Por que museu?

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Por que museu? Uma reflexão acerca das intervenções arquitetônicas, com fins museológicos, em edifícios patrimoniais Autora: Marina Rebelo Orientadora: Ana Elisabete Medeiros

Brasília, 2016

Imagem: Antoine Geiger

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Universidade de Brasília Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Departamento de Teoria e História Disciplina Ensaio Teórico

Marina Nascimento Rebelo

Por que museu? Uma reflexão acerca das intervenções arquitetônicas, com fins museológicos, em edifícios patrimoniais

Brasília, 2016

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Marina Nascimento Rebelo

Trabalho da disciplina de Ensaio de Teoria e História de Arquitetura e Urbanismo apresentado à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília, como requisito parcial para obtenção do título de Arquiteta e Urbanista. Orientadora: Ana Elisabete Medeiros Banca: Eduardo Rossetti e Maria Cecília Gabriele

Brasília, 2016

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Agradecimentos

Gostaria de agradecer e dedicar este trabalho aos meus pais, que sempre me apoiaram, meus amigos de infância, da faculdade e do Projeto PĂŠ na Estrada. Meu muito obrigada a minha orientadora Ana Elisabete e a professora, e amiga, Camila Sant’Anna.

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Sumário Introdução

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1. O que é “museu”? 1.1.

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O museu no campo da museologia

1.2. O museu no campo da arquitetura

2. Museu e Práticas Preservacionistas

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................... 33

2.1. O Museu enquanto objeto de preservação

........... 34

2.2. A Prática Preservacionista como política de museus ... 38

Considerações finais

Bibliografia

............................................ 46

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Introdução

Fonte: Carnegie Museum of Art, disponível em: http://wesa.fm/post/essentialpittsburgh-have-we-lost-ability-appreciate-art-museums

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“Nas sociedades tradicionais, o passado é venerado e os símbolos são valorizados porque contêm e perpetuam a experiência de gerações. A tradição é um meio de lidar com o tempo e o espaço, inserindo qualquer atividade ou experiência particular na continuidade do passado, presente e futuro, os quais, por sua vez, são estruturados por práticas sociais recorrentes. ” (GIDDENS: 1990, p. 37-8).

A consolidação dos campos da Arquitetura e da Museologia ocorreu simultaneamente a partir do século XVIII. Porém, desde o início do século XX, as disposições sobre a preservação de objetos patrimonializáveis e musealizáveis, passaram a exigir a realização de ações em níveis interdisciplinares, o que ainda não está ocorrendo. Segundo Guimaraens (GUIMARAENS, 2010), a arquitetura é um ato criativo cuja finalidade seria a radical renovação do espaço físico existente, observadas ou não as estruturas preexistentes, enquanto a museologia é uma disciplina em aberto, fundamentando-se em releituras constantes da história e da memória das ações humanas. Nessa relação, muitas vezes conflituosa, entre arquitetura e museologia o que se percebe é que, em meados do século XIX, a arquitetura era criada para museus, como por exemplo, o Metropolitan Museum of Art (Nova York) e a Pinacoteca do Estado

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(São Paulo). Após esse período, no século XX, a arquitetura passou a ser ocupada por museus, como é o caso do Museu da Inconfidência (Ouro Preto) e do Museu d’Orsay (Paris), ambos sediados em edifícios cuja função primeira era, respectivamente, Casa de Câmara e Cadeia e Estação Ferroviária. No final desse mesmo século e início do século XXI, o cenário cultural e turístico do ocidente sofreu um boom e edifícios com fins museológicos se tornaram a nova expressão de grandes arquiteturas criadas para e ocupadas por uma nova forma de museu cujo conceito se aproxima daquele de Centro Cultural, como o Museu Guggenheim (Bilbao) e o CCSP (Centro Cultural São Paulo). Concomitantemente a essa tendência, observa-se, ainda, na contemporaneidade, que a relação arquitetura e museologia encontra um terreno fértil nas intervenções patrimoniais: arquitetura ocupada por museus ou por museus como centros de cultura. Segundo MONTANER (2003), existe um novo tipo de museu, provido de uma lógica contemporânea, chamado “museu-museu”, que vem a ser um museu locado em um edifício com uso primeiro distinto ao último. Isso limita tanto o museólogo quanto o arquiteto:

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“A lógica museu-museu é aquela que se aplica com maior frequência nas remodelações de edifícios existentes. O fato de ter de partir de edifícios históricos, de estruturas tipológicas existentes, delimita as possibilidades criativas dentro dessa lógica existente. É o caso dos velhos monumentos que, há décadas, se transformaram em museus e que é necessário modernizar; da intervenção em museus já existentes, mas que devem ser reestruturados e ampliados; e da longa lista de edifícios antigos – palácios, fábricas, hospitais, quartéis – convertidos em museus e centros de arte. “ (MONTANER; 2003: p. 73).

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No contexto nacional, é possível perceber o aumento do número de museus ao longo dos últimos dois séculos e evidenciar que este boom cultural também aconteceu aqui no Brasil. De acordo com JUNIOR & CHAGAS (2007) o número de museu brasileiros no século XX era de 12 e na virada desse século para o atual este número já estava em 2.440. “O Brasil iniciou o século XX com cerca de 12 museus e chegou ao século XXI, de acordo com os dados do Cadastro, com 2.440 unidades museológicas. Registre-se, no entanto, que o processo de

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Os destaques em itálico na citação acima foram adicionados para dar ênfase em frases que se consideram mais relevantes ao tema do Ensaio, os destaques não constam no texto original de MONTANER.

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mapeamento e cadastro dessas instituições ainda não está concluído e que, por isso mesmo, o número dos museus existentes no país ainda poderá ser aumentado. Estes dados já nos permitem compreender que no Brasil, diferentemente da Europa, o século dos museus é o século XX e não o século XIX. ” (JUNIOR &; CHAGAS; 2007: p. 30)

E mais recentemente o número de unidade museológicas cadastradas, segundo o IBRAM (2011) chegou a 3.025. Em relação à ascensão cultural e turística, nesse mesmo período, segundo KÜHL (2015), a preservação passa a ser entendida como um ato de cultura. Ou seja, preserva-se e restaura-se hoje por razões culturais - pelos aspectos formais, documentais, simbólicos e memoriais; científicas - pelo fato de os bens culturais serem portadores de conhecimento em vários campos do saber, abarcando tanto as humanidades quanto as ciências exatas e biológicas e éticas; e por não se ter o direito de apagar os traços de gerações passadas e privar as gerações presentes e futuras da possibilidade de conhecimento e de suporte da memória de que esses bens são portadores.

