Mário Azevedo - Gradeados

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O colecionador de detalhes O bom Deus está nos detalhes. Aby Warburg

Organizar a desorganização ou desorganizar a organização? Murilo Mendes

I. Um homem caminha pelas ruas das cidades. Não olha as grandes perspectivas, nem as fachadas suntuosas. Não repara nas vitrines iluminadas, nem nos ornamentos das cornijas. Ele busca, ao rés do chão, os pequenos detalhes de respiradouros, de ralos, de bocas de lobo, de peças de metal que servem para limpar o barro ou a neve das botas. As cidades são pródigas nesses acontecimentos insig­ nificantes que às vezes as definem. Através desses signos adivinhamos a existência de um porão, a frequência das chuvas, a necessidade ou não de um aquecedor. A cata dessas insignificâncias, o homem cami­ nha e reconhece desenhos que ele mesmo fez anos atrás e ainda faz, os desenhos que todos fizemos desde a origem do mundo. Duas linhas cruzadas, losangos, quadrados, texturas de pontos, algumas curvas indiscretas, um triângulo, uma rede, um arabesco, várias flores. Ele fotografa esses acontecimentos, os coleciona, os organiza. Nós não sabemos – mas ele sabe – em que rua os encon­ trou, em qual cidade, em que ano. Faz um tempo que inventou um nome comum para todos eles e os chama de neomonumentos. Nesse grupo de achados há uma subclasse: os gradeados.

II. A palavra latina monumentum, derivada da raiz indoeuropéia *men – pensar – designa, por oposição a corpus – corpo –, a atividade do pensamento; *men é ter presente no espírito e, portanto, lembrar-se. Assim o imperativo memento – lembra-te – aponta

para uma das funções essenciais do espírito, memini, a memória. Monumento é, então, uma obra visual ou es­ crita cuja finalidade é contribuir para a perpetua­ ção de acontecimentos relevantes ou pessoas na história de uma comunidade ou de uma nação. O monumento sempre esteve imbuído dos desejos de continuidade das sociedades históricas que, através dele, reenviavam para o presente o lega­ do da memória coletiva: os relatos não escritos ou escritos fragmentariamente daquilo que não deveria ser esquecido. Robert Smithson, ao realizar seu trabalho Um passeio pelos monumentos de Passaic, Nova Jersey em 1967, inaugurava um conceito diferente de mo­ numento. A peça consta de uma série de fotogra­ fias e um relato, publicados na revista Artforum, em dezembro desse mesmo ano. Nesse último, o autor narra o encontro com o seu primeiro monumento: ...era uma ponte sobre o rio Passaic, que ligava Bergen County e Passaic County. O brilho do sol de meio-dia cinematizava o local transformando a ponte e o rio em imagem superexposta.1 Com a sensação constante de se mover dentro de uma fotografia ou um filme, Smithson continua fotografando seus monumentos entrópicos: supor­ tes de concreto, máquinas detidas, uma draga no meio do rio... Quarenta anos depois, Mario Azevedo viaja, pas­seia, fotografa e coleciona os seus próprios

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monumen­tos: os Neomonumentos – altar, mapa, fonte, tabuleta, placa, escadaria, gradeamento, incrustação –, marcas que sinalizam um terri­ tório, marcos que nos fazem deter e reflexionar. Ocupando vazios, elegendo coisas destituídas de uma figuração, sinalizando, organizando e limpando espaços, os neomonumentos assumem uma posição originária, em uma paisagem atemporal: são colecionados como simples celebração de um acontecimento qualquer entre alguns fragmentos do mundo.2 Como o artista declara, colecionar esses mar­ cos é celebrar um rito profano, sem mitos, que busca sensibilizar os espaços urbanos, tão vazios de significados. O colecionador busca no objeto algo absolutamente invisível para aquele que não coleciona. Para os colecionadores, embora tam­ bém o vejam, o utilizem ou o possuam, o objeto colecionado, assim como o objeto-fetiche, não coincide de modo algum com o objeto em sua materialidade.3 Para o colecionador Walter Benjamin, cada úni­ co objeto dentro da coleção é pleno de sentidos, como a soma enciclopédica do conhecimento de sua época. O colecionador mantém uma relação misteriosa com essas peças e não prioriza sua uti­ lidade, mas as “estuda e os ama como um palco, como o cenário de seu destino.”4 Eles, os cole­ cionadores, vêem através das coisas um passa­ do remoto e têm a possibilidade de adquirir algo sem valor e transformá-lo num objeto valioso (ao menos para eles) e, assim, conseguem desvelar o significado secreto desses objetos. Cada objeto coletado está relacionado com um lugar e uma data – os de sua incorporação na série –, e por isso, cada coleção é um diário, um diário de viagens, mas também um de sentimentos e de es­ tados de ânimo, dessa obscura mania que nos leva a organizar o fluir da vida através de uma série de coisas que tentamos resgatar do esquecimento.5

