Neomonumentos e Instantâneos: Estudos em errância
Em 2006, tive o prazer de conviver com Mário Azevedo, em Porto Alegre, durante a realização de seu doutorado, quando acompanhei seu interesse pela experiência urbana e suas anotações gráficas e fotográficas, que corriam em paralelo com sua pesquisa sobre os cadernos de Joaquín Torres-Garcia. Nos anos seguintes, pude visitá-lo em algumas ocasiões em Belo Horizonte e conhecer sua vasta biblioteca, constatando o zelo que ele nutre pelos livros, essa mídia portátil. Para refletir sobre a obra de Mário, voltei à minha própria biblioteca e busquei o Neomonumentos (caderno zero), 1 uma publicação do artista que surgiu em decorrência da disciplina que ministrei no PPGAV "Ações Públicas, Arte e Contexto", na qual discutíamos processos artísticos na cidade, pensando muito na experiência da caminhada. Nessa publicação, segundo o artista, ele explorou, pela primeira vez, o uso da fotografia para registrar os encontros que teve com estruturas singulares da cidade. Passados os rigores do inverno, Azevedo desbravou a pé os parques da cidade de Porto Alegre, em longos percursos, fazendo notas por imagem pela via da fotografia, fixando estruturas que lhe chamavam a atenção. Nesse caderno zero, encontram-se organizadas, em sequência, essas imagens, precedidas de alguns apontamentos: um texto do artista, em que ele define os Neomonumentos a partir da conceituação da escultura, acompanhado de uma reflexão autoral. É curioso pensar que esse caderno funciona como uma espécie de catalogação. Aprimeira imagem introduz o seu foco de interesse: as formas geométricas e
marcadores na paisagem. Mostra com humor um felino flagrado olhando para uma forma retangular que se destaca no chão de cascalhos. Há nesse enquadramento leveza, humor, disponibilidade, mas também um apurado rigor formal. Mário, nesse caderno, parece pensar as questões que debatíamos naquele então, os protocolos processuais de alguns artistas pós-conceituais e os modos de organização desses conteúdos, gerando séries. Adupla de artistas Bernd e Hilla Becher, por exemplo, elaborou, durante mais de 30 anos, uma importante coleção de tipologias arquitetônicas que nos colocam, pela imagem, na lógica do monumento. 2 Essa obra fotográfica, realizada a partir de premissas temáticas e de enquadramentos predefinidos, desloca os artistas da materialidade da escultura para a operação de reconhecimento das qualidades monumentais e estéticas do patrimônio construído (ruínas industriais, caixas d'água e casas), num olhar que constrói sentidos. No caderno de Azevedo se alinham os conjuntos de imagens organizadas e reordenadas por critérios tipológicos: lajotas, pedras recortadas, amontoados de pedras que indicam a marcação de um dado espaço, assemelhando-se a estelas funerárias. Seu olhar enquadra os módulos de pavimento que formam grades, estruturas do mobiliário urbano, como escadas e marcos vazios, suportes de esculturas. Também temos a marcação de árvores por fitas, em que o seu gesto de fotografar constitui a busca do ponto de vista que constrói um acontecimento escultórico, operando o monumento pela centralidade da captação do motivo e pela ausência de pa-
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râmetros de escala, com exceção da primeira e da última imagem. Os seus Neomonumentos são um exercício de olhar movido pela sua emoção estética, que ativa um sentido inerente que o faz identificar qualidades nesse exterior e organizar em seus álbuns imagens colhidas em encontros fortuitos com a paisagem urbana. Os seus enquadramentos revelam sua formação como artista marcado pela experiência moderna, e suas imagens tecem conversas infinitas com Jorge Oteiza, Amilcar de Castro, Hélio Oiticica, entre outros. Isso dito, entendo os Neomonumentos, no conjunto da obra de Mário Azevedo, como fotografias que, ao lado de seus desenhos e pinturas, elaboram por outra via sua busca compositiva com as formas tectônicas elementares. Eles me convidam a aproximar, por vias distintas, a produção de Oteiza, com suas caixas metafísicas, e o trabalho Obra de Diego Passos e Juliano Ventura - todos eles artistas que exploram a experiência urbana. 3 Oteiza investe na potência de um outro monumento, vivenciado como experiência estética partilhada no espaço comum. Já Passos e Ventura reconhecem elementos formais na paisagem urbana que os convidam a reconfigurar o território por gestos que são uma crítica ao monumento. Aoperação de Jorge Oteiza, que desenhou monumentos (pensados, mas não construídos), elabora marcadores da experiência estética e desenha uma emoção da forma na paisagem. Refiro-me ao Monumento a Jorge Batlle, concebido para ser instalado em Montevidéu, 4 e o cubo de vidro pensado para ocupar a Alhóndiga de Bilbao. 