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Mas além disso, existe um processo de utilização da cultura e memória social2 como política pública de globalização das cidades nacionais como objetos turísticos, como foi explicado por JACQUES (2003): “No centro das cidades ditas históricas, o que ocorre ainda é mais inquietante, uma vez que essas áreas, a princípio, deveriam preservar a memória cultural de um lugar, de uma população e, muitas vezes, de toda uma nação. O modelo de gestão patrimonial mundial, por exemplo, segue a mesma lógica de homogeneização, ao preservar áreas históricas de forte importância cultural local, pois seguem normas de intervenção internacionais, que não são adaptadas de acordo com as singularidades locais. Assim, esse modelo acaba tornando todas essas áreas – em diferentes países de culturas das mais diversas - cada vez mais semelhantes entre si. Essas áreas não somente se parecem cada vez mais, como se parecem cada vez mais com seus próprios cartões-postais, que também seguem um padrão internacional. É um processo de

“O campo de estudos e de pesquisas sobre a Memória Social tal como formulado pela Escola Sociológica Francesa, em especial por Maurice Halbwachs, introduziu a questão de que, em todas as sociedades, se verifica a dinâmica entre lembranças e esquecimentos, ou seja, de que todas as sociedades precisam lembrar-se de umas coisas e esquecer outras, tendo em vista a necessidade de atualização permanente dos laços sociais. Do ponto de vista das Ciências Sociais, a Memória Social está, pois, indissoluvelmente ligada ao aspecto holista da sociedade, o que o antropólogo Louis Dumont qualificou de “communitas” – a feição de agregação entre os indivíduos no espaço e no tempo. ” (GONÇALVES; 2007; p. 263) 2

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museificação3 urbana em escala global: os turistas visitam o mundo todo como se visitassem um grande e único museu (JEUDY, 2001). A memória da cultura local – o que a princípio deveria ser preservado – perde-se em prol da criação de grandes cenários para turistas. ” (JACQUES; 2003: p. 33 e 34)

Esse processo de museificação urbana se dá, entre outros motivos já citados pela autora, também pela institucionalização de museus e mais museus nas cidades - que, muitas vezes, ocupam edifícios históricos e com simbolismo para a população local - com o objetivo de internacionalizar a cidade como polo turístico e “cultural”. Diante desse cenário, parte-se da constatação de que o debate entre os dois campos do conhecimento – arquitetura e museologia interessa a museólogos, arquitetos, urbanistas, instituições que atuam nessas áreas, além do público em geral. Além do mais, as

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“Segundo o sentido comum, a musealização designa o tornar-se museu ou, de maneira mais geral, a transformação de um centro de vida, que pode ser um centro de atividade humana ou um sítio natural, em algum tipo de museu. A expressão “patrimonialização” descreve melhor, sem dúvida, este princípio, que repousa essencialmente sobre a ideia de preservação de um objeto ou de um lugar, mas que não se aplica ao conjunto do processo museológico. O neologismo “museificação” traduz a ideia pejorativa da “petrificação” (ou mumificação) de um lugar vivo, que pode resultar de um processo e que encontramos em diversas críticas ligadas à ideia de “musealização do mundo”. De um ponto de vista mais estritamente museológico, a musealização é a operação de extração, física e conceitual, de uma coisa de seu meio natural ou cultural de origem, conferindo a ela um estatuto museal – isto é, transformando-a em um “objeto de museu” que se integre no campo museal. ” (DESVALLÉES & MAIRESE, 1993, p. 58)

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intervenções atuais, com fins museológicos, em edifícios patrimônio, é um tema de interesse pessoal suscitado pela questão: por que os arquitetos, quando interveem em um edifício tombado, optam pela mudança de uso, este sendo o museu? É certo que, segundo a Carta de Amsterdã (ICOMOS, 1975), o patrimônio deve possuir um uso atual para a sociedade contemporânea, e que a Carta do Restauro (ICOMOS, 1972) incentiva a introdução de novos usos, desde que compatíveis com as características tipológicas do edifício e com os interesses históricos e artísticos por ele suscitados. Entretanto, por que mais um museu e não um outro uso qualquer? Hoje, quase 83% dos museus brasileiros estão locados em edifícios cujo uso original era outro que não museu, e, além disso, 29% destes edifícios eram tombados em pelo menos 1 das 3 instâncias – local, nacional e/ou internacional. Se nos séculos XIX e XX vivenciar o museu era um programa de lazer e indicador de um status social, no século XXI, as pessoas parecem ir

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ao museu em vez de o visitarem e o vivenciarem4 ou ao seu acervo. Afinal, é possível perceber, presencialmente, o número de espectadores que estão dentro de um museu, ou centro cultural, mais para tirar foto das obras do que para apreendê-las. Outro ponto passível de observação é a escassez de bancos e espaços destinados à contemplação das obras nos museus. Seriam esses dados, então, uma adaptação a este novo modo de “vivenciar” os museus? Porém, o universo populacional, no Brasil, que vai a museus, ainda é muito baixo, um dado que é inverso ao crescimento do número de museus nos últimos anos. No contexto geral da federação, o SIPSIPEA - Sistema de Indicadores de Percepção Social do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada do Governo Federal (IPEA, 2010), afirma que 70% da população brasileira não vai a museus. Além disso, segundo a Pesquisa de Orçamentos Familiares de 2008/09, realizada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), a despesa monetária mensal familiar média brasileira com cultura é de R$26,00, dos quais R$1,07 é destinado a museus, 4

Segundo o dicionário Michaelis vivenciar é: viver, sentir em profundidade.

