envolvimento de cada família é diferente. Sendo assim, o grupo não é muito grande, mas abre espaço para aqueles que buscam essa luta. Como comentou, mesmo sendo poucos mas fazem a diferença. Rose comentou ainda que os apartamentos teriam sido vendidos por valores irrisórios para um imóvel (de mil a três mil reais). E percebe que não se trata somente de pagar a prestação do apartamento, para morar ali a pessoa paga água, luz, condomínio, uma série de pequenos valores somados e com as quais as pessoas, às vezes, têm dificuldade para arcar. Na habitação irregular, não se pagaria a luz nem a água. Cris completa: “É aquele negócio, tem gente que não pode pagar nada pela moradia né?” (Cris, 20/10/2012). Parece haver uma compreensão da limitação dessa população, mas também um sentimento de comodismo por parte da mesma. A situação de todos que aderem ao movimento é precária, mas diferenciam-se por sua garra e coragem de enfrentar aquela situação e transformar sua condição social bem como sua relações com os outros. De certa forma, têm um papel na transformação do bairro, mas o conjunto não propõe uma alteração na configuração do entorno. Apesar de ter um eixo longitudinal, pelo qual um pedestre pode atravessar a quadra, foi consensual a construção de muros e a colocação de arame farpado para garantir a segurança contra invasores. Do mesmo modo, o polêmico projeto de um Banco Comunitário no terreno não teve adesão dos moradores e atualmente nem o Centro Comunitário tem um uso efetivo no cotidiano.
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O mutirão vizinho, Unidos Venceremos, foi realizado com duas assessorias: CAAP na parte do projeto e Grão no acompanhamento das obras; e, por enquanto, não estão separados por muros. Cris teme que possam haver conflitos após a ocupação, reconhecendo a dificuldade por que eles mesmo passaram quando chegaram todas as famílias. Durante o processo eles conheciam quem participava e agora, o resto das famílias vinham junto, nem sempre tendo acompanhado ou feito parte do processo.
Tijolo a tijolo, dinheiro a dinheiro Na gestão da petista Marta Suplicy (2001-2004), houve uma expectativa dos movimentos de que aquela gestão privilegiasse uma política de mutirões como nos tempos em que Erundina fora prefeita. Não foi o que ocorreu; de modo que, em relação às políticas habitacionais, houve investimento em outros programas de reforma e construção mais focados na área central da cidade e de outras naturezas, como de regularização de favelas. Inicia-se então uma longa fase de negociação. Somente no fim do ano de 2002, as obras começaram de fato. Neste caminho árduo, teriam se solidificado os laços entre a equipe da assessoria e os mutirantes da Paulo Freire, na visão destes atores (TONE et al, 2011: 9). A escolha pelo mutirão autogerido busca estabelecer novas relações de produção democratizadas. Sendo assim, todas as decisões referentes ao projeto (o que será feito) e à obra (como será feito) passaram por assembléias. Para organizar a produção no canteiro, formaram-se comissões e elegeram representantes entre os próprios mutirantes para coordenar o trabalho.
33 Informado no site da assessoria www.usinactah.org.br, acessado em 11/05/2012.
Em teoria, o grupo estaria se organizando tendo como “objetivo da construção um objeto que lhes pertencerá: ou seja, será eminentemente valor de uso e não de troca”, nas palavras do coletivo Usina33. Mas não podemos ignorar que haja um valor de troca na unidade habitacional. E também não podemos ignorar as dificuldades de se construir um trabalho coletivo em que todos concordem e compreendam os sentidos daquele esforço, para além do objetivo de conquistar uma moradia. Em suma, a solidariedade e a cooperação não são algo que possa ser forçado ou imposto a alguém, mas que pode e foi muito estimulado durante todo o processo. Feitas essas ressalvas, não há dúvidas de que a apropriação daquele produto terá um diferencial em relação a
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uma unidade adquirida já pronta. Mas resta indagarmos sobre os custos em relação aos ganhos das experiências no mutirão. A primeira discussão com os mutirantes para pensar o projeto evocava as suas “memórias do morar”. Com rara sensibilidade, a equipe da assessoria se propunha a escutar os futuros moradores falarem sobre os sentidos e as memórias individuais de outros lugares antes habitados que puderam inspirar o desenho coletivo de um novo espaço. Em avaliação recente da obra, integrantes da assessoria e da Associação Paulo Freire comentam sobre a incorporação daquelas sugestões: “como de fato ocorreram, com as praças-pomar, as varandas alargadas de circulação formando espaços de encontro entre vizinhos, as salas-cozinhas integradas permitindo mesas grandes e a conversa entre todos” (TONE et al, 2011: 10). É de se notar também a constituição de equipes que cuidaram da segurança do trabalho pelos mutirantes. Uma Comissão Interna de Prevenção de Acidentes (CIPA) e uma de Primeiros-socorros promoveram atividades para ensinar o uso das ferramentas e dos equipamentos de proteção necessários na obra, fizeram um mapa de fadiga e doenças, identificando os riscos à segurança no trabalho, entre outras atividades. Esse cuidado é um dado importante em relação à valorização do trabalhador. Se os próprios trabalhadores definiram como se daria a organização do canteiro, é coerente que cuidem também de sua própria segurança, que é comumente descuidada nos canteiros de empreiteiras dada a desvalorização daquela mão-de-obra. Por parte dos arquitetos e engenheiros, a opção pela estrutura metálica e lajes-painel, permitindo a pré-fabricação e o uso de guinchos, visava reduzir o esforço dos trabalhadores nas etapas construtivas. Essa possibilidade já havia sido realizada em mutirões anteriores que a assessoria trabalhou, como em parceria com a Cooperativa Pró Moradia de Osasco (COPROMO) em 1992, onde chegaram a desenvolver uma fábrica de lajes-painel. Os mutirantes da Associação Paulo Freire elegeram essa alternativa principalmente pela justificativa da redução do tempo da obra e ganhos em relação à redução do trabalho mais pesado. “Havia ainda um sentido simbólico, de utilizarmos uma tecnologia empregada comumente em obras caras, prédios de escritórios, fábricas e shoppings no Brasil, agora para outra finalidade, a moradia do trabalhador, seguindo outra racionalidade. Era uma declaração de que não havia tec-
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nologias inacessíveis aos trabalhadores auto-organizados – e ao trazê-las do campo do capital para nosso canteiro, elas também mudariam de sentido e forma. O objetivo era garantir a qualidade da moradia popular, a ampliação das áreas coletivas, a redução do esforço braçal e a preservação do corpo do trabalhador, o ganho de tempo para que todos pudessem logo sair da sua condição de inquilinos ou de morar de favor.” (TONE et al, 2011: 12)
34 Foram pagos somente 100 mil reais, dos 700 mil que já haviam sido medidos até o final da gestão de Marta Suplicy. Com a eleição do novo administrador, essa dívida foi esquecida de vez. (TONE et al, 2011). Na gestão de Serra, foram reduzidos os projetos realizados pela COHAB, havendo maior investimento na CDHU. Não por acaso, na metade de seu mandato abandona o cargo para se candidatar a governador. 35 Pedro Arantes comenta sobre isso no filme Entretempos, dir. Henri Gervaseau, 2011.
Contudo, como vimos, o atraso das liberações de verba por parte do poder público acabou por anular a vantagem temporal que o uso da estrutura metálica garantiria. A obra foi prevista para durar menos de dois anos, também para que terminasse até o fim da gestão petista, mas levaria oito anos (2002-2010). Entre 2003 e 2004, somente 30% da estrutura foi concluída e houve um calote da Prefeitura que agravou drasticamente a situação34. Houve ainda prejuízos devido à perda de material que se deteriorou ou que foi furtado nos diversos intervalos em que a obra esteve parada. Um problema puxava outro. A falta de recursos impedia que pagassem devidamente os materiais encomendados e tiveram de arcar com multas dos fornecedores, dívidas, demissão dos operários contratados, inviabilidade de pagar o trabalho da assessoria etc. Olhando hoje para todos esses entraves, é surpreendente que se tenha conseguido finalizar essa obra. As pausas e retomadas também foram dificuldades em relação à dinâmica do coletivo, as discussões e construção dos sentidos comuns. Somente 50 famílias permaneceram no projeto desde o começo. Muitos desistiram, alguns faleceram e outros foram excluídas, conforme desrespeitassem o regulamento interno elaborado pelos mutirantes. A espera também significa um prejuízo se considerarmos os aluguéis gastos por todo esse tempo35. Em relação ao período malufista que se opunha declaradamente à política de mutirão, a política tucana foi de uma “guerra burocrática de baixa intensidade”. Tratava-se de fazer com que o próprio movimento se desgastasse pelo cansaço da luta política. A coordenação e a assessoria se esforçavam em explicar o atraso do processo para as famílias. É uma questão política, de compreensão não imediata. Segundo Cris, muitas pessoas no mutirão não tiveram uma compreensão clara dos motivos que retardaram as obras, do desinteresse do governo em apoiar uma iniciativa popular, atribuindo o atraso à
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imagem 8 Obras do mutirão Paulo Freire e visão do bairro ao fundo. Acervo Usina CTAH.
opção do mutirão. “A gente brinca que tem gente que passou pelo mutirão e não percebeu que passou” (Cris, 20/10/2012). Depois de conseguir as casas, muitos se desligaram do movimento. Mas alguns filhos dos moradores compõem o grupo de base que ela coordena. A maioria é tanto do Paulo Freire, como do Unidos Venceremos. “De uma certa forma, todo mundo acredita na luta, mas o problema é o tempo... Porque demorou né gente? Todo mundo concorda que demorou... Um projeto que era pra ser feito em 1 ano e 8 meses, levou quase 12 anos” (Idem). Quando finalmente concluiu-se etapa construtiva da estrutura, em 2006, foi possível dar prosseguimento à obra com os mutirantes. Quanto ao esforço despendido pelos trabalhadores, a carga dos blocos de vedação foi muito inferior aos pesados blocos estruturais autoportantes, o que facilitou a execução da obra. A estrutura dos edifícios, transportada mecanicamente, possibilitava a execução simultânea das lajes e alvenaria, bem como abrigo do sol e da chuva. De qualquer forma, essa opção possibilitou ganhos consideráveis no projeto em si. Os edifícios contam com cinco tipologias diferentes, com área de 56m, que foram fruto de muita discussão, especialmente sobre os usos dos espaços na casa. Em uma das atividades de discussão do projeto, foram levadas plantas das unidades em escala 1:10 em que se pôde experimentar diferentes
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arranjos de mobiliário e das paredes, para se pensar visualmente a disposição destes no espaço. Assim os mutirantes sugeriam modificações no desenho, que eram revistos pelos arquitetos no escritório durante a semana e devolvidos nas assembléias. O sistema construtivo de estrutura independente, permite uma flexibilidade no desenho interno da planta das unidades. Os critérios mais rígidos que foram considerados pelos arquitetos no desenho eram a concentração das áreas molhadas, que economizaria material na obra e a insolação adequada dos cômodos. Para uma demanda das famílias maiores, existem unidades que podem acomodar três dormitórios e as outras tipologias permite até dois. A parede entre a cozinha e a sala pode ser erguida, mas grande parte dos moradores preferiu deixar esses cômodos abertos entre si, o que amplia o espaço e resignifica o espaço da cozinha como área de sociabilidade, bem como a sala.
imagem 9 Estrutura metálica na obra do mutirão Paulo Freire. Autor desconhecido.
Em outro momento, a assessoria levou uma maquete de madeira da versão preliminar do projeto. O modelo chamou a atenção das famílias para a falta de espaços coletivos. Perceberam que os prédios estavam muito próximos entre si e a implantação seria incompatível com o desejo de áreas comuns de convivência e lazer internas ao terreno. A ventilação e a iluminação dos apartamentos também não estavam boas na avaliação dos futuros moradores. Por fim, todos os dormitórios possuem
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imagens 10, 11 e 12 Exemplos de configurações possíveis para uma unidade habitacional do mutirão Paulo Freire. Configurações com 3, 2 ou nenhum dormitórios. Acervo Usina CTAH.
aberturas voltadas para a face leste, oeste ou norte. O uso da estrutura metálica também permitiu a configuração dos apartamentos “pendurados” que resolvia a liberação de espaço para as áreas comuns sem prejudicar o tamanho dos apartamentos demandando uma complexa equação para ocupar o exíguo terreno de 3,3 mil m com topografia acidentada. Um dos edifícios foi eliminado de uma versão preliminar e suas unidades reorganizadas em blocos suspensos, formando pórticos entre os outros blocos, sobre os taludes do terreno. Assim, abriu-se espaço para a praça interna com arquibancada. Atualmente foram instalados ali equipamentos para as crianças pela Prefeitura. Cris aprovou a iniciativa e revelou que o espaço é usado por todos, especialmente pelos mais jovens. Não posso deixar de notar que, por outro lado, a praça agora tem um uso mais determinado, inviabilizando outros tipos de atividades no local. Contudo, o fato de terem aceitado essa oferta, demonstra o entendimento dos moradores de qual seria o melhor uso para o local. Ainda cabe uma reflexão sobre o caráter privado da praça que, mesmo recebendo esse benefício público, permanece restrita ao uso dos moradores. Há uma ambigüidade em relação ao que se considera público e privado que não pôde ser superada no processo político do mutirão. Ainda que a questão da moradia ganhe uma dimensão política, existem limites na problematização das relações privadas constitutivas desse espaço na cidade. No limite, o produto do mutirão não foge à atual lógica capitalista da produção do espaço urbano, em que cada lote se fecha sobre si.
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36 USINA CTAH. Associação Paulo Freire Leste 1: Regulamento de Obras. 2002
Quanto à organização do trabalho, porém, há uma diferença enorme nas relações de produção tradicionais dos canteiros de construção civil. Em 2002, para que se pudesse começar a obra, foi desenvolvido coletivamente pelos próprios trabalhadores um regulamento interno, sistematizado em uma cartilha36. O controle do próprio trabalho apresentou-se como um desafio no processo da autogestão para que não fossem reproduzidas relações hierárquicas e autoritárias. A flexibilidade frente às regras estabelecidas também foi se definindo no dia a dia e pelo coletivo em assembléia. Ao longo desse ano, desenrolou-se o processo de negociação para que fosse aprovada, por fim, a execução da estrutura metálica. A partir daí, decidiram estabelecer o canteiro, tendo como primeiro passo a construção do centro comunitário, em alvenaria.
imagem 13 Planta parcial do Conjunto Paulo Freire, onde se encontram todos os tipos de unidades. Acervo Usina CTAH.
Posteriormente, para realizar a obra de fato foram divididos quinze grupos de mutirantes por afinidades entre si, mas sempre visando manter um equilíbrio na distribuição de homens
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imagem 14 Perspectiva longitudinal do mutirão Paulo Freire. Acervo pessoal, 2012.
e mulheres, idosos e jovens, pessoas com alguma capacidade reduzida etc. Agrupados de cinco em cinco, compunham três grupos maiores que foram identificados com cores ou símbolos (azul, vermelho e amarelo; depois passaram a ser simbolizados por bola, triângulo e estrela). Foi possível um revezamento entre essas equipes de modo que somente duas trabalhavam a cada dia, conseguindo-se uma folga de um fim de semana por mês para cada um. Havia a intenção de que todos passassem pelas diferentes tarefas da obra, possibilitando um aprendizado mais completo e rompendo com a divisão sexual do trabalho. Ao longo da obra, com tarefas mais complexas, foi necessária uma reconfiguração reduzindo o tamanho dos grupos. Os mutirantes atribuíram a suas equipes diversos “nomes de guerra”, que nos revelam um lado mais descontraído do trabalho: Ranca Toco, Fundo de caneca, Engenheiros do Trabalho, Os Mortos, 100 dó, Grupo dos Mortos, Mortos a vingança, Celebridades, Balança mas não Cai, Mesclado pampa, Sem nome, Os poderosos, Esperança, Oculto, Povozinho de Israel e Terceira Idade (TONE et al, 2011: 15). Além da equipe de Primeiros-socorros, formaram-se outros grupos de apoio necessários que cuidariam da cozinha, creche e limpeza. Os dois primeiros eram compostos em sua maioria
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por mulheres, como esperado, e o terceiro tinha a exigência de composição mista determinada pelo regulamento da obra (dois homens e duas mulheres). Todas essas tarefas eram reconhecidas como pontuação.