5 Oteiza centrava-se no labor da escultura em sua interface com o urbanismo. Aoperação em questão consistia em desenvolver uma sensibilidade plástica, uma marca que fosse incorporada ao imaginário coletivo com o objetivo de ressignificar a experiência comum do território. Seu Propósito experimental, mostrado na Bienal de São Paulo de 1957, uma obra modesta em tamanho, mas monumental em potência, causou reverberações profundas na produção de artistas brasileiros do movimento concreto e neoconcreto. Ele dizia que é a estátua que faz o escultor,
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e não o escultor que faz a estátua. O conjunto de exercícios, que mais pareciam maquetes, elaboram jogos formais, de forma a convidar a uma recepção empática através do objeto. Ali se encontram as lições do construtivismo e do neoplasticismo, além da profunda relação que ele estabeleceu com a estatuária megalítica americana. Nesses pequenos estudos formais, ele organiza as dúvidas que o habitam, ensaiando outros voos. 6 Assim, ele elabora o vazio da escultura na paisagem, se preparando para enfrentar o mundo cru e os meandros do urbanismo e das políticas do espaço. Vejo os Neomonumentos de Azevedo conversando também com o trabalho Obra, de Diego Passos e Juliano Ventura, que parece apontar para a ruína do monumento na sua relação com o poder simbólico e comemorativo.7 Ao reciclar elementos retirados de uma estátua vandalizada na cidade de Porto Alegre, deslocando e reconfigurando-os num lugar vazio do Parque Marinha do Brasil, eles desenham um marco crítico a partir do qual podemos discorrer sobre o vazio das Políticas Públicas. 8 Mário aponta nessas fotografias tanto os monumentos involuntários que encontra e que ele constitui na paisagem, quanto esses enigmas críticos de um contexto cultural estrangeiro a ele, que vem de Belo Horizonte. Nas páginas dedicadas às bases de esculturas vandalizadas em Porto Alegre, vemos uma sucessão de formas indicativas da presença de monumentos ausentes, ao lado de equipamentos urbanos. São imagens sem identificação e sem legendas, que nos colocam num face a face duro com aspectos de nossa cultura. Porto Alegre é a cidade dos monumentos errantes, das estátuas derrubadas que se deslocam. O artista vê a capital da errância dos sentidos simbólicos do Brasil e encerra o seu livro com uma imagem que mostra uma expressiva demarcação de cimento e pilares, instalada em um campinho onde, ao fundo, se vê um cavalo pastando. Ao se remeter às primeiras páginas do caderno zero, o artista assume a função de apontar e de reconhecer a forma nesse contexto adverso, dandonos igualmente a possibilidade de vazão ao exercício de um espaço crítico.
As imagens recentes da série denominada Quadrantes dão prosseguimento ao gesto de olhar de Neomonumentos, porém as questões aqui se deslocam para o detalhe e para o fechamento no motivo em registros provenientes de distintas localizações geográficas. As imagens exaltam as superfícies, destacam distinções materiais e evidenciam os arremates de partes faltantes. Paredes de casas abandonadas, túmulos, rodapés úmidos e superfícies carcomidas, detalhes da junção dos eixos verticais e horizontais, incrustações materiais. São imagens melancólicas que se ocupam do silêncio ao mostrar o desgaste. Mostram o tempo sem se importar em celebrar a forma. São não-monumentos que testemunham o estado obliterado e vazio da parede, que mostram limites que constituem densidades dramáticas. Imagens e sussurros em voz baixa que expõem o mundo e a passagem do tempo. Quadrantes surge como uma coleção de rebatimentos e de exercícios de reciprocidade do olhar, entre um homem e o seu mundo. Nesse vaivém deambulatório, Mário Azevedo captura instantâneos que, juntos, formam um quebra-cabeças de documentos de passagem. Linhas de fuga que expõem sua dimensão sensível e suas inquietações em face do visível e do invisível, da vida e da morte. Asuspensão operada pela ausência de pistas que circunstanciem essas imagens aos lugares, instiga o leitor a penetrar na materialidade desse mundo em ruínas e a decifrá-lo. As imagens não estão aqui para erigir monumentos como no "caderno zero", mas para celebrar a potência discursiva da memória. Imagens públicas e sintomáticas, que deixam margem para adivinharmos as afinidades do artista, nutrindo aproximações e conversas infinitas com as potências da arte em sua dimensão anacrônica.