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teatros e shows. É certo que os motivos de não ida da população aos museus são vários, porém, o governo brasileiro tem feito um esforço para que a questão financeira tenha menor influência na tomada de decisão. De acordo com o IBRAM (2011) 80% dos museus brasileiros não cobram ingressos de entrada: “No que diz respeito à cobrança de ingresso, observa-se que são poucos os museus que possuem tal prática e, nestas instituições, os valores cobrados são, geralmente, de caráter simbólico (Gráfico 18.1). A não cobrança de ingresso pode ser compreendida como uma estratégia decorrente de políticas de incentivo à visitação e à formação de público de museus. Na Pesquisa Perfil-Opinião60, realizada em 11 museus no Rio de Janeiro, entre junho e agosto de 2005, constatou-se que os custos de transporte e alimentação eram fatores que dificultam a visita a museus para 39,9% dos entrevistados, pois esse grupo não dispunha de recursos extras disponíveis em seus orçamentos para essa atividade. Nesse sentido, entende-se que a não-cobrança de ingresso em museus, ou a cobrança de valores simbólicos, visam incentivar e facilitar o acesso de diferentes segmentos de público. ” (IBRAM: 2011, p.88)

Diante desse cenário de pouca valorização da cultura e dos museus como programas sociais por parte da população brasileira,

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o que leva a esta prática dos arquitetos de intervenção patrimonial de reuso e adaptação com funções museológicas, no Brasil, hoje? No espaço temporal de um Ensaio Teórico não é possível uma investigação que pretenda exaurir o tema, de modo a responder da forma a mais completa possível as questões anteriormente postas. Assim, o que aqui se pretende é, a partir de um referencial teórico, trazer à tona, algumas questões que possam ter contribuído, nos campos da museologia e da arquitetura, para essa escolha do museu como programa por excelência, tanto da nova arquitetura, quanto das intervenções em bens culturais, pelos arquitetos. Isso porque parte-se da hipótese de que algumas dessas questões podem e devem ser entendidas como transversais aos campos da arquitetura e da museologia. Investiga-se de que maneira os debates em torno da prática preservacionista podem fornecer pistas para o entendimento do porquê mais um museu. Tendo o contexto apresentado em vista, o trabalho se estrutura em duas partes. A primeira apresenta considerações a respeito do

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museu, enquanto instituição e suas relações com a arquitetura e a definição do campo da museologia. A segunda aproxima essas abordagens às questões do museu como objeto de prática preservacionista, de um lado e, de outro lado, da prática preservacionista como uma política pública do campo museologia.

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1. O que é “museu”? Fonte: Metropolitan Museum of Art, disponível em: https://wrongsideofthecamera.wordpress.com/2015/08/page/3/

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1.1 Museu no campo da museologia “Os museus são instituições vivas onde muitas atividades são planejadas e executadas anualmente. Também estão constantemente produzindo novos programas e atividades. ” (SILVA: 2013, p. 45)

As coleções de quadros, de esculturas, de objetos de arte e de relíquias preciosas datam da Grécia Antiga e de Roma. Existiram, ainda, na Idade Média, nos mosteiros e igrejas, e no Renascimento, nos palácios dos soberanos e grandes senhores. Em nenhum desses tempos e lugares, entretanto, teve a designação de museu, eram conhecidas como Mouseidon.5 O termo foi pouco usado durante a Idade Média, reaparecendo por volta do século XV, no Renascimento, quando o colecionismo se tornou moda em toda a Europa. As coleções principescas, surgidas a partir do século XIV, passaram a ser enriquecidas, ao longo dos séculos XV e XVI, de objetos e obras de arte da antiguidade, de

Mouseion denominava o templo das nove musas, ligadas a diferentes ramos das artes e das ciências, filhas de Zeus com Mnemosine, divindade da memória. 5

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tesouros e curiosidades provenientes da América e da Ásia e da produção de artistas da época, financiados pelas famílias nobres. Além das coleções principescas, surgiram nesse período os Gabinetes de Curiosidade e as coleções científicas, formadas por estudiosos que buscavam simular a natureza em gabinetes, reuniam grande quantidade de espécies, objetos e seres exóticos vindos das explorações marítimas. Muitas dessas coleções, que se formaram entre os séculos XV e XVIII, se transformaram posteriormente em museus, tal como hoje são concebidos. Entretanto, na sua origem, elas não estavam abertas ao público e destinavam-se à fruição exclusiva de seus proprietários e de pessoas que lhes eram próximas. Somente no final do século XVIII, foi possível o acesso do público às coleções, marcando o surgimento dos grandes museus nacionais. A concepção atual de museu surgiu precisamente na conjuntura da Revolução Francesa. Segundo CHOAY (2001), a proteção ao patrimônio francês, com a montagem de um aparato jurídico e técnico, teve origem nas instâncias revolucionárias através de decretos e instruções, procedimentos de preservação desenvolvidos posteriormente no século XIX. A intenção era instruir a nação,

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difundir o civismo e a história, instalando museus em todo o território francês, pretensão que não se efetivou, à exceção do Louvre que, aberto em 1793, já reunia importante acervo artístico. Concebidos dentro do “espírito nacional”, esses museus nasciam imbuídos de uma ambição pedagógica — formar o cidadão, através do conhecimento do passado — participando de maneira decisiva do processo de construção das nacionalidades. Conferiam um sentido de antiguidade à nação. Além das antiguidades nacionais, muitos desses museus reuniram acervos expressivos do domínio colonial das nações europeias no século XIX, acervo tanto artístico e cultural quanto natural. Por exemplo, no Brasil, as inúmeras viagens e pesquisas de naturalistas estrangeiros resultaram em relatos de viagem, com descrições da fauna, da flora e dos nativos. O surgimento das primeiras instituições museológicas no Brasil também se dá no século XIX. Entre as iniciativas culturais de D. João VI está a criação, em 1818, do Museu Real, atual Museu Nacional,

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cujo acervo inicial se compunha de uma pequena coleção de história natural doada pelo monarca. É possível dizer que no século XIX firmaram-se dois modelos de museus no mundo: aqueles baseados na história e cultura nacional, de caráter celebrativo, como o Louvre, e aqueles que surgiram como resultado do movimento científico, voltados para a pré-história, a arqueologia e a etnologia, a exemplo do Museu Britânico. Segundo DURAND (1819), os museus deveriam ser erigidos dentro do mesmo espírito das bibliotecas, ou seja, um edifício que guarda um tesouro público e que é, ao mesmo tempo, um templo consagrado aos estudos. Já em meados do século XX, precisamente em 1946, surge uma organização criada por e para profissionais da área museal: o Conselho Internacional de Museus – ICOM. A organização é um fórum diplomático constituído por especialistas de 136 países e territórios para responder aos desafios que os museus enfrentam em todo o mundo, sem fins lucrativos, que se dedica a elaborar políticas internacionais para os museus.