Rosalind Krauss se faça presente, o artista parece não estar preocupado com os seus postulados críti­ cos, mas apenas com a nomeação dos desenhos de esquemas quase ortogonais, cujas fotos acumulou em suas derivas urbanas. Sobretudo porque o texto da crítica americana intenta dar conta da preemi­ nência da composição em grade ou quadrícula num certo modernismo do século XX, das condições que originaram seu advento e sua permanência. De acordo com ela: [...] uma vez se que se nos apresenta, a grade parece se resistir consideravelmente à mudança.[...] Em realidade, a medida em que vai crescendo nos­ so contato com a grade, vemos que um dos seus caracteres mais modernos é sua capacidade para servir como paradigma ou modelo do antievolutivo, o antinarrativo e o Anti-histórico. 6

Krauss afirma que a grade (a quadrícula) anun­ cia a vontade de silêncio da arte moderna e sua hostilidade com respeito à literatura, à narração, ao discurso. Nesse sentido, a grade quase reduziu as artes visuais à esfera da pura visualidade, ex­ cluindo a potência das palavras ao conseguir es­ tabelecer uma fronteira consistente entre as artes da visão e as artes da linguagem. As quadrículas a que ela se refere, repetimos, não são os gradeados que Azevedo coleciona. A começar pelo significância das palavras: a pala­ vra grids, título do artigo da crítica americana, alude, fundamentalmente, a um modelo geomé­ trico de linhas horizontais e verticais que se cruzam formando quadrados ou retângulos. Em inglês, a palavra também remete a um sistema de fios em redes elétricas, nunca para as gra­ des de um cárcere ou um edifício; neste caso a palavra usada é bars. Em espanhol, o texto foi traduzido como Retículas. Em português, costu­ mamos traduzi-lo informalmente, como Grades,7 talvez pela homofonia das palavras. O Dicionário III. Houaiss, porém, nos informa que o significado Esta coleção está reunida sob o título de Gradeados do substantivo feminino grade, em uso desde o e, por mais que a sombra do texto Grids (1978) de século XIII, alude a uma

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série de barras verticais paralelas, de metal ou de madeira, podendo ter outras barras entrecruzadas, horizontais, diagonais ou em curvas, compondo os mais variados desenhos e deixando entre si espaços vazados, destinada a fechar ou resguardar um lugar; engradamento, gradeamento, gradeado, gradaria, gradil.8 Pode ser, ainda, uma folha de papel quadricu­ lado ou traçado de quadrículas e, por extensão, quadro, tabela. Usa-se também como metonímia de cadeia, prisão, falta de liberdade, cerceamen­ to, opressão. O Diccionário de la Real Academia Española oferece os mesmos sentidos para reja, e agrega um sinônimo: cuadrícula (quadrícula).

IV. Os gradeados do inventário visual que aqui ve­ mos, não têm (quase) nada a ver com esquemas compositivos do modernismo do século XX e bem menos com cárceres ou cadeias. Fazem parte, po­ rém, de um percurso plástico amadurecido na per­ cepção das singularidades. O artista viaja pelo mundo e recolhe lembranças – de Paris, de Mon­ tevidéu (por onde seguiu Joaquín Torres-García), de Istambul, de Belo Horizonte, de Salvador, de Porto Alegre –, objetos que em sua conformação evocam as quadrículas, retículas, grades, grids. Mas também evocam a viagem, a cidade, a aldeia, a casa da fazenda, e ainda, a discrição do dese­ nho, do traço, a delicadeza ou a força das mãos humanas que as forjaram, que as perfuraram, as instalaram nesses locais. Em todas as fotografias vemos fragmentos de cidades ou, pelo menos de lugares habitados. Os objetos são reconhecíveis ou não. Às vezes vê-se claramente que isso é um ralo, que aquilo é um respiradouro e aquilo, uma pequena janela. (Qual o nome da grade de ferro que se usa na entrada de sítios ou fazendas para limpar o barro das botas?) E se em muitos se percebe um simples desenho funcional, em outros achamos o traço florido do Art Nouveau ou os espaços equilibrados do Art Déco. Liras, rosáceas, redemoinhos, flores de lis,