Mulheres na obra “Quando começou aqui, vieram vários homens. A maioria aqui eram pedreiros. E hoje, eu e a Cris, acompanhando o trabalho dos pedreiros e ajudantes, valorizamos esse trabalho, é pesado. (…) Então eles trabalhavam a semana todinha de pedreiro ou de ajudante e quando chegava o fim de semana eram jogado aqui para fazer exatamente esse serviço. Porque tinha uma mulher que o marido não veio, estava em casa ou jogando bola e ela estava ali [fazendo outro serviço]. O que eles começaram a fazer? Começaram a não vir, foi diminuindo (…) então eles falavam ‘eu não estou vindo porque não acho justo trabalhar a semana todinha exatamente nessa profissão, aí chega o sábado e o domingo e eu tenho que fazer aqui de novo porque os maridos de algumas pessoas estão em casa... Se é para não fazer, a minha mulher vem.’ Aí quando nós começamos a perceber isso, falamos para a assessoria: ‘trabalha todo mundo igual!’” (Rose, entrevista concedida à autora em 20/10/2012)
Rose descreve como os mutirantes definiram que as tarefas femininas e masculinas na obra seriam iguais, a partir de uma reclamação vinda dos homens. É curioso notar que os incomodados nessa história foram eles, que se sentiam mais explorados no trabalho pesado. Se tomarmos outras pesquisas sobre gênero em construções por mutirão autogerido dos anos 1990 (BISSILIAT-GARDET, 1990; SALVADOR 1993), vemos que o problema geralmente vinha do sentido contrário, as mulheres reivindicando uma participação mais igualitária. E mesmo em relação à percepção das arquitetas, estas sentiam-se desrespeitadas no canteiro por serem mulheres, ao contrário dos arquitetos (Lombardi, 2008). Para Rose, o trabalho deveria ser o mesmo para todos e todas. Mas cada um deveria realizar as tarefas conforme suas possibilidades. Não seria preciso carregar o carrinho totalmente cheio de terra, poder-se-ia carregar o quanto se conseguisse. Se houvesse muito peso, este poderia ser dividido. Ela relem-
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bra que na colocação dos painéis da laje, etapa considerada como a mais pesada, enquanto eram necessários dois homens fortes para erguer um painel, seis mulheres se uniam para executar a mesma tarefa. Assim, demonstravam que era possível fazer até a tarefa mais difícil quando se contava com a ajuda mútua.
imagens 15, 16, 17, 18 Na página anterior, mulher ensinando a usar os equipamentos. Acervo Usina CTAH. Acima, visão externa do mutirão Paulo Freire. Acervo pessoal, 2012.
imagem 19 Vista aérea do mutirão Paulo Freire. Foto de satélite, Google, 2011.
“As mulheres que tinham marido, já se sabia quem tinha marido aqui, e que o marido mandava a mulher para que ele não viesse... então foi tomada a decisão: a mulher vai fazer o mesmo trabalho que o homem. Porque não é justo, seu marido ficar em casa. ‘Ah, mas ele não quer vir porque foi jogar bola’. E os homens que estavam vindo, aquele rapaz, ele vinha, a mulher dele vinha quando ele ia trabalhar, mas era sempre ele que vinha. Ele falava ‘é injusto, a gente vir fazer o serviço pesado e o folgadinho está em casa assistindo ao jogo’. Aí nós tomamos a decisão de todo o serviço ser igual para todo mundo. (…) Não existe serviço pesado para o homem e serviço pesado para a mulher.” (Rose, 20/10/2012)
Apesar dessas colocações, a decisão de relativizar a divisão sexual do trabalho ainda enfrentou resistência por parte de alguns mestres-de-obra. O primeiro a ocupar esse cargo foi o Ataíde, que aprendeu o ofício no Mutirão São Francisco na época da Erundina e era casado com uma liderança do MST
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Leste 1. Ele tinha mais paciência com o aprendizado, segundo a arquiteta Beatriz Tone, era como um professor, com mais “jogo de cintura”. Outros mestres de obra contratados posteriormente entravam mais em conflito com as mulheres porque se opunham à divisão igualitária de tarefas. Não aceitavam o trabalho feminino no canteiro. imagens 20 Implantação do Conjunto Paulo Freire. Acervo Usina CTAH.
Esse problema inicial da igualdade de gênero no trabalho, ao mesmo tempo, foi uma forma de resolver a falta dos homens no mutirão, sem estimular que eles viessem trabalhar. No regula-
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imagens 21 e 22 Trabalhadora na obra e arquiteta conversando com trabalhadores no mutirão Paulo Freire. Acervo Usina CTAH.
mento não havia nada a respeito. Cada família escolhia o seu representante e teria dois suplentes que poderiam trabalhar em seu lugar. O resultado foi que muitas mulheres trabalharam e depois o marido veio morar junto com elas, como nos contou Cris: “O mutirão inteiro, só trabalhou a mulher, aí depois o homem mudou junto. Muitas até tinham problema em casa, de bater na mulher tudo, a gente aconselhava, falava das leis, mas no final das contas, ainda trouxe junto. […] Esse caso mesmo [que comentou], depois que vieram pra cá mudou a vida dela, ele parou de [bater], eles se entenderam lá. A gente só pode intervir quando a pessoa quer. Mas assim, o que acontece muito nos mutirões, por ter mais mulher também, é que tem muita mulher que já é sozinha. Que é separada, por isso ela quer ter um cantinho dela, ela já não tem um companheiro. (…) Tem bastante. Mas a maioria é mulher viu, 70% da obra é mulher, que vem nas reuniões, que vem pro mutirão, são mulheres.” (Cris, entrevista concedida à autora em 20/10/2012)
Cris relata que fornecedores, empreiteiros e até fiscais insistiam perguntando: “Quem toma conta da obra?’ e se surpreendiam que eram mulheres. Mulheres na administração, na cozinha, no cuidado das crianças, mas também subindo pare-
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des, armando e concretando lajes, montando kits hidráulicos etc. (TONE et al, 2011: 16) A experiência vivida entre mulheres e homens na construção transformou as relações hierárquicas no processo de trabalho, desfazendo antigas distribuições das atividades. Segundo Arantes, ao considerar essas mudanças em suas pesquisas, os homens inicialmente procuravam colocar as mulheres nas funções exteriores ao canteiro, ou seja, nos lugares considerados femininos, como a cozinha e a creche, e só depois nas funções administrativas ou de controle do almoxarifado. Em suas palavras: “Acontece que elas ainda formam um número maior do que o exigido por essas tarefas. Então começam a entrar no canteiro, inicialmente em trabalhos braçais e totalmente desqualificados, como o carregamento de material e a limpeza do terreno, até assumirem trabalhos “ fora do seu lugar” , como a ferragem, a concretagem” (Arantes, 2002: 199)
Já as mulheres, como ele observa, revelavam muito menos preconceitos em relação aos tipos de trabalho e aceitavam quaisquer tarefas, aprendendo com muita facilidade e gosto daquilo que antes lhes era barrado. Arantes chega mesmo a valorizar o trabalho feminino não só como muito mais cuidadoso do que o dos homens, como também destaca que, em sendo aprendido na experiência vivida na esfera doméstica, ele comporta elementos anti-capitalistas, não mercantilizados que são trazidos para o mundo público. Finalmente conclui que esse trabalho também pode ser uma forma de libertação para elas: “O ‘capricho’ é algo especial: é o esmero com a casa que irá abrigar sua família. Assim a mulher, no canteiro, restitui um ‘trabalho com amor’, desmercantilizado. (…) A presença das mulheres se contrapõe à tendência de reprodução das relações capitalistas pois a vida doméstica ainda guarda um resíduo não mercantilizado. Com ela, os homens acabam aprendendo e redescobrindo o prazer no trabalho. (…) Na coordenação das equipes, por exemplo, o “mando” continua do homem. Mas essa experiência no trabalho coletivo acaba colaborando para que elas se libertem da opressão doméstica e, muitas vezes, dos próprios maridos.” (Idem, 199-200)
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Em muitas pesquisas sobre mutirão, vale notar, destaca-se o crescente protagonismo das mulheres. Segundo Tone et al., uma vez que as mulheres assumiram funções organizativas e políticas com maior constância, a transformação positiva das relações de gênero no canteiro autogerido progrediu, atingindo inclusive as arquitetas na obra, que passaram a ser respeitadas pelos mutirantes homens. Fertrin e Velho (2010) observam que as engenheiras também se sentiam intimidadas com a misoginia reinante num ambiente que não só carecia de infraestrutura adequada às mulheres, como também insistia em manter equipamentos destinados ao público masculino, ou seja, as autoras denunciam a relutância dos engenheiros e peões em feminizar as condições de trabalho. No mesmo sentido, Percassi afirma que “O reconhecimento do valor de sua participação [feminina] nesses espaços, por sua vez, é algo que necessita ser lembrado e reforçado como conquista cotidianamente, para que não se cristalize como sendo apenas parte das obrigações do ser mulher” (Percassi, 2008: 198).
imagem 23 Mutirantes da Associação Paulo Freire. Acervo Usina CTAH.
É bom ter mente que foram necessárias muitas lutas para que vingassem essas conquistas que denomino de feministas – independente da afirmação de uma consciência feminista por parte dessas mulheres. Como narra Rose, relendo retroativamente sua história, ela se rebela e escapa de uma situação em que todas as atividades domésticas recaíam sobre seus om-
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bros, chegando a um patamar de maior autonomia com o fim de seu casamento. Em suas palavras, “Mas no dia que eu mudei, entrei aqui com uma cama de solteiro, um fogão, a geladeira e minhas duas filhas. Só nós, pronto. É isso. A Cris teve o apoio do marido dela, ele trabalhou, eles se revezavam. Tem outras pessoas aqui também que se revezavam com o marido, mas tem muitas aqui que Jesus!” (Rose, entrevista concedida à autora em 20/10/2012)
Assim como ela, muitas outras mutirantes, ao fim da obra, viram-se capazes de deixar um casamento tradicional opressivo e conquistarem a liberdade. Isso implica num processo subjetivo de autotransformação que, se de um lado amplia a autonomia, por outro, também tem seus custos e dores, especialmente para as mulheres das classes subalternas. Não há dúvida de que numa sociedade que privilegia o modelo da família nuclear e do casamento monogâmico indissolúvel, a situação de mulheres sozinhas ou solteiras, com ou sem filhos, implica em uma maior vulnerabilidade.
Subjetivação e coletividade “Aí às vezes eu me pego rindo sozinha, eu digo: meu Deus, como eu consegui? Aí uma coisa eu digo: o coletivo. É junto que a gente consegue fazer as coisas.” (Rose, entrevista concedida a Jade Percassi. Percassi, 2008: 162). “Mas hoje, todas nós estamos sorridentes. Eu descobri como a liberdade é importante.” (Rose, entrevista concedida à autora em 20/10/2012)
A fala de Rose, acima citada, é bastante expressiva daquilo que gostaria de abordar nesse momento: a conexão entre os deslocamentos que se produzem na subjetividade e os contextos coletivistas. É evidente que espaços sociais onde se produzem relações mais interativas, estimulantes e de solidariedade podem criar condições para que se produzam mudanças pessoais com maior intensidade. Para além da esfera privada, a convivência social com os diferentes permite vislumbrar novas possibilidades de se subjetivar.
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Novamente, a narrativa de Rose nos dá elementos para nos aproximarmos desses deslocamentos subjetivos vividos com muita emoção, conectando subjetividade e política. Segundo ela, deixar de ser uma dona-de-casa anônima, praticamente inexistente já que confinada na esfera privada, para se tornar uma militante política reconhecida nesse novo meio social foi uma revolução em sua vida. Em suas palavras: “E a outra [mudança], que é a mais importante de todas, é você se sentir uma pessoa... alguém reconhecer algo em você, do trabalho. É você trabalhar a vida toda, ser uma dona-de-casa e você não receber um elogio, não saber se aquilo que você fez, se tudo o que você fez, limpou a casa, arrumou, entra uma pessoa e não elogiar o seu trabalho. A partir do momento que eu comecei a trabalhar no movimento eu ficava até vermelha, nossa, a pessoa elogiando. Ontem, no filme [sobre o mutirão exibido na Mostra Internacional de Cinema], eu recebi tantos elogios, ‘parabéns Rose’! Nossa, isso para mim foi muito bom! Você receber isso. Alguém valorizar o seu trabalho. (…) isso é importante, alguém valorizar algo que você está fazendo.” (Rose, entrevista concedida à autora em 20/10/2012)
Esses temas, dos quais Rose se apropria cada vez com mais lucidez, passam a se estender às suas filhas, a quem estimula incisivamente para que não se submetam, para que “não se deixem ser escravas”. A sua consciência feminista ganha contornos mais claros inclusive na medida em que, ao longo da nossa entrevista, sua narrativa se explicita. Em vários momentos, a militante afirmou que tem ensinado suas filhas a não dizerem “amém” como lhe havia sido ensinado e, nesse sentido, ela critica antigos modos de sujeição naturalizados para as mulheres, que tinham como obrigação renunciarem a si mesmas e aos seus desejos. Ela afirma, portanto, a busca por outros modos de subjetivação, isto é, por outros modos de tornar-se alguém em controle de sua própria vida. Vale nesse momento explicar a referência do conceito de subjetivação que Michel Foucault introduz em seus estudos sobre os antigos gregos e romanos, em oposição à noção de sujeição, para ele tão desenvolvida na modernidade. Segundo ele deve-se entender por isso: “práticas refletidas e voluntárias através das quais os homens não somente se fixam regras de conduta,
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como também procuram se transformar, modificar-se em seu ser singular e fazer de sua vida uma obra que seja portadora de certos valores estéticos e responda a certos critérios de estilo.” (FOUCAULT, 1984: 15) A partir das história que Rose conta de sua vida, ela e outras mutirantes buscavam não apenas novas formas de inserção social e pública, mas também outros modos de afirmar a sua individualidade. Essa dimensão também aparece na fala da mutirante Meire, que relata as experiências vividas a partir de sua homossexualidade dentro e fora do mutirão. Segundo seu depoimento a Percassi: “Por causa da minha opção sexual, em outros lugares já [passei por algum tipo de discriminação], mas aqui não. No começo, ninguém sabia, né. Aos poucos, o pessoal foi percebendo. Depois, eu mesma comentei, e foi normal; ninguém nunca teve preconceito comigo. Todo mundo gosta de mim aqui, ninguém comenta nada, nem faz piada. Todo mundo conhece e respeita a Joyce, se dá bem com ela também, é legal. Ela também entende que eu estou no movimento, ela vem ajudar. Se tudo der certo ela vem morar comigo, esses dias a mãe dela veio ver onde ela vai morar.” (PERCASSI, 2008: 171)
Apesar de estar num ambiente onde predominam valores tradicionais, seu relato demonstra uma aceitação da sua opção sexual, o que suponho resultar do fato de que se trata de uma nova configuração social, que reúne pessoas dispostas a transformar a sociedade, não apenas em termos econômicos, mas também em relação à própria cultura e ao imaginário coletivo. Essa suposição tem por base as conversas com Rose, que revelou uma sensibilização crescente em relação a temas, pessoas, ideias, práticas, que antes desconhecia. Segundo ela, foi pelo movimento que teve acesso a pessoas diferentes do seu antigo e restrito meio, passou a conhecer os preconceitos de que eram vítimas e a respeitá-las. Foi também aí que ela percebeu as próprias limitações vividas pelas mulheres, como ela mesma, formando uma consciência política anti-capitalista e feminista: “Então fui participando, fui gostando, vi que nessas reuniões a gente começava a ter um conhecimento que eu mesma não tinha. Eu era uma dona-de-casa que trabalhava e o
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imagem 24 Mulheres plantando no mutirão Paulo Freire. Acervo Usina CTAH.
meu divertimento era ver televisão, ou receber parentes no domingo, fazer almoço... isso pra mim era o que eu tinha, era perfeito pra mim. Ai depois que eu entrei no movimento, a gente começou a descobrir coisas... por exemplo, uma coisa era eu como uma dona-de-casa, o preconceito com homossexuais, GLS né? Aí entrando no movimento, eles eram um dos sócios da união (UMM) conversando com eles, foi outra coisa... eles tem o movimento deles (Setorial GLBT), e foi muito bacana você conversar, ouvi a opinião deles, ouvi as pessoas de perto, é outra coisa. Então a nossa visão foi se ampliando, você foi descobrindo coisas, você foi descobrindo que nos mulheres tínhamos direito. Tudo isso o movimento é uma escola. E eu fui gostando. O coletivo, fazer tudo junto, pra mim isso foi uma novidade.” (Rose, entrevista concedida à autora em 20/10/2012).