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O ICOM define como Museu, toda instituição permanente, sem fins lucrativos, aberta ao público, que adquire, conserva, pesquisa e expõe coleções de objetos de caráter cultural ou científico para fins de estudo, educação e entretenimento. A definição de Museu segundo o Ministério de Cultura – IBRAM/MinC é mais específica: “O museu, para os efeitos de lei, é uma instituição com personalidade jurídica, com ou sem fins lucrativos, ou vinculada a outra instituição com personalidade jurídica própria, aberta ao público, a serviço da sociedade e de seu desenvolvimento e que apresenta as seguintes características: I - o trabalho permanente com o patrimônio cultural, incluindo nessa designação o natural, tangível, intangível, digital, genético e paisagístico; II - a presença de acervos e exposições colocados ao serviço da sociedade com o objetivo de propiciar a ampliação do campo de possibilidades de construção identitária, a percepção crítica da realidade, a produção de conhecimentos e oportunidades de lazer; III - o desenvolvimento de programas, projetos e ações que utilizem o patrimônio cultural como recurso educacional, turístico e de inclusão social; IV - a vocação para a comunicação, a exposição, a documentação, a investigação, a interpretação e a preservação de manifestações e bens culturais e naturais;

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V - a democratização do acesso, uso e produção de bens culturais de modo a contribuir para a promoção da dignidade da pessoa humana; VI - a constituição de espaços de relação e mediação cultural com orientações políticas, culturais e científicas diferenciadas entre si. ” (COSTA: 2006, p. 08)

Mas, então, quais são as funções do museu, para o museólogo? “Ele desenvolve uma atividade que podemos descrever como um processo de musealização e de visualização. De maneira mais geral, falamos de funções museais que foram descritas de formas diferentes ao longo do tempo. Baseamo-nos em um dos modelos mais conhecidos, elaborado no final dos anos 1980 pela Reinwardt Academie de Amsterdam, que distingue três funções: a preservação (que compreende a aquisição, a conservação e a gestão das coleções), a pesquisa e a comunicação. A comunicação, ela mesma, compreende a educação e a exposição, duas funções que são, sem dúvida, as mais visíveis do museu” (DESVALLÉES & MAIRESE: 1993, p. 22)

Qualquer museu deve possuir três funções básicas: 1. Preservação: seleção e a aquisição de bens culturais; 2. Investigação: documentação e apoio à pesquisa;

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3. Comunicação: diversas ações a serem realizadas para dialogar com o público - ações educativas programadas para qualquer faixa etária, exposições, publicações, site, programa multimídia, etc. As três funções possuem o mesmo peso dentro do museu, embora, em determinados momentos ou mesmo por razões de escolha, muitas vezes uma função exerça predomínio sobre as outras. Outro ponto muito importante a ser observado é a diferença básica entre Museus e Centros Culturais: o Museu tem um acervo próprio e permanente. “O museu é um espaço ativo, dinâmico, onde acontecem eventos, exposições, palestras. É um local de pesquisa e estudos, com salas específicas para o desenvolvimento de atividades técnicas, artísticas ou educativas, exigindo, para tanto, que o edifício destinado a este uso seja projetado ou adaptado convenientemente para atender estas expectativas. ” (COSTA: 2006, p. 26)6

Os museus passaram por um processo de questionamento da sua forma tradicional, abrindo-se para uma perspectiva de reflexão sobre 6

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Os destaques em itálico na citação acima foram adicionados para dar ênfase em frases que se consideram mais relevantes ao tema do Ensaio, os destaques não constam no texto original de COSTA.

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o seu lugar social (SUANO, 1986). É nesse contexto que surge a noção de ecomuseu, uma nova lógica criada com o objetivo de estabelecer, inicialmente, uma relação entre museu e meio ambiente, segundo VARINE. “O Ecomuseu é uma instituição que administra, estuda, explora com fins científicos, educativos e, em geral, culturais, o patrimônio global de uma determinada comunidade, compreendendo a totalidade do ambiente natural e cultural dessa comunidade. ” (VARINE: 2000, p. 62)

Segundo CHAGAS (2000), essa relação museu e sociedade é um dos focos principais de questionamento e busca de alternativas ao modelo tradicional. O museu passa a ser assumido pelas comunidades locais enquanto agente do processo de mudança social, sobretudo naquelas realidades com problemas culturais e sociais específicos, como as comunidades indígenas e negras, os bairros pobres nas grandes cidades. Esses novos museus são criados com um horizonte de expectativas distinto daqueles tradicionais. Contribuem para a preservação dos patrimônios ambiental e cultural local, mas se propõem a envolver diretamente as populações locais na gestão da memória coletiva e do seu acervo de problemas.

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No contexto das grandes cidades, especialmente no Brasil, os ecomuseus e museus comunitários surgem nas zonas periféricas, originadas a partir de processos de valorização de áreas consideradas nobres e que, consequentemente, cria um afastamento das populações pobres para áreas distantes dos centros históricos e turísticos. Surgem tentando responder aos problemas de desterritorialização, ou gentrificação, de populações. Os ecomuseus são museus em menor escala, que pretendem atender uma demanda cultural, histórica e de pesquisa da população local. São os próprios membros da comunidade que realizam os processos de formulação, execução e manutenção do mesmo, sendo ou podendo ser em algum momento, assessorados por um Museólogo.