arabescos, treliças: os motivos são muitos e va­ riados. Algumas grades são ortogonais, outras em diagonais, e outras, ainda, de barras paralelas. Todas impedem a entrada de fumaça, de folhas, de papéis, de intrusos; todas propiciam a entrada de fumaça, de ar, de água, de poeira. São lugares de trânsito, de passagem, de intercâmbio. Giorgio Agamben afirma que as cidades se pare­ cem com os sonhos. As velhas cidades, sobretudo, são o lugar eminente das signaturas – aqueles sig­ nos, cifras ou monogramas que o tempo inscreve nas coisas –, que o flâneur lê com alguma distração no transcurso de suas derivas e de seus passeios.9 Por isso, todas as cidades estão povoadas de espec­ tros, seres feitos dessas marcas que se condensam em cada escadaria, em cada rua, em cada gradea­ do. Seres mudos e sutis, exigentes e distantes. O artista procura recolher essas signaturas, as fotografa, as coleciona, as inventaria, as publi­ ca, as faz proliferar. Aqui se tratam de gradeados, mas há escadarias, pedras, lápides, arcos, pedes­ tais vazios: todos com um certo ar de abandono, esquecidos, separados, longínquos. Lugares de vida de onde a vida se afastou, pedaços de coisas que subsistem entre o descuido e a falta de me­ mória. Rosalind Krauss destaca na grade (o grid) a sua capacidade para servir como paradigma ou modelo do antievolutivo, do antinarrativo e do anti-histórico. A coleção de gradeados que Mário Azevedo nos oferece, pelo contrário, imersa na história do mundo e de seus habitantes, participa gloriosamente do nosso processo de nascimento, desenvolvimento e morte. Rastros de espectros familiares pulsam entre suas imagens a nos sus­ surrar relatos esquecidos. Maria Angélica Melendi*

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SMITHSON, Robert. Um passeio pelos monumentos de Passaic, Nova Jersey. In: Arte & Ensaios n. 19, Rio de Janeiro, EBA/UFRJ, 2010, p.164. 1

AZEVEDO, Mario. Neomonumentos. Porto Alegre/Belo Horizonte: Edição do artista (18/25), 2007.

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Cf AGAMBEN, Giorgio. Estancias. A palavra e o fantasma na cultura ocidental. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2007, p.62. 3

BENJAMIN, Walter. Desempacotando minha biblioteca. In: Rua de mão única. Obras escolhidas v.2. São Paulo: Brasiliense, 1993, p.202.

4

Cf. CALVINO, Ítalo. Colección de Arena. Madrid: Alianza Editorial, 1987, p.13 e ss. 5

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KRAUSS, Rosalind E. La originalidad de la Vanguardia e otros mitos

modernos. Madrid: Alianza Editorial, 2006, p.36-37. Não existe uma edição traduzida para o português do texto em questão.

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Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, s/d. 8

9

Cf. AGAMBEN, Giorgio. Desnudez. Buenos Aires: Adriana Hidalgo,

2011, p. 57.

*Maria Angélica Melendi (Piti) Artista visual, pesquisadora e pro­ fessora. Nascida em Buenos Aires, Argentina, vive e trabalha no Brasil desde 1975. É Doutora em Literatura Comparada pela Facul­ dade de Letras/UFMG (com a tese A imagem cega: arte, texto e política na América Latina). Lecionou História da Arte entre 1986 2001 na Escola Guignard/UEMG e, atualmente, é professora adjunta da Escola de Belas Artes/UFMG, onde leciona Crítica de Arte, entre outras disciplinas. Nos últimos anos, como pesquisadora do CNPq, tem se dedicado à investigação das relações entre as artes visuais, a literatura e a política na América Latina, com ênfase nas estratégias da memória, temática sobre a qual tem publicado artigos em livros, jornais e revistas acadêmicas. É também editora da revista on-line Lindonéia e coordenadora do grupo de pesquisa Estratégias da Arte na Era das Catástrofes (www.estrategiasarte.net.br).