Outra das experiências de ampliação de seu próprio universo que a entrada no movimento possibilitou foi o contato com outras áreas de atuação. Segundo conta, de ajudante de cozinha, tornou-se coordenadora de um projeto social com 120 crianças. Da mesma forma, sua amiga Cris, que tinha passado por trabalhos numa fábrica de meias e no McDonalds, tornou-se
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37 Programa Universidade para Todos.
coordenadora da Associação Paulo Freire, exercendo funções administrativas e atualmente coordena outros mutirões. Esses dois casos ilustram as possibilidades que esses movimentos abrem para algumas mulheres, um vez que, para coordenar um projeto social ambas tiveram de aprender a gerir o que, num segundo momento as levou a continuar os estudos. “Eu faço faculdade, a Cris também vai entrar agora. Era o nosso sonho fazer uma faculdade, nunca foi possível. Agora que o Lula abriu o Pro-Uni37, a faculdade agora é pra todos.” (Rose, 20/10/2012).
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A Ocupa巽達o S達o Jo達o
A cultura é uma invenção humana. Ela é forma ou produção de formas. Ela sobrevive arquitetando possibilidades. Ela engana quem determina e anuncia a fatalidade dos destinos ou quem se embriaga com as escatologias. A cultura é sempre uma abertura, nunca um ponto final. Ela se refaz de qualquer profecia que anuncie seu fim. Sua existência está relacionada com a história. Confundem-se, num diálogo constante da permanência com a mudança. Quando narramos uma história estamos mergulhando no imenso oceano da cultura, nunca transparente, como uma metáfora, seu espelho é o símbolo. Por isso a cultura inventa formas, para aprofundar suas diversidades, para assegurar a sua sobrevivência. Cada forma protege ou esconde alguma coisa. A casa tem formas, as visíveis e as invisíveis. Suas geometrias talvez não sejam tão misteriosas. Conseguimos nomeá-las. O que fazer, porém, com o que esconde, com a cartografia dos sentimentos que habitam no seu interior ou no interior de quem a habita? A palavra é a ponte para mantê-la nas narrativas que a transforma em morada. A casa tem nome, uma casa tem muitos nomes, não importando as arbitrariedades ou fantasia que contenham. A casa nossa de cada dia: Metáforas e Histórias da pós-modernidade, Tânia Mara Galil Fonseca.
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Os caminhos tortuosos da pesquisa foram-se esclarecendo ao longo do percurso e conforme ela se desenvolveu pude compreender melhor seus meandros. Nada, porém, se encerrou, nem mesmo o texto impresso, que circula com a intenção de abrir novos diálogos. Dessa forma, a escolha de trabalhar com a Ocupação São João se deveu especialmente ao modo como cheguei ali e percebi aquele espaço, a partir de uma aproximação mais espontânea, cujos significados foram agregados e reconhecidos durante fazer desse trabalho. Para se compreender a complexidade desse lugar, apresentarei primeiramente o contexto do qual emerge.
38 Dia de Festa, dirigido por Toni Venturi, 2005. Grenade Productions/ Neurotika/ Olhar Imaginário/ Passaro films/ Cityzen/ Télévision/ Coloco. 39 Desenho Urbano e Projeto dos Espaços da Cidade, AUP 274. 40 Em 2011 foi lançado outro filme do mesmo diretor, Estamos Juntos, em que a personagem principal se envolve com a Ocupação da Rua Mauá. O filme transita entre realidade e ficção, sendo utilizadas nesta nova montagem algumas cenas do documentário citado. Alguns moradores da ocupação aparecem no filme, bem como uma das coordenadoras do MSTC, que está presente nos dois filmes e atua ao lado da atriz Dira Paes, que se inspirou nesta liderança para construir seu papel.
No ano de 2010, assistimos ao documentário “Dia de Festa”38, exibido em uma aula de planejamento urbano na FAUUSP39, que acompanhava um dia de ocupações feitas pelos movimentos de luta por moradia em São Paulo. O filme parece ficção, e poder-se-ia fazer uma pesquisa somente sobre esse aspecto40, mas por ora interessa-me afirmar apenas como ele repercutiu de forma a instigar a curiosidade sobre o assunto. Além de me emocionar, levantou algumas questões que convergiam com outras inquietações pessoais já latentes. O trabalho que realizamos nesta disciplina acabou por ser uma investigação sobre o Projeto Minha Casa Minha Vida, sem aproximação com os movimentos de sem-teto, mas ainda acerca dos problemas habitacionais no país. Um detalhe importante que chama a atenção no filme é que as protagonistas são quatro mulheres, todas coordenadoras do movimento dos sem-teto. O letreiro diz: “Outubro de 2004;
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41 As ocupações ocorreram em diversos locais da cidade: na região central em sua maioria, um na zona leste, em São Mateus, e um na zona norte, na Casa Verde (FERNANDES, 02/11/2004). Após dez meses, somente um edifício permanecia ocupado. Os outro seis sofreram reintegração de posse. Mas no final do filme aparece um edifício ocupado anteriormente que foi conquistado e reformado em que Ednalva estava à frente da coordenação, o Ed. Brigadeiro Tobias. 42 Na Ocupação Mauá há ainda outros coordenadores, homens e mulheres. Janaína é coordenadora de juventude da Mauá. A Neti é uma das coordenadoras gerais e também do MSTC. Outros coordenadores são de outros movimentos que fazem parte da ocupação: o Nelson “Che” também coordena o Movimento de Moradia da Região Central (MMRC) e a Raquel a Associação Sem-Teto do Centro (ASTC).
4 mulheres; 4 destinos; 1 história de São Paulo”. O documentário as acompanha em algumas ocupações no dia 1º de novembro de 2004, quando sete edifícios abandonados foram ocupados simultaneamente por movimentos de sem-teto41. O começo do filme apresenta cada uma destas mulheres em sua casa, se arrumando, penteando os cabelos ou passando batom. Na esfera privada, mostra a atitude com os filhos e como se importam com a sua educação. De dentro de suas casas, conversam sobre suas infâncias, cada uma com sua história, nunca sem passar por dificuldades e sofrimento. Mas esta dureza da vida foi enfrentada e hoje elas representam uma força feminina que luta, sem por isso se embrutecer. Silmara do Congo da Costa, Ednalva Silva Franco, Ivanete de Araújo (Neti) e Janaína Cristina da Silva. As duas últimas encontram-se hoje como coordenadoras na Ocupação da Rua Mauá, 340, no antigo Hotel Santos Dumond, pelo Movimento dos Sem-Tetos do Centro (MSTC)42. Todas com seus 30 e poucos anos à época e Janaína, mais jovem, com 18 anos então, falam sobre a paixão e a garra com que se engajaram no movimento. A partir da comoção expressa nas narrativas das suas próprias experiências de vida, a revolta ganha uma dimensão mais ampla quando coletivizada no contexto da precária situação geral da habitação no Brasil e em São Paulo mais especificamente. Se por um lado é com muita emoção que contam suas trajetórias pessoais, o discurso se politiza quando este sentimento impulsiona o desejo de transformação social, deslocando-se para uma esfera pública. O trânsito mais fluido entre o pessoal (privado) e o político (público) se apresenta nítido nessas narrativas autobiográficas femininas. Não se trata da sobreposição perigosa de interesses privados sobre a esfera pública, mas de romper com estas barreiras no sentido de que a vida e os direitos humanos se sobrepõem a essa cisão. Em convergência com a problemática da habitação como assunto caro à cidade como um todo, atravessado pelos direitos humanos, aparece então a questão de gênero. A princípio parece curioso ou até gracioso o protagonismo das mulheres nos movimentos por moradia. Mas evidentemente trata-se de uma questão a ser aprofundada e incorporada ao discurso político, à espreita de um debate, mas geralmente ignorada como se fora pouco importante, ainda vista como secundária.
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Este trabalho participa de uma teia de esforços tecidos nesta direção. Como discutimos no primeiro capítulo, diversos fatores contribuem para a hierarquia na relação entre os gêneros. E podemos agora investigar com mais cuidado algumas implicações dessa realidade. Como se expressam e se transformam (ou não) essas relações nos novos espaços gerados pelos movimentos dos sem-teto?
43 FORUM CENTRO VIVO, 2006; NEUHOLD, 2009; MIAGUSKO, 2012.
44 A delimitação da área de estudo de Neuhold (2009) abrangeu os seguintes subdistritos: Sé, República, Liberdade, Bela Vista, Consolação, Santa Cecília, Bom Retiro, Belém, Brás, Mooca, Pari e Cambuci. 45 A delimitação da área de estudo de Miagusko (2012) abrangeu os mesmos subdistritos estudados por Neuhold e também o da Barra Funda.
A minha intenção inicial foi eleger uma das ocupações da Frente de Luta por Moradia devido à sua atuação presente na Região Central. O auge das ocupações de imóveis ociosos no Centro foi no ano de 1999, em que Miagusko (2012) registra 21 casos nesta área, considerando a participação de movimentos organizados. Em 2004, também ocorre um número alto de ocupações, no momento da eleição do prefeito José Serra (PSDB). A gestão de Marta Suplicy (PT, 2001-2004) propiciou um grande investimento nos programas de habitação no Centro; contudo, as conquistas foram aquém do esperado pelos movimentos populares, esbarrando com as dificuldades impostas pelo mercado, que só ganharam força nas gestões seguintes. No momento posterior, aumentou também a repressão policial, conforme a avaliação dos movimentos e das pesquisas sobre o assunto43. Neuhold (2009) também analisou o mesmo período que Miagusko, 1997-2007, e aponta as dificuldades de coletar informações precisas, tendo recorrido a bibliografia, a documentos (jornais e arquivos dos movimentos) e realizado visitas aos imóveis ocupados e entrevistas com as lideranças atuantes. Neuhold identificou 72 ocupações de prédios e terrenos vazios na área central44, contando com atos de ocupação no mesmo local, somando na realidade 63 imóveis ocupados. Já Miagusko, levantou 112 ocupações na Região Metropolitana de São Paulo, dos quais 83 na região central45. A partir dos levantamentos de algumas teses, especialmente do trabalho de Neuhold, até 2007 e pesquisa em jornais e com os movimentos, Tânia Helou elaborou uma lista das ocupações no Centro de 1997 até 2012, com a qual colaborei. Apesar de não poder ter os dados completos do ano atual, consideramos válido incluir as recentes ocupações devido a sua expressão. Até o momento em que foi possível realizar o levantamento, contamos dez ocupações, que ocorreram simultaneamente a outras. A estratégia de
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organizar diversas ocupações simultâneas segue ocorrendo com intensidade.
imagem 25 Ocupação de imóvel no dia 7 de novembro de 2011. Foto: Elaine Campos.
Mapeamos essas ocupações para poder perceber sua intensidade no decorrer dos anos e diferentes concentrações na área delimitada. O perímetro do levantamento seguiu Neuhold, englobando todos os subdistritos da Sé e alguns da Móoca (Brás Belém, Pari e Móoca). A seguir apresentamos o resultado desse estudo ainda em desenvolvimento, já que para o ano de 2012, é necessária atualização. A lista das ocupações completa encontra-se no Anexo ao final do trabalho. A tabela abaixo foi elaborada por Neuhold e informa a quantidade de ocupações realizadas na área central, distinguidas pelo tipo de propriedade. Conforme esta for privada ou pública, os processo jurídicos são distintos e, em relação aos imóveis públicos, pode haver uma pressão mais direta sobre determinado órgão ou governo. Em 1997, por exemplo, um ano em que pode-se dizer que se estabelece a prática de ocupação de imóveis como estratégia política dos movimentos de sem-teto, especialmente na área central da cidade, somente edifícios púbicos foram ocupados. No decorrer do tempo, os edifícios privados também sofreram ocupação, de modo a questionar mais incisivamente a função social da propriedade privada. Em 2002, aproximadamente, uma discordância entre os movimentos de sem-teto em relação à estratégia de ocupação dos imóveis faz com que se dividam em duas linhas de atuação. Um grupo argumenta contra a ocupação como moradia provisória, aposta nas ocupações como denúncia, as “ocupações-relâmpago”, como instrumento de pressão e investe nas negociações com os poderes públicos para conquistar suas demandas. O outro vê a ocupação de imóveis ociosos como ato político que pressiona o governo reivindicando moradia acessível para a população mais empobrecida, com renda de zero a três salários mínimos, e que passa a atender emergencialmente essas famílias, uma vez que as negociações podem ser muito demoradas. O caráter de urgência apontado por esses movimentos supõe o agravamento da situação de uma população que se vê prestes a ir viver nas ruas. O Fórum de Cortiços já tinha parado as ocupações desde 1999 e a Unificação das Lutas dos Cortiços (ULC) para em 2002. A partir do momento em que se ocupa e passa-se a
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viver em um edifício abandonado, é preciso haver uma gestão da ocupação. E especialmente em torno dos problemas acarretados neste processo em algumas experiências, pode-se dizer que houve uma cisão de modos de compreender a luta efetivamente. As dificuldades sempre existiram, mas em alguns casos tomaram proporções maiores e o movimento perdeu o controle da situação. É muito tênue este limite pois nenhum dos movimentos tem um discurso de que visa a controlar a vida de seus participantes. A ideia é que a participação respeitasse os princípios dos movimentos, que chegaram a formular regulamentos mais claros com as experiências que tiveram. Mas eventualmente pessoas que não estão envolvidas com essas diretrizes se aproximam devido à situação de precariedade em que se encontram. Esta precariedade, no entanto, é trabalhada no âmbito dos movimentos no sentido de recuperar a auto-estima e o potencial daqueles indivíduos como sujeitos políticos. A organização do coletivo fortalece cada um que dele faz parte. Mas se um indivíduo não compartilhar os mesmos valores éticos apresentados pelo movimento, pode afetar este coletivo de forma negativa. Em torno da Frente de Luta por Moradia (FLM), agregaram-se os movimentos que acreditavam na ocupação para morar, enquanto se aguarda pelo atendimento da demanda e também como pressão política. Outros movimentos e os associados à UMM passaram a ocupar somente como pressão política, sem a intenção de permanecer ali, entendendo que a precariedade daquelas condições podia trazer mais problemas que auxílio na luta. Em depoimento a Neuhold (2009), uma coordenadora do Movimento de Moradia do Centro (MMC) aponta sobre a experiência negativa da ocupação: “[...] porque viver em ocupação é viver sem dignidade, é ser sofrido, é mais um cortiço, só com a diferença que é cortiço vertical. [...] Por isso é que surgiram as primeiras ocupações, porque a gente vivia indignado de ver aquele povo morando em cortiço... é vida desumana, ali é uma vida triste. Só que nas ocupações não tem muita diferença, gente! A diferença é que eles [os integrantes do movimento que vivem nas ocupações] não são explorados (Coordenadora do MMC: depoimento, 2005).”(NEUHOLD, 2009: 90)
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Esta posição realmente levanta um ponto importante na discussão, na medida em que a luta por moradia digna não deveria gerar uma moradia precária, mesmo que temporariamente. Mas o termo “dignidade” pode ser um pouco restrito para classificar a qualidade da habitabilidade daquele lugar. Neste depoimento, devemos levar em consideração o contexto de onde se fala e quem fala. A principal liderança do MMC, em 2005, foi criminalizada por um assassinato que ocorreu numa ocupação. Após serem removidos de um edifício ocupado, o governo realocou aquelas famílias em um terreno em que tiveram problemas com a vizinhança e ocorreu esta fatalidade (FORUM CENTRO VIVO, 2006). imagem 26 Divisão administrativa das subprefeituras do Município de São Paulo. Sempla/Dipro. tabela 2 Ocupações de imóveis ociosos na área central da cidade de São Paulo organizadas por movimentos de moradia e sem-teto, de acordo com o ano de realização e o proprietário (1997-2007). Retirada de Neuhold, 2009.