AZEVEDO, M. Neomonumentos (Caderno zero). Design gráfico do artista e de Paula Langie. Porto Alegre: [s.n.], 2007. 30 p.: il. color.; 29,5 x 21 cm. Impressão digital, com tiragem de 25 exemplares numerados e assinados pelo autor. 1
' Bernd e Hilla Becher, artistas alemães e fotógrafos que trabalharam juntos por quase 50 anos. Conhecidos por sua extensa série de imagens fotográficas, ou tipologias, de edifícios e estruturas industriais, muitas vezes organizadas em grades. Diego Passos e Juliano Ventura são artistas que vêm realizando diversas ações urbanas. Coeditores das "Edições água para cavalos", trabalham com a apropriação e autopublicação de imagens. 3
Arnaiz, Ana et al. La colina vaáa: Jorge Oteiza, Roberto Puig: monumento a José Batlle y Ordóiiez, 1956-1964. Universidad del País Vasco, 2008.
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ARNAIZ, I. R. Oteiza y el Centro Cultural Alhóndiga de Bilbao. Una interpretación estética. Museo Oteiza y Azkuna Zentroa en colaboración con La Delegación de Navarra del Colegio de Arquitectos Vasco Navarro y el Ayuntamiento de Egués, 2017. 5
OTEIZA, Jorge. Documentación gráfica. IV Bienal de São Paulo. Escultura de Oteiza: catálogo. Madrid: [Autoeditado] Gráficas Reunidas, S.A., 1957, sin paginar [epígrafe: La estela funeraria]. Reimpreso en edición facsímil con motivo de La exposición São Paulo 1957, celebrada en el Museo Oteiza (11 de mayo 22-septiembre 2007). Alzuza (Navarra): Fundación Museo Jorge Oteiza, 2007.
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PASSOS, D.; VENTURA, J. Obra. Jornal Formas de pensar a escultura - Perdidos no Espaço Público, Porto Alegre, UFRGS, n. 4, abr. 2016. (Encarte).
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PASSOS, D. Vida e coisa: o corpo como canteiro de obra. Dissertação de mestrado, PPGAV-UFRGS, 2014. Disponível em: https://lume. ufrgs.br/ handle/ 10183/ 1103 26.