1.2 Museu no campo da arquitetura “A arquitetura museal como a arte de conceber, de projetar e de construir um espaço destinado a abrigar as funções específicas de um museu e, mais particularmente, as de uma exposição, da

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conservação preventiva e ativa, do estudo, da gestão e do acolhimento de visitantes. Desde a invenção do museu moderno, a partir do final do século XVIII e início do XIX, e, paralelamente, a partir da reconversão de antigos prédios patrimoniais, desenvolveuse uma arquitetura específica que, especialmente pelas suas exposições temporárias ou de longa duração, vincula-se às condições de preservação, de pesquisa e de comunicação das coleções. Esta arquitetura ficou evidente tanto nas primeiras construções desse tipo quanto nas mais contemporâneas. ” (DESVALLÉES & MAIRESE: 1993, p. 30)

No final do século XVIII, foram traçados os contornos da concepção moderna de museu, que se consolidaria no século XIX com a criação de importantes instituições museológicas na Europa, como o Museu do Prado, em Madri – projeto original, 1819; o Altes Museum, em Berlim – projeto original, 1830 e o Rijksmuseum/Museu Real dos Países Baixos, 1800 – que mudou de instalações duas vezes, sendo somente a terceira e atual sede, em Amsterdã, 1885, projeto original e destinado ao acervo do museu. Já no século seguinte, em 1909, O Manifesto Futurista, escrito pelo poeta italiano Filippo Tommaso Marinetti, foi publicado no jornal francês Le Figaro. Este manifesto marcaria a fundação de um dos

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primeiros movimentos da arte moderna. Era composto por 11 itens que promoviam a ruptura com o passado e a identificação do homem com a máquina, a velocidade e o dinamismo do novo século, anunciando paralelamente uma nova concepção estética, simbolizada no exemplo do automóvel, projetando-se no futuro. Destaca-se do manifesto, em tradução livre, o item #10, que exalta a vontade de desligamento com o passado, na época representado, também, pelos museus: “nós queremos destruir os museus, as bibliotecas, as academias de toda natureza, e combater o moralismo, o feminismo e toda vileza oportunista e utilitária. ” (MARINETTI: 1909, p.01)

Foi então, neste mesmo século, no início dos anos 60, que a arquitetura voltada para museus sofreu uma mudança em relação ao programa. Essa mudança deu origem a diversas variações de museus, ditadas pelas demandas espaciais e funcionais do lugar, surgindo assim novas tipologias, como por exemplo os Centros Culturais, que reúnem diversas funções voltadas à cultura e ao público. Com isso, esses espaços passaram a suprir uma série de novas demandas sociais e culturais da modernidade. Programas como

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restaurantes, cafés, lojas, livrarias, bibliotecas, teatros, passaram a fazer parte dos tais espaços culturais. Porém, esse cenário cultural mudou rapidamente do século XX para o XXI. Segundo ARANTES (2000) o museu moderno hoje vai declinando e se tornando coisa remota de um passado não tão longínquo. Além disso, nesse mesmo período surge uma demanda ao arquiteto que se propõe a intervir ou conceber um museu: conhecer a fundo o seu programa de necessidades. “Somente nos anos 80, com a onda renovadora de museus, é que vão ser incluídas as demandas museológicas cientificamente definidas. É neste período que os museus deixam de ser simples galerias de exposição (mal iluminadas no período palaciano e exageradamente iluminadas no período modernista) e os arquitetos passam a enfrentar com muito mais rigor toda a complexidade do programa museu. ” (KIEFER: 2002; p. 22) “As dificuldades atuais da arquitetura museal repousam sobre o conflito lógico existente entre, de um lado, os interesses do arquiteto (que hoje é valorizado pela visibilidade internacional deste tipo de construções), e, de outro, aqueles que estão ligados à preservação e à valorização da coleção; finalmente, ainda precisa ser levado em conta o conforto dos diferentes visitantes. Esta problemática já foi

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ressaltada pelo arquiteto Auguste Perret: ‘Para um navio navegar, este não deve ser projetado de modo muito diferente de uma locomotiva? A especificidade de um edifício de museu recai sobre o arquiteto, que será inspirado por sua função para criar tal órgão. ’ (PERRET, 1931). Um olhar sobre as criações arquitetônicas atuais permite perceber que se a maior parte dos arquitetos leva em conta as exigências do programa do museu, muitos continuam a privilegiar o objeto belo em detrimento do bom instrumento museológico. ” (DESVALLÉES & MAIRESE: 1993, p. 32)

O olhar do arquiteto sobre o espaço expositivo, no museu, voltado para a edificação em seus aspectos técnicos, funcionais e estéticos, serve como complementação ao olhar do artista, do curador, e de outras pessoas envolvidas com a exposição. Nas exposições de arte, o próprio objeto artístico e a arquitetura somam-se, trata-se da união entre arquitetura e arte na busca da materialização do discurso museal, que pode explorar ou anular relações visuais e espaciais entre as obras e a edificação histórica, entre a edificação e o público, entre as próprias obras e até mesmo entre o próprio público. Esta união dos campos de estudo citados parece ser a essência da museografia, uma disciplina que envolve, além destas áreas, também

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a cenografia, a programação visual, estudos luminotécnicos, entre outros.

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2.

Museu e Prática Preservacionista

Fonte: Exposição “Mondrian e o Movimento Stijl” no CCBB-Brasília (acervo próprio).