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notas de trabalho Todas as formas ainda se encontram em esboço, tudo vive em transformação: mas o universo caminha para a arquitetura perfeita. Nossa existência é uma vasta expectação, onde se tocam o princípio e o fim. Murilo Mendes, “Poema dialético”

Viva a poderosa contribuição de todos os erros! Oswald de Andrade, “Poesia Pau-Brasil”

um jogo cíclico Este álbum-catálogo (e todos os outros dessa mes­ ma série) é francamente derivado da primeira edi­ ção dessas idéias (um número zero), dessas vivên­ cias, que intitulei “Neomonumentos”. Esse trabalho trata de um jogo entre textos e fotos, através da paisagem como um fundo e da(s) metáfora(s) das viagens, criando a obra como um processo de co­ nhecimento. Aqui e agora, conservo e reafirmo esse procedimento. Nas exposições que já fiz com esse material, tentei montar essas peças fotográficas co­ mo uma banda cinematográfica, uma tira contínua mais ou menos longa de enquadramentos de acordo com o espaço disponível, em uma espécie de roteiromovimento. Penso sempre na espiral (aristotélica?) como uma rota contínua, se curvando e ascenden­ do, passando pelos mesmos pontos em profundi­ dades diversas, ao redor de um mesmo eixo. Este projeto baseado em grades – este(s) caderno(s) de imagens e textos – é, ele mesmo, disposto co­mo um gradeado; uma base fixa, trabalhada sob um sistema de variações – grades dentro de grades – o projeto da imagem como imagem. Já percebi, há algum tempo, que as imagens que trazem referên­ cias de diagramas, esquemas de redução e codifica­ ções – tais como tabelas, mapas, roteiros, gráficos, plantas baixas e certas textualidades – têm sido o mote da minha produção desde seu surgimento.

com máquinas de grande qualidade técnica, em busca de ângulos com a excelência do fotógrafo profissional; é possível dizer que são quase canho­ tas, muito simples nesse sentido. Elas não trazem imagens-postais do Partenon, do Globe Theatre, da Alhambra, do Coliseum, do Kremlin, do casario e das igrejas de Minas Gerais (São Brás do Suaçuí, Diamantina e Ouro Preto) e de trechos das margens do Rio da Prata ou da Laguna dos Patos. São frag­ mentos indecifráveis (cujas capturas, no entanto, identifico perfeitamente) des­ses e de outros mo­ numentos ou lugares específicos (junto a outros detalhes de várias paisagens), através dos quais me refiro ao jogo entre parte e todo, unidade e con­ junto, fragmento e totalidade, resumo e extensão, foco essencial e panorama expandido; entre tantos clics rápidos, despretensiosos, e a esperança de al­ guns olhares mais atentos.

a constância das anotações/ dispersão e concentração

Enquanto estudante, gostava especialmente de to­ mar notas, rabiscar, escrever e desenhar sobre pa­ péis quadriculados; sobre eles também era possí­ vel jogar batalha-naval ou jogo-da-velha durante as aulas mais tediosas, com resultados plásticos/grá­ ficos muito interessantes (como as notas tomadas durante conversas telefônicas e reuniões desinte­ anti-fotografia turística ressantes). Os produtos dessa atividade meio-surreEstas fotografias, tomadas em lugares onde estive alista – cheias de diferentes elementos às margens temporariamente em sua maior parte, se opõem à das anotações mais legíveis sobre os temas em mera fotografia turística. Também não são feitas curso – engendravam uma mensagem final muito

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potente. As folhas soltas desses cadernos escola­ res chegaram a servir de roteiro para muitos dos meus primeiros desenhos e gravuras. Mais tarde, trabalhei por algum tempo com desenho de arqui­ tetura e montagem de pranchas de arte-final para publicidade, além de continuar a manter muitas agendas, blocos-arquivos de idéias e referências ao lado de coleções de papéis para colagens; com o tempo, tudo isso se conjugou – em um esfor­ ço de concentração, contra a dispersão – em uma trama de base, em uma imagética utilitária que acomodava e repontecializava, em seguida, outras informações e/ou conformações. Apesar de con­ siderar que esse acervo me trouxe, mais recente­ mente, uma certa ânsia em desmontar/remontar tantos elementos, realmente prezo esse material, pois ele ainda produz uma estrutura (ou carnação) para outros novos trabalhos.