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Maria Ivone dos Santos
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Quadrantes: notas sobre uma poética de associações
1. Sair, então, é aquilo a que se propõe, primei-
ramente, Mário Azevedo: sair, caminhar e, por extensão, viajar. 2. Mário encontra suas extensões, sua potência,
seus vetores, na rua e nas caminhadas. São deslocamentos físicos, deslocamentos simbólicos, ao longo dos quais seu corpo e sua memória são veículos. Não significa que todas as imagens sejam oriundas desses deslocamentos exteriores - há também imagens realizadas em interiores-, mas é a partir deles que se abre a porta de acesso ao cotidiano, que nos leva para além do mundo imediato da arte e de seus procedi mentas mais imediatamente identificáveis. 3. Lembro-me de Exit (Saída), de George Brecht,
deva ser como uma projeção de sua institucionalidade, de seus protocolos, procedimentos e métodos organizacionais, com seus objetivos e códigos próprios, um lugar que tenderia, de alguma forma, a ser fechado e estático. Não. Oiticica retém do museu a experiência com a arte ali contida. Ele se refere àquilo que há de ativo nessa experiência, à experiência de uma mudança de percepção, ou de sua intensificação, à experiência de encontro e estranhamento, de desnaturalização - mas agora virada pelo avesso para encontrar o seu fora, o aberto, tornando-a ativa e participativa. Éo contrário de uma concepção que separaria a experiência artística do restante de nossas atividades no dia a dia. Oiticica então escreve em seu texto: "museu é o mundo", para logo em seguida acrescentar: "é a experiência cotidiana". Aarte não seria então, para retomar uma expressão de Arthur Danto, "um recinto especial do real, senão uma forma de experimentar qualquer coisa - a chuva, o burburinho de uma multidão, um espirro, o voo de uma borboleta (... )". 1
uma palavra proposta como evento e que pode ser escrita em cartões ou placas, como proposição do ato de sair de algum lugar como ação de arte. A cada vez que saímos de algum lugar, a cada vez que atravessamos uma porta, para ir ao pátio ou para a calçada, pode estar ocorrendo arte. 5. Oartista está no espaço externo. Ele está na rua, onde caminha e observa. O cotidiano que ele nos 4. Subitamente, ecoa em mim uma frase de Hé- apresenta é urbano. Mas o que o seu olhar experilio Oiticica. "Museu é o mundo", escreve ele em menta? O que lhe faz signo e o que ele encontra? seu "Programa ambiental", uma das suas anota- Muitos elementos construtivos múltiplos e moduções escritas em 1966 e publicadas no livro Aspiro lares, tais como pisos, pedras quadradas, muros de ao grande labirinto. Retomo a leitura desse texto. pedras, grades metálicas, ralos, respiradouros, tamProcuro situar a frase em seu contexto: tanto no pas de escoadouros, pastilhas cerâmicas, azulejos, conjunto de seus escritos, quanto em sua época. mosaicos, mas também objetos, tais como grelhas, Pode-se verificar que, com essa frase, Oiticica não palets de madeira, ou mesmo vestígios da presença quer dizer que o mundo deva ser museificado, que de objetos, placas e aparelhos, marcas de espátula,
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de tinta, vestígios de passagens, portas e janelas bloqueadas com tijolos, pedras encaixadas em buracos, pedras com recortes geométricos incrustadas em pisos, em muros, nichos, marcas urbanas, intervenções sobre arquiteturas já existentes ... Ele experimenta e observa o espaço de diferentes cidades. 6. Azevedo está no espaço interno. Ele está em casa
ou dentro de uma edificação. Oque aqui capta novamente sua atenção? Rodapés, tecidos quadriculados, barras de chocolate com e sem embalagem, pisos de cerâmica, mosaicos, azulejos ... Ele experimenta e observa o espaço cotidiano. 7. Mas o que é uma experiência do espaço? O es-
critor Georges Perec nos diz que: "Quando nada detém nosso olhar, nosso olhar leva muito longe. Mas se ele não encontra nada, ele não vê nada; ele vê apenas o que encontra: o espaço é isso que para o olhar, isso sobre o que a vista colide: o obstáculo: tijolos, um ângulo, um ponto de fuga: o espaço é quando se faz um ângulo, quando se interrompe, quando é preciso dar a volta para que ele recomece. O espaço não tem nada de ectoplásmico; tem bordas, não parte em todas as direções, faz tudo o que deve ser feito para que os trilhos da ferrovia se encontrem bem antes do infinito". 2
10. Não há pessoas nas fotografias, e não sabemos
exatamente de que cidades se trata. 11. As fotografias nos trazem um olhar Azevedo