Nesse trabalho, pretendo mostrar como a experiência de coletividade na ocupação pode ser construtiva para os indivíduos. É claro que existem dimensões negativas nesse viver em comum e em condições de extrema precariedade, mas há de se avaliar os dois lados. Nesses espaços diferenciados abrem-se possibilidades de criação de novas formas de sociabilidade e de reflexão sobre esse convívio. Ainda que em larga medida as relações se dêem ali da mesma forma que em outros contextos sociais, há aspectos diferenciais e a consti-
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imagens 27 e 28 Mapeamento das ocupações de imóveis vazios feitas por movimentos de moradia e sem-teto nos anos de 1997 - 2000 (gestão Pitta) e 2001 - 2004 (gestão Suplicy), respectivamente. Elaboração Tânia Helou, Hannah Machado e Marina Rago Moreira.
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imagens 29 e 30 Mapeamento das ocupações de imóveis vazios feitas por movimentos de moradia e sem-teto nos anos de 2005 - 2008 (gestão Serra/Kassab) e 2009 - 2012 (gestão Kassab), respectivamente. Elaboração Tânia Helou, Hannah Machado e Marina Rago Moreira.
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tuição de uma ética compartilhada. Em muitos casos, o que vemos, para além das condições inadequadas das instalações elétricas e hidráulicas, que deveriam ser melhoradas, sem dúvida, é a emergência de um coletivo enriquecedor para os habitantes, que muitas vezes se envolvem em projetos culturais, se apropriam do conhecimento sobre seus direitos e se percebem como sujeitos políticos naquela ação. Nas falas das moradoras entrevistadas fica evidente o sentimento de participarem de experiências de acolhimento e troca, que as fortalece também subjetivamente. Contudo, Neuhold e Miagusko atentam para os riscos em se manter uma ocupação em condições precárias, como duplo jogo dos governos na medida em que muitas vezes esse prolongamento do provisório, estendendo as negociações, enfraquece os movimentos. “Seria, pois, a imagem do Estado que, nas palavras de Miagusko (2008: 62), ‘gesta as inseguranças’ e, assim, controla as populações.” (NEUHOLD, 2009: 90).
46 “A Frente foi composta inicialmente pelo Movimento Sem-Teto do Centro (MSTC), Fórum de Moradia e Meio Ambiente do Estado de São Paulo (Fomaesp), Fórum de Mutirões, Associação de Mutirões, Movimento Quintais e Cortiços da Região da Mooca, Movimento Terra de Nossa Gente e por quatro grupos que se uniram no Movimento Sem-Teto pela Reforma Urbana (14 de janeiro, Grupo da Água Rasa, Grupo Colorado e Setor 8, todos da zona leste). Todos eles estavam no primeiro encontro da FLM em Ribeirão Pires. Mais tarde juntou-se o Movimento de Moradia da Zona Norte e o Movimento Centro-Norte.” retirado de www.portalflm.com.br, acessado em 17/08/2012.
Neste contexto, o MSTC surgiu como um movimento dissidente do Fórum de Cortiços, especialmente após a ocupação na Rua da Abolição, em 1999. Quando os militantes fizeram a primeira ocupação após o rompimento, no hospital da Vila Formosa (Zona Leste) e os jornalistas vieram perguntar sobre o movimento, teriam designado a sigla daquele grupo (NEUHOLD, 2009; Miriam, 09/05/2012). Organizaram cerca de vinte ocupações entre os anos de 2000-2007, além de passarem a coordenar algumas ocupações iniciadas pelo Fórum. Em 2004, desligaram-se da UMM e, junto a outros movimentos, compuseram a FLM46. Essa última entidade e seus associados defendem a importância da habitação provisória dado o nível de empobrecimento da população com quem trabalham, apesar das dificuldades em gerir as condições físicas dos edifícios ocupados, bem como seu controle social. O dia a dia na ocupação exige uma organização interna para que se possa tornar os locais habitáveis, garantir a segurança de todos, conseguir água e energia elétrica, dentre muitos outros aspectos que surgem da convivência. Para tanto, logo se estabelece um regulamento para cada ocupação, todos um pouco similares entre si, mas discutidos em assembléia (Antonia, entrevista concedida à autora em 12/05/2012).
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De modo geral, há restrição ao consumo e à venda de drogas, bem como álcool, nas áreas comuns; ninguém pode entrar alcoolizado; é delimitado o horário de silêncio das 22h às 6h; casos de violência doméstica contra mulheres e crianças também são motivos para expulsão; devem-se cumprir tarefas coletivas como a limpeza; e participar das atividades políticas e assembléias. O cumprimento das regras é estimulado tanto com possibilidade de aplicação de multas ou eventual expulsão do morador, como através da pontuação que cada associado ao movimento acumula, sendo considerada como critério para prioridade nas demandas conquistadas. Ainda assim, apesar das diferenças, todos esses movimentos se articulam para promover atos e diversas ocupações simultâneas. Desde o primeiro ano de existência da FLM, esta organização realizou mega-ocupações, praticamente uma vez ao ano. Assim, foram ocupados de cinco a onze edifícios simultaneamente. Essa estratégia ajuda a dispersar a polícia, que não consegue localizar todas as ocupações. No ano de 2012, portanto, a situação encontrada no Centro é menos intensa em relação ao número de imóveis ocupados, mas até recentemente contava com cinco locais geridos pela FLM47, um na Av. Consolação sem movimento organizado, e um na Av. São João por outro movimento.
47 Na Av Prestes Maia, Av São João, Av Rio Branco, Rua Mauá e Av Ipiranga, este último tendo sido reintegrado em setembro. Recentemente, um dia antes das eleições para o segundo turno em São Paulo foram ocupados 11 imóveis em ação simultânea da FLM na área central.
Assim, o esforço aqui será o de recuperar o histórico de uma ocupação atual, levando em conta a memória do trabalho realizado de reciclagem do edifício pelos moradores para poder habitá-lo, chegando até o estado em que se configura hoje. Considerando o processo de organização interna da Ocupação, procurei compreender as discussões para definir os usos do espaço, as regras de convivência, a divisão das tarefas e paralelamente as relações de gênero que ali se constituem. Uma das inquietações que me conduziu foi pensar sobre a criação de novas formas de habitar e de estabelecer as relações de convívio fora dos parâmetros competitivos do mundo neoliberal. Se o movimento se coloca politicamente contra as formas de dominação neoliberais, contra a violência cotidiana, contra e exploração capitalista do trabalho, contra a violência doméstica e sexual que atinge as mulheres e as crianças, é de se perguntar pelas práticas que instaura na vida cotidiana.
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Conflitos pelo Centro Como já apontamos no primeiro capítulo, o deslocamento do interesse pelo Centro por parte de diversos setores, e também a atenção dada pelos movimentos sociais, constituem um campo de conflitos pela determinação das transformações iminentes na região. Existem muitos planos para esta área e essas possibilidades ainda estão em aberto. Por um lado, há um projeto higienizante e gentrificador, quase como um mito, que possibilitaria a transformação de uma área onde já se acumula muito investimento em uma região rica, segura, limpa, “civilizada”. Sem os problemas sociais que hoje despontam ali. E, por outro, um desejo de uma cidade que acolha sua própria população, que acolha seus habitantes por muito tempo ignorados, que possa reconhecer a pobreza que também lhe é constituinte e saiba lidar com esta questão, aproveitando uma área rica em empregos, servida de transporte, equipamentos culturais, educacionais e de saúde públicos, para que aquelas pessoas historicamente menos beneficiadas por esses investimentos todos e que menos tiveram acesso a essa cidade agora tenham. A disputa para que haja moradia popular naquela região se torna aguda devido ao suposto potencial de lucratividade nos empreendimentos imaginados para o local, bem como pela ineficiência do governo, que é incapaz somente por falta de vontade e interesse político de enfrentar os interesses do mercado e construir habitação para as pessoas que não podem pagar os preços de compra ou aluguel de imóveis no mercado formal hoje. Diversas vezes as autoridades públicas deixam escapar frases que, sem eufemismo, refletem uma postura extremamente reacionária em relação à população empobrecida. Muitos casos já foram relatados de moradores em desapropriações que receberem como indenização um valor para pagar uma passagem de volta ao seu local de origem. Essas pessoas, no entanto, também constroem, limpam e fazem funcionar a cidade. A tabela apresentada por Kara-José (2010) demonstra que, ao contrário do que se imaginava, apesar do esvaziamento populacional do Centro da década de 1980 para 2000, os empregos aumentaram. Como mostra também a pesquisa RAIS, enquanto em São Paulo existem 16 empregos/hectare, no Centro a relação é 137 empregos/hectare (RAIS, 2000, apud MIAGUSKO, 2012: 177).
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48 O edifício situado à Av. São João, 588, abandonado a cerca de 20 anos, segundo Antonia, foi ocupado na madrugada de 03/10/2010 pelo Movimento dos Sem-Teto pela Reforma Urbana (MSTRU), durante a ocupação simultânea de outros imóveis ociosos organizada pela FLM.
De início, Antonia, coordenadora da Ocupação São João48, comentou que as pessoas do grupo de base de São Mateus não gostavam muito da ideia de se mudarem para o Centro, muitas vezes por não conhecerem muito bem e desejarem estar próximas dos familiares ou dos vizinhos com quem já tinham alguma relação. Segundo ela, muitos já compareciam em protestos organizados pelo movimento ou mesmo em outra ocupações para dar suporte nos primeiros dias, mas não ficavam morando depois. Então, os militantes chamaram a atenção dos participantes do grupo para a qualidade de vida na região central, ou seja, apontaram para a existência de transporte e empregos, em primeiro lugar.
49 Daqui em diante usaremos a sigla OSJ para tratar do edifício ocupado à Avenida São João, nº588.
Segundo diversos relatos, quase todos os moradores da Ocupação São João49 logo puderam arrumar emprego a uma distância que podiam caminhar. Isso poupa tempo de locomoção e custo do transporte que geralmente são onerados do bolso do próprio trabalhador. Algumas moradoras comentaram que facilitou muito poder ter um emprego próximo e tempo de deixar e buscar os filhos na escola, estar mais presente.
50 Este programa municipal de reabilitação da área central da cidade antes era chamado Procentro anteriormente e durante a gestão de Suplicy passou a ser denominado Programa Ação Centro, contendo modificações em sua formulação. Em 2004, consolidou-se um convênio com o BID, que já havia sido solicitado desde 1997. A partir da gestão de Serra, no ano seguinte, volta a se chamar Procentro. Como aponta KaraJosé (2010), o Programa de Requalificação Urbana e Cultural do Centro de São Paulo – Procentro – teve início em 1993, coordenado pela Secretaria de Habitação e Desensolvimento Urbano, em parte por pressão da Associação Viva o Centro, organização de agentes diversas instituições do setor privado, como bancos internacionais e nacionais, entre outros, contando com muitos proprietários de imóveis no Centro.
As crianças também passaram por um processo de adaptação às escolas mais qualificadas que se encontram no Centro. Além de poderem freqüentar museus e centros culturais, inclusive com as escolas, que tendem a promover mais passeios pela facilidade de acesso. E o atendimento de saúde também é notadamente melhor. Uma moradora comentou que para agendar consultas para as filhas em São Mateus era necessário esperar entre dois e três meses, enquanto no Centro seria atendida em menos de uma semana. Para Antonia, a experiência foi o melhor modo de esclarecer as vantagens de morar ali. Depois que as pessoas passaram a viver na Região Central, perceberam uma mudança qualitativa em suas vidas e não querem mais sair dali (Antonia, 12/05/2012). Com a eleição de Marta Suplicy, a prefeitura solicitou pesquisas e elaborou programas para promover habitação de interesse social no Centro. Em 2001, já havia sido feito um estudo pela arquiteta Alejandra M. Devecchi para o Programa Ação Centro50 em que identificava 23 edifícios para serem reabilitados para fins habitacionais (GONÇALVES et al., 2009: 12). Em outra pesquisa desenvolvida em 2008 a respeito da tributação imobiliária e a vacância dos imóveis no centro (SILVA, 2009), os pesquisadores identificaram 158 imóveis
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tabela 3 Relação entre população e número de emprego na região central de São Paulo - 1997 a 2007. Retirada de kara-jose, 2010: 66.