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“Os espaços museais são aqueles nos quais estão inseridas atividades culturais museológicas, e por base teórica tem os conceitos de cultura e arquitetura para um entendimento inicial. O complexo cultural surge como resultado de uma demanda cultural e arquitetônica da sociedade contemporânea, ao aparecer como resposta recorrente à complexidade espacial e multiplicidade programática do cenário recente. ” (TAVARES: 2014, p. 3)

2.1 O Museu enquanto objeto de práticas Preservacionistas No contexto internacional, a prática preservacionista institui-se mundialmente depois da Revolução Francesa (1789-1799), paralelamente com a implementação do termo museu. Antes dessa institucionalização existiam os Antiquários e os Gabinetes (como visto no tópico 1.1), cujos objetivos eram guardar e colecionar os bens, no lugar da preservação, que hoje é uma das funções do museu. O nascimento dos museus está atrelado à preservação dos objetos e obras. O Museu do Louvre e os demais museus citados, que surgem em um momento em que a Revolução colocava em risco a memória nacional, materializam essa visão atual de preservar em nome da

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guarda e da memória da própria Nação. Os museus, então, começam a fazer parte da prática preservacionista como locus de proteção dos bens móveis – estátuas, quadros, esculturas, etc. Em um segundo momento, no século XX, os museus, depois de serem negados pelo movimento moderno da arquitetura, passam a ser um programa arquitetônico específico que, de um lado, tinha como objetivo a guarda das obras de arte modernas, por outro, também pretendiam ser a própria coleção da memória nacional materializada, tornando o próprio museu como objeto museal. Lembrando que, a partir dos anos sessenta, as Cartas Patrimoniais apontam na direção da adaptação e reutilização de edifícios antigos para novos fins úteis à sociedade. Diante da força que o turismo e a cultura assumem na virada do século XXI, os museus se tornam uma das opções mais realizadas de programas para divulgação e disseminação do turismo cultural e a prática preservacionista faz, também, uso deste programa, tanto para a ocupação de imóveis já existentes e em desuso e para intervenções urbanas, na qualidade de requalificação. É neste contexto que surge um fortalecimento do museu como programa de intervenções arquitetônicas e urbanas, sejam em edifícios já existentes ou não.

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No Brasil, esse fortalecimento também ocorreu, porém, aqui o conceito de patrimônio cultural tem evoluído nas últimas décadas, com uma percepção ampliada de sua complexidade e por abarcar campos anteriormente não contemplados, tais como os do patrimônio imaterial e, também, do patrimônio industrial. Deve-se destacar ainda o desenvolvimento da área de gestão do patrimônio, com uma maior estruturação nos níveis governamentais – federal, estadual e municipal – e no âmbito particular – sociedade, associações e empresas. No ano de 2013, por meio do Decreto nº 8.124, instituiu-se os conceitos essenciais aos elementos museais: bens culturais, bens culturais musealizados, bens culturais passíveis de musealização, centro de documentação, coleção visitável, degradação, destruição, inutilização, museu e processo museológico (Artigo 2º.); bem como as competências de gestão do IBRAM (Artigo 3º.), dos museus públicos e privados (Artigo 4º.) e demais instrumentos de gestão da rede museal brasileira. Tem-se definida, então, a estrutura normativa brasileira para que possam ser desenvolvidas as políticas e estratégias de gestão do

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patrimônio cultural brasileiro que abarquem a diversidade de possibilidades de representação desse patrimônio e suas diversas maneiras de se manifestar a partir da memória e da cultura nacionais. As propostas para a definição de conceitos acerca da museologia têm proporcionado um crescimento de sua compreensão, entendimento e ampliação. As experiências museológicas têm compreendido desde a concepção tradicional de museus às mais diversas inovações. Elas surgem desde as experiências de países escandinavos aos conceitos de ecomuseus nas quais se busca uma ampliação da relação com a vida cultural social, desde a conservação à revitalização de um patrimônio. A implementação desse tipo de museu, no Brasil, pode ter contribuído para o aumento do número de museus brasileiros, assim como ter colaborado para a cultura da mudança de uso de edifícios patrimoniais em museus, principalmente as residências.

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2.2 A Prática Preservacionista como política de museus Um olhar sobre o panorama de políticas museológicas internacionais revela um cenário plural e complexo. Cabe lembrar que esboçar tal cenário, pode implicar a comparação conceitual e metodológica entre campos museais de diferentes países, que não é o que se pretende aqui. Na Alemanha, cabe ao governo federal7 concentrar-se no desenvolvimento de condições básicas para a evolução da arte e da cultura, na organização e formação de instituições culturais de importância nacional, bem como na preservação do patrimônio. Na Austrália, desde 1993, a Museums Australia8, associação não governamental e sem fins lucrativos, desenvolve ações para preservação, desenvolvimento e comunicação do patrimônio

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Disponível em http://www.museumsbund.de/ , acessado em 30 de maio de 2016, às 09h30 Disponível em http://www.museumsaustralia.org.au/site/ , acessado em 30 de maio de 2016, às 09h43. 8

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australiano. A organização abriga em seu site base de dados disponibilizada pelo governo, que contém registros de mais de 20 mil locais tidos como referência para a construção da identidade nacional: patrimônios históricos, naturais e indígenas. A Colômbia tem desenvolvido iniciativas internas de pesquisa sobre o setor cultural e museal. O Programa Fortalecimiento de Museos9 está realizando um diagnóstico das instituições museológicas do país para a implementação da Política Nacional de Museus. A rede é administrada pelo Museu Nacional da Colômbia – o mais antigo do país – e elabora ações de apoio, consolidação e desenvolvimento da área. “O número total de bens culturais nos acervos musealizados de um país tem sido historicamente empregado como um dos parâmetros para estudar o campo museológico, por vezes adquirindo status de principal instrumento de mensuração. ” (IBRAM: 2011, p.30)

Já no contexto nacional, em 1985, foi criado o Ministério da Cultura10. Reconhecia-se, assim, a autonomia e a importância desta área fundamental, até então tratada em conjunto com a educação. O MinC

9

Disponível em http://www.museoscolombianos.gov.co/ , acessado em 30 de maio de 2016, às 10h05. Disponível em http://www.cultura.gov.br/historico , acessado em 30 de maio de 2016, às 10h20

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é um órgão da administração pública federal direta que tem como áreas de competência a política nacional de cultura e a proteção do patrimônio histórico e cultural. Mais de duas décadas depois, em 2009, o Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM)11 foi criado pelo presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva. A nova autarquia, vinculada ao MinC, sucedeu o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) nos direitos, deveres e obrigações relacionados aos museus federais. O órgão é responsável pela Política Nacional de Museus e pela melhoria dos serviços do setor. O museu como objeto científico é foco de ações e políticas públicas específicas e ocupa um papel secundário nas políticas de governo. Neste sentido, CHAUI (2006), analisando as políticas culturais demonstra que o museu ajuda na afirmação de uma ideia e de uma prática de cultura que desconsidera a trajetória e as condições históricas e culturais destes países. Sendo assim, em 1995, o Ministério da Cultura publicou um documento no qual apresentava a