sobre esses fragmentos urbanos que ele vê na rua, e várias delas nos lembram obras anteriores suas, com grafismos e estruturas similares. Mas será que isso ocorre porque ele reconhece elementos plásticos que já existiam em suas obras? Ou, ao contrário, as imagens captam algo que poderia estar na origem de seus desenhos, lá, muito atrás no tempo, nos primeiros passos de uma rua, de uma praça e de uma calçada de infância? Sim, grades ou redes de linhas horizontais e verticais existem há muito tempo nas cidades. Talvez tenham sido estas as que Mário viu em sua infância? Ou as duas coisas: a memória de um olhar anterior sendo conectada ou instigada por um olhar presente? Uma reenviando ou revelando o outro? Difícil saber, pois zona de incerteza. Mas a própria cidade não estaria plena de signos incertos? 12. Alguns dos elementos e objetos que ele encon-
tra e fotografa evocam também grafismos ou obras de diferentes culturas e períodos da história da arte, algumas mais antigas, outras mais contemporâneas, que, às vezes, fazem pensar em obras abstratas ou minimalistas e que instigam a uma percepção das 8. Oque é que colide com o olhar de Mário? Em mui- possíveis intersecções e problemáticas entre arte e tas de suas imagens, o que surge com mais frequên- arquitetura. Esses objetos e detalhes de arquiteturas cia são os fragmentos das superfícies das cidades e também atiçam nossa memória. sua constituição. São as qualidades das superfícies do espaço urbano, qualidades que emergem jun- 13. As fotografias tornam planas e acentuam as nuto com os elementos arquitetônicos aí presentes. merosas linhas que se encontram materialmente Imerso nas ruas, ele vai elaborando uma experiên- na arquitetura e nos objetos fotografados; algumas cia singular da cidade. delas, por exemplo, formadas nos interstícios das lajotas dos pisos ou nas juntas entre tijolos e pedras; 9. Oartista caminha, observa e fotografa, e suas outras, entrecruzadas em forma de malha ou grade e imagens são frontais, diretas, quase austeras; não que extravasam para fora do quadro da imagem. buscam efeitos, tentam apreender uma situação espacial, descrevê-la. Ele observa e capta espacialida- 14. Ao escrever sobre as linhas retas, o antropólogo des, com suas marcas e vestígios: formas de organi- Tim Ingold nos fala das diferenças entre linhas guias e zar a superfície das passagens espaciais e temporais. linhas traçadas, mesmo que, hoje em dia, consideremos a linha como um fenômeno unitário. Ele nos diz
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que as linhas traçadas chamam mais nossa atenção, e que as encontramos "em todo o tipo de construção projetada pela montagem de componentes pré-fabricados: em suportes, escoras e vigas, grampos e estribos, armações e andaimes, que se mantêm unidos por juntas e parafusos". 3 Já as linhas guias são aquelas que servem de auxiliares para a disposição e organização de diferentes elementos e tendem "a se esconder ou desaparecer completamente nos fundos que elas mesmas constituem. Muitas vezes não conseguimos percebê-las. Mas continuam sendo essenciais para muitas das superfícies sobre as quais ou em torno das quais a vida do ambiente urbanizado é conduzida. Pensemos nas linhas do pavimento, da alvenaria, dos palets e até papel de parede - as linhas onde as tiras se unem ainda estão lá, mesmo quando os decoradores de interiores fazem todo o possível para escondê-las! - ou as linhas de assentos em um vagão de trem, na fuselagem de um avião ou em um auditório". 4
mam materialidades muito diferentes, objetos com usos muito diversos, lugares muito distantes talvez, assim como tempos. Ocorre então um deslocamento e um processo associativo, um deslize, um percurso constante em nossa mente, um ir e vir de um objeto ao outro, de uma espacialidade à outra, de um fragmento ao outro. Nosso olhar se desloca e sucessivamente associa as imagens, e essas associações reciprocamente - fazem nossa mente se deslocar e conectar as estruturas comuns. Há um jogo entre abstração e concretude. Temos estruturas ou princípios estruturais comuns, que, a cada vez, se manifestam em objetos e materiais diferentes, com toda a carga conotativa e simbólica intrínseca a esses materiais e objetos, produzindo a cada vez efeitos diferentes. Há toda uma estranheza que emerge nesse deslocamento associativo . A linguagem artística aqui enfatiza precisamente o estranhamento dessas articulações entre heterogeneidades. Chamo a isso de uma poética de associações.
15. Em muitas das imagens do artista, notamos isso que descreve Ingold: a presença das linhas no cotidiano e no ambiente das cidades em que vivemos. Linhas visíveis ou dedutíveis, intrínsecas aos objetos, ou que se revelam em grafismos, vestígios, formas de organizar as passagens, interagindo com superfícies e espacialidades.