sub-utilizados na Região Central, dos quais 68 estão completamente vazios. Os critérios para a escolha são esclarecidos nas pesquisas, mas essa diferença nos leva a crer que podem haver ainda mais imóveis passíveis de reforma para tornarem-se habitação. Um critério a ser verificado por exemplo é em relação às dívidas dos proprietários, poderia ser o filtro inicial para que a prefeitura declarasse abandono do imóvel, que configura um processo menos custoso que o da desapropriação pois não há necessidade de pagar pela propriedade. Resta somente haver o interesse e a atitude política de fazê-lo. O depoimento de uma moradora da OSJ ilustra e reafirma a tensão da disputa: “Eu preferia que eles reformassem aqui no centro. Eu ando por aí eu vejo muitos prédios [vazios]. Tanta gente na rua precisando de moradia e eles tratam a gente que nem um lixo. Olha o que eles fizeram com aquele pessoal [moradores da ocupação da Av. Ipiranga que foram despejados e ficaram acampados na Av. São João] e olha o prédio lá fechado. Quer dizer, o ser humano, que construiu todo esse império aonde a gente habita, são tratados que nem lixo. Porque jogaram, tiraram as famílias dali onde as crianças já estavam estavam escola, onde as crianças poderiam passar por uma consulta mais rápido. [...] A gente quer andar pra frente. Não voltar pra trás. Então eles tiraram o pessoal dali, de onde já estava estruturado, pra jogar na rua e já fez um mês e até hoje ainda não atenderam e está lá o pessoal sem moradia, tomando chuva, perdendo tudo, mas mesmo assim não desistiram. E é muito triste a gente ver essa situação sabendo que estamos num pais tão rico, com tanto dinheiro, tanta moradia disponível e as pessoas assim na rua. É muito triste isso, mas vai fazer o quê? Não pode desistir, tem que lutar.” (Lucimeire, entrevista concedida à autora em 27/9/2012)
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Um levantamento feito em 2009 pela FUPAM, fundação de pesquisa ligada à FAUUSP, para a COHAB selecionou 53 edifícios aptos para serem reformados para virar moradia entre os inúmeros imóveis vacantes do centro. De cerca de 200 imóveis, alguns eram garagens, outros não eram propícios para serem habitados (GONÇALVES et al., 2009). O Hotel Columbia Palace, juntamente a outros edifícios da Av. São João, aparece como um dos indicados para habitação. As plantas mais antigas arquivadas pela Prefeitura datam de 1927 (imagem), mas a data da construção propriamente marcada no relatório é de 1946, desenvolvido pelo famoso escritório F. P. Ramos de Azevedo & Cia, Engenheiros-Architectos. Constitui-se como patrimônio histórico, cultural e arquitetônico da cidade. Seu processo de tombamento pelo Compresp e Condephaat, instâncias municipal e estadual respectivamente, no entanto, caracteriza sua importância apenas pela área onde situa-se pois faz parte da área envoltória do Theatro Municipal (projetado e construído pelo mesmo escritório) e do Anhangabaú. Nenhum destes prédios levantados pela pesquisa foi reformado até o momento. O primeiro imóvel está em obras viabilizado através de recursos do PEPH (Programa Especial de Habitação Popular), repassados pela Caixa Econômica Federal, e irá atender a demanda específica de artistas idosos aposentados. Segundo o secretário da Habitação Ricardo Pereira Leite, a intenção é de construir entre cerca de 3.000 unidades habitacionais no total. Apesar das atuais propostas de gerar habitação no centro, é importante relembrar o papel dos movimentos sociais na luta para promover esta ideia desde as primeiras ocupações na década de 1980, intensificadas em 1990 e que seguem como estratégia de luta porque pouco foi concretizado até então. As propostas de revitalização do Centro, muitas vezes, implicam na expulsão da população mais pobre, o chamado processo de gentrificação, para potencializar a valorização imobiliária como já mencionei. Na fala de Antonia, cujo discurso se alinha com o dos demais coordenadores da FLM, pode-se perceber a incorporação desse reconhecimento, traçando uma continuidade dessa militância: “Foram os próprios movimentos que vieram aqui e colocaram nos três níveis de governo a proposta de revitalizar o Centro. A proposta de pegar esses prédios e fazer habitação. Todas as propostas que existem que o governo vai
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agora na televisão falar foi o movimento que chegou e deu. Não foi eles. E depois que eles apoiaram essa ideia, e eles concretizaram isso, agora eles querem tirar o movimento, querem excluir o movimento dessa condição, dessa proposta e incluir outras pessoas, outra demanda. E a gente vem ocupar não é porque a gente quer o que é dos outros, de forma nenhuma, nossas famílias do movimento elas tem consciência plena de que vão pagar, [...] o governo não vai dar nada. Mas infelizmente a gente tem que vir aqui dar as caras.” (Antonia, entrevista concedida à autora em 12/05/2012)
Sobre a condição tributária do hotel da Av. São João, nº588, na emissão de boleto referente ao mês de setembro de 2012, conforme o nº de contribuinte (GONÇALVES et al., 2009), consta que o proprietário mantém o pagamento do IPTU em dia. Este fator apresenta-se como vantagem para a defesa do proprietário que, mesmo não fazendo uso do imóvel, não deixou de contribuir com o imposto. Mas outros fatores colaboram na defesa dos moradores atuais. Mais enfaticamente o não cumprimento da função social da propriedade e, por exemplo, o investimento de trabalho que os atuais habitantes despenderam no local como a limpeza e as pequenas reformas no encanamento e elétrica. Um advogado que milita no movimento cuidava da defesa da OSJ no processo jurídico desde que o proprietário entrou com o pedido de reintegração de posse. Nas últimas eleições, ele foi candidato a vereador e outro advogado passou a representar a ocupação, que também trabalha há muito tempo junto. Segundo a coordenação, o trabalho dos advogados junto ao movimento é voluntário e a contribuição mensal das famílias serve, entre outras coisas, para pagar os trâmites burocráticos. Mais recentemente, foi acionada também a Defensoria Pública do Estado de São Paulo para contribuir com a defesa. Mesmo já tendo advogado, a Defensoria pôde entrar no processo alegando que trata-se de uma questão de direitos humanos e à moradia referente não somente a cada indivíduo ali, mas como um interesse e responsabilidade coletivos. O dado da entrada da Defensoria é muito importante pois, apesar de já haver os advogados envolvidos, seu trabalho não é remunerado, representando um tempo de dedicação além
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do tempo em que trabalham regularmente, o que condiciona uma dificuldade no acompanhamento do processo. O apoio da Defensoria portanto contribui e pode atuar em conjunto com o advogado inicialmente envolvido porque a instituição entra no processo espontaneamente, partindo da alegação de que se trata de uma questão que ultrapassa os interesses daqueles particulares. Como explicou melhor a defensora Ana C. Bueno de Moraes, que cuida do processo: “Normalmente, essas ações acontecem entre particulares: um proprietário e algumas pessoas que ocuparam. Não é chamado nesse processo qualquer ente público e às vezes o que a gente faz é tentar mostrar pro juiz que o cumprimento de eventual mandado reintegração sem que haja o compromisso do poder público em dar atendimento, isso não gera paz social, que é o fim do processo. O fim do processo é tentar garantir a paz social. [...] ainda que o juiz entenda que o proprietário é o legítimo, que houve o cumprimento da função social, que várias vezes não é o caso ao nosso entender, mas ainda que esteja certo o mérito dele de mandar reintegrar, que pelo menos, tratam-se de pessoas que desenvolveram uma relação de vizinhança, de educação, estudam perto...“ (Ana, entrevista concedida à autora em 01/10/2012)
Como ela reconhece, trata-se de uma visão mais moderna do Direito, que também fica sujeita ao entendimento do juiz. No caso da Ocupação da Av. Ipiranga, o juiz não aceitou a entrada da Defensoria, por exemplo. Mas no caso da OSJ foi possível, e estão junto no processo desde agosto quando a coordenação entrou em contato com as defensoras. Na defesa ela tentam garantir a negociação com os órgãos responsáveis pela demanda reivindicada pelos sem-teto: “Para além de um conflito particular existe algo de interesse social, que é maior, que várias pessoas vão para a rua e isso não pode acontecer. Não dá para o juiz, nesse processo, garantir que a prefeitura seja compelida, porque, de fato, ela não é parte, não teve oportunidade de se defender. Não dá para obrigar num processo em que ela não fez parte, obrigar que ela faça. A questão é que a gente pede uma audiência de conciliação, porque daí ela poderia se comprometer.” (Ana, entrevista concedida à autora em 01/10/2012)
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A reintegração de posse na OSJ já poderia ter ocorrido, mas o proprietário é obrigado a custear o deslocamento das famílias e depósito para seus pertences por no mínimo 1 mês. No último dia 11 de setembro seria feita a reintegração do edifício, mas o proprietário não arcou com os custos estipulados. Em todo o caso, as famílias seguem suas rotinas sem certeza do amanhã. Mas o movimento e o acúmulo de experiência na defesa através do recurso da função social da propriedade, que é construído a cada caso judicial, parecem promover um maior respaldo em relação à sensação de segurança dos moradores do movimento. Cabe notar que grande parte das profissionais que compõem esta nova instituição são mulheres, conforme reconheceu a entrevistada. Ao comentar o assunto, sugeriu que talvez haja maior interesse das mulheres nesse tipo de trabalho, ligado ao interesse coletivo. Me informou ainda que uma estagiária do curso de Direito que trabalha ali pretende fazer seu trabalho de conclusão também sobre as mulheres na luta por moradia.
51 Ver Villaça, 2005.
Na 1ª Jornada da Moradia, promovida pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo, em 2008, Ermínia Maricato ressalta a importância da concretização dessa entidade em relação às lutas pela efetivação do direito à cidade. A importância de um órgão que viabilize a defesa jurídica daqueles que não podem arcar com ela se faz fundamental, básica, para que se possa ao menos imaginar um sistema jurídico que trate todos os indivíduos igualmente. Como sabemos, o Estatuto da Cidade, aprovado desde 2001 e muito elogiado internacionalmente como sempre comenta Maricato, tem muitos entraves na sua aplicação51. “No Brasil, a aplicação da lei se faz de forma arbitrária como mostram diversos estudiosos. A lei obedece a uma lógica de classe. Há leis que ‘pegam’ e leis que não ‘pegam’. Depende das circunstâncias e dos interesses envolvidos.” (Maricato, 2008: 21. In: Defensoria Pública de Estado de São Paulo, 2008)
52 Um trabalho de conclusão de curso em grupo está sendo realizado na Ocupação Mauá por estudantes da USP, dos cursos de Engenharia Civil, Ambiental e Arquitetura e Urbanismo. O processo e produtos podem ser encontrados em www.projetomaua340.wordpress.com.
A Defensoria também está envolvida na defesa dos direitos dos sem-teto que ocupam o Hotel Santos Dumont, a Ocupação Mauá. Outros trabalhos acadêmicos estão sendo realizados nessa ocupação, ensaiando maneiras de contribuição possíveis no âmbito universitário52.
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Um sarau periférico no centro A minha aproximação com a Ocupação São João se deu, a princípio, através de um sarau realizado ali. O “Sarau da Ocupa” realiza-se a cada quinze dias, desde outubro de 2011. Abrem-se as portas do antigo Hotel Columbia Palace – edifício localizado na Avenida São João, 588, que hoje é a casa de cerca de 80 famílias – para poetas e interessados que queiram compartilhar com os moradores uma rara roda de poesia no centro da cidade. Além dos locais, especialmente as crianças, afluem inúmeras pessoas de todos os cantos, freqüentadores e organizadores de diversos saraus periféricos, afinal este tornou-se mais um dentro dessa rede. Abrem-se, portanto, espaços para expressão da criatividade, das emoções, da subjetividade dos participantes. Um modo de subjetivação se constitui, diferenciando-se das formas de sujeição e controle impostas pelo Estado. A mesa central disponibiliza livros de poesia, zines e outras publicações, quase majoritariamente independentes, de tal forma que as pessoas presentes podem encontrar algo ali mesmo que queiram declamar. Em muitas noites também estas publicações tiveram seu lançamento promovido na ocasião, com a presença do(a) autor(a). O cenário fica por conta de Nazaré, coordenadora cultural da OSJ, que cria algo novo a cada vez. A participação das crianças também é estimulada com o trabalho nos “sarauzinhos” que acontecem nas semanas intercaladas com o sarau maior. O espaço e o microfone ficam abertos a quem quer chegar, conhecer, trocar. Este evento proporciona um intercâmbio cultural na cidade e ao mesmo tempo acolhe reflexões sobre os processos e conflitos urbanos. Por se constituir como um espaço de resistência, as falas permeiam as tensões que atravessam o local, mas o clima é festivo e subverte qualquer mal estar, ajudando a tecer uma rede de apoio e solidariedade à ocupação. De certa forma, é um aspecto de sua inserção na cidade como espaço cultural e de luta política cotidiana. São traçadas pontes entre o público e o privado, entre o político e o subjetivo. Pode-se pensar em novas configurações do político, isto é, em novos modos de ação política que incluem a ironia, o humor e a alegria, contra formas tradicionais em que política era sinônimo de seriedade e ressentimento. Na medida em que se configura como um espaço público de cultura no interior de um edifício habitado, mescla os limites do privado e do público. Durante
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os outros dias, o espaço fica mais reservado. Há sempre alguém na portaria, mas funciona mais como um prédio residencial, quem tem a chave entra, quem não é morador deve se identificar.
52 O Programa para a Valorização de Iniciativas Culturais - VAI, foi criado pela lei nº 13.540 (de autoria do vereador Nabil Bonduki) e regulamentado pelo decreto nª 43823/2003, com a finalidade de apoiar financeiramente, por meio de subsídio, atividades artístico-culturais, principalmente de jovens de baixa renda e de regiões do Município desprovidas de recursos e equipamentos culturais. 53 Em www.projetocupacaocultural.blogspot.com.br, acessado em 02/10/2012.
Assim conheci aquele espaço e o projeto cultural atuante no edifício ocupado. Além do sarau, esse grupo, que se formou por algumas pessoas que moram ali e outras que não, organiza diversas atividades diariamente, especialmente focadas nas crianças. Este ano o projeto ganhou incentivo pelo Programa VAI – programa de Valorização de Iniciativas Culturais da Prefeitura Municipal de São Paulo52 – para seguir realizando as atividades: cineclube, oficinas de estêncil e fotografia, saraus, rodas de poesia e encontros de mediação de leitura. O Projeto Ocupação Cultural começou em novembro de 2010, e desde então busca construir “uma proposta de atuação política, cultural e estética junto a prédios ocupados e espaços em disputa na cidade de São Paulo”53. Inicialmente foram desenvolvidos trabalhos também nos edifícios ocupados situados na Av. Prestes Maia, nº 911 e na Av. Consolação, nº 1813, mas atualmente estão somente na OSJ. Neste último caso, tratava-se de uma ocupação de sem-teto não organizada por movimento e esse fator foi considerado como dificultador para dar continuidade ao projeto, como comentou Nazaré. Nazaré é uma das agentes culturais do projeto e moradora da ocupação. Nascida em Belém, já morou em São Paulo, no Rio de Janeiro, voltou para a cidade natal e vivia até 2010 em Campo Grande (MS). Explicou que a mudança de estado se deu para que sua filha conseguisse vaga na Universidade, muito concorrida em Belém. Suas duas filhas são adotivas, sobrinhas de uma irmã que faleceu. Outra irmã que já vivia em São Paulo, em uma ocupação na Mooca, a convenceu de vir e tentar a sorte no movimento dos sem-teto. Apesar de contar que foi recriminada pela família a princípio, hoje a mãe também reside na OSJ. Ela hoje responde pela coordenação cultural dentro da OSJ e cuida do espaço onde realizam-se as atividades. Relembra do primeiro evento que organizou no prédio: uma “festa de Rock”. Contou que apesar de ter sido criticada por moradores inicialmente, a festa serviu para arrecadar dinheiro para a reforma do telhado e que acabou por atrair jovens e estudantes interessados em ajudar o movimento de alguma forma. Muitos contribuíram, desenvolveram oficinas e alguns ficaram para desenvolver um programa de atividades.
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imagem 31 e 32 Primeiro Sarau da Ocupa, em 2011, e outro em 2012. Fotos: Elaine Campos.
54 Em www.projetocupacaocultural.blogspot.com.br, acessado em 02/10/2012.
Desses que ficaram, quase todos já tiveram algum envolvimento com outros movimentos sociais, aparentemente buscando também uma possibilidade de atuação política não partidária nem institucionalizada. Um deles comentou que teve uma experiência com o MST nas atividades culturais ali desenvolvidas, outro que já fez outras ocupações independentes de movimentos, ligado por princípios ao movimento punk, outra que morou por um tempo em uma espécie de residência artística, enfim, cada um tinha sua trajetória de tentativas de construção de projetos que intersecionam o político e o cultural, valorizando a autonomia das decisões e ações, e acabaram se encontrando naquele lugar, naquele momento, com desejos próximos e a possibilidade de realizar um projeto para o qual se entregaram e sobre o qual refletem constantemente. Nesse contexto, constituiu-se o Projeto Ocupação Cultural com sua proposta de “Pracificação, 1. processo que resulta na criação de espaços públicos autônomos. 2. transformar em praça determinado local aberto ou fechado. 3. percepção do espaço público e privado como potencial de convívio e vivência comunitária. 4. apropriação afetiva de áreas urbanas para fins coletivos.”54 Em suma, procuraram no âmbito da OSJ, aliar uma reflexão-ativa sobre a cidade aos propósitos habitacionais das ocupações realizadas pelo movimento dos sem-teto. Ampliam a dimensão da luta visando a um outro espaço que desloca a lógica da cidade e, ao mesmo tempo, se insere nela. No Sarau realizado em homenagem ao Dia das Mães, a coordenadora geral, Antonia, elogiou as mães da ocupação, falando sobre como as reconhecia como verdadeiras guerreiras e que admirava muito a força das mulheres no movimento de modo geral, tanto que ela gostaria de fazer seu trabalho de conclusão de curso sobre este assunto. Fiquei surpresa com a
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imagens 33 e 34 Sarau da Ocupa, 2012. Fotos: Elaine Campos.