Amílcar, obrigado Nas disciplinas de Composição que cursei com Amíl­ car de Castro no final dos anos 70 (na Escola Guig­ nard e na EBA/UFMG), considero que obtive noções preciosas sobre a potencialidade da conquista do espaço plástico e da verdade do fazer através da convivência direta com a sua experiência (e sua convicção em desenhar). (...) Alguns de nossos exercícios se realizavam sobre papéis recortados em quadrados, gradeados em (nove, doze, etc) áre­ as iguais, no qual procurávamos estabelecer jogos (ritmo, modulação, relações formais e espacializa­ ção), dentro da mais absoluta liberdade quanto a materiais, cores, intenções e estilos. As folhas de papel eram cortadas, dobradas, coladas ou rasga­ das [e sempre reticuladas], na busca de constru­ ções, bidimensionais ou tridimensionais, a partir da distribuição de unidades. As observações soltas e concisas do mestre e os diálogos que se estabe­ leciam durante as aulas – na discussão e avaliação desses trabalhos – eram bastante interessantes; durante as nossas experiências em sala, a condução evolutiva, a análise dos resultados, a fixação do que ali importava ou não (evidentemente contaminadas pelo seu próprio trabalho) eram muito vitalizantes.

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A compreensão do que aquilo se tratava de fato era muito intuitiva e até mesmo, vaga; mas, mesmo as­ sim, muito densa e nutritiva. (...) Penso agora que foi aí que apreendi o pensamento do trabalho no trabalho – quanto mais pessoal, solto, mas próximo da exatidão, mais direto, sem sobras ou adjetivos; a responsabilidade, a originalidade, a profundidade e o rigor (igualmente presentes em sua gesticula­ ção e suas falas, além de sua produção) – marcando o meu trajeto plástico/visual.1

bricolagem Na antropologia, o processo da bricolagem prevê a formação de algo único a partir de uma varie­ dade. Lévi-Strauss (em “O pensamento selvagem”) usou o termo para descrever uma ação espontânea, natural, o estendendo ao incluir padrões criados sob características do pensamento mitológico (ge­ rado pela imaginação), que não traz rigor algum do pensamento científico, pois aí as metáforas ou narrativas excluem as ferramentas linguísticas tra­ dicionais. O seu exemplo são as culturas do novo mundo, em que identificava a bricolagem de dados de várias culturas para a formação de uma outra, própria e identitária. Nesse sentido, ainda interes­ sante lembrar as nossas conjecturas sobre mestiça­ gens e/ou hibridações. Mas, bricolar também é cartografar, enviesar, zi­ guezaguear, amontoar singularidades e diferenças; armar algo com sobras de fontes diversas, em uma colagem de fragmentos; é uma atividade lúdica, antiga, doméstica e comum, baseada no do it yoursel, desprezando os manuais explicativos. É como trabalhar apenas com aquilo que se tem, ali, na hora, aproveitando restos ou pedaços, estabele­ cendo alguns usos para outros usos, definindo novos arranjos para novas funções (Schwitters, Broodthaers). Também remete ao acaso e a in­ completude, se tornando, em diversos momen­ tos, da ordem do incidente, dos acontecimentos ínfimos (Duchamp), na junção de imprevistos que tentam captar as experimentações possíveis, a constelação de contágios e interferências que aí se integram. Tal jogo implica em traçar diagra­

mas moventes, mutantes, aproveitando os fatos e seus sinais; articular dados, eventos, vestígios, montando uma coleção de pistas (desenhos, tex­ tos, fotos), cacos ou refugos quaisquer (Bernd & Hilla Becher). É como fazer a aproximação entre um conjunto de dados aparentemente descone­ xos, construindo uma rota sempre aberta (Ernst e Klee), tentando – mesmo em vão – organizar um amontoado de coisas que, juntas, possibilitem al­ guns novos sentidos, sempre paradoxais. Como uma montagem de patchworks do coti­ diano, impressões, improvisações e composições (Kandinsky), táticas ao invés de estratégicas. Aqui, a própria arte faz assim; não representa, mas se apropria, une, desmonta e refaz do procedimento uma multiplicação de sentidos, com cada ideia se desdobrando sempre em outra: uma extensão cheia de centros, sem começo nem fim, numa trama in­ finita (TG). Não se trata só da providência e/ou do arranjo de uma textualidade (como nas metodo­ logias de levantamento de dados), mas de atar e ativar, de fato, quaisquer elementos em busca de sentidos livres.5