17. Por último, mas não menos importante, Azevedo intitula essa publicação com o conjunto das fotografias de Quadrantes. Ao consultarmos alguns dicionários, vemos que o termo "quadrante" remete às divisões de um círculo em quatro partes. Mas ela também designa os mostradores com graduação nos instrumentos que servem para indicar as horas, como no caso de um relógio de sol, ou a posição dos ventos, como no caso de uma rosa dos ventos. Um quadrante pode servir ainda na indicação dos quatro pontos cardeais ou da posição dos astros, e, por decorrência, para acharmos a posição ou o lugar onde nos situamos. Encontramos aqui a geometria como instrumento que associa um procedimento abstrato com posições concretas no mundo físico. No caso dos Quadrantes de Mário Azevedo, as imagens associam objetos e fragmentos de arquiteturas constituídos por geometrias e redes ortogonais. Os Quadrantes situam-nos como sujeitos através da experiência de uma poética de espacialidades e temporalidades em constante deslocamento .
16. Ao primeiro olhar, o conjunto das fotografias de Mário parece reunir elementos heterogêneos, díspares. Sua própria constituição fragmentária estimula o surgimento de perguntas sobre o que articularia essas muitas imagens. Mas, à medida que as percorremos com mais atenção, que nos detemos melhor nelas, começamos a perceber que os diferentes elementos compartilham não somente formas, mas também estruturas gráficas similares, que se manifestam através das maneiras vistas anteriormente. As imagens focalizam geometrias e esquemas de organização espacial em comum entre objetos e fragmentos de edificações, como, por exemplo, entre uma barra de chocolate e uma cerca metálica, ou entre um palete uma tampa de ralo. Essas estruturas comuns aproxi-
Hélio Fervenza
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DANTO, Arthur. O Mundo como Armazém: Fluxus e Filosofia. In: HENDRICKS, Jon (org.). O que é Fluxus? O que não é! O porquê, Centro Cultural Banco do Brasil, Brasília, 2002, p. 25.
1
' PEREC, G. Espêces d'espaces. Journal d'un usager de L'espace. Paris: Galilée, 1974. p. 109, tradução minha. INGOLD, T. Líneas - Una breve historia. Barcelona: Gedisa Editorial, 2015. p. 221, tradução minha.
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INGOLD, T. Líneas - Una breve historia. Barcelona: Gedisa Editorial, 2015. p. 221, tradução minha.
Maria Ivone dos Santos é awrtista visual, professora no Departa-
mento de Artes Visuais e no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais do Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Doutora em Artes pela Université de Paris I - Panthéon-Sorbonne (2003). Coordena, desde 2002, o Programa "Formas de Pensar a Escultura (FPES) - Perdidos no Espaço" (UFRGS) e, desde 2003, a pesquisa "As Extensões da Memória: a experiência artística e outros espaços". Codirige o grupo de pesquisa "Veículos da Arte" (CNPq). Em sua prática artística e reflexiva, observa e explora contextos específicos, urbanos, sociais e ambientais, realizando Levantamentos de Longa duração, em narrativas, inserções gráficas e publicações, elaborando modos de endereçamento público.
Hélio Fervenza é artista plástico, professor do Instituto de Artes da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), pesquisador do CNPq. Doutor em Artes pela Université de Paris I Panthéon-Sorbonne. Desenvolve propostas e atividades artísticas no programa "Formas de Pensar a Escultura (FPES) - Perdidos no Espaço". Autor do Livro O +é deserto, Documento Areal 3, Escrituras Editora, São Paulo. Principais exposições desde 1980: Bienal de Veneza (Itália), Bienal de São Paulo, Bienal de Yakutsk - BY14 (Rússia), Bienal do Mercosul, Museu da Gravura de Curitiba, Pinacoteca de São Paulo, Bienal de Amsterdam (Holanda), Instituto Itaú Cultural (São Paulo, Belo Horizonte, Brasília), Centro Cultural del Ministerio de Educación y Cultura (Uruguai), Fundación DANAE (França, Espanha), Musée des Beaux-Arts de Verviers (Bélgica), Centro Cultural Recoleta (Argentina), Centro de Extensión, PUC (Chile), University of Wisconsin (EUA), Sociedade Nacional de Belas Artes (Portugal), Paço das Artes (São Paulo), Galeria Sztuki BWA (Polônia) e Biennale Internationale de Gravure (Eslovênia).
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