55 Das 4.706 unidades habitacionais construídas, 2.806 foram realizadas por mutirão e 1.900 pela contratação de empreiteiras pelo governo estadual (MIAGUSKO, 2012: 116). 56 “Um traço que diferencia a ação dos sem-teto no Centro em relação ao período anterior é uma maior precariedade das condições de vida, vínculos de emprego mais instáveis, situações de habitação mais liminares e menor experiência associativa. Trata-se de uma demanda mais empobrecida que, já no ato da ocupação, estabelece a moradia.” (MIAGUSKO, 2012: 224). imagens 35 e 36 Sarau da ocupação São João. Foto: Elaine Campos, 2012. E atividade do projeto Ocupação Cultural. Foto: Fernando Knup, 2012.
coincidência e decidida de que renderia uma conversa interessante ao desenvolver o presente trabalho ali. Antonia cursa a graduação em Serviço Social. Ela se aproximou do Movimento dos Sem-Terra Leste 1 (UMM) em 1993, quando se mudou, para São Mateus e conquistou sua moradia em processo de mutirão por autogestão, em 1997. O conjunto Portal da Juta 1º de Maio foi realizado com a assessoria técnica da Ambiente Arquitetura, dentro da gleba da Fazenda da Juta, onde foram construídos 17 conjuntos habitacionais55. A obra teve financiamento da CDHU. Não nos aprofundamos neste tema da conversa e ela logo passou a falar sobre o movimento ao qual pertence hoje. Em suas palavras, ela segue no movimento por moradia, mas com uma visão um pouco diferente. Conforme já comentamos, trata-se da distinção entre duas estratégias de ação política dos movimentos de moradia, a partir da qual, por um lado, se agregaram alguns movimentos que seguem investindo na ocupação de imóveis ociosos para moradia emergencial, especialmente dado o empobrecimento da demanda com que trabalham56. Mas há também uma visão geral sobre o mutirão na chave do sacrifício e da exploração de quem já é explorado. A questão do tempo no mutirão, como comentamos no capítulo anterior, é uma
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imagens 37, 38 e 39 Sarau da Ocupa; biblioteca da Ocupação São João; Sarau realizado no Largo do Paissandú. Fotos: Elaine Campos, 2012.
dimensão que torna insustentável muitas vezes a participação de uma família que não tem onde ficar nesse intervalo. Depois que as obras foram concluídas, ela se afastou daquele movimento vinculado à UMM e envolveu-se com a FLM. Hoje coordena o Movimento dos Sem-teto pela Reforma Urbana (MSTRU), que desenvolve trabalho com grupos de base em São Mateus e é associado à entidade mencionada. Apesar de não residir na OSJ, coordena a ocupação, que foi feita pelos sem-teto associados provenientes dessa região em sua maioria. A coordenação resolve os problemas internos, acompanha o processo jurídico e informa os moradores, coleta a contribuição mensal para manutenção do prédio e para pagar os gastos com a defesa, organiza as assembléias, distribui as famílias nos quartos, entre outras atribuições. Para que haja um projeto de cultura ali dentro, é preciso que haja consenso com a coordenação. Mas Antonia teve uma postura de valorização desta iniciativa. Em suas palavras reconhece: “O sarau começou com 5 pessoas, depois foi 10, depois foi 15, e hoje já é uma referência. […] Como aqui eu sou uma pessoa aberta a cultura, completamente, eu acho que a cultura que vai levar as pessoas a um comportamento mais importante na sociedade, então eu invisto muito nisso, eu quero muito. Então, como eles [Projeto Ocupação Cultural] sabem que aqui é assim, então eles tem mais liberdade aqui também. Nas outras ocupações não é desse jeito. [...] Eu quero que aqui respire cultura, porque eu não tive essa oportunidade e não tenho até hoje. Às vezes vem crítica do movimento, você está deixando sair muito do controle, deixando as pessoas chegarem, dominarem, a gente escuta muito isso.” (Antonia, entrevista concedida à autora em 12/05/2012)
Em muitas ocupações foram feitos diferentes trabalhos culturais, às vezes artísticos, com pessoas que se aproximam por diferentes motivos também. A avaliação das coordenações varia em cada caso. Antonia comentou que já ocorreram casos em que não avalia como positivo o intercâmbio. Como quando uma pessoa solicitou fazer um trabalho, para o qual eles se abriram e depois que acabou, a pessoa sumiu e eles se sentiram usados. Essas experiências são também um aprendizado para distinguir as intenções, mas não há como prever totalmente os impactos de cada atuação.
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57 Ver rapnarua.wordpress.com/2012/08/.
Neste ano, o grupo de Rap Racionais Mcs gravou o clipe de uma música sobre o militante de esquerda radical Carlos Marighela na Ocupação da Rua Mauá. Trata-se de uma exposição na mídia privilegiada, em que há uma valorização daquela luta política. Mano Brown, a frente do grupo, afirmou ter feito aquelas cenas em apoio ao movimento dos sem-teto57. Segundo Ruivo Lopes, que organiza também o programa cultural e apresenta os saraus, para os realizadores do Projeto Ocupação Cultural não se trata de promover o acesso à cultura, mas perceber qual cultura já existe ali, valorizar uma cultura com a qual as pessoas se identifiquem. “a gente não nega a cultura como um todo, mas a gente valoriza o que é nossa, a gente reivindica o que é nosso, então a questão não era o acesso à cultura. Então não era passar algum filme porque as crianças tem que assistir, ou passar qualquer outro tema...[...] ter a liberdade de discutir o que está presenciando, isso é uma mudança de postura mesmo, é uma intenção nossa. Então, quando a gente vê a Dona Maria Helena, a Nazaré, a Vó, as crianças lendo poemas, a gente está colocando os protagonistas nos lugares deles, da ação que eles tão construindo, isso significa pra nós ação cultural, um conceito das experiências do último ano [...] Não é uma questão de acesso, atravessando a rua tem a Galeria Olido, tem milhares de espaços culturais aqui. A questão não é a gente levar, não é mostrar o que é cultura, o que é arte, isso é arte... mas e aquilo que nós temos na São João? A questão é que aqui é arte também, aqui é um espaço artístico, a gente tem que valorizar o nosso. E aprender com os nossos a enxergar os outros, se não a gente cai numa armadilha muito perigosa que é mostrar o que é arte e o que não é arte, arte maior e arte menor, a cultura maior e a cultura menor.” (Ruivo, entrevista concedida a Tânia Helou em 24/08/2012)
O trabalho que esse grupo desenvolveu não se restringe a oficinas pontuais, mas consolidou-se como um programa de atividade em que tentam encadear temas que tenham continuidade, como relatam. Na medida em que Nazaré comenta sobre a dificuldade de participação dos adultos e a grande adesão das crianças, que são as principais beneficiadas com a ação, percebemos também um dado de gênero. Ela identifica
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um grande número de mulheres chefes de família: “Na hora em que estão acontecendo as coisas aqui são mais as crianças e adolescentes que participam, porque todo mundo trabalha aqui no prédio. Tem muito chefe de família aqui, que é mulher, né?! Então elas chegam cansadas, pra fazer a janta, fazer a marmita do dia seguinte, ajeitar as coisas das crianças. Então muitas não participam, mas ficam seguras porque sabem que seus filhos estão aqui embaixo. Então rola isso de chegar super cansada, o dia todo na correria, chega tem que lavar louça, muitas não tem pia, daí tem que descer com as suas panelas, dar banho nas crianças, arrumar comida... é punk... pra ter uma participação intensa das pessoas...” (Nazaré, entrevista concedida a Tânia Helou em 24/08/2012)
A Ocupação
58 O edifício Prestes Maia já fora ocupado antes, mas sofreu reintegração de posse. Tratou-se de sua segunda ocupação. É o maior prédio ocupado para moradia na América Latina, conhecido internacionalmente como referência desta luta.
A história da Ocupação São João começa efetivamente na madrugada do dia 03 de outubro de 2010, quando a primeira mulher foi eleita à presidência do país, Dilma Roussef (PT). Quatro edifícios abandonados foram ocupados nesta data: à Av. São João, 588; à Av. Prestes Maia, 91158; à Av. Ipiranga; e o prédio do INSS, à Av. Nove de Julho. Atualmente os dois primeiros seguem ocupados, os outros sofreram reintegração de posse. As ocupações organizadas pelos movimentos de moradia são apenas um elemento de um trabalho de base amplo realizado pelos movimentos nos bairros. Os edifícios ociosos são levantados por eles para que, num momento (des)favorável, em que as famílias estejam cansadas de esperar respostas dos programas habitacionais, sem ter pra onde ir e o governo não esteja com propostas em andamento para a resolução do problema, organizem sua ocupação. Assim conquistam uma moradia provisória e pressionam o governo ao mesmo tempo.
59 Capítulo II do Título VII da Constituição Federal. 60 A elaboração de um Plano Diretor é exigida a todos os municípios com mais de 20 mil habitantes.
A ocupação de edifícios ociosos é uma estratégia de pressão e luta dos movimentos de moradia de forma geral, pautada na função social da propriedade. Na Constituição Federal de 1988 está previsto no art. 18259 que toda propriedade urbana cumpra sua função social, conforme exigir o Plano Diretor Municipal. Neste último documento, produzido em cadamunicípio60, qualifica-se o significado da “Função Social da
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imagem 40 Grafitti no fosso do edifício da ocupação São João. Acervo pessoal.
61 O Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo está disponível no site da Prefeitura.
Propriedade Urbana”. No caso de São Paulo, o Plano Diretor Estratégico, aprovado em 2002, também subordina a determinação do que constitui essa função às exigências da Lei Orgânica do Município (no art. 151 desta)61. Dentre as determinações do PDE, destacamos o primeiro item do art. 12: “a distribuição de usos e intensidades de ocupação do solo de forma equilibrada em relação à infra-estrutura disponível, aos transportes e ao meio ambiente, de modo a evitar ociosidade e sobrecarga dos investimentos coletivos”. Esta frase contribui para a defesa de uma proposta de reformar os edifícios vazios no centro da cidade, que é a área mais bem provida de infra-estrutura e transporte, além dos equipamentos culturais, educacionais e de saúde. A maioria das famílias que entraram no prédio da Av. São João, 588, viviam em moradia precária ou não podia mais
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arcar com aluguel em São Mateus, onde freqüentavam os grupos de base do Movimento dos Sem-teto pela Reforma Urbana (MSTRU). Este movimento está associado à Frente de Luta por Moradia (FLM), que congrega outros movimentos espalhados pela cidade e no Centro. Nos grupos de base, as pessoas atendiam a reuniões quinzenais que discutiam e informavam esta questão da função social da propriedade, por exemplo, de modo que entram naquele espaço compreendendo minimamente o direito de fazê-lo.
Reciclagem do edifício Segundo a coordenação do movimento, o edifício encontrava-se abandonado há 17 anos. Quando entraram ali havia muito lixo, entulho, água parada, ratos e insetos. É uma irresponsabilidade tremenda do proprietário e do governo municipal deixar que se constitua um foco de doenças como se encontrava o imóvel. Na madrugada em que foi feita a ocupação compareceram cerca de 600 pessoas, homens, mulheres, idosos, crianças. Nas primeiras 24h ficaram presos no local, sem poder entrar nem sair ninguém e muito menos comida ou água. Todos foram aconselhados a levar velas, comida, água, papel higiênico. Assim que a situação se tranqüilizou minimamente, organizaram uma cozinha coletiva e a limpeza do espaço. A instalação de encanamento (água e esgoto) e de luz nos seis andares do edifício são clandestinas e tiveram o custo rateado entre todos. No começo todos comiam a comida feita na cozinha coletiva. Os alimentos vinham de doações e também o que conseguiam arrecadar pedindo no Mercado Municipal, segundo relatou Nazaré Brasil. As primeiras assembléias eram realizadas no espaço da cozinha também, que configurava um espaço mais amplo e coletivo. Com o tempo, quem ainda tinha algum lugar para morar retornou e as famílias que encontravam-se em condições habitacionais mais precárias ficaram. A condição precária pode ser expressa de diversas maneiras, como uma situação em que as pessoas passem fome para poder pagar o aluguel, ou seja a própria casa que é materialmente precária e oferece risco à vida e à saúde das pessoas, ou ainda, houve casos de mulheres que quiseram sair de uma relação matrimonial prejudicial ou violenta e não tinham condições. Esta última situação refere-se a uma questão de classe e também de gênero.
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imagem 41 Edifício Prestes Maia recém ocupado. Foto: Anderson Barbosa, 2010.
Após três meses já havia portanto um grupo mais estabelecido com 82 famílias. Como parte do procedimento encaminhado pela FLM, desenvolveram em assembléia um regulamento do edifício com regras gerais de convivência e para as áreas comuns. Ao longo do tempo foram arrumando e dividindo os espaços para morar e as pessoas foram se fixando nos quartos. No começo cada um dormia onde estivesse livre. A planta do hotel dispõe pequenos cômodos que variam de tamanho (metragem?) e podem ter banheiro ou não. Depois de limpar os quartos, cada um foi ocupando seu próprio espaço. O sinal de que um quarto estava ocupado era a tranca na porta. Uma moradora comentou que, enquanto ela ainda não tinha tranca, em cada dia que chegava tarde do trabalho tinha que procurar um canto para dormir. Aos poucos as pessoas foram trazendo seus eletrodomésticos, móveis, e estabelecendo-se cada um em um quarto. Eventu-
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imagem 42 Vista aérea do edifício que abriga a Ocupação São João. Foto de satélite, Google, 2011.
almente, uma família maior pode ficar com dois quartos, pois em alguns casos há uma porta que conecta dois dormitórios do antigo hotel. Após seis meses, encerrou-se definitivamente a cozinha coletiva e quem ainda não tivesse seus pertences ali não poderia mais ficar, como um comprometimento com a ocupação. Os moradores contam que houve sempre muita solidariedade internamente e às vezes alguém não tinha fogão ou móveis e apareciam doações entre eles mesmos. O encanamento e iluminação de cada quarto também foi feito individualmente. Por isso alguns quartos têm pia, vaso sanitário e até chuveiro, enquanto outros não. Em cada andar há uma lavanderia coletiva com um tanque comum, assim, apesar do apartamento não ter pia por exemplo, podem usar água ali. Há uma certa heterogeneidade tanto na composição das “famílias”, quanto na renda. Por família entende-se uma pessoa associada, uma demanda, que pode ser uma avó e seu neto, uma mãe e seus filhos, um homem ou uma mulher solteira, um casal e vários filhos etc. As rendas variam entre 0 a 3 salários mínimos. Mas se uma família com 6 pessoas e uma pessoa que vive sozinha têm renda mensal de um salário mínimo por exemplo, obviamente os gastos e necessidades serão diferentes.
imagens 43 e 44 Frames do filme “Todas as mulheres do mundo”, de Fernando Knup.
A limpeza do prédio é ainda coletiva. Mas Antonia comenta que acaba sendo mais realizada pelas mulheres:
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pavimento térreo
1º pavimento
2º pavimento
demais pavimentos
imagens 45, 46, 47 e 48 Levantamento das plantas do edifício que abriga a ocupação São João.
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“Homens e mulheres fazem juntos, mas geralmente mais são as mulheres, porque homem trabalha, quando chega de final de semana fala pra mulher assim: ‘– ah! meu bem, não vou não, vai lá você que eu tô muito cansado’. Como se a mulher também não trabalhasse, mas com a mulher não tem tempo ruim. Geralmente é desenvolvido pelas mulheres, a maioria, tudo no movimento a maioria é mulheres. Na coordenação do movimento 90% são mulheres.” (Antonia, entrevista concedida à autora em 12/05/2012)
Nazaré e Vó (Neci), junto aos outros integrantes do Projeto Ocupação Cultural, fizeram diferença no espaço da OSJ. Metade do primeiro andar hoje é ocupada pelo centro cultural, composto de uma biblioteca, uma sala onde acontecem oficinas e cinema, um salão maior onde ocorrem os saraus e as assembléias, o banheiro comum e o ateliê que concentra um apoio para todas as atividades (imagem planta do primeiro andar). Segundo Nazaré, aquela parte do pavimento era largada e cheia de escombros. Então pediu permissão para a coordenação para transformar num espaço comum e de cultura. Alguns moradores queriam ocupar ali com moradia também, mas no fim conseguiram manter o espaço coletivo. A decoração é toda cuidada e sempre há algo novo em cada sarau. Como contou Nazaré, ela já tinha certa experiência por reciclar casas abandonadas que transformava em casas de show no Rio de Janeiro. Percebeu que tem muito prazer em fazer isso e viu que poderia atuar no edifício de uma forma positiva. Sua própria casa tem móveis criados por ela reutilizando gavetas e bases de pias que estava jogadas no prédio. Atualmente trabalha com um grupo de teatro, além do trabalho voluntário na OSJ, em que cuida da cenografia e do figurino. Além de organizarem esse espaço, fazem a manutenção da limpeza do local. Outra moradora, Maria Helena, que agora colabora na coordenação geral comenta que muitas vezes a Vó acaba por fazer a limpeza do térreo e do primeiro pavimento todo sozinha por falta de iniciativa dos outros que compartilham o andar. Cada andar deve ser limpo pelos moradores do mesmo. Ela mora no primeiro, mas neste piso está o banheiro coletivo, o espaço cultural e o fosso, que são áreas comuns. Apesar de haver uma regra sem distinção de gênero, nota-
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-se que na prática é um pouco mais complicado de transpor certas barreiras. Em relação à convivência e ao coletivo que compartilha o edifício, o depoimento de Nazaré aponta para a possibilidade de construção de novos modos de existência. Quando lhe pedi que fizesse um balanço da experiência de habitar a Ocupação ela tirou um saldo positivo apesar de dizer que nem tudo foi um mar de flores...
imagem 49 Dona Neci, “Vó”, limpando a área comum da ocupação São João. Acervo pessoal.