sobre estruturas É preciso registrar aqui que conheço há algum tempo, já li e reli, o texto Grids (Grades) de Ro­ salind Krauss, publicado em 1985 nos E.U.A.2 No entanto, nesse meu trabalho, não considero inte­ ressante tecer possíveis reflexões sobre suas te­ orias, pensando que isso seria inadequado, aqui e agora3. Porém, na Introdução de seu livro “A originalidade da Vanguarda e outros mitos moder­ nistas”4 – que traz o referido texto como primeiro capítulo – ela expõe sua metodologia crítica. For­ temente apoiada nas teorias do Estruturalismo, a autora cita uma metáfora de Roland Barthes que considero brilhante para ancorar certas questões da criação contemporânea, sejam elas da pesquisa, do ensaio crítico ou da produção artística. Krauss destaca que a substituição da idéia da obra de arte como organismo por sua imagem como estrutura, é bem mais produtiva no caso, o que ilumina esses “Gradeados” que exponho.

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A autora evoca a ilustração de Barthes sobre tal estrutura com o Argo, o barco de Ulisses e sua tripu­ lação na “Odisséia” de Homero. Como condição para sua proteção durante a viagem, os deuses gregos haviam estabelecido que o herói e seus companhei­ ros completassem inteiramente seu percurso sem trocá-lo por outro, indiferentes ao seu desgaste ou a eventuais acidentes. Assim, durante sua trajetória, os argonautas foram substituindo, lentamente e na medida do necessário, cada uma das peças da em­ barcação e, dessa maneira, terminaram sua missão com um barco completamente novo e diferente da­ quele no qual haviam embarcado antes. Sem alterar sua forma e seu nome, ele ainda era o mesmo objeto que os conduzia em sua(s) aventura(s), modificado apenas de acordo com as circunstâncias, em função do sucesso de sua empreitada. A propriedade dessa imagem alegórica reside na construção (e/ou mo­ dulação) de um objeto eminentemente estrutural, (re)criado ao longo de mudanças providenciais e sutis, mas que mantém sua natureza e nominação através de pequenas grandes operações. É possível manter e renovar os objetos, através de algumas ações realizadas no cerne da intenção de sua ma­ terialização, concebendo e balizando seu curso sob determinados fatores. As experiências constituem parte essencial das coisas, afinando-as em todos os sentidos e modulando sua finalidade, pela agrega­ ção convicta de seu método. Krauss também aponta para as colo­cações iniciais de Ferdinand de Saussure sobre o estruturalismo, desaguando na (re)definição da(s) linguagem(s) e todo um panorama de revitalização do pensamento contemporâneo. E finalmente, nesse mesmo texto – através de uma leitura sobre os papiers collés cubis­ tas de Picasso – a crítica americana ainda menciona a colagem (e, por extensão, a montagem) como uma metáfora estrutural, em um elogio muito franco ao método, quando o significado é o resultado de um sistema de substituições, de referencias em jogo. Ao anotar esses pensamentos, acredito que man­ tenho o meu trabalho próximo de sua crítica e me afasto de conjecturas impróprias, reforçando a obra como o mastro principal da minha produção.

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Transcrito da minha dissertação de mestrado em Poéticas Visuais, na EBA/UFMG: “Desenhos e Pinturas 1995/1997 - Reflexões sobre uma produção”, de 1998.

1

Através de sua leitura, fui informado também de um estudo sobre esse mesmo tema (ainda não acessado): ELDERFIELD, John. Grids. Artforum n.10, maio de 1972, p.52-59. 2

Mas, talvez o faça em uma outra oportunidade, apesar da existência de tantas referências a ele e mesmo sem uma boa versão em nosso idioma.

3

The originality of the Avant-Garde and other modernist myths. Cambridge, Massachusetts: MIT Press, 1985.

4

Grande parte do que escrevi acima vem de uma série de notas de aula, com comentários sobre a leitura de um texto especifico (cuja autoria, perdão, não registrei), trabalhado na disciplina “Cartografias da invenção: pistas e políticas de um método de pesquisa”, um tópico especial com a Profa. Virgínia Kastrup (UFRJ), no Instituto de Psicologia da UFRGS, em 2006. 5





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