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Disponível em http://www.museus.gov.br/ , acessado em 30 de maio de 2016, às 10h30

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política oficial para o setor e cujo título expressava bem seus propósitos: “cultura é um bom negócio”. Desde então, é possível perceber que esta premissa do MinC se consolidou não só através do drástico aumento do número de museus no Brasil, de 12 no século XX (JUNIOR & CHAGAS, 2007) para 3.025 no ano de 2010 (IBRAM, 2011), mas também pelas constantes destinações de verba federal para a implementação de museus. Gráfico 1: Número de museus brasileiros por ano de fundação

Fonte: Cadastro Nacional de Museus – IBRAM/MinC, 2011

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Gráfico 2: Investimentos em museus brasileiros, em milhões, por ano

Fonte: Cadastro Nacional de Museus – IBRAM/MinC, 2011

Além disso, em 1991, foi criada a Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (CNIC), que é um órgão do Ministério da Cultura, responsável por analisar e opinar sobre as propostas culturais encaminhadas ao MinC para obter apoio através de incentivos fiscais. Realizado um apuramento de notícias oficiais, encontradas no site do IBRAM, em

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um período corrido de dois anos - novembro de 2013 a novembro de 2015 - foi constatado que em 24 meses a CNIC captou mais de 365 milhões de reais e os destinou a projetos na área de museus: Diagrama 1: Linha do tempo dos investimentos do CNIC em 24 meses

Fonte: Autora, 2016

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Segundo o IBRAM (2011) quase 83% dos 3.025 museus brasileiros estão locados em edifícios cujo uso original era outro que não museu. Na maioria eram residências, mas os usos originais são vários e completamente distintos um dos outros. Desses, 29% já eram tombados antes de se tornarem museus, em pelo menos 1 das 3 intâncias – local, nacional e internacional. Ou seja, 24% dos museus em edifícios cuja função original não era museológica eram tombados antes da mudança de uso. Isso significa, em números, que, 722 museus brasileiros estão locados em edifícios tombados, suja destinação original era outra. Gráfico 3: porcentagem de museus brasileiros segundo uso original da edificação

Fonte: Cadastro Nacional de Museus – IBRAM/MinC, 2011

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Gráfico 4: porcentagem de museus brasileiros segundo função original da edificação

Fonte: Cadastro Nacional de Museus – IBRAM/MinC, 2011

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Considerações finais

Fonte: Detroit Institute of Art, disponível em: http://www.gentlemansgazette.com/cell-phone-etiquette/

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Tendo em vista o estudo do que é museu nos campos da museologia e da arquitetura e como o museu é ao mesmo tempo objeto e política de preservação, retoma-se a questão: por que os arquitetos, quando interveem em um edifício tombado, optam pela mudança de uso, este sendo o museu? E o que leva a essa prática, hoje, no Brasil? Foi possível constatar que os edifícios possuem um potencial de uso, intrínseco a função original do mesmo. Uma estação de trem, por exemplo, foi projetada para este fim, seus ambientes, modo de circulação, dimensionamento e afins foram propostos para uma finalidade especifica – receber um número grande de pessoas e trens temporariamente. Então quando se pensa em dar-se um novo uso a esta construção, considera-se necessária uma adaptação para que este edifício possa abrigar o novo uso, como por exemplo o Musée d’Orsay. O edifício, construído como estação ferroviária entre 1810 e 1840, abriga, desde 1986, o Musée d’Orsay, que reúne pinturas, fotografias e esculturas de artistas que surgiram com a Segunda República, e que, antes estavam abrigadas no Louvre, Museu do Jeu de Paume e Museu de

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Arte Moderna de Paris. Porém, da antiga estação só sobrou a casca. A estação virou quase um cenário de televisão, onde somente a fachada é capaz de contar a história de uma sociedade, uma época e uma cultura, o interior, embora repleto de obras-primas e bens culturais de natureza móvel, parece vazio no que diz respeito ao antigo significado arquitetônico. Imagem 1: Gare d’Orsay, 1900

Imagem 2: Musée d’Orsay, 2009

Fonte imagem x: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Gare-d%27OrsayBaS.jpg?uselang=fr , acessado em 23 de maio de 2016 às 10:17; Fonte imagem x: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:FW_Mus%C3%A9e_d%E2%80%99Ors ay_Innenraum.jpg?uselang=fr , acessado em 23 de maio de 2016 às 10:18.

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Parece comum a prática de intervenção patrimonial com mudança de uso, e mais comum ainda mudança do uso original para o uso museal, como no Musée d’Orsay. A reutilização é considerada uma das ações mais eficientes de preservação patrimonial, mas segundo CHOAY ela não é sempre tão simples e eficaz assim: “A reutilização, que consiste em reintegrar um edifício desativado a um uso normal, subtrai-lo a um destino de museu, é certamente a forma mais paradoxal, audaciosa e difícil da valorização do patrimônio. Como o mostraram repetidas vezes, sucessivamente, Reigl e Giovannoni, o monumento é assim poupado aos riscos do desuso para ser exposto ao desgaste e usurpação do uso: dar-lhe uma nova destinação é uma operação difícil e complexa, que não deve se basear apenas em uma homologia com sua destinação original. Ela deve, antes de mais nada, levar em conta o estado material do edifício, o que requer uma avaliação do fluxo dos usuários potenciais. ” (CHOAY: 2001, p.219)

Apesar disso, os museus continuam sendo o foco da reutilização de edifícios patrimoniais. É importante ressaltar que a implementação de um museu em um bem patrimonial muda a dinâmica urbana também, não só a arquitetônica, buscando requalificar e valorizar a cidade.