“(...) a gente conseguiu viver em comunidade no coletivo. Aqui eu fico com a minha porta aberta. A gente conseguiu fazer um tipo de moradia que não existe no centro de São Paulo, com famílias que se ajudam, que se querem bem. A gente cria um pouco de amizade. Todo lugar tem fofocas, briguinhas, mas no final, na hora que tem que lutar por uma causa só todo mundo se une. Eu acho que foi muito positivo, eu nunca tinha vivido assim. Eu sempre vivi não conhecendo meu vizinho, numa sociedade fechada. E de repente vir pra uma sociedade aberta eu acho que foi muito legal, foi uma experiência de vida. Pra mim foi uma coisa muito legal mesmo, foi uma experiência maravilhosa estar no movimento, agregando pessoas que eu nunca vi, ajudando pessoas que eu nunca vi e lutando por uma causa, sabendo que essa causa um dia vai ter um retorno positivo pra sociedade. Porque do jeito que está não dá.” (Nazaré, entrevista concedida à autora em 30/08/2012)
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Mulher Luta! Em todos os saraus que estive presente, Dona Maria Helena, 43 anos, estava também. Sempre declamando poesia ou lendo um trecho de algum livro. Na mesa de jantar ao centro de seu apartamento, no Hotel Columbia Palace, enquanto seu filho adolescente assistia à televisão, me contou sua história. Ela nasceu em uma pequena cidade de Alagoas, onde havia somente escola primária. Para completar os estudos após ter feito a quarta série, precisaria viajar até a cidade mais próxima, o que não foi possível devido aàs dificuldades financeiras da família de nove filhos. O pai era analfabeto e a mãe fez até a segunda série, mas ela conta que tinha um desejo muito forte de estudar. Uma tia vivia em São Paulo e trabalhava numa metalúrgica em Diadema com o marido e outra tia trabalhava na Avon, em Interlagos. Elas puderam mandar dinheiro para que Maria Helena, com 15 anos, e um outro irmão que queria trabalhar aqui também pudessem vir. Na década de 1980, chegou em Santo Amaro e o irmão foi para Diadema. Quando estava no Ensino Médio, foi morar em Diadema com os pais, que migraram quatro anos após sua partida, e teve de interromper novamente os estudos por conta da distância percorrida até a escola que se tornou insustentável. Casou-se com o primeiro marido e teve sua filha mais velha. Quando a criança tinha três anos, eles se desentenderam e ela teve que sair daquela casa com a filha. Foi morar então provisoriamente com uma prima. Em São Mateus, o tio do segundo companheiro, com quem já não oficializou a relação, cedeu parte do terreno para o casal. Ali construíram um barraco. Após dois anos, ele foi embora e ela se viu sem perspectivas de melhora, habitando uma moradia precária a dois metros de um córrego. “Eu sempre dependia dos maridos. Tive dois relacionamentos que não foram muito favoráveis e eu sempre naquela intenção ou pensamento de que a família só seria família se tivesse pai, mãe, os filhos. E eu vejo, sou prova disso, de que a família pode ser incompleta, o que não pode e perder o sentido da família, então eu e meus filhos somos uma família. Posso batalhar por uma moradia para os meus filhos, por uma educação... E hoje em dia eu ocupo o espaço que a gente tem na sociedade independente de ter ou não um companheiro. Eu não tenho mais medo não, antes eu me
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sentia retraída, sempre dependente do companheiro.” (Maria Helena, entrevista concedida à autora em 25/09/2012)
Em sua fala, percebe-se que o envolvimento com a luta por moradia estimulou a transformação de sua visão de si mesma, levando-a a deslocamentos subjetivos em direção a sua autonomização. Como diz, ela ocupou, num sentido mais amplo, outro lugar na sociedade. Abandonou a figura tradicional da mulher passiva, dependente do marido, que gira em torno da família e renuncia a si mesma. Assume uma postura de protagonista na própria vida. A história de Maria Helena faz parte da história da migração em busca da melhor qualidade de vida que se supõe encontrar em São Paulo, mas o percurso para que completasse seus estudos foi mais difícil do que poderia imaginar. Agora entrou no curso de Letras, na UNIESP, com apoio do programa federal de financiamento FIES que lhe foi apresentado na OSJ. Ela foi aos poucos se engajando e a entrada mais incisiva na esfera pública, com a participação nos movimentos sociais a impeliu tanto social como subjetivamente a buscar novas formas de expressão feminina, de existir no mundo, de tornar-se o que se é. “A gente tem casos de mulheres que descobriram uma possibilidade de progredir, de se olhar e se ver como uma pessoa capaz de concretizar algo, de ir a luta, de independência, de ser independente. Descobrir que pode ir além dentro dos seus limites e não ficar presa a uma situação aonde ela depende de um homem. Ela olha, ela se enxerga e vê que ela pode permanecer dentro de uma sociedade mesmo sozinha, assumindo a responsabilidade por uma família, que é o meu caso.” (Maria Helena, entrevista concedida à autora em 25/09/2012)
Na fala de Maria Helena, transparece o desejo de sustentar sua própria existência sem o aval de um companheiro, autonomamente, em todos os sentidos, sendo também reconhecida na sociedade como uma chefe de família. Para designar os seus participantes, é muito usada a nomeação de “família” pelos movimentos de moradia. Poderia-se associar este termo à instituição da família burguesa, mas, ao me aproximar da questão, vejo que há um alargamento deste conceito que pode abarcar qualquer tipologia de família, até mesmo um casal ho-
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mossexual, que tem mais dificuldades de inserção nos programas habitacionais, por exemplo62.
62 Na UMM, há uma secretaria específica denominada GLBTT (Gays, Lésbicas, Bissexuais, Transexuais e Travestis) que discute essas dificuldades enfrentadas
Ainda no sexto andar da OSJ, Lucimeire me recebeu no seu apartamento com três de seus cinco filhos. A mais velha, com dezessete anos, trabalhava e o menino de quatorze anos estava na escola. As duas menores estudam de manhã e o pequeno Lucas de dois anos, ainda amamentando, ficava grudado na mãe. Moram num apartamento de dois cômodos, mas sem banheiro. No primeiro cômodo, o sofá divide a área da sala, voltado para a televisão, e atrás dele fica a mesa de jantar, fogão, armário e geladeira. O outro cômodo serve como quarto. Utilizam o banheiro e lavanderia coletivos. Por não ter com quem deixar o filho, conta que parou de trabalhar enquanto ainda vivia em Sapopemba, Zona Leste de São Paulo, quando ele tinha uns sete meses. Desde então somente a filha trabalha e seu salário não bastava para pagar o aluguel e a alimentação. Há sete anos freqüentava as reuniões do grupo de origem e resolveu então vir para a OSJ. Depois de algum tempo de conversa, começamos a falar sobre casos de violência doméstica. Ela comentou que uma moradora daquele mesmo andar fugiu com a filha e as roupas do corpo para lá. Apesar de Lucimeire não ter sofrido agressão física, também não tinha uma boa relação com o marido e a chance de vir para a ocupação possibilitou que saísse daquela situação.
imagem 50 Estêncil feito por Samara e Jô Freitas na parede da OSJ.
“quando eu vim pra cá, eu vim e larguei [o marido], com meus filhos vim pra cá. Só que eu não sofria violência que nem [a outra moradora que fugiu por conta de violência física], de apanhar né, mas é aquele negócio de falta de responsabilidade, bebia, ficava na rua, não se preocupava com as crianças...”(Lucimeire, entrevista concedida à autora em 27/09/2012)
Quando pergunto sobre a participação das mulheres no movimento de moradia, ela comentou sobre a própria experiência de ser a mãe e o pai de seus filhos ao mesmo tempo, o que ocorre com muita freqüência na realidade. E vê no movimento um espaço em que é possível transformar aquela situação pessoal, ainda que com inúmeras dificuldades, destacando a importância também do apoio do coletivo, que se torna como que uma família em suas palavras.
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“(...) hoje em dia, como a gente tem uma certa liberdade de mostrar os nossos objetivos, os nossos desejos, eu acho que a mulher hoje em dia é mais forte do que mesmo o homem. O homem acredita no trabalho braçal dele ali, que está lá pra ele fazer. E a gente não, a gente acredita numa luta, numa confiança de que a gente vai conseguir os nossos objetivos, que a gente está cansada de ser deixada pra trás, de negarem os nossos desejos. Eu acho que por isso que tem muita mulher, a cada dia. Tem muita violência, então a gente acaba ficando sozinha, assumindo a responsabilidade de ser o homem e a mulher ao mesmo tempo pra assumir a família. E então a gente acaba se unindo. Cada dia aparece na televisão uma mulher sendo mal-tratada, sendo morta. E elas vêm a garra da gente, a conquista da gente, mesmo que a gente não tenha a moradia ainda, mas a gente conseguiu sair daquela coisa que estava nos sufocando, daquele casamento mau. Então a gente conseguiu e isso faz com que ela que esteja naquela situação se espelhe na gente e acabe abrindo mão também, criando coragem e se unindo à gente. Eu acho que por isso que tem muita mulher. Então acaba chegando mulher e chegando mulher. E vai ficar muita mulher, porque a gente vai tomar conta do mundo! Esse é o nosso objetivo né?! [risos]” (Lucimeire, entrevista concedida à autora em 27/09/2012)
63 Para entender melhor o uso deste termo: “O termo ‘singularização’ é usado por Guatarri para designar os processos disruptores no campo da produção do desejo: trata-se dos movimentos de protesto do inconsciente contra a subjetividade capitalística, através da afirmação de outras maneiras de ser, outras sensibilidades, outra percepção, etc. Guatarri chama a atenção para a importância política de tais processos, entre os quais se situariam os movimentos sociais, as minorias – enfim, os desvio de toda espécie. Outros termos designam os mesmos processos: autonomização, minorização, revolução molecular, etc.” (idem).
A conquista de um novo espaço de moradia, ainda que provisório, significa para ela também uma morada simbólica e subjetiva, um espaço em que não se sente sufocada pelo casamento. Há ainda a percepção de outras imagens possíveis para representar as mulheres em oposição à veiculada pela mídia, que se transformaram desde a intensificação da luta feminista, nos anos 1970, e com as revoluções moleculares, ou seja, as transformações subjetivas de cada um(a). Nessa passagem, Guatarri explica o conceito: “O que caracteriza os novos movimentos sociais não é somente uma resistência contra esse processo geral de serialização da subjetividade, mas também a tentativa de produzir modos de subjetividade originais e singulares, processos de singularização63 subjetiva.” (GUATARRI & ROLNIK, 1986: 45)
As duas filhas mais novas de Lucimeire, com cerca de 10 anos, participam das atividades do Projeto Cultural, dos saraus e
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oficinas. Ela fala com orgulho da participação das filhas e ela também, quando pode, participa, mesmo com o Luquinhas no colo. Vê como ponto positivo, também em relação à localização, os passeios que as filhas fazem com o pessoal do projeto para assistir a peças de teatro e visitar centro culturais nos arredores. O vídeo “Todas as mulheres do mundo” foi realizado por Fernando Knup, que também realiza atividade culturais na OSJ desde o começo a fim de retratar as mulheres que participam das ocupações no Centro de São Paulo. Outras coordenadoras da FLM reafirmam o potencial de transformação das mulheres que se juntaram a este movimento, seja falando de sua própria experiência, como de modo mais geral: “No meu tempo era bem difícil, as condições eram mínimas. Agora hoje não, a mulher já pode trabalhar fora, já pode estudar, pode ser mãe de família e também como pode ser uma mulher independente, mesmo tendo 5, 6 filhos, hoje a mulher é independente. Eu digo por mim, que eu tive minha independência dentro do movimento de moradia. Eu vi quais que são meus direitos e meus deveres.” (Maria do Planalto, coordenadora do movimento Terra de Nossa Gente, filiado à FLM) “A mulher é muito oprimida dentro de casa, pelo marido, pelos irmãos, pela própria mãe às vezes né, e ela chega no movimento em que as pessoas recebem ela de braço aberto. Ela consegue explorar o potencial dela.” (Janaína Cristina da Silva, coordenadora da Ocupação Mauá) “E a gente percebe que muitas mulheres começam a mudar sua postura e seus maridos também” (Heloisa, coordenadora da FLM)
Esses questionamentos das posturas, aparecem no próprio regulamento colocado em prática nas ocupações. Uma vez que há um combate à violência doméstica, a atenção para a questão estimula que aquela prática seja desnaturalizada e condenada por cada morador. Um assunto que se refere a todos, aos direitos humanos, ganha uma dimensão política ao deixar de ser tratado como um problema pessoal a ser resolvido entre cada casal. A condição de ser casado com alguém, não lhe concede o direito de tratar o outro como queira. Em teoria, é justamente o
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inverso que deveria ocorrer, o amor, o afeto e o desejo de estar junto de alguém podem impulsionar uma relação sem que se dê como uma amarra, uma instituição, como o casamento. “Os homens se educam obrigatoriamente, não vou negar pra você, porque no movimento não se aceitam homens que agridem uma mulher de forma nenhuma, nem física, nem psicológica, nem nada. No movimento não se aceita bater nas crianças. No movimento não se aceita agressão aos idosos.” (Antonia, entrevista concedida à autora em 12/05/2012)
No movimento, de modo geral, houve casos de violência que foram combatidos. Na São João especificamente, Antonia relatou a incidência de dois casos mais problemáticos. Um dos casos acarretou a expulsão do morador e a moradora continuou vivendo ali. A coordenação do movimento não interfere na vida pessoal sem que seja solicitada, mas se percebe algo errado, tem-se uma conversa pessoal até chegar a uma atitude mais drástica. Contudo, isso está regulamentado pelo movimento. É uma regra que prioriza as mulheres, as crianças e os idosos.
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Considerações finais Gostaria de encerrar esse trabalho colocando um paradoxo com que os movimentos se deparam na atualidade e que percebi ao longo dessa pesquisa. Trata-se das formas da autogestão, constantemente pressionadas e ameaçadas de serem capturadas pelos dispositivos de controle do neoliberalismo. Para fundamentar meu argumento, recorro ao breve, porém, contundente texto de Gilles Deleuze intitulado “Post-scriptum sobre as sociedades de controle”, de 1990. Segundo o filósofo, as sociedades contemporâneas deixam, aos poucos, de serem constituídas pelo poder disciplinar para se transformarem em “sociedades de controle”. Com isso, passa-de de um mundo da individualização, da normatização, da segmentarização espacial dos corpos e, sobretudo, da fabricação de “corpos dóceis” (FOUCAULT, 1977), para um momento em que o capitalismo exige indivíduos criativos e a flexibilização das formas sociais e espaciais. No neoliberalismo, demanda-se circulação constante de mercadorias, indivíduos, ideias, práticas: é o modelo da empresa, substituindo a fábrica. Segundo Deleuze, uma nova forma de poder se manifesta: “A fábrica constituía os indivíduos em um só corpo, para dupla vantagem do patronato que vigiava cada elemento na massa, e dos sindicatos, que mobilizavam uma massa de resistência; mas a empresa introduz o tempo todo uma rivalidade inexpiável como sã emulação, excelente motivação que contrapõe os indivíduos entre si e atravessa cada
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um, dividindo-o em si mesmo. (…) Nas sociedades de disciplina, não se parava de recomeçar (da escola à caserna, da caserna à fábrica), enquanto que nas sociedades de controle, nunca se termina nada, a empresa, a formação, o serviço, sendo os estados metaestáveis e coexistentes de uma mesma modulação, como que de um deformador universal” (DELEUZE, 1990: 221)
Finalizando esse texto, ele se pergunta se os movimentos sociais terão a capacidade de encontrar novas formas de resistência a esse outro tipo de dominação mais sofisticado e mais perverso. Essa discussão ajuda a problematizar as práticas dos movimentos estudados. De um lado, pude constatar a riqueza das relações estabelecidas entre os participantes e também com os de fora, como eu, relações solidárias, filóginas, amigas, o que foi estimulante e gratificante, no sentido de alimentar as esperanças de transformação. Especialmente nas conversas com Graça, Rose, Maria Helena, me emocionei diante da maneira como puderam revolucionar suas próprias vidas, transpondo as fronteiras do político e do subjetivo, que se explicita em suas narrativas. São mulheres que conquistaram o direito à cidade, em certos aspectos, libertando-se do confinamento doméstico, socialmente legitimado. E também ao encontrar experiências de projetos político-culturais que buscam inventar alternativas na formação de indivíduos éticos. Por outro lado, alguns aspectos da organização provocam incômodo. A necessidade de produzirem regulamentos e um sistema de premiação para orientar as condutas indica, bem ou mal, um investimento em formas de controle, o que remete à fragilidade do próprio movimento, que não consegue se organizar mais livremente. A questão é até que ponto esses procedimentos de controle do grupo não repõem aquilo que se critica, as próprias formas de controle produzidas pelo capitalismo hoje como aponta Deleuze; até que ponto o movimento se mantém fora da lógica da empresa? Não se contradiz assim as próprias experiências libertárias de formação da juventude? Não é meu objetivo responder a essas perguntas, que demandam uma reflexão muito mais aprofundada e coletiva, não podendo ser respondidas imediatamente. Ainda assim, gostaria de apontar que se a dominação capitalista se torna ainda mais sofisticada em nossos dias, outras formas de resistência política, social e cultural também se fazem presentes dentro e
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fora do país. Destaco, nessa direção, as transformações positivas que se podem constatar nas relações de gênero e, em especial, no lugar que as mulheres e a própria cultura feminina ganharam socialmente, tanto quanto no imaginário cultural, como já apontava Simmel, um século atrás. Se a violência doméstica, de gênero ou contra as mulheres continua ocupando as páginas da imprensa e da mídia, o que é profundamente lamentável, não há como negar que as mulheres ampliaram enormemente seus espaços na vida social, na academia, na política e inclusive no interior dos movimentos sociais. As mulheres que participam desse trabalho, tanto entrevistadas como presentes na bibliografia, são exemplos dessas mudanças. Não se trata, a meu ver, de idealizar as mulheres e supor que a simples entrada feminina no mundo público já por si signifique uma mudança completa dos modos autoritários e misóginos de existência que herdamos. No entanto, é importante perceber que essa presença de pessoas que não foram educadas para participar de exércitos e fazer guerra, mas que têm sido formadas para o cuidado com o outro acima de tudo, introduz importantes rupturas, por pequenas que sejam, e que estas fazem toda a diferença. Os homens que, por sua vez, rejeitam o modelo masculino a eles destinados também podem se libertar de uma posição hierárquica, bélica, dura, quase desumanizada. As relações de gênero afinal, atravessam e produzem a todos.
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Fontes e arquivos Entrevistas realizadas Maria das Graças Xavier (Graça), coordenadora da UMM-SP e CMP e da Secretaria de Mulheres na UMM-SP e UNMP, em 07/05/2012. Miriam Hemógenes, coordenadora do MMC, em 09/05/2012. Antonia do Nascimento, coordenadora geral do MSTRU e da OSJ, em 12/05/2012. Nazaré Brasil, Projeto Ocupação Cultural, moradora da OSJ, em 30/08/2012. Maria Helena, moradora da OSJ, em 25/09/2012. Lucimeire, moradora da OSJ, em 27/09/2012. Ana C. B. Moraes, Defensoria Pública do Estado de São Paulo, em 01/10/2012. Roseane M. Q. Pinheiro (Rose) e Cristiane G. Lima (Cris), Associação de Construção Comunitária Paulo Freire, em 20/10/2012. Nazaré Brasil, Ruivo Lopes e Fernando Knup, Projeto Ocupação Cultural, entrevista concedida a Tânia Helou, em 24/08/2012.
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Filmes e vídeos “Dia de Festa”, Toni Venturi, 2005. “Todas as mulheres do mundo”, Fernando Knup, 2011. “Entretempos”, Henri Gervaiseau, 2011. “Capacetes Coloridos”, Paula Constante, 2007.
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anexo Lista da ocupações de imóveis vazios na Região Central de São Paulo por movimentos organizados, considerando-se os subdistritos: Sé, República, Liberdade, Bela Vista, Consolação, Bom Retiro, Cambuci, Santa Cecília, Belém, Pari, Brás, Móoca.
1997 1. Casarão Santos Dumont (Alameda Nothman x al. Cleveland) (Secretaria da Cultura) Fórum dos Cortiços (MSTC passou a coordenar posteriormente) 08/03/97 – 05/04/2001 atual Museu da Energia 2. Pirineus, 117 (imóvel da USP) Fórum dos Cortiços 02/04/97 transformado em HIS pela CDHU pelo PAC, 2003 3. Casarão Rua do Carmo, 88 (Ed. Secretaria da Fazenda) ULC 13/06/97-06/08/97 53 dias ocupado atual FAZESP 4. INSS (av. 9 de julho, 570) Fórum dos Cortiços e MSTC 02/11/97-2003 existe projeto do PAR
5. Ed. Secretaria da Cultura (rua do ouvidor, 63) ULC e MMC 12/12/97-12/11/05 6. Ed. Maria Paula, 171 Fórum dos Cortiços 1997 não se sabe ao certo se foi ocupado ou so receberam pronto obra concluída PAR 1998 7. Floriano Peixoto, 60 (CEF) MMC 25/12/98-2001 8. Hospital Matarazzo (alameda rio claro, 190) Fórum dos Cortiços 05/10/98-08/99 comprado por grupo empresarial Allard para transformar em hotel. 9. Riachuelo, 275 MTSTRC 13/11/1998-03/99
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reformado Locação Social – PEHP (COHAB) 1999 10. Frederico Abranches,? Fórum dos Cortiços 03/01/99-08/01/99 11. Hospital N. S. da Conceicao (21 de abril, 569) privado MTSTRC 03/99-?? projeto PAC CDHU 12. Hospital N. S. da Conceição (21 de abril, 569) privado ULC (ocupação da ocupação) 03/99-?? projeto PAC CDHU 13. Ed. Ana Cintra, 123 Fórum dos Cortiços e MSTC 13/05/99-20/01/04 reformado CDHU 14. Paulino Guimarães, 224 (Secretaria estadual da fazenda) publico Fórum dos Cortiços e MSTC 07/99-2001 15. Banco Nacional (rua Libero Badaró,89) privado MMC 13/08/99-28/01/00
16. Rua da Abolição, 431 Fórum dos Cortiços (ocupação simultânea da UMM) 24/10/99-07/05 demolido
2000
17. Rua do gasômetro, 660 (ocupação simultânea da UMM) ULC 24/10/99-???
2001
23. Duque de Caxias, 401 MSTC 04/11/00-24/11/00
24.Presidente Wilson, ? MTSTRC 01/06/01-02/06/01
18. TRT Av. Marques de São Vicente, 235 (ocupação simultânea da UMM) UMM 24/10/99-11/99
25. rua Canindé, 85 MSTC MMC ULC 21/07/01-23/07/01 empreendimento CDHU/Pari A
19. Ed. Labor (rua brigadeiro Tobias, 300) Fórum dos Cortiços e MSTC 24/10/99-06/10/01 reformado PAR
26. Bráulio Gomes, 139 MMC MSTC ULC 01/11/01-02/11/01 (atual anexo da biblioteca Mario de Andrade)
20. Hotel São Paulo (pç. da bandeira, rua são Francisco, 113) Fórum dos Cortiços 07/11/99 reformado PAR em 2006
2002
21.Ed. Olga Benário (av. Celso Garcia, 787) ULC 03/12/99 reformado PAR em 2002 22.Conde São Joaquim, 163 MTSTRC 99-28/06/05
27. CEF (pça Roosevelt) ocupação simultânea UMM UMM 11/05/02-??? 28. INSS (Rangel pestana, 1099) ocupação simultânea UMM ULC 11/05/02-??? projeto em andamento para HIS
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29. Conselheiro Crispiniano, 379 ocupação simultânea UMM MSTC 11/05/02-23/06/02 30.Encol endereço incompleto (não está no mapa) UMM(ocupação simultânea UMM) 11/05/02-12/05/02 31. Joaquim Piza, 150 MTSTRC 08/06/02-??? 32. Mercúrio, 395 MTSTRC 29/06/02-??? demolido 33. Prestes Maia, 911 MSTC 04/11/02-15/06/07 ocupado atualmente pela FLM
ocupação simultânea MSTC MSTRC 21/07/03-24/07/03
44. Barão de Iguape MTSTRC 31/07/04-???
37. Hotel Santos Dumont (rua Mauá,340) ocupação simultânea MSTC MSTRC 21/07/03-26/08/03
45. Monsenhor de Andrade, ? MMRC 17/09/04-21/09/04
38. Hotel terminus (av. Ipiranga, 741) ocupação simultanea MSTC MSTRC 21/07/03-01/08/03 39. Rua rego freitas, MSTC MSTRC 21/07/2003 algumas horas 40. Plínio ramos, 112 MMRC 03/03-16/08/03 2004
34. INSS Rodolfo Miranda,76 MSTC 19/11/02-17/12/02
41. Tenente pena, 297 ULC 03/04-15/09/05
2003 35. Rua aurora, 579 (edifício santa Inês) ocupação simultânea MSTC MSTRC 21/07/03-15/10/03 36. Hotel Danúbio, Brigadeiro Luis Antonio,1099,
42. Batalhão da PM/ Pq. D. Pedro II MSTC 19/05/04 43. Deocleciana, 28 MTSTRC 07/04-09/04
46. Hotel Novo Milênio (rua treze de maio, 1037) MTSTRC 24/10/04 47. Rua rego Freitas, 527 ocupação simultânea FLM MSTC 31/10/04-10/11/04 48. Rua Sólon, 915 ocupação simultânea FLM MSTC 31/10/04-??? 49. INSS (Rua conselheiro Crispiniano, 125) ocupação simultânea FLM MSTC 31/10/04-01/11/04 50. Rua Conselheiro carrão, 202 (ocupação simultânea FLM) MSTC 31/10/04-01/11/04 51. Rua B. de Piracicaba, 125 ocupação simultânea FLM MSTC 31/10/04-01/11/04
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52. CEF (pça Roosevelt) MSTC MSTRC 07/11/04-08/11/04
simultânea UMM 07/09/05 por algumas horas projeto PAC CDHU
26/03/03-ocupado (com liminar de reintegração de posse) 2007
2005 53. INSS (Rangel pestana, 1099) ocupação simultânea UMM ULC 07/03/05 projeto em andamento para HIS 54. INSS (av. 9 de julho, 570) FLM 02/05/05 por algumas horas existe projeto do PAR 55. Colégio Campos Salles (rua são Joaquim, 288) MTSTRC 23/05/05-20/07/05 56. Joaquim Carlos, 76 ocupação simultânea FLM 03/11/05 por algumas horas reformado PAR 57. CDHU/coronel Antonio Marcelo, 552 ocupação simultânea FLM 03/11/05 por algumas horas 58. Cesário Alvim, 693 ocupação simultânea FLM 03/11/05 por algumas horas 59. Hospital N. S. da Conceição (21 de abril, 576) ocupação
60. terreno COHAB metro Belém (Av. Alvaro Ramos?) simultânea UMM 07/09/05 por algumas horas projeto de Locação Social 2006 61. Hospital N. S. da Conceição (21 de abril, 576) MTSTRC 01/04/06-??? projeto PAC CDHU 62. INSS (Rangel pestana, 1099) UMM 24/04/06-??? 63. Consolação, 1813 MSTC 03/06/08 por algumas horas 64. Álvaro Ramos, (terreno Cohab Metrô Belém?) UMM 28/06/06 65. Rua Conselheiro carrão, 202 ocupação simultânea FLM MSTC 29/10/06-por algumas horas 66. Hotel Santos Dumont (rua Mauá,340) MSTC MMRC
67. São Vito MSTC MMRC 09/04/07 por algumas horas demolido 68. CEF (pça Roosevelt) ocupação simultânea UMM Fórum dos cortiços 10/04/07-11/04/07 69. Casper Líbero, 88 ocupação simultânea UMM 10/04/07-??? 70. INSS (Rangel pestana, 1099) ocupação simultânea UMM 10/04/07-??? 71. INSS (av. 9 de julho, 570) MSTC, ocupacao simultanea FLM 27/08/07 por algumas horas existe projeto do PAR 2008 Não foram encontradas notícias 2009 72. INSS – 9 de julho MSTC ocupacao simultanea FLM 13/04/2009-?
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73 rua Canindé, 85 MSTC 06/10/2009-? empreendimento CDHU/Pari A
São João, 601) Ocupação simultânea FLM, UMM MSTC 07/09/11-18/11/2011
03/09/12-05/09/12
82. Rua Vitória (c/ Rua Conselheiro Nébias ) Ocupação simultânea FLM, UMM 07/09/11-09/02/12
89. Av. Ipiranga, 879 Ocupação simultânea FLM 28/10/12
88. Rua José Bonifácio, 137 Ocupação simultânea FLM 28/10/12
2010 74. Prestes Maia, 911 ocupacao simultanea FLM 26/04/2010 ocupado ainda 75. 9 de Julho, 1084 26/04/2010-? 76. Av. Ipiranga, 799 Ocupação simultânea FLM 04/10/10-25/10/10 77. Prestes Maia, 911 Ocupação simultânea FLM 04/10/10ocupado
83. Hotel terminus (Av. Ipiranga, 741) Ocupação simultânea FLM, UMM 07/09/11-27/08/12 84. Avenida São João, 628 (São João II) Ocupação simultânea FLM, UMM 07/09/11-02/02/2012
78. Av. São João, 588 Ocupação simultânea FLM 04/10/10 ocupado
85. Avenida São joão, 613 Ocupação simultânea FLM, UMM 07/09/11-10/11/2011
79. INSS (9 de Julho, 570) Ocupação simultânea FLM 04/10/10-18/10/10
86. Av. Rio Branco, Ocupação simultânea FLM, UMM 07/09/11- até hoje ocupado FLM
80. Rua Carlos Garcia MSTC 31/05/2010-? 2011 81.Hotel Aquarius (av.
2012 87.INSS (9 de julho, 570) Ocupação simultânea FLM, UMM
90. Av. São João, 253 Ocupação simultânea FLM 28/10/12-29/10/12 91. Rua das Palmeiras x Rua Helvetia Ocupação simultânea FLM 28/10/12 92. Av. Prestes Maia, 576 Ocupação simultânea FLM 28/10/12 93. Rua Quintino Bocaiuva, 242 Ocupação simultânea FLM 28/10/12 94. Alameda Cleveland, 195 Ocupação simultânea FLM 28/10/12 95. Rua Helvetia, 55 Ocupação simultânea FLM 28/10/12 96. Av. São João, 288 Ocupação simultânea FLM 28/10/12
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Rosai por nós (Alice Ruiz)
Nossa Senhora da flor roxa rosai por nós assim na vida como no chão a primavera de cada ano nos dai hoje encantai nosso jardim assim como encantamos o do vizinho e não nos deixeis cair na tentação de esquecer tuas flores