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Segundo a Carta de Veneza (1964), restauração é uma operação que tem como objetivo conservar e revelar os valores estéticos e históricos do monumento. Já segundo BRANDI (1963) restauração é entendida como qualquer intervenção voltada a dar novamente eficiência a um produto de atividade humana. Tendo isto em mente, quando se muda o uso, e consequentemente o programa de necessidades, do edifício em questão, é necessário lembrar do testemunho histórico do mesmo. Entende-se testemunho histórico como valor histórico dos bens patrimoniais, que segundo LACERDA (2012), diz respeito, obrigatoriamente, ao passado, culturalmente construído [...] que confere, não apenas a certos conjuntos urbanos e monumentos, mas à parte significativa da cidade, o status de patrimônio no sentido de herança, de memória social. Ou seja, é preciso lembrar a memória que a população tem daquele edifício, que está potencialmente relacionada ao uso original do mesmo. “Na prática, esta arte da memória é uma arte da linguagem: ensina a conservar as narrativas e permite, pois, a um indivíduo tornar-se o depositário das recordações daqueles a quem nunca conheceu porque morreram muito antes do seu nascimento. Assim se forma a tradição

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oral que, durante milénios, constituiu o principal conteúdo da memória coletiva e transgeracional. ” (POMIAN: 2000; p. 509)

Ainda sobre patrimônio cultural, GONÇALVES (2007), diz que: “ Nas análises dos modernos discursos sobre o patrimônio cultural, a ênfase tem sido posta no seu caráter “construído” ou “inventado”. Cada nação, grupo, família, enfim cada instituição construiria no presente o seu patrimônio cultural, com o propósito de articular e de expressar sua identidade e sua memória. Esse ponto tem estado e seguramente deverá continuar presente nos debates sobre o patrimônio. “ (GONÇALVES: 2007; p. 245 e 246)

Desde a primeira publicação, em 1992, do clássico “Alegoria do Patrimônio” na França, houve muitas mudanças no campo do patrimônio, inclusive aquelas decorrentes da globalização deste conceito e das práticas a ele relacionadas. À medida que a noção de patrimônio se amplia, a categoria monumento se enfraquece; na proporção que o presente rapidamente deve se tornar passado, em sua obsolescência, o patrimônio não só se torna musealizável, mas se torna, igualmente, passível de comercialização e ocupação.

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Em contrapartida ao crescimento exponencial do número de museus brasileiros e ao aumento de recursos federais destinados a expandir mais ainda esta quantidade, nas últimas décadas, é possível identificar, hoje, que a população brasileira não está fazendo uso desta extensa quantidade de museus, em maioria, 83%, locados em edifícios com uso original distinto. Pois, segundo uma pesquisa realizada pelo Governo Federal (SIPS-IPEA, 2010), aproximadamente 70% da população brasileira jamais foi a museus ou centros culturais. E, segundo o IBGE (2008/09), a despesa monetária mensal familiar média brasileira (unidade familiar igual a 3,3 pessoas) com cultura é de R$26,00, dos quais somente R$1,07 é destinado a museus, teatros e shows. Além disso, de acordo com o PDAD - Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios

12

(2013/2014), na capital do Brasil, entenda-se Brasília

como RA I, quase 71% dos moradores não vão ao museu e do total de moradores do Distrito Federal mais de 92% também não. E, ainda, segundo o PMAD - Pesquisa Metropolitana por Amostra de

12

Infelizmente, os demais estados da Federação não possuem essa pesquisa de amostra domiciliar. Estes se baseiam na PNAD (Pesquisa Nacional de Amostra de Domicilio), que não contém o tópico “aspectos culturais” da população.

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Domicílios (2013), quase 96% da população que vive no entorno do DF não vão a museus. Sendo assim, é possível perceber que os profissionais dos campos da arquitetura e da museologia contribuem, conjuntamente, para a prática dos arquitetos de intervenção patrimonial de reuso e adaptação com funções museológicas, no Brasil, hoje, uma vez que é de interesse mutuo a disseminação da cultura, seja por meios de bens móveis – como as obras de arte – ou bens imóveis – como os edifícios. De um lado temos edifícios históricos como objetos reconhecidos como patrimônio e bens imóveis que devem ser preservados, como “salva guarda” de uma sociedade, uma memória e uma cultura. Do outro, temos a política de museus que se apropria desses objetos arquitetônicos, que vão contribuir para o crescimento e legitimação dos museus. Além do mais, a recente postura de diálogo entre as áreas e mesmo a nova concepção de museu, como os ecomuseus – aqueles que primam por atender uma demanda cultural e de ensino patrimonial local - permite uma ocupação válida, no campo museológico, dos museus em edifícios patrimoniais e/ou simbólicos. Já para os

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arquitetos essa ocupação é paradoxal, uma vez que dar um novo uso a um bem imóvel, em desuso, afim de preserva-lo é válido, da mesma forma que a reutilização de um edifício pode não ser uma necessidade atual para aquela sociedade ou um uso tipologicamente compatível com o mesmo, o que torna a intervenção polêmica. Em resumo, essa prática é um ciclo que, ao mesmo tempo que cria uma política de museificação dos bens imóveis, quando a arquitetura se apoia nos novos usos, principalmente o de museu, ainda que esses “sacrifiquem” alguns aspectos da autenticidade dos edifícios, cria, também situações como a interdisciplinaridade das áreas no processo de preservação – expografia, projetos museais em termos de luz e condicionamento térmico. Portanto, a fim de priorizar a interdisciplinaridade entre o museólogo e o arquiteto, com o objetivo de preservar e educar a população seja ela local ou não, e melhorar os índices locais (Brasília, Distrito Federal e entorno) e nacionais da não ida populacional aos museus, imagina-se que esta interdisciplinaridade seria muito mais eficaz, em vários aspectos, se implementada nos mais de 3 mil museus brasileiros existentes, em vez da criação de novos museus. Museus

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estes que podem, ou não, serem produto da transformação arquitetônica, e até urbana, com a mudança de uso de bens imóveis. Portanto, cabe a nós, arquitetos, buscarmos soluções cada vez mais próximas a de interdisciplinaridade, colaboração e preservação do que a de museificação arquitetônica, urbana e social. Deve-se primar pelo incentivo à cultura e a ida das pessoas aos museus – qualidade, no lugar de incentivar o museu em si, como objeto, e seu aumento em unidades – quantidade.

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Imagem: Antoine Geiger

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